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Metodologia e Filosofia da Ciência

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Metodologia e Filosofia da Ciência

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Metodologia e Filosofia da Ciência Prof. Dr. Marcello Árias Danucalov

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Diretor Geral Alexandre Machado

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Sumário

METODOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA .................................................................. 1 

Sumário ........................................................................................................................ 2 

Ementa ......................................................................................................................... 4 

Currículo Resumido dos Professores ........................................................................... 5 

Bibliografia Utilizada ..................................................................................................... 6 

UNIDADE I .................................................................................................................... 7 

MÓDULO 1 ............................................................................................................... 8 

MÓDULO 2 ............................................................................................................. 14 

MÓDULO 3 ............................................................................................................. 29 

MÓDULO 4 ............................................................................................................. 51 

RESUMO ................................................................................................................ 62 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM ...................................................................... 63 

UNIDADE II ................................................................................................................. 69 

MÓDULO 1 ............................................................................................................. 70 

MÓDULO 2 ............................................................................................................. 79 

MÓDULO 3 ............................................................................................................. 83 

MÓDULO 4 ............................................................................................................. 97 

RESUMO .............................................................................................................. 115 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 116 

UNIDADE III .............................................................................................................. 120 

MÓDULO 1 ........................................................................................................... 121 

MÓDULO 2 ........................................................................................................... 131 

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MÓDULO 3 ........................................................................................................... 135 

MÓDULO 4 ........................................................................................................... 148 

RESUMO .............................................................................................................. 164 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 165 

UNIDADE IV ............................................................................................................. 169 

MÓDULO 1 ........................................................................................................... 170 

MÓDULO 2 ........................................................................................................... 175 

MÓDULO 3 ........................................................................................................... 180 

MÓDULO 4 ........................................................................................................... 187 

RESUMO .............................................................................................................. 190 

EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM .................................................................... 191 

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Ementa

Metodologia e intersubjetividade na ciência; diferenças entre a ciência antiga e a ciência

moderna; a revolução científica; dedução e indução; a filosofia da ciência; a filosofia de

Karl Popper; a filosofia de Thomas Khun; Renascimento e o Iluminismo; Auguste Comte,

Émile Durkheim, Max Weber, Karl Marx, Pierre Bourdieu; campo social; ilusão naturalista;

as estruturas do campo social; força e o poder simbólicos; agentes do campo social; o

conceito de Illusio; o conceito de habitus; regras da lógica argumentativa; formato padrão

dos argumentos; critérios de validação de argumentos: aceitabilidade, relevância,

suficiência e refutabilidade; história da lógica; falácias argumentativas; limites do

pensamento lógico; projeto científico: tema; formulação do problema; objetivos;

justificativa; referencial teórico; metodologia; cronograma; referências; ética e

investigação científica; fases da pesquisa científica; levantamento bibliográfico; redação

científica; comunicação da pesquisa; tipos de pesquisa científica existentes.

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Currículo Resumido dos Professores

Doutorado em Ciências (Psicobiologia) pela Universidade Federal de São Paulo

(UNIFESP) (Avaliação Capes - 7) (2012); Mestrado em Farmacologia pela Universidade

Federal São Paulo (UNIFESP) (Avaliação Capes - 6) (2000); Pós-graduação em

Fisiologia do Exercício pela UNIFESP; Licenciatura Plena em Educação Física pela

Universidade Santa Cecilia dos Bandeirantes (1989); Bacharelado em Filosofia pela

Universidade do Sul de Santa Catarina (2012); Formado em Coaching Ontológico pelo

Instituto Latino Americano de Coaching Ontológico; Atua com Coaching Ontológico para

indivíduos, grupos e equipes; Liderança Corporativa; Professor Universitário há vinte e

sete anos; Professor das disciplinas Comportamento Organizacional e Liderança e

Trabalho em Equipes para os cursos de Administração, Comércio Exterior, Logística,

Gestão Portuária e Processos Gerenciais da União Brasileira Educacional (UNIBR);

Professor convidado a ministrar aulas em cursos de pós-graduações na Universidade

Federal de São Paulo - UNIFESP/EPM, Universidade de São Paulo (USP) entre outras;

Consultor e Palestrante atuando com desenvolvimento humano para pessoas físicas,

grupos e equipes (ambientes corporativos, educacionais em geral e órgãos públicos) com

foco em: Coaching Ontológico; Neurociências do Comportamento Humano; Filosofia e

Ética Corporativa; Comunicação e Linguagem Humana; Revitalização de Equipes e

Grupos. Entre seus clientes destacam-se: Grupo Pão de Açúcar, Brasil Foods (BRF),

Petrobrás, SESC, Sabesp, Superior Tribunal Militar, Metrô (SP), Centro da Indústria e

Comércio do Estado do Amazonas, Ultracargo, Indico (Planos de Saúde), Staybridge,

Melitta, Tribunal Regional do Trabalho (Campinas) entre outras empresas e instituições;

Autor de diversos livros e artigos científicos; Estudioso em Filosofia Clínica; Finalista do

Prêmio Saúde 2013 da Editora Abril na categoria Saúde Mental e Emocional. Para ter

acesso ao Currículo Lattes completo acesse: http://lattes.cnpq.br/7168696309821501

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Bibliografia Utilizada

Bibliografia Básica

POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Pensamento/Cultrix,

2013.

BOURDIEU, P. Homo academicus. 2ª. Edição. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.

BOOTH, W.C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J.M. A arte da pesquisa. 2a Edição. São

Paulo: Martins Fontes, 2005.

Bibliografia Complementar

ARISTÓTELES. Tópicos. [Os pensadores]. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BACON, F. Novum organum. [Os pensadores]. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

DESCARTES, R. Discurso do método. [Os pensadores]. São Paulo: Abril Cultural,

1983.

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

LAVILLE, C & DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da

pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; Belo Horizonte:

Editora UFMG, 1999.

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UNIDADE I

História e Filosofia da Ciência

“A ciência não desvela truísmos. Ao contrário, faz parte da grandeza e da beleza da

ciência o fato de podermos aprender, através de investigações conduzidas com espírito

crítico, que o mundo é inteiramente diverso daquilo que chegamos a imaginar, até que

nossa imaginação seja estimulada pela refutação de teorias anteriores”

Karl Popper

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MÓDULO 1

Sociologia. Conceito e objeto

Parabéns aluno (a) ingressante. Você acaba de entrar em uma faculdade. A partir deste

momento você passa a fazer parte do mundo acadêmico, e poucas são as pessoas que

gozam deste grande privilégio. Agora você faz parte de uma elite, e isso lhe concederá

certo poder simbólico. Contudo, já dizia o avô do homem aranha: “Grandes poderes,

grandes responsabilidades!”

Esperamos que sua estadia aqui seja repleta de momentos alegradores, permeada de

desafios e cheia de conquistas. Ainda não sabemos quais são os seus sonhos e objetivos

de vida. Todavia, é importante que você saiba que, independente do rumo que você

escolher conceder à sua vida profissional, o mundo acadêmico é o lugar legítimo de

produção de conhecimento científico. Você não necessariamente sairá daqui um

cientista, mas, caso intencione este objetivo, esperamos conceder a você os subsídios

para que possas atingir sua meta. A UNIBR tem, inclusive, um programa de iniciação

científica, e desde já convidamos você a se informar sobre as normas e diretrizes desta

rica e salutar atividade.

Acreditamos de maneira indubitável que, se você se esmerar na leitura e no estudo

deste livro que agora tens em mãos, o aproveitamento de seu curso superior como

um todo será muito maior, pois, independente de sua vocação para a ciência,

entender como este campo social funciona expandirá em muito sua capacidade

reflexiva, e isso pode lhe ser útil em sua vida profissional e também pessoal. Seja

muito bem vindo ao mundo da ciência.

Quando versamos sobre ciência é importante definir suas subdivisões. As ciências

naturais são detentoras de uma classificação que engloba as áreas da ciência que

intencionam estudar a natureza em seus aspectos mais fundamentais, ou seja, todos

aqueles que são regulados por regras ou leis de origem natural e com validade universal,

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tais como a biologia, a física, a química e a astronomia. Tem como foco os aspectos

físicos e não o homem ou os aspectos antropogênicos em si, que são estudados pelas

ciências sociais. Logo, as ciências sociais estudam os aspectos sociais do mundo

humano, como a vida social de indivíduos e grupos humanos. A antropologia, os estudos

da comunicação, o marketing, a administração, a arqueologia, a geografia humana, a

história, a ciência política, o direito, a psicologia, a filosofia e a sociologia são áreas de

seu interesse. Então se prepare. Vamos começar a entender o que de fato é a ciência.

O homem tem tentado conceder sentido à sua existência desde que começou a

diferenciar-se dos outros animais e iniciou sua aventura pelos territórios do pensamento.

A percepção de que esta inserido na temporalidade, e consequentemente, a constatação

de que é um ser finito, provavelmente tem motivando-o na incessante busca por

explicações que lhe apaziguem a inexorável angústia que teima em acompanhá-lo

durante sua jornada pela vida. Sendo assim, o homem tem buscado fruir o mundo e

conceder-lhe significado por meio da utilização de distintos saberes. Em tempos remotos

os mitos foram de grande relevância para a organização psíquica do homem.

Provavelmente, a mitologia fez nascerem sistemas e instituições organizados, dando

origem às distintas religiões. A arte também tem sido companheira do homem desde a

noite dos tempos, e tem lhe servido de refúgio quando suas dúvidas clamam por uma

explicação que transcenda os limites da linguagem falada. O senso comum, uma forma

espontânea de entender o mundo, tem-lhe sido valiosa, pois, mesmo sendo uma

abordagem rudimentar de investigar a vida, o senso comum tem-lhe concedido

praticidade, além de ajudar-lhe a resolver inúmeros problemas do cotidiano. Porém,

houve momentos onde as regras e os rigores do pensar passaram a ser necessários,

quase imperativos, e por este motivo pensadores da Grécia nos legaram a filosofia, mãe

- ou filha? - da racionalidade humana. Patrocinadora de revoluções intelectuais.

