36847-1PRODUÇÃO, TRADIÇÃO E IMPORTAÇÃO: UMA CHAVE PARA A DESCRIÇÃO DA LITERATURA E DA...

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PRODUÇÃO, TRADIÇÃO E IMPORTAÇÃO: UMACHAVE PARA A DESCRIÇÃO DA LITERATURA E DALITERATURA EM TRADUÇÃO, José Lambert

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  • Esta obra est licenciada com uma Licena: Creative Commons Atribuio-No-

    Comercial-SemDerivaes 4.0 Internacional.

    http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2015v35nesp1p44

    PRODUO, TRADIO E IMPORTAO: UMA CHAVE PARA A DESCRIO DA LITERATURA E DA

    LITERATURA EM TRADUO1

    Jos Lambert*

    Katholieke Universiteit Leuven

    Traduo de Jean-Franois Brunelire** e Andria Guerini***

    Resumo: A questo da cultura tornou-se central nas pesquisas recentes a respeito da traduo. No presente momento, a relao entre traduo e cultura geralmente aceita pelas teorias canonizadas e a dificuldade con-siste em definir o contexto cultural. A cultura um conceito complexo e mltiplo: qual cultura, que tipo de cultura exatamente? Nas pesquisas em-pricas e descritivas, fundamental estabelecer a natureza exata do con-texto cultural e quais so as suas relaes com as culturas que o cercam. A traduo representa uma rea-chave em qualquer sistema cultural e, ao tentar interpretar a posio de certas tradues em um determinado sis-

    *Possui doutorado em Filologia Romnica pela Katholieke Universiteit Leuven. presidente de honra do CETRA e editor fundador da revista Target (junto com Gideon Toury). Atualmente professor visitante do Programa de Ps-graduao em Estudos da Traduo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Flo-rianpolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail:jose.lambert@arts.kuleuven.be

    **Jean-Franois Brunelire doutorando do Programa de Ps-graduao em Estu-dos da Traduo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianpo-lis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: jfbruneliere.traducao@gmail.com

    *** Possui doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ps-doutorado pela Universit degli Studi di Padova (2010). professora do Departamento de Lnguas e Literaturas Estrangeiras e Coordenadora da Ps-Graduao em Estudos da Traduo na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianpolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail andreia.guerini@gmail.com

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    tema cultural, no h como fugir de certas lgicas hipotticas. Toda rea cultural parece funcionar como uma combinao sincrnica e diacrnica de, no mnimo, trs unidades-chaves: (1) Produo: em termos sincrni-cos, tudo o que um sistema cultural produz (documentos, atividades, con-tatos internos e externos); essa produo ocorre em uma perspectiva dia-crnica; (2) Tradio: todas as atividades e posies no eixo diacrnico; dependem (obviamente) das opes que dominam e das selees (normas); Importao: a seleo organizada de produes de culturas prximas durante a qual a traduo acontece. O perfil cultural de uma determinada situao depende da configurao dinmica dos trs componentes-chave; (1), (2) ou (3) pode dominar, mas nunca eliminando outro componente. Isso significa que a posio dominante de um dos componentes pode ex-plicar o porqu da reduo dos demais.Palavras-chave: Traduo. Cultura. Importao.

    PRODUCTION, TRADITION, AND IMPORTATION: A KEY TO THE DESCRIPTION OF LITERATURE AND

    TRANSLATED LITERATURE

    Abstract: In recent Translation Studies, the question of culture is a key issue. At this moment the link between translation and culture is generally accepted in the canonized theories, the difficulty is how exactly to define the cultural context. Culture indeed is both complex and multiple: which culture, what kind of a culture exactly? In empirical-descriptive research, it is crucial to establish which is the exact cultural environment and which are its relations with the neighbor cultures. Translation is one of the key areas in any cultural system and, while trying to interpret the position of translations in a given cultural system, there is no way of excluding a few hypothetical logics. Each cultural area seems to function as a synchronic and diachronic combination of (at least) three key units: (1) Production: in synchronic terms, everything a given cultural system produces (documents, activities, internal and external contacts); which takes place in a diachronic perspective; (2) Tradition: the full set of activities and positions along the diachronic axis, which of course depends on dominants options and selections (norms); (3) Importation: the organized selection of productions of neighbor cultures, - in which transla-tion is inevitably present. The cultural profile of a given situation depends on the dynamic configuration of the three key components; (1), (2) or (3) may be dominant, but never by the full elimination of any of the other units. This implies that the dominant position of one among the components may explain why the other ones are more or less reduced.Keywords: Translation. Culture. Importation.

