Post on 17-Feb-2015
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tf© 2006-2009 - IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo José; Rezende, Cláudio Joaquim.
/ Tópicos da Filosofia da Educação. / Otto Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende. 2. ed. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009. 336 p. ISBN: 978-85-7638-998-9 1. Educação. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filosofia - História. I. Título. II. Machado, Wanderley. III. Silva, Lu- ciano D. da. IV. Triches, Natalina. CDD 370.1 Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: Domínio público Nome da obra: Escola de Atenas, 1510 Autor: Rafael Sanzio
Todos os direitos reservados. p A D r A o IESDE Brasil S.A.
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Otto Leopoldo Winck Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Espe-cialista em Filosofia com Ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR.
Ivo José Triches Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pela Faculdade Padre João Bagozzi. Espe-cialista em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâneo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR.
Sumário Apresentação ................................................ 11 Convite à filosofia ..................................................................................................... 13 Por que filosofia? ....................................................................................................... 13
Definições ................................................................................................................. 14
Divisão de tarefas ..................................................................................................... 16
A atitude filosófica e o senso comum ...................................................................... 17
Nem dogmatismo nem ceticismo ............................................................................ 18
Sócrates e a filosofia moral ocidental ........................................ 25 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia....................................................... 25 Os filósofos naturalistas e os sofistas ...................................................................... 27
Platão e o nascimento da razão ocidental ................................. 41 Platão: atleta e poeta ................................................................................................ 41
As vigas do pensamento platônico .......................................................................... 43
O legado de Platão .................................................................................................... 46
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes 53 Filho de médico, mestre de príncipe ........................................................................ 53 Os escritos de Aristóteles ......................................................................................... 54
Só o individual é real ................................................................................................. 55
A metafísica .............................................................................................................. 57
O pai da lógica .......................................................................................................... 59
Ajusta medida e o bem comum ............................................................................... 61
De Aristóteles à Renascença .................................................. 69 A filosofia na era helenística ..................................................................................... 69
Sob a égide da cruz .................................................................................................. 77
A Renascença e o divórcio entre razão e fé ............................................................. 87
Espinosa: uma filosofia da liberdade ..................................... 97 A filosofia moderna: entre razão e experiência ....................................................... 97
Uma vida em diáspora .............................................................................................. 98
Uma vida de filósofo ............................................................................................... 100
O panteísmo de Espinosa ....................................................................................... 103
O ser humano ......................................................................................................... 104
A moral, o sábio e a eternidade ............................................................................. 106
Igrejae Estado.......................................................................................................... 106
O lluminismo e o Século das Luzes .....................................113 Há algo de novo debaixo do Sol ............................................................................ 113
Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo ................................... 115
Luzes e revolução ................................................................................................... 116
A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica .................................. 118
Nomes que brilham ................................................................................................ 119
O legado iluminista ................................................................................................. 122
Immanuel Kant e o idealismo alemão .................................129 Na encruzilhada da razão ....................................................................................... 129 O filósofo de Kõnigsberg ........................................................................................ 130
Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana ...................................................... 133
A razão no tribunal ................................................................................................. 134
O imperativo categórico ......................................................................................... 138
Kant e a educação ................................................................................................... 140
O idealismo alemão ................................................................................................ 141
A dialética idealista e materialista ....................................... 147 Dialética: breve histórico ........................................................................................ 147
Hegel ....................................................................................................................... 149
O hegelianismo ....................................................................................................... 151
Filósofo e agitador .................................................................................................. 154
O materialismo histórico ........................................................................................ 156
A práxis ................................................................................................................... 158
Schopenhauer: o mundo como representação ................. 167 Contra Hegel ........................................................................................................... 167
U ma vida taciturna ................................................................................................. 169
O mundo como representação .............................................................................. 171
Tudo é dor .............................................................................................................. 172
O nirvana ................................................................................................................. 173
Schopenhauer e a educação ................................................................................... 174
O positivismo e o desenvolvimento da ciência .................. 179 Um mestre e uma musa ......................................................................................... 179
História e evolução ................................................................................................. 181
A religião da humanidade ...................................................................................... 183
Quando filosofia vira samba ................................................................................... 183
Nietzsche educador ............................................................. 191 Vates e filósofos ...................................................................................................... 191
U ma vida perigosa ................................................................................................. 192
Uma filosofia feita com o martelo .......................................................................... 196
0"anticristo"e a luta contra o platonismo do povo ................................................ 197
O super-homem e a nova moral ........................................................................... 198
Nietzsche e a educação .......................................................................................... 199
Nietzsche está vivo ................................................................................................. 201
A Escola de Frankfurt ........................................................... 209 A herdeira do facho ................................................................................................ 209
Uma escola crítica ................................................................................................... 210
Os momentos da teoria crítica ............................................................................... 212
Teoria crítica versus teoria tradicional ................................................................... 213
Razão instrumental e indústria cultural ................................................................. 214
Principais expoentes ............................................................................................... 216
Luzes, razão e educação ........................................................................................ 222
Pragmatismo e existencialismo .......................................... 231 Era dos extremos: as duas faces da moeda .......................................................... 231
Pragmatismo: origens e paternidade ..................................................................... 232
Existencialismo:"uma mística do inferno" .............................................................. 237
Filosofia e educação ............................................................. 259 Filosofia para quê? .................................................................................................. 259
Crise e filosofia ....................................................................................................... 259
Filosofia e educação: isso dá samba? ..................................................................... 262
Filosofar ou filosofar: eis a questão ....................................................................... 264
Ética e educação ................................................................... 269 A refundação da ética ............................................................................................. 269
Ética e moral ........................................................................................................... 270
A ética através dos tempos .................................................................................... 271
A ética na educação ................................................................................................ 275
Reconstruindo a ética na escola: tarefas ................................................................ 276
Filosofia e formação humana na escola ............................. 283 No princípio ............................................................................................................ 283
A educação como formação ................................................................................... 284
A formação como humanização ............................................................................ 286
A escola como espaço privilegiado da formação .................................................. 288
O processo do filosofar na Educação Infantil ..................... 295 Filosofia para crianças e filosofia com crianças .................................................... 295
Filosofia e autonomia ............................................................................................. 296
Uma sociedade real ................................................................................................ 298
A diferença .............................................................................................................. 300
Gabarito ............................................................ 305 Referências
............................................................................ 329 Anotações
.............................................................................................. 335
Apresentação ''Tudo o que é sólido se desmancha no ar" escreveu Karl Marx no
Manifesto Comunista, referindo-se à vertiginosa velocidade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação continua mais do que nunca atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considerados sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído.
Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transformações. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluarte de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser profundamente afetadas pelas alterações do presente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades. Daí a importância e a urgência de pensarmos constantemente a educação. E para fazê-lo, nada melhor do que pedirmos auxílio à filosofia. E é o que faremos ao longo deste curso de Tópicos de Filosofia da Educação.
Na aula inicial, intentaremos uma melhor clarificação do conceito de filoso-fia. Em seguida, da aula dois à aula 14, faremos uma viagem pela história da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas como o Existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada aula será complementada com um ou mais textos extraídos preferencialmente dos próprios filósofos - isso porque acreditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, freqüentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Mas, em todo caso, ler textos de filosofia ainda não é produzir filosofia e, por isso, ao fim de cada uma destas aulas, os alunos serão estimulados a ousarem pensar e refletir, à luz tanto dos filósofos estudados quanto de problemas extraídos da contemporaneidade.
As aulas 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações
entre filosofia e educação. Aqui são atacadas algumas questões candentes dessa problemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas disciplinas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma compreensão e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi-las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na 11 .a tese sobre Feuerbach, que "até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo". Acrescentamos apenas que essa missão é também - e sobretudo - dos educadores.
Dessa maneira, ao fim desta apresentação, que não pretendemos longa, só nos resta desejar bons estudos e que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica. Otto Leopoldo Winck
Convite à filosofia A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. Maurice Merleau-Ponty
Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar. Immanuel Kant
Por que filosofia? Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abs-
trata e a mais distante dos interesses humanos mais imediatos. Depois do
declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da
teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No
entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências positivas -
aquelas que exigem o recurso da experimentação -, de modo que hoje é
comum se perguntar o porquê da filosofia, pergunta que não é feita quando o
assunto é Matemática, Física ou Biologia. Mesmo disciplinas pertencentes ao
arco das ciências humanas - como Pedagogia, Psicologia e Sociologia -
encontram justificativas mais facilmente que a Filosofia. Ora, estuda-se
Pedagogia para se aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a
Psicologia e a Sociologia são necessárias para melhor se compreender o
funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas, e a filosofia, serve
para quê? Em uma cultura em que se valoriza sobremaneira o que tem
finalidade prática e utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora
de lugar, supérfluo e desnecessário.
Todavia, é justamente aí que se revela a sua imprescindibilidade. Em uma
época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros
fatores, por causa do enorme cabedal de conhecimento e experiência
acumulados) sendo extremamente especializados e portanto fragmentados, é
indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa
visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso - sob o risco de não saber-
mos nos localizar e portanto ficarmos privados de ação - um saber sobre esses
saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações,
uma pergunta que nasce antes e não termina depois. Por que pensamos o que
pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos?
Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela
nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo edu-
cacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que
falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa
maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que
ponto de vista e de que lugar social ele foi produzido? Isso é filosofia. E, aplicando-
a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação.
Definições Mas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmente
tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significado
etimológico do termo é "amor à sabedoria":
phylos = "amigo", "amor" sophya = "sabedoria"
Porém, antes do substantivo filosofia já era usado o verbo filosofar e o nome
filósofo. Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar- -
se filósofo, embora se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que
ganharia depois, com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses
dois nomes paradigmáticos do pensamento ocidental, a filosofia é resultante da
admiração e do estranhamento diante do espetáculo do mundo. Enquanto para
Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a
visão do verdadeiro - isto é, das ideias -, para Aristóteles a sua função é a in-
vestigação das causas e princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o
filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber.
Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência
do princípio dos princípios, da causa última.
Convite à filosofia
8 I
Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos
dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para
Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus
fenômenos transitórios, mas pelos seus princípios imutáveis. Para René Descartes
(1596-1650), ela é o saber que averígua os princípios de todas as ciências e,
enquanto filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades
últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume
(1711 -1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das
ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant
(1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um
conhecimento racional por princípios.
Na corrente conhecida como idealismo alemão, a filosofia é entendida ora como
o sistema do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte
(1762-1814), ora, como em Hegel (1770-1831), como a consideração pensante
das coisas, identificando-se assim com o espírito absoluto, isto é, o espírito
plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é
a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e
como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um compêndio
geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma
ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosófica
fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas
lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos;
não um conhecimento e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson
(1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e ainda que se
utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte.
Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão
elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de
definição da filosofia: A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUÍ, 1994, p. 17)
Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida que crescia a
consciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira "filosofia da
filosofia", que tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por
** Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é
apreendido pelos sentidos ou pela consciência.
Convite à filosofia
princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível.
Divisão de tarefas No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tarefas
para poder abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a
divisão da filosofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas,
como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas
filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que
seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema
filosófico - espécie de enciclopédia do saber de seu tempo - que se constituíram
como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a Psicologia (doutrina da
alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela
filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar,
dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a
epistemologia, a ontologia, a sociologia, além de um conjunto de matérias como
filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do Direito, filosofia da história,
filosofia da linguagem etc., bem como a história da filosofia. Algumas delas se
tornariam autônomas, como a Psicologia e a Sociologia. Por outro lado, há aqueles
que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico
disciplinas como a lógica e a metafísica.
É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a
por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas
evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, rami-
ficações e desdobramentos.
Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, a partir de uma
visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e
o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que
se sirva de ambas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo
estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua
evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegiaremos
um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e
escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momentos, uma
óptica sincrônica.
A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos no
processo filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua
capacidade de indagar. Perguntar:
■ O que a coisa é?
■ Como a coisa é?
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 10
■ Porque a coisa é assim?
Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma pos-
tura filosófica frente ao mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as
respostas às questões com que ele se depara no mundo.
De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que questiona
o saber instituído, que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo
consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural -
em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resumindo, saber
instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber
institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua
própria existência.
Quando nos referimos ao conceito de senso comum, nós o relacionamos ao
conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conhecimento
como doxa ("opinião"). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos
cerca e, no entanto, nessas opiniões nos falta uma visão da totalidade. Não
conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que
possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se necessário
apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos.
Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, os
dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é
alguém que localiza sua existência apenas no senso comum.
Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme ("ciência") é pensámos
à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os
fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for
rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos
dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de
Arruda Aranha. Nesse trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinônimo
de doxa, opinião, senso comum: A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radieis significa literalmente "raiz" e, no sentido derivado, "fundamento" "base". Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas conseqüências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigüidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam "recortes" da realidade, a filosofia, além de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107)
Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do
seu pensar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse
Convite à filosofia
processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais dis-
tantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos depa-
ramos todos os dias em nossa vida.
Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não
podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as
situações, os valores em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana;
jamais devemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É
por essa razão que se justifica mais uma vez a importância da filosofia em nosso
trabalho como educadores: ela impede a estagnação e ressignifica a experiência. Se
educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma
reflexão crítica sobre o que é conhecimento e sobre o que é educação, a filosofia
não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio
alvo.
Nem dogmatismo nem ceticismo Novamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras.
Skeptikós significa "aquele que observa", "que considera". Desse modo, cético é
aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do
conhecimento.
Por outro lado, dogmatikós denota "aquele que se funda em princípios". Assim,
dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma
doutrina.
Convite à filosofia
12 I
Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamental e
indiscutível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamente religiosa.
Toda vez que verdades irrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser
demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos.
As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois
toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia,
sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes
tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalando da
episteme para a doxa.
No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma
visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar-se a algum
conhecimento real das coisas. O segundo, porque antes de se debruçar sobre a
realidade, já traz, de antemão, as suas "verdades".
A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo - na verda-
de, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o
dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por seu turno, afirma que não
sabe, mas quer saber - tendo consciência, entretanto, que todo saber é parcial e
provisório. Com efeito, "a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse"
(ARANHA,1988, p. 51).
Texto complementar Ciência e filosofia (DURANT, 2000, p. 26-27)
Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer
decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela
não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu
significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação
atuais, reduz resolutamente o seu foco, concen- trando-o na natureza e no
processo das coisas como são. O cientista é tão
imparcial quanto a natureza no poema deTurguêniev: está tão interessado na perna
de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se
contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência
em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas
numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse
grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou
analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade
no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria - o desejo
coordenado à luz de toda experiência - pode nos dizer quando curar e quando
matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar fins é
filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além de
nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de
Convite à filosofia
som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em
relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo.
Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da
devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia nos
dá a sabedoria.
Atividades 1. Com base nos trechos de Marilena Chauíe Will Durant que constam da aula,
estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a filosofia.
Segundo as definições de filosofia que os filósofos foram estabelecendo ao longo
dos tempos, relacione a coluna da esquerda com a da direita.
1. Bergson
2. Locke, Berkeley e Hume
3. Fichte
4. Wittgenstein
5. Kant
6. Husserl
7. Schopenhauer
Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia.
Tem por objeto a substância da intuição.
É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico.
Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência.
Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes. Sistema do saber absoluto. Conhecimento racional por princípios.
3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa ("opinião","senso comum")
e episteme ("ciência"), assinale, quanto aos enunciados seguintes, F (falso) ou
V (verdadeiro). ( ) Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da filosofia.
( ) O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade. ( ) Ao saber instituído (episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa). ( ) Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.
( ) Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de
maneira sistematizada.
Para produzir filosofia Diante do aumento dos índices de violência em nosso país, não poucos têm
defendido o incremento de medidas coercitivas como ampliação das penas, di-
minuição da maioridade penal e sobretudo recrudescimento da repressão do
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 14
Estado. Há ainda quem, em conversas privadas, defenda o uso da tortura na in-
vestigação e a eliminação física dos criminosos. Dizem que "direitos humanos
são para humanos direitos". Segundo o que foi explanado na aula, essa linha de
pensamento relaciona-se com a doxa ou a episteme? O que seria uma reflexão
filosófica - rigorosa, radical e de conjunto - a respeito da violência social em
nosso país?
Sócrates e a filosofia moral ocidental O mito é o nada que é tudo. Fernando Pessoa Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. Marilena Chauí
0 gênio grego, o mito e as origens da filosofia Tanto o termo quanto o conceito de filosofia tem a sua origem na Grécia
antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido
formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontramos
algumas dessas formas na índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos
usufruíram conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a
astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No
entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e desvinculado da
religião que ficou conhecida como filosofia nós devemos às peculiaridades do
gênio grego.
Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns
traços básicos.
■ Em primeiro lugar, o racionalismo, isto é, a consciência do valor máximo
do conhecimento.
■ Mas esse conhecimento não é abstrato e sim proveniente da experiência: é
um conhecimento sensível.
■ Todavia, esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas
transcende o real em direção ao absoluto.
■ Sendo otimista, como conseqüência de seu racionalismo, o grego tenderá
também ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real.
Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico, como
aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico2.
E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento
filosófico: Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvolver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tornou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram inicialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20)
Foi nas cidades ou pólis - que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado - que
se desenvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimento
urbano com as suas instituições, e o lugar privilegiado da península grega -
entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias
e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e
reflexões - resultaram em um ambiente propício para o surgimento da filosofia.
Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas sobretudo aos jônios3, que
souberam exprimir em alto grau o gênio helênico.
Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a
gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeiramente,
os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas
origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois
verbos, tendo os sentidos de "contar, narrar, falar alguma coisa a alguém"
e"anunciar, nomear, designar". Para os gregos, o mito era um discurso proferido
para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na
autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se
supõe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem
reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o
fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano
** Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos. 3 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiático do Mar Egeu.
Sócrates e a filosofia moral ocidental
27 ■
como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso,
costumam ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos
contêm a personificação de coisas ou de acontecimentos.
Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como
oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi
adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológicas como
um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a
explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua origem a partir do mito,
desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação mítica
dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas,
devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do
mundo.
São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filosofia
clássica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral,
podemos sintetizar essa época em quatro períodos:
■ Período naturalista - também chamado cosmológico4 ou pré-socrático do
final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia ocupa-se
fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na
natureza.
■ Período humanista - também denominado antropológico5 ou socrático, do
final do século V e todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filosofia
torna-se as questões humanas, como a ética e a política.
■ Período sistemático - do final do século IV ao final do século III a.C., quando a
filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre
o mundo e o ser humano.
■ Período helenístico - também conhecido como greco-romano ou religioso, do
final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança
Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principalmente pelas
questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade
e Deus.
Os filósofos naturalistas e os sofistas O primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmo-
lógico porque a especulação dos filósofos voltou-se para a natureza, o mundo
exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita,
nas florescentes colônias da Ásia Menor6 e do sul da Itália, tendo o seu início nos
fins do século VII e o seu término dois séculos depois.
^ Em grego, cosmos significa "mundo"e por isso esse período recebeu o nome de cosmológico. 5 Em grego, ântropos significa "homem" e por isso esse período recebeu o nome de antropológico. 6 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhe-
cemos hoje como Turquia.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 28
A escola jônica A primeira expressão dessa fase, inaugurando por assim dizer o pensamento
ocidental, é a chamada escola jônica, que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao
longo do século VI. Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas
em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo, "matéria
animada" ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto
(624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas.
Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primordial seria o
apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para
Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, este princípio era o ar.
O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470
a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial é o movimento, o eterno
vir-a-ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir-a- -
ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será
reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre
as oposições. Por esse motivo Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual
considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de
Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio,
pois ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro por conta do
contínuo fluxo das águas. E como as coisas mudam constantemente, aquele
homem já não será o mesmo homem que da primeira vez.
Pitágoras e a escola itálica Pitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em
Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele,
o princípio primordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas
relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir-a-ser é explicado
pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ím-
pares são paradigmáticos. Esse conflito é reconduzido ao equilíbrio pela harmonia
matemática que rege o universo todo, tanto material quanto moral. Outros repre-
sentantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas deTarento.
Xenófanes e a escola eleata Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu
fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor.
Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para
quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno,
representado como um esfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não
passa de ilusão.
Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é
famoso pelas controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do
Sócrates e a filosofia moral ocidental
29 ■
movimento.
A escola pluralista Empédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a
doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro ele-
mentos fundamentais - a terra, a água, o ar e o fogo -, explicando a multiplicidade
e a mudança dos fenômenos mediante as várias recombinações desses elementos.
Como Heráclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o
amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos
quatros elementos.
Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma
infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, para
explicar a variedade das coisas. O nous é a inteligência imanente que controla e
seleciona essas partículas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua
similaridade.
Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, naTrácia7, é o maior re-
presentante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Par-
mênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos,
denominados átomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à diversi-
dade de tamanho e à conseqüente diversidade de gravidade de cada uma dessas
partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constituiriam a razão de tudo.
Os sofistas e a arte da persuasão De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas, relatadas em Histórias,
de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor,
revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas cidades do
continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos
sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que torna-se o eixo social,
político e cultural do universo grego. É o chamado século de Péricles8, quando a
democracia encontra-se em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria
fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característica essencial
que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação
de representantes eleitos. Ora, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas
assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos oratórios. Aqui entram os
sofistas, mestres da eloqüência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias
das classes mais abastadas a arte da persuasão.
Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória,
os sofistas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam
eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis.
7 ATrácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia. 8 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um período de esplendor para Atenas, no qual
conviveram grandes nomes como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 30
Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preo-
cupação com a natureza, que esteve no centro das atenções dos pensadores an-
teriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano - daí também o
nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. "Com efeito, os sofistas
operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da
physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como
membro de uma sociedade" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73).
Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofistica - junto
com Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) -, dizia que o homem
é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma
abertura para o subjetivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas
significa dizer "que as coisas são como lhe parecem; não, porém, como aparecem
ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc ["aqui e agora"]: é
verdadeiro - e é bem - o que aparece como tal a cada qual e a cada momento"
(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem
acusados de relativistas e céticos - para os relativistas, tudo pode ser verdade,
enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade.
É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filosofia
grega em antes e depois dele.
0 filho da parteira Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira,
desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixando
levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrário dos
outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos,
como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre
os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e a sua atitude crítica
foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as parcelas influentes da
sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade
diante dos deuses da cidade.
Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos
71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta - um veneno extremamente letal, extraído
da planta de mesmo nome -, depois de ter recusado os projetos de fuga propostos
por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada
ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que
preferiu morrer em vez de negar suas convicções.
Sócrates não escreveu nada: tudo que sabemos de sua pessoa nos chegou por
meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão - e não são poucos os debates
da crítica para estabelecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que
Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao
Sócrates e a filosofia moral ocidental
31 ■
contrário destes, ele não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano
individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral,
com propósitos morais.
Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a
opinião, a doxa - mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele
transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racional e
perene. Esse conhecimento estaria dentro de cada um. Para encontrá-lo, Sócrates,
um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de mai- êutica, um
método que consiste em "parir", "dar à luz" ideias complexas a partir de perguntas
simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu
método: A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35)
Daí também a sua máxima: gnothiseauton, "conhece-te a ti mesmo". O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conhecimento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofundamento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33)
Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a
virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de
mais nada, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chama- vam-na areté,
"significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor
ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa,
fazendo-a ser aquilo que deve ser"(REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele
nos diz que a causa do mal é a ignorância: se conhecêssemos o bem, não
praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição
suficiente e necessária para a obtenção da areté. O autodomínio e a liberdade são
as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria
felicidade ou infelicidade.
Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? "O homem é sua alma, en-
quanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer
outra coisa. E, por a/ma, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa
atividade pensante e eticamente operante" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso,
a essência do ser humano - segundo Sócrates - é sua psyché. Nesse sentido, ele é
considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente.
Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua
máxima "só sei que nada sei"é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus
discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incor-
porado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da
relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é per-
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 32
passada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa "a arte de
interrogar". Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que
aquele com quem estava dialogando na verdade estava ignorando o que julgava
conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da
própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade.
Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou-nos
que a filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado
somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se
deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a
liberdade, o amor, a amizade, a verdade - questões que nos tocam a todos. Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chauí afiança que
[...] o maior erro dos juizes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUÍ, 2000, p. 155)
Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo
até hoje, não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do
edifício da moral do Ocidente.
Texto complementar Sócrates e Polo (PLATÃO, 1986, p. 98-102)
SÓCRATES: - [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argumentação,
respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós - eu, tu e toda gente -
julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que expiá-la não a
expiar.
POLO: - Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não
tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la?
SÓCRATES: - Eu? Sim, como tu e toda gente.
POLO: - Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais.
SÓCRATES: - Então, não vais responder?
POLO: - Mas como não? Estou até ansioso por saber o que, afinal, vais dizer!
SÓCRATES: - Então, para o saberes, faze de conta que estou principiando a inter-
rogar-te e dize-me, Polo, o que achas pior: praticar uma injustiça, ou sofrê-la? POLO: - Sofrê-la, ora!
SÓCRATES: - E o que é mais feio? Ser autor ou ser vítima duma injustiça? Responde.
POLO: - Ser autor.
SÓCRATES: - Sendo mais feio, não é, então, pior?
POLO: - Absolutamente não.
SÓCRATES: - Compreendo. Não consideras a mesma coisa, parece, o belo e o bom,
o mau e o feio.
Sócrates e a filosofia moral ocidental
33 ■
POLO: - Não, realmente.
SÓCRATES: - Que dizes a isto? Todas as coisas belas, como objetos, cores, formas,
ressonâncias, costumes, é sempre sem relação alguma que lhes atri- buis a beleza?
Por exemplo, comecemos pelos objetos belos; não os chama belos tendo em vista,
em cada caso, os fins a que servem, ou algum prazer, caso se delicie quem os
contempla? Fora desses pontos de vista, podes mencionar alguma outra razão da
beleza dos objetos? POLO: - Não posso.
SÓCRATES: - Não se dá o mesmo com tudo mais? Formas, cores, não as declara
belas em razão de certo prazer ou certa utilidade, ou por ambos os motivos? POLO: - Sim.
SÓCRATES: - Não é assim também quanto às ressonâncias e tudo que concerne à
música? POLO: - Sim.
SÓCRATES: - Outrossim, no tocante às leis e costumes, sem dúvida, os que são
belos não fogem a estas qualificações de úteis, agradáveis, ou ambas as coisas. POLO: - Acho que não. SÓCRATES: - À beleza de instrução sucede o mesmo, não é?
POLO: - Por sem dúvida! Agora, Sócrates, estás acertando, quando defines o belo
pelo prazer e pelo bem.
SÓCRATES: - Portanto o feio será aferido pelos opostos, pela dor e pelo mal. POLO:
- Forçosamente.
SÓCRATES: - Quando, portanto, de duas coisas belas, uma seja mais bela, assim é
porsobrelevar num dos dois predicados referidos, ou em ambos, isto é, ou no
prazer, ou na utilidade, ou nesta e naquele. POLO: - Perfeitamente.
SÓCRATES: - E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por so-
brelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim? POLO: - É, sim.
SÓCRATES: - Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injustiça? Não
dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio? POLO: - Dizia.
SÓCRATES: - Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais
doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também
forçoso? POLO: - Como não?
SÓCRATES: - Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça so-
breleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas.
POLO: - Isso, Sócrates, absolutamente não.
SÓCRATES: - Então, não é em dor que sobrelevas?
POLO: - Não, por certo.
SÓCRATES: - Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos.
Tópicos da Filosofia da Educação
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POLO: - Não, é claro.
SÓCRATES: - Resta, pois, a outra razão?
POLO: - Sim.
SÓCRATES: - O dano?
POLO: - Naturalmente.
SÓCRATES: - Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que
sofrê-la. POLO: - Claro que sim.
SÓCRATES: - É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também
concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima? POLO: - Sim. SÓCRATES: - E revelou-se agora pior. POLO: - Aparentemente.
SÓCRATES: - Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o primeiro?
Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, confia-te
bravamente ã razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta.
POLO: - Bem, Sócrates, eu não preferiria.
SÓCRATES: - Alguém no mundo o faria?
POLO: - Não creio, a pensar assim.
SÓCRATES: - Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra
pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso.
Atividades 1. Segundo o princípio primordial que os filósofos naturalistas ou cosmológi-
cos aventaram para a origem das coisas, relacione a coluna da esquerda com a da
direita.a) Anaximandro de Mileto b) Demócrito c) Pitágoras d) Tales de Mileto e) Empédocles f) Anaxímenes de Mileto g) Heráclito A água.
O apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento). O ar. Terra, água, ar e fogo.
O movimento, o vir-a-ser representado pelo fogo. O número. O átomo.
2. Com base no conceito de maiêutica e no exemplo desse conceito apresentado
no texto complementar, vamos fazer um exercício prático.
Para tanto, vamos dividir a turma dois a dois. Em cada dupla, um faz o papel de
Sócrates e a filosofia moral ocidental
35 ■
Sócrates e o outro o de interlocutor do filósofo. O primeiro, com base no conteúdo
da aula, deve procurar extrair a verdade a partir do método socrático de pergunta e
resposta. O segundo deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a
ideias mais pertinentes e perspicazes. Depois, os alunos devem registrar os
resultados.
Eis alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálogos
socráticos:
■ A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país.
■ A mulher só se realiza plenamente na maternidade.
■ Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua.
Tópicos da Filosofia da Educação
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3. Leia abaixo uma letra do compositor Chico Buarque.
Bom conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim não sei de onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método
socrático?
Para produzir filosofia Em um país de alfabetização tardia e com péssimos índices de leitura, somos
levados a acreditar em qualquer opinião apresentada em letra impressa. Mas
nem sempre essas opiniões são o resultado de uma reflexão de índole filosófica,
isto é, que vai até a raiz do problema. Muitas vezes, elas não passam do que
realmente são, isto é, uma opinião. A exemplo de Sócrates, procure desconstruir
o que há de superficial - isto é, atrelado ao senso comum - em algumas das
Sócrates e a filosofia moral ocidental
37 ■
ideias veiculadas nos jornais da imprensa diária.
Platão e o nascimento da razão ocidental Platão: atleta e poeta
Ao contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes populares,
Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei
Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1.
Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aris- tócles.
Tópicos da Filosofia da Educação
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Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlético (ombros
largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era
natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20
anos de idade travou contato com Sócrates - 40 anos mais velho - e por oito
anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do
mestre imprimiu uma marca em todas as fases de seu pensamento. Ele
passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo
dirigido pelos mais sábios e capazes.
A partir disso, fez várias viagens com o intuito de instruir-se. Conheceu o
Egito, o sul da Itália, (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília
(onde não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo
sido vendido como escravo, sendo resgatado mais tarde).
De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói
Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates
e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu
grande prestígio, a ela acorrendo homens de todos os cantos e ali sendo
desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo. O ideal da educação autônoma significa:
Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25
anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se baseava nos privilégios de
nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas
posteriormente.
■ em primeiro lugar, ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do
pensamento apenas com a verdade; ■ em segundo lugar, estimular a autodeterminação ética e política.
Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos
no Mênon, que é um dos textos de Platão, "o dever de procurar o que não sabe-
mos". Em vez de transmitir valores éticos e políticos, a Academia ensina a criá-
los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre
outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito
socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante,
sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUÍ, 2000, p. 175).
Finalmente, em 347 a.C., aos 80 anos de idade, reconhecido e admirado,
morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De sua grandeza
nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX:"Poucos filósofos,
se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o supe-
rou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se
ignorá-lo" (RUSSELL, 2002, p. 107).
Praticamente toda a sua produção chegou até nós, compreendendo 36 diá-
logos, 13 epístolas e uma coleção de definições, esta provavelmente apócrifa -
isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não
há certeza se a sua autoria realmente é do mestre. Seu interesse abarca as mais
Platão e o nascimento da razão ocidental
39 ■
diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática, retórica, arte, política etc.
Suas obras mais importantes e conhecidas são: ■ Apologia de Sócrates, em que resgata os pensamentos do mestre; ■ O Banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialética;
■ A República, em que analisa desde a política e a ética até questões metafí-
sicas, como a imortalidade da alma.
No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platônico
diz respeito às "doutrinas não escritas". Antigas fontes referem que, na Academia,
Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, "O
conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os
outros conhecimentos" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos,
esse aspecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e
essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos
discípulos de Platão. Além disso, é bom ter presente que Platão, a despeito de ter
expulsado de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por
trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no
recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos.
No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É ver-
dade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré- -
socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma
influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de em seus
livros, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil distinguir aquilo que é do
mestre e aquilo que é efetivamente de Platão. Assim, é por meio dos textos de
Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado
seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre.
As vigas do pensamento platônico Assim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático,
moral: a incumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao
contrário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano,
Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também
distingue um conhecimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento
intelectual (a ciência, a episteme). Mas enquanto Sócrates fazia derivar o segundo
do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectual não pode
se originar do conhecimento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João
da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única realidade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pálidas representações daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 40
Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa
teoria de Platão: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o "exemplar" isolado do cavalo, este sim "flui", "passa". Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira "forma do cavalo" é eterna e imutável.
Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa mente são eternos e
imutáveis, e por isso, necessários9. São os arquétipos, isto é, formas ou modelos
espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são formados. A realidade, por
sua vez, é mutável e imperfeita, ou seja, contingente10. O conhecimento por meio
dos sentidos e o conhecimento por meio da razão trazem resultados com-
pletamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender
simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões não
raro contraditórias e superficiais sobre a realidade.
No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é funda-
mental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre
quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria con-
templado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse processo
dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata-se, todavia, do nível mais
baixo do conhecimento.
O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que
implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos a que estamos
acostumados. O conhecimento, para Platão, passa ainda por três níveis
fundamentais:
■ o conhecimento sensível, que é efetuado pelos sentidos no mundo dos
fenômenos;
■ o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemática, a
única ciência que possui uma natureza não corpórea;
■ o conhecimento intelectivo, ao qual só a filosofia é capaz de levar, por
meio de um corte completo com a experiência sensorial.
Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno,
universal e inteligível.
Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do
qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam:
■ a beleza;
■ a proporção;
9 Necessário, em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável.
10 Contingente, em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe mas poderia não existir.
Platão e o nascimento da razão ocidental
41 ■
■ a verdade.
Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias,
unas e imutáveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua
unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir-a-ser. E,
embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder
criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que
superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o
mundo, extraindo o cosmos do caos.
Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm
uma função mediadora entre as ideias e a matéria.
Segundo Platão, existem três tipos de alma:
■ alma concupiscente, própria dos vegetais;
■ alma irascível, própria dos animais;
■ alma racional, exclusiva do ser humano.
Mas no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarqui-
camente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na
cabeça e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, associada à
vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma
concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital, a
moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtudes
obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça
e a felicidade.
Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser
humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma
moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se
além deste mundo, na contemplação do mundo das ideias.
Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as
almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível
voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um
lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos
nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado.
Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal
e nela haveria basicamente três classes: ■ a dos filósofos, encarregados da direção do estado; ■ a dos guerreiros, responsáveis pela sua defesa;
■ a dos produtores - agricultores e artesãos -, os quais, submetidos aos outros,
seriam os responsáveis pela sua sustentação econômica.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 42
Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em
choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os
primeiros em proveito dos últimos.Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo
ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de mais nada, o Estado deve zelar
pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um
segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos.
0 legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por
grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao
mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das
ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições - que seriam reforçadas
mais tarde pelo cristianismo - para que se produzisse durante muitos séculos
uma repulsa profunda por tudo que estivesse relacionado com a ordem material
e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espírito, da
mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria
suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensa-
dores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde desconstruir essa herança.
Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosófico
e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua
influência.
Textos complementares Imaginemos uma caverna separada do mundo (CHAUÍ, 2000, p. 195)
Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja
entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após
geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para
a entrada nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo
e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro,
uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo
com que as coisas que se passam no mundo exterior
sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do
muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de
homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da caverna.
Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que
os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos
prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um
instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna. No
primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus
olhos não estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o
mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as
próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja
ficar longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que
Platão e o nascimento da razão ocidental
43 ■
viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era
íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso
habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à
luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem
falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e
correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.
0 amor platônico (WEISCHEDEL, 2006, p. 47-57)
Comumente entende-se [o amor platônico] por ser aquele amor no qual, em
primeiro plano, não se encontra a cobiça sexual, mas antes, uma atração
espiritual. Mas porque ele levaria o nome de Platão? De fato, folheando a obra de
Platão, em parte alguma se encontram sinais de respeito às mulheres. Pelo
contrário, afirma que são bem menos virtuosas que os homens, superficiais,
pusilâmines, traiçoeiras e supersticiosas. Aqueles homens que tivessem sido
covardes e injustos, após a morte, como punição, renasceriam mulheres. O ca-
samento não passa da tarefa de produzir uma descendência. Assim, Platão não
nos oferece uma imagem romântica do amor entre homem e mulher.
Na Grécia daquela época, mais que entre homem e mulher, havia ainda uma
outra espécie de relação amorosa: a relação de um homem mais velho com um
rapaz. Sócrates, seu mestre, ininterruptamente procura o trato com belos rapa-
zes. Mas o relacionamento de Sócrates com os adolescentes não é da espécie
usual de relação amorosa. Aí podemos ver algo do que significa "o amor platô-
nico". Em O Banquete, isso é expresso no discurso que o jovem Alcebíades pro-
fere para Sócrates. Aquele amor que, com plena intensidade, dirige-se ao outro,
mas que simultaneamente se contém, aquele "amor platônico" portanto, está
intimamente ligado ao modo de ser de Sócrates como praticante da filosofia e ao
modo como Platão, então, concebe a essência da filosofia: como sendo
essencialmente amor.
A experiência de Alcebíades com Sócrates mostra que o amor filosófico não é
o amor sensual. E a essência desse amor seria a saudade do belo, pois isso é que
de fato é eterno no homem. Dessa forma, portanto, torna-se claro o sentido mais
profundo do"amor platônico"; que não consiste tão somente na repressão da
cobiça sensual, em vez disso, concede-lhe a essa seus direitos limitados, mas os
exalta a uma forma mais elevada de desejo, para além da beleza dos corpos, das
almas, da condução da vida e do conhecimento: o "amor platônico" insta pela
beleza em si mesma. O amor consiste na aspiração pelo arquétipo do belo, do
qual tudo o que é belo participa, ou seja, na aspiração pela ideia do belo.
Assim, o "amor platônico" está estreitamente relacionado com a grandiosa
realização do pensamento de Platão que entraria para a consciência do espírito
ocidental: sua doutrina das ideias. Em suas reflexões, Platão descobre que o
homem sabe desde sempre, originariamente, o que é justiça e o que são as
outras virtudes. Ele traz em sua alma a ideia de todos esses retos modos do com-
portamento, os quais podem e devem determinar a sua ação. Mas essa conexão
entre realidade e ideia não diz respeito apenas ao campo da ação humana.
Também o que seja uma árvore só o sabemos desde que tenhamos em nós a
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 44
ideia da árvore. O conhecimento da realidade total só se torna possível quando o
homem possui em sua alma arquétipos de tudo o que é, podendo então dizer:
isto é uma árvore, aquilo é um animal; isto é um crime, aquilo é uma boa ação.
Isso significa que todo o real é o que é enquanto participa de seu arquétipo e
enquanto aspira a tornar-se semelhante a ele. A árvore quer ser tanto quanto
possível árvore; o homem, tanto quanto possível homem; a justiça, tanto quanto
possível, justiça. O mundo é um lugar de incessante ímpeto pela perfeição, de
amor pela ideia, pois as ideias são o real imaginário. As coisas são meras cópias
das ideias e, portanto, de diminuto grau de realidade. As ideias estão livres de
toda a transitoriedade.
O conhecimento das ideias tem de ser atribuído ao homem antes de sua exis-
tência temporal, em uma existência anterior ao nascimento. Quando reconhece
uma coisa, isso significa que o homem se lembra de uma contemplação originá-
ria dessa ideia, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal. Por-
tanto, conhecer é relembrar. Assim, a teoria da ideia conduz necessariamente à
suposição de uma preexistência da alma e a certeza da imortalidade. Dessa exis-
tência anterior, fala-nos Platão através do diálogo Fedro, a qual deixa no homem,
por toda sua vida, uma certa nostalgia. O filósofo, por sua natureza, aspira ao ser.
A paixão daquele que filosofa é, portanto, a significação última do"amor platôni-
co'̂ sem ela não haveria nenhuma procura verdadeira pelo eterno.
Atividades 1. Com base no texto complementar de Marilena Chauí ("Imaginemos uma ca-
verna separada do mundo"), qual é a mensagem deixada por esse mito? E, no
seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? O que a educação pode
fazer para ajudar os educandos a libertarem-se de suas cavernas?
2. Segundo as principais linhas do da esquerda com a da direita.
a) As coisas (
b) Os conceitos ou ideias (
c) A alma concupiscente
d) A república ideal
e) O mundo das ideias í
f) A realidade (
pensamento platônico, relacione a coluna
) só pode ser intuído pela razão.
) é contingente.
) é própria dos vegetais.