Progenitora daquilo que convencionamos chamar de ciência moderna, e que em breve

versaremos com mais vagar. Sendo assim, ainda hoje, existem à nossa disposição seis

maneiras bastante distintas de ver e fruir o mundo: o mito; a religião; a arte; o senso

comum; a filosofia; e a ciência. Contudo, é importante deixar claro que, talvez não seja

prudente advogar em defesa de uma ou de outra, afirmando ser esta ou aquela a melhor

das maneiras de se decodificar o mundo. Mesmo que sejamos um cientista, ainda assim,

em algumas ocasiões, flertaremos com o senso comum, com a arte ou mesmo com a

mitologia, quando, por exemplo, ao torcer por seu time do coração, o referido cientista

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passe a idolatrar um jogador de futebol, acreditando, como nos tempos antigos, que este

homem irá salvar seu time do rebaixamento para a segunda divisão, fazendo ressurgir

assim o velho e bom mito do herói. Todavia, se somente falarmos isso, talvez estejamos

cometendo uma injustiça com a ciência. Carl Sagan, em seu maravilhoso livro O mundo

assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro, nos alerta

(SAGAN, 1997, p.39):

Nós criamos uma civilização global em que elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém, mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância vai explodir em nossa cara.

A universidade é o local legítimo para se falar e fazer ciência, e seria de se esperar que

seus agentes - alunos de graduação, de pós-graduação, de mestrado, de doutorado,

assim como professores e orientadores - fossem conhecedores desta forma de saber e

fruir o mundo. Todavia, não é exatamente isso que acontece. Pouquíssimos são os

agentes sociais que transitam nas faculdades e universidade saberiam discursar sobre o

que é ciência. Muitas vezes, as aulas de metodologia da pesquisa científica são

conduzidas por professores que sequer publicaram uma boa pesquisa científica em suas

trajetórias profissionais. Sendo assim, esta disciplina tão rica e necessária pode

transformar-se em um “lugar” onde se discutem regras cosméticas de apresentação do

conteúdo do trabalho científico, sendo esse, muitas vezes, um aglomerado de dados

desconexos, muito pouco representativo daquilo que chamamos de dados científicos.

Ouso afirmar que são escassos os mestres e doutores em nosso país que leram a obra

Discurso do Método de Descartes, ou que obtiveram informações - ainda que superficiais

-, sobre Karl Popper e Thomas Kuhn, representantes legítimos da filosofia da ciência e

que com suas críticas nos ajudaram a compreender os alcances e os limites daquilo que

chamamos de ciência. Acredito que, em parte, devido a esta carência em nossa formação

básica, somos tão frequentemente vítimas de dilemas.

Apesar de podermos interpretar o universo à nossa volta partindo de diferentes pontos

de observação, precisamos tomar muito cuidado para não misturar saberes, pois o

resultado, muito comumente, é desalentador. Gilbert Ryle, (1900 – 1976), é um filósofo

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inglês que trabalhou com filosofia da linguagem. Em sua obra Dilemas, Ryle nos mostra

que muitos dos dilemas que vivenciamos hoje, na realidade não são de fato dilemas, são

falsos dilemas. Sempre que transgredimos categorias geramos falsos dilemas, ou seja,

ao colocarmos numa mesma categoria elementos que pertencem a categorias distintas

corremos o risco de produzir conclusões paradoxais. Por exemplo, ao tentar responder

questões científicas com argumentos religiosos, ou vice-versa, ou ao tentar analisar uma

obra de arte por meio de um pensamento estritamente racional.

Foto 1: Gilbert Ryle

Recentemente, a revista Veja publicou uma matéria cujo título era Entre a Fé e a Razão.

Nela, é possível perceber parte daquilo que Ryle denomina de dilemas e que outro grande

filósofo britânico, Bertrand Russell (1872-1970), denominava de “batalhas sombrias”, ou

seja, os seculares embates entre a ciência e o campo religioso. Essa matéria faz alusão

à recente declaração do papa Francisco: “Quando lemos no Gênesis sobre a criação,

corremos o risco de imaginar que Deus tenha agido como um mago, com uma varinha

mágica capaz de criar todas as coisas. Mas não é assim [...]. O Big Bang, que hoje temos

como a origem do mundo, não contradiz a intervenção criadora, mas a exige. A evolução

na natureza não é incompatível com a noção de criação, pois a evolução exige a criação

de seres que evoluem”. O intuito do papa Francisco provavelmente não era o de erigir

mais uma batalha nesta guerra que já dura milênios, mas, pacificar a tensão entre os

campos. Ainda assim, sua fala patrocina mais um dilema, uma vez que, como ficará claro

a você caro (a) estudante, ciência e fé definitivamente não combinam! Ciência e religião

são duas maneiras bastante distintas de pensar e estar no mundo, e um dos abismos

que as separa é o dogma, afirma Marcelo Gleiser, físico, astrônomo e professor de

filosofia do Dartmouth College, EUA. E ainda que Albert Einstein (1879-1955), talvez o

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maior cientista do século XX, pensasse diferente, e afirmasse que: “A ciência sem a

religião é manca, a religião sem a ciência é cega”, a esmagadora maioria dos cientistas

da atualidade tem um ponto de vista radicalmente distinto. Ciência e religião são

categorias distintas. Nunca poderemos uni-las sem que incorramos em dilemas, pois

ambas partem de premissas opostas. A ciência, com sua metodologia, pode investigar a

espiritualidade. Podemos pesquisar suas bases biológicas, seus constructos sociais,

seus alicerces linguísticos etc. Todavia, não podemos fundir categorias, ainda que

possamos tentar erigir pontes entre distintos saberes, com vistas a patrocinar diálogos

mais respeitosos entre campos de saberes tão diversificados.

Foto 2: Bertrand Russell

Metodologia e intersubjetividade na ciência

Uma das coisas que faz da ciência uma forma de saber bastante distinta das demais é o

fato dela ser controlada de maneira rigorosa por seus agentes sociais. Costuma-se dizer

que os conhecimentos científicos são objetivos e que as afirmações que brotam da

ciência devem ser controladas por todos os cientistas que militam na causa em questão,

ou seja, elas devem ser intersubjetivamente controláveis. Logo, os saberes que

emanam de seu interior necessitam poder ser compreendidos, confirmados ou refutados

por qualquer outra pessoa que tenha formação necessária para tal, ou seja, todos os

agentes sociais do campo científico têm direito e dever de criticar os conhecimentos

oriundos do seio da ciência. Sendo assim, o conceito de intersubjetividade ambiciona

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garantir que as teorias científicas não se tornem proposições baseadas em um único

ponto de vista, como muitas vezes acontece no campo da fé religiosa, por exemplo. A

ciência é repleta de procedimentos, todos eles bastante metódicos e rigorosos, e que

intencionam torná-la o mais isenta possível de interesses particulares. Tais

procedimentos buscam garantir a obtenção de um conhecimento válido sobre os fatos,

caracterizado pela confiabilidade das observações, dos experimentos e das conclusões

que emergem das pesquisas científicas. A presença desta metodologia procura manter

a rigorosidade do conhecimento científico, e paralelamente busca torná-lo claro, preciso

e unívoco.

Como dito anteriormente, a ciência surgiu da filosofia e esta, embora tenha como objeto

o conhecimento em si, deixou para a ciência a tarefa de explicar como as coisas são,

concentrando-se muito mais nas indagações sobre o por que as coisas são como são, e

não de outro maneira. Perceba amigo (a) estudante, para além do conhecimento

explicativo, a filosofia preocupa-se com o sentido das coisas em relação ao homem.

Todavia, vamos retornar às características apontadas acima. O conhecimento objetivo,

compreendido de forma estrita, não pode ser atribuído nem à religião e nem tampouco à

filosofia. A religião depende justamente de uma experiência pessoal e intransferível,

ligada também à força da fé. Já a filosofia, embora fundada na razão e na pretensa

universalidade de seu conhecimento, foi essencialmente movida pelo desacordo entre

diferentes filósofos e suas concepções ao longo de sua história. Deste modo, torna-se

inexequível falar de um “controle intersubjetivo” para teorias filosóficas. Vejamos agora

quais os pontos mais importantes daquilo que se convencionou chamar de revolução

científica.

Para saber mais:

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-

marcelloarias.com.br

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MÓDULO 2

Ciência antiga e Ciência Moderna

A revolução científica é um período caracterizado pela publicação da obra De

Revolutionibus, de Nicolau Copérnico (1473 – 1543), e essa obra inaugura o que

chamamos de ciência moderna, ou ao menos o período em que foi gestada para que

tivéssemos hoje a imagem daquilo que chamamos de ciência moderna. A astronomia

vinha sustentando o modelo geocêntrico aristotélico / ptolomaico até o século XV, e

tinha como pressuposto básico a imobilidade da Terra no centro do universo, orbitada

pelo Sol, assim como pelos demais planetas. Copérnico revoluciona a astronomia ao

afirmar que a Terra se move ao redor do Sol e também sobre seu próprio eixo. Não é

difícil perceber, caro (a) aluno (a), que com a chamada inversão copernicana, não apenas

o paradigma astronômico se altera de maneira radical, mas também toda a concepção

de mundo vigente até o século XV. Sobre este assunto, Reale e Antiseri (2004, p. 143)

comentam:

Mudando a imagem do mundo, muda também a imagem do homem. Mas também, progressivamente, muda a imagem da ciência. A revolução científica não consiste somente em adquirir teorias novas e diferentes das anteriores […]. Ao mesmo tempo, a revolução científica é revolução da ideia de saber e de ciência. A ciência – e esse é o resultado da revolução científica, resultado que Galileu iria explicitar com clareza absoluta – não é mais a intuição privilegiada do mago ou astrólogo iluminado, individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse “a” verdade e toda a verdade, isto é, não é mais um discurso sobre “o mundo de papel”, mas sim investigação e discurso sobre o mundo da natureza.