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    Produo, tradio e importao: uma chave para a descrio da literatura...

    Nos ltimos anos, especialistas da traduo tm se perguntado frequentemente sobre o valor das suas teorias. Alguns deles aspi-ram a uma teoria que, em vez de parecer um jogo de especulaes to brilhante como estril, se destaque pela sua eficincia: trata-se de fato de interpretar sob todos os ngulos o fenmeno designado pelo termo traduo. Disso decorre a necessidade de se levar em considerao em vez de excluir de antemo a diversidade histrica e cultural das tradues, sistematicamente ignorada pela maioria das teorias, presas na sincronia e nas definies normativas (Lambert, 1976).

    Em vez de meditar in vitro sobre fenmenos em boa parte ima-ginrios porque no so observados, os especialistas da traduo deveriam organizar diversos tipos de pesquisas descritivas. Obvia-mente, elas precisam de um embasamento terico. O uso da teoria no tem nada de um ciclo vicioso na medida em que se pensa em um modelo hipottico e no-esttico.

    Sem fundamentar-se em teorias deliberadamente funcionalistas, Katharina Reiss e Werner Koller tiverem mrito em denunciar a ausncia de trabalhos crticos vamos dizer descritivos, para evitar a orientao normativa como uma lacuna preocupante na cincia da traduo em geral. verdade, de fato, que as melho-res publicaes e os melhores colquios consagrados traduo, mesmo que reservem muito espao a exemplos de pesquisas des-critivas, sistematicamente negligenciam a abordagem das perspec-tivas tericas e metodolgicas da anlise das tradues. O livro de Katharina Reiss, Mglichkeiten und Grenzen der bersetzungskri-tik, representa at hoje o nico do gnero, mesmo que o resultado atingido merea muitas reservas. Destaquei em outro artigo porque a teoria geral da traduo deveria considerar as lies dadas pela traduo literria, terica e/ou descritiva (Lambert, 1978). As con-sideraes a seguir se referem essencialmente ao estudo descritivo da literatura em traduo, mas deveria ser possvel aproveit-las para o estudo de qualquer traduo.

    A maioria das anlises de tradues fica submetida s teorias estatsticas formuladas no final dos anos cinquenta: examinam-se

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    sucessivamente diversos nveis do texto traduzido (nunca, ou ex-cepcionalmente, dos textos traduzidos), comeando com assuntos como o lxico, a sintaxe, o nvel estilstico, ou os procedimentos de traduo (transferncia, modulao, adaptao, ou implicao/explicitao). s vezes, os nveis textuais (por exemplo, semnti-co, estilstico) so combinados com os procedimentos de traduo, o que aumenta um pouco a flexibilidade da abordagem do estudo. Mas em virtude de um pressuposto tenaz que se d valor a priori e exclusivamente s estruturas microscpicas do texto, enquanto a natureza dinmica da equivalncia vista de vrias maneiras diferentes, verdade aceita de maneira bastante unnime pelos tericos. At em Reiss, a funo da equivalncia aparece na anlise como um elemento entre outros, no como um fator essencial. Os aspectos macroestruturais da traduo no so ignorados oficial-mente, mas na prtica eles so e interviro mais tarde, quando a observao microscpica tiver dado resultados. Porm, uma acu-mulao de elementos lingusticos nunca constituir um texto, nem permitir entender os princpios que motivam a sua existncia.

    Podemos comear, ento, a partir de uma hiptese nada ines-perada (mas raramente seguida), segundo a qual micro e macro-estruturas se inter-relacionam e as microestruturas so funes de conjuntos mais amplos (textuais e macrotextuais).

    Seguimos a contramo do mtodo descritivo tradicional e con-sideramos imediatamente as tradues (literrias, publicitrias, ju-rdicas etc.) como um aspecto das interferncias entre sistemas de comunicao (literrios, publicitrios, jurdicos): dentro desses sis-temas, nunca totalmente autnomos e sempre complexos, um con-junto de leis e convenes aceito como (mais ou menos) especfico do sistema e de toda uma rede de subsistemas. As leis (lingusticas, morais, polticas) frequentemente acabam aparecendo como con-venes, o que certamente perturba o equilbrio do sistema. Esse equilbrio essa palavra descreve uma situao, sem pretenso de avali-la depende essencialmente da coerncia que caracteriza as normas e modelos reconhecidos como centro do sistema. O estado de equilbrio ou desequilbrio do sistema depende das relaes entre

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    Produo, tradio e importao: uma chave para a descrio da literatura...

    o centro (o sistema dominante) e os (sub)sistemas no seu entorno. Seu funcionamento e sua evoluo so orientados pelas interfern-cias entre a produo, a tradio e a importao.

