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GONALO SANTA CRUZ DE SOUZA
A CASA DE AIRCriao e transformao das casas de culto nag:
Salvador, Rio de Janeiro, So Paulo e Campo Grande MS.
Tese de doutoramento apresentada aoDepartamento de Histria da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanasda Universidade de So Paulo.
Orientadora: Profa. Dra. Nanci Leonzo.
So Paulo
Maro - 2008
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
A CASA DE AIR
Criao e transformao das casas de culto nag:Bahia, Rio de Janeiro, So Paulo e Campo Grande MS.
GONALO SANTA CRUZ DE SOUZA
SO PAULOMARO 2008
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I
PGINA DA BANCA
So Paulo,
_______________________________________Orientadora: Profa. Dra. Nanci Leonzo
_______________________________________
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II
RESUMO
A discusso proposta neste trabalho considera a criao de casas de culto aos Orixs,dentro do modelo nag brasileiro e suas transformaes histricas ao longo do processo
de disperso para todo o territrio brasileiro. O caminho terico assumido estabelece ahiptese que essas formas religiosas foram construdas em atmosferas sociais, nas quaisa infra-estrutura do sistema econmico capitalista confrontada com osdesenvolvimentos culturais e a resistncia dos hbitos do sistema de crena. Aspesquisas histricas foram fixadas em um perodo que comea com a formao da casade culto mais antiga ainda em funcionamento, na dcada de 1840 na cidade de Salvador,na Bahia e termina no ano de 2007, com as entrevistas realizadas na cidade CampoGrande, em Mato Grosso do Sul.
Palavras-Chave: Histria do Brasil, Histria Cultural, Histria das Religies, Histria
dos povos afro-brasileiros, Candombls brasileiros, Cultura negrabrasileira.
ABSTRACT
The discussion proposed in this work considers the creation of the house of cult to theOrixs, inside of the Brazilian nag model and its historical transformations, along theprocess of dispersion for the whole Brazilian territory. The theoretical way took onestablishes the hypothesis that these religious forms were built in social atmospheres inwhich the infrastructure of the capitalist economical system is confronted with thecultural developments and the resistance of the habits of the system of belief. Thehistorical researches were set in a period that begins with the formation of the oldesthouse of cult on the nag model still in operation, at the decade of 1840 in the city ofSalvador, Bahia and ended in the year of 2007, with the interviews accomplished in thecity of Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Key-Words: Cultural History, History of the Religions, History of the Afro-Brazilianpeople, Brazilian Candombls, Brazilian Black Culture.
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AGRADECIMENTOS
A Jos e Urbana, pai e me extremosos que s viveram para a educao dos
filhos; na certeza de que acompanham e protegem, mesmo no estando mais perto.
A Gilberto, irmo e cuidadoso iniciador nos caminhos da vida; na certeza de
que a saudade e o afeto so recprocos.
A Gilda, irm, amiga e consultora jurdico-financeira; na quase certeza de que
aqui acalmo as suas ansiosas preocupaes com seu mais querido irmo.
A Gilka, irm, amiga e consultora exclusiva de pesquisas, vergonhosamente
usada e abusada como correspondente na busca europia das leituras necessrias; na
certeza de que seu imenso carinho se encontra aqui bem retratado.
A Iolanda e Luiz, irm e cunhado, pelo acompanhamento preocupado de
sempre; na certeza de que vo descansar junto comigo at, pelo menos, o prximo
projeto.
Ao filho e nora, Maurcio e Leila, pela paciente espera de visitas e ateno; na
certeza de que vamos recuperar o tempo que cedi ao trabalho.
A Gilda, filha dileta, pela parceria nas leituras das coisas encantadas, na certeza
de que os processos mgicos dessa incrvel cincia do homem so mais reais do que eles
prprios imaginam.
Ao restante dos familiares e amigos, graas a Deus, em grande nmero, pelaspreocupaes de todos; na certeza de que descansaremos pelo menos da pergunta fatal:
j terminou?
A Conceio, Iy Egbdo Il Ax Op Afonj e minha me criadeira, pelas
oraes e cuidados, na certeza de que Air, nosso pai, est nos olhando de perto, para
evitar perigos e propiciar sucessos. Sua bno Iy.
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IV
Ao Mrcio e Adriana, misto de socilogos marxistas, amigos, cuidadores
vigilantes de minha sade e incentivadores iniciais do curso na USP, pelo aconchego do
abrigo paulistano, a paciente escuta na discusso das idias, a fundamental ajuda na
reproduo da papelada em que o trabalho se tornou, alm da indispensvel fora da
amizade sempre carinhosa; na certeza de que os Orixs os protegero, mesmo que no
acreditem muito.
A famlia mtica, a comunidade religiosa, a fonte dos estudos escolhida
racionalmente at onde isto possa se exercer, acolhedora ao extremo da minha vontade
de participar, de comungar, pois que ela feita somente disso: comunho; na certeza de
que o trabalho suscitar a curiosidade dos mais jovens, levando-os a estudar o que
praticam.
Aos Profs. Drs. Csar Augusto Carneiro Benevides e Flvio de Campos, pelas
sugestes, incentivos e correes de rumo na banca de qualificao; na certeza de que
os Orixs retribuiro sua ajuda nesse esforo para torn-los mais conhecidos e
venerados.
Ao FUNDECT, Fundo de Cincias e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do
Sul, que proporcionou os recursos da Bolsa para a dedicao exclusiva ao trabalho, aqui
representado na pessoa do Prof. Dr. lvaro Banducci, a quem agradeo o incentivo
pessoal de sempre.
Especialmente, quero agradecer a Profa. Dra. Nanci Leonzo, orientadora e
amiga, pela coragem de assumir compromissos na minha particular luta contra os
preconceitos de todos os tipos, ultrapassando seus problemas pessoais de sade para
orientar este trabalho com consistncia e lucidez invejveis, corrigindo falhas e
sugerindo melhorias. A viagem histrica empreendida aqui foi bem mais profcua com
sua companhia e o produto tem muito a ver com a sua fora e determinao.
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V
DEDICATRIA
Teresinha,
pelos mesmos motivos
que nos mantm juntosnos ltimos 40 anos.
A Marcus Vincius,
que ainda no chegoumas amado com se houvera
e porque um filho me estende,mas um neto me eterniza.
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N D I C EINTRODUO ..................................................................................................1. A casa do pai ...................................................................................................2. Histria e Etnologia ........................................................................................3. Mito e Histria ................................................................................................3.1. O sbio e a luz ..........................................................................................
3.2. Histria religiosa ......................................................................................4. Universo de estudos .......................................................................................5. Invocao .......................................................................................................PRIMEIRA PARTE: A FAMLIA ....................................................................1. Seu Josias e o Rei de Ketu ...............................................................................2. A tradio oral familiar ..................................................................................3. Os candombls do Brasil .................................................................................
3.1. A unicidade improvvel ...........................................................................3.2. Os homens e o candombl .......................................................................
3.2.1. Joo, Jos e Ogun ...........................................................................3.2.2. O homem iyaw ..............................................................................
3.3. A poliginia e a matrifocalidade ...............................................................4. Templos e sacerdotes .......................................................................................5.Aj, Ori e os Orixs ..........................................................................................SEGUNDA PARTE: A COSMOGONIANAG ..............................................1.Tio Jos e o menino da estao ........................................................................2. As origens culturais das casas de cultoNag de Salvador ...........................3.Ketu ou Oy? A hegemonianag ..................................................................4. A cosmogonia do modelonag .......................................................................5. Alimentando Ori: o pertencimento................................................................
5.1. As preparaes .........................................................................................5.2. O ritual .....................................................................................................
6. Parentesco mtico .............................................................................................6.1. Organizao e classificao .....................................................................6.2. Termos de parentesco ..............................................................................6.3. Poder e relaes hierrquicas .................................................................6.4. RelaoIy-Om ......................................................................................
TERCEIRA PARTE: AS CASAS DE CULTO ................................................1. A cova de ouro .................................................................................................2.Il Omi Ax Ayr Intinle oIl de Iy Nas ..................................................
3.Il Omi Ax Iyamass o Terreiro do Gantois ............................................4.Il Ax Op Afonj de Salvador .....................................................................5.Il Ax Op Afonj do Rio de Janeiro ............................................................6.Il Alaketu Omiseun de Campo Grande ........................................................7.Il Oy Deyr de Campo Grande ...................................................................QUARTA PARTE: DISPERSO E TRANFORMAO ..............................1. Pai Alberto e o pombo de Ossain ...................................................................2. No mbito Social .............................................................................................3. Na Esfera do sagrado ......................................................................................4. O Caso de So Paulo .......................................................................................5. O Caso de Campo Grande ..............................................................................
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................
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1111141722242532353541
414347555763646980869699
101110110112114122125126134
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FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................Fontes orais ............................................................................................a) Eugnia Ana dos Santos ...................................................................b) Alberto Jos Lobo .............................................................................
c) Cantulina Garcia Pacheco ................................................................d) Luiz Antnio Assumpo .................................................................e) Maria Eunice Pereira ........................................................................Fontes bibliogrficas .............................................................................
ANEXOS ..............................................................................................................1. GLOSSRIO .......................................................................................2. ARQUIVO FOTOGRFICO .............................................................