Se Copérnico alastrou a semente revolucionária sobre aquilo que se chamava ciência,

coube a Galileu Galilei (1564 – 1642) expandir este princípio transformador à prática.

Conta-nos a história que ao ouvir sobre a invenção da luneta, um instrumento capaz de

ampliar a visão natural através de lentes, Galileu pôs-se a construir sua própria luneta e,

ao invés de apontá-la para pessoas, a direcionou para o céu. Foi um singelo gesto, mas

que causou enorme impacto, pois se tratou da primeira utilização de um instrumento

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científico para aumentar o poder de nossa experiência sensível. O universo passou a ser

observado por meio de outra óptica, com “outros olhos” e isso gerou problemas entre

Galileu e a Igreja. Galileu passou a arbitrar em favor do modelo heliocêntrico, sendo

assim, a Terra deixava de ser o centro do universo, dando ao Sol esta primazia. Galileu

também passou a afirmar que os conhecimentos científicos deveriam se desvencilhar da

fé e das escrituras sagradas. Caberia à ciência a missão de tentar descrever o mundo

físico tal como ele é, enquanto as doutrinas religiosas deveriam limitar-se aos assuntos

da alma e sua salvação.

Galileu foi o um dos precursores dos testes controlados, muito embora, suas

experiências controladas ainda não seguissem nenhuma metodologia pré-fixada,

rigorosamente especificada e intersubjetivamente aceita. Como amante da ciência

Galileu desenvolveu teorias sobre o movimento e conseguiu prová-las mediante

experiências concebidas previamente. Note que não se trata mais de simples

confirmações das teorias por meio da contemplação passiva, como comumente era feito

na antiguidade, mas sim, da construção de experimentos projetados para confirmar uma

determinada hipótese. A ciência idealizada por Galileu é detentora de um conhecimento

objetivo, que esquematiza a verdade sobre a realidade, mesmo que essa verdade

contradiga percepções mundanas ou crenças arraigadas. Galileu forneceu para nós os

parâmetros fundamentais para o desenvolvimento de uma prática científica totalmente

inovadora. Matematizou este campo do saber; fez uso de instrumentais práticos, como a

luneta; e construiu de forma racional experimentos elegantes com vistas a testar suas

hipóteses. Ainda que a ciência de Galileu seja desprovida de uma metodologia como a

que conhecemos hoje, sem dúvida, a ciência da contemporaneidade deve muito ao seu

gênio, e a partir das inovações patrocinadas por ele, um novo modelo de ciência começou

a surgir.

A ciência praticada na antiguidade buscava compreender os fenômenos por meio da

observação das qualidades substanciais daquilo que se contemplava. Já na ciência

moderna predomina o caráter quantitativo, uma vez que os fenômenos naturais têm sido

compreendidos em termos de suas propriedades matemáticas, denominadas de

primárias. A ciência da antiguidade ambicionava encontrar a finalidade de cada

fenômeno, ou seja, era de caráter teleológico - telos, em grego, é finalidade. Por exemplo,

Aristóteles tinha a preocupação de entender qual era a causa final de cada fenômeno

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que contemplava. Para ele, não só os seres vivos tinham finalidade, mas até os objetos

físicos eram destinados a cumprir sua missão no universo. Em sua época acreditava-se

que o universo era finito, harmônico, organizado, e tudo nele, tinha uma função. Na

ciência moderna ambicionamos outras metas, uma vez que direcionamos nosso

interesse para conhecermos as causas de cada fenômeno e não necessariamente sua

finalidade. Acompanhe:

Restringindo o escopo da física às qualidades primárias e suas relações, Galileu excluiu as explicações teleológicas do discurso permissível da física. De acordo com Galileu, dizer que um movimento tem lugar a fim de realizar certo estado futuro não constitui uma explicação científica bona fide. Em particular, ele instituiu em que as interpretações aristotélicas em termos de “movimentos naturais” em direção a “lugares naturais” não se qualificam como explicações científicas. Galileu compreendeu que ele não poderia provar como falsa uma asserção tal como “corpos não apoiados movem-se em direção a Terra a fim de alcançar o seu lugar natural”. Mas compreendeu, ao mesmo tempo, que este tipo de explicação pode ser excluído da física porque não consegue “explicar” os fenômenos (LOSEE, 2000, p.64).

A metodologia utilizada também sofreu sensíveis modificações, se é que faz algum

sentido falar sobre metodologia científica na ciência da antiguidade. Todavia, a obtenção

do conhecimento na antiguidade era em grande medida dependente do método dedutivo,

ou seja, partia-se do universal rumo ao particular. Já na ciência moderna o método

indutivo, que falaremos com maiores detalhes em breve, passa a ser um de seus maiores

baluartes. Deve-se partir do singular rumo ao universal. Inicia-se a jornada da construção

do conhecimento nos casos particulares, até que se possam obter leis passíveis de

generalizações. Por último, na ciência antiga a natureza era tida como boa e o homem

era visto como parte integrante dessa natureza. Contudo, na modernidade a natureza

passa a ser vista com ressalvas, como algo a ser compreendido e, posteriormente,

dominado. A crença na manipulação da natureza com vistas a adequá-la aos nossos

desejos e necessidades foi um dos motores da revolução científica. Para aqueles leitores

fãs de desenhos animados sugerimos um olhar mais atento para a dupla de ratinhos de

laboratório conhecida como Pink e Cérebro. Ainda que o desejo do Cérebro seja dominar

o mundo com vistas à aquisição de benefícios exclusivamente pessoais - o que, a

princípio não deve ser o objetivo de nenhum cientista -, sua crença na capacidade de

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manipulação da natureza por meio de mentes brilhantes reflete fidedignamente o frenesi

que a revolução científica gerou na Europa dos séculos XV, XVI e XVII.

Figura 1: Cérebro e Pink

Francis Bacon e seus ídolos.

Francis Bacon (1561 – 1626) também viveu a efervescência do período onde a ciência

moderna foi gestada, e seu nome é sempre lembrado como um dos mais importantes

deste incrível momento do pensamento humano. Assim como muitos pensadores dos

séculos XVI e XVII, Bacon foi impelido pela atitude crítica em relação ao saber de sua

época, e se empenhou em abolir os conceitos não demonstrados e que se nutriam

somente na autoridade dos filósofos clássicos ou pela maneira pouco afável com que a

Igreja conduzia a sociedade. Bacon colocou todo seu talento a serviço da reestruturação

da maneira como construímos nosso conhecimento, esmerando-se na consolidação de

um saber seguro e, ao mesmo tempo, livre de falsas noções acolhidas pela mente. Assim

como Galileu, o caráter experimental do conhecimento é seguramente uma de suas

maiores contribuições ao desenvolvimento do método científico. Como visto acima

quanto falamos dos ratinhos Pink e Cérebro, a maneira como o homem encarava a

natureza sofreu uma grande modificação na modernidade, e Bacon teve enorme

influência nesta nova maneira de pensar. Foi com ele que teve origem a noção de que a

ciência concederia ao homem a primazia de controlar a natureza. “Saber é poder” é a

máxima mais conhecida de Bacon, e resume sua ênfase na potencialidade da ciência

transformar os produtos da natureza e aplicá-los com maior proveito nas atividades

humanas.

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Bacon afirmava que, no cotidiano, a razão humana tende a lidar com a natureza de

maneira não metódica. No dia a dia temos a tendência de estabelecer certas

antecipações que nem sempre se harmonizam com a realidade. Somos motivados por

certas regularidades observadas nos fenômenos, assim como pela influência, muitas

vezes automática, de nossa imaginação. Contudo, essas antecipações da natureza

podem nos enganar. Não são, de modo algum, seguras, e podem transmutar-se em

concepções falsas ou preconceitos que se cristalizam e nos impedem de progredir na

busca pela verdade sobre os fatos. Desta forma, Bacon nos convida a pensar sobre a

distinção entre as antecipações da natureza produzidas pelo senso comum e a

interpretação da natureza realizada pela ciência. As antecipações da natureza são

noções edificadas sem apoio e orientação metódica. Na maioria das vezes são oriundas

da observação de poucos casos, e acabam sendo responsáveis pela instauração de

diversas concepções equivocadas, ou “erros do espírito”, denominados por Bacon de

ídolos. Podemos nos lembrar das literaturas de autoajuda, que, na maioria das vezes

seguem um modelo bastante conhecido. Escolhe-se um caso de sucesso em

determinada área. Investigam-se os passos dados pelo agente em questão e,

posteriormente, esses passos são universalizados, desconsiderando por completo

inúmeras variáveis do problema, e deixando de lado muitos fatores circunstanciais

envolvidos no assunto. A conclusão, na maioria das vezes é sempre a mesma. Siga cinco

ou dez passos e os resultados serão exatamente os mesmos daqueles sugeridos pelo

autor da obra. Por sua vez, as interpretações da natureza são atributos da ciência e fruto

do trabalho de cientistas, resultado de um método objetivamente construído e da

aplicação experimental da observação criteriosa de inúmeros casos, onde se reúnem

dados capazes de sustentar determinada hipótese. Bacon afirma que para se chegar ao

método adequado para o conhecimento científico todas as falsas noções do espírito

devem ser abandonadas. Isso, de certa maneira, inviabiliza os crentes de qualquer

natureza de seguir uma carreira científica, pois, quando o ser humano mantém alguma

crença, tem a tendência de buscar confirmações para ela a todo o momento. Aquele que

crê em astrologia, por exemplo, direcionará seus olhos no sentido de encontrar no mundo

exemplos que confirmem sua crença. Para Bacon, a prática da ciência está atrelada ao

abandono dos quatro tipos distintos de ídolos:

Ídolos da tribo (idola tribus) – Tendência que tem o intelecto humano de enxergar mais

do que o fenômeno realmente oferece. Nas palavras do próprio Bacon: “Quando encontra

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alguma noção que o satisfaz, porque a considera verdadeira ou porque convincente e

agradável, o intelecto humano leva todo o resto a validá-la e coincidir com ela”.