) são cópias imperfeitas de arquétipos de modelos ideais. ) é governada pelos filósofos.
Platão e o nascimento da razão ocidental
45 ■
) são necessários.3. Quanto ao legado de Platão, assinale a única alternativa correta.
a) É o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do
Ocidente.
b) Não poucos pensadores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde
reformular, a partir de novas bases, a herança de Platão.
c) É o principal responsável pela repulsa concernente a tudo que esteja re-
lacionado com a ordem material e sensível.
d) É incompatível com a dogmática cristã, que desde o princípio preferiu a
filosofia de Aristóteles.
e) Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na
identidade ocidental, nós devemos mais a Sócrates que a Platão.
Para produzir filosofia Com base no segundo texto complementar ("O amor platônico"), qual é a
relação da expressão "amor platônico" com as ideias de Platão?
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos
saberes Filho de médico, mestre de príncipe
Se elementos da filosofia platônica persistem nos substratos inconscientes
do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensamento de
Aristóteles, seu mais famoso discípulo, foi praticamente hegemônico. E ainda
é cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma
fase pós-aristotélica.
Diferentemente de Sócrates e Platão, Aristóteles era estrangeiro em
Atenas: sua família era de Estagira, colônia grega da Trácia, na fronteira com a
Macedônia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de
Estagira, por vezes ele é chamado de o Estagirita. Seu pai foi médico na corte
de Macedônia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e avô de
Alexandre. Graças a essa influência, o futuro filósofo beneficia-se desde cedo
de uma atmosfera de pesquisa empírica, experimental, sem dúvida alguma
decisiva para os vários tratados sobre questões biológicas que escreveria mais
tarde.
Aos 18 anos de idade, já órfão, ele mudou-se para Atenas, ingressando na
Academia platônica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os
maiores nomes do pensamento da época. Todavia, com a morte de Platão,
Aristóteles se afastou da escola, já que a direção desta tendia para áreas que
não eram inteiramente de seu interesse.
Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela Ásia Menor, vivendo e le-
cionando em várias cidades, em uma fase importantíssima de sua vida, até
que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macedônia o convocou para a corte,
encarregando-lhe da educação de seu filho, Alexandre, o Grande.
Pouco depois da ascensão de Alexandre ao trono, em 336, Aristóteles re-
tornou a Atenas, onde funda uma escola própria, o Liceu, assim denominado
por conta do templo dedicado a Apoio Lício, que ficava nas proximidades.
Em virtude do seu hábito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de
Perípatos, que significa "passeio", e os seus seguidores foram perípatéticos. "Foram
esses os anos mais fecundos na produção de Aristóteles, o período que viu o
acabamento e a grande sistematização dos tratados filosóficos e científicos que
chegaram até nós" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175).
Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelião contra a domi-
nação macedônica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristóteles foi
acusado de impiedade, como o fora Sócrates. No entanto, sem a mesma vocação
para o martírio, Aristóteles fugiu para Cálcis, onde havia uma propriedade sua,
deixando a direção do Liceu com Teofrasto, um de seus discípulos. Com apenas
poucos meses de exílio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos de idade.
Os escritos de Aristóteles Os escritos de Aristóteles chegam às centenas - não faltando autores antigos
que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo é que os textos de
Aristóteles dividem-se basicamente em dois grandes grupos:
■ os escritos exotéricos, destinados ao grande público, compostos sobretudo em
forma de diálogos, à semelhança de Platão;
■ os escritos esotéricos, de aspecto mais didático, produzidos para os alunos e,
em alguns casos, pelos próprios alunos, como notas tomadas das aulas do
mestre - a maior parte do que nos chegou pertence a este segundo grupo.
No entanto, a primeira edição completa de suas obras só veio a lume pela
metade do último século antes de Cristo, graças ao esforço de Andrônico de Rodes,
seu décimo sucessor na direção do Liceu. A classificação tradicional do corpus
aristotélico, como a que se segue, tem por base essa edição:
■ Escritos lógicos - esse conjunto de escritos sobre a lógica, que Aristóteles
considerava um instrumento indispensável da ciência, recebeu mais tarde o
título de Organon.
■ Escritos sobre a física - esse grupo abrange as obras de ciências naturais e a
Psicologia.
■ Escritos metafísicos - essa compilação, feita depois da morte do filósofo por
meio de seus apontamentos, refere-se à metafísica, cujo nome foi dado devido
ao lugar que ocupa na coleção de Andrônico, isto é,"depois da física".
■ Escritos morais e políticos - a Ética a Nicômaco, assim chamada porque é de-
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
55 ■
dicada a Nicômaco, seu filho; a Ética a Eudemo, inconclusa, considerada hoje em
dia uma versão mais antiga do livro anterior; a Grande Moral, compêndio das
duas precedentes, em especial da segunda; e a Política, também incompleta.
■ Escritos retóricos e poéticos - a Retórica e a Poética, que, no seu estado
atual, é apenas uma parte do que Aristóteles escreveu.
Quanto à abrangência e à grandeza do empreendimento aristotélico e o estilo
em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado comentário
de Will Durant (2000, p. 75): Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grécia: todos os problemas abaixo e ao redor do sol têm um lugar nela [...]. Aqui está uma síntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar até a época de Spencer, e mesmo então com uma magnificência que não chegava à metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitória de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia é a procura da unidade, Aristóteles merece o elevado título que 20 séculos lhe deram: llle Philosophus - O filósofo. Naturalmente, a um espírito de tal pendor científico faltava a poesia. Não devemos esperar de Aristóteles o brilhantismo literário que inunda as páginas do filósofo-dramaturgo Platão. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristóteles nos dá ciência, técnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos à literatura, como fez Platão, ele construiu a terminologia da ciência e da filosofia; praticamente não podemos falar de qualquer ciência, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fósseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, média, máxima [...], categoria,
energia, realidade, motivo, fim, princípio, forma - estas indispensáveis moedas do pensamento filosófico foram cunhadas em sua mente.
Com Aristóteles, assistimos à passagem de uma filosofia ainda tateante a uma
filosofia madura, rigorosa, autônoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer
outro antes dele, o domínio do logos sobre o mythos, da razão sobre a imaginação.
Podemos afirmar ainda que com o filósofo de Estagira se manifesta, pelo menos em
seus princípios epistemológicos, o que viria a ser a ciência ocidental.
Só o individual é real Para compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de
Aristóteles é preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formação prática
herdada de seu pai e a força da filosofia platônica. São duas tendências opostas que
encontrarão nele uma síntese original, a formação prática funcionando como ponto
de partida e pano de fundo para a superação da filosofia platônica. Assim, em
Aristóteles a pesquisa empírica fornece o instrumental para a refutação da teoria
platônica das ideias. Em outros termos, em Aristóteles é formulada uma filosofia
realista em comparação ao pensamento idealista de Platão.
O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrário de
Platão, que somente o individual é real: o que realmente existe é o indivíduo
material concreto. Esse indivíduo concreto seria o constituinte último da realidade,
a qual, mais do que uma manifestação imperfeita do mundo das ideias, é composta
pelo conjunto de indivíduos materiais e concretos existentes.
Além disso, para Aristóteles a experiência é a única fonte de conhecimento
autêntico: contra Platão, ele postula que não existem ideias puras a serem in-
vestigadas ou procuradas por trás das aparências. A inteligência humana conta
Tópicos da Filosofia da Educação
56
apenas com o que está acessível aos sentidos. Dessa forma, no intelecto não há
nada que antes não tenha passado pelo concreto. Trata-se de interessar-se ime-
diatamente pelas coisas, pois é a partir delas que se extraem as ideias.
Aprofundando a análise, Aristóteles afirma que o indivíduo concreto - o único
real e existente - é constituído de matéria e forma."A matéria é o princípio da in-
dividuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se"
(MARCONDES, 2000, p. 72). Assim, cada indivíduo tem uma matéria específica,
particular, e uma forma comum, partilhada com os indivíduos da mesma espécie.
Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma
forma específica.
A fim de compreendermos melhor, vejamos o exemplo da estátua: na estátua, a
matéria é o mármore ou o bronze, por exemplo; e a forma é a bela Afrodite ou o
feio Sócrates.
E só o individual é real. O universal, por sua vez, somente existe em nossa
mente por meio da abstração. O caminho por meio do qual o intelecto chega ao
conhecimento é a abstração - que é o processo segundo o qual a inteligência
separa matéria e forma. O conhecimento dá-se quando relacionamos os objetos
que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas
características particulares.
Formulemos um exemplo de abstração: pelos sentidos, conheço um ser, iden-
tifico que ele é semelhante a outros da mesma espécie.Trata-se de um mamífero
ruminante que chamamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro, não
há um mundo das ideias onde exista uma vaca arquetípica, modelo para todas as
vacas do universo. O que existe de fato é essa vaca particular, que posso ver com
os meus olhos. Mas, por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum
a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que
a ideia que tenho da vaca é a sua essência11. É a partir dessa ideia que reconheço
uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem os seres individuais que eu percebo
pelos sentidos.
A metafísica O interesse de Aristóteles pelo individual e pelo real não o impediu, porém, de
investigar as realidades não diretamente apreensíveis pelos sentidos. Se ele é
considerado o pai da lógica e da ciência, também é o pai da metafísica. Para essas
realidades suprassensíveis, Aristóteles desenvolveu o que ele chamou de filosofia
primeira, a qual, com Andrômico, ganharia o nome com que se tornaria
mundialmente conhecida: metafísica.
Esta é a ciência que se ocupa com as realidades que estão para além das reali-
dades físicas {meta, em grego, significa "depois, além de"). O conceito de filosofia
primeira é extremamente complexo em Aristóteles, não havendo uma definição
** A distinção entre essência e existência é uma das classificações da metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela
essência, ele passa a participar de determinada espécie de ser. A essência é, portanto, nada mais que um modo do existir.
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
57 ■
única. Basicamente, o filósofo estabeleceu quatro definições. Assim, metafísica ou
filosofia primeira é:
■ a ciência que indaga causas e princípios;
■ a ciência que indaga o ser enquanto ser;
■ a ciência que investiga a substância;
■ a ciência que investiga a substância suprassensível.
Os conceitos de matéria e forma, ato e potência, substância e acidente possuem
papel capital na metafísica aristotélica. Para ele, existem quatro causas implicadas
na existência de algo, conforme abaixo.
■ Causa material - é aquilo de que, como material imanente, provém o ser de
uma coisa, isto é, fornece alguma coisa para o ser. ■ Causa formal - é a forma ou modelo, isto é, a definição da essência.
■ Causa motora ou eficiente - é aquilo que se origina da mutação ou da
quietação da coisa. Por exemplo, o conselheiro é a causa da ação, o pai é a
causa do filho e, de modo geral, o autor é a causa da coisa realizada, o agente
modificador é a causa da alteração.
■ Causa final - é aquilo para o que a coisa é feita, como a saúde é o fim dos
exercícios físicos, de modo que à pergunta:"para quê se faz ginástica" geral-
mente se responde: "para alcançar ou conservar a saúde física". Para exemplificar essas quatro causas, tomemos, um vaso de argila. ■ A causa material é a argila, a matéria de que o vaso é feito.
■ A causa formal é a forma, o formato em que essa argila está disposta para se
constituir em um recepiente ao qual damos o nome de vaso e não, por exemplo,
de tijolo.
■ A causa eficiente ou motora é o oleiro que trabalhou a argila, produzindo o
vaso.
■ A causa final, o objetivo do vaso, o fim para o qual foi feito esse determinado
objeto é, portando um arranjo de flores, servir de enfeite para um ambiente. Aristóteles distingue ainda a essência e os acidentes.
A essência é aquilo que dá identidade a um ser e na falta dela esse ser não pode
tornar-se o que é, não sendo reconhecido como tal. Assim, um livro sem nenhum
tipo de letras não pode ser considerado um livro, pois o fato de ter letras impressas
é o que o permite ser identificado como livro e não como caderno, por exemplo.
O acidente, por sua vez, é algo que pode ou não ser inerente a um determinado
ser, mas que, mesmo quando ausente, não o descaracteriza. Desse modo, o
perfume de uma flor é um acidente, pois uma flor não deixará de ser flor por lhe
faltar o perfume. A sua cor também é um acidente: por mais que uma flor tenha
necessariamente alguma cor, ainda assim o fato de ser amarela ou vermelha não
Tópicos da Filosofia da Educação
58
lhe faz ser o que ela é.
Todas as coisas que existem, existem em potência e ato, ensina Aristóteles.
Uma coisa em potência é uma coisa que tende a ser outra, tal como a semente, que
é uma árvore em potência. Em outras palavras, potência é aquilo que ainda não é,
mas que preexiste realmente como possibilidade de vir a ser. Segundo Aristóteles,
"das coisas não existentes, algumas existem em potência, por não existirem em
ato".
Uma coisa em ato é algo que já está realizado, o ser enquanto já é, como uma
árvore é uma semente em ato. De algum modo, o ser em ato pressupõe deter-
minação e perfeição.
A principal determinação é a da existência: é a determinação na ordem do ente.
A determinação dá-se também na ordem da essência, enquanto esta apresenta
essa ou aquela fisionomia. Ademais, todas as coisas, mesmo em ato, também são
em potência, pois uma árvore - uma semente em ato - também é uma folha de
papel ou uma cadeira em potência.
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
59 ■
A única coisa que é totalmente em ato é o ato puro, que Aristóteles identifica
com o bem. Esse ato não é nada em potência, nem é a realização de potência
alguma - desse conceito, mais tarde São Tomás de Aquino derivaria a sua noção de
Deus como ato puro.
E há potências ativas e passivas. As potências passivas apenas recebem o ato.
As ativas têm a condição de produzir o ato. O homem tem potências como as do
conhecimento e as dos impulsos. Um ser em potência só pode tornar-se um ser
em ato mediante algum movimento. O movimento vai sempre da potência ao ato,
da privação à posse. É por isso que o movimento pode ser definido como o ato de
um ser em potência enquanto está em potência.
Em suma, com esse quadro de conceitos, a metafísica aristotélica inaugura
tanto a investigação da estrutura geral dos seres quanto as condições que fazem
com que um determinado ser possa existir e ser conhecido pelo pensamento.
Assim, postula que a realidade no seu todo é apreensível pelo intelecto, apresen-
tando-se como conhecimento teorético ou teórico dessa realidade sob todos os
seus aspectos gerais ou universais. Além do mais, ela deve preceder as pesquisas
que cada ciência particular realiza sobre um determinado tipo de ser.
0 pai da lógica Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica ocidental, o organon, que em grego
quer dizer "instrumento". Ora, tanto a ciência quanto a filosofia tem por objeto o
universal e o necessário, não se podendo fazer ciência em torno do individual e do
contingente. Assim como a ideia era o alvo da ciência platônica, a forma é o objeto
da ciência aristotélica, a qual, estritamente falando, opera a partir da “dedução do
particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição,
porquanto o primeiro elemento depende do segundo" (PADOVANI; CASTAGNOLA,
1984, p. 126).
Assim, o objeto principal da lógica de Aristóteles é esse processo de derivação.
Portanto, a lógica aristotélica é basicamente dedutiva e demonstrativa, e o seu pro-
cesso característico é o silogismo. Eis como Marilena Chauí a explica: O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este exprime-se logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos, e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros [...]. (CHAUÍ, 2000, p. 183)
Qualquer proposição é composta pelos seus termos ou categorias, que são
palavras que designam algo: Sócrates, morte. Quando emitimos um juízo sobre
algo, estamos fazendo uma combinação desses termos - por exemplo, "Sócrates é
mortal". Esse juízo, combinado com outros, forma um raciocínio. Quando o
raciocínio é formulado de uma forma lógica, chama-se silogismo. Retomando a
frase "Sócrates é mortal", posso elaborar o seguinte silogismo:
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 60
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Em outras palavras, silogismo é a argumentação lógica perfeita, constituída de
três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas
primeiras (denominadas premissas) é possível deduzir uma conclusão.
Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto
formal e o rigor dedutivo.
Pelo aspecto formal se entende que três leis supremas condicionam o seu
exercício e garantem a sua validade:
■ o princípio de identidade (dizer que o que é é, e o que não é não é, é
verdade);
■ o princípio de não-contradição (é impossível que algo seja e não seja ao
mesmo tempo);
■ o princípio do terceiro excluído (uma determinada coisa não pode ser
afirmada e negada ao mesmo).
Pelo rigor dedutivo se entende que, uma vez admitida a verdade de certas
proposições (premissas), as conseqüências que daí resultam são necessariamente
verdadeiras.
Com esse rigoroso modelo de lógica formal, Aristóteles estabeleceu a meto-
dologia que permearia toda a pesquisa científica e a investigação filosófica do
Ocidente até praticamente a Idade Moderna.
Ajusta medida e o bem comum A ética e a política também estão entre as grandes contribuições de Aristóteles.
Para falarmos da primeira, é preciso antes nos reportarmos à sua teoria da alma. De
Platão ele empresta a divisão tripartite da alma, segundo a qual a alma se divide em
alma concupiscente, alma irascível e alma racional. Se todos os seres vivos
possuem a alma concupiscente (a vida vegetativa, já que todos têm um
metabolismo), e a alma irascível é partilhada tanto pelos animais quanto pelo ser
humano (a sensibilidade), somente o ser humano é detentor de uma alma racional.
Ora, a ética só intervém nesse último nível, no nível racional.
Sendo a razão o distintivo do ser humano, ele só pode realizar a sua verdadeira
natureza vivendo racionalmente. E assim, mediante a virtude, que é uma atividade
conforme a razão, ele alcança a felicidade.
Com efeito, o fim do ser humano é a felicidade, que ele atinge por meio da
virtude, a qual é necessária à razão. Por esse motivo, pode-se afirmar que a carac-
terística fundamental da ética aristotélica é o racionalismo. Além disso, As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas;
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
61 ■
mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 132)
Essa "ação com ciência" se manifesta precisamente na escolha do justo meio
entre dois extremos, ou seja, entre duas paixões opostas, já que os impulsos e as
paixões tendem ao excesso ou à carência. A razão deve impor a justa medida entre
um e outro extremo. É justamente nesse meio-termo, nesse equilíbrio, que se
encontra a virtude. "A coragem, por exemplo, é o meio caminho entre a temeridade
e a vileza, ao passo que a liberalidade é o justo meio entre a prodigalidade e a
avareza" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205). Obviamente, a justa medida não é
abstrata, nem é a mesma para todos e em todo o tempo, pois é concreta e variável
conforme as paixões em jogo, o indivíduo e as circunstâncias.
Além disso, se a virtude é uma atividade segundo a razão, ela também é um
hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição da vontade. Como o
conhecimento, que exige esforço e disciplina, a virtude não é inata, mas adquirida
mediante a prática, o exercício. Porém, uma vez adquirida, ela torna-se de fácil
execução, quase automática, como uma segunda natureza. Daí a importância da
educação. Daí, também, a importância do Estado, responsável pela educação dos
cidadãos.
Se o objetivo da ética aristotélica é a felicidade do indivíduo, a política aris-
totélica tem por meta a felicidade coletiva da pólis (a cidade-Estado grega)12. Com
este fim, o filósofo investiga as formas de governo e as instituições capazes de
assegurar uma vida feliz ao cidadão. Por isso mesmo, a política situa-se no âmbito
da práxis, isto é, no âmbito das ciências que buscam o conhecimento como meio
para ação.
Ora, assim como o bem comum é superior ao particular, o Estado é superior ao
indivíduo. Unicamente no Estado se realiza a satisfação de todas as necessidades,
pois o indivíduo não pode se realizar plenamente sem a coletividade. O Estado, que
surge como conseqüência da sociabilidade do ser humano, é responsável
primeiramente por prover a satisfação das necessidades materiais, como a defesa e
a segurança. Mas o seu alvo é espiritual: promover, mediante a ciência, a virtude -
e, por conseguinte, a felicidade dos cidadãos. Assim, sua tarefa principal é a
educação, por meio da qual são formados os futuros cidadãos, sobretudo por meio
das artes, como a música e a poesia.
Não obstante a importância do Estado, Aristóteles conserva os direitos indi-
viduais: o Estado é antes de tudo a síntese de indivíduos distintos. Desse modo, ao
12 “ Apesar de, no tempo de Aristóteles, a cidade-Estado grega estar em decadência e de se assistir ao surgimento de um império colossal, o império
de Alexandre, Aristóteles não tem olhos a não ser para a cidade-Estado.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 62
contrário da república de Platão, Aristóteles salvaguarda a família e a propriedade
particular.Todavia, como fazia o seu mestre, Aristóteles admite a divisão de castas,
reconhecendo sobretudo duas: a dos homens livres (os cidadãos da pólis) e a dos
escravos, que eram privados de qualquer direito político. Ademais,
Quanto à forma exterior do Estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade. E cuja degeneração é a demagogia. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 134)
Embora Aristóteles prefira a forma de governo democrática, como a que se
desenvolveu na Grécia - sobretudo em Atenas -, por conta do seu realismo ele tem
consciência de que a forma de governo ideal deve adaptar-se à índole do povo e às
circunstâncias históricas.
Texto complementar
Cada Estado é uma comunidade estabelecida
com alguma boa finalidade (ARISTÓTELES, 2000, p. 143-146)
A observação nos mostra que cada Estado é uma comunidade estabelecida com
alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que
acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou
comunidade política, que é a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o
mais, objetiva o bem nas maiores proporções e excelência possíveis.
É um erro supor que sejam as mesmas as relações entre um estadista e o
Estado, entre um rei e seus súditos, entre um chefe de família e sua casa, entre
senhores e escravos. Com efeito, elas diferem não apenas no tamanho, mas na
espécie. Tamanho não é critério. Não podemos dizer que é um pequeno número de
pessoas que define a relação senhor-escravos; que uma quantidade maior de
indivíduos define o relacionamento do chefe de família com os seus; que um
monarca o é porque se relaciona com numerosas gentes ou, talvez, com uma
comunidade política - como se não houvesse diferenças entre uma enorme família
e um pequeno Estado.
Até mesmo entre comunidades monárquicas e políticas, ou de cidadãos, existe
diferença de espécie; e não é correto dizer que, quando uma pessoa controla todo
o resto, é ele um monarca; e que se trata de um ser político quando o cidadão tem
sua vez de governar ou de ser governado de acordo com os princípios
estabelecidos pela ciência. Isso fica evidente quando examinamos a matéria
segundo nosso princípio: o método analítico. Acostuma- mo-nos a analisar outras
coisas compostas até que não possam mais ser subdivididas; façamos o mesmo
com o Estado e com as partes que o compõem, e entenderemos melhor as
diferenças entre um e outras, e se podemos deduzir algum princípio de
funcionamento de suas partes. [...]
Fora essas duas afinidades, o primeiro ponto a considerar é a família. Hesío do
Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes
63 ■
tem razão ao dizer: "Primeiro o lar, a esposa e um boi para o arado", uma vez que o
boi é o escravo dos pobres.
A família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades
diárias dos homens, e seus membros são chamados, por Charondas, companheiros
do pão; já Epimênides, o Cretense, denomina-os companheiros de comer. Mas,
quando várias famílias estão unidas em certo número de casas, e essa associação
aspira a algo mais do que suprir as necessidades cotidianas, constitui-se a primeira
sociedade, a aldeia. A forma mais natural de aldeia parece ser uma colônia de
famílias com filhos e netos dos quais se diz que foram "criados com o mesmo leite".
Por causa dessa composição, seu governo era inevitavelmente monárquico; é por
esse motivo que as cidades- -Estado helênicas foram, originariamente, governadas
por reis - porque foi assim antes de os helenos se reunirem em cidades, como
acontece ainda hoje com algumas nações bárbaras. [...]
Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante
para ser autossuficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou
Estado - que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de
assegurar o viver bem. Portanto, a cidade-Estado é uma forma natural de
associação, assim como o eram as associações primitivas das quais ela se originou.
A cidade-Estado é a associação resultante daquelas outras, e sua natureza é, por si,
uma finalidade; porque chamamos natureza de um objeto o produto final do
processo de aperfeiçoamento desse objeto, seja ele homem, cavalo, família ou
qualquer outra coisa que tenha existência. Ademais, o objetivo e a finalidade de
uma coisa podem apenas ser o melhor, a perfeição; e a autossuficiência é, a um só
tempo, finalidade e perfeição.
Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o
homem é, por natureza, um animal político.
Atividades 1. Com base no texto complementar da obra Política, de Aristóteles, responda as
questões a seguir. a) Quais são as relações entre a família e o Estado? b) Qual é a origem do Estado? c) Qual é o sentido da afirmação de que o homem é um animal político?
2. Quanto à vida e ao pensamento de Aristóteles, assinale V (verdadeiro) ou F
(falso).
( ) Para Aristóteles, o universal existe em nossa mente somente por meio da
abstração.
( ) Aristóteles é o sucessor de Platão na direção de sua escola, a Academia, também
chamada Liceu.
( ) A metafísica ou filosofia primeira pode ser definida como a ciência que indaga as
causas e os princípios.
( ) A cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na moral
ocidental, é a principal herança da ética aristotélica.
( ) Duas características fundamentais se destacam na lógica aristotélica: o aspecto
formal e a indução.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 64
3. Sobre a metafísica aristotélica, assinale a alternativa correta. a) Metafísica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão aquém das
realidades físicas. b) Para Aristóteles, existem quatro causas implicadas na existência de algo: a
causa material, a causa formal, a causa motora e a causa eficiente. c) Uma coisa em potência é uma coisa que tende a permanecer sempre em
repouso até que uma força a desperte. d) O Estado é a resultante metafísica da reunião das comunidades. e) Todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência.
Para produzir filosofia Qual são as conseqüências para a educação da máxima aristotélica de que o ser
humano é um animal político?
De Aristóteles à Renascença Creio para compreender, e compreendo para melhor crer. Santo Agostinho
A filosofia na era helenística Ao contrário da Academia, fundada por Platão, a escola de Aristóteles, o
Liceu, conheceu rápida decadência, não exercendo grande influência no
período posterior à sua morte, em 322 a.C. Aliás, por esse tempo também
morreram Demóstenes13 (322 a.C.) e Alexandre (323 a.C.), marcando uma
importante virada na roda da história: foi o fim do esplendor da era grega (da
qual, na filosofia, o estagirita foi o maior expoente) e o começo de uma nova
era, que recebe o nome de helenismo.
Com o império de Alexandre, o pensamento, a língua e a cultura grega
expandiram-se para o Oriente, no rastro das conquistas militares, e em
contrapartida receberam elementos orientais. Com a inesperada morte de
Alexandre, com 33 anos incompletos, o novíssimo império - que ia dos
Bálcãs à índia -foi repartido entre os seus generais.Todavia, uma nova cultura
- que não era mais a cultura grega clássica nem a cultura dos povos
conquistados - já se encontrava em gestação. Helenismo é o nome dado a
esse novo amálgama.
A filosofia também não escapa incólume desse período de profundas
mutações. As grandes sínteses e as especulações metafísicas da época an-
terior são deixadas de lado e a filosofia volta-se para questões práticas,
tornando-se predominantemente pragmática. Significativo dessa ênfase é a
frase do filósofo Epicuro: "É vão o discurso daquele filósofo que não cure
algum mal do espírito humano." Compreende-se assim que o pensamento helenístico se tenha concentrado sobretudo nos problemas morais, que se impunham a todos os homens. E, propondo os grandes
13 Nascido em 384 a.C., Demóstenes foi um dos maiores oradores e políticos atenienses.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 70
problemas da vida e algumas soluções para eles, os filósofos dessa época criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos quais os homens continuaram a inspirar-se ainda durante outro meio milênio e que, ademais, se tornaram paradigmas espirituais, verdadeira "conquista para todo o sempre". (REALE; ANTISERI, 1990, p. 230)
Junto com a expansão da cultura grega, surgiram novos centros de cultura,
como as cidades helenísticas de Pérgamo, Rodes e sobretudo Alexandria, pois
Alexandre, à medida que avançava, ia fundando novas cidades e povoando-as
com colonos gregos. Ao mesmo tempo, a pólis, a cidade-Estado grega, perdia a
sua autonomia, dissolvendo-se nos grandes e centralizados reinos helenísticos,
não raro em constante e sangrenta disputa. O cidadão voltou a ser súdito, dimi-
nuindo o interesse pela coisa pública. Com isso, a ética desprendeu-se da
política. No entanto, um sentimento de pertença universal foi aos poucos
suplantando o antigo bairrismo grego: era o cosmopolitismo, que considerava o
mundo inteiro uma cidade - conseqüência da primeira experiência de
globalização ocorrida na história. Ciosos de sua superioridade, os gregos foram
obrigados a rever preconceitos em relação a outros povos considerados bárbaros.
O já citado Epicuro tinha os bárbaros como membros de sua família e ansiava tê-
los entre os seus discípulos - atitude inadmissível para Aristóteles, por exemplo.
Ao mesmo tempo, como conseqüência das numerosas guerras e das con-
tínuas alterações das fronteiras, uma sensação de insegurança impregnava os
corações. Superstições e misticismos, oriundos do Oriente, invadiam as mentes e
novos deuses foram admitidos no Olimpo e nos altares. Até que um novo império
(o romano) e um novo sistema religioso (o cristão), ambos com vocações
universalistas, açambarcassem a herança de Alexandre e a dos gregos. Assim,
um pulular de escolas, tendências e seitas disputaram as preferências dos per-
plexos e inquietos homens desse período. No campo da filosofia, que é o que nos
interessa, o cinismo, o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo cumpriram esse
papel.
Cinismo Talvez antes mesmo de Platão e Aristóteles, os sinais da crise do pensamento
clássico já eram visíveis. Com efeito, o cinismo tem a sua origem com um dis-
cípulo de Sócrates, Antístenes de Atenas (cerca de 444-365 a.C.), que fundou a
sua escola em um ginásio chamado Cinosargos, de onde derivou-se o nome de
sua doutrina. Segundo o cinismo, o bem supremo consiste no desprezo das
riquezas e das honras deste mundo. Sábio é aquele que não se deixa dominar
pelas paixões, não se submete ao prazer e não foge da dor, levando uma vida
com a simplicidade natural de que dão exemplo os animais. Apesar do sucesso
de Antístenes, que conseguiu reunir um bom número de discípulos, a maioria
dos atenienses achava que todos eles não passavam de um bando de presun-
çosos e hipócritas - daí o sentido atual do termo cínico.
De Aristóteles à Renascença
71 I
Todavia, o maior representante da escola cínica foi um discípulo de Antís-
tenes, Diógenes (413-323 a.C.), de Sínope, na Ásia Menor. Foi ele quem levou às
últimas conseqüências os ensinamentos de seu mestre. Dele, que rompeu a
imagem clássica do homem grego, circulam muitas anedotas.
Diógenes, o cínico I.
Uma das anedotas de Diógenes é a de que em pleno dia, com uma lanterna
na mão, nos lugares mais cheios, ele repetia a frase:"procuro um homem". Na
verdade, com ácida ironia, ele queria dizer que procurava um homem
verdadeiramente virtuoso. II.
Outra história igualmente célebre diz que uma vez Alexandre Magno, ao
encontrá-lo, disse-lhe:
- Eu sou Alexandre, o Grande.
A isso, ele respondeu:
- Eu sou Diógenes, o Cão.
Em seguida, o imperador perguntou o que poderia fazer por ele. Ocorria que,
pela posição em que se encontrava, Alexandre lhe fazia sombra. Então Diógenes,
olhando para cima, disse:
- Eu só te peço que não me tires o que não me podes dar. Sai da frente do
meu sol!
Essa resposta impressionou vivamente Alexandre, que, na volta, ouvindo seus
oficiais zombarem de Diógenes, comentou: - Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes. III.
Em outra ocasião, reza outra fonte, estava Diógenes comendo o seu costu-
meiro prato de lentilhas quando Aristipos aproximou-se. Aristipos, também era
filósofo, mas adepto da doutrina de que o prazer é o único bem da vida. Para
poder levar uma vida confortável, vivia sempre bajulando o rei. Disse, então,
Aristipos a Diógenes:
- Se aprendesses a bajular o rei, não precisarias reduzir tua alimentação a
um prato de lentilhas. Diógenes retrucou:
- E tu, se tivesses aprendido a te satisfazeres sempre com um prato de
lentilhas, não precisarias passar tua vida bajulando o rei.
Exemplificadas pela vida de Diógenes, que dormia em uma barrica e vivia
como um "cão", a autarquia (bastar-se a si mesmo) e a apatia (indiferença perante
as vicissitudes da vida) eram os pontos de chegada do ideal cínico.
O cinismo quase se constituiu em um movimento de massas na época he-
lenística, com muitos dando as costas às convenções sociais para viverem uma
vida mais simples e autêntica. O movimento hippie e outros movimentos con-
temporâneos de contestação, algumas atitudes dos profetas hebreus do Antigo
Tópicos da Filosofia da Educação
Testamento e dos monges zen-budistas do Japão, guardam afinidades como o
cinismo. Na verdade, mais que uma corrente filosófica, o cinismo foi um estilo de
vida, questionador do statusquo helenístico, em uma época de crise e transição
- quando o velho ainda não tinha morrido e o novo ainda não despontara.
Epicurismo Uma das doutrinas mais populares durante o helenismo e no Império Romano
foi o epicurismo, movimento que toma o nome de seu fundador, Epicuro (341-
270 a.C.), nascido em Atenas e criado em Samos. Em 306 a.C., ele instalou a sua
famosa escola em Atenas, nos jardins de sua requintada residência. Conhecido
como Jardim de Epicuro, esse local se tornou o centro de uma animada vida
intelectual. Foi lá que o mestre exerceu a sua influência, não somente pelo ensino
direto como por uma personalidade de refinamento e fidalguia, nunca deixando
de auxiliar os discípulos e de tratar os escravos com civilidade. Epicuro dividia a filosofia em lógica, física e ética.
Segundo a lógica, o critério de verdade é a evidência, que pertence à sen-
sação, não podendo ser refutada nem por outras sensações nem pela razão. As
ideias gerais formam-se a partir do que foi percebido muitas vezes. Entre essas
ideias gerais (que, ancoradas na sensação, são sempre verdadeiras) distingue-se
a opinião, que pode ser verdadeira ou falsa. Todavia, a opinião é importante, pois
permite, por meio das sensações, chegar ao conhecimento dos princípios, que
são inacessíveis à percepção direta.
Tais princípios são os átomos, que são objeto da física. Para Demócrito, a rea-
lidade é composta por átomos, vácuo e gravidade, aos quais Epicuro acrescenta
uma faculdade dos átomos: a de se desviarem da linha reta na queda através do
espaço, tornando possível a reunião desses átomos, assim originando as coisas.
A lógica e a física são o pressuposto da ética espicurista, cujo objetivo último
é a felicidade. Para Epicuro, a felicidade é o prazer - que para o corpo consiste em
não sofrer e para a alma, em não ser perturbada. Para que se atinja tal objetivo,
Epicuro propõe-se a libertar os seres humanos do temor dos deuses e do medo
da morte.
Seres perfeitíssimos, os deuses não se misturam às imperfeições do mundo e
não se ocupam com as vicissitudes humanas.
E também não há razão para temer a morte: ela nada mais é do que a
dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. Portanto, a
morte não existe enquanto o ser humano vive, e este não existe mais quando ela
sobrevêm.
No entanto, a libertação do temor dos deuses e da morte não é suficiente para
conduzir o ser humano à felicidade. Enquanto ser natural, o homem - como os
animais - pauta a sua vida pela busca do prazer e a fuga da dor. Assim, o prazer
De Aristóteles à Renascença
73 I
é o princípio e o fim da vida humana, e o bem não pode ser concebido sem os
prazeres.
Mas a verdadeira sabedoria consiste em saber selecionar e dosar os prazeres.
Fiel a sua filosofia materialista, Epicuro tem como pressuposto que todo prazer é
basicamente um prazer corpóreo. Porém, ao contrário dos cirenaicos (corrente
hedonista14 fundada pelo supracitado Aristipo), Epicuro ensina que o prazer de-
sejável não é o prazer da pura satisfação imediata. Para ele, o prazer que deve
nortear a conduta humana - o prazer com dimensão ética - é o prazer do repou-
so, constituído pela ataraxia (ausência de perturbações da mente) e pela aponia
(ausência de dor).
Ataraxia e aponia podem ser alcançadas na medida em que, por meio de au-
todomínio, o ser humano adquire a autarquia, isto é, a autossuficiência de quem
14 O hedonismo coloca o prazer como a finalidade suprema da existência.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 74
tem em si a própria lei. Para tanto, ele deve renunciar aos prazeres que
podem ocasionar sofrimento e aceitar a dor na medida em que ela é inevitável.
Portanto, é preciso, como um primeiro passo para a felicidade, um cálculo
utilitário dos prazeres e das dores possíveis.
Epicuro - ele próprio um homem enfermo, achacado por terríveis males físi-
cos, e também um grego privado da liberdade política - teria demonstrado em
sua vida a eficiência dessa técnica interior de equilíbrio e libertação, capaz de
dotar o ser humano de condições objetivas para enfrentar com impassibilidade as
mais adversas circunstâncias.
O epicurismo gozaria de grande sucesso não só no ambiente helenístico
como também no Império Romano, vindo a experimentar reavivamentos nos
períodos da Renascença e do lluminismo.
Estoicismo No entanto, a doutrina de maior prestígio no Império Romano foi o
estoicismo. Grandes estoicos foram os romanos Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.),
Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Sua influência, inclusive,
permearia a moral cristã e, de certa forma, prepararia-lhe o terreno.
O fundador do estoicismo foi Zenão, nascido em Cítio, na ilha de Chipre (334-
262 a.C.), e o nome de sua escola vem do lugar onde ele costumava ensinar: stoá,
que significa "pórtico" em grego. Como o mestre não era cidadão ateniense, ele
não podia possuir um imóvel, sendo obrigado a ministrar suas aulas debaixo de
um pórtico. Aos poucos, seus discípulos ficaram conhecidos como os "alunos do
pórtico", "alunos da stoá", isto é, os estoicos.
Assim como os epicuristas, os estoicos dividiam o conhecimento em lógica,
física e moral.
Segundo a lógica, o conhecimento deriva apenas dos sentidos; sendo a
imagem a impressão produzida na alma pelos objetos exteriores. Por sua vez, o
acúmulo de imagens permite a formação das ideias universais, as quais - com
Aristóteles e contra Platão - existem apenas no pensamento.
Já para a física estoica, a realidade seria o fruto de dois princípios básicos: um
passivo (a matéria) e outro ativo (a razão). Sendo fogo, como queria Heráclito, a
razão impregnaria a matéria, dando origem à terra, à água e ao ar. Tudo procede
do fogo e ao fogo retornará um dia, inclusive a alma humana, que sobrevive ao
corpo até a "última conflagração", quando perderá a individualidade. Tudo está
contido em tudo, desde as origens. A harmonia do mundo implica uma inteli-
gência, pois do acaso não poderia resultar a ordem: Deus é a razão universal,
origem e substância de todas as coisas.
Segundo a ética estoica, a felicidade consiste em viver conforme a natureza.
Para o ser humano, que é participante da razão universal, isso significa viver con-
De Aristóteles à Renascença
75 I
forme a razão, já que a natureza humana é racional. Ademais, a felicidade passa a
ser compreendida como libertação de toda perturbação, como autarquia e
ataraxia. A paixão é vista sempre como má, pois é movimento que perturba a
alma - seja ódio, seja amor. Assim, a atitude do sábio deve ser o aniquilamento
da paixão, até atingir o estado de apatia, de indiferença altiva perante toda de-
sordem do mundo. O ideal estoico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 148)
Assim, indiferença e renúncia a todos os bens do mundo são o núcleo da
virtude estoica. O sábio pratica essa virtude para não ser perturbado nem pela
posse e nem pela privação dos bens terrenos. Absorto em sua torre de marfim,
nada pode alterá-lo. A ética estoica, como a epicurista, é democrática: todo os
seres humanos, sejam escravos (como Epicteto) ou imperadores (como Marco
Aurélio) são capazes da virtude e da perfeição, sendo igualmente aptos à reali-
zação do bem e à conquista da felicidade.
O estoicismo também foi importante para a tendência do cosmopolitismo: o
sábio estoico é cidadão do mundo, ao qual pertencem todos os indivíduos,
independentemente de raça, nação ou condição social.
Ceticismo e ecletismo Se tanto o estoicismo como o epicurismo visam ao ideal da apatia - o primei-
ro mediante uma metafísica positiva e o segundo com uma metafísica negativa,
que nega todo absoluto -, o ceticismo, buscando o mesmo fim, abre mão de toda
metafísica. Tendo o seu início com Pirro de Elis (365-275 a.C.) - que como
Sócrates, nada escreveu -, o ceticismo é, portanto, mais coerente e radical que as
escolas anteriores.
Acreditando que as sensações e os juízos são incapazes de apreender a ver-
dade, tudo se torna igualmente indiferente. O sábio cético, por conseguinte, não
terá opiniões, assim evitando a vã agitação do espírito. A suspensão do juízo, por
sua vez, conduz à completa apatia, tanto teórica quanto prática, e à imperturba-
bilidade (ataraxia).
Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade, os céticos
limitam-se a declarar que é impossível encontrá-la. E se houvesse uma verdade,
não haveria critérios que permitissem demonstrá-la.