216216216221
227232235238243244251
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NDICE DE LISTAS E QUADROS
Quadros Pg.Quadro genealgico das casas de culto nag 133Lista de cargos rituais (1936) 150
Lista inicial de Obs de Xang (1936) 152Lista atual de Obs de Xang 154
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IX
NDICE DE FOTOS
N. Foto Pg.1 Casaro Sede da Irmandade da Boa Morte Cachoeira - BA 2522 Irms da Boa Morte detalhe das insgnias Cachoeira BA 252
3 Casa de Air Salvador 2534 Rodolfo Bangbox 253
5 e 6 Dona Menininha do Gantois Terreiro do Gantois 2547 e 8 Terreiro do Gantois Salvador BA 254
9 Dona Carmem Iy do Gantois 2004 25510 Dona Erclia e a Gameleira Sagrada Terreiro do Gantois 25511 Entrada do Terreiro do Gantois 25512 Dona Keka e o corredor lateral Gantois 25513 Dona Eugnia Ana dos Santos Iy Aninha doIl Ax op Afonj 25614 Il Ax Op Afonj Salvador BA 256
15 Casa de Xang Il Ax Op Afonj 25716 Iy Senhora - Il Ax Op Afonj 25717 Grupo de fundadoras doIl Ax Op Afonj do Rio de Janeiro 25818 Pai Alberto e as folhas Alto da Boa Vista Rio de Janeiro 25919 Pai Alberto e o dia do nome de Nanassu Rio de Janeiro 259
20 e 21 Pai Alberto e afilhados 26022 Fio de contas de Pai Alberto 26123 Il Ax Op Afonj de Salvador o barraco antigo e o novo 261
24 e 25 Centenrio deIy Cantulina Salvador BA 26226 Il Alaketu Omiseun Salo de Festas Campo Grande - MS 263
27 e 28 Waldemiro Baiano e Pedro Japons Entrega deDek 263
29, 30,31 e 32
Luiz Antnio Assumpo doIl Alaketu Omiseun - Campo GrandeDa iniciao Obrigao de 21 anos
264
33, 34,35, 36 e
37
Maria Eunice Pereira Iy Nice doIl Ax Oy DeyrCampo GrandeDa Iniciao ao Terreiro em Campo Grande-MS
265
38 e 39 Luiz Antnio Assumpo e a obrigao de 7 anos do primeiro Ogunda casa uma obrigao de vida Campo Grande-MS
266
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EPGRAFE
Na histria, vi a histria: nada mais.(Michelet)
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INTRODUO
1 A casa do pai
Na casa de meu pai era sempre festa. Apesar das pessoas afirmarem ir l por
obrigao, era sempre festa. Havia muita msica, dana e, sempre, muita fartura de
comida. amos todos na noite anterior para podermos prepar-las desde cedo. O que
nunca havia era bebida alcolica. Meu pai no gostava nem mesmo de garrafa em cima
da mesa, da a tradio de se beber somente o suco feito em casa que, s vezes, era
fermentado. Mas nunca havia bebida alcolica, exceto s escondidas e para alguns
poucos moradores fixos j conhecidos.
Em cada festa, comemorvamos a existncia de um dos moradores da casa,
pois havia muitos moradores agregados e meu pai fazia questo que a existncia deles
fosse comemorada com grandes demonstraes de alegria, no s pelos aparentados do
morador, mas principalmente pelos aparentados do dono da casa. A retribuio para
com esta gentileza se dava quando das comemoraes pela existncia de meu pai. Era
sempre um festo cujas lembranas s eram apagadas pelo prximo.
Nas noites que antecediam s festas, havia muito trabalho para todos,
principalmente nas cozinhas. Ns tnhamos duas e, por vezes, parecia no ser o
suficiente. Espervamos sempre centenas de convidados ilustres e fartura era a marca
registrada pela nossa herana cultural. Da a trabalheira que tnhamos durante a noite e
que se estendia por todo o dia da festa.
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Mas, nessas noites, havia tambm muita, mas muita conversa mesmo. Quando
l chegavam, as pessoas pareciam no se ver h anos. Agiam como se em sua maioria
no fossem parentes prximos e, muitas vezes, moradores dos mesmos bairros e at das
mesmas casas.
Era como se houvesse a necessidade geral de confirmar os assuntos j sabidos.
As conversas eram interminveis e sempre em voz alta. Parecia ser falta de educao
manter uma conversao reservada com algum. Todos queriam exercer o direito de
saber da vida alheia, da vida dos parentes e, atravs de opinies e discusses acaloradas,
ensinar ou aprender um modo de proceder considerado correto por toda a famlia. Como
se eles prprios, no precisassem de corretivo. Eram comentrios tpicos do roto falando
do esfarrapado.
Mas, no fundo, todos se gostavam. E esse gostar mostrava toda a sua fora
sempre que algum de fora da comunidade demonstrasse pouco respeito ao falar de
algum dos parentes. Era um mundo vir abaixo, um acesso coletivo de raivas para com o
estranho e demonstraes, quase sempre descabidas em tamanho, de afeto pelo ofendido
ou comentado.
Aproveitava-se ento para iniciar falando mal do ofensor, continuando por
relacionar todos os defeitos, seus e de sua famlia, e terminando por condenar a falta de
educao e de tradio que toda a comunidade a que o infeliz pertencia demonstrava,
por ter gerado um filho to descarado e caluniador. Era uma verdadeira catarse. Um
lavar de almas necessrio e aliviador.
Mas esse aspecto catrtico no tomava conta de todas as conversas. At mesmo
porque no haveria ofensores em nmero tal que pudessem manter ocupadas aquela
enorme quantidade de lnguas afiadas que atravessavam acordadas aqueles longos
encontros noturnos.
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Era ento que, para atender enorme necessidade de manter as conversas,
surgiam as histrias da famlia. Estas podiam ser pequenos pedaos da longa tradio da
casa e das personalidades das pessoas que a formaram, muitas vezes enfatizadas no
aspecto que o narrador escolhesse; podiam conter explicaes para determinado hbito
ou proibio nos costumes familiares ou, o que era mais freqente, podiam referir-se a
personagens mais ou menos lendrios das comunidades.
Mas sempre eram pequenas obras de arte, de enredo complexo e emaranhado,
com que os mais velhos divertiam e ensinavam aos mais jovens.
Como nos outros tipos de conversa, esses eram momentos em que a maioria
tambm opinava, fosse para introduzir um fato ou uma lembrana que corroborasse
algum aspecto, fosse para retificar alguma parte que lhe parecesse mal contada ou ainda,
principalmente, para dar a sua opinio a respeito da conduta de um ou outro
personagem. Assim, desde que no se ofendesse a ningum, principalmente aos mais
velhos, as opinies eram livres e cada um podia dar o seu pitaco, que era, se aceito
fosse, incorporado histria dali para diante.
Era assim que se construa a histria da famlia, de uma forma no registrada
no papel. No tnhamos historiadores letrados. Descendamos de uma cultura sem
escrita e, pelo menos durante esses nossos breves encontros, prescindamos das letras.
Nas culturas grafas, como a nossa se transformava naqueles momentos, o passado
sempre avivado pelas participaes interpretativas que ocorrem a cada vez que
relatado e os vrios aspectos de um acontecimento so sempre discutidos e dinamizados
pelas condies do presente.
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Esse aspecto de histria viva, que exige a interferncia dos ouvintes, sem os
quais no h histria, quase perdido quando passado para o papel. A participao na
narrao oral coloca uma diferena fundamental entre uma cultura que escreve a sua
histria e uma outra que a conta renovada a cada gerao.
Alm das conversaes de fundo didtico, que envolviam propriamente a
histria da famlia e nas quais todos se obrigavam estar presentes, havia na casa de meu
pai conversas s quais os mais jovens e os visitantes de fora da famlia no tinham
acesso.
Eram as histrias sobre os segredos fundamentais da famlia, que mantinham a
sensao geral de se pertencer a um grupamento antigo e cheio de mistrios a serem
aprendidos. Esta sensao ajudava a gerar a uma inabalvel vontade de permanecer
juntos. Afinal, no faz-lo era perder a oportunidade de aprender com os fatos que
diziam respeito s origens familiares, aos seus costumes e, por conseguinte, a cada um
de ns.
Como a transmisso de segredos era sempre feita de forma oral, entre uma
gerao e outra, respeitando-se a antiguidade e o mrito adquirido por cada um dos
receptores, restava aos mais novos pacincia para acumular, por seu comportamento
social considerado correto, a credibilidade necessria para participar daquelas
conversas, pois, como se dizia: tudo tinha seu tempo.
Enfim, desse modo era a casa de meu pai e desse jeito eram as histrias que
nos contavam os mais velhos. Resta o desafio e a obrigao de pass-las frente,
procurando manter os mesmos critrios de distribuio da sabedoria que as permeia.
Pena que no se possa ouvir a participao necessria e enriquecedora de cada leitor.
Mas estou certo de que ela acontecer.
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2 Histria e Etnologia
A forma oral de registro da memria coletiva possui a particularidade de
desenvolver, no interior das culturas que a praticam, um senso crtico a respeito de tudo
e de todos, que nem sempre facilmente desenvolvido somente pela leitura dos livros.
O hbito de requerer maiores esclarecimentos ao narrador e propor novas interpretaes
das facetas escondidas no fato original tende a conduzir o ouvinte crtica imediata.
Assim se contri a histria das casas aqui pesquisadas. uma histria que no
automatiza, no soluciona, antes cria problemas tal como proposta por Febvre1 que
admite solues diversas, que no prescinde da participao do presente, que torna a
todos construtores de um sempre renovado modo consensual. um aspecto vital da
maneira de registrar histria, principal legado das culturas trazidas nos pores dos
tumbeiros e, demonstrativo, tal como nos informa Ki-Zerbo, de que para ns.
A escrita decanta, disseca, esquematiza e petrifica: a letra mata. A tradio(oral) reveste de carne e de cores, irriga de sangue o esqueleto do passado. Apresentasob as trs dimenses aquilo que muito freqentemente esmagado sob a superfciebidimensional de uma folha de papel.2
So propostas, desse modo, as mesmas concluses de Certeau a respeito dos
inevitveis caminhos de construo social da escrita histrica.
1
Febvre, L. Combates pela Histria. 2 ed., Lisboa : Editorial Presena, 1985, p. 49.2 Ki-Zerbo, J. Introduo Geral, In. Histria Geral da frica, So Paulo : Editora tica/UNESCO, 1982,Vol. I (Metodologia e Pr-Histria da frica), pp. 27-28.
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De fato, a escrita da histria ou historiadora permanece controlada pelasprticas das quais resulta; bem mais do que isso, ela prpria uma prtica social queconfere ao leitor um lugar bem determinado, redistribuindo o espao das refernciassimblicas e impondo, assim, uma lio; ela didtica e magisterial. Mas ao mesmotempo funciona como imagem invertida; d lugar falta e a esconde; cria estes relatos
do passado que so o equivalente dos cemitrios nas cidades; exorciza e reconheceuma presena da morte no meio dos vivos. 3
A escrita histrica prope hipteses que no do margem a dvidas.
