Verdes Mares

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Coletânea de contos da autora Sylvia R. Pellegrino

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Verdes Mares

autora

Sylvia R. Pellegrino

edição

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ÍndiceNoites de verão............................... 05

As areias mornas de Caiobá...... 08

O entardecer na praia................... 19

Fugaz lembrança.......................... 26

Vento de agosto.............................. 37

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Noites de verão

Voltavaparaasfériasdeverão,naquelaépo-ca.AminhapequenacidadedePortoMurtinhomeaguardava,namodorradesempre.Meuspaisame05

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esperar naminúscula rodoviária.Tinha enfrentadoalgunsquilômetrosdeterraeburaconaestradapo-eirenta.Meucorpoaindaestavadoloridodossola-vancos.Desci do ônibus e abraceimeus pais comcarinho.Erabomestaremcasa,afinal. Tomei um banho tépido.A água quase geladaparatirarocaloreosuorquegrudavamapele. Avoltapelacidadeerasagrada.Abraceivelhosamigos.Fuiverparentes. Entrava porta adentro. Ninguém trancava suascasas.Umlugarejocomoaquelenemmesmoaan-siedadedeum furtopoderiaquebrar amonotonia,porqueainexistênciadissoerareal. Andeipelaúnicaavenidadacidadee fuiatéasorveteria,pontodeencontrodosmaisjovens.En-contreiamigosquetambémvoltavamparaasférias.Ficamosdurantealongatardequenteepacata,sen-tadosàmesadalanchonete,jogandoconversafora.Nodiaseguintepasseipeloporto.Gostavadeolharaquelasmulheres,amaioriaparaguaia,lavandorou-panasmargensdorio,enquantoalgunshomensde-dilhavamharpas,nospequenosbaresàbeiradoPa-raguai.Eraumaimagemquaseinsólita,aquela. OlhandoacidadefiqueifelizdelembrarquemeupaitinhadeixadoamagistraturaparaseradicaremPortoMurtinho. Houveaqueleanode1955emqueoconvidaram

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paraseguiraCampoGrande.Apromoçãotãoespe-radaporminhamãe,hámuitosanos.Era o tempo, ainda, emqueos dois estados eramumsó.HaviaapenasumMatoGrosso.Apromoçãodemeupaiseriaparaasegundainstância,seacei-tasse a transferência,mas ele declinoudo convitedoTribunaldeJustiça.LargavaamagistraturaparacontinuaremPortoMurtinho.Haviacriadoraízes,adquiridopropriedades.Comprarafazenda,gadoeumaimensaeagradávelcasa.Ocasarãobrancodaesquinaatraíatodosaocairdatarde.Eraahoradotereré.Aquelerefrescodematecomaáguaespecialmentegeladaerasorvidopelabombilhaquepassavademãoemmão.Enquantoconversavam,osamigosiamseachegandoeasca-deiras aumentavampaulatinamente. Perto das dezhorasdanoitechegavamasharpaseoscantadores.Aguarâniasaíasentida.Todosparticipavameaplau-diamfelizesatéaltashorasdamadrugada. Ocalornaquelasparagens,àquelaépocadoano,eraintenso.Ficaratédemadrugadaouvindoguarâ-nia,parasentiroarmaisfrescodanoite,faziacomqueopovosórecomeçasseavida,nodiaseguinte,pertodasdezdamanhã. Aqueleprogramarotineironemsemprealegra-vaaosmaisjovens.Preferíamospassarnossasnoi-tesnasorveteriaesóvoltávamosparacasanofinal07

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As areias mornas de Caiobá

NatáliaolhavaomardeCaiobá.Sentadanasacadapareciaverafiguradeleandandopelaareia.Chegava a sorrir ao imaginá-lo acenando alegre-mente. LigouparaCarlosEduardo.Precisavaouvirsuavoz.Elecostumavaescutarmúsicaclássicanofinal

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datarde.Osomentroupelotelefone.EraDebussy.CarlosEduardoapreciavaDebussy. Omaridodiziaque“ninguémsonharaqueAchilleClaudeDebussychegariaalgumdiaaserumgrandeartista.Aqueleeraumluxoimpossívelparaamodes-tapobrezadosDebussy”.Voltouaprestaratençãoaosomdamúsica.TinhacertezaqueeraNuvensdeosTrêsNoturnos.ConformeCarlosEduardo,osNotur-noshaviamrepresentadoumdegraunaproduçãode-bussyniana.“Aorquestraçãoémaisatrevidadoqueemsuaspeçasanterioreseosistemaharmônicoal-cançainovaçõesinsuspeitasdiantedoplenoaprovei-tamentodasescalasorientaisegregas,queomestreconseguiutirar.Eleconseguiujuntarummundodesonhospormeiodesensaçõesnovas”.CarlosEdu-ardosimplesmentedeliravaaoouvirDebussyeemespecialosTrêsNoturnos. Prestouatençãoaoqueelefalava.Quandovocêpretendevoltar?Elefalavadacasadepraianocon-domínioAtami,ondepassavamasfériasdeverão.Continuouaconversa,falandosobrearotina,otrivial.Odesejodeouvi-lopassou.Oencantoda-quelesmomentosdiantedomardeCaiobáquaseevaporou.Respondeucomsecura,quesóofarianodiaseguinte.Depoissearrependeudotom,maspa-

receu-lhequeomaridosequernotara. Voltouaouvirosomdomar,naqueleseumur-09

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múriocontínuo.Osolsepunhanohorizonte.Aindacomasnotasmusicaisnoouvidoapreciouabeleza

presentenaNatureza. FoinumfimdetardeassimqueelaseentregaraaMuriloeaoseuamor.Asareiasmornas,pelosoldo

diainteiro,receberamoscorposdosdois. Olhouemderredor.Asalaondetantasvezeses-tiveramjuntospareciaintacta.Osofáondesaciaramasededapaixãoqueosenvolviapareciaomesmo.Aindaestavalá,comoparatestemunharaqueleamor.Masoamor...oamorjánãoexistia.Ouexistiadentrodela? SeuamorporMuriloforafeitodetantosencon-tros e desencontros, tantas alegrias e umaprofundatristeza. Oseutrabalhonoescritórioafaziadedicar-sein-teiramenteaadvocacia.Seutempopessoaleraescas-so.Vieradeumainfânciapobre,órfãdemãeeaban-donodepai.Foraoarrimofamiliar,desdetenrostrezeanos,juntamentecomosdoisirmãosmaisvelhos,dosquatromaisnovos.Depoisdeformadaseguiraseuca-minho.Saíraquasecomoumafugitivadesuapeque-nacidadenointeriordoestadodeSãoPaulo.Segui-raparaCuritiba,aconvitedealgunsadvogados,parafazerpartedoescritório.Aquiloaentusiasmara.Erasuaoportunidade.Saltoficaraparatrásesuafamíliatambém.Os irmãos a condenaram.Não aprovavam