Por outro lado, ser cético significa também ser dialético, isto é, um pesquisa-
dor contumaz, reconhecendo que se há alguma verdade, ela consiste na procura
da verdade. Assim, para haver ciência, isto é, investigação racional, é necessário
um certo ceticismo de base, pois ninguém procura aquilo que julga que sabe.
Apresentando-se como um sistema afim, porém aparentemente antagônico,
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 76
temos o ecletismo: se nada é verdadeiro, tudo é igualmente válido. O surgimento
de uma filosofia dessa natureza foi favorecido pela coexistência, nos períodos
helenístico e romano, de várias correntes filosóficas, com postulados muitas
vezes opostos, como o platonismo (e o neoplatonismo), o aristotelismo, o
cinismo, o epicurismo, o estoicismo, o ceticismo, para ficarmos apenas nos mais
conhecidos. O pragmatismo eclético será enfim estimulado pelo contato do
pensamento grego com a cultura latina dominante, totalmente voltada para a
prática e apresentando sua principal contribuição mais no âmbito do direito que
no da filosofia.
Neoplatonismo Antes do apagar das suas luzes, a filosofia pagã da Antiguidade ainda nos
legaria uma reformulação original e vigorosa do pensamento de Platão (427-347
a.C.): o neoplatonismo. Surgido em Alexandria, no Egito, com Amônio Saca (175-
240 d.C.), seu principal responsável é um aluno seu, Plotino (204-270 d.C.),
natural de Licópo- lis, também no Egito.
Não que as doutrinas de Platão tivessem sido esquecidas. Entre a morte do
autor da República e o magistério de Amônio, não poucos pensadores serviram- -
se do instrumental platônico, sem falar que a Academia, a escola fundada por
Platão, não deixara de funcionar, embora nem sempre se conservando fiel aos
princípios filosóficos de seu fundador. No entanto, com Amônio e sobretudo Plo-
tino, o platonismo recobraria forças e versatilidade em uma nova síntese, desti-
nada a servir de arcabouço para o pensamento cristão por cerca de um milênio.
Repensando o platonismo na óptica do Império Romano, a filosofia de Ploti-
no é um saber de salvação, destinado a suscitar no ser humano a recordação de
sua origem divina, voltando-o para Deus, do qual é uma emanação.
Imortal, a alma individual é todavia parte da alma universal, a qual, por seu
turno, procede da inteligência, e da qual recebe as formas que imprime na
matéria.
Acima da Inteligência encontra-se o Uno, que se basta si mesmo e é portanto
o Absoluto.
Causa geradora de tudo que existe, o Uno, em emanações sucessivas, engen-
dra a inteligência, a qual, por sua vez, engendra a alma, que, finalmente, produz
o mundo sensível.
Procedendo da unidade, todos os seres aspiram à unidade, que é a sua razão
de ser. Assim como em Platão, o mundo das coisas é mera aparência do mundo
das ideias. O objetivo da moral é a libertação do corpo. A felicidade da alma
encontra-se na contemplação (um tipo de meditação profunda que, eventual-
mente, pode ocasionar o êxtase), na qual se realiza a unidade do sujeito e do
objeto, único meio para atingir o êxtase, pelo qual a alma funde-se com o Uno.
De Aristóteles à Renascença
77 I
A filosofia de Plotino é, com efeito, o grande arremate do pensamento grego.
Com ela, uma era se encerra. Com ela, não só anuncia-se como também inaugu-
ra-se outra era, na qual a filosofia caminhará não mais independente como o foi
na Antiguidade clássica, mas guiada pela fé.
Sob a égide da cruz Tirante o direito romano e a administração pública, a herança cultural do
Império Romano não é original: a Eneida, de Virgílio (70-19 a.C.), é uma pálida
sombra da llíada e da Odisséia, de Homero (séc. IX a.C.), escritas quase um milê-
nio antes; e não há um único filósofo romano que chegue aos pés de um Platão
ou um Aristóteles. Todavia, a importância de Roma foi a de ter sabido receber,
conservar e transmitir à posteridade o portentoso legado dos gregos.
Em 476, depois de muito assédio e também crises internas, esse fabuloso
império caiu sob o assalto dos bárbaros. Se não fosse pela Igreja, cuja organi-
zação hierárquica foi decalcada em parte da estrutura do Império, esse legado
correria o risco, pelo menos no Ocidente, de se perder completamente debaixo
das sucessivas levas das tribos invasoras. No entanto, o cristianismo não apenas
desempenharia a função de salvaguardar - nas bibliotecas dos mosteiros, à
espera de tempos mais propícios - a cultura clássica herdada de Roma, servindo
de mais um elo nessa corrente: essa religião de origem semita15 - portanto
oriental - não deixaria de acrescentar elementos novos e próprios à aventura do
espírito ocidental.
O cristianismo tem a sua origem, como o nome já diz, em Cristo. A palavra
cristoé a tradução grega para o título de ungido (em hebraico, messias), aplicado
por seus seguidores a um judeu morto na cruz, por volta do ano 30, na província
da Palestina, no extremo leste do Império.
Nesse sentido, o cristianismo é uma original reformulação do judaísmo, a pri-
meira religião monoteísta de importância na história, cujos principais
fundamentos se encontram na Bíblia. O monoteísmo judaico, acrescido da
interpretação cristã (sobretudo de Paulo, um judeu de cultura helenística e
cidadania romana, tão importante para o cristianismo como o próprio Cristo)
traria para o Ocidente, junto com a religião, um rol de elementos que
configurariam, junto à herança clássica, a identidade da civilização ocidental. A
partir daí, é impossível negar essa contribuição: pode-se contestá-la, pode-se
tentar superá-la, mas não se pode negá-la.
Vamos apresentar agora os principais elementos que seriam decisivos para o
desenvolvimento da filosofia na Idade Média.
■ Monoteísmo-o pensamento grego havia chegado a concebera unidade do
divino, nunca a sua unicidade. A concepção judaico-cristã do Deus único
15 Pertencente ao grupo étnico e lingüístico que abrange hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 78
enseja um novo conceito de transcendência: Deus é totalmente outro, que
não se confunde com as suas criaturas.
■ Criação exnihilo - os gregos jamais conseguiram uma resposta satisfatória
para o problema da origem dos seres. A concepção bíblica da criação "do
nada" daria uma solução para o antigo problema de como e por que o
múltiplo deriva do uno e o finito do infinito, além de conferir um valor positivo
ao mundo, já que ele é criado diretamente por Deus e não por um demiurgo
ou um poder intermediário.
■ Mandamentos e pecado original - os gregos entenderam a lei moral como
uma lei da natureza. A ideia de um Deus que outorga a lei é estranha à
filosofia grega. Com o advento de uma lei revelada por uma divindade, a
virtude torna-se obediência aos mandamentos de Deus. E a ideia de um
pecado original também é importante para a compreensão da mudança de
paradigma: o ser humano peca não apenas por ignorância da verdade, mas
também por fraqueza da vontade. Assim, o antigo "intelectualismo" grego é
subvertido pelo"voluntarismo"judaico-cristão.
■ Teleologia da história - a compreensão grega do tempo é a-histórica, como
o demonstram as diversas teorias do "eterno retorno". A concepção de história
da Bíblia, ao contrário, é teleológica, pois tem um princípio, um
desenvolvimento e um fim. Essa talvez tenha sido a principal herança judaico-
cristã para o Ocidente. Os conceitos de progresso e evolução, tão importantes
para o Ocidente durante os últimos séculos (ainda que questionados
recentemente), não seriam possíveis sem essa nova compreensão de história.
Entre outros, esses elementos configurariam um marco incontornável no pen-
samento ocidental. Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguiros âmbitos da"razão"e da"fé"; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 205)
A primeira fase da filosofia da era cristã transcorreu no campo da primeira
posição - filosofar na fé - e recebeu o nome de patrística.
A segunda fase se deu na esfera da segunda posição - a distinção dos âmbi-
tos da "razão" e da "fé"- e foi chamada de escolástica.
A terceira posição - filosofar fora e contra a fé - teve seu início já no crepús-
culo medieval, anunciando a filosofia da Idade Moderna.
Patrística: a razão a serviço da fé Patrística é o nome dado ao período do pensamento cristão que se seguiu à
redação do Novo Testamento (século I), e estende-se até o começo da esco-
lástica, no século VIII. Consiste na elaboração doutrinai das verdades de fé do
cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos "pagãos" e as heresias. Foi
De Aristóteles à Renascença
79 I
produzida pelos chamados Padres da Igreja, um conjunto de escritores cristãos,
não necessariamente padres ou sacerdotes (alguns foram inclusive leigos)16.
O núcleo da mensagem cristã, o Evangelho (isto é, o relato das palavras e das
obras de Jesus), não era um discurso filosófico, mas antes um saber soteriológico
(isto é, que se refere à salvação do homem), que dispensava, quanto ao essencial,
16
Padres tem aqui o sentido latino de "pais".
Tópicos da Filosofia da Educação
80
o recurso a qualquer filosofia. No entanto, quando o cristianismo começou a
espraiar-se por terras de cultura helenística, logo foi alvo de ataques polêmicos,
vendo-se obrigado a esclarecer os próprios pressupostos.
Para tanto, ele se serviu da filosofia dominante, que na época era de matriz
sobretudo (neo)platônica. Esse processo já pode ser percebido na própria redação
do Novo Testamento. Se os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (os chamados
Evangelhos sinóticos) são relativamente simples, o evangelho de João e os
escritos de Paulo já se servem de categorias gregas.
Portanto, os Padres da Igreja nem sempre foram hostis à filosofia, compreen-
dendo que a "sabedoria pagã"- a despeito de ser"pagã"- era obra da razão, que
por sua vez era obra de Deus. Da tentativa de utilizar a filosofia a serviço da fé
resulta a filosofia cristã, da qual a primeira manifestação é a patrística.
No entanto, esse "filosofar na fé" por um lado enriqueceu o objeto da filosofia,
com o aporte de novos conteúdos, e por outro foi eivado de problemas, do qual o
maior seria o atrelamento e a subordinação da filosofia à teologia. Doravante, por
cerca de mil anos aquela seria serva desta, perdendo a sua autonomia e sua
liberdade de pesquisa. Isso é um dado novo na história da filosofia. Na Grécia e
em Roma, a filosofia era relativamente autônoma dos poderes religiosos: ainda
que Sócrates tenha sido condenado por"impiedadade", ele o foi pelo poder po-
lítico de Atenas e não por um colégio de sacerdotes. Mais tarde, sobretudo após a
cristianização do Império (com Constantino eTeodósio17), tornou-se perigoso
pensar diferentemente da ortodoxia definida pelos dirigentes da Igreja. Não
foram poucas as fogueiras acesas para dissuadir os que teimavam em pensar de
outra maneira.
Além disso, é bom ter em mente que a patrística é contemporânea do último
período do pensamento greco-romano, com o qual teve um fecundo contato.
Como vimos, esse período deu grande ênfase à ética (como no estoicismo e no
epicurismo), com um forte viés místico-religioso (como no neoplatonismo). É
também contemporâneo do Império Romano, de quem testemunha o esplendor,
a decadência, a queda e a substituição como cimento social em uma Europa
traumatizada e fragmentada pela igreja romana.
Por causa da grandeza de Agostinho, costuma-se dividir a patrística em três
períodos: antes de Agostinho, a época de Agostinho e depois de Agostinho.
Patrística pré-agostiniana Subdivide-se, por sua vez, em três fases.
■ A primeira fase abarca o século II, compreendendo os padres apostólicos,
muito próximos temporalmente dos apóstolos; os padres apologetas e os
padres controversistas. Os apologetas interessam-se pela defesa racional da
^ Com o Edito de Milão (313), Constantino tornou o cristianismo religião lícita, acabando com dois séculos de sangrentas perseguições. Com o
Edito deTessalônica (380), Teodósio elevou o cristianismo à religião oficial do Império, colocando as demais religiões na ilegalidade.
De Aristóteles à Renascença
81 I
fé cristã, ao passo que os apostólicos e os controversistas têm uma
importância mais interna. Os maiores representantes desse primeiro
momento foram Clemente de Roma (séc. I), Inácio de Antioquia (67-110),
Justino (103-167) e Irineu (130-202).
■ A segunda fase abarca o século III, destacando-se a escola de Alexandria, no
Egito, e os padres africanos, isto é, os padres latinos do norte da África. Foi o
tempo em que o pensamento cristão ganhou corpo e visibilidade no mundo
cultural. Enquanto os padres alexandrinos tiveram em boa estima o
pensamento helênico, os padres africanos olharam-no com suspeita. Entre os
primeiros ressaltam-se Clemente de Alexandria (150-215) e o grande
Orígenes (185-253). Entre os africanos, o maior nome éTertuliano (155/160-
230).
■ Por fim, a última fase do primeiro período se dá no século IV, época áurea da
patrística. Com as grandes heresias18 do período, os padres viram-se
obrigados a concentrar-se no elemento dogmático, deixando a filosofia
propriamente dita em segundo plano. A divisão da patrística em oriental
(grega) e ocidental (latina), já patente no século anterior com a polarização
entre alexandrinos e latinos, foi acentuada, o que foi corroborado pela
separação do Império Romano em oriental e ocidental. Os padres gregos
eram mais voltados para questões especulativas, teológicas; os latinos
dedicaram-se mais aos problemas morais, disciplinares, políticos. Entre os
primeiros despontam Atanásio (296-373), Gregório Nazianzeno (335-394),
Gregório de Nissa (330-390) e João Crisóstomo (349-407). Entre os últimos,
distinguem-se Ambrósio (340-397) e Jerônimo (343-420).
Patrística agostiniana O segundo período da patrística é marcado pela figura luminar de Santo
Agostinho, cujo pensamento reinou inconteste no Ocidente durante quase um
milênio. Aurélio Agostinho nasceu em 354, em Tagasta, na Numídia, província
romana do norte da África, filho de pai pagão e mãe cristã. Essa mãe era Santa
Mônica, que seria muito importante na conversão do seu filho. Jovem inquieto,
Agostinho entregou-se com afinco ao estudo de toda a ciência do seu tempo.
Chegou a ser brilhante professor de retórica em Cartago, Roma e Milão. Aderiu ao
maniqueísmo19 nos seus dias de estudante, mas, embebido de neoplatonismo,
converteu-se ao cristianismo por meio da pregação de Santo Ambrósio, fazendo-
se batizar em 387.
De volta à África, estabeleceu com alguns amigos, em Tagasta, uma comuni-
dade monástica. Em 391, foi ordenado sacerdote em Hipona, logo se tornando
18 Heresias são doutrinas consideradas como falsas pela Igreja. 19 Dualismo religioso que, difundido nos séculos III e IV, afirmava haver um conflito entre o reino da luz e o reino das sombras, sendo que a
matéria e a carne pertenciam à sombra.
Tópicos da Filosofia da Educação
82
famoso por suas pregações. Notabilizou-se sobretudo pelo combate ao mani-
queísmo. Cinco anos depois, foi consagrado bispo dessa mesma diocese. Em
430, durante o cerco de Hipona pelos vândalos, veio a falecer o maior Padre da
igreja ocidental.
Santo Agostinho é autor de mais de 400 sermões, 270 cartas, muito asseme-
lhadas a tratados doutrinais, e 150 livros. Destacam-se, entre esses, Confissões,
em que narra a história de sua conversão, a primeira autobiografia da história; e
Cidade de Deus, escrito depois do saque de Roma pelos godos, ocorrido em 410
- nesse livro, ele argumenta que a cidade dos homens pode ser derruída, mas o
que conta é a cidade de Deus, que é fundada sobre alicerces eternos.
Patrística pós-agostiniana Depois de Agostinho, seu apogeu, a patrística decaiu juntamente com a cul-
tura. A lenta agonia do Império do Ocidente sob as arremetidas das tribos ger-
mânicas e mais tarde dos muçulmanos fez a Europa mergulhar em um período
de obscurantismo.
Mas a decadência da patrística também teve motivos internos: a aplicação da
filosofia à fé já não apresentava um desenvolvimento fecundo. No entanto, ainda
resplandecem alguns pensadores nesse melancólico crepúsculo: Boécio
(475/480-524), o "último dos romanos"; e Bento de Núrcia (480-543).
Se com a cristianização do Império Romano a Igreja tornou-se romana, com a
evangelização dos bárbaros ela se barbarizou: o esplendor do pensamento grego
e da administração romana pereceram nas cinzas dos saques e invasões. Até que
a poeira assentasse decorreram alguns séculos (do século VII ao X), aos quais é
realmente apropriada a designação com a qual erroneamente se tentou
apodartoda a Idade Média (476-1453): idade das trevas.
Escolástica: harmonia e tensão entre fé e razão A insegurança decorrente das sucessivas invasões aprofundou um processo já
iniciado no outono do Império Romano: a feudalização. A Europa se fragmentou
em numerosos territórios mais ou menos autônomos, que por sua vez
continuaram se pulverizando em numerosos condados, ducados e principados
cada vez menores. Somente pelo século XII, com uma certa estabilização das
correntes migratórias, estancou-se esse processo.
Então começaram a surgir as línguas nacionais, as cidades se repovoaram e se
constituiu uma nova classe (a burguesia) vivendo nos centros urbanos. Essa nova
classe surgiu a partir das trocas mercantis, ao contrário da nobreza e do
campesinato, que viviam da terra, com os nobres explorando a mão-de-obra
servil dos camponeses.
A Igreja não ficou imune a essas transformações: surgem as ordens mendi-
cantes (franciscanos e dominicanos), mais afinadas com as forças sociais e eco-
De Aristóteles à Renascença
83 I
nômicas emergentes. Ao contrário dos mosteiros - comunidades sedentárias que
vivem do cultivo da terra e se dedicam à oração e ao trabalho manual - os frades
mendicantes exercem o seu apostolado nas cidades, nas novas rotas do
comércio, no magistério. Com efeito, desde o tempo de Carlos Magno (século
VIII), ressurgiam as escolas, as quais podiam ser monacais (anexas a um mos-
teiro), episcopais (anexas a uma catedral) ou palatinas (anexas à corte). A partir
do século XIII, a escola configura-se em universidade, que era, a princípio, uma
corporação que congregava mestres e alunos.
Logo, por meio de traduções - primeiramente do árabe e depois diretamente
do grego -, a civilização medieval redescobriu a sua herança clássica. Assim, era
natural que sob essas circunstâncias a ciência e a filosofia encontrassem um novo
e vigoroso estímulo, e das cinzas feudais começassem a brilhar as novas luzes
que pouco a pouco retiraram a sociedade de seu sono secular.
A filosofia desse período recebe o nome de escolástica justamente por ter se
originado nessas novas escolas. E mais que uma retomada dos estudos an-
teriores, feitos no tempo da patrística, assistia-se a um verdadeiro e inovador
despertar da filosofia. Se os Padres serviram-se da razão para dar razões à fé, os
filósofos escolásticos tomaram razão e fé como dois campos autônomos e sua
empreitada foi a de harmonizá-los.
Embora convencional como todas as divisões, os historiadores tendem a de-
marcar quatro fases na escolástica.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 84
A escolástica primitiva Sendo uma fase mais preparatória, estendeu-se do fim da patrística até o
século IX e foi marcada por momentos de grande obscuridade cultural e anteci-
pações luminosas, como no chamado Renascimento Carolíngio (séc. VIII).
O maior representante desse período foi o monge irlandês João Escoto Eriú-
gena (morto em 877), que tenta conciliar o teísmo cristão com a teoria das ema-
nações neoplatônicas.
Primeira escolástica A segunda fase, ou a primeira escolástica propriamente dita, vai do século IX
ao século XII, e essa é a época das Cruzadas, um período de vigorosa centra-
lização do poder eclesiástico e da primeira expansão das cidades medievais. Na
filosofia, os chamados dialéticos proporcionaram um importante incremento,
dividindo a cena com os denominados místicos.
Os dialéticos, assim como os místicos, partem da fé; mas enquanto os místi-
cos hostilizam a razão, os dialéticos servem-se dela para penetrar os mistérios.
Entre os maiores representantes da corrente mística, encontramos Pedro
Damião (1007-1072) e Bernardo de Claraval (1090-1153).
Entre os dialéticos, por sua vez, destacam-se Santo Anselmo de Aosta (1033-
1109), o primeiro a tentar demonstrar racionalmente a existência de Deus; e
Pedro Abelardo (1097-1142), famoso por sua aventura histórica de amor com
Heloísa - o que lhe acarretou trágicas conseqüências - e um dos pioneiros na
assimilação do pensamento de Aristóteles.
Escolástica áurea Corresponde ao século XIII, apogeu da escolástica e do pensamento filosófico
cristão, época dos altos e sofisticados voos especulativos e das grandes sínteses
doutrinárias. Essa fase é marcada e preparada sobretudo pela redes- coberta de
Aristóteles no Ocidente. Ao contrário das ideias de Platão, o pensamento de
Aristóteles caiu no esquecimento por quase 1 500 anos. O Liceu, a escola
fundada por Aristóteles, não desfrutou da mesma glória que a Academia de
Platão, nem o seu sistema gozou de um reavivamento semelhante ao
neoplatonismo.
No século XIII, a filosofia aristotélica foi recuperada graças aos árabes, cuja
civilização vivia então um momento de esplendor, especialmente na Espanha
moura (isto é, a Espanha sob domínio muçulmano). Pensadores árabes como
Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198), aos quais se deve acrescentar o
judeu Maimô- nides (1135-1204), foram buscar em Aristóteles as novas
categorias que iriam revolucionar o pensamento e a ciência ocidentais. Por meio
deles, o pensamento de Aristóteles experimentou uma reentrada - dessa vez
triunfante - no Ocidente.
De Aristóteles à Renascença
85 I
Coube a Tomás de Aquino, seguindo as pegadas de seu mestre e confrade
Alberto Magno (1207-1280), o empreendimento da reformulação em bases aris-
totélicas de todo o edifício da fé cristã. Descendente de nobre estirpe, Tomás de
Aquino nasceu em Roccasseca, Nápoles, em 1225. Sua família queria que fosse
monge beneditino, mas, contrariando a vontade familiar, ele entrou na ordem dos
dominicanos. Estudou nas universidades de Colônia e Paris, na qual recebeu seu
grau acadêmico e mais tarde veio a lecionar por um longo tempo. Morreu aos 49
anos, em 1274, no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma, quando se
dirigia a Lião para participar de um concilio a pedido do papa.
Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles, seus maiores livros, siste-
matizou o conhecimento teológico e filosófico de seu tempo, ancorado no pos-
tulado de que a teologia (fundada na fé) e a filosofia (baseada na razão) amal-
gamam-se em uma síntese definitiva, unidas em sua orientação comum rumo a
Deus. Para ele, a filosofia não pode ser substituída pela teologia, já que as duas
abarcam campos próprios, mas não há contradição entre elas: "Com base no
sistema aristotélico, é conquistada finalmente a consciência do que é conheci-
mento racional, ciência: um lógico procedimento de princípios evidentes para
conclusões inteligíveis"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 250).
Tornaram-se célebres as cinco vias de São Tomás para a demonstração racio-
nal da existência de Deus. Dessas cinco, precisamos reter, para a nossa
discussão, as duas primeiras, segundo as quais Deus seria o motor primeiro
(primeira via) e a causa incausada (segunda via).
Chamado de tomismo, o pensamento de Tomás de Aquino foi a princípio
recebido com reservas pelo seu aristotelismo, mas depois viria a ser a filosofia
oficial da Igreja Católica até o Concilio Vaticano II (1962-1965). Afirma-se,
ademais, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é
compreendida como uma construção autônoma e crítica da razão humana.
E o século da escolástica áurea ainda é palco de outras prestigiosas figuras: o
italiano Boaventura (1221-1274) e o escocês Duns Scoto (1265-1308). Ao
contrário
do aristotelismo de São Tomás, esses dois franciscanos servem-se do agostianis-
mo de extração platônica. Contra o concordismo tomista, Scoto propugna a clara
separação entre ao âmbitos da filosofia e da teologia, já que as duas tem
metodologias e objetos distintos.
No entanto, quem exerceria maior influência sobre o desenvolvimento ulte-
rior da filosofia e da ciência seria outro franciscano das ilhas britânicas - Roger
Bacon (1210-1294), um aristotélico. Para ele, são três as fontes do saber: a au-
toridade, a razão e a experiência. A primeira nos dá a fé, mas não a ciência; a
segunda, a ciência que não é eficaz sem a experiência. A ciência experimental,
Tópicos da Filosofia da Educação
8 '
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portanto, é que constitui a fonte mais sólida da certeza.
A escolástica tardia O século XIV caracteriza-se pela separação definitiva entre a filosofia e a
teologia, a razão e a fé. O inglês Guilherme de Ockham (1285-1347), outro
franciscano, é um dos nomes que brilham nessa fase. Para ele, só o saber
sensível é verdadeiro, os conceitos só existem no pensamento e o universal não
tem realidade. Com Ockham, foi dado mais um passo rumo ao empirismo radical
e a ciência moderna. Além disso, ele defendeu a separação entre os poderes
temporal e religioso, aliando-se ao imperador contra o papa. Não por acaso, teve
sérios problemas com a Inquisição20, o que já tinha ocorrido com o seu
conterrâneo Roger Bacon. O castelo filosófico medieval, que subordinava a razão
à fé (com a patrística e os escolásticos agostinianos) ou que as harmonizava
admiravelmente (com São Tomás de Aquino), estava prestes a ruir. Com Ockham, a escolástica encontra o seu epílogo: no século XIV, depois dele, não surgiriam mais personalidades nem grandes sistemas.[...] Diante do tomismo e do escotismo, que representavam a via antiqua, o ocamismo se impõe como a via moderna, enquanto é programatica- mente crítico em relação à tradição escolástica. (REALI; ANTISERI, 2003, p. 663)
Mas a escolástica ainda conheceria um florescimento na Península Ibérica, nos
séculos XVI e XVII, por conta dos dominicanos e dos jesuítas, orientando-se pela
nova interpretação do tomismo que se fez na Itália. Os teólogos de Salamanca, na
Espanha, juntamente com os jesuítas de Coimbra, em Portugal, defenderam uma
síntese da escolástica tradicional com as novas tendências de pensamento da
época. Mas então já estávamos no terreno dos epígonos21 e há muito a esco-
lástica já tinha deixado de estar na vanguarda do pensamento ocidental.
Orgão da Igreja Católica que tinha a finalidade de investigar e julgar possíveis hereges e feiticeiros, acusados de serem contra o catolicismo.
Em geral os condenados eram levados à fogueira para serem queimados até a morte. Em geral considera-se que o epígono é um mero imitador de um artista realmente criativo ou de um grande pensador.
De Aristóteles à Renascença
87 I
A Renascença e o divórcio entre razão e fé É errôneo situar a Renascença - ou Renascimento - como uma etapa posterior à
Idade Média: na verdade, a Renascença começa nos últimos anos da Idade Média -
sendo contemporânea da última escolástica - e se prolonga pelo começo da Idade
Moderna (1453-1789).
Embora não seja relevante do ponto de vista filosófico - o primeiro grande
filósofo moderno será René Descartes (1596-1650) -, essa época prepara o hori-
zonte histórico no qual irão despontar os representantes da modernidade.
Assim, a partir do século XIV, o mundo medieval - que era teocêntrico, co-
letivista, místico - começa a se desintegrar por uma série de fatores. A unidade
religiosa, característica da cristandade, foi rompida pelo grande cisma do Ocidente
(1378-1417)22 e, um século depois, pela Reforma protestante (1517), que deu
origem às igrejas nacionais na Europa setentrional.
A Reforma tem como premissa a livre interpretação das Escrituras (a Bíblia) e o
acesso direto do fiel a Deus, sem a itermediação das instâncias eclesiásticas - o que
contribui para o advento do individualismo moderno.
No plano teológico e filosófico, a crise se manifestou no antagonismo entre a
via antiqua (representada pelo tomismo e o agostianismo) e a via moderna (derivada
de Guilherme de Ockham). Tendo sido mais uma revolução que uma reforma, essa
via moderna constitui a negação radical de toda a filosofia anterior. Deus deixa de
ser racional, e a racionalidade, que seria um limite à onipotência divina, torna-se
um atributo exclusivo do ser humano. Ora, se Deus não é racional, não pode ser
apreendido pela razão humana. Desligando-se de um deus in- cognoscível, a razão
volta-se para o que pode conhecer - a natureza e o próprio ser humano.
Ao mesmo tempo, os novos descobrimentos científicos propiciaram as grandes
navegações. Descobriu-se que a Terra é redonda e, além disso, com Copérni- co
(1473-1543) e Galileu (1564-1642), que ela não é o centro do universo, e sim,
apenas um planeta em órbita em torno do Sol (isto é, descobriu-se o heliocentris-
mo). A invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg (1456), por sua vez,
barateou o custo do livro, ajudando a propagar os novos conhecimentos. Que seria
da Reforma de Martinho Lutero (1483-1546) sem a possibilidade de uma
divulgação mais rápida e de preços mais acessíveis de sua tradução da Bíblia?
Durante esse cisma, a Igreja Católica chegou a ter três papas simultaneamente, cada um exigindo a obediência dos fiéis. Anteriormente, em 1054,
já havia ocorrido o cisma da Igreja oriental, separando as igrejas latina e ortodoxa.
Tópicos da Filosofia da Educação
88
O fato de o império germânico (que encontrava a sua justificação na Igreja) ter
se desintegrado e a emergência de uma nova classe social (a burguesia, que
necessitava da ciência para conhecer e dominar o mundo) contribuíram para a
decomposição das estruturas feudais e para a formação das novas nações, que
mais tarde desenharam o mapa da Europa moderna.
São duas as principais características da Renascença: o humanismo e o
naturalismo.
O humanismo se manifesta a partir da recuperação e do estudo de obras da
Antiguidade clássica, no florescimento das letras e das artes.
Já o naturalismo tem manifestação no empenho de conhecer a natureza pela
ciência e de viver segundo a natureza, o que leva a uma ética e a um direito natural.
Os grandes artistas dessa época são Dante (1265-1321), Giotto (1266-1337),
Petrarca (1304-1374), Boccaccio (1313-1375), Michelangelo (1475-1564) e o
nosso Luís de Camões (1524-1580). Entre os cientistas, além dos já citados, en-
contramos Vesálio (1514-1564), que alargou os conhecimentos sobre anatomia, e
Gilbert (1544-1603), que desenvolveu pesquisas sobre o magnetismo e a eletri-
cidade. O genial Leonardo da Vinci (1452-1519), figura paradigmática dessa era de
ouro, transita entre os dois campos - arte e ciência.
Ao contrário do período anterior, o platonismo passou a ser revalorizado, junto
com outras escolas da filosofia helênica, como o estoicismo, o ceticismo e o
epicurismo - este último, bastante próximo do espírito mundano da Renascença. O
próprio aristotelismo dessa época é desvestido de sua roupagem cristã tomista,
dividindo-se em duas correntes - uma sendo naturalista e outra pante- ísta, com
raízes em Averróis.
Grandes nomes dessa época são Nicolau de Cusa (1401-1464), que tentou a
síntese do cristianismo e do neoplatonismo, resvalando no panteísmo; Maquia- vel
(1469-1527), autor do célebre O Príncipe, para quem os interesses do Estado estão
acima dos interesses do indivíduo e dos valores éticos e religiosos11;Thomas Morus
(1478-1535), cujo livro Utopia descreve uma sociedade ideal inspirada na República
platônica; Erasmo de Roterdã (1467-1536), autor do famoso Elogio da Loucura, em
que ataca a hipocrisia da sociedade e da Igreja.
Mas talvez o autor mais característico desse período tenha sido Giordano Bruno
(1548-1600). Para este dominicano que abandonou o hábito e teve uma
vida nômade e atribulada o universo é infinito, Deus é a alma universal do mundo e
todas as coisas materiais são manifestações desse princípio único. Mártir da
liberdade de pensamento, morreu queimado na fogueira pela Inquisição. O filósofo
holandês Baruch Espinosa foi vivamente influenciado por Giordano Bruno.
E assim, com a Renascença, consuma-se o divórcio entre teologia e filosofia,
razão e fé. A partir de então, cada uma delas irá seguir seu próprio caminho, rara-
De Aristóteles à Renascença
89 I
mente voltando a encontrar-se com a outra, como em Kierkegaard (1813-1855). A
filosofia, por sua vez, tendo esgotado a herança platônica e aristotélica, buscará
novas bases.
Textos complementares
Que é, pois, o tempo? (AGOSTINHO, 1977, p. 303-304)
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o
poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por
palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas
conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.
Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por
conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a
quem me fizera pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de
contestação que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada
houvesse, não existia o tempo presente.
De que modo existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o
passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse
sempre presente, e não passasse para o pretérito, como podemos afirmar que ele
existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?
Pode-se provar a existência de Deus (AQUINO, 2008)
Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta
é a procedente do movimento; pois é certo e verificado pelos sentidos, que alguns
seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o
é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é
movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma
coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira cálido
potencial, em cálido atual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível
uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de
vista diversos; pois o cálido atual não pode simultaneamente ser cálido potencial,
mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou
mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois tudo o
que é movido há de sê-lo por outro. Se portanto, o motor também se move, é
necessário seja movido por outro, e este, por outro. Ora, não se pode assim
proceder até o infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por
conseqüência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão
movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é
necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos
dão o nome de Deus.
Da causa, princípio e uno (BRUNO, 1964, p. 86)
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 90
O universo, pois, é uno, infinito, imóvel. Una é, digo, a absoluta possibilidade,
uno o ato, uno a forma ou a alma, una a matéria ou o corpo, una a coisa, uno o ser,
uno o máximo e ótimo; o qual não poderia estar contido em outra coisa, e por isso,
sem fim nem termo; portanto, infinito e ilimitado, e, em conseqüência, imóvel. Não
se move com relação a seu lugar, pois não há fora dele nada aonde possa
transladar-se, já que é o todo. Não se cria a si mesmo porque não há outro ser que
ele possa desejar nem querer, tendo em conta que ele possui todo o ser. Não se
corrompe, pois, não há nenhuma outra coisa em que possa transmutar-se,
porquanto ele é todas as coisas. Não pode aumentar nem diminuir, porquanto é
infinito, e assim como não cabe acrescentar-lhe nada, assim também não se lhe
pode tirar nada, pois o infinito não tem partes proporcionais. Não pode ser alterado
com outra disposição, pois nada há de exterior a ele de que possa padecer uma
afeição qualquer. De resto, por compreender em seu próprio ser todas as oposições
em unidade e harmonia, e por não poder ter inclinação alguma para outro ser novo,
ou por este ou aquele modo de ser, não está sujeito a mutação em qualidade
alguma, nem pode possuir nada diverso ou contrário que o
altere, pois nele tudo é concorde. Não é matéria, pois carece de forma e não pode
ser configurado; carece de limite e não pode ser limitado, não é forma, porque não
informa nem configura nada, porquanto é tudo, máximo, uno e universal. Nem é
mensurável nem é grandeza. Não se contém a si mesmo, pois não é maior que si
mesmo. Não está contido em si mesmo, pois não é menor que si mesmo. Não se
iguala a si mesmo, pois não é este e aquele, mas um só e o mesmo. Sendo um só e
o mesmo, não tem este e aquele ser, e porque não tem este e aquele ser, não tem
também esta e aquela parte e, pois, não tendo tais partes, não é composto. É termo
de tal sorte que não é termo; é forma de modo que não é forma; é matéria de
modo que não é matéria; é de tal modo alma que não é alma; porque é
indistintamente o todo e portanto, uno: o universo é uno.
Atividades 1. Identifique o período da história da filosofia a que pertencem os textos auxi-
liares de Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Giordano Bruno, dissertando
sobre suas semelhanças e diferenças.2. Quanto à filosofia do período helenístico, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).
( ) Diógenes, o Cão, que vivia em um barril, é o maior representante da filosofia
estoica, segundo a qual os homens deviam viver do modo mais natural
possível.
( ) A filosofia do período helenístico volta-se para questões metafísicas,
tornando-se predominantemente especulativa. ( ) Epicuristas e estoicos dividem a filosofia em lógica, física e ética.
( ) A ataraxia (imperturbabilidade) era um dos principais ideais perseguidos pelas
correntes filosóficas helenísticas.
De Aristóteles à Renascença
91 I
( ) O imperador Marco Aurélio foi o maior epicurista romano.
3. A seguir, enumeramos uma série de características de correntes filosóficas.
Quais delas pertencem à patrística (P), à escolástica (E) ou à filosofia produzi-
da durante a Renascença (R)? a) Foi produzida pelos chamados Padres da Igreja. ( ) b) Preparou o caminho para a filosofia moderna. ( )
c) Seu conteúdo é cristão e sua estrutura filosófica basicamente (neo) platônica. (
) d) Subordinou a razão à fé. ( )
e) Recebeu um forte incremento da redescoberta dos escritos de Aristóteles. ( )
f) Entre seus expoentes encontramos João Crisóstomo, Orígenes, Clemente de
Alexandria eTertuliano. ( )
g) São Tomás de Aquino foi o seu mais luminoso nome. ( )
h) É a época que marca o divórcio entre razão e fé. ( )
i) Tentou harmonizar razão e fé. ( )
j) Entre seus representantes estão Duns Scoto, Santo Anselmo de Aosta, Pedro
Abelardo e São Boaventura. ( )
k) Foi dinamizada pelos grandes descobrimentos científicos. ( )
I) Santo Agostinho é o seu maior nome. ( )
m) Thomas Morus pertenceu a esse período. ( )
n) Encontra o seu epílogo com Guilherme de Ockham. ( )
o) Teve suas origens nas escolas e universidades medievais. ( )
p) Boécioe Bento de Núrcia foram uns de seus últimos representantes. ( )
q) Giordano Bruno foi um de seus maiores representantes. ( )
r) Tomou razão e fé como dois campos autônomos. ( )
s) O aristotelismo dessa época foi desvestido de sua roupagem cristã tomista. ( )
t) Foi contemporânea do Império Romano, de quem testemunhou o esplendor, a
decadência e a queda. ( )
Para produzir filosofia Ao contrário do que previram vários filósofos da modernidade, em nosso
tempo continuam circulando inúmeros discursos religiosos. Na sua opinião, eles
se servem do instrumental da razão para se justificarem?
Espinosa: uma filosofia da liberdade O homem livre, que vive entre os ignorantes, procura, quanto lhe é possível, evitar os seus
favores. Baruch Espinosa
A filosofia moderna: entre razão e experiência
O terreno já fora limpo pela filosofia renascentista, que separara para
sempre os campos da razão e da fé, e assim os tempos estavam maduros
para o surgimento de uma nova filosofia, não apenas mais uma releitura ou
atualização das correntes da filosofia clássica. Ao contrário da religiosa e
dogmática filosofia medieval, produzida por clérigos submetidos à autoridade
da Igreja, a filosofia que se anunciava era profana, crítica, produzida por
leigos que procuram pensar não conforme o critério da autoridade, mas de
acordo com as exigências da razão e do conhecimento científico. Portanto, a
tarefa que se impunha era repensar radicalmente os fundamentos do saber:
se não podemos mais nos pautar nos argumentos de autoridade - seja esta a
Igreja (para os católicos) ou a Bíblia (para os protestantes) -, em que devemos
então nos apoiar para a construção do conhecimento?
Duas respostas foram aventadas, duas soluções aparentemente anta-
gônicas: a razão e a experiência, que deram origem, cada qual, às duas
principais correntes do pensamento moderno - o racionalismo, de matriz
francesa, e o empirismo, de molde anglo-saxão. Seus pais são, respectiva-
mente, René Descartes (1596-1649) e Francis Bacon (1561-1626).
O primeiro - considerado o verdadeiro fundador da filosofia moderna -
parte da dúvida metódica, que põe em cheque as supostas certezas tanto do
conhecimento sensível quanto do conhecimento intelectual. Trata-se de
encontrar uma certeza que resista à dúvida e permita a reconstrução do
edifício do saber. Ao duvidar de tudo, Descartes constata que,
duvidando, pensa; e, pensando, existe. Cogito ergo sum ("penso, logo existo") será,
portanto, a pedra angular da sua filosofia. Assim, ocorre um deslocamento
radical na estrutura do pensamento ocidental, com o fundamento da certeza
transferindo-se do objeto para o sujeito, do ser para a consciência, da realidade
para a consciência.
Do outro lado do canal da Mancha, na Inglaterra, uma revolução semelhante
se processava, mas em outros moldes. Na esteira de Roger Bacon (1210-1294) e
Guilherme de Ockham (1285-1347), Francis Bacon lançava as bases do
empirismo moderno. Para ele, a descoberta de fatos verdadeiros não depende do
raciocínio silogístico\ mas antes da observação e da experimentação reguladas
pelo raciocínio indutivo, o qual se pauta por transpor em linguagem matemática
Espinosa: uma filosofia da liberdade
os fatos empíricos descritos. Somente assim é possível passar das sensações
particulares para os axiomas gerais - por meio de axiomas intermediários. O
conhecimento verdadeiro seria nada mais que o resultado da concordância e da
variação dos fenômenos, os quais, caso devidamente observados, revelariam
suas causas reais.
O empirismo viria a ser extremamente fecundo no ambiente anglo-saxão.
Seus principais nomes são John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-
1753) e David Hume (1711-1776).