Ídolos da caverna (idola specus) – Representados pelas disposições e preconceitos

de cada indivíduo em particular. Frutos das circunstâncias de cada ser humano que tende

a colocar sua cultura, educação, crenças, costumes e leituras pessoais como únicos

norteadores dignos de consideração na tarefa de interpretar os fenômenos do mundo.

Ídolos do foro, da praça do mercado (idola fori) – Oriundos dos equívocos ou

confusões que emergem dos limites da linguagem e da comunicação humanas, assim

como pelas falsas noções originadas das disputas ordinárias entre opiniões não

abalizadas.

Ídolos do teatro (idola theatri) – Falsas noções fundamentadas exclusivamente na

autoridade de algum pensador, filósofo notável, dogmas religiosos ou superstições

populares.

Figura 2: Francis Bacon

Para Bacon, é impossível avançar rumo ao conhecimento científico sem que antes

abdiquemos dos ídolos patrocinadores dos preconceitos. Em sua obra Novum Organum

(1620), Bacon nos apresenta as ideias basilares daquilo que denomina filosofia

experimental, que tem como meta a teorização de uma nova técnica de pesquisa da

natureza. Como vimos acima, a ciência antiga apoiava-se na contemplação e na

descrição da natureza. Por sua vez, Bacon descreve um método demonstrativo que se

opõe aos moldes desta maneira de fazer e pensar a ciência. Sua nova proposta assevera

que a aquisição do conhecimento não poderia mais ser meramente contemplativa, mas

deveria favorecer intervenções no ambiente físico, concedendo ao homem certo controle

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sobre fenômenos naturais. Bacon também propõe uma radical inversão de

procedimentos. O conhecimento antigo era baseado em uma metodologia de reflexão

bastante abstrata, onde princípios universais eram obtidos de maneira direta e por

intermédio da razão, para posteriormente, serem confirmados pela observação de casos

particulares. Contrapondo-se a essa maneira de agir, Bacon afirma que somente por

meio de uma criteriosa análise de casos particulares que se pode, num segundo

momento, chegar a leis universais. A partir de agora a metodologia da ciência obedeceria

a uma nova abordagem, e seria rotineiramente depurada na medida em que outros

pensadores, como René Descartes passassem a contribuir ainda mais com esta

necessária revolução. A construção do conhecimento científico passou a envolver a

observação cuidadosa, a experimentação bem planejada e a formulação de hipóteses e

teorias.

Atualmente, muitas das abordagens propostas no século XVI e XVII ainda são caras aos

cientistas, muito embora tenhamos avançado bastante desde os primórdios da revolução

científica. As hipóteses e teorias provenientes das observações e experimentações

criteriosas ambicionam expor e explicar a realidade sob variadas perspectivas

particulares. Quer tenha o cientista uma orientação fundamentada a partir da física, ou

da biologia, ou da astronomia, ou das ciências sociais, e mesmo que cada uma dessas

áreas do conhecimento seja detentora de práticas e metodologias cada vez mais

diversificadas, ainda assim é possível observar elementos fundamentais que lhe são

comuns e que compõem os caracteres gerais do método científico, como por exemplo, o

raciocínio indutivo.

O fundamento da ciência é o pensamento estruturado racionalmente. Todavia, o

raciocínio lógico pode obedecer a várias facetas e apresentar-se na forma dedutiva ou

indutiva. A dedução foi, sem sombra de duvidas, o método mais utilizado pela ciência

na antiguidade. Ela parte de um conhecimento prévio e atinge verdades sobre um caso

particular, como no exemplo abaixo.

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Todo homem é mortal.

João é homem.

Logo, João é mortal.

Aristóteles em sua obra Órganum, mais especificamente na parte Tópicos, nos apresenta

maneiras que julgava correta de raciocinar, e com isso, fazer ciência. Aprecie

(ARISTÓTELES, 1978, p.5):

Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais partes são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras; e, por outro lado (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas. São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.

Nota-se que, para Aristóteles, a verdade já estava no mundo. Bastava somente

contemplar o universo, o cosmos. É patente também a certeza que Aristóteles tem de

que alguns homens são mais notáveis do que outros, por isso tem mais autoridade para

afirmar as verdades. Como vimos, tais pressupostos são muito atacados na

modernidade.

Foto 3: Aristóteles

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A obra Órganum trata da lógica – regras do pensamento correto e científico. Nela, há

inúmeros exemplos de raciocínios dedutivos. Inclusive, por meio deles, este filósofo

desenvolveu sua ética, ou seja, a maneira pela qual acreditava que o homem poderia

alcançar a vida boa e a convivência harmoniosa. Para ele, o universo (todo) era

harmônico, finito e organizado. Tudo nele tinha uma finalidade: o vento, as marés, os

animais etc - Aquela mesma finalidade que foi questionada por Galileu. Lembra? Logo,

o homem (particular) também deveria ter o seu telos, a sua finalidade. Você consegue

perceber o caráter dedutivo desta ideia caro (a) aluno (a)?

A indução, também é apresentada por Aristóteles, ainda que este acredite ser esta, uma

maneira menos potente de se chegar à verdade. Note (ARISTÓTELES, 1978, p.5):

[...] Estabelecidas estas distinções, devemos distinguir agora quantas são as espécies de argumentos dialéticos. Temos por um lado a indução e por outro o raciocínio. Já dissemos antes o que é o raciocínio; quanto à indução, é a passagem dos individuais aos universais, por exemplo, o argumento seguinte: supondo-se que o piloto adestrado seja o mais eficiente, e da mesma forma o auriga adestrado, segue-se que, de um modo geral, o homem adestrado é o melhor em sua profissão. A indução é, dos dois, a mais convincente e mais clara; aprende-se mais facilmente pelo uso dos sentidos e é aplicável à grande massa dos homens em geral, embora o raciocínio seja mais potente e eficaz contra pessoas inclinadas a contradizer.

A indução ganhou força como alicerce da ciência somente na modernidade. Inicialmente observam-se casos particulares, no anseio de estabelecer uma lei geral para casos onde ainda não se tem conhecimento. Acompanhe o exemplo abaixo:

O ferro conduz eletricidade.

O ouro conduz eletricidade.

O chumbo conduz eletricidade.

A prata conduz eletricidade.

Logo, todo metal conduz eletricidade.

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Essas duas formas de aplicação do pensamento estão presentes em nossa vida prática.

Contudo, o processo indutivo é basilar no campo científico, ainda que assuma padrões

bem mais rigorosos e complexos do que aqueles exigidos em nosso cotidiano.

Voltaremos em breve a este assunto.

René Descarte e o Discurso do Método

René Descartes (1596 – 1650), também conhecido por seu nome latino Renatus

Cartesius, atuou como filósofo, matemático e físico e foi uma das principais personagens

da revolução científica. Descartes é, muitas vezes, identificado como o fundador da

filosofia moderna e o pai da matemática moderna, e é também considerado um dos

pensadores mais admiráveis e influentes da história do pensamento ocidental. Não são

poucos os estudiosos que afirmam que foi a partir de Descartes que o racionalismo da

idade moderna foi inaugurado.

Figura 3: René Descartes

Descartes é bastante conhecido no senso comum graças à sua famosa frase: “Penso,

logo existo”, em latim: “Cogito, ergo sum”, ainda que a esmagadora maioria das pessoas

não tenha uma ideia muito clara do que subjaz a esta afirmação. A frase de Descartes é

na realidade um pouquinho diferente: "Eu duvido, logo penso, logo existo", “Dubito, ergo

cogito, ergo sum”, e é a conclusão de um longo argumento apresentado por Descartes

depois que passou a duvidar até mesmo de sua existência enquanto pessoa. Sua dúvida

cessou quando percebeu que quem duvida pensa, e quem pensa, existe de forma

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indubitável. Calma querido (a) aluno (a), não se apresse em julgar Descartes um

desmiolado qualquer. O objetivo de Descartes era basear o conhecimento humano em

um alicerce seguro, concedendo ao homem fundamentações cognitivas que o

libertassem do conhecimento medieval, cujas bases eram pouco seguras. Descartes

concedeu-se o direito de colocar em dúvida todo o conhecimento aceito como verdadeiro

e, de inicio, radicalizou, pondo em duvida até mesmo a possibilidade de sua existência.

O ceticismo é o ponto de partida de sua argumentação, ainda que não se solidifique nesta

posição. O ceticismo de Descartes é somente o início de sua argumentação. Ao colocar

em dúvida todo o conhecimento que possuía, percebeu que não era possível colocar em

dúvida a existência do ser que duvidava, chegando assim à sua primeira certeza: se

duvido, penso; se penso, logo existo.

Em sua outra obra Meditações (1641), Descartes faz uso de um método bem arquitetado

com o propósito de afastar todo juízo duvidoso, incapaz de garantir o saber verdadeiro.

Assim como muitos dos grandes pensadores, Descartes faz uso de uma argumentação

bastante complexa e de um raciocínio baseado em premissas e conclusões logicamente

necessárias. Ao anunciar a verdade primeira "eu existo", Descartes justifica todo o desejo

pelo conhecimento e prenuncia um novo tempo, uma nova Ciência e um novo método de

investigar o mundo. Sua obra Discurso do Método (1637) providencia as bases da

constituição do método científico. Nela, Descartes proclama quatro regras imperativas

para todos os que querem chegar ao conhecimento verdadeiro e desejam evitar os

equívocos e as ilusões que os sentidos e os julgamentos baseados em pressupostos mal

fundamentados podem originar. As quatro regras são importantíssimas e, apesar de

terem sido apresentadas em 1637, muitas pessoas ainda a desconhecem totalmente, o

que, em parte explica muitos dos mal entendidos que ainda teimam em nos assombrar.

Primeira Regra - Evitar tomar por verdadeira qualquer proposição que não seja

diretamente evidente, ou seja, que não se apresenta ao pensamento de forma clara e

abalizada.