Aprisionando o passado ao texto, ela honra e elimina, tornando-se, nesse sentido, um
tmulo. 4
A necessria anlise da ideologia dos discursos , tambm na histria oral, uma
ferramenta indispensvel, possuindo ento uma necessidade mais evidente. O relato oral
traz sempre baila a discusso da interferncia do narrador ou sua posio como
testemunha ocular dos fatos ou, ainda sua proximidade aos testemunhos originalmente
relatados. 5
A construo do discurso acaba por ser, como no caso das histrias
pesquisadas aqui, sempre revista. O hbito de participar dessa forma de construo da
histria, com uma opinio gerada somente pelo seu sentimento a respeito daquilo que
ouve, leva ao desenvolvimento individual da socializao.
3 Certeau, M. A Escrita da Histria, 2 ed., Rio de Janeiro : Forense Universitria, 2006, p. 95.4
Certeau, M. Op. cit., p. 108.5 Vansina, J. A tradio oral e sua metodologia, In. Histria geral da frica, So Paulo : tica/Unesco,1982, p 159.
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Nas culturas que produzem a histria escrita, muitas vezes, esta se apresenta
esttica e nada parece poder modific-la. O uso da letra determinou, desde sempre, uma
separao entre os que podem e os que no podem compreend-la; uma classificao
que organiza hierarquicamente a sociedade. O entendimento das narrativas histricas
pelas geraes futuras fica deste modo restrito quele descrito pela primeira vez, com
todos os perigos de interpretao semntica equivocada e exilando a manifestao
grafa. 6
Embora possam existir os mais diversos aspectos contidos no fato, o leitor
especula solitariamente sobre as vrias facetas descritas. Diferentemente, quem ouve
uma narrao pode sempre aclarar com o autor da narrativa os aspectos mais
importantes, dirimir as dvidas interpretativas remanescentes e construir assim uma
nova e prpria verso.
O estudo histrico das famlias e das estruturas de parentesco modifica
aspectos importantes do trabalho historiogrfico e induz ao dilogo mais profcuo entre
historiadores, socilogos e etnlogos. 7
A etnologia leva tambm o historiador a dar relevo a determinadasestruturas sociais mais ou menos obliteradas nas sociedades histricas e a complicara sua viso da dinmica social, da luta de classes. (...) O estudo, no j apenas
jurdico, mas etnolgico da linhagem e da comunidade da famlia ampla e da famliaestrita, deve renovar as bases dos estudos comparativos entre ontem e hoje, entre a
Europa e os demais continentes, por exemplo em matria de sociedade feudal.
8
A histria etnolgica ou etnologia histrica parece ser o caminho mais
adequado para os estudos propostos aqui. Para tanto, necessrio considerar, entre as
recomendaes metodolgicas assumidas, os cuidados de Le-Goff.
6
Certeau, M. Op. cit., p. 213.7 Burke, P., Histria e teoria social, So Paulo : Editora Unesp, 2002, p. 79.8 Le-Goff, J., Para um novo conceito de Idade Mdia, Lisboa : Editorial Estampa, 1980, p. 317.
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Enfim, problema imenso, historiadores e socilogos deveriam encontrar-separa estudar o fenmeno da tradio, fundamental para uns e para outros. (...) Noinsistirei no fato de a viso etnolgica propor ao historiador uma nova documentao,diferente daquela a que est habituado. O etnlogo no despreza o documento escrito,
pelo contrrio. Mas ele o encontra to raras vezes, que seus mtodos so feitos de
modo a poder passar sem ele.9
A observao feita pelo participante desde dentro do processo e colocada em
relevo j na etnografia de Malinowski e no presente caso, feita por um observador
envolvido em atividades nos candombls brasileiros desde os idos de 1970 pode, e
deve ser influenciada por sentimentos pessoais, pois que, no dizer de Coelho:
A atitude objetivista, no seu af de tudo explicar segundo princpios gerais,passa muitas vezes ao lado dos aspectos originais de uma cultura, que constituem oprincipal interesse de nosso estudo. A insistncia no ater-se ao objetivo pode condenaro observador a permanecer na exterioridade. 10
A busca pelo equilbrio da iseno cientfica tende a afastar o pesquisador de
sensaes e percepes fundamentais quando se investigam as trocas simblicas. E de
Bordieu a melhor observao.
O sonho positivista de uma perfeita inocncia epistemolgica oculta naverdade que a diferena no entre a cincia que realiza uma construo e aquela queno o faz, mas entre aquela que o faz sem saber e aquela que, sabendo, se esfora paraconhecer e dominar o mais completamente possvel seus atos, inevitveis, deconstruo e os efeitos que eles produzem tambm inevitavelmente.11
9 Le-Goff, J., Op. cit. p. 321.10
Coelho, R., Prefcio, In. Coelho, R. (org.) Oloorisa Escritos sobre a Religio dos Orixs, So Paulo :Ed. gora, 1981, p. VIII.11 Bourdieu, P. et alli, A Misria do Mundo, 5 ed. Petrpolis : Vozes, 2003, pp. 694-695.
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Os produtos construdos pelas geraes so ento, se for mantido o esforo
recomendado para controlar os efeitos inevitveis, sempre resultado acumulado dos
vrios entendimentos sobre a histria e, parece ser apropriada a citao de uma mxima
africana que se pode aplicar universalmente aos trabalhos cientficos: H muitas
verdades, esta a minha, tal como a entendi de meus ancestrais. 12
A tradio oral o celeiro principal das criaes culturais de povos grafos; o
contedo construdo por uma continuidade bem definida, com uma existncia vitalizada
por normas e valores de um grupamento familiar, tnico, profissional, etc. 13
A histria oral preservada pelos antigos e passada aos mais jovens, que a
reinterpretam segundo seu entendimento. A teia cultural tecida a cada gerao e, como
coloca Ki-Zerbo.
Certamente, a tradio pica em particular uma recriao paramtica dopassado. Uma espcie de psicodrama que revela comunidade suas razes e o corpo devalores que sustenta sua personalidade: um vitico encantado para singrar o rio dotempo em direo ao reino dos ancestrais. 14
Ela opera na separao entre a interpretao dos smbolos estticos da escrita e
as demais formas de narrao mais dinmicas, tal como comentada por Hampat B, um
outro importante estudioso africano. Nessas diversas as formas, o saber reside
escondido.
12 Introduo utilizada pelosDomas (responsveis pela memria coletiva) dos bambaras (etnia da Costado Marfim) ao iniciar o canto de uma epopia, Cf. Hampat B, A. A Tradio Viva, Histria Geral dafrica, Vol. I (Metodologia e Pr-Histria da frica), So Paulo : Editora tica, 1982, pp. 192-193.Encontra-se a mesma assertiva como concluso de um Itan If (histria sagrada do Orculo de If)recolhida na tradio oral do Il Ax Op Afonj de Coelho da Rocha, no Rio de Janeiro. Note-se que onarrador africano tem sempre a preocupao de informar ao seu pblico a respeito da influncia do seuentendimento pessoal acerca dos fatos. Os relatos histricos desses africanos e afrodescendentes tm emconta a fundamental participao dos sentimentos dos ouvintes, possibilitando a recriao necessria preservao da histria oral.13
Kazadi. W. M. O Contato Musical Transatlntico: Contribuio Bantu na Msica Popular Brasileira,Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, (1) janeiro 1978, p. 100.14 Ki-Zerrbo, Joseph, Op. cit. pp. 27-28.
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A escrita uma coisa e o saber, outra. A escrita a fotografia do saber, masno o saber em si. O saber uma luz existente no homem. A herana de tudo aquilo quenossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nostransmitiram, assim como o baob j existe em potencial em sua semente. 15
nesse sentido que so registradas aqui as narrativas histricas que dizem
respeito criao de um tipo de candombl, dentre os muitos que existem no Brasil, tal
como relatadas por informantes da tradio oral de casas de culto de uma mesma
linhagem, que se convencionou chamar, no Brasil,Nao Nag ou Ketu.
15 Ensinamentos de Tierno Bokar Salif, Grande Mestre da Ordem Muulmana de Bandiagra, no Mali. Cf.Hampat B, A., Op. cit., p. 181.
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3 Mito e Histria
3.1 O sbio e a luz
Era uma vez um sbio sentado sozinho ao p de uma fogueira!
Ele pensava na vida e, como sempre, sua imaginao o foi levando para os
caminhos da explicao das coisas. Olhando bem para o fundo da labareda que
bruxuleava, seu pensamento comeou a se integrar em uma histria perdida no tempo
em que este no governava o universo e as pessoas eram mais livres para contar suas
aventuras.
Existia uma cidade onde o rei era to poderoso e iluminado que se acreditava
que seu brilho nunca fosse se apagar. As cidades vizinhas prestavam-lhe homenagens e
pagavam-lhe tributos. O seu povo era laborioso e mantinha a fama de ser orgulhoso e,
at mesmo, arrogante.
O poderoso rei, como convinha a um comandante indicado pelas divindades,
no podia fazer contato direto com a populao e todo aquele que olhasse diretamente
para a sua figura, era capaz de sofrer graves castigos. Dessa forma, o rei se habituara ao
isolamento que o cargo lhe impunha e tornou-se uma pessoa altiva e quase inalcanvel.
Pelo menos era o que pensavam seus ministros e cortesos.
Na verdade mesmo, ele saa toda noite disfarado de servial do palcio e ia se
sentar ao p do fogo, como fazia a maioria da populao. Para no correr o menor risco
de ser reconhecido, usava o seu poder misterioso de filho do fogo. Entrava na fogueira,
todo vestido de vermelho como brasa ardente, a que chamavam Xang e dela saa do
outro lado, transformado na figura de um lindo jovem todo vestido de branco, que
recebia o nome deAir. O ser da luz!
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Sua transformao nunca fora notada por ningum. Nas noites das escapadas,
ele sempre acabava por se envolver em alguma aventura a que seu esprito irrequieto o
levava. preciso confessar que muitas delas tinham a ver com as mais belas mulheres,
mesmo que fossem esposas dos outros homens. Air era um jovem belssimo, hbil
contador de histrias e as mulheres sempre o procuravam. Ele, fogo que era, nunca se
recusava.
Em uma dessas noites em que se encontrava livre dos deveres do cargo, Air
cavalgou ao encontro de uma bela mulher, nas fronteiras do reino e passou com ela uma
noite de longos afagos e demoradas juras at que o albor surgiu. Dai, para que no a
consumisse com a brasa ardente de seu corpo, que j comeava a aparecer, Xang se
cobriu com um manto vermelho igual ao que era usado pelos seus guerreiros e encetou
o caminho de volta para o palcio.