Por outro lado, o cartesianismo - como também é chamado o racionalismo,
derivado de Cartesius, nome latino de Descartes - iria nos legar, na França, Nico-
las de Malebranche (1636-1715) e, na Holanda, o judeu Baruch Espinosa.
Uma vida em diáspora No Ocidente cristão, os judeus foram uma das etnias que mais sofreram
perseguições sistemáticas. De certa forma, os judeus são e não são ocidentais, ao
contrário dos muçulmanos, que, a despeito de sua próspera civilização moura na
Espanha, são sempre excluídos para a categoria do Oriente. Os judeus são
ocidentais porque desde a diáspora23 estão - ou pelo menos boa parte deles - no
Ocidente. Sua herança e suas contribuições culturais são decisivas para a
configuração da identidade ocidental. A religião do Ocidente - o cristianismo -
tem sua origem em um humilde carpinteiro judeu do primeiro século. Mas
também não são plenamente ocidentais, pois não são cristãos e sempre se
recusaram a serem assimilados, tanto que permaneceram sempre como povo e
nação distintos - mesmo não possuindo um território dispersos entre os povos e
nações da Terra, teimosamente aferrados aos seus costumes e práticas, o que
desencadeou desde o preconceito mais comezinho até campanhas sistemáticas
de extermínio, das quais o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, foi o mais
trágico.
A primeira diáspora iniciou em 586 a.C., quando o reino de Judá foi invadido
por Nabucodonosor e sua população foi deportada para a Babilônia. Apesar da
libertação em 539 a.C., apenas parte dos judeus retornou ao seu território
- a maioria optou por permanecer na Babilônia e alguns migraram para vários
países do Oriente.
O segundo momento da diáspora aconteceu no ano 70 d.C., com a destruição
de Jerusalém pelos romanos (em 135, aconteceria ainda outro cerco e destruição
da cidade). Proibidos de viver na Palestina, os judeus espalharam-se pelo Império
Romano.
23 Diáspora vem do grego e significa "dispersão" o deslocamento incentivado ou forçado de grandes massas populacionais originárias de uma
zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas. É usada sobretudo para se referir à dispersão dos judeus no mundo antigo.
Espinosa: uma filosofia da liberdade
Quando da expansão do Islã, nos séculos VIl-VIII, parte dos judeus do norte
da África se estabeleceu também na Península Ibérica, desfrutando de
significativa liberdade sob o domínio mouro.
Como o nome sugere, os antepassados de Espinosa viviam em Espinosa de
los Monteros, um pequeno vilarejo no norte da Espanha. Com a conquista de
Granada, último bastião mouro, em 1492, os muçulmanos foram expulsos da
península. Por sua vez, o decreto de Alhambra, do mesmo ano, proibiu aos
judeus a residência no país - salvo sob a condição de se batizarem e aderirem ao
catolicismo. Então uma grande leva de judeus emigrou para Portugal, que
oferecia asilo aos desterrados. Lá se fixou a família Espinosa, ainda em 1492. Mas
em 1498, por conta do casamento do rei português com a princesa espanhola, a
Coroa castelhana impôs a mesma condição a Portugal. Em conseqüência, a
família Espinosa não viu outra alternativa a não ser a conversão. Lá, na pequena
cidade portuguesa de Vidigueira, nas proximidades de Beja, nasceu Miguel de
Espinosa, pai do filósofo. A condição de cristãos-novos - ou marranos, como eram
chamados24 - era extremamente perigosa em decorrência do zelo com que a
Inquisição investigava a autenticidade de sua conversão. Por esse motivo, quando
Miguel era ainda criança os Espinosas se mudaram para Nantes, no noroeste da
França, onde, por conta de um edito de tolerância religiosa, vivia uma colônia
marrana.
Todavia, essa paz não duraria muito tempo: em 1615, todos os marranos
foram expulsos da França. De lá, a família seguiu para a Holanda, onde os judeus
gozavam de uma relativa liberdade religiosa. Talvez porque não fosse mais
prudente
24 Marrano,do árabe m/iorram="proibido" é uma designação injuriosa outro ra dada aos judeu se mouros obrigados a se converterem. Em
espanhol tem o sentido de "porco" (tanto o judaísmo como o islamismo proíbem o consumo de carne suína, pois o porco é considerado um
animal impuro).
Tópicos da Filosofia da Educação
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101
permanecer católico em um país calvinista e em guerra contra a católica Espanha,
Miguel retornou ao judaísmo de seus pais. Com o tempo, tornou-se um
abastado comerciante.
Em 24 de novembro de 1632 nasceu o filho que celebrizaria o nome da
família: Baruch em hebraico, Benedictus em latim, conforme ele assinaria em seus
livros.
Uma vida de filósofo Baruch era um jovem judeu de família abastada e em sua educação incluiu-se
o estudo do hebraico, da Bíblia, do Talmudee dos filósofos medievais judeus. Ele
se impressionou com Maimônides (1138-1204), que identificava Deus e o uni-
verso; com Levi ben Gerson (1288-1344), que ensinava a eternidade do mundo;
e com Hasdai Cresças (1340-1412), para quem a totalidade da matéria
correspondia ao corpo de Deus.
É igualmente importante a formação que Espinosa recebeu de Francis van den
Enden, um erudito egresso da Companhia de Jesus, com quem aprendeu as
línguas clássicas e as ciências naturais e por quem foi introduzido na filosofia de
Descartes. Sem dúvida Espinosa deve a Van den Enden o seu ótimo domínio do
latim, língua em que escreveria praticamente toda a sua obra.
Como matemático, Espinosa realizou cálculos sobre o arco-íris e ocupou-se
do recém-descoberto cálculo de probabilidades. Além disso, como parte dos
estudos de física, fabricava lentes ópticas, sendo provável que tenha recebido
muitas encomendas de seus amigos.
Enfim, sua curiosidade e sua inquietude o fizeram absorver o que havia de
mais novo e complexo na cultura científica e filosófica de seu tempo.
Todavia, o jovem estudante não tardaria a levantar suspeitas quanto à
ortodoxia de sua fé na comunidade judaica local. É verdade que seu ceticismo
não era estranho aos jovens das famílias marranas reconvertidas ao judaísmo. Se
entre os refugiados de Amsterdã não poucos desejavam reatar os laços com a
religião de seus ancestrais, havia também aqueles que hesitavam, preferindo
permanecer católicos. Outros ainda, ao retornarem ao judaísmo, já não
encontravam a tradição sefardita25da Península Ibérica.
Um exemplo é o caso de Uriel da Costa, que antes de voltar ao judaísmo che-
gara a ordenar-se sacerdote católico. Depois de escrever um tratado atacando a
existência de uma outra vida - o que de certa forma não era tão contrário ao ju-
daísmo primitivo foi excomungado pela sinagoga, temerosa de desagradar o
Estado calvinista que a acolhia. Abalado, o rapaz suicidou-se com um tiro. Baruch
Espinosa, que tinha oito anos na ocasião e assistira ao rito do herem26, mal sabia
Sefarditas ou sefaraditas (do hebraico sefardi, plural sefardim) são os judeus originários da Península Ibérica, que eles chamavam de Sefarad. 26 Herem, derivado do hebraico/ioram,significa"arrancarfora""separar""amaldiçoar" e indica que aquilo que foi amaldiçoado ou
excluído, seja uma pessoa ou objeto, passa a ser proibido para uso ou contato. É traduzido por"anátema"ou "excomunhão".
Tópicos da Filosofia da Educação
102
que uma sorte semelhante - a excomunhão - o aguardava.
Com efeito, a leitura de alguns comentadores judaicos da Bíblia leva-o a
duvidar, entre outras coisas, da unidade autoral do Pentateuco. Percebe também
discrepân- cias na cronologia bíblica. Em Maimônides, que tentara harmonizar as
Escrituras e o aristotelismo, o jovem encontra sua maior inspiração humanista e
antiortodoxa.
Outro que exerceria grande influência sobre ele é o seu contemporâneo Juan
de Prado, um médico que questionava, entre outras coisas, o Deus pessoal da
Bíblia, substituindo-o por uma divindade panteísta que se manifestava nas leis
naturais.
Além disso, para o ceticismo de Espinosa foram relevantes as disputas teo-
lógicas que dividiam a comunidade de Amsterdã entre os humanistas e liberais
sefarditas de um lado e os dogmáticos e intransigentes asquenazitas27 do outro.
O espírito desse segundo grupo foi aos poucos dominando a comunidade,
constrangendo os judeus ibéricos, que em geral eram prósperos comerciantes e
viviam integrados à sociedade local. O certo é que o jovem Espinosa, em meio a
tantos conflitos, partiu em busca de seu próprio caminho.
Entretanto, algumas declarações suas - como a de que na Bíblia não havia
nada que afirmasse a inexistência de um corpo físico de Deus - levaram a sina-
goga a convocá-lo para prestar esclarecimentos. De maneira arrogante, ele de-
clarou que já havia desejado romper com a congregação, mas ainda não o fizera
para evitar um escândalo. A sinagoga não teve alternativa senão aplicar-lhe o
herem em 27 de julho de 1656. Até que ponto chegou a rejeição a Espinosa em
setores da comunidade é demonstrado por uma tentativa de assassinato de que
ele foi vítima por essa época.
A excomunhão acarretou ainda outras conseqüências. Baruch Espinosa foi
obrigado a abandonar os negócios da família, uma empresa de importação e ex-
portação herdada de seu pai, falecido dois anos antes, que ele dirigia junto com
um irmão. Seus biógrafos acreditam que ele tenha se dedicado, então, à medi-
cina, pois seus escritos testemunham profundos conhecimentos médicos e sua
biblioteca continha as principais obras de medicina de seu tempo. Além disso, a
®Asquenazitas (do hebraico ashkenazi, plural ashkenazim) são os judeus oriundos da Europa central e oriental, onde era forte a influência da
Cabala e de correntes místicas heterodoxas.
Espinosa: uma filosofia da liberdade
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herança paterna foi motivo de contenda entre ele e uma meia-irmã. Apesar de ter
vencido a causa na justiça, Baruch deixou praticamente tudo para essa irmã. E
assim se precipitou o definitivo afastamento entre ele e sua família.
Depois da ruptura Depois da ruptura com a sinagoga e com a família, Espinosa ligou-se a uma
irmandade ecumênica cujos membros, muitos dos quais eruditos, eram oriundos
das mais diversas confissões religiosas. Conhecidos como colegiantes, eles
praticavam uma leitura não ortodoxa da Bíblia. Muitos deles viriam a se tornar não
só amigos como benfeitores do filósofo, ajudando-o nas dificuldades e na
publicação de suas obras.
Precisando de tranqüilidade para se dedicar ao estudo e à reflexão, Espinosa
mudou-se para a pequena aldeia de Rijnsburg, nas imediações de Leyden, que era
o centro dos colegiantes.
Mais tarde, entre 1663 e 1670, viveu em Voorburg, outra pacata localidade,
dessa vez nas proximidades da sede do Estado holandês, a cidade de Haia, onde
aumentam seus contatos políticos, como com Johan de Witt. Em Voorburg Espinosa
trabalhou no seu TractatusTheologico-Politicus, que publicou em 1670. Seguindo a
cautela então em voga, essa foi uma publicação anônima, sem o crédito da autoria.
Porém, o futuro político da Holanda estava em jogo. Guilherme III, príncipe de
Orange, tratava de se apoderar do Estado. Isso seria o fim de uma república re-
lativamente progressista em uma Europa absolutista e Espinosa preocupava-se
com essa situação: para ele, é imprescindível a participação do povo no Estado.
Suas ideias, portanto, favoreciam os partidários da república, então sob o governo
de seu amigo Johan de Witt, e contrariavam as pretensões de Guilherme de Orange
que, por sua vez, contava com o apoio dos calvinistas mais ortodoxos.
Em 1670, Espinosa mudou-se para Haia, indo morarem um bairro de intelec-
tuais e artistas. Ao mesmo tempo, aumentavam os ataques dos calvinistas a sua
obra. De Witt foi assassinado em uma revolta popular, após a invasão francesa, em
1672. Dois anos depois, a Assembleia dos Estados Gerais - agora sob o comando
do príncipe de Orange, aliado da ortodoxia calvinista - proibiu o Tracta- tus
juntamente com outros livros considerados danosos à religião do Estado. A
atmosfera era tensa.
Mesmo assim, Espinosa recusou a cátedra de filosofia que lhe foi oferecida pela
Universidade de Heidelberg, na Alemanha.
Todavia, a despeito das dificuldades - inclusive de saúde -, ele não deixou de
escrever. Começou a redação de uma gramática hebraica e retomou o trabalho em
sua Ética, obra que não conseguiu publicar por causa da pressão da Igreja
calvinista. O que foi possível foi fazer circularem algumas cópias manuscritas entre
os seus amigos.
Tópicos da Filosofia da Educação
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E pela própria força de suas ideias, sua fama atravessava as fronteiras. Muitos o
procuravam. Entres estes, estava Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que viria a
ser um dos mais proeminentes racionalistas da época.
Daqueles que o conheceram e privaram de sua amizade, é unânime o tes-
temunho de que se tratava de um homem agradável e de modos distintos. Trajava-
se com elegância e dizia a respeito do estereótipo dos filósofos: "Uma aparência
suja e descuidada não nos transforma em sábios". Solteiro e sem herdeiros, Baruch
Espinosa morreu subitamente em 21 de fevereiro de 1677, aos 44 anos. Seguindo
suas instruções, seus amigos prepararam seus inéditos para publicação.
A princípio desconhecida e atacada, a obra de Espinosa só viria a despertar real
interesse depois de Kant (1724-1804), então ganhando grande popularidade entre
os românticos - incluindo Goethe e Fichte - e proporcionando ao idealismo alemão
o elemento metafísico monista.
0 panteísmo de Espinosa A filosofia de Espinosa é uma espécie de resposta ao dualismo de Descartes,
que separou matéria e mente como duas substâncias distintas. Lançada postu-
mamente, em 1677, a Ethica Ordine Geométrico Demonstrata (Ética Demonstrada
Geometricamente) de Espinosa contém basicamente o seu sistema filosófico.
Composta à imagem da matemática (como Descartes sugerira que deveria ser a
verdadeira filosofia), cada uma das cinco partes que formam esse livro começa com
uma série de definições e axiomas, dos quais deriva todo um corpo de provas,
corolários e explicações.
A primeira parte é dedicada a Deus. Após apresentar as definições e axiomas
pertinentes, deduz 36 proposições sobre a natureza de Deus, das quais a mais
importante é sem dúvida a de número 14:"Além de Deus, nenhuma substância
pode ser dada ou concebida". Por conseguinte, tudo o que existe, sob qualquer
forma, é parte de Deus. Essa proposição panteísta, segundo a qual Deus é idêntico
ao universo, entra em choque com a concepção ortodoxa de que Deus é
transcendente e distinto da criação - daí uma das principais causas das desavenças
de Espinosa com as autoridades religiosas.
Porque não pode ser explicada por nenhuma outra coisa, essa substância - que
é ao mesmo tempo Deus e a natureza toda - é a causa de si mesma, sendo
imutável e eterna. Todavia, ela pode ser concebida sob um duplo aspecto:
■ como um processo ativo e vital, a que Espinosa dá o nome de natura natu- rans,
a natureza criadora;
■ como o produto passivo desse processo, natura naturata, a natureza criada, que
é precisamente o mundo todo e tudo o que ele contém.
Entretanto, essa substância única pode apresentar diferenças - não nos seus
atributos, mas naquilo que Espinosa denomina modos. Um modo, ou modificação, é
Espinosa: uma filosofia da liberdade
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uma propriedade mais restrita do universo, ou seja, é a maneira como determinado
atributo aparece em um nível inferior. Se a substância é eterna e imutável, os
modos são mutáveis e transitórios, além de individuais. De certa forma, é uma nova
maneira - o que Espinosa não nega - de apresentar a antiga dicotomia
essência/acidente, com a diferença de que aquela é identificada a Deus e este ao
mundo.
Ademais, de um modo ou de outro todas as coisas são animadas. Vida e mente,
de um lado, ou matéria e corpo, de outro, são apenas fases - ou atributos, na no-
menclatura espinosiana - da mesma substância divina. Sob esse ângulo, Deus -
que é a realidade eterna por trás dos eventos do mundo - pode ser considerado
como possuindo uma mente e um corpo. Nem um nem outro, isoladamente, pode
ser tomado por Deus, mas os processos mentais e materiais que configuram a
história do mundo, estes sim, são idênticos a Deus. Consequentemente, a vontade
de Deus é a soma de todas as causas e todas as leis, e o intelecto divino é o
conjunto de todas as mentes. Na metafísica de Espinosa, portanto, Deus não é
distinto do mundo e não pode ter personalidade, vontade ou propósitos. Logo, o
homem que ama a Deus não pode esperar ser amado por ele.
0 ser humano A segunda parte da Ética é dedicada ao espírito humano, isto é, ao ser humano
integral, corpo e alma. A substância, que é única, como vimos, tem uma infinidade
de atributos. Desses atributos - que são aquilo que o intelecto pode perceber da
substância - só conhecemos o pensamento e a extensão. Para Espinosa, o
Espinosa: uma filosofia da liberdade
corpo humano é um modo, isto é, uma modificação do atributo extensão. Da
mesma maneira, o espírito humano é um modo do atributo pensamento. No
entanto, no ser humano não há senão uma única entidade, vista interiormente
como alma e exteriormente como corpo. Não há como isolar os dois elementos
desse amálgama inextricável.
A cada estado ou mudança da alma corresponde um estado ou mudança do
corpo, mas um não pode agir sobre o outro, porque não há "outro". E o mundo
inteiro é dessa forma, unificadamente duplo: onde quer que haja um processo
material, externo, há outro interno, correlativo. E isso significa que o universo é um
todo consciente - uma posição conhecida como pampsiquismo: da mesma forma
que as emoções são conseqüências das mais leves alterações dos sistemas
circulatório, respiratório e digestivo, as ideias são resultado de um processo
orgânico complexo. Até mesmo as sutilezas da reflexão matemática repercutem no
corpo e, por outro lado, não pode acontecer nada ao corpo que não seja percebido,
consciente ou inconscientemente, pela mente.
Depois de suprimir a distinção entre corpo e alma, Espinosa nega que existam
faculdades como intelecto, vontade, imaginação ou memória:"[...] a mente não é
uma agência que lida com ideias, mas as próprias ideias em seu processo de
concatenação. Intelecto é meramente um termo abstrato e abreviado para indicar
uma série de ideias; e vontade, um termo para uma série de ações ou
volições"(DURANT, 2000, p. 178).
A vontade é em primeiro lugar o pensamento de um conjunto de ações a ser
praticado e, quando não há obstáculos, a ação em vista inevitavelmente se segue. A
ilusão de uma determinada escolha brota da ignorância a respeito das causas
precedentes. Assim, vontade e intelecto são uma coisa só, pois uma volição (ato de
escolher ou decidir) é apenas uma ideia que, pela riqueza de associações - ou
talvez pela ausência de ideias opostas, permaneceu na mente tempo suficiente para
passará ação.
O que é frequentemente chamado de vontade deveria ser mais apropriadamente
chamado de desejo, que é um apetite ou instinto do qual temos consciência. Por
trás dos instintos está o esforço vago e constante de autopreserva- ção. O prazer e
a dor são o resultado da satisfação ou não de um instinto, e não são as causas de
nossos desejos, mas seus resultados:"[...] nós não desejamos as coisas porque elas
nos dão prazer; mas elas nos dão prazer porque as desejamos; e nós as desejamos
porque temos que desejá-las" (DURANT, 2000, p. 179). Por conseguinte, para
Espinosa não existe livre-arbítrio, pois"as necessidades da sobrevivência
determinam o instinto, o instinto determina o desejo, e o desejo determina o
pensamento e a ação" (DURANT, 2000, p. 179).
Espinosa: uma filosofia da liberdade
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A moral, o sábio e a eternidade Partindo do pressuposto que a vontade de Deus e as leis da natureza são uma
única e mesma realidade, segue-se daí que todos os acontecimentos são resultan-
tes de leis invariáveis. Com efeito, o mundo espinosiano é um mundo de determi-
nismo, não de vontade e liberdade.
Para Baruch Espinosa, o bem é altamente subjetivo. O que é bom para de-
terminada espécie (por exemplo, o leão) pode não ser para outra (a gazela). Da
mesma forma, o que tomamos como mal pode não sê-lo com respeito à totalidade
do universo, mas somente em relação à nossa própria natureza. Assim, do ponto
de vista da substância divina, não faz sentido a distinção entre bem e mal, já que tal
distinção só diz respeito às criaturas finitas.
Daí o equívoco do modo tradicional de solucionar o problema da teodiceia, isto
é, a tentativa de conciliar a experiência concreta da existência do mal com o
postulado da bondade divina. Ora, Deus está além do bem e do mal. O bem e o mal
estão relacionados muitas vezes a perspectivas humanas extremamente individuais
(o que é bom para mim pode não ser para você), não tendo validade para um
universo no qual os indivíduos são coisas ínfimas e efêmeras.
Na última parte da Ética, Espinosa expõe o que seriam para ele os distintivos do
sábio: liberto das paixões e da ignorância, o sábio é aquele que realiza si-
multaneamente a felicidade, a virtude e o conhecimento racional, vivendo já na
eternidade - no sentido de que já atingiu o conhecimento do eterno.
Todavia, como conseqüência lógica do sistema espinosiano, a imortalidade da
alma individual está naturalmente excluída, de modo que essa imortalidade só
poderá ser entendida como a eternidade das ideias verdadeiras, que pertencem à
substância divina. Desse modo, eternos serão somente os pensamentos dos sábios,
ao passo que os pensamentos das pessoas vulgares estão votados ao
aniquilamento total dentro do sistema racional da substância divina.
Igreja e Estado O problema político e religioso foi abordado por Espinosa no Tractatus The-
ologico-Politicus, um dos poucos livros do autor publicados em vida. Sua teoria
política tem muito em comum com Thomas Hobbes (1588-1679), mas enquanto
este desenvolve o seu sistema de maneira empírica, o filósofo holandês, como um
bom racionalista, deduz suas conclusões de sua teoria metafísica geral. Para ele, o
Estado e a Igreja são meios irracionais para o advento da racionalidade. As obras
praticadas - ou não - em vista das recompensas e dos castigos temporais e
eternos, segundo as ameaças ou promessas dos clérigos e governantes, dependem
do temor e da esperança - os quais, para o nosso filósofo, são paixões irracionais.
No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os seres humanos
Tópicos da Filosofia da Educação
108
encontravam-se em guerra contínua uns contra os outros. Tendo em vista o bem
comum, eles se uniram em uma espécie de pacto social pelo qual se com-
prometeram a abrir mão da violência e a auxiliarem-se mutuamente. Todavia, o
pacto não é suficiente: é necessária a força para que ele se sustente, pois o direito
sem a força não é eficaz. Assim, os membros do pacto confiaram a um poder
central a força de que dispõem, encarregando-o de zelar pelos direitos e deveres
de cada um. Só então o Estado é realmente constituído - dispondo de poder
absoluto para alcançar os seus fins.
Contudo, o Estado não é o fim supremo do ser humano: o seu papel é ajudar na
consecução desse fim, que é o conhecimento de Deus e uma vida segundo a razão.
Portanto, se o Estado se mantiver na violência, obstaculizando o desenvolvimento
racional da sociedade, cidadãos mais cedo ou mais tarde se rebelarão contra ele e o
destruirão. Porém, das ruínas desse Estado surgirá outro, mais conforme à razão.
Assim, do Estado natural emerge o Estado racional, o qual limitaria os poderes de
seus cidadãos apenas na medida necessária à sua finalidade, que não é a de
dominá-los pelo medo, mas antes a de libertar de tal modo o indivíduo do medo
que ele possa viver e agir com total segurança. A partir dessas premissas, é
secundária a forma específica de governo - monárquica, aristocrática ou
democrática -, ainda que Espinosa manifeste uma preferência por esta última.
E, segundo Espinosa, um outro grande instrumento irracional a serviço da ra-
cionalidade é a religião, espécie de sucedâneo popular da filosofia. Mesmo que o
conteúdo da religião revelada seja racional, não o é a forma na qual ela vem embu-
tida, que rebaixa o conhecimento filosófico de Deus em uma revelação mítica. Por
outro lado, a ação racional - que deveria derivar do conhecimento de Deus -
reduz- -se à obediência mecânica aos mandamentos. De todo modo, em seus
dogmas a religião representaria, de forma tangível e simbólica para a mentalidade
do povo, as verdades racionais acerca de Deus e do ser humano.
Consequentemente, o que é válido nos dogmas não é a sua fórmula externa e sim
o seu conteúdo moral, ou seja,"induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo,
na unificação final de tudo
e de todos em Deus"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 301). Assim, já estamos
nos umbrais da religião racional e naturalista do lluminismo e a léguas de distância
do pensamento filosófico religioso da escolástica.
Além disso, como descendente de judeus convertidos à força, e vivendo no
primeiro país europeu a gozar de uma significativa liberdade religiosa, Espinosa
advoga a total separação entre Igreja e Estado.
Texto complementar Definições (ESPINOSA, 1964, p. 117-118)
Espinosa: uma filosofia da liberdade
109
I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por
outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como
existente.
II. Diz-se que uma coisa é finita no seu gênero quando pode ser limitada por
outra da mesma natureza. Por exemplo: um corpo diz-se que é finito, porque
sempre podemos conceber outro que lhe seja maior. Do mesmo modo, um
pensamento é limitado por outro pensamento. Porém um corpo não é limitado por
um pensamento, nem um pensamento por um corpo.
III. Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é,
aquilo cujo conceito não carece de conceito de outra coisa do qual deva ser
formado.
IV. Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância, como
constituindo a essência dela.
V. Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que existe noutra
coisa por meio da qual também é concebido.
VI. Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que
consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita.
Explicação: digo que é absolutamente infinito, e não que é infinito no seu
gênero; porquanto ao que somente é infinito no seu gênero podem negar- -se-lhe
infinitos atributos, e, pelo contrário, ao que é absolutamente infinito
Espinosa: uma filosofia da liberdade
110
pertence à respectiva essência tudo o que exprime uma essência e não envolve
qualquer negação.
VII. Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza
e por si só é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada
maneira.
VIII. Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como
seqüência necessária da mera definição de coisa eterna.
Explicação: Pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa,
como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo
tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim.
Atividades 1. A partir do texto complementar, de Baruch Espinosa, um dos representantes da
filosofia moderna, tente estabelecer os pontos de contato e diferença com a
filosofia do período anterior - mais precisamente, a escolástica.
2. Segundo a filiação dos pensadores às correntes da filosofia moderna, assinale R se
ele pertencer ao racionalismo, e E se pertencer ao empirismo.
Nicolas de Malebranche David Hume John Locke Baruch Espinosa René Descartes
Francis Bacon George Berkeley
3. A respeito das proposições filosóficas de Espinosa sobre a doxa (opinião, senso
comum) e a episteme (ciência), assinale se os enunciados abaixo são falsos (F) ou
verdadeiros (V).
Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da filosofia.
O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade.
Ao saber instituído (episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa).
Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto.
Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira
sistematizada.
Para produzir filosofia Que ensinamentos podemos extrair da vida de Baruch Espinosa para a nossa prática
pedagógica?
0 lluminismo e o Século das Luzes O lluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele
próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro.
Imputável a si próprio é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da
inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser
guiado por outro. Sapere audeP Tenha a coragem de servir-se da tua
própria inteligência! - é, portanto, o lema do lluminismo. Immanuel Kant
Há algo de novo debaixo do Sol As sociedades tradicionais são avessas às transformações da história e às
revoluções. Os filhos seguem a profissão dos pais, que por sua vez seguiram
a de seus pais e avós; as pessoas morrem nas mesmas aldeias em que
nasceram e viveram. Não há inovações nos métodos de cultivo da terra e na
produção artesanal dos poucos instrumentos de uso manual de que se
servem. Durante muito tempo a humanidade foi assim. É verdade que guerras
e epidemias perturbaram a paz bucólica dessas gerações. É verdade também
que o preconceito e a superstição causaram não poucas vítimas entre aqueles
que, eventualmente, procuraram seguir outros caminhos. Com efeito, os
horizontes eram estreitos; as estradas, poucas e perigosas; as alternativas,
mínimas, quando não nulas. Realmente, não havia nada de novo debaixo do
Sol.
Todavia, no século XVIII algumas revoluções sacudiram profundamente a
sociedade ocidental, desencadeando mudanças como nunca antes se tinha
visto, a despeito de o germe dessas mudanças já vir atuando sub- -
repticiamente nos últimos séculos: a Revolução Industrial e a Revolução
Francesa. Depois delas, o mundo nunca mais seria o mesmo. Como causa
dessas duas revoluções (de modo indireto na primeira e direto na segunda)
está o lluminismo.
Também chamado de Ilustração ou Século das Luzes, o lluminismo foi o mo-
vimento intelectual que caracterizou o pensamento europeu no período que
decorre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). O nome
deriva do seu objetivo de iluminar com a razão todas as áreas da ação humana. Aufklàrung - clareamento, clarificação, iluminação - Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo inteiramente "iluminado", isto é, visível. Nada deve permanecer velado ou coberto. O conhecimento da natureza emancipa-se do mito, e o conhecimento da sociedade deve, também, fundar-se na razão. A razão esclarecida é uma razão emancipadora. (MATOS, 2006, p. 33)
Nesse sentido, são precursores do lluminismo vários pensadores da Renas-
cença que foram buscar inspiração para os seus anseios de renovação nos fi-
lósofos da Antiguidade clássica. Embora não tenha nada em comum com os
movimentos pré-iluministas, a Reforma Protestante (1517) também contribuiu
para eles ao abalar a autoridade da Igreja romana e favorecer o nascimento do
individualismo moderno ao proclamar o livre exame das Escrituras e o acesso
direto do fiel a Deus. O caldo de cultura dessas transformações foi a insegurança
crítica do século XVII, impactado pelas guerras religiosas, pelas novas descober-
tas científicas, pelas viagens ultramarinas e seus efeitos econômicos.
A segurança e a estabilidade da Idade Média, representadas pelo geocen-
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 112
trismo28 e o teocentrismo29, foram profundamente abaladas nesse período. Uma
nova classe - que já despontara ao final da Idade Média, não mais ancorada na
propriedade da terra e nos laços de sangue, mas na livre-iniciativa, na acumula-
ção do capital e no individualismo - dá os passos decisivos para a conquista do
poder, não sem a vigorosa reação das antigas classes hegemônicas. Até certo
ponto, o lluminismo é a ideologia dessa classe, a burguesia, então empenhada
não apenas em fazer negócios, mas também em fazer história.
As fontes filosóficas do lluminismo são o racionalismo inaugurado por René
Descartes (1596-1649) e o empirismo inglês, especialmente John Locke (1632-
1704).
Com o racionalismo, o lluminismo se vê munido de um método crítico rigo-
roso, eficientíssimo no seu projeto de demolir a tradição e instaurar uma época
regida pelas luzes da razão.
Já com o empirismo ele se equipa de uma série de procedimentos simples,
experimentais, aptos a proporem a reconstrução da realidade a partir de seus
dados imediatos.
Antigo sistema cosmológico que considerava que o centro do sistema planetário era a Terra, em torno da qual girariam todos os demais
astros.
29 Doutrina segundo a qual Deus é o centro de tudo.
O lluminismo e o Século das Luzes
113
Assim municiado, o lluminismo vê no conhecimento da natureza e no seu
domínio real a tarefa fundamental do ser humano. Daí a necessidade de uma
descontrução radical do passado histórico, marcado pela superstição e pela ig-
norância. Isso não significa a negação da história como um fato efetivo, mas a
necessidade de considerá-la de um ponto de vista crítico: o passado não foi um
estágio necessário da evolução da humanidade, mas um conjunto de equívocos
explicáveis pela insuficiência no uso da razão.
Por esses motivos o lluminismo ostenta um militante otimismo na capacidade
humana de emancipação, de superação e de progresso. Fundado nessa ideia
capital, ele persegue em todas as partes a realização desse ideal. Mais que um
movimento estritamente filosófico - na filosofia, ele foi mais divulgador que
original quando comparado com o período anterior -, o lluminismo foi um mo-
vimento cultural que abrangeu não só o pensamento filosófico e científico, mas
as artes em geral, a política e o comportamento dos nobres esclarecidos e dos
burgueses ascendentes: Por esta sua simplicidade, em relação aos seus intentos vulgarizadores, o lluminismo se espalha pela sociedade, leva ao meio do mundo os pensamentos dos filósofos que os precederam. Penetra a cultura, a literatura, a poesia; ingressa nos salões, penetra nas cortes, galga os tronos dos príncipes reformadores, até determinar, afinal, o maior movimento social, econômico, político dos tempos modernos: a Revolução Francesa. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 337)
Da Inglaterra e da França as luzes brilham para
o mundo Se foi na França que o lluminismo atingiu a sua forma extrema e revolucio-
nária, as suas origens imediatas podem ser encontradas nas ilhas britânicas, na
Inglatera. Entre 1640 e 1688, a primeira revolução burguesa da história acabou
com o absolutismo inglês, transferindo ao parlamento o poder efetivo e impondo
ao rei uma monarquia constitucional. Ao mesmo tempo, os filósofos empi- ristas
e as novas descobertas, como as de Newton (1642-1727), abalavam as
convicções medievais, abrindo caminho para a ciência moderna. De passagem
pela Inglaterra, o francês Voltaire impressionou-se com essa liberdade de pensa-
mento e de expressão. Absorveu as novas ideias e, por meio do livro Cartas Filo-
sóficas ou Sobre os Ingleses, de 1734, divulgou-as na França, onde o lluminismo
adquiriu os aspectos com os quais ficaria mundialmente conhecido: o culto à
razão, a ojeriza à tradição, o antiautoritarismo e a idealização do homem primi-
tivo, em estado de natureza. Com efeito, diante das mazelas daquele tempo - as
sangrentas guerras entre católicos e protestantes, a Inquisição, o despotismo, as
estratificações feudais -, os iluministas não raro voltaram os olhos para o homem
primitivo, o qual, segundo eles, vivia em estado de natureza, em liberdade e har-
monia, servindo-se de uma moral e de uma religião naturais, sem dogmas ou
hierarquias. "O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe" disse Jean- -
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 114
Jacques Rousseau.
Mas o lluminismo não foi necessariamente antirreligioso: ele pretendia, antes,
acomodar a religião às novas ideias, o que o levou a entrar em choque com as
Igrejas estabelecidas. Sua religião ideal era uma religião natural, como a dos
deístas e livres-pensadores ingleses: sem dogmas, sem revelação divina, sem
sacerdotes, sem mistérios, sobretudo sem crendices. Pois os iluministas se
bateram principalmente contra a fé popular nos milagres e todo tipo de supers-
tições. Se as leis da natureza são fixas, como dizia a física newtoniana, não pode
haver milagres. De fato, o Deus iluminista é muitas vezes como o primeiro motor
imóvel, o qual, uma vez criado o mundo, abstém-se de intervir nesse mundo.
Mas, de certa forma, o lluminismo deificará a razão - como a entronização da
deusa razão durante a Revolução Francesa exemplificará admiravelmente.
Luzes e revolução O ponto culminante do lluminismo francês e mundial (já que o movimento,
atingindo as colônias americanas, deixava de ser apenas europeu) foi a publica-
ção da Encydopédie ou dictionnaire des sciences, des arts et des métiers (Enciclopédia ou
dicionário das ciências, das artes e dos ofícios). Foi a primeira enciclopédia. Dirigida por
D'Alembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), foi publicada entre os anos de
1751 e 1780, em 34 volumes, dedicando um espaço considerável à tecnologia -
o que revela o empreendedorismo do espírito burguês que presidiu os trabalhos.
Vários iluministas famosos, como Voltairee Rousseau, colaboraram, sendo por
isso chamados enciclopedistas, e assim suas ideias encontraram um poderoso meio
de vulgarização e propagação.
Além disso, muitos dos filósofos do movimento eram também talentosos li-
teratos e, no limiar da sociedade de massas, suas peças e romances também se
tornaram um importante veículo na divulgação das novas ideias. O jornal, então
nascente, e os panfletos igualmente cumpriam essa função.
Assim, aquilo que no começo do século era as ideias de um punhado de fi-
lósofos, cientistas, libertinos e livres-pensadores, perto de seu último quartel já
O lluminismo e o Século das Luzes
4
115 ■
havia se tornado dominante em círculos influentes da burguesia e da
nobreza. Em muitos países, os monarcas absolutos (assessorados por
conselheiros embebidos de lluminismo) realizaram reformas inspiradas pelos
novos princípios: tolerância religiosa, limitação ou abolição dos privilégios
feudais, modernização do processo penal, eliminação da tortura, reformas
administrativas, liberalização da economia. Entre esses dirigentes, Frederico II, da
Prússia (1740-1786), amigo de Voltaire; a czarina Catarina, da Rússia (1762-
1796), amiga de Diderot. Em Portugal, não foi o monarca, mas o primeiro-
ministro Sebastião José de Carvalho Melo, mais conhecido como Marquês de
Pombal (1750-1777).
O primeiro caso de implantação radical das ideias políticas do lluminismo
deu-se no outro lado do Atlântico: em 1776, com a Revolução Americana, nascia
a primeira nação inspirada diretamente nos ideais iluministas. Na Declaração da
Independência dos Estados Unidos, proclamava-se que "todos os homens são
criados iguais" e dotados de "direitos inalienáveis", entre os quais "o direito à
vida, à liberdade e à procura da felicidade". Além disso, a Constituição Americana
de 1787, foi o primeiro documento político em que se consignavam os direitos
individuais dos cidadãos. E a sua primeira emenda, de alguns anos depois,
assegura a separação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade de culto, de
expressão e de livre associação.
Todavia, a monarquia francesa mostrou-se irredutível aos ideais iluministas,
não restando à burguesia alternativa senão, associando-se aos camponeses e
aos trabalhadores urbanos, deflagrar o movimento revolucionário. A 26 de
agosto de 1789, foi aprovada pela Assembleia Nacional Francesa a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo primeiro artigo declara
peremptoriamente que "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos". Os
privilégios feudais foram abolidos; os bens eclesiásticos, confiscados; Igreja e
Estado foram separados e em 1791 foi aprovada uma constituição que consagra
os princípios de Montesquieu sobre a separação dos poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário). A Revolução Francesa tornou-se um marco de um novo
ordenamento socioeco- nômico, tendo como classe dominante a burguesia, que
desobstruiu o caminho para o desenvolvimento do capitalismo e consolidou os
ideais liberais30.
Mais tarde, com as guerras napoleônicas (1804-1815), muitos dos princípios
revolucionários foram aplicados às outras nações. Mesmo com a restauração
conservadora posterior à derrota de Napoleão, o novo regime burguês, muitas
vezes associado à velha aristocracia, estabeleceu-se paulatinamente em toda a
Europa.
O ano do início da Revolução Francesa (1789) é também considerado pelos historiadores como o marco inicial da Idade Contemporânea.
Tópicos da Filosofia da Educação
116
A independência das nações da América Latina, no começo do século XIX, foi
outro fruto dos ideais iluministas.
Finalmente, aquilo que começara nos gabinetes de estudo, nos salões e nos
cafés, às vezes como a especulação diletante de alguns filósofos, convertera-se
- no curso de um século e meio - em uma das maiores mudanças sociais, eco-
nômicas e culturais já ocorridas na história da humanidade. Com efeito, a razão
tem efeitos revolucionários.
A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes
chegam à técnica Mas os efeitos revolucionários não ficaram restritos aos níveis político e
jurídico. Outra revolução aconteceu simultaneamente, transformando
profundamente as bases econômicas sobre as quais se assentava a sociedade. O
milenar sustentá- culo da produção, de matriz agroartesanal, transferiu-se para
outro ponto, predominantemente urbano-industrial, ao passo que o comércio -
que já emergira das cinzas no final da Idade Média, levando em seus ombros um
novo protagonista social, a burguesia - fazia circular com mais agilidade os bens
produzidos.
A Grã-Bretanha - o país do empirismo, do liberalismo econômico e de sua
versão mais radical, o utilitarismo - foi o palco em que se processou essa revolu-
ção que com justiça recebeu o apodo de industrial.
Uma série de fatores contribuiu para isso: um inédito excedente de capital, o
acesso a grandes reservas de recursos naturais - sobretudo nas colônias de seu
império global - e o surgimento de novas técnicas produtivas. Com efeito, a
ciência e a técnica conquistavam os instrumentos, capazes de multiplicar as
forças produtivas em uma proporção nunca antes imaginada: De fato, basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor usava-se a energia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que houvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dos tempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram da Revolução Industrial. (ARANHA, 1986, p. 180)
Em pouco tempo as antigas oficinas de artesãos deram lugar a fábricas provi-
das com as máquinas recém-inventadas - as quais produziam um maior volume
de bens, com menos dispêndio de tempo e, proporcionalmente, de mão-de- -
obra, e a um preço bem mais vantajoso, atendendo à crescente demanda do
mercado nacional e internacional.