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seuafastamentodafamília. Jáfaziamuitotempoquetrabalhavanoescritó-rioquandoconheceuCarlosEduardo.Foraelaaad-vogadaaacompanhá-lonaaudiênciadeseparação.Depoiselenãomaisaprocurara,apesardehavê-laencantadocomdocespalavras. Murilo,tambémadvogadodoescritório,desco-brira,deummomentoparaoutro,seuinteresseporela. Naquele tempo, além de suas pinturas, tinhaMurilo.Suasolidãopareciadesvanecer-sediantedaalegriaquaseinfantildele. Fê-laconhecerpaiJoaquim,comoochamava.AprendeuaamaraquelevelhonegrocomomesmoamorqueMurilolhededicava.Visitavamconstan-tementepaiJoaquim,napequeninacasacaiadadebranconosopédaSerradaGraciosa.Ouvia,feliz,lendas sobre osOrixás.Outras vezes se deliciavacomseuhobbyepintavaovelhonegroenrodilhan-doafumaçadeseucachimbo,sentadoàfrentedapequenacasinhola.PaiJoaquimlhefalavadeOxum,seuorixáprotetor.EpediaqueelaseguisseoriodeOxumporqueláestavaseudestino. Certodia,ficouencantadacomoramalhetedeflores que encontrou sobre amesa de sua sala noescritórioeumcartãocompalavrasqueaemocio-11

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naram. Apartirdaquelediaelepassouapresenteá-lacomumramodefloressilvestrestodososdiaseenchê-lademimos. Numanoite,apósiremaoTeatroGuaíraeseenle-varemcomaOrquestraSinfônicainterpretandoBra-ms,RachmaninoveRavel,convidou-aparaveremaluanaSerradoMar.Apesardosustoinicial,seguiuMurilonabuscadoromantismodoluar. Aluacheiaeredondailuminavaoasfalto.Eleaconvidou para apreciarem o espetáculo. Saíram docarroeforamplenamenteiluminados.Eleatocoudeleveinicialmente,depoiselasentiusuaurgência.En-traramnocarroeseamaramatéamadrugada.Depoisdormiramnosbraçosumdooutro,extenuadospeloamor. Otelefonetocounovamenteetirou-adeseuspen-samentos.Pensouemnãoatender,massabiaqueeraele.Omaridodeviaestarsentindoasuafalta.Aten-deuamuada,porémnãodeixoutransparecernavoz. Elequeriasaberseestavatudobem,sehaviapa-gadoocondomínioeseaporteiravinhamantendooapartamentolimpo? Respondeuatodasasperguntaspráticasdomari-doedespediu-sedele.Nodiaseguinteestariamjun-tos,eramelhordormirem. Voltouàssuaslembrançasedetantasvezesquese

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deitaram,Muriloeela,nasmornasareiasdeCaiobá.Jáagoraaluacheiaestavaempinadanocéu.Prefe-riutentardormir,masamenteestavarevoltaecheiadefatosjápassados. Forapraticamenteumanodeamoratéque,tam-bémemCaiobá,receberaanotíciaquemudariasuavida.Eles se separaramnofinal do ano.Ela acostuma-daaumavidamaispacatapreferiuficaremCaiobáeesperá-lo.Seriamalgunsdiasdeseparação,paraquepudesseserefazerdavidasocialagitada.Suasolidãodesaparecera,massuavidaseagitara.Mu-riloforaaNovaYorkpassaroNataleAnoNovo,enquantoaproveitavaparasolucionarumcasodifí-cildoescritório.UmacidentedeaviãonavoltadeNovaYork.Muriloestavamorto.Anotícialhecaíracomoumabomba.AsubidadaSerradoMar,ocaixãofechado,ospaisdelequeelanãoconhecia,osamigosdoescritório,tudopareciaodesenrolardeumfilmedeterror.Asolidãovoltouasersuacompanheira.Ninguémaprocurava.Tirarafériasparabebersuadoratéoúltimogole.SeuúnicolenitivofoiprocurarpaiJoaquim.EleeraoúnicoeloverdadeiroentreelaeMurilo.Assema-nasforampassandoequandovoltoudefériasseucoraçãojáestavamaislevedador.13

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NessaépocaCarlosEduardovoltouaprocurá-la.In-sistiucomsuacompanhia.Mostrou-lheummundodealtasrodassociais.Veio-lheàmemóriaumadasprimeirasnoitesemquesaíracomCarlosEduardo.A noite estava clara, apesar da lua crescente. EraagradávelrespiraroarnoturnodeCuritiba.Naquelejunhojásecomeçavaasentiracaídadatemperatura,masanoitemostravaocéunegrosalpicadodeestre-las. CarlosEduardoaobservavadocarro.Colocaraumvestidopreto curto comumapequenapelerineemveludo, sobre os ombros, que lhe caíammuitobem.TrocaraoParispeloBulgari,daCristianDior.Nãoqueriaqueoodordoperfume lhe trouxesseàlembrançaafiguradeMurilo. ElealevouatéoChalletSuisse,emSantaFelici-dade. O restaurante era numa casa em estilo suíço,construídabemnoaltodoterreno,todarodeadaporjardins,extremamentebemcuidados.Ailuminaçãoindiretaeamareladasobreasplantasconferia-lheumarbucólico. Suaalmadeartistaencantou-secomacena. CarlosEduardo,percebendooencantamentodeNatália.Brincou: —Penavocê teresquecidoa telaeospincéis,não?