Segunda Regra - Como as proposições de conhecimento só devem ser aceitas quando

se mostrarem evidentes ao intelecto, é necessário dividir os problemas complexos em

partes menores, para então compreendê-las melhor e resolver a questão. Este

procedimento é denominado de análise.

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Terceira Regra – Realizada a análise, obtém-se um conjugado de reflexões dispersas,

cada uma delas relativas a cada parte do objeto ou problema em questão. Deve-se então

recompor os elementos anteriormente separados, organizando as reflexões e

descobertas realizadas sobre cada um deles. Este processo é denominado síntese, e

determina que se inicie dos raciocínios mais simples, ascendendo gradativamente até os

mais complexos, e sempre obedecendo a uma ordem de coerência lógica. Segundo

Reale e Antisseri (2004, p. 290), “quando esta ordem não existe, é preciso supô-la como

a hipótese mais conveniente para interpretar e expressar a realidade efetiva”.

Quarta regra – Com vistas a garantir a certeza do conhecimento construído é necessário

passar em revista todo o processo. Enumeram-se todos os elementos analisados para

então refletir sobre a validade das sínteses realizadas. Segundo Descartes, essas quatro

regras devem ser aplicadas a todo processo de conhecimento que pretenda alcançar um

resultado rigoroso.

É importante frisar, contudo, que Descartes era um racionalista, e isso significa que ele

acreditava ser possível chegar às verdades por meio exclusivo do pensamento. Existem

outros filósofos conhecidos como empiristas, que acreditam que todo nosso

conhecimento é oriundo da experiência que travamos com o mundo por meio dos nossos

sentidos. David Hume, que vamos conhecer em breve, e John Locke, são exemplos de

empiristas. Sendo assim, apesar de Descartes ter-nos legado um método rigoroso para

pensar, não podemos afirmar que ele era um cientista, pois acreditava que poderia

prescindir das experiências, tão caras ao que hoje denominamos de método científico.

Entretanto, o cientista da atualidade ainda faz uso das quatro regras que Descartes

propôs, mas acrescentam a elas experimentos bem controlados e dependentes de

nossas percepção e fruição sensorial.

Outro fato digno de menção é a concepção equivocada que o senso comum tem da

palavra reducionismo. No dia a dia costuma-se falar que uma pessoa com visão limitada

das coisas, tendenciosa, é reducionista. Porém, o reducionismo, que nasceu com

Descartes, tem um significado bastante diferente para a ciência. É imperativo, para

aqueles que querem conhecer o todo, fragmentá-lo em pequenas partes, como nos

propõe Descartes em seu Discurso do Método. O reducionismo facilita o trabalho do

cientista. Sobre este assunto podemos lembrar-nos de uma pitoresca passagem que o

neurobiólogo Eric R. Kandel nos presenteia em seu livro Em Busca da Memória: o

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nascimento de uma nova ciência da mente, assim como em um DVD lançado no Brasil

pela Duetto cujo título é A Neurociência de Eric Kandel. Nessas obras Kandel se recorda

de quando era um estudante de medicina e resolveu fazer carreira científica em

neurobiologia. Em seu primeiro contato com seu orientador Kandel afirmou que queria

realizar uma pesquisa científica com vistas a descobrir o local preciso no cérebro onde

se situava o Id, o Ego e o Superego, conhecidos conceitos propostos por Sigmund Freud,

o pai da psicanálise. Segundo nos relata Kandel, neste momento, seu futuro orientador

perdeu totalmente o brilho em seu olhar e emendou: O que acha de começar pesquisando

um único neurônio?

Foto 4: Sigmund Freud

Foto 5: Eric Kandel

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O Gênio Issac Newton

No rastro do grande salto do pensamento humano caberia a Isaac Newton (1642 – 1727)

obter a máxima expressão dentro da revolução científica deflagrada por Copérnico. Sua

obra maior foi os Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos

da Filosofia Natural), de 1687. Nela, Newton consegue sintetizar todo o conhecimento

científico disponível até aquele momento, descrevendo de forma majestosa a natureza

física a partir de sólidos referenciais metodológicos que estavam a serviço de novas

teorias, como a teoria da gravitação universal e as três leis gerais do movimento.

Foto 6: Issac Newton

Newton estabelece no livro III dos Principia algumas regras do raciocínio filosófico,

diretamente relacionadas à sua maneira de pensar e fazer ciência (NEWTON, 1979,

p.18). Essas regras contribuirão para o arremate final da Revolução Científica principiada

por Copérnico. Este comportamento de Newton esta ligado a três importantes

pressupostos assumidos pela ciência moderna. Agora, indaga-se pela razão matemática

ou função de cada coisa, e não mais, como na ciência antiga, pela substância de cada

coisa. Os fenômenos físicos passam a ser decodificados a partir de parâmetros

relacionais extrínsecos aos corpos, isto é, as próprias leis naturais. Logo, deixam de ser

vistos como uma interação de qualidades substanciais. Fora isso, o procedimento

indutivo deve estar firmemente amparado por experiências e demonstrações, uma vez

que não serão mais tolerados argumentos que estejam apoiados em dogmas de caráter

religioso ou mesmo filosófico. A física newtoniana passa a demarcar os territórios da

ciência e da metafísica. E se tudo isso ainda não fosse suficiente, o trabalho de Newton

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permaneceu por um amplo período de tempo orientando a prática científica, além de ter

tido a honra de ser considerado o primeiro paradigma científico. Paradigma pode ser

definido de várias maneiras, como um conjugado de métodos e ideias; como a aceitação

de uma determinada ontologia do mundo; como um contíguo de ideias sobre o campo

científico; como um conjunto de explicações para determinados problemas e anomalias

da ciência, entre outras definições. Mais à frente, versaremos um pouco mais sobre essa

questão, quando falarmos sobre os trabalhos do filósofo da ciência Thomas Kuhn.

Para saber mais:

Assista a vídeo aula com este conteúdo e acessando o site: http://www.e-

marcelloarias.com.br

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MÓDULO 3

A filosofia da Ciência

A separação entre filosofia e ciência ocorreu recentemente, mais especificamente na

modernidade. Como vimos, neste momento, grandes nomes do pensamento humano

transitavam pelas duas formas de saber, como Francis Bacon (1561-1626) e Isaac

Newton (1643-1727). Na contemporaneidade, ainda que a ciência tenha se transformado

em um campo diverso da filosofia, é possível perceber um ativo intercâmbio entre elas

por meio da filosofia da ciência, que tem como principal objetivo olhar criticamente para

a ciência, estando do lado de fora deste campo do saber. Isso é imprescindível para que

a ciência não corra o risco de ser abduzida por dogmas invisíveis aos olhos de seus

agentes.

O pensamento científico tem nos proporcionado um maior entendimento do universo e

de nós mesmos. Sua metodologia e seus rigorosos critérios têm sido frequentemente

aprimorados desde que os primeiros pensadores da modernidade lançaram suas bases.

Nada na ciência é protegido e blindado, ou ao menos, não deveria ser. Nada na ciência

tem a ver com dogmas, ou ao menos não deveria ter. Nem mesmo a indução é protegida

das críticas. Ainda que por muito tempo o princípio da indução tenha sido identificado

como elemento central do próprio método científico, muitos filósofos, principalmente

aqueles devotados a pensar a ciência, têm criticado a confiabilidade da concepção

indutivista da ciência. Que tal compreendermos melhor esta questão?

David Hume (1711 – 1776), importante filósofo britânico é conhecido devido,

principalmente, por ter escrito duas obras primas da filosofia, Tratado da Natureza

Humana (1739) (HUME, 2000) e Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748)

(HUME, 2003). Uma de suas principais ambições é distinguir as relações de ideias e as

questões de fato, dois elementos distintos no pensamento racional. Vamos entender

isso melhor? As relações de ideias são as proposições matemáticas. Elas podem ser

reveladas somente por meio do pensamento, pois descartam a necessidade de quaisquer

elementos externos para serem realizadas. Por outro lado, as questões de fato fazem

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referência às coisas do mundo, que estão no mundo, e, por este motivo, não podem

prescindir da experiência e da intermediação dos nossos sentidos. Para David Hume,

quando pensamos sobre as questões de fato, inapelavelmente teremos que lidar com as

relações de causa e efeito, e essas relações nos permitem constatar a existência de

uniões entre os fatos presentes com aqueles que os antecederam. Notem que, as

questões de fato são de âmbito científico, pois tratam de algo necessariamente ligado à

experiência. Sendo assim, a indução consistiria precisamente na projeção para o futuro,

dessa relação anteriormente experimentada no passado. Contudo, Hume nos alerta que

a inferência causal em que nos amparamos para confiar que causas futuras

aparentemente semelhantes às causas passadas provoquem efeitos futuros

semelhantes aos efeitos passados, não se baseia num raciocínio, mas, apenas, na

experiência de eventos observados anteriormente e na esperança de que o andamento

das coisas continuará a ser o mesmo que tem sido até agora, o que, convenhamos, não

está efetivamente demonstrado. Logo, se quisermos ser rigorosos, teremos que admitir

que, a inferência causal ou indução não é fruto de um elaborado raciocínio lógico, mas é

originada pelo hábito resultante de nossa experiência com as repetições que se

manifestaram no passado. O que nos faz acreditar que estamos lidando com questões

de fato provém apenas de uma crença na continuidade do futuro conforme nossa

experiência passada. Hume argumenta que se quisermos respeitar às regras da lógica –

conheceremos algumas delas na Unidade 3 -, mesmo partindo de um grande número de

observações repetidas de um determinado fenômeno, nada nos autoriza a pressupor com

plena certeza, a reprodução do mesmo evento amanhã. Este é o conhecido problema

humeano da indução, a partir do qual não haveria possibilidade de defesa para nossas

inferências indutivas. Tal questão conserva-se, ainda hoje, como a base dos argumentos

de alguns céticos.