A partir de 1830, as ferrovias e os navios a vapor permitiram a criação de uma
rede de comunicação e transportes mais ampla e eficiente, interligando os cen-
tros industriais, as fontes de matéria-prima e os mercados consumidores. Com
isso, agilizava-se o processo de formação de um gigantesco mercado mundial.
Junto a um vertiginoso aumento da população, ocorreu o êxodo rural,
O lluminismo e o Século das Luzes
117
fazendo as cidades incharem com trabalhadores em busca de emprego nas novas
fábricas.
A partir da metade do século XIX, a Revolução Industrial espalhou-se por
outros países, configurando aos poucos o mundo - com seus maravilhosos
avanços técnicos e suas não menos chocantes contradições internas - como nós
conhecemos hoje.
Nomes que brilham Ideologia da burguesia ascendente e progressista em luta contra o obscu-
rantismo da monarquia absolutista e da aristocracia feudal, era natural que o
lluminismo acompanhasse a expansão daquela classe, manifestando-se primei-
ramente na Grã-Bretanha - o primeiro país em que ela efetivamente galgou o
poder.
Nesse sentido, filósofos empiristas como George Berkeley (1685-1753) e
David Hume (1711-1776) são os representantes máximos do lluminismo britâ-
nico, enquanto economistas como Adam Smith (1723-1790, autor do clássico A
Riqueza das Nações, publicado em 1776), James Mill (1773-1836) e David Ricardo
(1792-1823) construíram o ideário do liberalismo clássico, que até hoje, por
meio de várias reformulações (que no entanto não tocam em seu núcleo básico -
a livre iniciativa e o Estado mínimo), constitui a ideologia da classe burguesa.
Todavia, o nome que mais influência exerceu no lluminismo francês foi o do
já citado John Locke, que em sua obra mais importante, Ensaio Acerca do Enten-
dimento Humano (1690) formulou as bases do empirismo moderno. Além disso, em
Epístola Sobre a Tolerância (1689) ele defendeu a tolerância religiosa e em Alguns
Pensamentos Sobre a Educação (1693) desenvolveu uma pedagogia em- pirista e
liberal.
Não há dúvida, porém, que o nome mais célebre do lluminismo é o de Voltai-
re (1694-1778), pseudônimo de François-Marie Arouet, que pontificou soberano
ao longo do Século das Luzes, chamado inclusive "o século de Voltaire". Escritor
engajado, militante do lluminismo, serviu-se de todos os meios ao seu alcance
(teatro, romances, poemas, ensaios, correspondência ou panfletos) para divulgar
suas ideias. Correspondeu-se com príncipes e reis, entre eles Catarina da Rússia
e Frederico II, da Prússia, de quem foi conselheiro por dois anos, vivendo em
Potsdam.
Voltaire foi um ardente e destemido defensor da liberdade de culto, de pen-
samento e de expressão, sobre a primeira publicando o seu Tratado Sobre a To-
lerância (1763). O romance Cândido ou o Otimismo, escrito em três dias é, para
muitos, a sua obra-prima, uma amostra de seu talento como escritor, marcado
pela mordacidade e a ironia. Em uma época de confiante otimismo - e o llumi-
nismo foi extremamente otimista quanto aos poderes emancipadores da razão -,
Tópicos da Filosofia da Educação
118
esse livro foi uma crítica áspera sobre a ingenuidade muitas vezes subjacente ao
otimismo. Por duas vezes preso na temível Bastilha, exilado, caluniado, persegui-
do, ouvido, adorado, aclamado, idolatrado, Voltaire, em sua longa e aventurosa
vida, simbolizou a liberdade pregada pelos iluministas e conquistada mais tarde
pelos burgueses na Revolução Francesa. Quando a Revolução triunfou, os seus
restos mortais foram transladados para o Panteão, sendo acompanhados por
uma multidão de centenas de milhares de pessoas. Até Victor Hugo, no século
seguinte, nenhum outro homem de letras seria tão célebre.
Outro grande iluminista que bebeu suas ideias iniciais nos vizinhos do outro
lado da Mancha foi o barão de Montesquieu (1689-1643), título nobiliárquico de
Charles Louis de Secondat, outro insigne elaborador do liberalismo clássico. Em O
Espírito das Leis (1748), sua obra mais importante, ele estuda as diversas formas de
governo - o despotismo, a monarquia e a república - dando especial relevo à
monarquia parlamentar inglesa. É nesse livro que o autor desenvolve a clássica
teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a fim de
salvaguardar as liberdades individuais. Suas ideias influenciaram os líderes da
Independência Americana e a primeira fase da Revolução Francesa. Outras obras
importantes de Montesquieu são Cartas Persas (1721, um relato imaginário no qual
dois persas de passagem por Paris criticam os costumes e abusos da França
absolutista) e o monumental Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e da
sua Decadência (1734-1748).
E se, a despeito de todas as suas críticas à Igreja, Voltaire admite uma religião
natural, com sanções ultraterrenas, a corrente iluminista liderada por Claude
Adriens Helvetius (1715-1771) aproxima-se do ateísmo. Seguidor de John Locke,
ele considerava que toda a atividade intelectual se assenta sobre sensações. Hel-
vetius foi precursor do utilitarismo, afirmando que o interesse próprio é o único
motivo da ação humana.
Mas caberia a Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), um sacerdote católi-
co, desenvolver com o Tratado das Sensações (1754), a doutrina do sensualismo. No
entanto, seria o franco-germânico Dietrich Holbach (1723-1789) quem se de-
dicaria a um materialismo ateu militante.
Todos esses foram enciclopedistas, colaborando com Diderot e D'Alambert na
redação da grande Enciclopédia. Todavia, todos, inclusive Voltaire, ficariam, com o
passar do tempo, à sombra da figura singular, atormentada e genial de Jean- -
Jacques Rousseau (1712-1778), de origem suíça. Ao mesmo tempo fruto do
Século das Luzes e crítico feroz da tradição, de certa forma Rousseau representa
a superação do lluminismo, enveredando por um caminho de desconfiança da
razão e retorno da emoção. A sociedade e a civilização - afirma ele - corrompem
o ser humano, sendo preciso voltar à natureza, à liberdade e à fraternidade
O lluminismo e o Século das Luzes
119
originais.
Suas obras políticas fundamentais são o Discurso Sobre a Origem da Desigualda-
dedos Homens (1753) e o Contrato Social (1762). Segundo ele, de um estado de na-
tureza ideal surge - em virtude de um contrato social - o Estado como
escravidão. Esse Estado tirânico deve ser substituído por um outro que tenha por
base a liberdade e no qual a vontade geral dos cidadãos encontrem a sua livre
expressão.
Em Emílio (1762), Rousseau imagina uma educação igualmente natural, em
que o aluno não seja oprimido pelo professor, mas antes encontre espaço para o
livre desenvolvimento de suas potencialidades.
Rousseau é considerado precursor dos movimentos socialistas, sendo um dos
primeiros a atacar a propriedade privada. Com ele, assistimos ao anúncio do
ocaso da era das luzes e o prenúncio do romantismo, no qual não mais a razão e
sim o sentimento e às vezes o sonho é que darão as cartas. Mas aí já estamos no
século XIX.
Findo o Século da Luzes, seus efeitos continuaram a agir na humanidade. A
independência das colônias da América Latina é conseqüência deles. A
Maçonaria, por um lado, que teve grande influência nessa independência, e os
movimentos socialistas, por outro, são extensões dos ideais do lluminismo a
propagarem- -se bem depois de sua época. Praticamente todos os iluministas
foram maçons e estavam ligados à burguesia. Os movimentos socialistas, que se
colocam do lado do proletariado - a classe que nasceu à sombra e sob o tacão da
burguesia
- situam-se no outro lado do espectro político. Ambos são os descendentes, por
assim dizer, dos girondinos e dos jacobinos da Revolução Francesa31.
Antes de encerrarmos esta seção com os luminares do lluminismo é bom
mencionar os nomes de Christian Wolff (1679-1754) e Gotthold Lessing (1729-
1781) como representantes do movimento na Alemanha. Nos demais países, não
se destacaram filósofos de envergadura e repercussão internacional. Países como
Portugal e Espanha, devido ao peso da Contrarreforma e o medo da Inquisição,
não chegaram a desenvolver o lluminismo - no máximo, um sucedâneo muito
tímido ou mitigado.
0 legado iluminista É difícil falar do legado iluminista em nossa sociedade já que, ao se olhar em
volta, tudo parece nos remeter a ele: a república, as constituições das nações, a
31 Durante a Revolução Francesa, os girondinos (nome derivado da região francesa da Gironda, de onde provinham seus principais
representantes) eram um grupo político moderado, chefiado por Jacques-Pierre Brissot (1754-1793), constituído pela alta burguesia. Fazia
oposição aos jacobinos (que receberam esse nome por se reunirem inicialmente no Convento de São Tiago, Jacobus em latim), que eram
liderados por Robespierre (1758- 1794) e defendiam mudanças mais radicais, apoiados pela baixa burguesia e pela plebe. Os girondinos
sentavam-se à direita no recinto da Assem- bleia Nacional, enquanto os jacobinos sentavam-se à esquerda, e dessas posições surgiu a
tradição de se identificar os termos direita e esquerda com conservadores e progressistas, respectivamente.
Tópicos da Filosofia da Educação
120
democracia, a divisão dos poderes, os direitos civis, a tecnologia, o conceito de
educação, os parâmetros curriculares, os ideais de justiça, igualdade e liberdade
etc. Com efeito, a atual classe detentora do poder continua sendo a burguesia,
que assumiu o poder em parte devido à militância iluminista. Mesmo o socia-
lismo, que no século XX foi a ideologia de um bom número de países e chegou
por um momento a ameaçar a hegemonia burguesa, tem a sua origem, como
vimos, nos grupos mais à esquerda da Revolução Francesa - portanto, também
faz parte do legado iluminista.
É verdade que depois de a burguesia ter assumido o poder e a razão ter sido
implantada como princípio norteador da sociedade, as coisas não se revelaram
assim tão maravilhosas. Também é verdade que o século XX, com duas guerras
mundiais e a experiência do totalitarismo (Stalin e Hitler fariam enrubescer os
déspotas do século XVIII), retrocedeu muitas vezes à barbárie - e essa barbárie
não significa uma volta ao estado de natureza, mas o recurso à razão mais sofis-
ticada (a razão tecnológica) para os objetivos mais irracionais, como a limpeza
étnica, realizada em larga escala e mais de uma vez no século que passou. De
fato, percebemos que a razão nem sempre leva à emancipação, pois pode colo-
car-se a serviço dos maiores obscurantismos. Por outro lado, a sociedade atual,
resultado das revoluções iluministas, não parece necessariamente um ambiente
de liberdade e livre pesquisa como sonharam os filósofos do Século das Luzes:
em muitas ocasiões, assemelha-se mais a uma grande feira em que tudo está à
venda, inclusive as ideias. Diante disso, não poucos se apressaram a declarar o
fracasso do projeto iluminista. Todavia, é de se perguntar se ele realmente fra-
cassou ou se o "fracasso" que testemunhamos não é porque o seu ideário não foi
plenamente aplicado ou foi abandonado em alguma parte do caminho.
O lluminismo e o Século das Luzes
121 ■
Texto complementar Dois tipos de desigualdade (ROUSSEAU, 1978, p. 235-260)
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de
natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença
das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma;
a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende
de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada
pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que
gozam alguns em prejuízo de outros, como serem mais ricos, mais poderosos e
homenageados do que estes, ou ainda, por fazerem-se obedecer por eles.
Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a
resposta seria enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos,
procurar a existência de qualquer ligação essencial entre essas duas
desigualdades, pois, em outras palavras, seria perguntar se aqueles que mandam
valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a força do corpo ou
do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos
indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para
discutir entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a
homens razoáveis e livres, que procuram a verdade.
De que se trata, pois, precisamente neste discurso? De assinalar, no progresso
das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, sub- meteu-se a
natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde
resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária
pelo preço de uma felicidade real.
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado
um terreno, lembrou-se de dizer que isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios,
misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as
estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos
de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que
os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!" Grande é a
possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de
não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade,
dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascido suces-
sivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-
se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e
aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do
estado de natureza.
Tópicos da Filosofia da Educação
122
Atividades 1. Segundo Olgária Matos,"Aufklàrung- clareamento, clarificação, iluminação -
Enlightment, ilustración, iluminismo e esclarecimento remetem a um mundo
inteiramente'iluminado'". Discuta com os colegas as razões e as implicações
dessa metáfora de "iluminação" referente ao lluminismo e depois registre suas
conclusões.Como podemos levar o ideal do lluminismo ao nosso trabalho de educadores?
3. Assinale com V (verdadeiro) os itens que foram precursores do lluminismo e
com F (falso) aqueles que não foram - ou porque não o influenciaram de
modo direto ou porque são seus efeitos.
( ) Descobertas ultramarinas.
( ) Racionalismo.
( ) Revolução Francesa.
( ) Empirismo Inglês.
( ) Escolástica.
( ) Máquina a vapor.
( ) Revolução Inglesa.
Para produzir filosofia A República foi proclamada no Brasil tendo como base os ideais do lluminis-
mo. Desde lá, todas as nossas constituições inspiraram-se ora mais, ora menos,
nos mesmos ideais, sobretudo a última, a "Constituição Cidadã" de 1988. No en-
tanto, em nosso país, não raro os direitos dos cidadãos são violados; não per-
cebemos que entre os três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - reina
aquela independência prescrita por Montesquieu. O que fazer para que os ideais
iluministas venham permear cada vez mais nossos valores?
Immanuel Kant e o idealismo alemão Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito,
quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu
estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Immanuel Kant
Na encruzilhada da razão Do encontro do empirismo inglês com o racionalismo francês nasceu,
como síntese prática e divulgadora, o lluminismo, o qual, por meio de duas
revoluções (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial), é a parteira da
sociedade contemporânea. No entanto, vamos encontrar a síntese filosófica
do racionalismo e do empirismo no criticismo, que está na origem do idealismo
alemão e, por força deste, do pensamento contemporâneo.
Para compreender as curvas e voltas que o curso da filosofia descreveu até
o alvorecer da Idade Contemporânea (iniciada em 1789) e vislumbrar os
caminhos que suas correntes seguiriam desde então, é inelutável nos
depararmos com Kant, o fundador do criticismo. O pensamento moderno - após a Renascença - pode-se, assim, comparara um grande X, representando Kant precisamente o centro: os dois braços anteriores representariam o empirismo e o racionalismo, que convergem para Kant; os dois braços posteriores representariam o idealismo e o positivismo, que dependem de Kant. (PADOVANI;
CASTAGNOLA, 1984, p. 359) Mas o que é o criticismo?
Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação
crítica dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para
toda a filosofia.
Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que se propõe uma
investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.
Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o
caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o
racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia
uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval
atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?
Com efeito, no decorrer dos séculos XVII e XVIII foram duas as respostas
aventadas.
De um lado, com o racionalismo (que teve o seu início na França, com René
Descartes - 1596-1650), alguns filósofos responderam que a razão é a única fonte
de conhecimento válido.
Do outro lado - inclusive do outro lado do Canal da Mancha, isto é, na Inglaterra
situam-se os que, como os britânicos Roger Bacon (1561-1626), John Locke
(1632-1704) e David Hume (1711-1776), defenderam que o conhecimento
autêntico procede da experiência sensível. Daí o nome de empirismo dado a esta
corrente, pois a palavra empeiría, em grego, significa "experiência".
Ao embate entre empirismo e racionalismo deve-se acrescentar o prodigioso
desenvolvimento que as ciências naturais experimentaram na época, notada-
mente com a nova física formulada por Isaac Newton. A propósito, o empirismo foi
fundamental para o advento da revolução científica na medida em que estabeleceu
as bases de experimentação e controle sobre as quais pode se alçar a ciência
moderna.
E se, como dissemos, o lluminismo soube propagar os problemas e respostas
dessas duas correntes por toda a Europa sem no entanto lograr uma síntese sa-
Immanuel Kant e o idealismo alemão
131 ■
tisfatória, seria com Kant que essa síntese seria forjada. E essa solução, a despeito
dos hábitos pacatos de seu formulador, revolucionaria o pensamento ocidental.
0 filósofo de Kónigsberg Immanuel Kant nasceu em Kónigsberg, uma pacata cidade da Prússia Oriental32,
no dia 22 de abril de 1724. Seu pai era um modesto artesão que trabalhava com
couro, fabricava selas, e sua mãe, que era de origem propriamente alemã, não teve
estudo, mas foi mulher admirada por seu caráter e pelos dotes de uma inteligência
natural. A família Kant pertencia ao ramo pietista da Igreja Luterana, uma corrente
que reagia ao dogmatismo oficial realçando a experiência pessoal da fé, uma vida
simples e uma moral rigorosa. Immanuel foi o quarto de 11 filhos (contudo, o
primeiro que sobreviveu) e estudou no Colégio Fredericiano, estabelecimento de
espírito pietista onde permaneceu por oito anos e meio.
Em 1740, aos dezesseis anos de idade, ele se matriculou na universidade de sua
cidade natal e por cinco anos permaneceu nessa instituição. Assistiu a cursos de
Teologia e conta-se que até pregou alguns sermões. Mas sentiu-se atraído pela
matemática e pela física. Começou a ler os trabalhos de Newton auxiliado por um
amigo que era um entusiasta da ciência deste físico inglês e também havia
estudado com Christian Wolff, um sistematizador da filosofia racionalista.
Todavia, aos 21 anos o jovem Kant foi obrigado a ganhar a vida por causa da
morte de seu pai, suspendeu os estudos e pôs-se a trabalhar como professor
particular, atividade em que foi bem-sucedido e que lhe permitiu conviver com o
melhor da sociedade de seu tempo. Servindo a uma família na cidade próxima de
Arnsdorf, foi esse o único período em que morou fora de Kõnigsberg. Finalmente,
em 1755, Kant pôde completar os estudos, obtendo o grau de doutor, depois do
que, na mesma Universidade de Kõnigsberg, assumiu a posição de livre-docente e
lecionou por 15 anos. Ao contrário do estilo denso e pomposo de seus livros, suas
aulas eram dinâmicas e alegres.
Foram anos de muita leitura, nos quais não se suspeitava que por trás daquele
professorzinho que mal passava de um metro e meio de altura escondia-se um
gigante do pensamento. Com efeito, após um primeiro momento de interesse pelas
ciências naturais, sobretudo pela física newtoniana, Kant mergulhou na filosofia
racionalista, sobretudo a de Leibniz e Wolff.Todavia, após o contato com os
empiristas ingleses - Locke e principalmente Hume -, ele foi despertado do sono
dogmático, como chamou o racionalismo.
Outro autor que então exerceu grande influência sobre Kant foi Rousseau, com
sua radical desconfiança da razão. Como conseqüência, Kant passou por uma
profunda crise, que resultou em uma suspeita em relação aos alcances da
32 Fundada no século XIII pelos Cavaleiros Teutônicos (ordem religiosa militar, como os Tem piá rios, que lutou nas Cruzadas), Kónigsberg já foi
capital da Prússia, já pertenceu à Polônia e, desde 1946 - agora com o nome de Kaliningrado, pertence à Rússia, como um enclave situado entre a
Lituânia ea Polônia.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 132
metafísica racionalista. Expressão dessa fase é o livro Sobre as Formas e Princípios do
Mundo Sensível e Inteligível (1770), em que a metafísica é comparada aos sonhos de
Swedenborg (1688-1772), um místico sueco daquela época. No mesmo ano de
1770, entretanto, ele foi promovido à cátedra de lógica e metafísica da universidade
(da qual só se aposentaria, por motivos de saúde, em 1796). Desse modo se
encerra o período conhecido como pré-crítico no pensamento kantiano.
O período crítico anuncia-se com a publicação da Crítica da Razão Pura (1781), obra
na qual Kant vinha se dedicando já por dez anos e que marcou uma guinada
decisiva não só no seu pensamento como no pensamento ocidental depois dele,
por meio de uma explanação rigorosa dos alcances e os limites da razão. Outras grandes obras suas são:
■ Prolegômenos a toda Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência (1783),
em que aborda o mesmo problema com vistas exclusivas à metafísica;
■ Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), que é seu primeiro trabalho sobre
a moral;
■ Crítica da Razão Prática (1788), em que o problema moral é nova e amplamente
abordado;
■ Crítica do Juízo (1790), em que se debruça entre outras coisa sobre a estética; e
■ A Religião nos Limites da Simples Razão (1793), em que é exposto o cristianismo sob
uma óptica racional, o que lhe acarretou uma proibição do governo prussiano
de lecionar ou escrever sobre temas religiosos - sem vocação para Sócrates,
Kant acatou o "silêncio obsequioso"até a morte do monarca e então fez publicar
um resumo dos seus pontos de vista religiosos.
Immanuel Kant seguiu sempre uma disciplina rigorosa, tanto na vida quanto na
sua investigação filosófica. Não casou, não teve filhos, nunca viajou além de sua
Prússia natal - apesar de ter dado ótimas aulas de geografia. Sua vida transcorreu
da maneira mais regular possível: Acordar, tomar café, escrever, fazer palestras, jantar, caminhar, diz Heine, tudo tinha a sua hora marcada. E quando Immanuel Kant, com o seu casaco cinza, bengala na mão, aparecia na porta de casa e se dirigia à pequena alameda de tílias que ainda é chamada de'0 passeio do Filósofo', os vizinhos sabiam que eram exatamente 15h30. (DURANT, 2000, p. 254)
Conta-se que somente duas vezes ele não saiu no seu tradicional passeio:
quando recebeu os jornais com a notícia da queda da Bastilha (Kant acompanhou
com interesse a Revolução Francesa, embora tenha se desapontado com os seus
rumos) e quando lia o Emílio (só mesmo Rousseau para sacudir a rotina do austero
professor!).
Mas Kant não era má companhia não:"foi um brilhante conversador e a sua pre-
sença em reuniões sociais foi sempre acolhida com agrado" (RUSSELL, 2002, p.
341).
Talvez seja graças à regularidade de seus costumes que tenha vivido muito, não
obstante uma compleição frágil. No entanto, após um declínio gradual em que foi
Immanuel Kant e o idealismo alemão
133 ■
pouco a pouco perdendo as suas faculdades - o que foi muito doloroso tanto para
ele quanto para seus amigos -, Immanuel Kant faleceu, octogenário, em
Kõnigsberg, a 12 de fevereiro de 1804.0 empenho com o qual ocupou toda a sua
vida pode ser resumido em sua famosa frase: "Não se pode aprender a filosofia;
somente se pode aprender a filosofar."
Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana Não obstante a vida regrada e provinciana, Kant viveu profundamente os
dilemas e angústias de seu tempo. Súdito de uma monarquia absoluta, ele almejava
a liberdade da república. De formação pietista, estava ciente dos problemas
decorrentes da não-separação entre Igreja e Estado. Mas, sobretudo como filósofo,
Kant vivenciou o embate entre racionalismo, empirismo e física newto- niana. E
desse embate produziu uma nova e grandiosa filosofia: "Na confluência dessas três
grandes correntes, situou-se Kant; e dessas três grandes correntes tirou os
elementos fundamentais para poder estabelecer de um modo eficaz [...] o problema
da teoria do conhecimento e, em seguida, o problema da metafísica" (MORENTE,
1967, p. 218). Portanto, o criticismo kantiano pode ser caracterizado como uma
espécie de terceira via entre o dogmatismo dos racionalistas e o ceticismo dos
empiristas, como se pode perceber no segundo prefácio à Crítica da Razão Pura: A crítica opõe-se [...] ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico) apoiado em princípios, como os que a razão desde há muito aplica, sem se informar como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade. Esta oposição da crítica ao dogmatismo não favorece, pois, de modo algum, a superficialidade palavrosa que toma a despropósito o nome de popularidade, nem ainda menos o cepticismo que condena, sumariamente, toda a metafísica. A crítica é antes a necessária preparação paraoestabelecimentode uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular). (KANT, 1985, p. 23-31)
Em outro momento, Kant define a filosofia como "a ciência da relação de todo
conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana". Nesse
sentido, a filosofia deve responder a quatro questões: ■ O que posso saber? ■ O que devo fazer?
Tópicos da Filosofia da Educação
134
■ O que posso esperar? ■ O que é o ser humano?
Essas questões são discutidas, respectivamente, pela metafísica, pela moral,
pela religião e pela antropologia. A última pergunta é a mais importante e sintetiza
as outras três. No entanto, nosso dever e nosso destino somente podem ser de-
terminados depois de um profundo estudo das possibilidades do conhecimento
humano, o que nos leva à primeira pergunta. E é por isso que a primeira e principal
obra que contém o pensamento sistematizado de Kant é a Crítica da Razão Pura.
A razão no tribunal Para David Hume (a quem Kant atribui o mérito de tê-lo despertado do"sono
dogmático"), não se pode alcançar um saber autêntico, já que todo o saber humano
é apenas provável, sempre restrito aos limites da experiência: além dos dados
palpáveis dos sentidos, a aventura pelos caminhos metafísicos jamais levaria a um
conhecimento seguro, sequer plausível. Embora impactado pelo pensador inglês,
Kant discorda desse posicionamento, pois para ele existe sim um saber fidedigno,
que é a ciência matemática da natureza, isto é, a nova física de Newton.
Além disso, não se pode negar que, se os resultados da metafísica são inve-
rificáveis, eles pelo menos são o testemunho de um esforço investigativo do ser
humano para transcender as balizas da experiência.
De fato, se por um lado, a atitude crítica pode negar a possibilidade de resolver
certos problemas, por outro não pode deixar de enfrentar o desafio de explicar a
gênese desses mesmos problemas.
Assim, Kant institui o tribunal que, julgando as demandas da razão, garante
suas pretensões legítimas enquanto afasta as ilegítimas. Esse tribunal é a Crítica da
Razão Pura, ou seja, uma autocrítica geral da razão no que diz respeito a todos os
conhecimentos a que se pode aspirar independentemente da experiência, um
exame do conhecimento puramente racional, único meio de evitar a queda no
dogmatismo especulativo. Cabe a essa crítica decidir, também, sobre a possi-
bilidade ou a impossibilidade da metafísica, bem como, caso opte pela primeira,
sobre suas fontes, sua extensão e seus limites.
Com efeito, Kant, ao contrário dos empiristas, é partidário da postura de que é
possível a aquisição de conhecimentos extrínsecos à experiência. Na verdade, todo
o conhecimento universal e necessário, para ele, é independente da experiência,
uma vez que a experiência não pode dar valor universal e necessário aos
conhecimentos que dela derivam. No entanto, independente não significa precedente,
anterior, todo o conhecimento começa com a experiência, mas pode não derivar
totalmente dela. Pode, por exemplo, ser uma composição das impressões derivadas
da experiência com aquilo que é acrescentado, a partir do estímulo inicial, pela
nossa faculdade de conhecer.
Aqui aparece uma distinção fundamental em Kant, que se dá entre a forma e a
Immanuel Kant e o idealismo alemão
135
matéria do conhecimento. A matéria dos nossos conhecimentos é composta pelas
próprias coisas, ao passo que a forma somos nós mesmos. É necessário distinguir
no conhecimento uma matéria, constituída pela ordem e a unidade que a nossa
faculdade cognitiva dá a tal matéria. A matemática e a física pura contêm verdades
universais e necessárias - portanto, independentes da experiência. Elas contêm
juízos sintéticos apriori:
■ sintéticos no sentido de que, nelas, o predicado acrescenta algo de novo ao
sujeito; ■ a priori porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar.
O primeiro problema com que se defronta uma crítica da razão pura é ver como
são possíveis os juízos sintéticos a priori, ou seja, como é possível uma matemática e
uma física pura. O desafio consiste em alcançar e realizar a possibilidade
fundamentadora da ciência. Tal possibilidade jamais pode ser dada pela matéria do
conhecimento, constituída pela variedade sem ordem e sem forma das impressões
sensíveis. Deve ser, pois, reconhecida na forma do conhecimento, isto é, nos
elementos ou funções a priori que dão ordem e unidade a essas impressões.
Assim, a crítica tem um duplo objetivo: descobrir os elementos formais do
conhecimento e determinar o uso possível dos elementos a priori. Mesmo se
mantendo nos limites da experiência, a investigação da razão estará em condições
de justificar a própria experiência na sua totalidade e, portanto, também os
conhecimentos universais e necessários que se encontram no seu âmbito. Além
disso, é forçoso determinar o uso possível dos elementos a priori do conhecimento,
isto é, o método do próprio conhecimento. Como vimos, o conhecimento humano
é uma composição ou síntese de dois elementos: ■ um formal ou a priori; ■ o outro, material ou empírico, que é o seu objeto.
O resultado nascido desse conceito é o fenômeno. Ora, o entendimento humano
não intui, mas pensa; não cria, mas unifica - e portanto deve ser-lhe dado, por
outra fonte, o objeto do pensar, o múltiplo a unificar. Essa fonte é a sensibilidade.
Mas a própria sensibilidade é basicamente passividade: aquilo que ela possui é
recebido. Isso significa que o objeto do conhecimento não é a coisa em si, uma
essência, uma substância, e sim aquilo que aparece, ou seja, o fenômeno. Nós
percebemos o fenômeno pela experiência, mas o objeto somente é real por sua
relação com o sujeito que conhece.
Assim chegamos ao cerne da teoria de Kant, a sua revolução copernicancr. tal como
Nicolau Copérnico, que demonstrou que a Terra girava em torno do Sol, Kant
comprovou que os objetos dependem do sujeito cognoscente. Dessa maneira, em
termos kantianos não é o sujeito que se adapta aos objetos da realidade, mas a
realidade que se modela a partir da percepção do sujeito. Respondendo aos
empiristas, Kant mostrou que não é o sujeito que gira em torno do objeto, e sim o
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 136
objeto que gira em torno do sujeito.
Isso é possível porque apenas o sujeito do conhecimento é capaz de síntese,
somente ele tem a faculdade do entendimento. Em última instância, o conheci-
mento somente se torna possível porque existem as formas a priori da sensibilidade
- que são, para Kant, o tempo e o espaço.
Quanto ao espaço, se o conhecimento é relação (do sujeito com o objeto), não
podemos conhecer as coisas "em si", mas "para nós". A geometria pura, quando
aplicada, coincide totalmente com a experiência, porque o espaço é a forma a priori
da sensibilidade externa.
O mesmo se dá quanto ao tempo. Podemos concebê-lo sem acontecimentos,
internos ou externos, mas não podemos conceber os acontecimentos fora do
tempo. Objeto da intuição, o tempo não pode ser conceito. Forma vazia, intuição
pura, o tempo torna possíveis, por exemplo, os juízos a priori na aritmética, cujas
operações (soma, subtração etc.) ocorrem sucessivamente e, assim, o pressupõe.
Logo, o tempo é também a forma a priori da sensibilidade, não apenas externa como
também interna.
Além disso, existem ainda os conceitos a priori do entendimento, que são as
categorias, catalogadas em número de 12 (conforme quadro a seguir). Esses con-
ceitos puros do entendimento é que tornam possível qualquer experiência.
Immanuel Kant e o idealismo alemão
137 ■
Juízos e categorias Critério Juízos Categorias Universais Unidades
Quantidade Particulares Pluralidade Singulares Totalidade
Afirmativos Realidade
Qualidade Negativos Negação Indefinidos Limitação Categóricos Substância e acidente
Relação Hipotéticos Casualidade e dependência Disjuntivos Comunidade e interação Problemáticos Possibilidade e impossibilidade
Modalidade Assertóricos Existência e não-existência Apodíticos Necessidade e contingência
Assim, temos os juízos analíticos e os juízos sintéticos:
■ analíticos são aqueles juízos de caráter lógico, em que o predicado está contido
no sujeito, como, por exemplo, "O triângulo é uma figura de três lados"-
segundo Kant, esses juízos não ampliam nossos conhecimentos;
■ sintéticos são aqueles juízos cujo predicado acrescenta algo ao sujeito (como
por exemplo,"O calor dilata os corpos"), pois dependem da experiência; o
espaço e o tempo são condições a priori de possibilidade da intuição empírica.
Portanto, segundo a Crítica da Razão Pura, não há conhecimento de fato sem unir as
formas a priori com o conteúdo a posteriori. A experiência fornece a matéria e a forma
é a priori. A experiência é a ocasião que une forma e matéria.
O engano dos inatistas foi dizer que o conteúdo ou a matéria são inatos. Ora,
não existem ideias inatas.
O engano dos empiristas, por sua vez, foi supor que a estrutura da razão é
adquirida pela experiência.
Entretanto, sem a forma da sensibilidade e do entendimento, não há conhe-
cimento verdadeiro.
0 imperativo categórico Tendo limpado o terreno na área da razão pura, Kant voltou-se também para a
razão prática. A razão é pura, isto é, teórica e especulativa, quando se refere aos prin-
cípios a priori do conhecimento, e é pratica quando se refere aos princípios a priori da
ação. Assim, Kant estende o seu sistema à área da moral e da ética. Os principais
escritos sobre estes temas aparecem na Fundamentação da Metafísica dos Costumes
(1785), na Crítica da Razão Prática (1788) e na Metafísica dos Costumes (1797).
E se para Kant a questão da moralidade e da liberdade não são objetos da razão
pura, mas sim da razão prática, a ética é puramente racional e universal: não está
restrita a preceitos de caráter pessoal ou subjetivos nem submetida a hábitos e
Tópicos da Filosofia da Educação
138
práticas socioculturais. E, uma vez que os princípios morais resultam da razão
prática e se aplicam a todos os indivíduos, independentemente das circunstâncias,
a ética kantiana é de caráter prescritivo.
O objetivo de Kant é, com base apenas na razão, estabelecer princípios uni-
versais e imutáveis para a moral. Coerentemente com o que foi definido na Crítica da
Razão Pura, ele assinala que os princípios morais são a priori - vale dizer, não
dependem da experiência para serem prescritos. Ademais, no ser humano a
vontade não é capaz de determinar sempre a ação, porque é influenciada não
apenas por si mesma, mas também pelas inclinações dos sentidos na medida em
que eles influenciam o seu agir. Nesse caso, as ações que a lei moral prescreve
como necessárias constituem uma obrigação, o que revela a existência de um
imperativo que se expressa como um dever. Os imperativos podem ser:
■ hipotéticos - quando estão sujeitos a uma condição (deves estudar para passar
nos exames); ■ categóricos - quando é incondicional ou absoluto (não matarás).
Além disso, os imperativos hipotéticos apontam uma ação boa como meio para
algum fim - em outras palavras, são os conselhos e as regras da destreza. Assim,
economizar é bom para se garantir uma velhice tranqüila.
Os imperativos categóricos, por seu turno, são as leis práticas, são aqueles que,
ao contrário dos primeiros, estabelecem uma ação como boa em si mesma, ainda que
não seja causa de nenhum resultado: não mentir é uma ação boa em si mesma,
mesmo que nenhum mal venha decorrer do fato de mentir.
Os imperativos hipotéticos são possíveis porque quem ordena um fim ordena
também os meios necessários para se alcançar esse fim.
Já os imperativos categóricos são possíveis na medida em que representam
juízos a priori.
Os imperativos hipotéticos não podem fundamentara moral porque não são
universais. Apenas os imperativos categóricos preenchem essa condição e por isso
apenas eles, segundo Kant, podem ser imperativos da moral. A vontade é pura,
sendo moral quando é regida pelos imperativos categóricos e não pelos
imperativos hipotéticos.
O imperativo categórico independe da experiência para revelar o seu conteúdo,
que é a universalidade de uma lei à qual a ação deve se conformar. Isso quer dizer
que o princípio subjetivo pelo qual um indivíduo determina o seu agir deve ser
idêntico ao princípio objetivo que determinaria o agir de qualquer outro ser. Em
Kant encontram-se várias formulações do imperativo categórico, que foram
classificadas conforme veremos agora (GALUPPO, 2002, p. 97). 1. Fórmula da lei universal
"Age apenas com base na máxima que tu possas desejar ao mesmo tempo que se
Immanuel Kant e o idealismo alemão
139
torne uma lei universal." 2. Fórmula da lei da natureza
"Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua
vontade, em uma lei universal da natureza." 3. Fórmula do fim em si mesmo
"Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na
pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca
apenas como um meio." 4. Fórmula da autonomia
"Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo,
como um legislador universal através de suas máximas." 5. Fórmula do reino dos fins
"Agedetal maneira quetu sejas sempre através de suas máximas um membro
legislador em um reino universal dos fins."
O imperativo categórico é o primeiro empreendimento sistemático (ainda que
pese a sua austeridade de viés pietista) para se estabelecer uma moral autônoma,
isto é, uma moral que se outorga à própria lei, fundada exclusivamente na razão e
acessível a qualquer ser racional disposto e de boa vontade. A moral religiosa,
contra a qual Kant apresenta a sua moral, ao contrário, é heterônoma ao determinar
a vontade pelas conseqüências da ação - recompensas e castigos.
A autonomia implica a liberdade. Se não fôssemos livres, não seriamos res-
ponsáveis e, por conseqüência, não haveria moralidade. Ora, se a consciência moral
é um dado, devemos buscar nela própria as suas condições de possibilidade. Ainda
segundo Kant, três são os postulados da razão prática:
■ a liberdade;
■ a imortalidade;
■ a existência de Deus.
A unidade, ou a síntese entre o ser e o dever ser, realiza-se em Deus. Assim,
Kant deduz a metafísica não da ciência, mas da ética, instituindo o primado da
razão prática sobre a razão pura. Aliás, o próprio conhecimento está a serviço da lei
moral. Para que serve o saber senão para aperfeiçoar-se? O progresso histórico,
portanto, não pode consistir somente no desenvolvimento científico e técnico, mas
também e principalmente no aperfeiçoamento moral do ser humano.
Kant e a educação As principais ideias de Kant sobre a Educação estão em suas Aulas sobre Pedagogia
(1776-1777), nas quais resgata o ideal pedagógico grego, enriquecido com as
teses que Rousseau desenvolveu em Emílio (1767). Para Kant, o ser humano é o
único ser vivo que pode e deve ser educado. Como Rousseau, ele acredita na
diferenciação das práticas pedagógicas de acordo com a idade do educando. Além
disso, insiste na necessidade da disciplina no processo de instrução e de formação
Tópicos da Filosofia da Educação
140
cultural, que constituem a via de acesso à autonomia e à integridade moral. Em
linhas gerais, para Kant, o papel da educação na formação humana e especialmente
na formação do educador é sintetizado pela ideia de que:
Immanuel Kant e o idealismo alemão
141
O homem somente pode vir a ser homem através da educação. Ele não é outra coisa senão o produto de sua educação. E cabe mencionar que o homem somente pode ser educado por homens que, por sua vez, foram educados. Por isso, a ausência de disciplina e instrução em certas pessoas faz delas maus educadores de seus educandos. (FREITAG, 1994, p. 22)
Contemporâneo dos iluministas, Kant representa ao mesmo tempo sua síntese
e sua superação. Se para os filósofos hedonistas da França do século XVIII a
educação apresentava função emancipadora, para o austero professor prussiano a
emancipação propiciada pela educação não é possível sem uma grande dose de
disciplina e autodomínio.
0 idealismo alemão Kant representa o ápice do pensamento moderno e ao mesmo tempo é a fonte
das principais formas contemporâneas do pensar. Para ele convergem, filtradas
pelo lluminismo, o empirismo e o racionalismo, encontrando nele uma síntese
brilhante. Dele procede o pensamento posterior, particularmente o idealismo
clássico alemão, matriz de boa parte do pensamento atual.
De um modo geral, idealismo diz respeito às correntes de pensamento que, de
uma maneira ou outra, dão primazia às ideias, quer como componentes exclusivos
da realidade, quer como o único modo pelo qual se pode conhecer ou
experimentar o mundo. Platão (na Antiguidade) e o racionalismo (na modernidade)
são exemplos dessa postura. Tendo o seu início em Kant, o idealismo alemão
posiciona-se nessa vertente ao postular, em linhas gerais, que o significado de um
objeto depende do sujeito que o compreende - em outras palavras, todo o
conhecimento é dependente dos termos ou formas ideais que caracterizam a subjetividade humana.
Além de Kant, representantes do idealismo alemão são Fichte (1762-1814),
Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831) e Schopenhauer (1788-1860), os quais
aprofundam e problematizam o criticismo kantiano. Com Flegel, o idealismo
encontra o seu auge autoafirmativo e otimista; com Schopenhauer, sua versão
pessimista, instaurando-se sua crise. Em termos comparativos, o vigor filosófico
dessa corrente só pode ser comparado à era socrática. Se a filosofia clássica é
dividida em antes e depois de Sócrates (470-399 a.C.), a filosofia moderna e con-
temporânea pode ser dividida em antes e depois de Immanuel Kant.
Texto complementar Da distinção entre o conhecimento puro e o empírico (KANT, 2008)
Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a
experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se
conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma
parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a
nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo
à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento
Tópicos da Filosofia da Educação
142
das coisas que se denomina experiência?
No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam
por ela.
Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no
entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso
conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impressões
e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente
pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos
senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.
Surge, desse modo, uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será
possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos
sentidos?
Tais conhecimentos são denominados a priori, e distintos dos empíricos, cuja
origem é a posteriori, isto é, da experiência.
Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado da questão
proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência,
isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no entanto não podem ser
tachados de conhecimentos a priori.
Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, a priori poderá esperar que ela
desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois,
praticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao
impulso da gravidade. Assim, esse conhecimento é nitidamente empírico.
Consideraremos, portanto, conhecimento a priori, todo aquele que seja adquirido
independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos
empíricos, isto é, àqueles que só o são a posteriori, quer dizer, por meio da
experiência.
Atividades 1. Analise o trecho a seguir.
Em sentido geral, recebe esse nome a postura que advoga a investigação crítica
dos fundamentos do conhecimento como condição preliminar para toda a filosofia.
Em sentido estrito, é o nome dado à filosofia kantiana, que propõe uma
investigação radical sobre as condições e possibilidades do conhecimento.
Entre o dogmatismo e o ceticismo, o criticismo kantiano procura reformular o
caminho em que é possível pensar a filosofia. Portanto, em diálogo tanto com o
racionalismo (mais dogmático) quanto com o empirismo (mais cético), Kant ensaia
uma nova resposta à velha pergunta que desde o fim da cosmovisão medieval
atormentava os filósofos: qual é a fonte do conhecimento?
Com base no texto acima, quais são os fundamentos do processo de ensino e
aprendizagem no qual nos inserimos? O que seria uma postura dogmática na
educação? E uma postura cética?
Immanuel Kant e o idealismo alemão
Assinale quais as influências diretas de Immanuel Kant.
( ) Revolução Industrial.
( ) Cabala.
( ) Racionalismo.
( ) Revolução Francesa.
( ) Empirismo inglês.
( ) Escolástica.
( ) lluminismo.
( ) Idealismo alemão.
Quais são os principais representantes do idealismo alemão? Assinale a alter-
nativa correta.
a) Kant, Hume, Christian Wolffe Leibniz.
b) Kant, Leibniz, Schelling, Hegel e Nietzsche.
c) Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer.
d) Kant, Christian Wolff, Leibniz, Goethe e Hume.
e) Kant, Goethe, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche.
A dialética idealista e materialista O homem tem de viver em dois mundos que se contradizem [...]. O Espírito afirma
o seu sentido e a sua dignidade perante a anarquia e a brutalidade da natureza, à qual
devolve a miséria e a violência que ela o faz representar. Mas essa divisão da vida e da
consciência cria para a cultura moderna e para a sua compreensão a exigência de resolver
uma tal contradição. Georg Hegel Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. KarIMarx
Dialética: breve histórico O termo dialética confunde-se com a própria história da filosofia e, assim
como a filosofia, tem as suas raízes na Grécia antiga. Sua origem etimológica
está em dois radicais gregos: ■ dia (ôia), com o sentido de "dualidade", "troca";
■ léktikós (âe'ktk'0, significando "apto à palavra", "capaz de falar", da mesma
raiz de logos, "palavra", "razão".
Nesse sentido, tem estreita relação com o vocábulo diálogo, sendo possível
definir a dialética como a "arte do diálogo": tal como no diálogo, na dialética
também há duas razões ou posições entre as quais se estabelece,
precisamente, um diálogo.
Com o tempo, dialética passou a significar o processo de, no diálogo,
demonstrar uma tese por meio de uma argumentação precisa, capaz de
distinguir claramente os termos envolvidos na discussão. Com efeito, boa
parte da filosofia clássica era feita em praça pública, em debates e discussões
acaloradas.
Mas o sentido mais radical da dialética - e paradoxalmente, mais próximo do
moderno - deve ser buscado em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.). Para ele, tudo
está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a vida e a morte, o
sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que se transformam
continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91, em especial,
tornou-se célebre:"Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio". Isto
porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de antes e nem estará no
mesmo rio, já que ambos estarão mudados.
Todavia, para os gregos essa concepção era muito unilateral e eles preferiram a
posição de um outro pensador da época: Parmênides (530-460 a.C.), para quem a
essência do ser é imutável, de modo que o movimento é uma ilusão. Não por
acaso, Aristóteles considerava Zenão de Eleia (495-430 a.C.), discípulo de
Parmênides, o fundador da dialética.
Zenão servia-se da dialética para tentar demonstrar que o movimento não
A dialética idealista e materialista
145
existe. Ficou famosa a sua argumentação de que, se o tempo e o espaço são
infinitamente divisíveis, Aquiles, a despeito de toda a sua velocidade, nunca ven-
ceria uma corrida com uma tartaruga.
E outros atribuem o mérito da invenção da dialética a Sócrates (470-399 a.C.). É
verdade que antes dele os sofistas já utilizavam a dialética, afirmando que tanto
uma opinião quanto a sua contraditória podem ser válidas, dependendo da
argumentação de seu defensor. Mas Sócrates serviu-se da dialética com um fim
positivo e, no mesmo estilo dialógico dos sofistas, mostrou que é possível, a partir
de duas opiniões contraditórias, chegar a uma opinião superior, mais próxima da
verdade. A passagem da ignorância ao saber é feita pela ironia (interrogação) e
culmina na maiêutica (parto), pela qual o conhecimento é"parido" e a verdade é
trazida à luz.
Em Platão, discípulo de Sócrates, encontramos duas formas de dialética. Em
alguns diálogos (como Fédon e a República), a dialética é apresentada como um
método de elevação do sensível ao inteligível. Em outros, especialmente nos
últimos diálogos (como Parmênides e o Sofista), ele a apresenta como um método de
dedução racional que permite discriminar as ideias. De toda forma, para Platão, a
dialética nunca é uma mera disputa ou simplesmente um sistema formal de
raciocínio.
Aristóteles, por sua vez, prefere a demonstração à dialética - que para ele é uma
forma não demonstrativa de conhecimento, uma aparência de filosofia e não a
filosofia propriamente dita. Daí por que tende a colocá-la no mesmo nível que a
disputa e a probabilidade.
E no helenismo, o sentido positivo da dialética ressurge somente de modo
ocasional - aqui com os estoicos, ali com os neoplatônicos.
Já na Baixa Idade Média (séculos XII-XV), a dialética forma com a retórica e a
gramática o trivium das artes liberais1. Como tal, era mais um método do que
propriamente filosofia. Colocava-se, por exemplo, situações contraditórias e se
tentava demonstrar pelo sim e o não (sicetnori) aquela que é mais plausível. A tese
era, pois, o resultado da apreciação dos argumentos prós e contras sobre
determinado tema.
No Renascimento, novamente se rejeitou a dialética, tomada como um mero
conteúdo formal.
Da mesma forma, a dialética recebeu um sentido pejorativo na filosofia mo-
derna. Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, considerava-a como a lógica da
aparência. Daí por que a "dialética transcendental", por ele desenvolvida, apresenta-
se como a crítica desse gênero de aparências, que se origina da razão quando esta
ultrapassa os seus limites.
E, assim, chegamos a Hegel, o ponto culminante do idealismo alemão e ao
Tópicos da Filosofia da Educação
146
mesmo tempo o seu desfecho. Ele resgatou a dignidade da dialética, tornando-a o
principal instrumento de compreensão da dinâmica da história.
Hegel GeorgWilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, a 27 de agosto
de 1770, filho de um modesto funcionário público do departamento de finanças do
Estado de Wurtemberg. Depois de estudar gramática e a cultura clássica, George
Hegel ingressou no seminário deTubingen. Permaneceu na instituição de 1788 a
1793, cursando filosofia e teologia, e ali foi colega do filósofo Schelling (1775-
1854) e do poeta Hõlderlin (1770-1843). Foi também ali que Hegel, estudante
aplicado, começou a organizar, em ordem alfabética, um colossal fichário
- que manteve atualizado ao longo de toda sua vida - acerca de tudo o que lia.
Deixando o seminário, Hegel foi trabalhar como tutor particular em Berna, na
Suíça. Em 1796, voltou para território alemão, instalando-se em Frankfurt, onde
Hõlderlin lhe arranjara uma tutoria. Porém, desiludido amorosamente, esse amigo
entrou em depressão e veio a enlouquecer - o que deixou Hegel profundamente
abalado. ** Essas três disciplinas do trivium compunham a primeira parte do ensino universitário e depois vinha o quadrivium (aritmética, geometria, música e
astronomia), assim completando as sete artes, também conhecidas como artes liberais.
Para superar essa crise, o filósofo mergulhou com mais afinco no trabalho de
engrossar o seu fichário. Com recursos herdados de seu pai, falecido em 1799,
Hegel deixou Frankfurt dois anos depois e foi concorrer a uma cadeira de livre-
docente na Universidade de Jena, onde Schelling, então com apenas 26 anos,
lecionava. Porém, os maiores nomes de Jena, como Fichte (1762-1814) e os irmãos
August (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829), já haviam saído de lá.
Com o auxílio de Goethe, Hegel foi nomeado professor extraordinário, mas
conseguiu receber algum rendimento significativo somente um ano depois, em
1806.
Nesse mesmo ano, Hegel se entusiasmou quando Napoleão submeteu a
Prússia33, que ele considerava governada por uma burocracia corrupta. Em 1807,
publicou seu célebre livro, Fenomenologia do Espírito, para muito poucos enten-
dedores - escritas com uma terminologia inteiramente nova, suas obras são de
difícil leitura.
Para melhorar sua renda, Hegel tornou-se editor de um jornal (1807-1808) e
em seguida diretor de um ginásio em Nurberg (1808-1816). Em 1811, casou- -se
com Marie von Tucher (que era 22 anos mais nova que ele), com quem teve dois
filhos, sendo que já havia um filho natural que ele trouxe de Jena. E foi em Nurberg
que ele publicou as duas partes de Ciência da Lógica (1812 e 1816), cuja repercussão
motivou o convite para lecionar em Heidelberg.
Já em Heidelberg, veio à luz a sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817), na
33 Antigo Estado cuja capital era Berlim e que existiu no que hoje é a região norte da Alemanha.
A dialética idealista e materialista
147
verdade uma exposição de suas ideias.
No ano 1818, ele foi para a Universidade de Berlim assumir a cadeira vaga com
a morte de Fichte. Em Berlim, sua ascendência sobre os alunos foi e ele publicou
sua Filosofia do Direito (1821). Em 1830, tornou-se reitor da universidade.
Por essa altura, ele já era um ardoroso defensor do Estado prussiano, pois temia
que as convulsões sociais daquele momento levassem o povo ao poder. Seus livros
desse período são feitos principalmente a partir de anotações dos seus alunos.
No verão de 1831, fugindo a um surto de cólera, Hegel refugiou-se nas re-
dondezas da cidade. Porém, precisou retornar para o período acadêmico e assim
contraiu a doença, vindo a falecer em 14 de novembro. Conforme sua vontade, foi
enterrado ao lado de Fichte.
0 hegelianismo Em linhas gerais, o pensamento de Hegel é tributário da filosofia grega, do
racionalismo cartesiano e do idealismo alemão - do qual ele é o ápice.
De Heráclito, ele resgata a ideia de dialética, entendida como estrutura da
realidade e do pensamento.
De Aristóteles, ele toma três noções fundamentais:
■ a do universal, imanente e não transcendente ao individual;
■ a do movimento como passagem da potência para o ato;
■ a das relações entre a razão e a experiência, cuja necessidade interna deve ser
revelada pelo pensamento.
Do racionalismo, Hegel herdou a ideia da racionalidade do real, ou seja, a
coincidência entre rescogitans (coisa pensante) e resextensa (coisa material), e de
Espinosa, em particular, a intuição de que"qualquer afirmação é uma negação".
De Kant (ponto de partida de toda a moderna filosofia alemã), Hegel assumiu a
ideia de uma lógica transcendental, a qual, remontando às origens do conheci-
mento, considera os conceitos a priori, em relação aos objetos; formula as regras do
pensamento puro e vincula as categorias ao eu subjetivo.
De Fichte, Hegel emprestou a noção de dialética como processo de afirmação,
negação e negação da negação, na síntese.
E de Schelling, ficou com a ideia de identidade do sujeito e do objeto na cons-
ciência do absoluto.
A filosofia de Hegel pode ser considerada uma filosofia do vir-a-ser, do movi-
mento e das transformações - de certa forma, é o primeiro grande sistema filo-
sófico que reflete a nova consciência histórica derivada da Revolução Francesa e da
Revolução Industrial, as duas revoluções que revelaram a inevitabilidade das
mudanças e que a história é muito mais que uma sucessão de fatos.
Tópicos da Filosofia da Educação
148
Para dar conta dessa nova compreensão, foi necessário abandonar a antiga
lógica aristotélica, considerada demasiado estática, e estabelecer os princípios de
uma nova lógica: a dialética, que afirma a perecibilidade de todas as coisas. Em
outras palavras, toda morte gera um novo ser, o qual já traz em si o germe de sua
destruição. Esse movimento é o processo histórico. Hegel também o chamou de
contradição criadora, em oposição à contradição aristotélica, na qual não há movimento
na medida em que o não-ser é completamente oposto ao ser.
Essa leitura permite também um novo entendimento da história, segundo o qual
o presente não é um simples acumulado de fatos, mas um engendramento de
acontecimentos movidos por um "motor" - que para Hegel é, justamente, a
contradição. Em outras palavras, a história não é vista como algo que está enfor-
mado, formatado, preso em "repartições" que são o tempo, mas ela escoa, tor-
nando o presente o resultado de um processo.
Por outro lado, os vários estágios da história da humanidade não são mais
vistos como contingentes ou aleatórios, mas sim como necessários e progressivos,
assim como a luta, a guerra e o conflito entre os grupos que representam esses
estágios também são necessários.
Para Hegel, o conceito de real recebe também um novo sentido: aquilo que se
conhece apenas a partir da experiência, do imediato, é abstrato. Aquilo de que, ao
contrário, é conhecida a gênese, a origem, o processo de constituição, é real. Isso
se expressa no famoso axioma "O real é racional, o racional é real". No entanto, vale
lembrar que Hegel se mantém dentro dos limites do idealismo, e que para ele a
história nada mais é que história da ideia.
Como a de Fichte, a dialética hegeliana compõe-se de três etapas: tese, antítese
e síntese - ou seja, afirmação, negação e negação da negação.
Assim, o que está no início não é a natureza (como pensavam os pré-socrá-
ticos), mas sim a ideia pura, que constitui o princípio inteligível do mundo, a ordem
do real: essa é a tese, e o seu conteúdo é estudado pela lógica.
A natureza, porém, é a ideia alienada, a ideia fora de si, a forma "empírica" da
ideia no espaço e no tempo, e para desenvolver-se ela cria algo oposto a si mesma
- a antítese. O seu desenvolvimento dialético é tratado na filosofia da natureza.
Da luta desses dois princípios antagônicos nasce a síntese, ou o espírito, que é a
natureza que toma consciência de si, da sua imanente divindade. Esse é o objeto da
filosofia do espírito.
Nesse último nível ainda temos dois espíritos: um subjetivo, que se encerra na
individualidade humana (emoção, desejo, imaginação), e outro objetivo, que
constitui a humanidade enquanto coletividade (moral, direito, política). Do embate
desses dois espíritos tem-se o espírito absoluto - Deus - a mais alta realização da
ideia, em que se atinge o mais alto grau de autoconsciência.
A dialética idealista e materialista
149 ■
O espírito absoluto, por seu turno, desenvolve-se "em arte (expressão do ab-
soluto na intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação
mítica), filosofia (expressão conceituai, lógica, plena do absoluto)" (PADOVANI;
CASTAGNOLA, 1984, p. 389). Todavia, houve vários sistemas filosóficos, que re-
presentariam momentos necessários na história da filosofia até o advento da
filosofia absoluta, que é o idealismo absoluto de Hegel.
Família e Estado Por outro lado, a família é a primeira realização do espírito objetivo, o qual, para
resolver as contradições entre os indivíduos, entre as várias famílias e clãs, cria o
Estado, que é a síntese mais perfeita desse espírito, já que harmoniza os interesses
contraditórios dos indivíduos, o público e o privado. No final da vida, Hegel veria
esse Estado materializado na Prússia. Assim, o Estado prussiano é a síntese do es-
pírito objetivo e a filosofia hegeliana, a síntese absoluta de todo esse processo
dialético. Como se pode ver, a modéstia não era uma das virtudes de Hegel.
Não obstante os exageros desse sistema grandiloqüente, Hegel tem o indiscu-
tível mérito de trazer para o cerne da reflexão filosófica o processo histórico. Mas
aqui também está a sua fraqueza: uma certa simplificação a que ele submeteu a
história para que ela coubesse dentro da sua estrutura triádica.Todavia, com a his-
tória incorporada à filosofia, a antiga lógica aristotélica mostrou-se incapaz de dar
conta dos processos de compreensão da nova realidade e, assim, a dialética hege-
liana vem justamente oferecer os instrumentos que faltavam. Eis como Padovani e
Castagnola distinguem a lógica tradicional da dialética de Hegel: 1. ° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto; 2. ° - a lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo; 3. ° - a lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser; 4. ° - a lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota inteiramente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio logos divino que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 389)
Profundamente revolucionária, no entanto, a dialética hegeliana permaneceu
inofensiva nas mãos daquele pacato professor do Estado prussiano. Seria
necessário que alguém a tirasse do mundo abstrato das ideias e a colocasse no
mundo concreto da matéria para fazer detonar o seu potencial revolucionário. Esse
alguém foi Karl Marx.
Filósofo e agitador Karl Heinrich Marx nasceu emTrier, sul da Alemanha, a 5 de maio de 1818. A
Tópicos da Filosofia da Educação
150
mãe tinha origem na nobreza da Holanda e o pai era advogado. Eram judeus e
precisaram converter-se ao cristianismo quando o pequeno Karl ainda estava com
seis anos de idade em função das restrições legais impostas aos membros da
comunidade judaica no serviço público.
Em 1835, com 17 anos, Marx ingressou na Universidade de Bonn, transfe-
rindo-se, já no ano seguinte, para a Universidade de Berlim, onde a influência de
Hegel era bastante forte, mesmo após sua morte em 1811. Em Berlim, Marx
participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos, um grupo de in-
telectuais que pretendia levar adiante o pensamento de Hegel, em desacordo com
os chamados hegelianos de direita, para quem o Estado prussiano era a
culminância da história.
Com a tese Sobre as Diferenças da Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro, Marx obteve
o grau de doutorado, em Jena, em 1841. Impossibilitado de seguir a carreira
acadêmica, já que as portas da universidade estavam fechadas para os hegelianos
de esquerda, tornou-se redator de um jornal de tendência liberal publicado em
Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas concretos de natureza
política e econômica. No entanto, o governo, incomodado com o teor desses
artigos, fechou o jornal.
Depois de um noivado de longos anos, Marx casou-se e emigrou para a França,
onde editou, juntamente com seu amigo Arnold Ruge, os Anuários Franco-Germâ- nicos.
Em Paris, travou contato com o poeta alemão Heinrich Heine - também exilado - e
com socialistas franceses, além de estreitar amizade com Friedrich Engels (1820-
1895), com quem produziu diversas obras em comum. Filho de um industrial,
Engels costumava socorrer Marx nas suas numerosas dificuldades financeiras.
Mas a permanência de Marx na França foi breve: a pedido do governo prussiano
ele foi expulso, estabelecendo-se provisoriamente em Bruxelas, na Bélgica, onde
fundou o primeiro partido comunista do mundo.
Após uma passagem por Londres, Inglaterra - ocasião em que redigiu O Ma-
nifesto Comunista, ou O Manifesto do Partido Comunista, juntamente com Engels
- Marx retornou à França, mas logo assumiu a chefia do Novo Jornal Renano, em
Colônia, primeiro jornal diário francamente socialista.
Todavia, foi novamente expulso, agora de sua própria terra, e então viveu até
seus últimos dias, com apenas breves interrupções, em Londres.
Em Londres, Marx dedicou-se a vastos estudos econômicos e históricos e es-
creveu artigos para jornais, mas sua situação material continuou sempre muito
precária.
Em 1864,foicofundadorda Internacional Socialista34, desempenhando grande
^ A Internacional Socialista foi uma primeira tentativa de organização mundial dos trabalhadores com vistas à defesa de seus interesses, tendo
como horizonte uma revolução socialista mundial.
A dialética idealista e materialista
151
papel de direção. Em 1867, veio a lume o primeiro tomo da sua obra máxima, O Capital.
Em 1883, porém, antes que a obra de três volumes estivesse completa, Marx
morreu, aos 65 anos de idade.
Sua produção deve ser enquadrada dentro da chamada esquerda hegeliana. Isso
porque, segundo ele, não é o espírito que determina o movimento da história, mas,
antes, as relações econômicas de produção. É sobre essas relações que se erguem
as superestruturas do pensamento, da cultura e da forma política. Por isso,
considera-se sua obra uma inversão da teoria hegeliana.
Sua obra principal é composta pelos livros:
■ A Ideologia Alemã (1845, com a coautoria de Engels);
■ Manifesto do Partido Comunista (1848, também com a coautoria de Engels);
■ Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), cujo conteúdo é retomado em O
Capital (1867); ■ 018 Brumário de Luís Bonaparte (1869).
Em Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx reconhece em Hegel o mérito de ter
instituído o instrumental que serviria para explicar as contradições reais da história
e da vida, mas acusa-o de ter colocado esse sistema de cabeça para baixo - daí a
necessidade de invertê-lo, colocá-lo sobre seus pés.
0 materialismo histórico O pensamento de Marx tem três fontes principais: a economia política inglesa
do início do século XIX, o idealismo alemão e o materialismo filosófico francês do
século XVIII.
Nos economistas ingleses, ele buscou uma teoria social que se pretende
científica. De David Ricardo (1772-1837), adotou a teoria do valor do trabalho,
embora lhe imprimindo uma nova orientação. Para Ricardo - que parte do pres-
suposto da imutabilidade da ordem social existente -, a livre concorrência manteria
os salários dos trabalhadores no nível de subsistência, assim controlando o seu
número. Marx, por sua vez, parte do ponto de vista do trabalhador, distinguindo
duas formas de trabalho:
■ trabalho-ação - a força de trabalho que é vendida pelo trabalhador e paga pelo
empregador;
■ trabalho-resultado - o produto do trabalho realizado pelo trabalhador e
vendido pelo empregador no mercado.
Para Marx, essas duas formas de trabalho não apresentam o mesmo valor, já
que entre elas existe, como diferença de valor, a mais-valia, isto é, o lucro do
empregador.
O valor do trabalho-ação, da força de trabalho, tem como medida o seu custo
Tópicos da Filosofia da Educação
152
de produção, ou seja, o valor que foi necessário para produzir abrigo, alimentação,
vestuário etc. para o trabalhador e seus dependentes, todos elementos
indispensáveis ao prosseguimento de seu esforço produtivo. Digamos que a
parcela de todos esses elementos consumida pelo trabalhador e seus dependentes
durante um dia de trabalho eqüivale a quatro horas de trabalho. Assim, o trabalho-
ação desse trabalhador vale um preço que lhe é pago pelo patrão sob a forma de
salário. No entanto, a força vendida pelo operário ao patrão vai ser utilizada não
durante quatro horas, mas, seis, oito, dez ou mais horas. A mais-valia é, assim,
constituída pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de
trabalho (quatro horas) e o preço pelo qual ele vende o resultado no mercado (oito
horas, por exemplo)35.
Do idealismo alemão, Marx bebeu sobretudo em Hegel. Depois da morte do
grande filósofo, seus discípulos dividiram-se em dois grupos: os hegelianos de
direita, para quem o espírito absoluto se manifestava no Estado prussiano daquele
tempo, e os hegelianos de esquerda, que, brandindo o movimento histórico
permanente, lançaram uma crítica veemente à religião cristã. Entre esses jovens
hegelianos destacava-se um que exerceria influência decisiva sobre o jovem Marx:
Ludwig Feuerbach (1804-1872), que substitui o espírito hegeliano pelo ser
humano, o panteísmo de seu mestre por um ateísmo humanista.
A novidade do hegelianismo está, como vimos, em ter oposto a todas as filo-
sofias anteriores a ideia de um devir constante, por meio do fluxo incessante dos
fenômenos históricos, segundo a lei da dialética: Aqui a interpretação da Marxé profundamente hegeliana no método, embora a força propulsora seja concebida de modo diferente em ambos os casos. Para Hegel, o curso da história é uma gradual autorrealização do espírito que tende para o absoluto. Marx substitui o espírito pelos modos de produção, e o absoluto pela sociedade sem classes. Um determinado sistema de produção, no curso do tempo, desenvolverá tensões internas entre as várias classes sociais a ele vinculadas. Estas contradições, como Marx as denomina, se resolvem numa síntese mais elevada. A forma que a luta dialética assume é a luta de classes. A batalha prossegue até que, com o socialismo, instaura-se uma sociedade sem classes. Uma vez alcançado esse objetivo, não há mais razão para lutar, e o processo dialético pode adormecer. (RUSSELL, 2002, p. 390)
Assim, a dialética idealista de Hegel é transformada no materialismo dialético,
escopo da concepção filosófica de Marx. Não é mais a ideia que propulsiona a
história, mas as relações materiais de produção. Com efeito, Marx vira de cabeça
para baixo o modelo hegeliano.
E aqui entra a terceira grande influência do marxismo: o materialismo, que Marx
vai buscar nos enciclopedistas franceses, especialmente Diderot (1713-1784) e
Holbach (1723-1789), e novamente em Feuerbach. Todavia, Marx não se satisfez
com esse materialismo mecanicista que faz todas as obras do espírito (religião,
arte, cultura) dependerem da matéria (as relações materiais de produção). Aplicando seu
35
No capitalismo moderno, com a redução da jornada de trabalho, o lucro empresarial seria sustentado por meio do que se denomina mais-valia reiativa
(em oposição à primeira forma, chamada mais-valia absoluta), que consiste em aumentar a produtividade do trabalho utilizando a racionalização e o
aperfeiçoamento tecnológico.
A dialética idealista e materialista
153
materialismo dialético à história, ele criou o materialismo histórico, que é a teoria
sociológica geral do marxismo, no qual a sociedade é comparada a um edifício em
que as fundações (a infraestrutura) seriam representadas pelas forças econômicas,
enquanto o edifício em si (a superestrutura) representa as ideias, os costumes, as
instituições sociais etc. Se por um lado a infraestrutura determina a superestrutura,
por outro lado ela sofre reflexos dessa superestrutura, dialeticamente.
Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), também mudam as
ideias e construções culturais do ser humano (a superestrutura). Ora, as relações
fundamentais da sociedade são as relações de produção, que se efetivam na divisão
social do trabalho; a maneira pela qual as forças produtivas se organizam
determina as relações de produção. No entanto, o desenvolvimento da técnica leva
a uma contradição com a antiga relação de produção e faz-se necessária uma nova
organização (divisão do trabalho).
Assim, nas sociedades primitivas os seres humanos organizavam-se mutu-
amente para enfrentar a natureza; os produtos eram de propriedade comum e não
havia sentimento de posse. Mais tarde, com o começo da domesticação de animais
e o incremento da agricultura, alteraram-se as relações de produção e, por
conseguinte, os modos de produção, aparecendo a propriedade familiar e as
primeiras distinções de classe. Mais adiante, a produção foi aumentada além do
necessário à subsistência, tornando-se prementes novas forças de trabalho; surgiu
então a primeira forma de propriedade privada e a exploração do homem pelo
homem e, consequentemente, a contradição entre senhores e escravos. Essa linha
evolutiva - a partir da dialética de afimação, negação e negação da negação (tese,
antítese e síntese) - só chegaria ao fim na sociedade sem classes, no comunismo.
Portanto, o materialismo marxista é dialético, ou seja, parte da constatação de
que os fenômenos materiais são processos. Isso significa que o mundo não é uma
realidade estática e sim dinâmica, um complexo de processos e, por isso, a
abordagem da realidade pode ser feita apenas de maneira dialética. Nesse mesmo
sentido, a superestrutura não é uma simples decorrência da matéria: é possível
libertar-se do determinismo e libertar o ser humano por meio da ação
revolucionária.
A práxis E aqui chegamos a outra novidade do pensamento de Marx: ele nunca foi um
filósofo de gabinete, como seus conterrâneos Kant e Hegel. Se alguém quisesse
acertar seu relógio pelo horário dos passeios do filósofo (como faziam os vizinhos
de Kant), ficaria sem dúvida em apuros. Como vimos, por suas posições políticas
Marx não conseguiu obter uma cátedra nas universidades alemãs e teve que ganhar
a vida no exílio e em condições muito adversas. Além disso, participou ativamente
da luta revolucionária de seu tempo, ajudando a conscientizar e organizar os
Tópicos da Filosofia da Educação
154
trabalhadores. Na 11 .a das suas Teses sobre Feuerbach, ele declara: "Os filósofos têm
apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é
transformá-lo." Isso significa que a prática é tão importante quanto a teoria - a qual
não pode se desvincular da ação histórica e concreta do ser humano, unindo-se
dialeticamente os níveis teórico e prático em uma coisa só, que é a práxis (termo
que provém do grego e significa "ação", "realização").
Para Marx, a queda do regime capitalista ocorreria não só por força de suas
contradições internas, mas também pela ação - a práxis - revolucionária dos
trabalhadores organizados. A essa derrubada do sistema sucederia uma fase
transitória (a ditadura do proletariado), com a liquidação das antigas classes e a
implantação de um regime coletivista, preparatórios da fase definitiva (o comu-
nismo integral), com a abolição completa do Estado. O mais, Marx não diz: ele se
recusa a elaborar uma utopia - o seu socialismo, fruto típico do século XIX,
pretende-se rigorosamente científico.
Marx morreu antes de ver os partidos socialistas que ele ajudara a fundar ven-
cerem suas primeiras eleições. Trinta e quatro anos após a sua morte, o partido
bolchevique, inspirado diretamente nas suas ideias, assumiu o poder na Rússia,
depois de uma revolução. Ao longo do século XX, várias nações tornaram-se
socialistas, chegando ao ponto de quase metade da população do globo viver sob
regimes de inspiração marxista. Entre a queda do Muro de Berlim (1989) e a
dissolução da União Soviética (1991), esses regimes caíram como castelos de
cartas. Mas uma pergunta que se fez e se faz é sobre até que ponto Marx pode ser
responsabilizado pelas diferentes "leituras" de sua obra (e os respectivos efeitos
colaterais) ou se tais práticas não seriam resultado de visões distorcidas de suas
ideias. Todavia, a discussão sobre o futuro do capitalismo continua e Marx não
pode ser alijado desse debate, já que ele foi um dos melhores - senão o melhor -
intéprete do regime fundado sobre o capital.
Textos complementares 0 verdadeiro é o todo (HEGEL, 1964, p. 233-234)
O verdadeiro é o todo. Mas o todo é tão-só a essência que não se completa
senão por seu desenvolvimento. É preciso dizer do absoluto que é essencialmente
resultado, que só no final é o que em verdade é; e nisso consiste precisamente sua
natureza, ser alguma coisa real, sujeito ou mesmificação. Por bastante contraditório
que possa parecer conceber o absoluto essencialmente como resultado, basta uma
pequena reflexão para desvanecer esta aparência de contradição. O começo, o
princípio, ou o absoluto, tal como se manifesta do início e imediatamente, é tão-só
o geral. Do mesmo modo que
eu digo "todos os animais", não eqüivale esta expressão à Zoologia, assim também
A dialética idealista e materialista
155
percebemos que as palavras divino, absoluto, eterno etc. não manifestam o que está
contido nelas - e somente estas palavras são as que exprimem em verdade a
intuição como alguma coisa imediata. Tudo o que seja mais que uma de tais
palavras, a menor transição para uma só proposição, é já um alterar-se que tem
que ser substituído, é uma mediação. Mas esta mediação é o que horroriza, como
se ao fazer só o que acabamos de dizer, isto é, não ser nada nem absoluto nem no
absoluto, já não se tivera um conhecimento absoluto.
Mas este horror procede em verdade do desconhecimento da natureza da
própria mediação e do conhecer absoluto. Porque a mediação não é senão a
semovente igualdade consigo mesma ou a reflexão sobre si mesmo, o momento do
eu que é si mesmo, a pura negatividade, ou, reduzido a sua própria abstração, o
simples devir. O eu ou o devir em geral, este mediar, é justamente, graças à sua
simplicidade, a imediatez em processo de vir-a-ser ou o próprio imediato. Por isso,
é um desconhecimento da razão, excluir do verdadeiro a reflexão, ou não tomá-la
como momento do absoluto. É ela a que converte o verdadeiro em resultado e
igualmente absorve esta contraposição com referência a seu devir, pois o devir é
igualmente simples, e por isto não difere da forma do verdadeiro, isto é, o
manifestar-se como simples resultado; é justamente este mesmo "ser reproduzido"
à simplicidade. Se bem é verdade que o embrião é o homem, não o é, contudo, que
o seja para si; sê-lo-á somente como razão formada, quando a razão tenha
chegado a fazer-se o que ela é em si. Só nisto consiste sua realidade. Mas este
resultado é, por sua vez, simples imediatez, pois é a liberdade autoconsciente que
repousa em si, e não atirou fora a contraposição deixando-a estar aí, porquanto a
reconciliou com ela.
A história das lutas de classes (MARX; ENGELS, 2006, p. 84-87)
A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das
lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e
companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante
A dialética idealista e materialista
156
oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora aberta, ora disfarçada: uma
guerra que sempre terminou ou por uma transformação revolucionária de toda a
sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta.
Nas épocas históricas mais remotas encontramos, quase por toda parte, uma
divisão completa da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de
posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus,
escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em
cada uma dessas classes, gradações especiais.
A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não
aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes,
novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas. No
entanto, a nossa época, a da burguesia, possuiu uma característica: simplificou os
antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos
opostos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.
Dos servos da Idade Média nasceram os cidadãos livres dos burgos, das
primeiras cidades; dessa população urbana saíram os primeiros elementos da
burguesia.
A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia
em ascensão um novo campo de ação. Os mercados da índia e da China, a
colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e,
em geral, das mercadorias, imprimiram um impulso até então desconhecido ao
comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente
o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.
A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a cor-
porações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a
abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia
industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as
diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria
oficina.
Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias
aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então o vapor e a
maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna
suplantou a manufatura; a média burguesia ma- nufatureira cedeu lugar aos
milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos
burgueses modernos.
A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da
América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do
comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Esse
desenvolvimento, por sua vez, refletiu na extensão da indústria; e, na medida em
A dialética idealista e materialista
157 ■
que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se desenvolviam,
crescia também a burguesia, multiplicando seus capitais e deixando em segundo
plano as classes legadas pela Idade Média.
Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo
processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e
de troca.
Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um
progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal,
associação armada administrando-se a si mesma na comuna; aqui, cidade-
república independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois,
durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou
absoluta, pedra angular das grandes monarquias; a burguesia, a partir do
estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou,
finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O
governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a
classe burguesa.
A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário.
Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia jogou por terra as
relações feudais, patriarcais e idílicas, despedaçou sem piedade todos os
complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores
naturais", para só deixar subsistir, entre um homem e outro, o laço do frio
interesse, as duras exigências do "pagamento à vista". Afogou os fervores sagrados
do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-
burguês, nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um
simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto
esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar
da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou uma exploração
aberta, cínica, direta e brutal.
A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas
veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do
sacerdote, do poeta e do sábio seus servidores assalariados.
A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de
família e reduziu-as a simples relações monetárias.
Atividades 1. Quais são as peculiaridades, semelhanças e diferenças, nos textos acima, entre
Hegel e Marx?2. Leia o texto abaixo.
Para ele, tudo está em constante mudança e o conflito rege todas as coisas: a
vida e a morte, o sono e a vigília, a juventude e a senilidade são realidades que
transformam-se continuamente umas nas outras. Seu fragmento de número 91,
em especial, tornou-se célebre: "Um homem não toma banho duas vezes no
mesmo rio." Isso porque da segunda vez ele já não será o mesmo homem de
antes e nem estará no mesmo rio, já que ambos estarão mudados. Esse texto refere-se a que filósofo da Antiguidade? a) Sócrates
b) Zenão de Eleia
c) Heráclito de Éfeso
d) Platão
e) Tales de Mileto
f) Aristóteles
3. A respeito da compreensão de dialética, assinale H nas alternativas que se
referem apenas a Hegel, M nas que se referem apenas a Marx e HM nas que
se referem aos dois.
( ) A dialética compõe-se de três etapas: tese, antítese e síntese, ou seja,
afirmação, negação e negação da negação.
( ) O que está no início não é a natureza, mas sim a ideia pura, que constitui o
princípio inteligível do mundo.
( ) Com a mudança das formas de produção (a infraestrutura), mudam também
as ideias e construções culturais do ser humano (a superes- trutura).
( ) Essa linha evolutiva - a partir da dialética de afimação, negação e negação da
negação - só chegaria ao fim na sociedade sem classes. ( ) O espírito absoluto desenvolve-se em arte, religião e filosofia.
Para produzir filosofia Na sua opinião, a luta de classes continua acontecendo hoje?
Schopenhauer: o mundo como
representação A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real [...] Há 80 anos que o sinto. Quanto
a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para
serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar.
Arthur Schopenhauer
Schopenhauer: o mundo como representação
159
Contra Hegel Iniciado com Immanuel Kant (1724-1804), o idealismo alemão chega ao
seu auge com George Hegel (1770-1831) - em sua grandiosidade, estrutu-
ração e ousadia, a que se acresce sua quase ilegibilidade. De certa forma, esse
foi o último dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Determinando o
horizonte intelectual de boa parte dos séculos XIX e XX, esteve na matriz do
marxismo, do existencialismo e de algumas das correntes mais significativas
do pensamento cristão contemporâneo. Com efeito, o pensamento de Hegel
presta-se a mais de uma interpretação: por um lado, visa à reconciliação com
a realidade, a qual procura interpretar racionalmente; por outro, a dialética,
que é a alma do sistema, opõe-se a qualquer imobilidade, e explica o
movimento, o processo histórico, as rupturas.
Assim, não é de se estranhar que pouco após a morte do grande filósofo
prussiano começassem a surgir fissuras no edifício hegeliano. Entre os seus
discípulos, logo houve uma divisão entre os chamados hegelianos de direita e
os jovens hegelianos, mais tarde chamados hegelianos de esquerda.
Para a direita, a ideia absoluta, que no sistema hegeliano perpassa toda a
história do universo, precisa de um suporte, um sustentáculo, que deve ser
um espírito real, transcendente e consciente. Assim, ela reduzia o he-
gelianismo ao espiritualismo, à afirmação do Deus pessoal e da imortalidade
da alma, apontando a religião e o Estado como os únicos capazes de voltar a
aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução.
Para a esquerda, ao contrário, reinterpretando o sistema hegeliano no sentido
do panteísmo e do ateísmo, a ideia é uma abstração que só existe exterioriza- da
na natureza, que se basta a si mesma.Tratava-se, para eles, de erigir uma nova
sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam.
Desenharam-se, desse modo, aquilo que Moses Hess (1812-1874) chamou
de o partido do movimento e o partido da permanência.
Fiéis ao Estado e à religião do Estado, os hegelianos de direita monopolizaram
as cadeiras das universidades. Hoje, mal são lembrados. Quem ainda sabe quem
foram Jorge Gabler (1786-1853) e Karl Rosenkranz (1805-1879)?
Já os hegelianos de esquerda tiveram não poucas dificuldades na vida acadê-
mica e na vida pessoal: perderam emprego, passaram fome, foram exilados - e
entraram nas páginas da história. David Strauss (1808-1874) foi um dos
pioneiros do método histórico-crítico de interpretação das Escrituras; Ludwig
Feuerbach (1804-1872), o fundador do materialismo moderno; Karl Marx (1818-
1883) e Frie- drich Engels (1820-1895), dispensam apresentações.
Mas, de toda forma, os hegelianos - de direita ou de esquerda - não rejei-
Tópicos da Filosofia da Educação
160
taram o seu mestre. Conservando-o, imobilizando-o ou aprofundando-o, eles
permaneceram, de uma maneira ou outra, ligados aos seus lineamentos. Marx, o
mais célebre discípulo, mesmo criticando o idealismo do mestre, sempre se
confessou devedor de sua filosofia. E maiores ataques viriam de filósofos não-hegelianos.
O Schelling (1775-1854) da última fase já havia criticado Hegel por pretender
deduzir os fatos do mundo das ideias.
Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o fundador da psicologia científi-
ca, parte de Kant para se afastar do idealismo clássico, afirmando a fundamenta-
bilidade da experiência e da realidade da coisa em si.
Todavia, os ataques mais virulentos partiriam do atormentado Sõren Kierke-
gaard (1813-1855) e do depressivo Arthur Schopenhauer.
O primeiro, dinamarquês (todos os outros aqui são alemães), protagoniza
"uma violenta explosão anti-hegeliana" (RUSSELL, 2002, p. 365). Para Hegel, o
indivíduo nada mais é do que um momento, de uma totalidade que o abrange e o
ultrapassa e na qual, simultaneamente, ele encontra a sua realização. Em
Kierkegaard, manifesta-se um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo,
de sua especificidade existencial e do caráter insuperável de sua concretude.
Não menos emocional seria a reação de Schopenhauer ao altissonante e oti-
mista sistema hegeliano.