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—Nãosepreocupe,eu tenhoótimamemória.—CompletouNatália,jáimaginandocomoficariabelaaquelacenaimpressanumatela.Jánointerior,elespenetraramnoamploeagradávelambiente,comoarimpregnadodecheiroseodoresdepratosdeliciosos,floreseperfumes.Gruposdepessoaselegantementetrajadassentavam-seaquieacolá.AconversadiscretadaquelagentedespertaraemNatáliaasensaçãodeummundodistantedaque-levividocomMurilo.OlhouoambienteesesentiufelizemcompanhiadeCarlosEduardo,porémaquilonãoaentusiasmariaacasar-secomele,noentantoaperspectivamaioremaisprofundaaoseusereravoltadaparaofatodeconstituirumafamília.Teriaduasfilhasadotivasdoprimeirocasamentodeleeapossibilidadedeterfilhosseus.Encantou-secomaidéia. ConheceuArmand,omordomoeamigopessoaldeCarlos Eduardo. Ocorreu a empatia. PercebianasmaneirassutisefleumáticasdeArmandocari-nhoporelaeumaaprovaçãotácitadeseucasamen-tocomCarlosEduardo. Armandtornou-seseuanjodaguarda.Nasre-cepçõeseraeleaorganizarparaqueelarecebesseashonras.Sentiu-seacolhidaeamada. Ocasamentoaconteceu,masafelicidadecom-pletou-serealmentecomavindadeLetícia.15

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Estava tão envolvida comomundo deCarlosEduardoecomoambienteromânticocriadoporAr-mandacadajantardosdoisnamansãoquenãoper-cebeuatéondeiaseuamorousuaadmiraçãopelomarido. Entregou-seàfamília,apedidodeCarlosEdu-ardo,esquecendoaprofissãoesuastintas.Amono-toniatomoucontadela.AmemóriadeMurilocadavezmaisvoltavaaassombrá-la.Atéqueoencon-trounoShoppingNovoBatel,numaexposiçãodequadros. Seubomsensoevaporou-se.Voltouaencontrarocaminhodovelhoapartamentodesolteiraelá,emlongas tardesdeprimavera,estevenovamentenosbraçosdeseuvelhoamor.Pareciaterabandonadosuavida.Armandaobservava,masnadacomentava,apenassentiatristezaporsuasolidãoealienação. ElafugiraatédepaiJoaquim,ovelhonegroquesetornaraseuúnicoparentedecoração. Quando finalmente voltou a procurar pai Jo-aquim e contou-lhe sobre a volta deMurilo ele aolhou demoradamente e simplesmente pediu queelavoltassea seguiro riodeOxum,queseguisseseudestino,láelaencontrariaafelicidade.ProcurouMuriloedespediu-sedele.Foiumades-pedidamútua,porqueMurilotambémdecidirapela

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separação. Depois daqueles dias ele evaporou no ar, nãomais o encontrou ou soube dele. Seu psicanalistaafiançavaqueaquiloforaumacriaçãodesuacabe-ça.Nadaaconteceraentreeles.Muriloestavamor-to.Apenassuamenteofaziaviver. Nadaimportavaagora.Voltaraparasuarealida-de,seumarido,suasfilhas.Alieraseumundo. Deixariaoriodavidaseguirseurumo. O tempopassou.Avida a envelheceu.PassoupeloseqüestrodeCarlosEduardo,seusofrimentoeinsegurança,oafastamentodaempresaqueeletantoamavaeoviumorrer,definhandolentamente.Be-beuocálicedesuadoratéofim. NocasamentodeLetíciasentiufaltadomarido,masentrandonabibliotecadaquelacasaqueconhe-ciatodaasuahistóriaeguardavaosmomentosdosfinaisdenoite,quandoambosconversavamsobreavidaesobreafilhas,sentiuquesedespediadetudo.Umasensaçãodedevercumprido. Naquelatarde,entusiasmadacomolançamentodeseusquadrosnãopercebeuoperigo.Achuvafinacaíaincessante.Elaparounosinaleiroeesqueceu-sedearrancar.Asluzespiscavam:verde,amarelo,vermelho, verde, amarelo, vermelho...Quando seapercebeuda distração, lá estava ele lhe apontan-doaarma.Suamentetrabalhouincessantementere-17

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lembrando osmomentos sofridos no seqüestro deCarlosEduardo.Ador,orelatorepetidomilharesdevezesejamaisesquecido.Resolveuacelerarocarroefugirdali. Ouviuumestampido.Umzumbidonoouvido.Asmãosamoleceram,soltandoovolante.Derepenteelaoviu.Amãoestendidaeosorrisolargoemarotonasfaces.EraMurilo,convidando-aparasegui-lo.Estendeu-lheasuafeliz,esentiuocorpolevitarsuavemente.Olhouláembaixoacenaqueficava. FinalmenteestavalivredoriodeOxum.

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O entardecer na praia

Orebuliçoeraimensodentrodoescritório.Ha-viaadrenalinanoar.Mesmoapósoestressedoanotodo,aquelediapareciamaisagitado.Alguns fun-cionários iriamsairde fériase,dentreeles,algunsadvogadostambém. A instituição aterrorizava a muitos advogadosem relação aos prazos processuais.Não se permi-tiaqueassoberbassemosdemaiscolegascomseus19