Foto 7: David Hume

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Como você pôde ver até aqui meu/minha aprendiz de cientista, o raciocínio indutivo

consiste na generalização de uma hipotética lei com base na regularidade de fatos

observados no passado, e agindo assim, assumimos que a natureza se manifesta por

meio de regularidades. Entretanto, trata-se de um processo em aberto, uma vez que o

conjunto de casos que confirmam determinada teoria será sempre de caráter provisório,

e isto se deve a dois motivos. O primeiro motivo é que não podemos afastar a hipótese

de nos depararmos com novos casos que contradigam a evidência fornecida pelos

casos anteriormente observados, o que, por si só, refutaria a teoria. O segundo motivo

é o fato de não podermos garantir que os eventos futuros comportem-se tal como

foram observados no passado. Desta forma temos duas objeções contra o processo

de inferência indutiva. A primeira delas é que na maioria das pesquisas científicas é

impossível a observação de todos os casos particulares. Logo, até que ponto uma lei

geral, universal, pode ser alcançada pela indução de um número finito de observações?

Quais seriam os parâmetros para definir a quantidade suficiente de casos observados

para a generalização de uma hipótese? Isso é possível? A segunda objeção é o

pressuposto da regularidade da natureza. Podemos afirmar com segurança a existência

futura de repetição dos eventos? Essa afirmação está fundamentada em algum tipo de

necessidade lógica?

A imperfeição da ciência não é novidade. Em seu nascimento, ou seja, ainda na

modernidade, seus alicerces já eram criticados, como no caso de David Hume. Todavia,

se parássemos por aqui muito provavelmente não estaríamos sendo nada justos com a

ciência. No já comentado livro de Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios: a

ciência vista como uma vela no escuro, o autor nos apresenta mais uma calorosa defesa

desta magnífica maneira de pensar o mundo. Sua maneira de escrever é tão elegante

que opto por citá-lo na íntegra nos parágrafos abaixo. Veja que elucidativo (SAGAN,

1997, p.40-41):

Há muita coisa que a ciência não compreende, muitos mistérios que ainda devem ser resolvidos. Num universo com dezenas de bilhões de anos-luz de extensão e uns 10 ou 15 bilhões de anos de idade, talvez seja assim sempre. Tropeçamos constantemente em surpresas. Entretanto, para alguns escritores religiosos e da nova era, os cientistas acreditam que “só existe aquilo que descobrem”. Os cientistas podem rejeitar revelações místicas para as quais não há outra evidência senão o testemunho de

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alguém, mas dificilmente acreditam que seu conhecimento da natureza seja completo. A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos. Nesse aspecto, como em muitos outros, ela se parece com a democracia. A ciência, por si mesma, não pode defender linhas de ação humana, mas certamente pode iluminar as possíveis consequências de linhas alternativas de ação. O método científico de pensar é ao mesmo tempo imaginativo e disciplinado. Isso é fundamental para o seu sucesso. A ciência nos convida a acolher os fatos, mesmo quando eles não se ajustam às nossas preconcepções. Aconselha-nos a guardar hipóteses alternativas em nossas mentes, para ver qual se adapta melhor à realidade. Impõe-nos um equilíbrio delicado entre uma abertura sem barreiras para ideias novas, por mais heréticas que sejam, e o exame cético mais rigoroso de tudo – das novas ideias e do conhecimento estabelecido. Esse tipo de pensamento é também uma ferramenta essencial para a democracia numa era de mudanças. Uma das razões para seu sucesso é que a ciência tem um mecanismo de correção de erros embutido em seu próprio âmago. Alguns talvez considerem essa caracterização demasiado ampla, mas para mim, toda vez que fazemos autocrítica, toda vez que estamos nossas ideias no mundo exterior, estamos fazendo ciência. Quando domos indulgentes conosco mesmos e pouco críticos, quando confundimos esperanças e fatos, escorregamos para a pseudociência e a superstição. Toda vez que um artigo científico apresenta dados, eles vêm acompanhados por uma margem de erro – um lembrete silencioso, mas insistente, de que nenhum conhecimento é completo ou perfeito. É uma calibração de nosso grau de confiança naquilo que pensamos conhecer. Se as margens de erro são pequenas, a acuidade de nosso conhecimento empírico é elevada; se são grandes, então é também enorme a incerteza de nosso conhecimento. Exceto na matemática pura - e, na verdade, nem mesmo nesse caso -, não há certezas no conhecimento.

Quando Sagan fala de mecanismo de correção de erros, faz referência aos cálculos

estatísticos que devem acompanhar todo e qualquer trabalho científico de caráter

quantitativo. A estatística faz uso de cálculos matemáticos e se dedica à coleta, análise

e interpretação de dados que visam determinar as probabilidades dos fenômenos

estudados no presente voltarem a ocorrer no futuro. A estatística baseia-se na medição

do erro que há entre a estimativa de quanto uma amostra representa adequadamente a

população da qual foi extraída. É o erro amostral que determina a qualidade da

observação e do delineamento experimental, e este também é um dos inúmeros critérios

que diferenciam pesquisas científicas de alta qualidade, daquelas detentoras de pobres

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predicados. Por convenção, a probabilidade de um evento é definida como um número

entre zero e um, sendo um o equivalente a 100%, o que, como vimos na crítica feita à

indução, é virtualmente impossível de ser atingido. Quanto a isso, mais uma vez Sagan

colabora conosco (SAGAN, 1997, p.42):

Os seres humanos podem ansiar pela certeza absoluta; podem aspirar a alcança-la; podem fingir, como fazem os partidários de certas religiões, que a atingiram. Mas a história da ciência – de longe o mais bem sucedido conhecimento acessível aos humanos – ensina que o máximo que podemos esperar é um aperfeiçoamento sucessivo de nosso entendimento, um aprendizado por meio de nossos erros, uma abordagem assintomática do universo, mas com a condição de que a certeza absoluta sempre nos escapará.

Método científico: a concepção tradicional e a concepção de Karl Popper

Nosso intuito agora é levá-lo (a) a conhecer outras ideias de bastante relevância para

todos aqueles que almejam compreender o significado e os limites daquilo que

chamamos ciência, e a apresentação de Karl Popper é de fundamental importância para

que sejamos bem sucedidos nessa nossa empreitada, uma vez que Popper é tido por

muitos como o maior filósofo da ciência que já existiu, e provavelmente um dos maiores

filósofos, em termos gerais, do século XX, senão o maior (MAGGE, 2001).

Foto 8: Karl Popper

O ganhador do prêmio Nobel de medicina, Sir Peter Medawar, afirmou o seguinte em um

programa da BBC, em 28 de Julho de 1972: “Penso que Popper é, sem duvida, o maior

filósofo da ciência que já existiu”. Medawar não é o único que pensa desta maneira, uma

vez que outros nobelistas já se pronunciaram publicamente sobre esta questão, como

Jacques Monod e Sir John Eccles. Este último escreveu em seu livro Facing Reality de

1970: “... Minha vida cientifica deve tanto a minha conversão, se assim posso denominá-

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la, abraçando os ensinamentos de Popper, acerca da conduta da investigação cientifica...

que me empenhei em seguir Popper na formulação e na investigação de problemas

fundamentais da neurobiologia.”. Popper e Eccles ficaram tão próximos que até

escreveram um livro marcante conjuntamente, O Eu e Seu Cérebro (POPPER &

ECCLES, 1991). Eccles, de fato, chega a aconselhar seus colegas no sentido de que

“Leiam e meditem acerca do que Popper escreve a propósito de filosofia da ciência,

adotando suas ideias como base de operação na atividade cientifica”.

Popper é um ardoroso defensor da filosofia e afirma que ela é uma atividade necessária

porque todos nós temos pressupostos, e alguns deles são de cunho filosófico. Nossas

ações são pautadas neles, muito embora alguns sejam falsos, e até mesmo perniciosos.

Sendo assim, seria prudente que passássemos a examinar criticamente nossos

pressupostos, ou seja, analisá-los por intermédio e apoio do método filosófico. Isso,

segundo Popper, além de intelectualmente importante é moralmente necessário. Partindo

desse princípio, fica evidente que para Karl Popper a filosofia é algo que deve estar a

serviço da vida. Não pode ser relegada a uma mera atividade acadêmica (MAGEE, 1973,

p.17).

Se você se recorda, no início deste texto versamos sobre como a ciência esmera-se na

descoberta de leis que regem o universo. Todavia, acredito que neste momento seja

prudente versarmos um pouco mais detalhadamente sobre esta questão. Quem nos

auxiliará nesta empreitada é o filósofo Brian Magge, de onde retirei os parágrafos abaixo

(MAGEE, 1973, p.17):

A palavra “lei” é ambígua e qualquer pessoa que fale de “violação” de uma lei natural ou científica confunde os dois modos principais de empregar aquela palavra. Uma lei social prescreve o que podemos e o que não podemos fazer. Ela pode ser violada; em verdade, se não pudesse, ela seria desnecessária: a sociedade não formula normas para impedir que uma pessoa esteja simultaneamente em dois lugares diversos. A lei da natureza, por outro lado, não é prescritiva, mas descritiva (MAGEE, 1973, p.20). A formulação de leis naturais tem sido encarada desde há muito, pelo menos desde Newton, como uma das tarefas mais importantes da ciência. Todavia, a descrição sistemática do procedimento a adotar, na busca das leis só foi feita por Francis Bacon. Embora, suas ideias tenham sido ampliadas, depuradas, hajam sido restringidas e tornadas mais

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sofisticadas, alguma coisa da tradição que Bacon inaugurou foi aceita pela quase totalidade das pessoas de índole científica, do século XVII ao século XX. Em linhas genéricas, a situação é a seguinte. O cientista principia efetuando alguns experimentos, cujo objetivo é o de permitir observações cuidadosamente controladas e meticulosamente medidas – em algum ponto da fronteira entre nosso conhecimento e nossa ignorância. O cientista registra sistematicamente seus achados, divulga-os, talvez, e, com o correr do tempo, ele e outros pesquisadores que trabalham na mesma área chegam a acumular uma porção de dados comuns e dignos de crédito. Crescendo o número de dados, traços de ordem geral principiam a emergir e os pesquisadores começam a formular hipóteses gerais – enunciados de caráter legalóide que se ajustam a todos os fatos conhecidos e explicam de que modo eles se relacionam casualmente entre si. O cientista procura confirmar sua hipótese, encontrando evidência que lhe de apoio. Bem sucedido nesta tentativa de verificação, o cientista descobre mais uma lei científica – lei que lhe permitirá desvendar mais alguns segredos da natureza. Trabalha-se, então, nessa nova linha: a descoberta é aplicada em todos os casos que, segundo se imagina, permitam coleta de informações adicionais. O conhecimento científico amplia-se dessa maneira, e a fronteira de nossa ignorância é levada para adiante. O processo se repete num ponto da fronteira nova.