Pelo caminho, o poderoso e arrogante rei encontrou um velho roto e
alquebrado puxando pela mo as rdeas de um lindssimo cavalo branco. Era algo
inusitado e o rei, j de volta aos deveres do cargo, mandou que investigassem quem era
o velho e de quem era aquele cavalo que parecia carssimo. Deixou ordens para que, se
o incidente fosse o que estava parecendo ser: um caso de roubo, o velho deveria ser
encarcerado e deixado sem comer, at que confessasse a quem pertencia o cavalo.
Alguns meses depois, o povo comeou a se dar conta de que j deveria ter
chovido e, do jeito que as coisas estavam caminhando, haveria seca naquele ano, com a
provvel falta na colheita e a fome se avizinhando. O rei e seus ministros comearam a
procurar os motivos da inclemncia do clima. O Arab consultou If e foi informado
que havia sido cometida uma enorme injustia no reino. Que haviam prendido algum
sem culpa e, por isto, o tempo estava to seco. Que mandassem procurar nas prises do
reino a causa do infortnio.
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Dessa forma, rapidamente descobriu-se que o velho encarcerado pelo roubo do
cavalo era mesmo o que havia dito ser: Oxal, um venerado ancio, considerado por
todos como pai, e rei da cidade vizinha de Elejib, que resolvera vir visitar o reino de
Xang e fora preso como ladro.
Quando foi informado da histria, o rei imediatamente se lembrou do velho do
cavalo branco e se prostrou ao cho com o peso do seu erro. Ele havia cometido uma
desastrosa injustia. Pior do que isso, ele no poderia corrigir o que fizera sem expor
vergonha tudo o que representava seu cargo. Desse modo, ele se transformou mais uma
vez em Air, todo vestido de branco, e disfarando com a modstia do jovem a
imponncia de sua posio, foi at a priso onde estava o velho que todos consideravam
o mensageiro da paz e o trouxe carregado s costas at o palcio. L ele se submeteu,
juntamente com seu povo, aos castigos e expiaes que o seu ato impusera.
O sbio, depois de entender as vrias coloraes das chamas que observou por
tantas horas, encostou sua cabea e adormeceu. Pela manha, olhando para as cinzas que
haviam sido vermelhas brasas ardentes e chamas branco-azuladas, entendeu o que elas
significavam. Pegando uma de suas cabaas, ele as recolheu com cuidado e guardou-as
para ensinar a seus discpulos que a nica constncia na vida a mudana.
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3.2 Histria religiosa
Esta histria recontada, anualmente sob a forma de dramatizao, nas
festividades a que chamam, no Brasil, de Fogueira de Air e guas de Oxal. Suas
repeties, entre os nags brasileiros, tm adquirido conotaes de ciclo de
transformao e recomeo, atravs de cerimnias de expiao e limpeza, fixando a data
da renovao das esperanas. Mas o mito marca, sobretudo, a importncia do
aprendizado, contido nas cinzas da fogueira recolhidas pelo sbio, da transformao das
diversas energias naturais.
Dessa forma, quase sensorial, que os yorubs e seus descendentes brasileiros
compreenderam o poder das suas prprias transformaes culturais e psicolgicas e os
limites entre orgulho e arrogncia; entenderam e fixaram os deveres dos mais jovens
para com a senioridade; perceberam na humildade a poderosa forma de demonstrao
de fora de propsitos, alm de muitos outros aspectos que se desprendem da anlise do
mito. Sobretudo, nunca mais formaram dvidas a respeito de que a transformao
cultural to simples quanto pular a fogueira.
A histria fundamental para a transmisso dos ensinamentos demais
disciplinas. Atravs dela que podemos entender como as coisas aconteceram e,
provavelmente, tornaro a acontecer, inclusive, aquelas que nos parecem misteriosas ou
mitolgicas. Nos ltimos anos, o mito tem recuperado a sua posio de registro do fazer
contnuo da histria de povos que optaram ou, por vezes, s possuem esta forma de
comunicar s geraes os comportamentos sociais que delas so esperados.
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Os modelos de crena e comportamento que emergem dos relatos aqui
registrados tm sua base em categorias mticas principalmente de relao de
parentesco delineadas na recriao cultural da religiosidade de um grupamento social
especfico da sociedade brasileira e, por esta razo, no pode ser desta desvinculado.
A histria das culturas religiosas escrita, muitas vezes, com critrios que no
permitem que a narrativa se desvincule do seu crculo fechado, evitando o
relacionamento dos fenmenos sociais dessa categoria com outros que no lhes so
vinculados. 16 Desse modo, aqui vo no s o que informam os mitos e as tradies
culturais das casas pesquisadas, mas o resultado da escavao dos stios sociais do
entorno, procurando seguir o j recomendado por Levi-Strauss.
No ando longe de pensar que nas nossas sociedades, a Histria substitui aMitologia e desempenha a mesma funo, j que para as sociedades sem escrita e semarquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com alto grau de certeza a certezacompleta obviamente impossvel que o futuro permanea fiel ao presente e ao
passado. (...) Portanto, a minha impresso que, estudando cuidadosamente estaHistria, no sentido geral da palavra, que os autores ndios contemporneos nostentam dar de seu passado, no a considerando como um relato fantstico, mas antesinvestigando com bastante cuidado, com a ajuda de uma arqueologia de salvamento escavando os stios referidos nas histrias e tentando, na medida do possvel,estabelecer correspondncias entre diferentes relatos, verificando o que corresponde eo que no corresponde, talvez possamos no fim deste processo chegar a uma melhorcompreenso do que na realidade a cincia histrica. 17
16 Lanternari, V., As Religies dos Oprimidos : So Paulo, Editora Perspectiva, 1974.17 Levi-Strauss, C. Mito e Significado : Lisboa, Edies 70, 1982, p. 63.
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Embora Eliade parea entender as sociedades de uma forma hierarquicamente
organizada entre aquelas que foram importantes na histria e as que no o foram 18
com a qual difcil concordar, a sua definio de mito, considerada por ele prprio
como a mais ampla, a que parece mais se coadunar com o que interpretado aqui,
quando se considera que o mito a narrativa de uma criao, relatando como essas
casas de culto nag comearam a ser. O mito aqui o que fala apenas do que realmente
ocorreu, do que se manifestou plenamente. 19
Deve-se considerar, ainda, que a mitologia nag brasileira repositrio de
informaes histricas de um amlgama cultural. Ela representa, para alm da
influncia das culturas africanas na sociedade que foi recriada, tambm a reciprocidade
da influncia das culturas europia e indgena sobre aquela e, sobretudo, da intricada
teia de arranjos construda entre todas. Nesse sentido, com os mitos como pano de
fundo, devem ser entendidos os conceitos cosmognicos e histricos desenvolvidos no
interior da sociedade brasileira.
18 Eliade, M.. Mito e Realidade : So Paulo, Editora Perspectiva, 2004, p. 10.19 Eliade, Op. cit., p. 11.
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4 Universo de estudos
O trabalho apresentado volta-se para o estudo da criao histrica e disperso
espacial de casas de culto do chamado candombl nag, nas cidades de Salvador, Rio de
Janeiro, So Paulo e Campo Grande no Estado de Mato Grosso do Sul, abrangendo um
perodo que se inicia com a fundao doIl Iy Omi Ax Air Intile, a Casa de Air ou
o Il de Iy Nas, 20 por volta da dcada de 1840 e se estende at 2007, com o
encerramento da casaIl Alaketu Omiseun.
Entre as principais casas pesquisadas, encontram-se:
o A Casa de Air, o Il Iy Omi Ax Aira Intile, denominado tambm de IlIy Nas Ok ou Il Iy Nas Oy Akal Magbo Olodumre, mais conhecida como
Casa Branca do Engenho Velho erigida em bairro homnimo da cidade de Salvador
cuja tradio oral aponta como a primeira casa de culto da linhagem nag ou, pelo
menos, a mais antiga ainda em funcionamento. Foi fundada, em meados da dcada de
1840, por um grupo de mulheres ex-escravas yorubs e agregadas de outras etnias
capitaneadas porIy Nas. A histria da casa ainda aponta para a presena de Rodolfo
Martins de Andrade, um africano chamado Bangbox.
As pesquisas efetuadas levaram constatao de queIy Nas 21 era o ttulo da
zeladora responsvel pelos cultos a Xang ancestral mtico e o principal heri
evemerizado da etnia dos oys, na atual Nigria. O cargo era privilgio dos oys e
atribudo pelo seu governante, o Alaafin (Dono do Palcio) da cidade de Oy, antiga
capital poltico-militar do imprio. Entre as honras originais dos ocupantes do cargo
estava a de serem enterrados com o seuAlaafin ouAafin.
20
A chamada aqui Casa de Air (Il de Ayr Intinle) mais conhecida por Casa Branca do EngenhoVelho.21 Abraham R. C., Dictionary of Modern Yoruba : 2a ed., Hodder and Stoughton, Londres, 1962, p. 20.
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O Il Iy Omi Ax Iyamass casa conhecida como o terreiro do Gantois,topnimo do local onde se instalou na cidade de Salvador, no final do sculo XIX,
fundada por Maria Jlia da Conceio Nazar uma dissidente na luta pela sucesso da
chefia no Il Iy Nas. A comandante mais conhecida do terreiro do Gantois foi, sem
dvida, Me Menininha (Escolstica Maria de Nazar), sobrinha da fundadora e
ocupante do cargo por mais de seis dcadas do sculo XX.
O Il Ax Op Afonj, casa fundada no ano de 1910 por Eugnia Ana dosSantos,Iy Aninha, tambm uma dissidente em uma sucesso posterior noIl Iy Nas.
A tradio oral da casa atribui importncia ao auxlio de Joaquim Vieira da Silva, um
africano oriundo de Recife, irmo de santo de Iy Aninha e av de uma das principais
informantes das pesquisas, Iy Cantulina.IyAninha era descendente de escravos da
nao Gurunsi (ou Grunsi), chamados entre os antigos baianos de nao dos galinhas,
pelo modo como danavam seus deuses.
O Il Ax Op Afonj de Coelho da Rocha, na Baixada Fluminense do
Estado do Rio de Janeiro, plantada 22em meados da dcada de 1930, pela mesma
fundadora da casa homnima de Salvador.