Uma vida taciturna Nascido em 22 de fevereiro de 1788, filho de um próspero comerciante da
cidade de Dantzig, na Prússia (atualmente Gdanski, na Polônia), Arthur Schope-
nhauer estava destinado a seguir a profissão paterna. Aos cinco anos, por ocasião
da anexação da cidade livre de Dantzig pela Prússia, sua família mudou-se para
Hamburgo. Em 1797, os Schopenhauers moraram em Paris, e em 1803 passaram
seis meses em Londres. Viajaram por uma série de outros países, entre os quais a
Áustria, a Suíça e a Holanda.
Em vez de se interessar pelos negócios do pai, o adolescente Arthur preferia
traçar considerações melancólicas sobre a condição humana. Fixando-se em
Hamburgo, em 1805, a família obrigou-o a cursar uma escola comercial. Porém,
a repentina morte do pai (provavelmente por suicídio) permitiu-lhe dedicar-se a
uma carreira acadêmica, como era sua vontade. Assim, Schopenhauer começou
os estudos humanísticos no Liceu de Weimar, em 1807.
Ao mesmo tempo, sua mãe, possuidora de veleidades literárias, tornou-se
anfitriã de um salão freqüentado pelos grandes intelectuais da região e assim
Arthur Schopenhauer travou contato com Goethe (1749-1832).
No entanto, a relação entre mãe e filho não era fácil, eles se menosprezavam
publicamente e Arthur chegou a dizer que ela ficaria famosa não por seus livros,
Schopenhauer: o mundo como representação
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mas por ser sua genitora (cruel vaticínio!).
Aos 21 anos, Schopenhauer recebeu um pequeno legado que lhe permitiu
empreender os estudos universitários e, a partir de então, mãe e filho começaram
a se afastar gradualmente.
Depois de uma passagem por Gõttingen, onde teve contato com a filosofia de
Kant, ele se mudou para Berlim (1811), assistindo, assim, aos cursos dos filóso-
fos Schleiermacher (1768-1834) e Fichte (1762-1814). Mais tarde, Schopenhauer
acusou Fichte de ter, deliberadamente, caricaturado a filosofia de Kant.
Em 1813, Schopenhauer obteve o doutourado pela Universidade de Berlim,
com a tese Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente.
Tópicos da Filosofia da Educação
Depois de uma temporada na Itália (1818-1819), sua situação econômica não
era das melhores. Começou então a lecionar como livre-docente na Universidade
de Berlim, onde pontificava o grande Hegel. "Totalmente convencido da própria
genialidade [...], marcou suas conferências para a mesma hora das de
Hegel"(RUSSELL, 2002, p. 369). Resultado: somente quatro ouvintes e um ressen-
timento eterno para com Hegel.
Para piorar a situação, em 1821 ele se envolveu em um acidente que lhe traria
desagradáveis conseqüências. Nessa época, o filósofo morava em uma pensão e,
em certa ocasião, impacientando-se com uma vizinha que viera lhe espionar os
encontros com pretensas amantes, atirou-a escada abaixo. Acabou sendo
processado e condenado a pagar-lhe, além de suas despesas médicas, uma
pensão anual.
Em 1833, depois de muitas viagens e outra fracassada tentativa de lecionar
em Berlim, o filósofo resolveu fixar-se em Frankfurt, onde permaneceria até sua
morte. Ali levou uma vida quase solitária, tendo por principal companhia o seu
cão.
Dedicando-se então exclusivamente à filosofia, Schopenhauer publicou di-
versos livros.
Em 1818, com apenas trinta anos de idade, ele já havia lançado o seu clássico
O Mundo como Vontade e Representação, que na época passou quase inteiramente
despercebido. Em 1836, foi a vez de Sobre a Vontade na Natureza.
Escreveu também dois ensaios sobre moral - Sobre a Liberdade da Vontade e O
Fundamento da Moral, este último contendo verdadeiros insultos a Hegel e a
Fichte. Posteriormente, em 1841, esses dois ensaios foram reunidos sob o título
de Os Dois Problemas Fundamentais da Ética.
O sucesso só começou a bafejar na vida do pensador misantropo com Pa-
rerga e Paralipomena, seu último livro, publicado em 1851, contendo pequenos
ensaios sobre política, moral, literatura, filosofia, estilo e metafísica.
Em 1853, um artigo publicado na Inglaterra por John Oxenford, atacando a
filosofia de Hegel a partir de elementos de Schopenhauer, deu início à grande di-
fusão da filosofia schopenhaueriana. Da França, filósofos e escritores vinham até
Frankfurt para conhecê-lo. Na Alemanha, com o declínio da filosofia de Hegel,
Schopenhauer viu-se subitamente galgado a ídolo das novas gerações. Assim, os
últimos anos de sua vida lhe proporcionaram o reconhecimento que ele tanto
ansiara. Artigos encomiásticos pululavam nos principais periódicos. A Univer-
sidade de Breslau dedicou cursos à sua obra e a Academia Real de Ciências de
Berlim convidou-lhe para membro, em 1858, honraria que ele, orgulhosamente,
recusou.
Schopenhauer: o mundo como representação
163 ■
Nos últimos anos, o arauto do pessimismo radical pôde gozar de uma insus-
peitada alegria, dedicando-se inclusive à sua flauta.
Dois anos depois, a 21 de setembro de 1860, aos 72 anos de idade, faleceu o
"cavaleiro solitário", como ele seria chamado mais tarde por Friedrich Nietzsche
(1844-1900), outro solitário.
0 mundo como representação O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer é a filosofia kantia- na,
que estabelecera uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si, ou seja,
entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. Segundo Kant, a coisa-
em-si não poderia ser objeto de conhecimento científico, como até então
pretendera a metafísica clássica. A ciência restringir-se-ia, assim, ao mundo dos
fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e
tempo) e pelas categorias do entendimento. Dessas distinções, Schopenhauer
concluiu que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele,
em um primeiro momento, como síntese entre o subjetivo e o objetivo, a
realidade exterior e a consciência humana.
Todavia, Schopenhauer se afastou do mestre que tanto admirava em um
ponto capital e a partir daí traçou uma filosofia original: para Kant, a coisa-em-si
é inacessível ao conhecimento humano, pois se encontra para além dos limites
do próprio ato cognitivo, enquanto Schopenhauer pretende abordar a própria
coisa-em-si, a qual seria, para ele, a vontade - origem metafísica de toda a
realidade.
Segundo Schopenhauer, mais do que simplesmente assegurar que ele é "um
objeto entre outros" a experiência interna do indivíduo também lhe garante que
ele é um ser ativo, cujo comportamento manifesta diretamente sua vontade. Essa
consciência interior, que cada um possui em si como vontade, seria primitiva e
irredutível. Assim, a vontade revela-se imediatamente a cada um como o em-si.
Ademais, a percepção que cada qual faz de si mesmo como vontade é distinta da
percepção que cada um tem como corpo. Mas isso não significa que as ações
corporais e as ações volitivas constituem duas séries de fatos, entendidas estas
como causadoras daquelas: para Schopenhauer, o corpo humano é apenas
objetivação da vontade, tal como aparece para a percepção externa. Em outras
palavras, o que se quer e o que se faz são a mesma coisa, vistos, contudo, sob
ópticas distintas.
Da mesma forma que nos seres humanos a vontade seria o princípio funda-
mental do universo. Mais: ela é independente da representação e, portanto, não
se submete às leis da razão. "Esta vontade é cega e irracional, porquanto as suas
manifestações no mundo são irracionais, e tanto quanto mais se sobe na hierar-
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 164
quia dos seres até ao homem, no qual o mal e a dor do universo são compendia-
dos e em demasia intensificados"(PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 396).
Tudo é dor A vontade, que é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana, é
também a origem de todo o sofrimento. O sistema schopenhaueriano é,
portanto, profundamente pessimista1, pois a vontade é concebida como algo sem
nenhuma meta ou finalidade. Sendo um mal inerente à condição humana, ela
gera, de modo necessário e iniludível, a dor. Por outro lado, aquilo que se chama
de felicidade nada mais é que uma cessação temporária do sofrimento. Assim,
para Schopenhauer, viver é sofrer.
Mas, a despeito de todo esse pessimismo, Schopenhauer indica alguns cami-
nhos para a supressão da dor.
Em um primeiro instante, a via para a suspensão da dor encontra-se na con-
templação artística. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-
-se, a inteligência passa a uma posição proeminente, de onde pode assistir à his-
tória de sua própria vontade. A atividade artística revelaria, desse modo, as ideias
eternas por meio de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, a
escultura, a pintura, a poesia lírica, a poesia trágica e, finalmente, pela música.
Com efeito, essa é a primeira vez na história da filosofia em que a música ocupa
o proscênio, o lugar de destaque no panteão das artes. Liberta de toda referência
específica aos diversos objetos da vontade, a música seria capaz de exprimir a
vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um instrumento
apto para propor a libertação do ser humano. ** Em filosofia, o termo pessimismo pode assumir três acepções, não necessariamente excludentes entre si:
■ doutrina segundo a qual o mal sempre vence o bem, de modo que o não-ser é melhor que o ser;
■ doutrina segundo a qual a dor vence o prazer, ou segundo a qual somente a dor á real, o prazer sendo apenas a sua momentânea
cessação;
■ doutrina segundo a qual a natureza á indiferente ao bem e ao mal moral, assim como à felicidade ou infelicidade dos seres.
Schopenhauer: o mundo como representação
165 ■
0 nirvana Porém, a libertação proporcionada pela arte não é total e absoluta: a arte sig-
nifica apenas um distanciamento relativamente passageiro e não a supressão da
vontade. Para que atinja a libertação completa, é necessário que o ser humano
ascenda ao nível da conduta ética, a qual representa uma etapa superior no pro-
cesso de superação do sofrimento. A ética de Schopenhauer não está, contudo,
presa à noção de dever, ao contrário do que acontece em Kant, na moralidade
defendida por Schopenhauer não há imperativos categóricos, os quais não pas-
sariam de formas de coerção. Assim, sua ética fundamenta-se, antes de tudo, na
ideia de que a contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem.
Para Schopenhauer, o egoísmo - que faz do ser humano o seu próprio inimi-
go - origina-se da vontade que intenta afirmar o seu ímpeto individual, e a su-
peração do egoísmo só é possível por meio do conhecimento da natureza única e
universal da vontade. Somente assim o ser humano pode se tornar bom. O es-
pírito de contenda contra os seus semelhantes é substituído pelo de simpatia e
compaixão. Libertado pela etapa ética, o ser humano alcança o princípio que é a
base de toda moral: "Não prejudiques pessoa alguma, sê bom para com todos".
Mas nem mesmo essa ética da compaixão possibilita ao ser humano atingir a
felicidade plena. Para Schopenhauer, a mais completa forma de redenção so-
mente pode ser encontrada na renúncia ascética ao mundo e a todas as suas so-
licitações, na anulação da vontade e no mergulho definitivo no nirvana36:"Graças a
essa purificação ascética37 o homem torna-se perfeitamente indiferente a tudo, e
desapega-se de tudo que o cerca: está morto inteiramente à vida, ainda que esta
possa continuar materialmente" (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 397).
Assim, há uma gradual eficácia nessas três vias de libertação da dor: a via estéti-
ca, a via ética e a via ascética.
Schopenhauer foi um leitor atento dos textos sagrados das religiões orientais,
sobretudo do hinduísmo e do budismo, cujo conhecimento chegava ao Ocidente
pelas viagens marítimas e pelo colonialismo europeu. Assim, se o Ocidente
colonizava econômica e politicamente o Oriente, este começava a "colonizar"
espiritualmente o Ocidente capitalista e desencantado. Assim, a ascética filosofia
schopenhaueriana nada mais era do que uma primeira leitura idealista da mística
oriental, especialmente do budismo, para quem a realidade é dor e a origem do
sofrimento é o desejo.
Com Schopenhauer, o idealismo alemão (que foi iniciado por Kant e teve o
36
Nirvana é um termo sânscrito que significa literalmente "extinção”. No budismo, o nirvana é a culminância da libertação, uma espécie de supera-
ção da ignorância e do apego aos sentidos, ao mesmo tempo em que é o fim do ciclo das reencarnações.
^ 0 ascetismo é uma moral filosófica ou religiosa baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais e que busca alcançar, pelos
sofrimentos físicos, o triunfo do espírito e da mente sobre os instintos e paixões. Purificação ascética é justamente uma disciplina que busca esse
triunfo do espírito sobre instintos e paixões.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 166
seu apogeu filosófico e institucional com Hegel, que se tornou uma espécie de
filósofo oficial do estado prussiano) torna-se profundamente crítico de si mesmo,
tornando- -se irracionalismo e pessimismo. É o ocaso, o solene pôr-do-sol
dessa grande aventura do espírito que foi o idealismo - que muitas vezes foi a
alma filosófica do romantismo —, já que no horizonte anunciavam-se novas
correntes filosóficas, mais ligadas ao mundo e à ação, como o marxismo e o
positivismo.
Schopenhauer e a educação Da concepção schopenhaueriana "[...] do mundo e da vida, decorre uma pe-
dagogia negativa e quietista, mas que exige muita força e proporciona libertação:
uma pedagogia que ensina o desapego, o desprezo do mundo e da vida,
porquanto não são o absoluto e porquanto estão cheios de mal" (PADOVANI;
CASTAGNOLA, 1984, p. 397).
A uma primeira vista, parece que para o nosso fazer pedagógico de hoje não
há muito o que reter de um sistema tão pessimista, ainda mais em uma socie-
dade que, pelo menos no mercado de trabalho, exige a todo custo o otimismo e
uma atitude confiante perante a vida. No entanto, é justamente esse contraste
que é interessante oferecer. Para que corremos tanto? O que é o sucesso? O que é
felicidade? A vontade é sempre positiva? E a vontade de poder, de domínio? São
reflexões a que não podemos nos furtar após o contato com a originalíssima
filosofia de Schopenhauer.
Texto complementar A vontade (SCHOPENHAUER, 1964, p. 246-248)
Antes de tudo, é preciso recordar aquela consideração que coloquei no fim do
livro segundo, com vista à questão ali suscitada, do fim da vontade.
Ao invés de responder, fiz ver que a vontade, em todos os graus de sua mani-
festação, desde o mais baixo até o mais alto, carece de objetivo final, pois sua
essência é querer, sem que este querer tenha jamais um fim, e que, portanto, não
consegue uma satisfação definitiva e só os obstáculos podem detê-la, mas em si
vai até o infinito. [...]
Reconhecemos, há muito tempo, que o núcleo e a essência de cada coisa é
esta aspiração idêntica a que em nós chamamos vontade, onde se manifesta mais
claramente e com a consciência mais perfeita. A sua compreensão por um
obstáculo que se eleva entre ela e seu fim atual chamamo-la dor; pelo contrário,
chamamos bem-estar e felicidade à consecução deste fim. Estas mesmas
denominações podem ser aplicadas a outros fenômenos de mais baixa
graduação, mas da mesma índole no mundo inconsciente, e então vemo-lo
Schopenhauer: o mundo como representação
167
também presa da dor e sem ventura duradoura. Todo esforço ou aspiração nasce
de uma necessidade, de um descontentamento com o estado presente, e é
portanto uma dor enquanto não se vê satisfeito. Mas a satisfação verdadeira não
existe, porquanto é
o ponto de partida de um novo desejo, também dificultado e origem de novas
dores. Jamais há descanso final; portanto, jamais há limites nem termos para a
dor.
Mas o que descobrimos com grande esforço na natureza inconsciente e na
consciente se nos revela com toda a clareza na vida animal, cuja eterna dor é fácil
demonstrar. Contudo, sem deter-nos neste escalão intermediário, queremos
dirigir nossa atenção àquela esfera em que reina a mais deslumbrante clareza, a
saber, a vida humana. Porque à medida que a vontade se faz mais intensa, a dor
se nos revela de um modo mais evidente. Em sentido estrito, na planta não
encontramos sensibilidade nem dor. Os animais inferiores, os infusórios e os
radiados são incapazes da menor dor; nos próprios insetos, a faculdade de sentir
e de padecer é bastante limitada. Ao contrário, no sistema nervoso dos
vertebrados chega a seu maximum e se desenvolve na proporção em que cresce a
inteligência. À medida que o conhecimento se faz mais claro e a consciência se
desenvolve, a dor aumenta, chegando a culminar no homem. Quanto mais
lucidez de conhecimento possui o homem e mais elevada é sua inteligência, mais
violentas são suas dores. O gênio é o que mais padece.
Atividades 1. Quanto à vida de Arthur Schopenhauer, assinale V (verdadeiro) ou F (falso). ( ) Desde pequeno, Schopenhauer estava destinado a seguir a carreira de
comerciante. ( ) A morte repentina da mãe impediu-o de se dedicar a uma carreira acadêmica,
como era sua vontade. ( ) Em 1818, com apenas 30 anos de idade, ele lançou o seu clássico Assim
falouZaratrusta, que na época passou quase inteiramente despercebido. ( ) O sucesso só começou para Schopenhauer em 1851, com Parerga e
Paralipomena, seu último livro publicado. ( ) Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da
conduta humana, e - ao mesmo tempo - a origem de todo o sofrimento. ( ) Aúnicalibertaçãototaleabsolutadadoréaquelaqueéproporcionada pela arte. 2. Para Schopenhauer, nós temos acesso ao mundo?
3. Para Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo, bem como da
conduta humana, e ao mesmo tempo também é a origem de todo sofrimen-
to. Para ele, há como fugir a essa realidade da dor? E se há, qual é o método e
o caminho?
Para produzir filosofia Schopenhauer diz que a imagem que temos do mundo são representações
muito particulares e que essas representações são reguladas pela vontade, a qual
é a força motriz que produz o movimento da vida. Levando em conta que as
representações que fazemos das coisas são subjetivas, e que portanto cada um
tem as suas representações, qual é a melhor maneira de agirmos em relação aos
nossos educandos se desejamos que o processo de ensino-aprendizagem se
torne de fato eficiente?
0 positivismo e o desenvolvimento da ciência Todos os bons intelectos têm repetido, desde o tempo de Bacon, que não pode haver qualquer
conhecimento real senão aquele baseado em fatos observáveis.
Auguste Comte
Um mestre e uma musa De certa forma, o positivismo é um novo rótulo para uma nova fase de
desenvolvimento do empirismo, corrente filosófica inglesa dos séculos XVII e
XVIII, para a qual o conhecimento se funda exclusivamente nos dados do
mundo empírico. O nome surgiu em 1830, na escola do socialista utópico
Saint-Simon (1760-1825), e ganhou fama com Auguste Comte, o pensador
paradigmático do movimento. Deriva-se do latim positum, significando o que
"está posto a nossa frente", o que é observável, experimentável.
Além do empirismo, o positivismo tem como suas fontes o criticismo de
Kant (1724-1804), que estabelecera barreiras às pretensões da metafísica; o
enciclopedismo francês, com Diderot e D'Alambert, que procurava reunir e
catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo; e o
progresso das ciências experimentais daqueles, como a química de Lavoisier
(1743-1793) e a biologia de Bichat (1771 -1802), que revolucionavam a visão
O positivismo e o desenvolvimento da ciência
169
de mundo da época.
O positivismo subdividiu-se em várias correntes, não raro conflitantes, e
cedo espalhou-se pelo mundo, granjeando um sucesso e uma penetração até
então nunca experimentados por uma escola filosófica.
E é forçoso que nos reportemos àquele que é considerado o seu fundador,
pois até hoje o nome do positivismo, para o bem ou para o mal, está atrelado
a ele.
Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, que se tornou conhecido como
Auguste Comte, nasceu em Montpellier, no sul da França, em 19 de
janeiro de 1798. Depois de realizar seus primeiros estudos em sua cidade natal,
onde se destacou por uma memória prodigiosa, ingressou na Escola Politécnica, em
Paris, como o primeiro colocado no concurso vestibular.Todavia, com o temporário
fechamento dessa escola, em 1816, em conseqüência da onda conservadora do
período pós-napoleônico, voltou a Montpellier para continuar seus estudos na
faculdade de medicina local.
No ano seguinte, de volta a Paris, Comte foi expulso da Escola Politécnica por
ter encabeçado um protesto contra um professor. Passou então a sobreviver de
pequenos expedientes, como aulas particulares e artigos para jornais. Ainda em
1817, tornou-se secretário do pensador Saint-Simon (1760-1825), o socialista
utópico que o introduziu no mundo intelectual parisiense.
Já mergulhado na elaboração da doutrina positivista, Comte publicou seu Plano
de Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade em 1822. Dois anos
depois, rompeu com Saint-Simon, já que as doutrinas de um e de outro se
revelaram incompatíveis.
Em 1825, casou-se com Caroline Massin e mais tarde foi por ela abandonado,
com o que sofreu perturbações mentais, tendo sido internado numa clínica. Em
1830, deu início à publicação de seu célebre Curso de Filosofia Positiva, que só viria a
ser concluído 12 anos depois.
Em 1832, retornou como professor à Escola Politécnica, dela se desligando
definitivamente em 1844.
Passou a ser ajudado por amigos e admiradores, entre eles John Stuart Mill
(1806-1873). Ainda em 1844, divorciou-se da esposa que só lhe causara sofri-
mentos e transtornos e envolveu-se em um caso de amor platônico com Clotilde de
Vaux, que perduraria até a morte desta, dois anos mais tarde.
Verdadeira musa do filósofo, Clotilde viria a ser venerada como uma santa pelos
discípulos mais ortodoxos do mestre.
Em 1848, Auguste Comte criou a Sociedade Positivista, que granjearia um
grande número de discípulos.
Nos anos seguintes, publicou os volumes do Sistema de Política Positivista, no
Tópicos da Filosofia da Educação
170
qual extraiu algumas das principais conseqüências de sua concepção de mundo
não-teológica e não-metafísica, propondo uma interpretação pura e plenamente
humana para a sociedade e sugerindo soluções para os problemas sociais. No
volume final dessa obra, apresentou as principais intuições de sua "religião da
humanidade", em que os sacerdotes seriam os cientistas.
Em 1856, publicou o estudo Síntese Subjetiva, que seria o primeiro de uma série
a tratar de várias questões, mas veio a falecer em Paris, provavelmente de câncer,
em 5 de setembro de 1857.
História e evolução O projeto inicial de Comte era substituir a filosofia, com seus conceitos abs-
tratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela ciência, ou melhor,
pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a totalidade dos fenômenos
empíricos. À filosofia caberia apenas uma sistematização das ciências, servin- do-
se para tanto do método positivo, isto é, o método científico extraído das ciências
experimentais. Assim, não havia interesse pelas causas primeiras dos fenômenos,
mas apenas pelas relações causais ou de similitude entre eles. Em Comte, a
hierarquia das ciências corresponde à ordem de formação histórica das mesmas, ao
mesmo tempo que passa de um nível de maior abstração e menor complexidade a
outro de maior complexidade e menor abstração, em uma linha que vai da
matemática (a mais abstrata) até a sociologia38 (a mais concreta), passando pela
física, a química e a biologia.
Com efeito, assim como em Hegel, a filosofia de Auguste Comte é enformada
pela ideia de uma linha evolutiva da história, possivelmente absorvida de Giam-
battista Vico39, cuja obra ele conhecia. Para Vico, filósofo italiano que construiu a
primeira filosofia da história, a história é regida por leis, sendo sujeita a um eterno
ciclo de repetição de três fases:
■ a fase mítica, em que prevalece a força física;
■ a fase heróica, de domínio da aristocracia;
■ a fase humana, em que reina o direito.
Assim, para Comte, a evolução social da humanidade estaria igualmente sujeita
a leis naturais fixas, que independem de qualquer intervenção da vontade humana,
partindo de um estado teológico inicial, passando por um estado metafísico interme-
diário e chegando a um estado positivo, termo feliz da evolução histórica. Segundo
um filósofo contemporâneo,"neste aspecto, Vico foi mais realista e reconheceu que
38 O termo sociologia foi criado por Comte. 39
Giambattista Vico (1688-1744), filósofo italiano que se opôs ao racionalismo de Descartes (1596-1650). Suas teorias da história estão expressas
em seu principal livro. Princípios de uma Nova Ciência. Ignorado em sua época, Vico só passou a ser reconhecido no século XIX.
O positivismo e o desenvolvimento da ciência
171
a sociedade pode retroceder, e efetivamente retrocede, de períodos de refinamento
e civilização a eras de novo barbarismo"(RUSSELL, 2002, p. 396). Mas precisamos
reconhecer que a época de Comte, a primeira metade do século XIX, era uma fase
de exultante otimismo com os efeitos da técnica e da ciência (somente o século XX
revelaria o outro lado, de carnificina e barbárie, produzido pela tecnologia em duas
devastadoras guerras mundiais). Eis como Maria Lúcia Aranha expõe estes três
estados de Augusto Comte: No Estado Teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais, mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No Estado Metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidos como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um, uma entidade correspondente. Enfim, no Estado Positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas; a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de simili- tude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, resume-se de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. (ARANHA, 1986, p. 180-181)
Cada um desses três estados, por sua vez, apresentam os seus graus de de-
senvolvimento, sempre dentro de uma tendência em direção a uma unificação
maior.
A fase teológica, por exemplo, subdivide-se em animismo, politeísmo e mo-
noteísmo. Todos os sistemas teológicos têm por base o animismo, mesmo o pan-
teísmo do idealismo alemão. Por meio da astrologia, passa-se do animismo ao
politeísmo, a etapa principal do estado teológico, que, por seu turno, reparte-se em
três formas principais: o politeísmo egípcio ou teocrático grego ou espiritual,
romano ou social. Por meio de uma revolução, comparável à Revolução Francesa, o
monoteísmo afirma-se, concorrendo para tanto o pensamento grego, a civilização
romana e a teocracia hebraica. O monoteísmo tem a sua maior expressão no
catolicismo medieval.
A diferença de Hegel (1770-1831), o desenvolvimento de uma fase para outra
não é concebido em termos dialéticos. À diferença de Marx (1818-1883), não é das
contradições do estágio anterior que surgem suas condições de superação no
estágio superior. Entretanto, a semelhança de Comte com esses dois filósofos está
na concepção otimista da evolução da história - aliás, uma característica comum no
século XIX. Além disso, Comte sustenta, ainda, que todas as ciências passam por
uma evolução semelhante de três estágios. A única que já teria atingido
plenamente o estado positivo é a matemática.
Tópicos da Filosofia da Educação
172
A religião da humanidade Com o advento das ciências positivas, já teríamos alcançado o último estágio, o
estado positivo, que deveria abranger toda a civilização, incluindo a religião. Nos
seus últimos anos, Comte argumentava que havia chegado a hora em que ele
deixaria de ser o novo Aristóteles, que ele fora até então, para se transformar no
novo São Paulo (e aqui percebemos que a modéstia não é virtude muito usual nos
filósofos). Daí o seu empenho em instituir a assim chamada religião positiva, isto é,
o culto do Grande Ser, que não é senão a humanidade - a quem se acresce, o
Grande Fetiche, o planeta Terra, e o Grande Meio, o espaço sideral. Juntos,
humanidade, Terra e espaço constituem a trindade positiva. Ademais, vários
símbolos foram acrescentados: calendário próprio, altares, sacramentos,
sacerdotes, pontífices, paramentos, liturgia. Descendo a minúcias, Comte distingue
um culto privado e um público: O culto privado, por sua vez, é dividido em pessoal e doméstico. O primeiro dedicado particularmente à mulher, como sendo a mais apta a representar o Grande Ser; o segundo compreende nove sacramentos, com relação às fases mais importantes da vida. O culto público deveria ter um templo apropriado, oficiado por um sacerdócio organizado para isso, de conformidade com as solenidades estabelecidas pelo calendário positivista, onde os santos do cristianismo são substituídos pelos heróis do mundo. Tal religião teve, de fato, o seu centro em Paris, espa- Ihando-se também alhures, especialmente na Inglaterra e na América, onde sobreviveu ao seu fundador. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 434)
Assim, paradoxalmente, o último estado, o positivo, que deveria marcar de-
finitivamente a vitória da razão e da ciência sobre a religião e as superstições, de
certa forma assinala o retorno da força de elementos religiosos - como um retorno
do elemento reprimido, para nos servirmos dos conceitos de Freud.
Quando filosofia vira samba Naturalmente, nem todos os discípulos de Auguste Comte o seguiram nessa via
de erigir novos ídolos em lugar dos velhos deuses. Se Pierre Lafitte (1828- 1881)
acompanhou de perto o mestre, na ala ortodoxa do positivismo, Emílio Littré,
porém, na ala chamada dissidente, recusou a parte religiosa, consideran- do-a uma
involução no pensamento comtiano. O historiador e filósofo Hipolite Taine (1828-
1873) e o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), contam-se entre os dissidentes.
Durkheim, inclusive, e a escola francesa de sociologia, iniciada com ele, será de
grande importância para o desenvolvimento dessa nova ciência fundada por Comte.
Na Grã-Bretanha, o positivismo reencontrou-se com o empirismo antecedente,
dando origem ao que se chama positivismo inglês, com nomes como John Stuart
Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903). O primeiro é considerado o
último economista do liberalismo clássico e também precursor de alguns aspectos
do keynesianismo3. O segundo, criou um sistema organicista e evolucionista que,
antecipando-se a algumas das teorias de Darwin (1809-1882), desenvolveu a tese
de que toda a realidade, desde a material até a espiritual, evolui à semelhança dos
O positivismo e o desenvolvimento da ciência
173
organismos vivos.
Longe de ser um objeto de antiquário do século XIX, o positivismo deixou um
longo legado em nossa época. Sem falar nas influências diretas em escolas como o
pragmatismo, o Círculo de Viena, e em pensadores como Bertrand Russell e Karl
Popper, boa parte do século XX (e por que não dizer do início do século XXI?), na
sua exaltação acrítica da técnica e do progresso, esteve sob o seu signo. Se hoje, na
maioria dos círculos sociais, um engenheiro é muito mais benquisto que um
filósofo, não vamos creditar a culpa exclusivamente ao filósofo Augusto Comte,
mas não há como negar que uma parcela dessa culpa é dele e de seu louvor às
ciências positivas.
O positivismo teve ampla aceitação no Brasil, nas escolas de Direito, nos círculos
militares e sobre alguns dos principais líderes republicanos, entre os quais Benja-
min Constant (1836-1891), fundador da Sociedade Positivista (1876). Aliás, o lema
da bandeira nacional, ordem eprogresso, é de inspiração comteana. Existe até uma
Igreja Positivista do Brasil, como resultado dos esforços de Miguel Lemos (1854-
1917) e R. Teixeira Mendes (1855-1927). Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio
Romero (1859-1914) destacaram-se entre os intelectuais influenciados por essa
escola.
Uma das maneiras de se mensurar, em nosso país, o grau da difusão de um
determinado corpo de doutrina é observando se ele deixou marcas em nossa
cultura popular. Raras correntes de filosofia tiveram esse mérito. Uma delas é o
positivismo, cujo principal slogan inspirou o seguinte samba de Noel Rosa e Orestes
Barbosa, cujo nome é justamente Positivismo:
O amor vem por princípio, a ordem por base O progresso é que deve vir por fim.
Desprezaste esta lei de Augusto Comte E foste ser feliz longe de mim. ^ Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista inglês John Maynard Keynes nos anos 1930 e consiste na afirmação do Estado
como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego.
Para concluir, podemos afirmar que o positivismo é a ideologia da burguesia
quando ela deixa de ser uma classe revolucionária. No período que precede e
acompanha a Revolução Francesa, a burguesia era uma classe ainda em busca de
seu espaço, em luta sobretudo com a nobreza e o clero. Sua ideologia era o
lluminismo e seu discurso assumia não raro a arrogância e a intrepidez de quem se
julga na vanguarda da história. Passado um século, a burguesia já estava assentada
no poder das principais nações europeias. Todavia, à sua sombra nasceu uma nova
classe: o proletariado, que já encampa o antigo discurso revolucionário dos
burgueses. Desse modo, temerosa de perder os privilégios recém-con- quistados,
a burguesia operou uma sensível modulação em seu discurso e, em vez de
liberdade e igualdade, passou a falar em ordem e progresso. Não é à toa que, em
Tópicos da Filosofia da Educação
174
nosso país, foi nas fileiras do exército - organismo que tem a missão de manter a
ordem instituída - que o positivismo mais encontrou guarida.
Texto complementar
A verdadeira natureza e o caráter próprio da
filosofia positiva (COMTE, 1964, p. 274-275)
Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da
filosofia positiva, é indispensável lançar antes um olhar geral sobre a marcha
progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto; pois nenhuma
concepção se pode conhecer tão bem se não é por sua história.
Assim, pois, estudando o desenvolvimento total da inteligência humana nas
diversas esferas de sua atividade, desde sua origem até nossos dias, creio ter
descoberto uma grande lei fundamental, à qual se acha submetida por uma
necessidade invariável, e que me parece poder estabelecer-se, seja sobre as
verificações históricas, resultantes de um exame atento do passado. Consiste esta
lei em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos
conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diversos; o estado
teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo.
Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente
em cada uma das suas investigações três métodos de filosofar, cujo caráter é
essencialmente diferente e, inclusive, radicalmente
oposto; primeiro o método teológico, depois o método metafísico, e por fim o
método positivo. Daí três espécies de filosofia, ou de sistemas gerais de
concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: o
primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro, seu
estado permanente e definitivo; o segundo está destinado unicamente a servir de
transição.
No estado teológico, o espírito humano, ao dirigir essencialmente suas
investigações para a natureza íntima dos seres, das causas primeiras e finais de
todos os efeitos que percebe, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, se
representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e continuada de
agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária
explica todas as aparentes anomalias do universo.
No estado metafísico, que não é no fundo senão uma simples modificação geral
do primeiro, se substituem os agentes sobrenaturais por forças abstratas,
verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do
mundo e concebidas como capazes de engendrar por elas mesmas todos os
fenômenos observados, cuja explicação consiste então em consignar a cada um
deles a entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade
de obter noções absolutas, renuncia à procura da origem e destino do universo e
ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos, para aplicar-se unicamente à
descoberta, mediante o emprego bem combinado do raciocínio e da observação de
O positivismo e o desenvolvimento da ciência
175
suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. A
explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, não é agora senão a
união estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais
que os progressos da ciência tendem cada vez mais a diminuir em número.
Atividades 1. Segundo sua opinião, vivemos ainda sob a herança do positivismo ou já
adentramos em uma época pós-positivista? Discuta com a turma e registre suas
conclusões.
2. Quanto às principais influências do positivismo, assinale V (verdadeiro) ou F
(falso). ( ) A filosofia da história de Giambattista Vico.
( ) O enciclopedismo francês, com Diderot e DAIambert, que procurava reunir e
catalogar todo o conhecimento filosófico e científico de seu tempo.
( ) O criticismo de Immanuel Kant.
( ) O progresso das ciências experimentais, como a química e a biologia.
( ) O historicismo da escolástica tardia.
( ) O socialismo utópico de Saint-Simon.
( ) O empirismo inglês.
3. Como vimos, o projeto inicial de Comte é substituir a filosofia, com seus
conceitos abstratos e muitas vezes desvinculados do mundo concreto, pela
ciência, ou melhor, pelo sistema hierárquico das ciências cujo objeto é a tota-
lidade dos fenômenos empíricos. Ainda há espaço no projeto comtiano para a
filosofia?
Nietzsche educador Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como poderemos nós, os
assassinos entre os assassinos, nos consolarmos? O que foi mais santo e poderoso de tudo que
este mundo jamais possuiu sangrou até à morte sob nossas facas. Quem removerá este sangue
de nós? Com que água nos purificaremos?
Friedrich Nietzsche
Vates e filósofos Toda época tem seus profetas. Por uma rara união de sensibilidade e
inteligência igualmente raras (mais a primeira que a segunda, atributo de
profetas e poetas), os profetas têm a peculiaridade de ler nas entranhas do
tempo em que vivem os augúrios dos dias que não vivem, mas antecipam.
Nietzsche foi um desses. Em uma breve e atormentada vida, ele antecipou
muitas das discussões que só estariam maduras um século depois.
Infelizmente para eles, a maioria desses profetas nasce póstuma, como o
próprio Nietzsche disse de si. Isto é, o reconhecimento, quando vem,
acontece quando eles já estão mortos. Ou quase. Não foi diferente com
Nietzsche: quando suas ideias começaram a encontrar interlocutores, sua
mente ensaiava o salto definitivo na loucura.
O escritor Ezra Pound (1885-1972) disse que os poetas são as antenas da
raça. Nesse termo, poeta, está mesclado o sentido de profeta e ambos se
encontram na palavra vate, com que antigamente se denominavam tanto um
quanto outro. O filósofo dificilmente é visto como um vate, pelo menos desde
Descartes (1596-1650). Defensor da razão, o filósofo só pode antecipar o
futuro como futurólogo, isto é, como alguém que, lendo nas entrelinhas da
atualidade, propõe um prognóstico razoável do amanhã, com tendências,
probabilidades estatísticas. O vate, ao contrário, é aquele que, a partir da
intuição, profetiza o porvir e, não raro, ao profetizar, antecipa esse porvir,
instaura-o. Nietzsche foi um vate. Não que não tenha sido um filósofo. Como
um bom alemão, teve uma sólida formação clássica e,
quando foi preciso, soube escrever de maneira sistemática, como o costumam
fazer, amiúde de modo aborrecido, os filósofos profissionais. Sim, mas Nietzsche
não foi um vate apenas no conteúdo: também o foi na forma. E aqui se revela
inteiramente o seu lado poeta. Servindo-se de aforismos, de fragmentos, de
poemas, de diálogos, de monólogos, de imagens inusitadas, esse filósofo, mais
que outros antes dele, escreveu como um poeta. "Escreve com sangue", disse ele
certa vez,"e descobrirás que sangue é alma." Sua filosofia é a martelada final que
desconjunta todos os belos e grandiosos edifícios filosóficos erigidos pelo
idealismo alemão no século XIX. Sua filosofia revela, mais até que a de um outro
alemão - Karl Marx (1818-1883) -, que"tudo o que é sólido se desmancha no ar"
Se hoje já não há mais nada seguro no que se agarrar, o principal culpado é este
pensador apaixonado por música e poesia.
Para compreendermos o século XX, e este século XXI que ainda está na aber-
tura, é inelutável que encaremos esse vate-filósofo que não temeu encarar seus
demônios e soltá-los sobre o mundo.
Uma vida perigosa Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, na casa paro-
quial do vilarejo de Rõcken, na Saxônia, então província do cada vez mais pode-
roso império da Prússia. Coincidentemente, era o dia do aniversário do impera-
dor, Frederico Guilherme IV, o que fez com que a criança recebesse o nome do
monarca. Seu pai, um pastor luterano filho de outro pastor, veio a falecer cinco
anos depois, obrigando a família a mudar-se para Naumburgo. Nessa cidadezi-
Nietzsche educador
193 ■
nha, o futuro crítico radical do cristianismo frequentou várias escolas, recebendo
a alcunha de pastorzinho por causa de seu jeito recluso e tímido. Aos 14 anos de
idade foi estudar em um internato na vizinha Pforta. Sua infância e sua ado-
lescência foram cheias de devoção (ele lia a Bíblia até seus olhos se encherem de
lágrimas), solidão, poesia e mortes: além da morte do pai, ele perdeu um
irmãozinho logo em seguida, e mais tarde a tia e a avó paterna. A enfermidade
também foi sua companheira desde cedo - em 1856, sofreu a primeira crise de
dor de cabeça, o que o acompanharia pela vida afora.
Lia muito: Emerson (1803-1882), Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805),
Sterne (1713-1768), Humboldt (1769-1859), Goethe (1749-1832), Hõlderlin
(1770-1843), Novalis (1772-1804)40. Em 1860, caiu-lhe nas mãos A Essência do
Cristianismo, de
Ludwig Feuerbach (1804-1872), um hegeliano de esquerda que também influen-
ciara Marx. Esse livro abriu as primeiras fissuras em sua até então fervorosa fé.
Em Pforma, além disso, Nietzsche recebeu uma sólida formação humanista,
adquiriu disciplina e fez algumas amizades importantes.
Aos 19 anos, matriculou-se na Universidade de Bonn para estudar Teologia e
Filologia, com vistas a seguir a carreira religiosa de seus antepassados. Um pouco
depois, porém, desapontando seus familiares, resolveu cursar apenas Filologia.
No ano seguinte, transferiu-se para a Universidade de Leipzig, para acompanhar
os cursos do eminente helenista Ritschl. Esse também foi o ano do seu
acachapante encontro com Schopenhauer (1788-1860) por meio de O Mundo
como Vontade e Representação: "Levou o livro para seus aposentos e leu
avidamente palavra por palavra.'Parecia que Schopenhauer estava se dirigindo a
mim pessoalmente. Senti seu entusiasmo e parecia vê-lo à minha
frente"'(DURANT, 2000, p. 374).
Foram anos felizes para o futuro filósofo, de muita bebida e cigarro - que
depois ele abandonaria por achar que prejudicavam a mente. Também é dessa
época a sua primeira e desastrada experiência em um bordel. Foi o período em
que provavelmente contraiu sífilis, doença incurável na época e provavelmente
causa ou complicador de seu estado de saúde cada vez mais precário e de sua
demência final. Convocado para o serviço militar em 1867, sofreu uma fratura em
uma queda de cavalo, sendo dispensado depois de uma longa e dolorosa
convalescença.