Como vimos, o método que permite que toda esta sequência descrita por Magee seja

realizada é o método indutivo. Durante muito tempo este procedimento foi considerado o

critério de demarcação entre ciência e não ciência. Vimos também que Hume lançou

algumas dúvidas sobre esta questão.

[...] E não pode ser estabelecido com base em argumentos lógicos, pois que do fato de futuros passados se terem assemelhado a passados, não deflui que todos os futuros venham a assemelhar-se aos passados futuros (MAGEE, 1973, p.22-23).

Embora não existam meios de ratificar a validade dos procedimentos indutivos, devido à

constituição psicológica dos homens, não lhes resta alternativa senão a de ponderar em

termos de tais procedimentos indutivos. No cotidiano, esses procedimentos concedem-

nos alguma legitimidade de ordem prática. Na ciência, também. Todavia, não devemos

asseverar de forma contundente que falte fundamentação racional para as leis científicas,

ou mesmo que elas não se apoiem na lógica e na experiência. Mas, também, não nos é

permitido afirmar que a ciência é detentora de metodologias blindadas. Leia abaixo:

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Precisamos admitir que, estritamente falando, as leis científicas não podem ser demonstradas e, portanto, que não são certas. Ainda assim, cada caso confirmador eleva o seu grau de probabilidade; além disso, ao conjunto do passado conhecido, cada momento de permanência do mundo acrescenta incontáveis bilhões de exemplos confirmadores – e nenhum contraexemplo. Assim, embora não certas, as leis científicas são prováveis, no mais alto grau que é possível conceber; e, na prática, senão em teoria, isso não se distingue da certeza. [...] Quase todos os cientistas, quando refletem acerca dos fundamentos lógicos do que estão fazendo, aceitam essa maneira de ver. Para eles, a coisa verdadeiramente importante é que a ciência desempenha seu papel – opera, produz uma corrente infindável de resultados práticos. Assim, em vez de continuarem a lutar com um problema lógico aparentemente insolúvel, preferem prosseguir com a atividade científica e alcançar maior número de resultados. Não obstante, os cientistas mais inclinados à reflexão filosófica têm-se sentido profundamente perturbados. Para eles e para os filósofos, de modo geral, a indução se tem apresentado como um problema não resolvido e relativo aos fundamentos mesmos do conhecimento humano e, até que possa ser solucionado, o conjunto da ciência, conquanto intrinsecamente coerente e extrinsecamente útil, deve ser visto como algo que flutua no ar, não ligado a terra firme (MAGEE, 1973, p.23-24).

Popper tenta apaziguar um pouco este aparente mal estar no momento em que aponta

para a assimetria lógica existente entre a verificação e o falseamento, sendo este último

um importantíssimo conceito nos legado por Popper. Veja que bonito e elegante é este

pensamento:

Embora não existam números de enunciados de observação relatando a observação de cisnes brancos que permita derivar o enunciado universal “Todos os cisnes são brancos”, um só enunciado de observação relatando uma única observação de cisne preto, é suficiente para permitir a dedução lógica do enunciado “Nem todos os cisnes são brancos”. Neste importante sentido lógico, as generalizações empíricas, embora não verificáveis, são falseáveis. Isto significa serem as leis suscetíveis de testes, ainda que não sejam demonstráveis: podem as leis científicas ser submetidas a teste mediante sistemático esforço dirigido para a sua refutação (MAGEE, 1973, p.24-25).

Veja como o raciocínio é simples. Se um só cisne preto foi observado, então não se pode

afirmar que todos os cisnes sejam brancos. E isso é uma certeza! No universo da lógica,

se consideramos a relação entre enunciados, uma lei científica poderá ser

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conclusivamente falseada, embora não possa ser conclusivamente verificada

(MAGEE, 1973, p.25).

Brain Magee, em seu livro sobre Popper, nos concede um exemplo muito concreto.

Fomos ensinados que: “A água ferve a 100 graus centígrados” e que isso se reflete em

uma lei científica. Pelo que vimos até aqui, nenhum número de casos confirmadores

demonstrará categoricamente a veracidade dessa afirmação, mas ainda poderemos

esmiuçar a lei, submetendo-a a testes, e tentando encontrar circunstancias em que ela

deixe de vigorar. Descobriremos, então, que a água não ferve a 100 graus centígrados

quando está contida em recipientes fechados, e aquilo que supúnhamos ser uma lei

científica universal, imediatamente deixa de sê-lo. Note que, ao tentar falsear a lei,

ampliamos nosso conhecimento e melhorarmos o enunciado da mesma. Agora sabemos

que: “A água ferve a 100 graus centígrados em recipientes abertos”. Agora, o desafio é

refutar esse novo enunciado. Com mais um pouco de reflexão, a refutação da lei pode

ser descoberta a grandes altitudes, e uma vez que o cientista tenha se esmerado para

falsear aquilo que se acreditava ser verdade, um novo conhecimento se abre e um novo

enunciado científico, desta vez, ainda mais restrito, é produzido: “A água ferve a 100

graus centígrados, em recipientes abertos, sob pressão atmosférica igual à que se

constata ao nível do mar”. E as tentativas de falsear os enunciados seguiriam

ininterruptamente. Agindo desta maneira estamos delimitando com muito maior precisão

o nosso conhecimento científico a respeito do ponto de ebulição da água (MAGEE, 1973,

p.26).

Perceba que, de forma bastante resumida, é desta maneira que Popper acredita que o

conhecimento progride, pois, se nos esmerássemos na verificação dos casos que

confirmassem o enunciado original da lei científica, mesmo que reuníssemos trilhões de

exemplos confirmadores, ainda assim o conhecimento não progrediria e não poderíamos

afirmar categoricamente que tínhamos atingido a verdade. Você está compreendendo a

questão caro (a) aluno (a)?

O aspecto mais negativo, todavia, está em que, ao acumular evidência favorável, não se lança dúvida sobre o enunciado original, de modo que não surgem motivos para substituí-lo por outro, e o conhecimento fica estagnado naquele estágio. Nosso conhecimento não teria progredido como progrediu se, ao lado dos casos confirmadores, não tivessem, por

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acidente, surgido alguns contraexemplos. Acidentes desse tipo são o que de melhor nos pode acontecer. É em tal sentido que muitas das famosas descobertas científicas foram “acidentais”. Porque, em realidade, o aumento do conhecimento se deve aos problemas e as nossas tentativas de resolvê-los. Essas tentativas requerem a colocação de teorias que, almejando resolver a dificuldade, precisam ir para além do conhecimento existente e, portanto, exigem esforço de imaginação. Quanto mais ousada a teoria, tanto mais ela nos diz, e mais atrevido o ato imaginativo. Todavia, simultaneamente, torna-se maior a probabilidade de ser falso o que a teoria afirma e é preciso submetê-la a testes rigorosos para verificá-lo. A maior parte das grandes revoluções científicas deveu-se a teorias temerárias, que exigiram imaginação criativa, profundidade de visão e um pensamento desejoso de aventurar-se em regiões inseguras (MAGEE, 1973, p.28).

Note, somente em outros campos do saber, como na religião, na mitologia e no senso

comum podemos acreditar na obtenção da certeza dos enunciados, pois para a ciência,

todo e qualquer conhecimento é de natureza provisória. Sendo assim, é

contraproducente reproduzir o que muitos cientistas e filósofos tentaram fazer ao longo

da história, ou seja, trabalhar com vistas a justificar uma crença particular em certa teoria.

Segundo Popper, o que é possível fazer é explicar em detalhes a nossa preferência por

uma teoria, em detrimento de outra.

Nos exemplos sucessivos acerca da ebulição da água, nunca nos foi possível mostrar que a teoria em vigor era verdadeira, mas sempre nos foi possível esclarecer os motivos que a tornaram preferível, suplantando a teoria anterior. Esta é a situação característica em qualquer circunstância, a qualquer tempo. Inteiramente errônea é a concepção popular de que a ciência engloba corpos de fatos estabelecidos. Nada na ciência está permanentemente estabelecido, coisa alguma, nela, é inalterável. Em verdade, a ciência está claramente em constante modificação, e esta não se processa por simples acréscimo de novas certezas. Se agirmos racionalmente, baseamos nossas decisões e expectativas no que de melhor sabemos, até onde me é dado saber. Admitimos a verdade dos nossos conhecimentos para efeitos práticos, pois eles são a menos insegura base disponível. Sem embargo, não se pode perder de vista o fato de que a experiência pode atestar, a qualquer momento, que aqueles conhecimentos são errôneos e necessitam de revisão (MAGEE, 1973, p.28). A física newtoniana foi a mais importante e bem sucedida teoria científica já formulada e acolhida. Tudo o que ocorria no mundo observável parecia confirmá-la. Todavia, Albert Einstein colocou um fim nesta crença, pois suas descobertas inviabilizaram a continuidade da física newtoniana como sendo um baluarte intransponível. Contudo, se a teoria de Newton

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não é um corpo de verdades, inerente ao mundo, derivado pelo homem da observação do real, como chegou a nascer? A resposta é: nasceu de Newton. Foi uma hipótese levantada pelo homem, e que se ajustava muito bem a todos os fatos conhecido até aquela época (MAGEE, 1973, p.31).