Em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, as informaes sobre a criaoda casa de culto Il Ax Alaketu Omiseum, ligada por uma intricada rede de parentesco
s casas originais da linhagem estudada, foram recolhidas pela observao pessoal do
autor ocorrida desde a fundao da casa no ano 2000 e por entrevistas com o
fundador da mesma, Luiz Antnio Assumpo.
22
Em lugar de fundada. costume usar-se o verbo plantar para as diversas cerimnias que sacralizam umlocal para uso do culto. O costume nos remete ao fato de que so enterrados (plantados) no terreno a sersacralizado os diversos ingredientes que o purificam e o transformam em local apto s cerimnias.
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Foi pesquisada ainda, em entrevistas mais recentes 2007 e 2008 atradio oral de uma das mais antigas casas da Nao Ketu em Campo Grande-MS, a
Casa de Cultura Afrobrasileira Santa Brbara, oIl Ax Oy Deir, fundada no incio da
dcada de 1980, por sua atual comandante, a Sra. Maria Eunice Pereira, Iy Nice,
oriunda do interior de So Paulo e filha espiritual de D. Menininha do Gantois, desde
1976.
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5 Fontes informantes
Muitas das informaes transcritas aqui, apesar de serem fiis ao esprito das
conversas, tm a forma daquilo que realmente so: lembranas saudosas. Informantes,
treinadores, criadores, professores, ancestrais modeladores de viso cosmognica,
irmos mais velhos, amigos, pais e mes, tudo isto foram os contadores das histrias em
que se apiam as idias desse trabalho de reflexo sobre os caminhos que tomaram os
candombls da linhagem nag no Brasil.
Participantes de processos de iniciao no Il Ax Op Afonj do Rio de
Janeiro e de muitos outros terreiros nags, algumas dessas pessoas no s confiaram a
muitos sua sabedoria ritual ancestral, mas forneceram toda uma nova viso de vida e de
compreenso da humanidade. Forraram noites em esteiras com as palavras de sabedoria,
pacincia e afeto que transformaram seus iniciados em pessoas melhores, para serem
indivduos membros de suas sociedades, irmos de suas comunidades e aptos a
comungar na raa humana.
S utilizaram uma forma de cobrar de todos por aquele tanto com que
influram nas construes individuais: a forma usada na cultura que passaram, onde o
fundamental a transmisso. No se pode deixar de contar a todos o que se passou, no
se pode deixar de ensinar como foi ensinado e no se pode, sobretudo, paralisar o
processo. Pois que a importncia de tudo isto est na viagem, no na chegada. O
movimento para a produo maior do que o produto. A histria da humanidade se faz
pelo movimento e no pelo que resulta. A movimentao do ax isto!
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As pesquisas ocorreram durante os ltimos trinta anos, durante os quais o autor
foi um observador privilegiado dos costumes e das modificaes verificadas. O autor
ligado a uma das principais casas de culto aos Orixs da linhagem nag o Il Ax Op
Afonj de Coelho da Rocha, no Rio de Janeiro que se instituiu na terceira dcada do
sculo XX, da qual se tornou membro em 1975, foi iniciado ritualmente por uma das
principais informantes do trabalho Iy Cantulina Garcia Pacheco e, sobretudo,
recolheu os relatos sobre os quais reflete aqui.
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6 Invocao
Conforme uma tradio das epopias africanas, contadas por Domas, Griots,
Babalaws eBokons foram indicados aqui os nomes de cada um dos contadores dessa
histria. Os Domas so sacerdotes iniciadores da juventude, na histria do povo
bambara, no Mali, frica Ocidental. Os Griots so menestris cantadores das epopias
que compem a histria no escrita dos principais povos que constituem o atual Senegal.
Os Babalawos so os sacerdotes do Orculo de If, conhecidos em muitas etnias,
principalmente entre os yorubs da Nigria e os povos negros na dispora. Os Bokonos
so sacerdotes dos orculos ligados aos Voduns da nao jeje, no antigo reino do Daom.
necessrio, para manter a tradio desses historiadores africanos, registrar
aqui uma invocao.
Oh, Almas de meus mestres!Oh, Almas dos velhos ancestrais!Oh! Almas dos primeiros iniciadores!
Acercai-vos e escutai-me!Em concordncia com vossas palavrasVou contar aos meus ouvintesComo as coisas aconteceram,
Desde vs, no passado, at ns, no presente,Para que as palavras sejam guardadasE fielmente transmitidas
Aos homens de amanhQue sero nossos filhos
E os filhos de nossos filhos.Segurai firme, ancestrais, as rdeas de minha lngua!Guiai o brotar de minhas palavras,
A fim de que possam ser verdadeiras. 23
23Cf. uma invocao da tradio oral do Il Ax Op Afonj do Rio de Janeiro, estas so as palavras que
podem antecipar pedidos feitos quando da entrega de oferendas ou quando do ritual deIjub (saudar) osancestrais e Cf. Hampat B, A, Op. cit., pp. 192-193, para quem uma verso mais elaborada destaspalavras era repetida por Danfo Sine, o grande Doma bambara, antes de iniciar uma histria ou lio.
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Assim , eu, Gonalo, Om Air, chamado Falatumbi, com o cargo de Itateji
nIl Omulu, do egb de Xang dos oys do Il Ax Op Afonj do Rio de Janeiro,
invoco e sado os ancestrais e peo-lhes proteo para contar o que aprendi de minhas
testemunhas, tal como elas aprenderam das suas.
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PRIMEIRA PARTE
A FAMLIA
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1. Seu Josias e o Rei de Ketu
Seu Josias foi apontado para o cargo de Og quando tinha seus 12 para 13
anos, ainda antes da II Guerra Mundial. Menino irrequieto e que vivia sempre
arranjando confuso por seus modos estabanados, ele lembrava que primeira vez que
colocou calas compridas foi no dia de sua confirmao, uma cerimnia simples que
teve lugar uns dois anos depois de ser levantado, l na Salvador dos anos 1940.
Seu Josias foi confirmado para ser Ogde Yemanj, uma ancestral ligada s
nossas lendas familiares sobre um rio africano e que, no Brasil, transformou-se em
Orix dos mares e uma espcie de me de todos. Mas a maior ligao dele foi mesmo
com Oxssi, o Orix da caa, para o qual sua esposa, D. Joana, fora iniciada ao
completar 12 anos. Ele no lembra bem desde quando conheceu D. Joana, mas, segundo
o que ele dizia meio jocoso, Parece que ela sempre existiu. No lembro de um dia da
vida que no tenha visto, falado ou namorado com Joana.
Apesar do carinho das palavras, o amor entre eles sempre foi muito tumultuado
por dois grandes problemas: as aventuras romnticas extraconjugais de Seu Josias e o
forte cimes de D. Joana. Ele foi conhecido sempre como um homem sedutor e
mulherengo e as brigas de cimes de D. Joana ficaram famosas na comunidade. Eram
verdadeiros vendavais. Muitas vezes, Seu Josias teve que recorrer a parentes e amigos
para se abrigar at que a tempestade amainasse. Mesmo assim, os dois andaram juntos
nas idas e vindas das festas e dos candombls, desde a infncia at a separao
definitiva, causada pela morte de Dona Joana, j nos fins de 1990.
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Quando muito jovens, logo depois de D. Joana ter sido iniciada, eles dois
voltavam de um candombl, j pelo amanhecer de um belo dia de vero. Moravam
vizinhos e seus pais, envolvidos com os afazeres de encerramento do culto e da festa,
haviam mandado que voltassem para casa pela estradinha que beirava o rio, no sem
antes recomendar os cuidados de sempre, o que naquela poca se limitava a no falar
com estranhos e a tomar cuidado com o rio que teriam que margear.
E vinham, como sempre, alegres e brincando um com o outro. Ele, ora
saltitando em volta da amiga, ora pegando pequenas pedras que atirava ao rio que
passava embaixo da ribanceira que margeava a estrada. Ela, sobraando as bolsas de
roupa de santo que ele se recusava a ajudar a carregar, reclamava das brincadeiras
brutas do menino, mas no fundo se divertia muito com as suas momices.
Seu Josias gostava de pregar sustos na amiga e fingia que ia empurr-la para o
rio que a aterrorizava, pois no sabia nadar. Apesar dos pedidos e avisos da menina, ele
tanto fez que, ao fingir que a empurrava, exagerou e acabou derrubando-a na beirada do
barranco. Dona Joana rolou pela ribanceira ngreme e caiu apavorada dentro da
correnteza que, apesar de no ser forte, no era rasa naquele ponto. Com a queda, as
bolsas se abriram e as roupas dos Orixs comearam a descer rio abaixo, enquanto a
menina comeava a se debater para manter-se tona.
Apavorado com o resultado de seu ato inconseqente, o menino corria de um
lado para o outro na beira da estrada, sem saber o que fazer. Ele nadava muito pouco e
no lhe passou pela cabea que pudesse salvar a amiga. Como sempre, quando fazia
uma de suas peraltices que desandavam em prejuzo srio, desesperou-se e comeou a
choramingar pelo mal feito. De tanto medo, mal olhava para a amiga que comeava a se
afogar. Abaixou-se, escondeu o rosto entre as mos e comeou a soluar. Sua cabea
girava e ele j nem pensava, mas sabia que tinha feito uma burrada grave, sem tamanho.
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De cabea abaixada, ele no viu quando aconteceu, s lembra de ter ouvido o
il de Oxssi: kiuo, kiuo, kiuoo!
Oxssi tomou sua filha dentro do rio e veio at a margem, onde se agarrou no
capim para sair da gua e pr-se de p em terra firme. Depois, andando com o corpo
ereto como convm a um rei, subiu a ribanceira at a beira da estrada, onde o menino o
esperava sorrindo de nervoso. Sem esboar nenhum outro gesto, o Rei de Ketu,
incorporado naquele corpo franzino de menina, todo molhado, com a roupa de rao
colando ao corpo, aplicou em Seu Josias uma sonora bofetada, daquelas em que o som
mais humilhante e castigador que a dor.
E mais no disse ou fez. Foi embora deixando a menina meio sonolenta na
beira da estrada. O menino? Bem, uma dezena de anos depois, ele se casou com a
menina e tiveram um casal de filhos. A filha, mais velha, formou-se em medicina e o
filho, depois de muita briga da me, conseguiu estudar o suficiente para ser aprovado
em concurso para uma empresa estatal, onde fez carreira.