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processospendentes.Osprazosestavamvencendoeasfériasforensesterminariaemmeadosdejanei-ro.Nemtodaansiedadeeangústiavividapeloanointeiropoderiasermaiordoqueaquelevivenciadonosdiasanterioresaoiníciodasférias. Márciaterminoufinalmenteaúltimapetiçãoeestavanasrecomendaçõesaofuncionárioquefariaaentregadosautosnavaraforense,quandoperce-beuapresençadele.Fernandoentroueaobservoudelonge.Elasentiuoolharqueimá-la,masnãole-vantouosolhos.Nãoqueriarecomeçartodoaquelesofrimentodosdoisúltimosanos. AquelarelaçãocomeçarapelacarênciadeMár-cia.Elaosabiaperfeitamente.Fernandoeraumhomemcharmosoeprofundamentesensual.Asensualidadeapareciaàflordapele,eelaseenvolveracompleta-mente,esquecendoqueeleeracasadoetinhadoisfilhos. Aconversahaviasidoabaleladesempre.Umhomem mal casado, com uma mulher completa-mentedesligadadesuasnecessidadesfísicaseemo-cionaisequenãoacompanhavaasuaambiçãoemcrescersocial,financeiraeintelectualmente.Nestemomentoquemsentiavergonhadoprópriointelec-toeraMárcia.Elanãotiveraumminutosequerpara

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desconfiardequetudoaquilonãopassavadalenga-lengatantasetantasvezesrepetidas. Juntouospapéissobreamesa.Haviaterminadotodoosuplício.Osprocessospendenteshaviamsidotodosestudadoseencaminhados.Levantou-selenta-mentedacadeiraesabiaqueosuplíciomaiorviriaagora.Teriaquesedespedirdetodos,inclusivedele.Nãocabianacabeçadelaqueoscolegassentissempenadesuasituaçãodeplorávelde“aoutra”,postadelado. Decidiuqueiniciariaporele,assimpoderiade-monstrartodooseuorgulhoecorageme...comodi-zem:ésempremaisinteressanteiniciarpelopior.Entregouosprocessosjáprontosnasmãosdele.Alémdomaiseraochefedosetoreresponsávelpeloan-damentodosserviços.Estendeuamãoparacumpri-mentá-lo,emdespedida.Eleapuxouparasiedeu-lheumabraçoforte.Elapodesentirpercorrerpelocorpodeleumacorrenteelétrica,queimediatamentetomouo seu corpo.Quase fraquejou.Empertigou-se.Segurouuma lágrima teimosa,prestesadescerpelaface.Deu-lheumsorriso,quedepoisimaginoupoderiatersidomaisumritoparacareta,masnadaaimportava.Queriaapenassairdali. Passouemcadamesa.Abraçouoscolegas,de-sejandoparaaquelesquetambémsairiamdeférias

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umbomdescansoe,aosdemais,forçaparasuportaraesperadaspróximasférias. DirigiupelaMarechalDeodoroerelembrouumtempoemqueCuritibaficavavazianaquelaépocadoano.Janeiroeraummêsemquetodosestariamnapraia.Acidadehaviacrescidorealmente,pensou.Finalmenteestavanarua.Emcasapegouasmalasjáarrumadaserumoudiretoaoaeroporto.ChegounaRegiãodosLagos,pertodeBúzios,ascincodatarde.Pegouumtáxieapósenfrentaralgunssolavancosdaestrada chegounaquela praia quase selvagem.Eraalioparaísoondeiriaficarporunstempos.Tempobastante,pensava,paraesquecerFernando. Chegounobangalôquehaviaalugado,soltouasmalasnochão,retirouumshortminúsculoevestiu.Pegouumacadeiradepraia e seguiupara a areia.Sentoueseperdeunotempo.Oentardecerchegoucomoum espetáculo.O céu se pintou de todas ascoresatéchegaraumvermelhofogo,quandofinal-menteosolseescondeuatrásdomorro.Voltouparaobangalô,tomouumbanhoedeitou-senosofádealmofadasfofasdapequenasaleta.Pegouumlivroedeliciou-secomoromance.Comoerabomenvol-ver-secomaficção.Láeraomundodotudocerto,dotudoterminabem. Acordounamanhãseguintesentindoascostas.

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Haviadormidonosofáeocorposofreraodesconfor-to. Iniciousuarotinaqueviveriadaliatéotérminodesuasférias.Colocouumbiquíni,juntoutodaapara-fernáliaqueserialevadaàpraia:cadeira,guarda-sol,chapéu,livro,protetorsolareoscolocounocarrinho.Seguiuseucaminhocomoumagarotaquedescobriaumanovidade.Ficousoboguarda-solatépertodas11:30.Depois,comooutraspessoas,foiparadebai-xodasárvoreseláficoualerseulivro. Obser-vavaabarracadelongeeninguémmexia,oumes-mochegavaperto.Ficoufelizcomessaconstatação.Foiatéorestauranteàbeiramarefezumadeliciosarefeição.Voltouparasuaárvore.Espreguiçou-senatoalha.Quandoacordounemmesmohaviapercebidooquantodormira.Apraiajáestavaquasevazia,atéquesomenterestousuacadeirasobseuguardasol.Voltou a sentar sob o guarda-sol esperando, ansio-sa,o espetáculo.Elenãodemoroumuitoa aconte-cer.Océusepintoudeváriascoresdesdeoamarelo,rosa,azul,lilás,atétingir-setotalmentedevermelho.Elaentregou-seaoêxtaseatéqueonegrocobriu-o,porcompleto.Voltouparaobangalô.Aalmaialeve.Apenas lá no fundo ainda persistia uma dor quaseimperceptível. Jávintediassepassaramdaquelarotinaquelhe

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faziatãobem.Haviaseentregadocompletamenteàbelezadanatureza. Voltouasentarsoboguarda-sol.Océucomeçoua apresentar seu espetáculo do entardecer.Quandoiniciouacolorir-sedevermelho,elanotouumafi-guramasculina recortadapelo lusco-fusco.Ele ca-minhavaemsuadireção.Pareciafazerpartedeumaapresentação que aNatureza havia preparado paraaquelatarde. Quandoelechegoufinalmente,elaoreconheceu.Márioeraumex-colegadefaculdadequehaviasecasadonamesmaépocadaformatura. Foiesfuzianteaovê-la.Abraçou-acomcarinho.Comoerabomvê-lo!Percebeuqueapaixonitedaépocadafaculdadeaindalhedavaborboletasnoes-tômago,maslogoemseguidaretesou-se.Outroho-memcasadoemsuavida...nunca! Elesentou-sefeliznaareiaaoladodelaecontousobreofimbastantedoloridodeseucasamentoporconveniência,comoafazerum“meaculpa”.Umanojásepassaraqueestavaseparado,masnãopretendianovauniãotãocedo. Ela sentiu-se tãoenvolvidacomahistóriadelequelhecontouadela. Eleaolhoueelapercebeuquenofundodaquelesolhoshaviaumacertaalegria.Arotinaagoraeraadois.Sentavam-senaareiaees-