De volta a Leipzig, conheceu Richard Wagner (1813-1883). Nietzsche viu-se
arrebatado pelo carisma desse grande compositor, que vivia com pompa e luxo,
acompanhado de um séquito de admiradores. Wagner convidou-o a vê-lo mais
40 Com exceção do naturalista Humboldt, todos os demais são literatos, sobretudo ligados ao romantismo.
Tópicos da Filosofia da Educação
194
vezes em sua casa emTriebschen, na Suíça. Dois meses depois, o jovem
professor
- que recebera o título de doutor sem precisar de tese ou exame em decorrência
de seu brilhante desempenho acadêmico - foi nomeado para uma cadeira na
Universidade de Basiléia, também na Suíça, o que lhe deu condições de freqüen-
tar com assiduidade a casa do músico.
Em 1870, foi deflagrada a Guerra Franco-Prussiana e Nietzsche obteve
permissão junto às autoridades suíças para se alistar como enfermeiro. Contudo,
uma disenteria o obrigou a retornar mais cedo para casa. A saúde voltou a
perturbá-lo. Um pouco depois, em uma carta a um amigo, ele confessou: "Entre
cada 14 dias e três semanas tenho que passar 36 horas seguidas na cama." Na
guerra, entretanto, descobriu que"a mais forte e elevada vontade de viver não se
encontra na luta pela vida, mas na vontade de potência, numa vontade de guerra
e dominação. "Todavia, Nietzsche não ficou empolgado pelos feitos militares do
império alemão.
Em 1872, ele publicou seu primeiro livro, A Origem da Tragédia, em que de-
fende a tese de que a cultura grega antiga vivia a tensão entre dois princípios
básicos e divergentes - o dionisíaco (ligado à exacerbação dos sentidos) e o apo-
líneo (ligado à razão e ao equilíbrio das formas). Apesar de o livro ter agradado a
alguns, a crítica negativa de um eminente filólogo lançaria o seu autor em um
gradativo ostracismo. Nos cursos que ministrou a seguir, a audiência foi cada vez
menor. Por um lado, sua voz tornara-se fraca, quase inaudível para seus alunos,
ao mesmo tempo que sentia-se entediado com a Filologia.
Apesar disso, continuava a escrever. Entre 1873 e 1876, redigiu uma série de
ensaios polêmicos, reunidos depois sob o título de Considerações Extemporâneas,
nos quais criticava vários aspectos da modernidade. Dois anos depois, reuniu
suas anotações e lançou Humano, Demasiado Humano, obra em que adota o
aforismo41 como meio de expressão, na busca por uma forma de dar vazão às
suas inquietações filosóficas. Todavia, durante muito tempo a repercussão de
seus livros seria irrisória, o que atormentaria grandemente alguém consciente de
haver sido destinado à genialidade.
Saúde precária e livros vigorosos O ano de 1879 foi um dos piores para Nietzsche: com frequência, terríveis
dores de cabeça e na vista impediam-no de ler e escrever. Ao longo do ano, ele
teve 118 dias de crise grave, sendo que chegou a sofrer mais de 70 horas de
dores ininterruptas. Por causa desse estado de saúde, em maio resolveu demitir-
-se da universidade. Uma pensão anual que lhe foi concedida permitiu que vi-
41 Em um sentido mais geral, aforismo ou ditado é uma sentença de poucas palavras que explicita um princípio moral. Entre os
filósofos, os aforismos são textos curtos e sucintos, em um estilo fragmentário e assistemático.
Nietzsche educador
195 ■
vesse modestamente até o fim da vida. Abraçou então uma existência errante,
sempre em busca do melhor clima para a sua saúde, não passando mais de seis
meses na mesma localidade. Viveria assim em lugarejos da Suíça, da Alemanha,
da Itália e da França. Em 1881, em uma cidadezinha da Suíça, durante um pas-
seio pelas montanhas, teve a "revelação" do eterno retorno: tudo que existe já
existiu e tornará a existir outra vez.
Apesar da tranqüilidade que lhe permitiu se entregar às reflexões, ele não se
acostumou facilmente à solidão. Tentou se casar, mas nenhuma mulher por
quem se interessou lhe correspondeu. Sua saúde foi se deteriorando cada vez
mais. Desapontado com a medicina, tomou as rédeas de seu tratamento, ob-
servando em seu organismo os efeitos das dietas que inventava. Com esse fito,
Nietzsche educador
196
ingeria toda espécie de drogas em busca de um alívio para suas lancinantes
ce- faleias, suas dores de cabeça: sais, soporíferos, ópio, haxixe. Ao mesmo
tempo, a ideia de suicídio não lhe saía da cabeça.
Mas nenhum tormento físico ou psíquico conseguiu impedir o seu trabalho:
de 1883 a 1885, Nietzsche redigiu o seu célebre Assim FalouZaratustra, seguido
de outros livros em velocidade impressionante, pois ele sabia que dispunha de
pouco tempo. Sua obra é um formidável testemunho da força de vontade - ou
vontade de potência, na linguagem nietzscheana - sobre as contrariedades, as
incompre- ensões e a enfermidade mais atroz. Entre as obras desse período
estão:
■ Para Além do Bem e do Mal (1886);
■ Para a Genealogia da Moral (1887);
■ O Crepúsculo dos ídolos ou como Filosofar com o Martelo (1888);
■ OAnticristo (1888).
Em 1889, veio o colapso final. Tomado por convulsões, o filósofo entrou em
delírio. Mandou cartas alucinadas para os seus amigos, para a mulher de Wagner,
e inclusive para o rei da Itália, assinando ora Dionísio, ora "o Crucificado". Ele, que
sempre combatera a compaixão, é visto abraçado a um cavalo, protegendo-o dos
açoites do cocheiro. A 10 de janeiro, foi internado na clínica psiquiátrica de
Basiléia, sendo logo transferido para a de Jena. No ano seguinte, deixou a clínica,
ficando sob os cuidados de sua mãe. Com a morte desta, transferiu-se para
Weimar, sob a guarda de sua irmã Elisabeth, casada com um antissemita - e
assim seus manuscritos inéditos seriam manipulados para servir às ideias do
antissemitismo.
Boa parte do tempo Nietzsche permanecia em estado catatônico, quase re-
duzido a um vegetal. Não reconhecia seus familiares nem seus amigos. Uma vez,
ao ver alguém folheando um livro, comentou: "Não escrevi eu também bons
livros?" A partir de 1894, porém, já não falava - apenas berrava sons ininteligíveis
enquanto seu rosto ostentava uma aparência de grande serenidade. Pouco
depois, só se locomovia em uma cadeira de rodas. Por fim, em 25 de agosto de
1900, morreu Friedrich Nietzsche.
Nos seus últimos dez anos, sua obra começou a conquistar a aclamação pú-
blica que ele tanto ansiara. Sua fama se difundia mundialmente, de maneira como
ele nunca pudera imaginar em seus sonhos mais megalomaníacos. Mas disso ele
nunca soube.
Tópicos da Filosofia da Educação
■ 197
Uma filosofia feita com o martelo A filosofia de Nietzsche é feita a marteladas, isto é, quebrando os ídolos e
ícones do passado. Sobre o crepúsculo dos ídolos, sobre a destruição das velhas
verdades, ele constrói uma filosofia nova, não mais um sistema com pretensões
de abranger o mundo, como o fizeram ou tentaram fazer os grandes filósofos do
idealismo alemão, mas uma filosofia feita de lampejos capazes de iluminar as
contradições e as fissuras do real. Por isso, para Nietzsche, não se trata mais de
alcançar a verdade ou estabelecer as condições do conhecimento, mas sim saber
interpretar e avaliar. A finalidade da interpretação é a tentativa da determinação
do sentido de um fenômeno, e esse sentido será sempre parcial e fragmentário.
A avaliação, por sua vez, tem por meta a determinação do lugar desse sentido no
conjunto dos fenômenos.
Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-socrá-
ticos, os quais, segundo ele, não separavam pensamento e vida, que se alimen-
tavam e retroalimentavam mutuamente. Mas o desenvolvimento da filosofia no
Ocidente trouxe consigo o fim dessa relação harmônica e, em vez de uma vida
ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia outorgou-se a missão de"julgar
a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores. No lugar do filósofo críti-
co de todos os valores instituídos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico
- do qual o primeiro representante, conforme Nietzsche, seria Sócrates. Ao esta-
belecer uma clara distinção entre dois mundos - um sensível e outro inteligível -,
Sócrates teria lançado a pedra fundamental da metafísica, fazendo da vida um
objeto a ser avaliado e medido à luz de valores ideais, como a verdade, o bem e o
belo. Assim, com Sócrates, inaugurava-se não somente a metafísica ocidental,
mas também a época da razão autônoma e do homem teórico, em oposição à
antiga tradição extática do período da tragédia.
Para Nietzsche, a tragédia grega ostentaria como marca distintiva um co-
nhecimento intuitivo da unidade de todas as coisas, constituindo-se como uma
espécie de portal de acesso à essência do mundo. No entanto, para Sócrates, o
teatro trágico não passava de expressão do irracional e do ilógico, representando
o agradável e não o útil, a ponto de pedir a seus discípulos que se abs- tivessem
dessas emoções "indignas de filósofos". Portanto, para ele, a tragédia desviaria o
ser humano da senda da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão".
Com tal concepção, estebeleceu-se, segundo Nietzsche, um autêntico anta-
gonismo entre Sócrates e Dionísio, também chamado Baco, que é o deus do
Nietzsche educador
198 ■
vinho e representa a força dos instintos e da espontaneidade de viver.
Enquanto para todos os seres humanos produtivos o instinto é uma energia
positiva e criadora (ao passo que a consciência é crítica e negativa), em Sócrates
se inverteria essa relação: a consciência é criadora e o instinto é crítico. Assim,
Sócrates, o "homem teórico", foi o primeiro antagonista do homem trágico,
dando início a uma mudança radical na compreensão do ser humano. Com ele,
os seres humanos afastam-se cada vez mais desse conhecimento instintivo na
medida em que abandonam o trágico - a mais profunda revelação da natureza da
realidade, segundo Nietzsche. Uma vez perdida a ancestral sabedoria da tragédia,
resta ao pai da moral ocidental somente uma faceta da vida do espírito: o lado
lógico- -racional. Dionísio é morto, e foram Sócrates e seus discípulos que o
mataram.
Por esse motivo, Nietzsche combate implacavelmente a metafísica, retiran-
do-lhe todo e qualquer valor. Para ele, as ideias não são mais verdadeiras ou
falsas - são apenas sinais. A única existência real é a aparência e o único juízo
permitido é sua interpretação. Afinal, não existe essência e o ser humano está
destinado à multiplicidade. Nietzsche, o demolidor das ideias aceitas, retrocede
às origens da filosofia e da moral ocidentais - isto é, a Sócrates - para proceder a
desconstrução do castelo metafísico do Ocidente.
O"anticristo"e a luta contra o platonismo do povo
Todavia, o combate de Nietzsche não se restringe à herança socrático-platô-
nica, mas estende-se também e sobretudo ao cristianismo. Segundo ele, o cris-
tianismo, espécie de versão popular do platonismo, ao transferir a esperança de
felicidade do mundo terrestre concreto para o mundo celeste, constituiria uma
espécie de metafísica, a qual, à luz das ideias do "além", julgaria o mundo real
como provisório, inautêntico e aparente. Dessa forma, o cristianismo é a forma
mais acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo. Ancorado
em dogmas e crenças que proporcionam à consciência fraca um escape da vida,
da dor e da luta, ele erige em virtudes de características passivas e negativas
como a resignação, a renúncia e a submissão.
Na verdade, são os escravos e os vencidos que inventaram o além para se
consolarem das misérias da vida. Idealizaram falsos valores para compensar sua
incapacidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes. Cunharam o
mito da salvação da alma porque não usufruíam de seus corpos. Forjaram a ideia
de pecado porque não podiam participar das alegrias mundanas e da plena sa-
tisfação dos instintos da vida.
Imbuído dessas ideias, Nietzsche investe-se da tarefa de restaurar a vida em
Nietzsche educador
199
sua plenitude e transvalorar os valores falseados pelo cristianismo. Entre outras
coisas, ele recupera um sentido esquecido da palavra "bom". Em latim, bonus sig-
nifica também "guerreiro", significação esta que foi obliterada pelo cristianismo.
Da mesma maneira, outros significados precisariam ser recuperados, constituin-
do-se uma espécie de genealogia da moral, que explicaria as origens e variações
dos conceitos de bem e mal. Para Nietzsche, os complexos que estariam por trás
da moral cristã são o ressentimento, o sentimento de culpa e o ideal ascético, que
converteriam a vontade de potência original em vontade de nada, em nii- lismo.
Desse jeito, a vida transformar-se-ia em fraqueza, a saúde em mutilação, o vigor
em torpor. É a vitória do negativo sobre o positivo, da reação sobre a ação.
Quando prevalece esse niilismo, alega Nietzsche, a vontade de potência deixa de
ser criação e transforma-se em dominação.
Assim, no cristianismo, Nietzsche detecta o triunfo da moral dos escravos e
dos pusilânimes. Nessa moral tudo é invertido: os fracos são fortes, a vileza é
nobreza. O resultado é a hipocrisia e o uso de máscaras nas relações sociais.
Cabe ao sábio, ao escavar como um arqueólogo as camadas mais profundas das
convenções da sociedade, denunciar a inversão dos valores e revelar que, na
verdade, o bem é a vontade do mais forte, do mais capaz, do "guerreiro". Em
outras palavras, o bem é a vontade do porta-voz de um chamado a uma contínua
superação dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida essa
expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o
além-do-homem. Nesse sentido, o voo da águia, a escalada da montanha e
todas as imagens de ascensão encontráveis em Assim Falou Zaratustra represen-
tam a inversão da profundidade "cristã" e a descoberta de que ela não passa de
um jogo de superfície.
Além do mais, não existe um sentido original ou legítimo por trás das pala-
vras, pois elas próprias, antes mesmo de serem signos, já são interpretações. O
trabalho do filósofo, portanto, consiste no problema de descobrir o que é que há
para ser interpretado, na medida em que tudo é interpretação, jogo, máscara.
0 super-homem e a nova moral Em EcceHomo, o último livro de Nietzsche, Zaratustra e Dionísio são aproxi-
mados entre si, o primeiro sendo concebido como o triunfo da vontade de po-
tência e o segundo - um deus artista, arteiro, totalmente irresponsável, amoral e
ilógico - como signo do mundo como vontade. Por outro lado, a tragédia grega,
concebida como inteiramente oposta à decadência que se seguiu a ela, se situa
na antinomia entre a vontade de potência, aberta ao futuro, e o eterno retorno,
que faz do futuro uma repetição, ainda que esta não signifique uma volta do
mesmo nem uma volta ao mesmo. De fato, o eterno retorno nietzscheano é es-
Tópicos da Filosofia da Educação
200
sencialmente seletivo.
Para Nietzsche, agora, o verdadeiro oposto de Dionísio não é mais Sócrates,
mas o Crucificado. De um lado, temos a afirmação da mudança e da multiplici-
dade, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dionísio; de outro, a
negação da vida e o desejo de vingança. Dessa forma, Nietzsche responde ao
pessimismo de Schopenhauer: em vez do desespero de uma vida para a qual
tudo se tornou inútil, o ser humano vislumbra no eterno retorno a plenitude de
uma existência ritmada pela alternância de nascimento e morte, júbilo e luto, o
bem e o mal. O eterno retorno, assim, ofereceria uma saída para fora da mentira
bimilenar do cristianismo, e a transvaloração dos valores traria consigo o super- -
homem que se situa além do próprio homem.
É importante, porém, entender o que Nietzsche quis dizer exatamente com
esse termo. Ora, para ele, o super-homem - o além-do-homem - não é um ser
cuja vontade seja um mero desejo de domínio. Se a vontade de potência for
entendida simplesmente como um desejo de domínio, faz-se dela algo depen-
dente dos valores dominantes. Dessa forma, ignora-se sua verdadeira natureza, a
qual é a energia que impulsiona todas as avaliações e cria os novos valores. Por
esse motivo, a vontade de potência impele o super-homem para além do bem e
do mal, libertando-o, ao mesmo tempo, dos produtos de uma cultura em deca-
dência. Sua moral é, assim, o oposto à moral do escravo e do rebanho, a qual por
seu turno é a moral da compaixão, da doçura feminina e cristã. O forte é aquele
que soube operar a transmutação dos valores, fazendo triunfar o afirmativo da
vontade de potência. Desse modo, Zaratustra, o profeta do super-homem, é a
afirmação pura, a afirmação que leva a negação ao seu último nível, tornando-a
uma ação, uma instância a serviço do ato criador.
Nietzsche e a educação Na área da educação, Nietzsche, que foi por um tempo professor universitá-
rio, não deixou de lançar também suas setas venenosas. Ele foi especialmente
crítico do sistema de ensino superior alemão. Ainda na esteira do hegelianis- mo
- o primeiro grande sistema filosófico ancorado na ideia de história - as
universidades alemãs privilegiavam o ensino da história. Mas para Nietzsche o
problema residia justamente aí, no conceito de cultura histórica que subjazia a
esse ensino. Um estudo da história que não serve para engendrar vida e criar
novos valores só é útil aos interessados em manter a ordem estabelecida. Ou
seja: o ser humano só deve se utilizar da história quando ela estiver a serviço da
vida.
Ora, para Nietzsche, confundia-se cultura com cultura histórica. Por isso a tão
exuberante erudição alemã tornara-se um falso saber, sobretudo por tolerar a
Nietzsche educador
201
contradição entre cultura e vida. A cultura, na opinião do filósofo, só pode se
desenvolver a partir das necessidades autênticas da vida. Ao contrário, o excesso
de informação histórica, a ruminação incessante do passado, a cultura da memó-
ria são forças que agem no sentido de separar cultura e vida. Quando a história
atua a serviço do passado, torna-se na verdade "coveira do presente", adverte
Nietzsche. Não se trata, naturalmente, de abolir o ensino da história, mas de do-
sá-lo. Absorvida em proporções adequadas, a história não envenena a vida nem
amarra o presente ao passado.
O artista, por sua vez, não deixa que a massa de informações históricas o
sub- merja, porque ele sabe que isso destruiria o seu poder criador. Embora o
artista busque modelos e inspiração no passado, toda obra de criação é uma obra
radicalmente nova. Todavia, o erudito serve-se da história para remover a força
do presente. Na verdade, segundo Nietzsche, por trás da cultura histórica vigora
uma concepção teológica, ainda que "camuflada", herdada da Idade Média. O
olhar para trás prediz de certa forma o fim da vida, o último ato da tragédia.
Afinal, é bom conhecer o passado porque é tarde demais para se fazer alguma
coisa - é esse de certa forma o pensamento dominante.
Todo esse pessimismo lança uma sombra sobre a educação e a cultura. Mas
não basta despojar o ensino alemão de seu culto à história, é necessário uma
tarefa positiva, construtiva. Mas se grande parte dos professores alemães se
utilizam da história para transformar os alunos em indivíduos apenas capazes de
ganhar dinheiro ou servir o Estado, onde encontrar educadores que possam
colocar o ensino da história a serviço da vida? Para tanto, seria preciso começar
do zero. Uma nova geração deveria ser formada, com novos hábitos e uma nova
natureza. Ora, as pessoas agem mais por convenção do que por convicção. Para
libertar-se da moral do rebanho, é preciso que elas triunfem sobre si mesmas,
sobre as noções de cultura que lhe foram inculcadas. Nessa renovação, para
Nietzsche, é imprescindível a formação artística, não apenas informações sobre a
arte e a história da arte. Pois, efetivamente, numa época em que vida e cultura
andam dissociadas, a arte tem uma função primordial: afirmar a vida em sua
totalidade.
Nietzsche está vivo Nietzsche morreu duas vezes. Uma em 1889, quando sua mente abandonou
de vez o mundo da racionalidade e da lógica. Outra em 1900, quando o seu
corpo sucumbiu ante o peso de décadas de atrozes sofrimentos físicos. Todavia,
entre uma data e outra sua obra adquiriu vida própria e ele veio a se tornar um
dos filósofos mais lidos e discutidos de todos os tempos. Sem fundar uma escola
propriamente dita, como Marx, suas ideias e conceitos não se restringiram ao
ambiente acadêmico nem aos especialistas. E o fato de ela ter sido escrita
Tópicos da Filosofia da Educação
202
basicamente em forma de aforismos, significa que ela também podia ser lida por
um público mais amplo - ao contrário da maior parte da filosofia de seus
conterrâneos que sempre pareceram experimentar um estranho prazerem
escrever de forma ilegível.
Eis finalmente uma filosofia que se pode ler, cintilante, fulminante. Mas não
necessariamente clara. Como os oráculos, ela pode ser interpretada de diversas
maneiras. E foi. Aliás, não poucas filosofias no mundo foram tão distorcidas
quanto a de Nietzsche. Os antissemitas, e depois os fascistas, começaram a
pinçar pequenos trechos de sua obra e a lê-los fora do contexto. Por isso, sua
filosofia foi durante muito tempo desacreditada. Hoje se conhece os bastidores
dessa tentativa de manipulação: quem mergulhou no delírio absoluto foi o
nazismo, não a filosofia de Nietzsche.
Sua filosofia, malgrado sua aparência muitas vezes alucinatória, permanece
estranhamente lúcida. Foi a primeira manifestação vigorosa de repúdio ao
positivismo e à idolatria da razão e da técnica. Com efeito, a segunda metade do
século XIX assinala a apoteose da crença na ciência. É o domínio de Apoio, o
severo deus da racionalidade, da justa medida e da ordem. Contra um mundo
todo racionalizado e controlado, Nietzsche prefere as forças obscuras de
Dionísio. Contra a razão de Apoio, ele brande, antecipando Freud, as razões de
Dionísio. Contra o império da ordem, as forças libertárias da arte.
E quando, na década de 1980, começou-se a se articular o pensamento que
recebeu o rótulo de pós-moderno, cuja matriz era justamente uma crítica aos
fundamentos racionalistas da modernidade, o principal inspirador que seus
expoentes foram buscar foi Nietzsche. Ademais, boa parte dos pensadores do
século XX são devedores de Nietzsche: Adorno (1903-1969), Heidegger (1889-
1976), Sartre (1905-1980), Foucault (1926-1984), Lyotard (1924-1998), Derrida
(1930-2004). Ademais, Nietzsche faz parte da tríade de nomes - os "mestres da
suspeita", no dizer de Paul Ricoeur - que forjaram o espírito do século XX: Marx,
Freud (1856-1939) e ele. Dos três, Nietzsche parece o mais habilitado para uma
longa vida no século XXI.
Texto complementar Apresentamos aqui uma seleção de frases e textos de Nietzsche.
Citações-chave (NIETZSCHE, 1997, p. 59-66)
Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fe-
nômenos.
(Aurora, livro IV, 415) Deus está morto.
Viva perigosamente.
Nietzsche educador
203
Qual é o melhor remédio? - Vitória.
(Aurora, 571) A melhor cura para o amor é ainda aquele remédio eterno: amor retribuído.
(Aurora, livro IV, 415) As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.
(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9,483) Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimensão mais profunda,
raramente permanecem fiéis a ela para sempre. Porque expuseram essas
profundezas à clara luz do dia; e o que lá se encontra não é em geral agradável
de ver.
(Humano, Demasiado Humano, vol. 1, seção 9,489) Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente
sabem.
(Crepúsculo dos Deuses; Máximas e Setas, 2.1) O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vós a priori do
caráter da existência para poder decidir que a desconfiança absoluta apresenta
mais vantagens do que a absoluta confiança? E se ambas são necessárias, uma
grande confiança e uma grande desconfiança, onde irá a ciência procurar essa
convicção absoluta, essa fé que lhe serve de base e que diz que a verdade
importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo
qualquer outra convicção? Essa convicção de base não se pode formar se o
verdadeiro e não verdadeiro se afirmarem sempre - e é esse o caso! - úteis tanto
um como o outro. Portanto, a fé na ciência, essa fé que existe de fato de uma
maneira incontestável, só pode ter sua origem num cálculo utilitário; deve ter-se
formado, pelo contrário, apesar do perigo e da inutilidade da "vontade da
verdade", apesar do perigo e da inutilidade da "verdade de qualquer maneira",
perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar.
"Querer a verdade" não significa, portanto, "não querer deixar-se enganar",
mas - e não há outra escolha - "não querer enganar os outros, nem a si próprio",
o que nos leva para o domínio moral. Perguntemo-nos seriamente com efeito: "Por
que não queremos enganar?" sobretudo se parece - é bem esse o caso! - que a
vida seja vivida em vista da aparência, quero dizer que tenha como objetivo
extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, por outro lado, de fato, ela se
mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menos escrupulosos
trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de não enganar pode passar
por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também
possível que seja alguma coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida
"Querer o verdadeiro" poderia ser, secretamente, querer a morte. De modo que o
porquê da ciência se liga a um problema moral: porque, de uma maneira geral,
qualquer moral, quando a vida, a natureza, a história são imorais? Mas ter-se-á
Tópicos da Filosofia da Educação
204
desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé metafísica que assenta
ainda a nossa fé na ciência; pesquisadores do conhecimento, ímpios inimigos da
metafísica, nós próprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenária
crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro
se identifica com Deus e toda a verdade é divina.
(Gaia Ciência, livro V, seção 344) O que nos torna heroicos? - Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e
da sua maior esperança.
Em que tens fé? - Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de
todas as coisas.
O que diz a tua consciência? - Deves transformar-te no homem que és.
Onde se encontra o teu maior perigo? - Na piedade.
O que amas nos outros? - As minhas esperanças.
A quem chamas mau? - Àquele que quer envergonhar sempre.
Que encontras de mais humano? - Poupar a vergonha a alguém. Qual é a marca da liberdade realizada? - Não mais corar de si próprio.
(A Gaia Ciência, livro III, 268-275) De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu
próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito.
Quero ter duendes ao meu redor, porque sou corajoso. A coragem que
afugenta os fantasmas cria seus próprios duendes: a coragem quer rir.
Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo debaixo de mim,
essa coisa negra e pesada - é, justamente, a vossa nuvem de temporal.
Vós olhais para cima, quando aspirai a elevar-vos. Eu olho para baixo, porque
já me elevei. Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?
Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas
ou verdadeiras.
Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos - assim nos quer a sa-
bedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.
(Assim Falou Zaratustra, I, Do ler e escrever) "O homem é mau" - assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá
isso fosse verdade ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.
"O homem deve tornar-se melhor e pior"- isto ensino eu. O pior que tudo é
necessário para o maior bem do super-homem.
Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele
pregador do povinho.
Eu, porém, me rejubilo com o grande pecado como a minha grande con-
solação.
Nietzsche educador
205
(Assim Falou Zaratustra, V, Do homem superior, 5)
Atividades 1. Nietzsche foi um vate, isto é, um misto de profeta e poeta. Ele soube ante-
cipar, de uma maneira mais intuitiva que sistemática, muito das discussões e
problemas da atualidade. Você poderia citar outros nomes que apresentaram
essas mesmas características? (Não é necessário apontar apenas filósofos,
pode ser também escritores, poetas, letristas etc.)2. Quanto ao pensamento de Nietzsche, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).
( ) Juntocom Karl Marx, Nietzschefoi um dos mais conhecidos hegelianos de
esquerda.
( ) A filosofia de Nietzsche foi primeiramente influenciada pela de Schopenhauer.
( ) A "vontade" de Schopenhauer inverte de sinal, tornando-se positiva e
transformando-se em "vontade de potência"em Nietzsche.
( ) kataraxia (imperturbabilidade) é um dos principais ideais perseguidos por
Nietzsche.
( ) Suas ideias influenciaram Adorno, Heidegger, Sartre, Foucault, Lyotard,
Derrida, entre outros.
( ) O ateísmo radical de Nietzsche está na base do materialismo positivista de
Auguste Comte. 3. Para Nietzsche, o modelo do filósofo pode ser encontrado entre os pré-so- cráticos. Porquê?
Para produzir filosofia Como vimos, Nietzsche produziu uma filosofia a marteladas, destruindo
ídolos e verdades tidas como eternas. Empunhe agora, um pouco que seja, do
martelo de Nietzsche e olhe ao seu redor, sobretudo no ambiente de trabalho
educacional. Que mitos você poderia "destruir" hoje?
A Escola de Frankfurt Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece
preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão
escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente
deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece
haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não para de
amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e
reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão
forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá- -las. Esta tempestade impele-o incessantemente
para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas.
Esta tempestade é aquilo que nós
chamamos progresso.
Tópicos da Filosofia da Educação
206
Walter Benjamin
A herdeira do facho Após a debacle ou a ruína da cosmovisão medieval, o pensamento oci-
dental vai encontrar na França do século XVII o principal expoente de sua
refundação: René Descartes (1596-1649). Um pouco depois, a vanguarda do
pensamento europeu migra para o norte e, ao longo da primeira metade do
século XVIII, os empiristas ingleses darão a tônica. Todavia, na segunda
metade do mesmo século, novamente a França, com o lluminismo, foi o
centro do cenário.
Mas já por essa época, ali pelo final do século XVIII, por todo o XIX e em
boa parte do XX, a pole position da filosofia esteve com a Alemanha. Basta citar
o nome de alguns filósofos para nos darmos conta dessa incon- teste
supremacia: Immanuel Kant (1724-1804), Georg Hegel (1770-1831), Karl
Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Até a primeira metade
do século XX essa supremacia não foi obscurecida nem mesmo pelas duas
guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com duas fragoro- sas derrotas
da Alemanha, nem pela barbárie nazista.Dois grandes grupos caracterizam esse período.
O primeiro, mais eclético, gira em torno da fenomenologia de Edmund Hus-
serl (1859-1938) e do existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976).
O segundo, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo, é representado por
uma plêiade de pensadores oriundos da chamada Escola de Frankfurt, cuja po-
derosa influência continua vigente em nossos dias.
Herdeira da melhor tradição marxista, à qual se somam outros influxos -
como os de Nietzsche e Freud (1856-1939) -, a Escola de Frankfurt é com efeito
a última glória da filosofia alemã, irradiando o seu crivo analítico por sobre áreas
até então não plenamente exploradas, como a cultura de massas, o comporta-
mento e a ideologia contemporâneos.
Todavia, a Alemanha em que nasceu e se desenvolveu a Escola de Frankfurt
não é o mesmo país que assistiu às carreiras de Marx ou Nietzsche. Unificada em
1871, sob a tutela da Prússia (vitoriosa na Guerra Franco-Prussiana), a Alemanha
da primeira metade do século XX é um país humilhado pela derrota na Primeira
Guerra Mundial e traumatizado pela malograda revolução proletária de 1918. É
também uma Alemanha que viu a ascensão e as conseqüências de um espectro
muito mais tenebroso: o nacional-socialismo de Adolf Hitler, no qual estava
embutido o projeto expansionista e de limpeza étnica do III Reich - o império
alemão sob o governo nazista (1933-1945).
Tópicos da Filosofia da Educação
207
Uma escola crítica A inflação era gigantesca e tumultos sociais conflagravam a Alemanha
quando, no dia 22 de junho de 1924, no auditório da Universidade de Frankfurt,
foi fundada aquela que viria a ser conhecida como Escola de Frankfurt. Cogi-
tara-se o nome de Instituto para o Marxismo, mas - seja pelo anticomunismo
dominante nos meios acadêmicos alemães da época, seja pelo fato de seus co-
laboradores não adotarem a ortodoxia marxista - preferiu-se a denominação de
Instituto de Pesquisa Social. Somente na década de 1950, e mesmo assim com
reservas, a agremiação seria chamada de Escola de Frankfurt.
A iniciativa foi de Félix Weil, um intelectual de apenas 25 anos de idade que
conseguiu convencer o pai, um abonado negociante judeu que fizera fortuna na
Argentina, a financiar as atividades da instituição. Vinculado ao Ministério da
Educação e Cultura da Prússia, o Instituto de Pesquisa Social funcionaria como
A Escola de Frankfurt
208 ■
uma espécie de anexo da Universidade de Frankfurt, mas tendo garantida sua
total autonomia. Além de um edifício próprio, o Instituto receberia uma dotação
anual de 120 mil marcos dos fundos de Herman Weil, capitalista e pai do
idealizador.
Sem dúvida alguma, a inspiração para a abertura do Instituto de Pesquisa
Social veio do Instituto Marx-Engels, de Moscou, fundado havia quatro anos na
recém-criada União Soviética.
O primeiro diretor do instituto frankfurtiano foi o economista austríaco Carl
Grunberg. Entre 1931 e 1946, Max Horkheimer (1895-1973) assumiu a direção
e, nesse período, desenvolveu-se aquilo que ficou conhecido como Teoria Crítica,
comumente associada à Escola de Frankfurt. O órgão do instituto, a sua publi-
cação oficial, que era conhecida como Arquivos Grunberg, passou a se chamar
Revista para a Pesquisa Social, e sua ênfase mudou da economia para a filosofia.
Porém, a maioria dos números dessa revista reformulada teve sua edição no
exílio por conta da ascensão do nazismo, que obrigou seus membros, quase
todos de ascendência judaica e praticamente todos de esquerda, a uma diáspora,
primeiramente na Suíça e na França e depois nos Estados Unidos.
Aproximando Marx e Freud, e às vezes trazendo Heidegger, em um vasto
empreendimento de interdisciplinaridade e síntese, praticamente não houve
fenômeno social que não despertasse o interesse da Escola. Tudo foi abordado:
filosofia, economia, sociologia, psicanálise, cultura de massas, ideologia, estética,
literatura, cinema, música, os efeitos da tecnologia, as novas feições do capi-
talismo, o totalitarismo, o fascismo, a repressão sexual e assim por diante. No
entanto, a despeito do pano de fundo marxista e neo-hegeliano de que se diziam
herdeiros, contribuição mais duradoura dos pensadores da Escola de Frankfurt
foram questionamentos de nítida influência heideggeriana feitos às esperanças
de emancipação despertadas pelo lluminismo e também a desconfiança em
relação à racionalidade em geral. Testemunhas da devastação provocada pela
tecnologia durante as duas grandes guerras e da barbárie totalitarista, os frank-
furtianos foram os primeiros teóricos de esquerda a buscar no lluminismo, ou na
perversão do lluminismo, a origem dos problemas contemporâneos.
Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno de alguns mem-
bros à Alemanha, a Escola voltou a funcionar em sua cidade de origem, já sob a
direção deTheodorW. Adorno (1903-1969). Jürgen Habermas (antigo assistente
de Adorno e ainda atuante) com Axel Honneth e Karl-Otto Apel são os frankfur-
tianos de maior destaque atualmente.
A amplitude da influência da Escola de Frankfurt continua sendo imensa. Em
uma série de domínios - da filosofia às ciências sociais, passando pela Psicanálise
A Escola de Frankfurt
213H
e pelo Direito, categorias sintetizadas por Horkheimer, Adorno, Herbert Marcuse
(1898-1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Habermas - ainda são pertinentes
e profícuos. Dificilmente outro empreendimento intelectual do século XX tenha
gozado de um prestígio tão duradouro. E se levarmos em conta o aparecimento
de uma nova geração de intelectuais frankfurtianos, como o já citado Axel Hon-
neth, podemos esperar o desenrolar de novos capítulos dessa história.
Os momentos da teoria crítica A construção teórica da Escola de Frankfurt pode ser didaticamente dividida
em três períodos.
■ O primeiro deles é formado pelos escritos da década de 1930, nos quais,
mais próximos do marxismo clássico, Adorno, Benjamim, Horkheimer e
Marcuse procuraram responder à questão sobre em que condições seria
possível uma teoria materialista da sociedade. Trata-se, portanto, de um
período marcado por preocupações acerca da teoria do conhecimento.
Ensaios como Materialismo e Metafísica (...), de Horkheimer; O Conceito de
História Natural (...), de Adorno; Antologia de Hegel, tese de doutorado de
Marcuse, e Alguns Temas Baudelairianos (...), de Benjamin, são obras que se
destacaram nesse período.
■ Um segundo momento contém trabalhos da década de 1940 e sua carac-
terística fundamental é o gradual afastamento da teoria marxista da re-
volução, com o consecutivo desaparecimento do tema da luta de classes e a
conseqüente substituição da crítica da economia política pela crítica da
civilização técnica. Sob o impacto do nazismo e da Segunda Guerra, a Teoria
Crítica procuraria a genealogia do fenômeno totalitário, não apenas na crise
econômica, política e social, ou no "erro" tático ou estratégico das forças de
esquerda alemãs, mas, de maneira original, em uma questão metafísica: é a
própria noção de razão e de racionalidade a responsável pela produção do
irracionalismo fascista. Essa razão funda-se na hostilidade ao prazer, na
renúncia à felicidade, no "ascetismo do mundo interior", no domínio e
controle da natureza exterior e das paixões humanas. A natureza, assim
reprimida, vinga-se na forma da destrutividade social. É desse período o
clássico Dialética do Esclarecimento (1947), de Horkheimer e Adorno.
■ A partir dos anos 1950, a Teoria Crítica rompe de vez com as esperanças re-
volucionárias de seu primeiro momento, encaminhando-se para a análise da
sociedade unidimensional, em Marcuse, e da sociedade administrada, em
Adorno e Horkheimer. Esse período é marcado pela reflexão acerca do
desaparecimento do sujeito revolucionário em sentido marxista: rompe- -se a
fé na unidade entre teoria e práxis - o pensamento do intelectual radical e a
Tópicos da Filosofia da Educação
210
prática libertadora do proletariado. Este foi integrado primeiramente pelo
nazismo, dissolvido no stalinismo e, posteriormente, na sociedade
tecnológica unidimensional. Daí derivam as reflexões frankfurtianas a respeito
das tendências do mundo homogêneo, uniforme, sem oposição, que suprime
os indivíduos ao liquidar sua autonomia e a liberdade de sua ação histórica.
Teoria crítica versus teoria tradicional O nome de Teoria Crítica para o pensamento produzido pela Escola de
Frankfurt deriva de um célebre ensaio programático de Horkheimer, de 1937,
intitulado Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Como o título sugere, nesse ensaio
Horkheimer aponta a diferença fundamental de dois métodos gnosiológicos, dois
métodos de conhecimento. O primeiro, a teoria tradicional, tem sua base no método cartesiano, o qual
[...] organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. [...] A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. (HORKHEIMER, 1968, p. 163)
A Teoria Crítica da sociedade, por sua vez, fundamenta-se na economia
política e"tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas
históricas de vida. [...] O que é dado não depende apenas da natureza, mas
também do poder do homem sobre ele" (HORKHEIMER, 1968, p. 163).
Nesse sentido, a Teoria Crítica apresenta, por meio da constante autocrítica da
razão, um posicionamento crítico em relação à ciência e à cultura, oferecendo
uma reorganização política da sociedade de modo a se obter a superação do que
os frankfurtianos denominaram crise da razão. Para eles, a razão, longe de solução
automática, era parte do problema, como elemento de manutenção do statusquo. Assim, era preciso uma reflexão sobre essa racionalidade.
Dessa forma, eles efetuam uma severa crítica da fragmentação da ciência em
uma série de setores na tentativa de explicação da sociedade. Ao contrário, ao
propor a dialética como método, eles almejam uma investigação analítica dos
fenômenos estudados, relacionando esses fenômenos com as forças sociais que
os provocam. Assim, as ciências sociais - cujas pesquisas não vão além de uma
mera coleta e classificação de dados - não estariam aptas a apreender a dinâmica
do contexto social em todas as inter-relações.
Razão instrumental e indústria cultural Entre as numerosas contribuições da Escola de Frankfurt, importa frisar duas:
os conceitos de razão instrumental e indústria cultural.
Entre outras coisas, os frankfurtianos denunciaram o que seria uma moderna
fe- tichização da razão, mostrando que, à medida que a ciência e a técnica
passaram a ser decisivas na forma de condução da vida humana, elas também
passaram a se constituir instrumentos de dominação. Assim, a razão torna-se
A Escola de Frankfurt
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instrumento de dominação da natureza, com um espírito e um objetivo não
muito diferentes das antigas práticas mágicas. A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: "a Natureza atormentada". Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar, na Natureza, é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la. (CHAUÍ, 2000, p. 283)
Em um segundo momento, a razão instrumental já não é mais utilizada so-
mente para a conquista da natureza, mas também passa a estabelecer as formas
de organização social.
Segundo Horkheimer e Adorno, o impulso para a dominação nasce do medo
da perda do próprio eu - medo que se revela em toda situação de ameaça do
sujeito em face do desconhecido. Nesse sentido, o mito e a ciência têm origem
comum: controlar as forças desconhecidas da natureza, a multiplicidade
incontrolada do sensível. Para isso, o mito tem um procedimento peculiar na
medida em que o sacerdote da tribo mimetiza gestos de cólera ou
apaziguamento com relação às** ** Lançado em 1532 (embora já escrito há 19 anos), O Príncipe é o primeiro livro em mil anos a não trazer nenhuma citação bíblica ou
referência a autores da Antiguidade. Junto com a tradução alemã da Bíblia de Martinho Lutero, foi o grande best-seller do século XVI. 1 Um silogismo é o termo com o qual Aristóteles designou a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se
conectam de tal modo que a partir das duas primeiras, denominadas premissas, é possível deduzir uma conclusão. 1 Citação de Horácio:"tem a coragem de saber"