Uns quarenta anos depois da aventura na beira do riacho na Bahia, OgJosias
voltou a se envolver com o Rei de Ketu.
Mulherengo e conquistador, mesmo chegando aos seus cinqenta e tantos anos,
quase aposentado do trabalho na estiva do cais do Rio de Janeiro, para onde transferira
toda a famlia logo depois de ter se casado com Dona Joana, Seu Josias aproveitava toda
a liberdade de ao que lhe dava a sua funo nos candombls e, pelos terreiros onde ia
tocar, estava sempre s voltas com algum romance extraconjugal.
As brigas de Dona Joana, com quem ele se casara pelos meados da dcada de
1950, somente por pouco tempo arrefeciam o mpeto de Og Josias. Ela brigava,
xingava, batia e colocava-o para fora de casa, jogava-lhe as panelas em cima e, uma vez
pelo menos, aplicou-lhe uma surra com o cabo de uma vassoura que estava mo.
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Ele, entretanto, no se emendava: sempre que podia, flertava, namorava e, por
vezes, mantinha um caso mais duradouro.
Um belo dia recebeu a notcia que iria ser pai de um filho. A moa, uma linda
filha deIyans uma ancestral famosa por ser a Senhora dos ventos e dos mortos era
aparentada da sua esposa e aquilo ia causar ainda maior confuso. Embora preocupado
com a repercusso do fato, Seu Josias no deixou sua rotina de tocador de atabaque nas
noites dos finais de semana e nem mesmo a de namorador. Alguma coisa lhe dizia que
ele teria problemas srios mesmo era quando Dona Joana ficasse sabendo. E ela ficaria
sabendo mais cedo ou mais tarde.
Quando a esposa soube do novo filho de Seu Josias, o menino j estava para
nascer. Por uma incrvel sorte do marido, a notcia no se espalhara seno quando a
futura mame confessou para sua me de santo, uma tia de Dona Joana, que o filho era
de Seu Josias. E foi um desabar de mundo.
Todos antecipavam um desastre. Alguns apostavam que, dessa vez, Dona
Joana faria alguma loucura e romperia definitivamente, os mais cticos duvidavam. A
me de santo de Dona Joana, avisada por amigos, rapidamente preparou e despachou
um eb, para afastar qualquer perigo da confuso acabar em sangue derramado. Os
filhos foram avisados para ficar atentos ao casal. A comunidade toda antevia, no sem
alguma maledicncia, a enorme briga que Dona Joana aprontaria. E esperavam: dessa
vez, OgJosias fora mesmo longe demais.
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No dia em que soube da notcia, D. Joana sentiu uma raiva to imensa que at
lhe deu calma. O enorme desapontamento foi substitudo por uma frieza que tomou
conta de seus pensamentos e atos. Ela nunca havia se sentido desse modo antes e ficou
to silenciosa durante toda a tarde que sua filha, preocupada com aquele comportamento
estranho, suspendeu sua ida a aula do curso noturno para o exame vestibular, resolvendo
estudar em casa mesmo.
No cair da tarde, Dona Joana, tomou um banho, arrumou os cabelos, colocou
uma roupa simples de sair e as sandlias nos ps. Foi at o armrio do quarto, pegou o
revlver que Seu Josias havia comprado h muitos anos para afugentar possveis ladres
e, colocando uma cadeira de frente para a porta de entrada, sentou-se, pousou a arma
sobre as pernas, cobriu-a com uma toalha para a filha no perceber e comeou a esperar
a chegada do marido. Em sua cabea havia um s pensamento: hoje eu mato este
safado!
A filha, sem perceber tudo, mas apavorada com a atitude estranha da me,
resolveu no dormir antes da chegada do pai. Foi para o seu quarto e, depois de rezar
pedindo a seu av Oxssi que protegesse a todos, sentou-se para estudar. Mas as horas
se passavam e Seu Josias no aparecia. Era como se ele soubesse o que o esperava e
tivesse resolvido prolongar o tempo que lhe restava.
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Dona Joana continuava sentada de frente para a porta, pensando nas inmeras
vezes que fora trada e humilhada. Remoia cada um dos casos de que ela tomou
conhecimento, refazia as contas de quantas vezes tivera que fingir no entender uma
piada ou outra sobre as infidelidades do marido. O amargor do peito subindo e o gosto
de fel tomando a boca, a garganta seca, ela j nem mais pensava direito. Todas as
histrias terminavam com a cena do marido entrando pela porta e ela descarregando no
meio do peito dele toda sua mgoa e as balas do revlver. Dona Joana tinha decidido
dar um fim em Seu Josias.
L pela alta madrugada, depois de muito ler e se bater contra o sono, Josete, a
filha, adormeceu sentada mesa do quarto, com a cabea por cima dos livros. Acordou
assustada, mas contente ao reconhecer o il de Oxssi: Kiuo, kiuo, kiuoo! Com seu av
presente, as coisas se resolveriam, pensou correndo para a sala.
Surpresa, ela deparou com a cena que o prprio Og Josias contava a todos
mais tarde, com certo orgulho desavergonhado: Oxssi de p, tomando o corpo franzino
de sua me e seu pai ajoelhado, com o rosto banhado em lgrimas, choramingando e
agradecendo, levando a mo lentamente em direo arma que pendia frouxamente
entre os dedos do Rei de Ketu. Seu Josias s encontrava foras para repetir: Obrigado,
meu pai! Obrigado!
Oxssi havia incorporado no momento exato em que Dona Joana se levantara e
apontara o revlver para o marido traidor. Evitada a tragdia, ele abraara Josete, como
j fizera muitas vezes antes, e fora embora sem dizer palavra, deixando sua filha no
carinhoso abrao da filha dela.
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Oxssi nunca mandou recado sobre o que acontecera, e Seu Josias jamais se
emendou. Dona Joana? Bem, como sempre fazem muitas mulheres, perdoou. Muitos
anos mais tarde, no enterro dela, o filho de Seu Josias chorava a morte da mulher que
ele tratou a vida toda como v e que o tratara sempre com o carinho que se d a um neto
querido.
Coisas de famlia!
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2 - A tradio oral familiar
Nas comunidades de religiosidade afrobrasileira, como a do OgJosias ou as
da casas da linhagem nag, no presente, no no futuro ou no passado, que os heris e
viles se renem para ensinar a viver. Como em outras culturas, os relatos como os da
Casa de Air dizem respeito aos fatos que envolvem personagens da sua comunidade: as
que existiram, as que existem e as que viro a existir. O que, de certa forma, d um
colorido diferente a esses relatos que o universo dessas histrias abrange o
envolvimento de todos em um s tempo.
O tempo no considerado parmetro vlido nessas histrias e rene o
passado, e por vezes o futuro, no presente. A eternidade forma um crculo com o tempo
vital e o natural se confunde com o sobrenatural, da mesma forma que o sagrado se
mistura ao profano. No h separao formal. Um ancestral morto h sculos, por vezes
j evemerizado, pode se confundir com seus filhos e castigar ou premiar um
comportamento, como se um pai vivo fosse, pois ele o . Do mesmo modo, as histrias
de vida do ancestral sagrado contm muitos aspectos que o humanizam, tornando-o
sujeito de atitudes profanas e, como tal, objeto de crticas como qualquer outro membro
da famlia.
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As histrias familiares so repassadas por geraes dentro das comunidades e
contm muitas facetas que podem caracteriz-las como histrias fantsticas. Mas so
bem mais comuns no universo das famlias brasileiras do que nos mostram as poucas
pesquisas a respeito. Uma grande parte dessas famlias constituda com base em um
parentesco mtico que se faz presente de uma forma mais do que simblica. Os Orixs
dos candombls, assim como outros tipos de entidades que incorporam e influem
cotidianamente, so parentes vivos e participantes. Precisam ser cultuados, alimentados,
vestidos, lavados, e, principalmente, obedecidos quando aconselham, orientam ou
ordenam.
Cada um deles carrega seus hbitos e proibies para a educao dos membros
de suas famlias e, mesmo a constituio destas est sujeita s regras especficas
contidas nos costumes que os envolvem. Para um casamento de iniciados, ser sempre
necessria a consulta aos seus Orixs individuais. O casamento entre iniciados do
mesmoIl no visto com bons olhos, embora cada vez menos respeitado. O preceito
de que filhos da mesma navalha24 no devem se unir um tabu definitivo.
Um iniciado para um Orix masculino jamais dever se casar com uma
iniciada para o mesmo Orix, mesmo que pertenam a casas diferentes, podendo a
proibio ser estendida a todas aquelas que sejam devotadas a Orixs masculinos. Estes
tabus de incesto, mais ou menos rgidos, so adicionados s normas sociais e jurdicas
existentes e por elas, por vezes, influenciados.
24
Iniciados pela mesma pessoa; uma navalha um dos atributos especficos e vitalcios da pessoa quedetm o poder de iniciar algum e no pode fazer parte da herana deixada a nenhum das suas, ou seus,sucessoras. Todos os filhos iniciados pela mesma pessoa so considerados irmos.
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As regras de convivncia interna das casas de culto so, muitas vezes, levadas
para o cotidiano familiar e, deste modo, ser necessrio cuidar da parafernlia de cada
um dos ancestrais. Sempre haver, em separado dos demais pertences familiares, o
caneco de servir a gua de Xang aos parentes, o pedao de sabo da costa e as toalhas
para a limpeza dos pertences de Omulu ou as cuias para banhos rituais dos filhos de
cada um dos Orixs. Deve haver ainda os pratos e tigelas exclusivas para o servio aos
Orixs e, em alguns casos, at mesmo baixelas completas separadas para o uso de cada
um deles.
Levando-se em considerao que os Orixs tm um vesturio mais elaborado e
mais diversificado do que os demais membros da famlia, pode-se inferir a quantidade
de peas de roupas e demais acessrios que estaro vedadas ao uso comum e que,
entretanto, precisam ser mantidas limpas, engomadas e passadas para uso imediato,
sempre que necessrio.
As crianas so educadas a considerar seus ancestrais como presentes, a partir
da necessidade de cuidar desses pertences. E as regras de convivncia, os tabus de
incesto, as proibies alimentares e os interditos de costumes so praticados desde a
infncia. 25
A convivncia e os costumes dos membros da famlia celular se estendem no
s aos membros do seu Il, mas tambm a todos integrantes do panteo de seres
sagrados cultuados. 26 A famlia extensa, embora mantida simbolicamente, permanece
assim no imaginrio do cotidiano de todos.