    A produo designa o conjunto da produo de mensagens pe-los membros do sistema. Na literatura, trata-se dos textos e meta-textos de todos os tipos: romances, poesia, documentos crticos, cartazes etc. a fora motriz da vida literria, situando-se a um nvel diferente da tradio e da importao. Esses ltimos desig-nam a presena de elementos pertencendo a outros sistemas mas mesmo assim se relacionam, de um modo ou outro (talvez de ma-neira negativa, polmica), com a literatura stricto senso, ou seja a produo.

    Nenhum sistema, obviamente, totalmente autnomo, estrita-mente tradicional ou inteiramente importado. Essas trs categorias que interpretamos provisoriamente como simples instrumentos descritivos, no como categorias ontolgicas nos permitem ob-servar a estratgia seguida pelo sistema: o que importa o valor operacional delas.

    O nosso modelo , sem dvida, de natureza semitica, j que nos ajuda a interpretar as interferncias lingusticas, econmicas, sociais ou polticas entre duas ou varias culturas. Vamos aplic-lo, primeiramente, literatura e literatura em traduo.

    tentador descrever a evoluo das literaturas nacionais com a ajuda do tringulo produo-tradio-importao e a partir da teoria do polissistema. Vrias relaes complexas se explicam da melhor forma, de fato, como interferncias entre (sub)sistemas. Contento-me em buscar algumas ilustraes a partir de uma srie de certa forma ilimitada, escolhida de propsito em setores muito diversificados.

    A literatura contempornea na Europa se tornou muito in-ternacional, graas importao anglo-sax, por exemplo, tambm graas literatura francesa, literatura dominante no continente, que muitas vezes serve de intermediria. Ao mesmo tempo, o peso das literaturas nacionais (e regionais)

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    diminuiu. Como acontece frequentemente, tradio e impor-tao se confrontam.

    Vrias vezes, a importao acaba se confundindo com a tra-dio. Foi o caso dos clssicos em muitas culturas, sobre-tudo na Frana dos sculos XVII e XIX; tambm o caso da literatura infanto-juvenil em diversos pases (Andersen, Grimm, Perrault, espera de Walt Disney importar uma literatura no-tradicional).

    Na verdade, produo, tradio e importao so polivalen-tes; seus subsetores se aliam ou lutam, dependendo das cir-cunstncias, mas a natureza das alianas nos permite medir a estabilidade ou o desequilbrio do sistema. O romantismo, na literatura europeia, importa modelos e normas tericas (aquelas que defendem os irmos Schlegel ou Madame de Stal por exemplo) a partir de culturas estrangeiras que te-ro como objetivo e resultado combater o classicismo. As literaturas romnticas se esforam para substituir a tradi-o clssica, que se tornou tradicional, por uma tradio nacional, percebida como inovadora, que se casa sem mui-ta dificuldade com as tradies populares estrangeiras e as produes estrangeiras modernas. Simultaneamente, uma produo tradicional se mantm: ela se distingue da ino-vao essencialmente pelas relaes que ela mantm com a tradio clssica (popular) e com a importao tradicional (inovadora).

    Em situaes excepcionais, uma das trs categorias leva a vantagem sobre as duas outras ou sobre uma das duas outras. Assim as letras francesas e neerlandesas da Blgica no pararam de lutar contra a importao (francesa por boa parte, parcialmente neerlandesa tambm; at a importao alem ou inglesa era parcialmente filtrada a partir da Fran-a) no decorrer do sculo XIX, no intuito de serem aceitas

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    como uma nica literatura supostamente nacional; a pro-duo tentava escapar da destruio dando-se uma tradi-o. A histria dos gneros e dos subgneros modernos na Frana presta-se muito bem a uma interpretao seguindo o nosso modelo. O romance histrico, o conto fantstico (e no sculo XX: o romance policial, as histrias em quadri-nhos ou a fico cientfica) implantaram-se na Frana como gneros estrangeiros, at um afrancesamento progressivo se desenvolver, especialmente graas intermediao de pseudo-tradues: procurou-se, de maneira sistemtica, atribuir-lhes uma origem francesa, logo o seu sucesso era garantido.