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peravamqueaNaturezalhesproporcionasseabele-zadiária. Mas aNatureza não estava apenas preparandoesseespetáculoaambos.Certamanhã,quandoelasaíadobanho,eleentrouportaadentro.Olhou-aeencantou-secomoqueviueanaturezahumanafezoresto. Naquela tarde o entardecer perdeu dois espec-tadoresassíduos,masosúltimosraiosdesolforamespiarporentreas frestas,queobalançodacorti-naproporcionava,osdoiscorposnusperdidosemsimesmos.

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Fugaz lembrança

Corriaporsobreaareiaquentesemsentirdor.Quando se aproximoudaorla nãohavianinguém.Apraiaofuscanteestavavazia.Esperouporlongasduashoras,maselenãoveio.CaminhoulentoatéenxergarPedro,voltandodesua

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pescacotidiana.Derepentepercebeuotempomudareoventocomeçouasoprarforte.Deumladoasnu-vensnegrasvinhamameaçadoras.Deoutroladoeraocéudeumazulinfinitoeobrilhocegantedosol.Areverberaçãodaluzlhedeunáuseas.Tinhaagargan-taapertada. DesdequeFernandolhedisseraquetinhamqueseseparar,seumundopartiraempedaços. GritouonomedePedro, comas forçasqueospulmõeslhepermitiam.Ouviuseuprópriogritosairesganiçadodedor,enquantoPedrolheacenava,comalegria. Ela admirava a felicidade simples daquelehomem. -Vailevarpeixe,hoje? -Não,Pedro.Hojequeroapenasconversar. -Conversar? -Importa-sequeeuqueiraapenasconversar? -Dejeitoalgum.Eoqueameninaquerfalar?-perguntoucomaquelasuamaneirasimplesdeser. -Nãosei. -Nãosabe?Ameninanãosabeoquefalar,masquerconversar?Evamosfalardoquê,então? -Deixepralá,Pedro.Voucontinuaracaminhar. -Vaichover-dissePedro,esticandoodedoparacima. -Nãofazmal.Precisoesfriaracabeça.

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-Ahn!-exclamou,coçandoabarbabranca,porfazer.-Coisasdocoração,aposto. Elaapenas lhe jogouumbeijocomosdedoseseguiuadiante. Ovelhopescadorviu-acaminhar.Osombrosca-ídos.Sentiupenadaquelameninadacidadequeso-friaporquemnãomerecia.Seguiuseucaminho.Alabutaaindanãoterminara.Agoraeralimparpeixe,colocarnogeloeesperarfreguês.

Asgaivotasfervilhavamàvoltadealgunsrestosde pescado.A areia estava úmida,mas a chuva jácessara.Osolvoltavaacegar,secandoalgunspeda-çosdeareiaaquieacolá,quaseimediatamente. Parouemfrenteaomar.Amarésubiarapidamen-te.Tinha certeza de que Fernando não viriamais.Ficououvindoobarulhodasvagasabaternas ro-chas, enquantoovapor irisado era iluminadopelosol.Asareiasquelevantavamjuntoàságuasbrilha-vamcomoouroempó.Oventorecomeçouasoprar.Agoraabrisaera leveefresca.Deixou-seficaraliatéoanoitecer. Quandopercebeuonegrumedocéueasprimei-ras estrelas, resolveu levantar-se da areia e voltouquasearrastandoparacasa. Abriuaportaesuafiguraficou,poralgunsmo-

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mentos,enquadradapela luminosidadeda luacon-traaescuridãointerior.Jogou-senumapoltronaealipermaneceuatéoamanhecer.

Como todasasmanhãs, levantou-seàs7horasefezocaféparaodesjejum.Omaridopassoueabeliscounotraseiro.Deu-lheumtapa,lançando-lheumolharmalicioso. -Sente-seetomeseucafé.Nãodevecomerempé. Elesorriuecontinuouempé.Todososdiaseraamesmacoisa.Elaorepreendiaeelecontinuavanomesmolugar.Deu-lheumapiscadela. Vocêvaiseatrasar–apressou.Eelacontinuousentada,tomandoocafécomleite,calmamente. -Nãohácomonegar,vocêéumautoritário-elarespondeu,continuandoabeberlentamente.Eleencostou-senabancada,pertodapiadacozinhaeficouaobservá-lacomumsorrisonoscantosdoslábios. Elalevantou-sederepente.Pareciaterligadoummotor.Colocoualouçanamáquinacomaeficiênciadarotina,foiatéoquarto,pegouabolsaevoltoura-pidamente. -Estoupronta.

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Desceramatéagaragemeseguiramdecarroatéoescritório.Aloucuracomeçavanaquelemomentoeiaatéofinaldodia.