25 A este respeito, entre outras, pode ser consultada a Tese de Doutoramento em Educao de Estela
Caputto sobre as crianas do candombl, defendida na PUC-RJ, em 2005.26 Os Ils dos candombls brasileiros so tratados como terreiros ou roas. Apesar do gneromasculino no tratamento geral brasileiro, palavra significa casa na lngua yorub.
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3 - Os candombls do Brasil
3.1 A unicidade improvvel
Em muitas obras histricas, antropolgicas e sociolgicas que nos
informam sobre a famlia de santo, tal como foi produzida no contexto religioso da
sociedade brasileira afrodescendente, os autores tm insistido em anlises que parecem
devam ser colocadas como incio dessas reflexes.
Uma dessas anlises tende a considerar que a base cultural da origem africana
dos povos compulsoriamente trazidos para o Brasil apresenta ou apresentava
caractersticas de unicidade, principalmente de mbito religioso. Os estudos tm
insistentemente, apoiando-se uns nos outros, repetido a hiptese que os povos africanos
aqui reunidos recriaram, dentro do que se convencionou chamar de candombl
brasileiro, um sistema religioso de carter e forma mais ou menos moldados no sistema
de crenas da etnia yorub, chamada na Bahia deNao Ketu ouNag.
Uma boa parte da produo etnogrfica brasileira sobre o assunto costuma
considerar o modelo cosmognico, observado por vezes somente em uma casa de culto,
como aplicveis a todo um universo de grupamentos de uma mesma Nao. Deste
modo, nega-se o papel criativo e modificador do escravo e do afrodescendente brasileiro
como sujeito da produo de formas especficas de expressar a prpria religiosidade. E
negam-se ainda as diferenas bsicas das vrias formas dessa expresso, bem como o
amlgama cultural j existente nas diversas partes da frica, mesmo antes do contato
europeu com a costa africana.
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Nina Rodrigues um mdico brasileiro que pesquisou os candombls baianos,
entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, com o claro objetivo de elucidar a
ligao entre a possesso ritual e algum tipo de doena mental apontava para uma
unidade dos cultos de origem africana, tendo por modelo a religio dos nags. Para
apoiar suas concluses sobre esta predominncia, ele indica as causas, historicamente
pouco provveis, de uma precedncia [nag] na aquisio de riquezas ou da
liberdade e, embora indique as causas como pouco estudadas, considera-as
facilmente presumveis. 27
A partir de ento, com o hbito da fcil presuno de causas pouco estudadas,
uma boa parte da produo etnogrfica e historiogrfica a respeito dos cultos afro-
brasileiros costuma considerar modelos ideolgicos observados, por vezes, em
somente uma casa de culto como aplicveis a todo um universo de grupamentos do
que se convencionou chamar entre ns de uma mesma Nao, ou mesmo a todo um
candombl brasileiro, tomado como religio unificada.
Na esteira dessas informaes, dison Carneiro, advogado, folclorista,
jornalista e estudioso dos candombls brasileiros, aponta algumas dessemelhanas
pouco significativas o tipo de atabaque utilizado, a maneira de tocar o atabaque, as
vestimentas dos participantes ou mesmo as incorporaes coletivas da Umbanda carioca
de ritual para concluir que:
Muitas dessemelhanas, que tendem a multiplicar-se com o tempo,mascaram, realmente a unidade fundamental dos cultos de origem africana. Nina
Rodrigues no pde estabelecer e demonstrar tal unidade, mas as pesquisas queinspirou, abarcando quase todas as manifestaes religiosas do negro no Brasil, j nosdo a oportunidade de faz-lo. (...) poderemos tentar uma sistematizao dos tipos emque podemos dividi-los, dentro da unidade sem uniformidade to justamente inferida
por Nina Rodrigues.28
27 Cf. Carneiro, E. Candombls da Bahia : 6a ed., Rio de Janeiro. Ed. Conquista, 1978, p. 16.28 Carneiro, E., Op. cit., p. 17.
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Desse modo, pode-se observar ento que as pesquisas, tanto de Nina Rodrigues
quanto de dison Carneiro procuraram uniformizar com a atribuio de uma unidade
fundamental dos cultos de origem africana as diversas manifestaes de candombl, a
partir de um modelo nag e baiano.
As consideraes sobre uma unidade de culto so bastante precrias, levando-
se em conta que as demonstradas por Nina Rodrigues e dison Carneiro prendem-se a
aspectos de fundamentao das manifestaes que podem ser encontrados em diversas
outras formas de apreenso do sagrado.
A incorporao de espritos, o transe medinico; a crena na comunicao com
os mortos (evemerizados ou no); o oferecimento de sacrifcios, que podem incluir at
mesmo o de vidas (humanas ou no); a divinao em seus vrios aspectos; o
oferecimento de cura (espiritual ou no) das doenas; as festas de comunho para a
saudao de seres sagrados, incluindo danas, cnticos, oraes, vesturio e smbolos
especiais; so aspectos de uma grande diversidade de manifestaes religiosas, nas mais
diversas culturas.
A historiografia e a etnologia brasileiras mais recentes, apesar de no
procurarem se libertar claramente desta uniformizao improvvel, tm oferecido
oportunidades de anlise mais acuradas.
Clvis Moura, no seu excelente Dicionrio da Escravido Negra no Brasil,
informa.
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lvares, Domingos. Escravo negro, natural da Costa da Mina, residiu muitosanos no Rio de Janeiro, onde era bastante procurado para curas com ervas. Atuavacomo herbolrio, fazendo poes, ungentos e beberagens. Tornou-se um curandeiro
famoso, chegando a ser dono de um terreiro (candombl), onde distribua patus. Foipreso pela Inquisio, processado em auto-de-f, em 24 de junho de 1744, e degredado
para Castro-Marin, Algarve. Tentou em vo convencer os juizes de que eram as ervasque produziam as curas e no pactos demonacos. No degredo, retomou suasatividades, somando-se a elas a adivinhao de locais onde estariam enterradostesouros mouros. Foi novamente julgado pelo Santo Ofcio, saindo em auto-de-f em 20de dezembro de 1749. 29
Depreende-se que, j em tempos anteriores a 1744, escravos do Rio de Janeiro
formavam terreiro de candombl.
possvel que os escravos reunidos por Domingos lvares praticassem um
candombl de mesmo modeloNag pesquisado por Nina Rodrigues e dison Carneiro.
Mas podiam tambm ser escravos de outras etnias, que no entraram em contato direto
com os nags baianos.
Woortmann, em sua excelente obra de pesquisa sobre parentesco em famlias
de baixa renda na cidade de Salvador, parece enveredar por um caminho de
concordncia com os primeiros estudos.
Se os dados de Carneiro esto corretos, ressaltam trs fatos significativos:1o) a organizao da casa-de-culto se baseia nas definies tradicionais de papissexuais, mas esto manipulados para assegurar a dominncia feminina; 2o) as casas deculto (pelo menos as dominantes, de origem Yoruba) foram fundadas por mulheres e asmais prestigiadas eram lideradas por mulheres; 3o) o culto do candombl iniciou-se, de
forma organizada, por volta de 1830 58 anos antes da abolio, e j matrifocal. Seminha hiptese correta que a casa-de-culto, a famlia sagrada o paradigma dafamlia profana tal modelo foi desenvolvido ainda durante a escravido, fato quetorna difcil descartar, simplesmente, a importncia histrica da escravido emconjuno com o componente simblico africano, na formao ideolgica do
parentesco. 30
29 Moura, C., Dicionrio da Escravido Negra no Brasil : So Paulo, EDUSP 2004, p. 30.30 Woortmann, Klaas, A Famlia das Mulheres : Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro 1987, p. 280.
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No Brasil, assim como no restante da Amrica, comunidades de fugitivos,maroons, quilombos, palenques, cumbes, etc constituram culturas a partir de diversasexperincias histricas. Concepes e significados culturais encontrados nessascomunidades eram fruto de prticas reinventadas tanto pelos africanos de diversasorigens que aqui chegaram enquanto cativos como de crioulos, interagidas nas
senzalas e unidades de trabalho.33
Se a datao de Woortmann para o incio do culto do candombl, mesmo
considerando-se somente a cidade de Salvador e os chamados Nags, no parece se
coadunar com os fatos histricos, sua hiptese de anlise de parentesco mostra,
entretanto, um importante fenmeno cultural que se desenvolveu na cidade de Salvador,
no sculo XIX.
Um fenmeno, de resto importado de suas origens africanas, que incluam a
famlia sagrada no cotidiano da profana.
33 Gomes, F. S., Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculoXIX, pp. 128, 129.
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3.2 Os homens e o candombl
3.2.1 Joo, Jos e Ogun
Seu Joozinho da Gomia foi um dos mais afamados difusores dos cultos
afrobrasileiros durante as dcadas de 1940 a 1960. Homossexual assumido, sua cabea
fora dedicada a Ogun, o valente Orix dos ferreiros e guerreiros. Criador de sua prpria
comunidade, Seu Joo era originrio de comunidades da nao angola dos candombls e
lutou, durante toda a sua vida, contra a rejeio. Seu Jos era tambm filho de Ogun e
irmo de barco de Iy Cantulina, tendo sido iniciado por Dona Aninha, no Il Op
Afonj de Salvador, em 1936. Um autntico nag, portanto.
Dona Cantu comentava que Seu Joo, de quem todos comentavam as
escandalosas demonstraes de homossexualidade, costumava ir s festas na roa de
Salvador, quando ela e seu irmo ainda no haviam completado sete anos de iniciados.
Ele era sempre muito bem recebido e ela o descrevia como um mulato muito educado e
discreto, que sentava quieto e assistia a funo.
Certo dia, segundo ela, em uma festa de Xang, com o barraco duro de gente,
Seu Joo chegou j com a funo comeada e o Alab, por ordem deIy Senhora que
comandava a casa, ofereceu ao visitante um lugar para sentar junto ao banco onde
estava sentado Seu Jos. Assim que se sentou, ele foi surpreendido com a reao
deseducada de Seu Jos, que reclamando sua condio de macho, no queria ficar ao
lado de, como ele chamou, um mariquinha.