    At aqui a traduo no foi considerada como um dos luga-res em que acontecem as interferncias entre produo, tradio e importao. proposital considerarmos a importao como um grupo de textos mais amplo do que aquele das tradues apenas.

    Ao considerar o conjunto das obras literrias traduzidas numa determinada lngua como um sistema em si, conforme as hi-pteses formuladas por Even-Zohar (1978), posso considerar o estudo desse sistema e dos textos que o representam seguindo os mesmos princpios. Mostra-se muito produtivo, de fato, procurar determinar quais so as normas e modelos que regem a seleo dos textos importados, por um lado, e os traduzidos, por outro lado: so esses os dois critrios que nos autorizam a falar de um sistema de literatura traduzida. Alm disso, preciso pesquisar as inter-relaes desse sistema com os sistemas que o cercam, entre os quais a literatura de origem e a literatura de chegada. Com a ajuda dessa hiptese das interferncias, poderei explicar por que o Shakespeare de Ducis e de Voltaire nos lembra Raci-ne e Corneille, ou por que Homero em francs parecido com Ossian em francs.

    Enquanto seleo de textos importados, o sistema da literatura traduzida pode se inserir e geralmente se insere tanto na litera-tura tradicional como na literatura inovadora. Ao contrrio do que

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    os comparatistas tendem a sublinhar, a literatura importada favore-ce frequentemente a tradio mais do que a inovao; durante mui-to tempo a literatura clssica na Frana bebeu na fonte dos textos latinos e gregos que eram suscetveis de confirmar as tradies na-cionais. Quando a seleo dos textos importados muda, a tradio e a produo tradicionais tm uma chance de serem redefinidas. O conceito da descoberta das literaturas estrangeiras, utilizado por tantas histrias da literatura, aplica-se na verdade nova seleo e no distingue a importao de textos j conhecidos.

    Quase todas as teorias da traduo comprometeram a ideia de uma traduo-cpia: a traduo equivale a uma produo de textos de um tipo especfico (produo de metatextos); ela o resultado de selees e de prioridades estabelecidas nessas selees. Os ma-teriais textuais no exclusivamente lingusticos so escolhidos, por exemplo, a partir do sistema de chegada (verso dinmica), ou a partir do sistema de origem (verso adequada). O dilema di-nmico/adequado um dos mltiplos canais que condicionam a produo das tradues.

    A anlise das tradues ser acerca de:

    1. Todos os nveis textuais imaginveis (lxico, sintaxe, nvel, estado da lngua, socioleto, idioleto, sequenciamento, estru-turas narrativas, poticas);

    2. As prioridades estabelecidas entre esses nveis (o lxico pode ser sacrificado frente s normas mtricas, ou as estru-turas narrativas; nas verses bilngues frequentemente o contrrio que acontece);

    3. A prioridade entre adequado/dinmico nas solues de 1 e 2.

    Segundo as opes (dominantes), podemos representar a estra-tgia do tradutor e a situao do texto traduzido em um esquema:

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    Produo, tradio e importao: uma chave para a descrio da literatura...

    LITERATURA DE

    ORIGEM

    NVEIS

    TEXTUAIS

    lxico

    sonoridades

    sintaxe

    ritmo

    versificao

    pargrafos (estrofes)

    personagens

    nvel de lngua

    estado de lngua

    LITERATURA DE

    CHEGADA

    Em muitos aspectos, os textos traduzidos ocupam um espao ambguo no conjunto das literaturas o que ilustra, inclusive sua posio nas discusses tericas atuais e entre os sistemas literrios: eles representam um tipo de no-sistema ou de sistema intermedirio. Como tratar exatamente o volume de textos tradu-zidos para o francs entre 1800 e 1850, a partir de uma dezena de lnguas? Muitos destes nunca foram concebidos como textos lite-rrios (o que no impediria que eles funcionassem assim em certos casos) e a quantidade deles que foram reconhecidos como tendo uma funo literria provavelmente limitada. A poesia japonesa, Rabindranath Tagore e qualquer poesia extica em traduo es-capa parcialmente das categorias descritivas em vigor nos nossos sistemas ocidentais. Para os franceses dos sculos XIX e XIX, o verdadeiro Shakespeare francs, o que podia ser apresentado a rigor, era o Shakespeare em versos de Ducis e outros, no o de Letourneur ou de Franois-Victor Hugo, uma tragdia em prosa no teatro. Observando bem, encontramos aqui o nosso tringulo produo-tradio-importao de uma forma um pouco diferente, o que nos leva a posicionar com mais preciso a traduo na evo-luo (ou estagnao) das literaturas. Dependendo das circunstn-cias, o texto traduzido desempenha uma funo estrangeirizante (importao no dissimulada), uma funo tradicional (submisso s convenes da literatura de chegada) ou uma funo assistmi-