Saíram felizes de mãos dadas e caminharampelocalçadãodaXVdeNovembro.Atemperaturademaioestavaamenaeelespodiamcurtirmelhoranoitecuritibana.Andavam,olhandoaesmoouàsve-zesapreciavamvitrines.Voltaramparapegarocarroeseguirparacasa,comoemtodasasnoites. -PorquenãovamosaoOriginalCafé? -Hoje? -TemdiaparairaoOriginalCafé? Tem,simsenhora.Nossábadosànoite. Porquenãohoje?–perguntouamuada. Porqueamanhãvocênãoquerlevantar.–Mas,aoolharoardegarotateimosa,sorriuesedeuporvencido. Estábem,porémvocêvaimeprometerquefica-mosapenasumahora. Elasorriufelizejogouosbraçosàvoltadopes-coçodele,beijando-olongamentenaboca.Erasem-pre assim.Quando ganhava umaquestão dava-lhecomoprêmiooslábios. Entraram.Acasaestavalotada,apesardaterça-feira.Nasalaenfumaçada,iluminadaporluzesama-

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relecidas,elesurgiu.Afiguradeleficourecortadapeloúnicofachodeluzclara.Fernando.Jamaisesqueceradele.Tãoaltoquesuacabeçapareciasobressairden-treaspessoas.Seurostoclareoupelojatodeluzeelaviuaquelesemblantedebelostraços,ocortemáscu-lodoqueixo,onarizenérgicoseaproximardeles. Tentouseesquivar. -Espere...NãoéFernando?–perguntouRenato. - Fernando?Sim... acho que sim. – respondeu,semquererenfrentá-lo. -Vocêsnãotiveramumnamoro,naquelasfériasdeverãonoAtami? -Foitudotãorápido... -Poissemprepenseiqueocasohaviasidosério. -Saibaquetenhofugazlembrançadaquelasfé-rias. Renatocerrouocenho.QuandoJussarafugiatãosimplesmentedaconversaeraporqueoassuntoain-daaperturbava.Eleaconhecia,especialmente.Tal-vezmuitomais do que ela própria pudesse sequerimaginar.Achava-opráticoeobjetivo,maspareciadesconhecer-lheointerior. Renato ficou em silêncio. Depois ensaiou umatentativa: -Vamosfazerumapausasobreesteassunto... -OraRenato,nãohámaisnadaafalar,nemmes-monecessidadedepausas.31

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-Achoquenãoestoupedindomuito.Querocur-tir anossahorade lazer.Talvezhoje, emcasa,ouamanhã,nãosei... -Não.–Avozdelasoouenérgica.–Sehouvessenecessidadede algumaexplicação eu a daria,mascomoeudissenãopassadefugazlembrançadeumcasotoloedescabidodeférias. -Naverdadeachoqueanoiteazedou.–Respon-deuRenato,voltando-separaasaída. -Temtodarazão.Melhorcurtirmosoutrodia.Começaramaretornar,rumandoparaaportadasaí-da,quandoouviramseusnomes. -Jussara!Renato!Voltaram-seacontragosto,jásabendoquemoscha-mava. -Quebomvê-losporaqui.Soubequehaviamcasado,atravésdeIsabel.Lembradela,nãoJussara?MinhaprimaIsabel. -Claro.–FalourapidamenteJussara,antesqueelecomentassesobreaestadadelanaquelasfatídi-casfériasdeverão. EstarfrenteafrentecomFernandofaziamlem-branças emergirem com a força de um vulcão in-candescente.Amara aquele homemviolentamente.Comelesefizeramulhereaofinalenfrentaraoso-frimentodeterquefazerumaborto,paraesconderavergonhadeserdeixadasozinha,quandoelevol-

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taraaretomarseucasamentodeconveniência.Não,elenãoeraapenasumafugazlembrança,masantesumaprofundadoredecepção. Ele ainda tentou convidá-los para sentarem àmesa, juntamente com alguns amigos, porémRe-nato foi incisivo, disse que estavam realmente desaída.SentiraumaprofundagratidãoporRenato,naquelemomento.Mesmosofrendoeleera incapazdeen-tregá-laaoslobos. Confusa,elaoseguiu.Quandopararamnomeiodovestíbuloparaentregarotíqueteaoporteiro,umavozsooudaporta. -Felizaniversário,meuscaros. ElesolharameviramTeresa,comoscabelosflu-tuandopelabrisaqueentrounumalufadapelapor-taaberta.Elaestirouosbraçoseabraçouosdois.Teresaeraamolecadesempre.HaviamcursadoafaculdadedeDireitojuntos,ostrês,eelacontinuavacomaqueleardemeninadepoisdecincoanosdeformados. Renatotevequeampará-lacomforçaparaqueelanãotropeçasseecaísse. -Suamaluquinha!Deondevocêsurgiu? -DeParis,deondemaispoderiaser?Oh,Rena-to,vocêestáótimo.Evocê também,querida,estáumabeleza.Nãofoiamaiorsurpresa?Não!Ainda33

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temmais.Venham,vamoscomemorarestadata. Tomando asmãos de ambos, tentou arrastá-losparadentrodobar. -Melhornão.Deixeparaoutrodia.Depoisco-memoraroque?–PerguntouRenato,sementendertamanhaalegria. -Nãoacreditoquetenhamesquecidooprimeiroaniversáriodecasamentodevocês! - Eu não, ele sim. – Respondeu, prontamente,Jussara. Renato a olhou, surpreso, e imediatamente fezcaradegarotopegoemflagrantedelito.Suaexpressãofacialeratodaumpedidodedesculpaspeloimper-doávelesquecimento.Beijou-anoslábios,tentandoreceberperdão.Elaoacariciounorostosuavemente.Havianogestoagradecimentopelomomentoante-rioràchegadadeTeresaecompreensãopeloesque-cimento. Teresaospuxouparafora,chamandoalguém,dedentrodocarroestacionado. -Elesnãoqueremficaraqui!–Teresaagarrou-ospelosbraçoseosrebocouatéocarroestacionado.–Senãopodeseraquiseráemoutrolugar,masserá! -Melhorpegarmosnossocarro.Estánoestacio-namentologoaolado.E...Vamosaonde?–Renatojánãotinhaidéiaondeiadaraquilo. Teresaseadiantou,comosemprefazia,desdeà

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épocadafaculdade. -Primeiro,vamosaosupermercado,compramoschampanheealgunscanapés,depoisseguimosparaoapartamentodevocêsefaremosláacomemora-ção,emestilo. Teresaosseguiuatéoestacionamento,fazendosinalparaalguémdentrodocarroestacionado,queosacompanhasse. Fizeramascompras.