Seu Jos levantou do banco e encaminhou-se, ainda gesticulando o seu
descontentamento, para a porta de sada do barraco. E foi no caminho, como convm a
um Orix considerado pioneiro nas sendas da vida, que Ogun tomou o seu corpo.
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O Orix, depois dos cumprimentos comandante da casa, arrostou-se aos ps
de Seu Joo da Gomia, em uma ruidosa saudao. A seguir, levantou-se e abraou seu
filho dileto e, ainda abraado, deixou o corpo de Seu Jos e incorporou em Seu Joo.
Uma clara e necessria demonstrao de desculpas ao convidado, com a correo ao
filho faltoso.
Seu Jos, depois de colocar a cabea no cho para seu pai Ogun, sentou-se e
assistiu envergonhado ao restante da festa, onde o Orix da Guerra danou para mostrar
a todos que no queria que ficassem dvidas quanto ao comportamento que esperava de
seus filhos.
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3.2.2 O homemIyaw
A presena e os papis assumidos pelos homens nos candombls uma outra
anlise que persiste sendo assumida com equvocos e, por isso, deve ser tambm
ressaltada. Uma das vertentes de estudos desse aspecto provm de dison Carneiro,
conforme ele prprio informa, na posio de personagem na obra de Landes.
No mundo do candombl a coisa outra. quase to difcil que um homemchegue a ter renome quanto parir. E pela mesma razo: acredita-se que contra a sua
natureza (...) Aqui que est o buslis. Alguns homens se deixam cavalgar e tornam-sesacerdotes ao lado das mulheres, mas sabe-se que so homossexuais. Nos templos,vestem saias e copiam o modo das mulheres e danam como as mulheres. s vezes tmmelhor aparncia que elas. 34
Apesar de terem sido analisados e colocados em seus termos, at mesmo por
relatrios posteriores da prpria autora, as informaes da obra continuam a propiciar
interpretaes equivocadas e do conta que existiria um papel cultual que desvirilizava
o filho de santo, o iyaw masculino, e era desejado pelo homossexual dentro dos
candombls, na Bahia. Segundo ainda essas interpretaes, a possibilidade de ser me,
mesmo que de forma simblica, atrairia os homossexuais masculinos aos candombls.
A partir das anlises de Costa Lima e dison Carneiro, Woortmann insiste no
fato de que nas casas mais tradicionais de culto nag, as mais preservadoras da
pureza dos costumes africanos, os homens no eram, ou no so, feitos iniciados
para a posio de iyaw. Cita ainda o fato de que existiam proibies da participao
masculina nas danas pblicas dos terreiros. Estabelece ento uma diviso sexual em
posies dentro do culto, que devem ser analisadas de forma mais acurada.
34
Landes, R., A Cidade das Mulheres : 2a
edio, Editora UFRJ, 2002, pp. 76-77. As indicaes depesquisas para a autora e mesmo uma orientao a respeito dos aspectos de religiosidade afrobrasileiraforam realizadas em conjunto com dison Carneiro, tal como informado no Prefcio.
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O que parece ter acontecido nas anlises de Carneiro sobre as informaes de
Landes foi um esquecimento, ou desconhecimento, dos diversos homens que eram
iyaws iniciados nas casas que ele prprio trata na obra como as mais tradicionais.
Entre esses, s para melhor exemplo, Joaquim Vieira da Silva, o Ob Saniy,
um africano de nascimento, originrio do Recife, av biolgico de Iy Cantulina uma
das informantes principais e irmo de iniciao de Iy Aninha, fundadora do Il Ax
Op Afonj. Tio Joaquim, saudado como ancestral importante nos Ipads das casas
nag, foiiniciado no mais antigo terreiro nag da cidade de Salvador, oIl de Iy Nas,
a Casa de Air, cuja histria registrada mais adiante. A histria oral das casas
pesquisadas no registra nenhum trao de homossexualidade nele, alm de demonstrar a
existncia de outros homens iniciados como iyaws.
Santos, ao comentar uma lista de iyaws iniciados por Dona Aninha
Iyalorix do Il Ax Op Afonj, considerado por Woortmann como um dos mais
tradicionais terreiros nags em 1936, informa.
No dia 6 de junho [de 1936], Me Aninha fez a iniciao de Jos, de Ogun;Cantulina, de Air; Eutrpia, de Oxun; Petronilha, de Oxal e Alcendina, de Oxun.35
necessria uma contextualizao histrica da posio de algumas das
principais sacerdotisas condutoras de casas de culto, na Salvador da poca das pesquisas
dessas fontes de Woortmann, para que se possa entender a inverso dos papis
atribudos ao homem e a mulher no culto.
35 Santos, D. M., Histria de um Terreiro Nag : Salvador, Max Limonad, 1988, p. 14. A Cantulinainiciada em 1936 e referida na obra Iy Cantu, informante de algumas das histrias registradas aqui.
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Para tal, a obra j citada de Landes nos parece exemplar, ao tratar como
personagens as grandes senhoras do culto, do final da dcada de 1930 e incio da de
1940. Nela, mesmo com as preconceituosas informaes de Carneiro, pode-se entender
a resistncia oferecida ento pelas grandes Iys. O contexto era de uma grande luta de
prestgio junto populao da cidade e contra a invaso, conforme colocada por
Landes, de homossexuais e outros malandros para usar a expresso da autora na
procura de uma posio no mercado de apropriao do sagrado que se implantava.
A resistncia iniciao de homens nos terreiros e as proibies de
participao em rodas de danas pblicas ficam mais fceis de serem compreendidas
como circunstanciais. Em muitos casos, a luta pelo prestgio e as posies nela
assumidas diziam respeito mais preservao do status social da recm permitida
instituio ainda sofrendo toda a sorte de excluso e perseguio junto populao
branca envolvente.
mais fcil entender, ento, porque, durante a poca da pesquisa de Landes,
realizada em 1939, era quase desvirilizante assumir a posio de iyaw de um Orix,
pelo menos publicamente, e como este padro cultural se espalhou, juntamente com o
preconceito contra a liberdade de escolha da orientao sexual dos indivduos.
Mas, na realidade, no se tem notcia de que mesmo as casas consideradas
tradicionais por esses autores fossem compostas por somente filhas de santo. No
haveria e nem h nenhum risco de perda da pureza africana no fato de se iniciar
homens como iyaws.
Santos, ainda informa sobre as iniciaes de homens, no j citado Il Ax Op
Afonj.
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No dia 24 de agosto de 1960, Senhora Iyanass fez a iniciao de Rubelino,consagrando-o a Xang. (...) Em 23 de abril de 1961, foi feita a iniciao de Odorico,deOxssi, e em 6 de junho, a de Moacir, de Ogun. (...) conclui-se o ano com a entradade Hugo, de Ogun ... 36
Se alguma dvida persistir a respeito, pode-se verificar a belssima obra de
Verger, 37 cujas fotografias so reveladoras da existncia de inmeros homens iniciados
como iyaws - filhos de santo - nas cidades africanas que visitou e fotografou no final
da dcada de 1940, particularmente no culto a Ogun e a Xang.38 Na obra, filhos e
filhas de santo so tratados pelo autor como iyaw (esposa), na Bahia; como elegun,
em Oy (Nigria) e como okere para designar aqueles que sero tomados por Ogun
(Deus do ferro e da guerra), na regio de Ahori (Benim/Nigria). Em algumas das
cerimnias fotografadas pode-se ainda atestar a posio de chefia de culto ocupada por
homens e mulheres, indistintamente. 39
Assim, a propalada pureza africana dos cultos, no que se refere aos papis
exercidos por homens e mulheres, no pode ser encontrada seno na saudosa, ideolgica
e, hoje considerada, preconceituosa memria de adeptos antigos, recolhida por alguns
estudiosos desse modo influenciados e desatentos para um ou outro aspecto do contexto
histrico onde registraram suas observaes.
36 Santos, D. M., Op. cit., p. 27.37 Verger, P.,Orixs: Deuses Yorubs na frica e no Novo Mundo : So Paulo, Editora Corrupio, 1981.38 Woortmann, Klaas, op. cit,. p. 267. As trs casas citadas por Woortmann so o Il Iy Nass (a Casa deAir, Casa Branca do Engenho Velho, considerada a casa materdas outras duas), a casa Il Iy Omi
Iyamasse (o terreiro do Gantois) e o Il Ax Op Afonj, onde Costa Lima estudou a instituio dos Obs
de Xang, um dos ttulos dos cargos masculinos que l so atribudos.39 Verger, Pierre, Op. cit., p. 63 (fotos 19 e 20), p. 55 (fotos 55 e 56) e pp. 156-159 (fotos 112, 113 e114).
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3.3 A poliginia e a matrifocalidade
A comprovada primazia feminina para o cargo de chefe de culto, que
verificada at os dias atuais nas trs principais casas da linhagem nag da cidade de
Salvador,citadas por Woortmann apoiado em Costa Lima, e mesmo em algumas casas
pesquisadas no Rio de Janeiro e em Campo Grande-MS,no padro verificvel entre
todos os candombls nags, mesmo para aqueles fundados mais tarde por filhos e filhas
oriundos dessas primeiras instituies.
Ao elaborar os conceitos iniciais que orientaram sua tese de doutoramento,
Woortmann mostrou, com simplicidade e clareza, algumas das motivaes que o
levaram reflexo sobre o tema do parentesco.
Resta indagar sobre o que podemos ganhar de um estudo de parentesco.Famlia, ou parentesco, no apenas uma instituio ou um valor. Por ser um valor,exprime certos smbolos igualmente carregados de valor, tais como sangue, e por issomesmo prov um cdigo que informa a organizao do espao social em determinadasesferas. (...) O Estudo das relaes de parentesco entre os pobres da Bahia no nos ir
fornecer, por certo, uma compreenso mais profunda dos problemas gerais dadependncia, do subdesenvolvimento e outros tantos que afligem a sociedadebrasileira como um todo. (...) Mas o povo no sofre apenas os problemas gerais. Temde enfrentar tambm problemas mais imediatos, ainda que, sem dvida, derivadosdaqueles mais gerais: como alimentar a famlia hoje; como encontrar trabalho; ondedeixar as crianas enquanto a me trabalha; em quem se apoiar quando a famlia atingida por uma crise, etc. As pessoas tm de viver sua vida quotidiana e a este nvel o