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    ca (a caracterstica convencional no podendo ser atribuda nem literatura de chegada nem de origem). nesse ltimo caso que a atividade tradutria tem mais chances de encontrar a nova lite-ratura que tambm se posiciona fora ou contra as convenes do momento; disso decorre a necessidade de que os grandes escritores tm de fazer experincias com textos importados a serem traduzi-dos; disso tambm decorre a tendncia das literaturas a repensar a suas convenes com a ajuda da atividade tradutria.

    Uma das mltiplas vantagens da nossa abordagem sistmica de nos fornecer ferramentas tanto para os textos adaptados, as par-dias ou os comentrios, ou seja, para todos os metatextos intersis-tmicos, quanto para a traduo propriamente dita (que, por sinal, nunca conseguimos distinguir claramente dos outros metatextos): o estudo da traduo , assim, integrado no estudo da literatura, sem que os seus aspectos lingusticos, socioculturais sejam ignorados.

    A insero dos textos traduzidos e adaptados nos conjuntos de comunicao, literrios e outros, nos fornece quadros de refern-cia nos quais os procedimentos e os processos bsicos podem ser identificados facilmente. Como as literaturas francesa, inglesa, ale-m de um determinado perodo concebem o discurso narrativo, os dilogos, a lngua popular, a personagem trgica ou os vrios g-neros poticos? A resposta a perguntas to variadas pode ser dada com uma rapidez e uma nitidez incrveis observando um corpus de textos traduzidos e justapondo textos representativos das vrias literaturas. O fundamental dispor de uma boa biblioteca e preferir observaes em srie a observaes atomizadas.

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    Nota

    1. Artigo originalmente publicado em: Canadian Review of Comparative Litera-ture/ Revue Canadienne de Littrature compare CRCL/RCLC Spring/Printemps 1980. Este artigo, abrangendo constantemente a teoria e os estudos descritivos (histricos), origina-se de uma pesquisa comparatista de tipo descritivista sobre as relaes franco-alemes; essa pesquisa foi constantemente estendida e revisada nas suas premissas tericas; desencadeado no projeto de pesquisa: L. Dhulst, J. Lambert e K. Van Bragt, Littrature et traduction en France (1800-1850): tat des travaux (Leuven: Literatuurwetenschap, 1979). Agradeo muito a Lieven Dhulst e Katrin Van Bragt por terem me ajudado a testar a trade produo-tradio-im-portao. Foi Lieven Dhulst quem evidenciou a utilidade do conceito de sistema intermedirio. (Ver Sh. Yahalom, Le comportement dun polyssystme litt-raire en cas de crise : contacts intersystmiques et comportement traductionnel. Comunicao apresentada no International Symposium on Translation Theory and Intercultural Relations, Tel Aviv University, March-April 1978. Atos do simp-sio. Yahalom, Sh.,1979. Problmes dinterfrences de systmes smiotiques, comunicao apresentada no 2 Congresso de lAIS, Viena, 2-6.7.1979.)

    Referncias

    Even-Zohar. Papers in Historical Poetics. Tel Aviv: Porter Institute for Poetics and Semiotics, 1978.

    Katharina Reiss. Mglichkeiten und Grenzen der bersetzungskritik. Mnchen: Hueber, 1971.

    Koller, Werner. Grundprobleme der bersetzungstheorie. Bern: Francke, 1972.

    Lambert, Jos. Echanges littraires et traduction ou : tudes thoriques vs. tu-des descriptives.L. Grhs. Theory and Practice of Translation. Bern: Lang, 1976.237-250.

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    ______. Echangeslittraires et traduction: discussion dun projet.Literature and Translation.New Perspectives in Leterary Studies.Holmes, J.S. et al. Louvain: Acco, 1978. 142-60.

    ______. Production, tradition et importation: une clef pour la description de la littrature et de la littrature en traduction. Canadian Review of Comparative Literature/ Revue Canadienne de Littrature compare, Vol. 7, No. 2, 1980. 246-252.

    Recebido em: 09/09/2014Aceito em: 05/11/2014