Opequenoeagradávelapartamento, logoapósaPraçadaUcrânia,nadescidadaruaPadreAgosti-nho,estavaàsescurasquandoentraram,porémTere-sa,tateando,acendeutodasasluzeserápidafoiatéageladeira, pegoucubosdegelo, colocou-osnumbalde,encontradosobreabancada,enterrouocham-panhe,apósacrescentarumpoucodeáguaesal.Elasempresabiaondeestavaeoquefazer,diantedesi-tuaçõescomplicadas. Oscanapésforamarrumadoscomhabilidadeembandejasencontradas,apósaaberturadeváriosar-mários,eservidosnasalasocial. - Parabéns, feliz aniversário! – Beijos e abra-çoscarinhososdostrêsoutrosamigosdafaculdadedeDireito.Diego,PatríciaeCarlosforamentrandopelaportaeseguiramparaasala,comaintimidade35

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develhosamigos.Opequinêsbrancosurgiu,latindoparaosreceber.Sentou-senaalmofadapertodosofáaesperadeparticipar. Haviapresenteerosastambém. -Quemaravilha–disseJussara–umpresenteparanósdois! Diegoabriuaprimeiragarrafadechampanhee,após os votos de felicidade, umdiscurso ao estiloadvocatício,todossesentaramnossofás,àvoltadamesacentralondedescansavamasbandejasdeca-napés. Aconversafluiufácil,comoaconteceentreve-lhosequeridosamigos.Astaçasiamficandovaziasenovamentevoltavamaseencher,reabastecidasporCarlos. JussaraobservoudemoradaecarinhosamenteatodoseseucasocomFernandoagorasimsetornavaumalembrançaesmaecidaeborrada,completamen-tesemsentido.

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Vento de agosto

Tardinha.Osoldesapareciademansinho.Resquíciosdouradospintavamocéu.Joanaapoiou-senogradildasacada.Ospensamentosvoavamàbuscadelembranças.Era como se ouvisse o vento assobiar novamen-te.Foraumalongacaminhadaatéocampodegol-37

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fe, naquele dia. Sentia-se agradavelmente envol-vida por aquele sentimento, que imaginara nãomais tomar conhecimento. O restaurante apareceuàs suas vistas, protegido ao norte por imensas ár-vores, já envelhecidas e frondosas. Elas já esta-vam lá desde antes de construírem o condomínio.A luz do sol naquela tarde cintilava por dentre asfolhagens. Pensou no encontro que tivera comele, alimesmo alguns dias atrás.Ainda estava en-voltaemsuasdoces lembranças,quandoocéu to-mouumacor cinza e tudo escureceu.Ovento co-meçou a enfurecer-se, de uma hora para outra. Oredemoinho começou a se formar lá pelo lado sule veio se avolumando, enquanto corria lamben-doelevantandocasascomosefossembrinquedos.Viu-sedentrodorestaurante.Pessoasempânicocor-riamegritavamparaquesejogassenochão.Sentiuamão,quemaispareciaumatenaz,arrastá-laparadentrodobanheiro.Lájáhaviaalgumaspessoas.Osrostosde-monstravamopavor.Osomaumentouensurdecedoreelesimaginaramorugidodeumanimalpré-histórico.Aqueles minutos que permaneceram dentrodo banheiro do restaurante pareceram séculos.Quandotudocessou,sentiuseusmembrosrelaxaremeadorcontidatomoucontadeseuser.Saíramlenta-mente,umaum.Apaisagemqueviramemseguidafoidesoladora.Haviaumrastrodeixadoporondepas-

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saraotufão.Casasinteirasaoladodedestroços,fer-ragensretorcidasecimento,espalhandopoeirapeloar.Asensaçãoédequehaviaocorridoumaguerra.As pessoas saíam de suas casas num movi-mento letárgico, quase em câmara lenta, apóso terror de, talvez, cinco minutos apenas.Quandoarealidadesefezpresenteemcadaum,fo-ramàbuscadeentesqueridos,quepodiamestarsobescombros.Muitosperderampessoasamadas.Pedaçosdeedifi-caçõesforamencontradoslonge.-Aindapensandonaquilo,Joana?Assustou-secomapergunta.Estavatãoabstraídaemseuspensamentosquenãoperceberaachegadadele.-Vezououtra,ainda.-Disse,àguisaderesposta.-OsGomesnosconvidaramparaumareunião,hojeànoite.Elasorriudemaneiraabstrata.-Sim,sim,eumelem-bro.Porvoltadasoito,não?-Muitogentildapartedeles,vocênãoconcorda?-Sabeseéalgumacelebração?-Aoquemeconstavãorecepcionarumaamigavin-dadaEuropa.Parece serumaartistaplástica.Nãoseiaocerto.Estava pouco entusiasmada. Franco franziu as so-brancelhas.

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-Oh,querida,vocêdeveriaseanimar.Afinalestamosenfimnosrelacionandocomaspessoas.-Sinceramente?Eunãotenhoamínimavontadedeir,porémvocêestácobertoderazão.Precisamosnosrelacionar.Queroesquecer...-Vocêvaiesquecer!-Vocêjáesqueceu?-Perdiafilha...eamulher...Mesmoestandoparanosseparar,nãodesejavaissoàElizabete.EAmanda...nãovouesquecernunca!Mas,precisamoscontinuaraviver,minhaquerida,eserconvidadoparaumare-cepçãonestacidadeéumfatoacomemorar.Depoisháafirma.Tenhoqueconvivercomaspessoas,criarvínculosquemelevemaorelacionamentocomercial.-Temrazão,querido.Voumepreparar.

Demeias,entrounacozinha,sentindooodordeli-ciosodopernilassado,comumtoquesutildepimen-tarosa.Enquanto ele umedecia o assado, ela o observava,divertida.Elesempregostaradecozinhar.Desdequesecasa-ram,seismesesapósosucedidonocondomínio.Oqueadivertiaeraqueeleseparamentavatodoparaentrarnacozinha.Eraoprópriochefducuisine,como

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diriamosfranceses.Ochapéuenormeestavasempreextremamenteengomado,comoexigiadeRose,suasecretáriadoméstica.-Hum,delicioso!-Extremamentegentildesuaparte,masprecisaex-perimentarprimeiro.Elasorriuesaiudacozinhadeformaespevitada.Tinha,naverdade,vinteedoisanos.Umamoçaalta,magra,comoscabelosnegros lustrososqueescor-riamatéomeiodascostas.Apeleeraclara,herdadadamãe e os olhos azuis do pai.Quando o sorrisoaparecianabocabemformadaeexpressiva,orostotodo se iluminava,masquandoficavadeprimida etriste,seusolhosdenunciavamossentimentosinte-rioresqueamachucavam.-...foiótimaaconversacomOtávioGomesdeCer-queira,ontem-dizia,Franco,enquantocolocavaopernilsobreamesa.-Creioqueconseguireiumsócioparaaexportadora-continuouafalar.Elevirou-separaJoanaqueseaboletaraàmesaejáestava,comoumacriança,espetandoacarnecomogarfo.-Psst!Modos!Eladeuumarisadacristalinaeosombrossubiramedesceramduasvezes.-Quemeraaotelefone?-PerguntouFranco.-Ah,Adelaidenoschamandoparaumjantarnasex-

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ta.Eujáconfirmei,importa-se?-Absolutamente...-Eaolhouadmirado,masfeliz.Anuvemescurahaviapassado.Apósoalmoço,comtodosospratoslavadoseaco-zinha arrumada, os dois seguirampara suas ativi-dades. Franco deu-lhe um beijo no rosto e pegouas raquetes de tênis. Pretendia jogar com Otávioe terminar os acertos sobre a empresa e a futu-ra sociedade. Joanavestiuoagasalhodeginásticae seguiuparao clube. Ia encontrarAdelaide,mu-lher deOtávio, para um jogo de vôlei. Pegou tê-nis,meias,shorts,camisetaecolocou-osnasacola.QuandoJoanachegouaoclubesentiuovento.Asfolhassecasrodopiavamsobreocalçamento.Sen-tiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Emperti-gou-se e seguiu em frente. Adelaide a esperava.Algunsmetrosdolago,sobasombradeumaárvo-re,sentou-sepróximoaobistrôdoParqueBarigüi,ouvindoosilênciodatarde.Naverdadeosilêncioeraomurmúriodepequenossonsdanatureza.Umpeixequepulavadentrodolago,ozumbidodeumaabelha, tentando pousar sobre seus cabelos, quese esvoaçavam, ao longeumguinchodeumgan-so,omarulharlentodaságuasmexidaspelovento.Olhouemocionadaopapelnasmãos.Jáhavialidoinúmeras vezes, mas continuava a não acreditar.Aslembrançasvoltaramvivazesàsuamente.Oir-

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mãoeraseisanosmaisvelhoqueela.AsmoçasdeItú o cobiçavam. Era um dos partidosmais dese-jadosdacidade.Bonito,alto,cabelosalouradosdopai,olhosverdes,apelesemprebronzeadadosol,jogavagolfecomoninguémeaindahaviaassumi-doasempresasdeindústriadeembalagens,apósamorte do pai.Amãe era umadoce criatura que amimavaextremamente.Aquele tufãodestruíra suacasaeasduaspessoasaquemmaisamava,naquelaépoca.AlgunsdiasanteshaviaencontradoFranco,queestavaseseparandodamulhereseenvolveracomele.Assimqueficouviúvo,tambémporculpadaqueletufão,casaram-se.Eagora...Passouamãosobreabarrigaeumalágrimarolousuavepelaface.Agoraumavidaseformavadentrodela.Opassadodeviaenterrarseusmortoseofuturoesperaravida.Levantou-selentamentedobanco,pegouocarroevoltouparacasa.Oventoassobiavaporentreasfrestasdasportasen-vidraçadasdasacada.-Éoventodeagosto,Joana.Muitagentenãogos-ta,maseugosto.Sintosaudadesdotempoemquemoravanocampocommeupaieminhamãe.Mi-nhainfância,enquantocorriasoltaeemliberdade.Agoraficamostodospresos,morandounssobreosoutros.-Falou,Rose.

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-Emsegurança,Rose,emsegurança...-Seguiuparaasalaesentouaopiano,lembrandodaépocaemqueamãesentavaetocavaChopin,paraelaouvir.Osacordestomaramcontadasalaeelasorriufeliz,imaginandoumagarotinhasentadaàsuafrente,ou-vindo-atocar.

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Dedicatória

Dedicoestaantologiaatodooescritorrespon-sávelpelocuidadocomoMeioAmbiente.Aosconhecedoresdanecessidadedeseescreverepu-blicardoravanteapenasnaformadigital.Nãohácomonegarqueolivroimpressocustaaoplanetaocortedeárvores.Mesmohavendoreflorestamento, ainda ficam vestígios tóxicosdeixadospelaindústriapapeleria,forçosamentedespejadosemnossosriose,numefeitocascata,nossavegetaçãoprejudicada,nossasplantaçõessofrendocomatoxicidadedosolo,banhadoporessesriose,consequentemente,nossoalimentotransformadoemveneno,decorrentedessainfil-traçãodanosaemnossamesa.Esseefeitotendeapioraracadadiaeacadaár-vorederrubada.Acadarolodepapelquesaidafábrica,osolodenossoplanetaémaismaltrata-do.

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Asgeraçõesfuturassofrerãoimensamentecomanossainconsequencia,secontinuarmosnestepas-so.Seiqueaindústriatemempregadoseumladoso-cialapreservar,poréméumcustomuitoalto.Oplanetadepende,parasobreviver,de todoatoresponsávelquepudermosdoar.

Aautora

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Este é um exemplo de livro digital, com contos de autoria de Sylvia R Pellegrino. Talvez o ler gratuita-mente alguns contos, publicados di-gitalmente, possa encantar alguns céticos do poder desta máquina fe-nomenal deno minada internet.Na verdade, aquele que aprecia a leitura e caminha sempre em frente, enxergando o futuro, com certeza há de concordar com esse sentido, pos-to que ainda não caminhamos para trás. Aliás, é isso que quero evitar e muitos dos que comungam da mi-nha concepção.

A autora