Qual critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência?

A concepção tradicional afirma que o que distingue a ciência da não ciência é a utilização

do método indutivo. Mas, os limites da indução inviabilizam conceder a ela o estatuto e a

primazia para delimitar esta demarcação. Sendo assim, precisamos de um critério. Qual

será? Popper afirma que qualquer tolo pode oferecer um enorme número de previsões

que tenham probabilidade igual a 1, ou seja, 100%. Isso pelo fato do conteúdo informativo

ser pobre. Pense na afirmação: Choverá! Ora, um dia, choverá em algum lugar. É

praticamente impossível falsear essa afirmação. Todavia, ao restringir o enunciado

podemos torná-lo falseável, como no exemplo: Choverá em São Vicente, no bairro do

Bitarú, na próxima quinta feira, no período da manhã. Agora passamos a ter alguma

informação útil, pois, quanto mais específico for o enunciado, mais provável será que ele

se mostre equivocado, mas, ao mesmo tempo, mais informativo e útil ele será, caso seja

verdadeiro (MAGEE, 1973, p.31). Pense bem, existe uma relação inversamente

proporcional que precisa ser entendida, pois, quanto maior o conteúdo informativo de um

enunciado, menor será a probabilidade dele se mostrar verdadeiro, pois quanto mais

informação ele contiver, maior será o número de maneiras segundo as quais ele poderá

se revelar falso. O que a ciência persegue são exatamente esses enunciados de alto

conteúdo informativo e de baixa probabilidade. Por serem altamente falseáveis,

esses enunciados são muito suscetíveis de serem submetidos a teste. Sendo assim, um

enunciado verdadeiro, com alto conteúdo informativo, aproxima-se muito mais de uma

completa, peculiar e detalhada descrição do mundo.

Popper sempre afirmou que a nossa ignorância tende a crescer com o nosso saber. Logo,

um iletrado, provavelmente tem muito menos duvidas do que um doutor em filosofia ou

neurobiologia ou sociologia, por exemplo (MAGEE, 1973, p.40). Para esclarecer um

pouco mais este problema, farei uso de minhas próprias dúvidas, advindas da conclusão

de meu trabalho de doutorado. Nele, investigamos, eu e meus colaboradores, os

possíveis efeitos de práticas de atenção plena na capacidade de cuidadores familiares

de pacientes com doenças neurodegenerativas lidar com o estresse. Sabemos de longa

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data que o envelhecimento da população mundial está relacionado com uma maior

incidência de doenças crônico-degenerativas causadoras de demência, entre as quais se

destaca o Alzheimer. Os cuidadores em geral costumam emergir do núcleo familiar, e a

sobrecarga física e psíquica imposta a eles, não raro os conduz a uma má qualidade de

vida, podendo gerar muitas doenças como infarto agudo do miocárdio, além de elevados

níveis de estresse, exclusão social, depressão, isolamento afetivo, corrosão dos

relacionamentos pessoais, perda da perspectiva de vida, distúrbios do sono e abusos de

substâncias psicotrópicas. Por esses motivos, a Organização Mundial da Saúde tem

preconizado a importância do cuidador familiar receber orientações e apoio já nos

primeiros momentos deste enfrentamento. Dentre as formas de intervenção passíveis de

serem implementadas com esta população podemos citar as práticas contemplativas.

Sendo assim, propusemos algumas delas a um grupo de voluntários e aferimos por meio

de questionários e escalas comportamentais os níveis de depressão, ansiedade,

estresse, qualidade de vida, autocompaixão e vitalidade. Também foram realizados

testes bioquímicos com vistas a detectar alterações dos marcadores de estresse, como

o hormônio cortisol. Os resultados foram altamente positivos e o trabalho foi aceito para

a publicação em uma importante revista internacional (DANUCALOV et al., 2013 ). Veja

como concluímos a pesquisa:

A partir da análise dos resultados, é possível concluir que a prática do protocolo proposto

neste trabalho:

• Repercutiu em diminuição dos níveis de estresse e menores escores para ansiedade e

depressão.

• Indicou aumentos na qualidade de vida, na vitalidade, na autocompaixão e na atenção

aos acontecimentos cotidianos.

• Reduziu as concentrações basais de cortisol salivar.

• Gerou benéficas alterações psicofisiológicas em cuidadores familiares.

De fato, os resultados foram tão auspiciosos que a pesquisa foi finalista do Prêmio Saúde

da Editora Abril na categoria saúde mental e emocional em 2013. Contudo, vamos tentar

clarificar as dúvidas que me acometem neste momento. As conclusões foram feitas com

base no protocolo de práticas seguido pelos voluntários do projeto. Entretanto, muitos

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dos voluntários da pesquisa chegavam mais cedo para as práticas e ficavam sentados

nos tatames da sala de prática dividindo suas experiências, falando sobre suas questões

particulares, suas dores, seus medos e suas preocupações. Não poderia, parte dos

resultados positivos obtidos nesta pesquisa, ser fruto dessa dinâmica de grupos informal

que se construiu naturalmente durante o desenrolar desta pesquisa? Quanto dos

benefícios medidos vem da prática do protocolo em si e quanto vem dos encontros e dos

diálogos de apoio mútuo que se teceram durante o tempo da referida pesquisa? Minha

presença teve algum impacto? Se fosse outro pesquisador, talvez um pouco mais frio e

distante do que eu, os resultados teriam sido os mesmos? Pense nisso com carinho e

parcimônia caro/a aluno (a).

Caso você queira fazer ciência da maneira como ela deve ser feita, sempre será assolado

por dúvidas. Quanto a isso o neurobiólogo John Eccles já afirmava que a crença

equivocada de que a ciência patrocina a certeza e as explicações categóricas, vem

acompanhada da ideia de que é grave crime divulgar hipóteses que possam vir a ser

falseadas no futuro. Por este motivo, alguns cientistas relutaram muitas vezes em

reconhecer a refutação de uma hipótese, e investiram uma enorme quantidade de

energia e tempo na tentativa de defenderem o que não tinha defesa alguma. Acompanhe

abaixo Magee citando Popper:

Segundo Popper, o falseamento total ou parcial é o destino que podemos antecipar para todas as hipóteses. Deveríamos, inclusive, alegrar-nos com o falseamento de uma hipótese que acalentamos como um filho intelectual. Dessa forma, livramo-nos de temores e remorsos, tornando-se a ciência uma aventura excitante em que a imaginação e a intuição conduzem a desenvolvimentos conceituais que transcendem, em generalidade e alcance, a evidência experimental. A concretização dessas visões imaginativas em hipóteses abre caminho para o mais rigoroso teste experimental, antecipando-se sempre que a hipótese possa ser contestada, para ser substituída total ou parcialmente por outra hipótese de maior poder explicativo (MAGEE, 1973, p.40-41).

Em seu cativante e provocativo livro Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Sergio

Navega nos convida a prestar mais atenção a algumas afirmações de cunho

pseudocientíficas que nos tem sido ofertadas por “gurus” do comportamento humano,

muitos deles atuantes no mundo corporativo, e franco autores e/ou propagadores das

literaturas de autoajuda. Veja algumas delas:

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O que você irá ler nas próximas páginas resulta de estudos e pesquisas fundamentados na mais moderna tecnologia de aprendizagem e comunicação conectada com os ensinamentos de veneráveis tradições (CARMELO, 2000, p.15).

Todavia, o autor se esquece de apresentar de forma clara e inequívoca as referências

científicas de onde emergem suas afirmações. Esta atitude fere gravemente uma das

regras que devem ser sempre respeitadas quando nos arvoramos o direito de sermos os

porta vozes do campo científico, que é agir com total transparência com relação à

explicitação das fontes originais de onde brotaram os argumentos. Se negar a fazer isso

indica ou má fé, ou ingenuidade e ignorância quanto a tais regras vigentes no campo

científico.

Recentes estudos no campo da psicologia demonstram que precisamos de 21 repetições,

no mínimo, para que um hábito se forme (RIBEIRO apud NAVEGA, 2005, p.226).

Neste exemplo também temos acesso aos “recentes estudos”, e poderíamos contra

argumentar esta hipótese altamente falaciosa perguntando ao seu autor se ele teve que

enfiar seu dedo vinte e uma vezes no interior de uma tomada elétrica para, somente

depois de ter levado vinte e um choques, se habituar a não fazê-lo novamente.

Argumento passível de falseamento. Os resultados que, provavelmente obteríamos com

nosso autor, e com qualquer outro corajoso voluntário, me parecem bastante óbvios. O

que você acha caro (a) aluno (a)?

Em comunicação, há um segredo que poucos sabem: as palavras representam apenas 7% de nosso poder de se comunicar. Além das palavras, que você seleciona no momento em que está falando, você utiliza a voz, em suas diversas tonalidades (modo de falar, timbre, velocidade, volume), e a linguagem corporal. O tom de voz, o modo como você fala, representa 38% do poder da comunicação; e a linguagem corporal representa 55% desse poder (RIBEIRO apud NAVEGA, 2005, p.226).

Desde que me deparei com a afirmação acima, venho tentando imaginar que tipo de

pesquisa poderia ser feita com a tecnologia atual para que chegássemos ao ponto de

poder realizar uma afirmação tão bombástica e de caráter quantitativo, sobre algo tão

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complexo e de caráter qualitativo como é a nossa linguagem. Sinceramente, não

identifico a mínima possibilidade para a concretização de tamanha façanha. Faz-me

lembrar de Kandel e seu Id, Ego e Superego. Não é necessário dizer que o autor não

indica as fontes pesquisadas. Todavia, podemos nos divertir com outros detalhes dessa

pérola da autoajuda. Se esses dados são segredo, como podem ser científicos? Todo e

qualquer conhecimento científico, só o é, pois se tornou público, uma vez que o cientista

tenha submetido sua pesquisa ao crivo de seus pares, para, posteriormente publicá-la

em conceituados periódicos científicos. Acompanhe o que Carl Sagan nos fala sobre

essa interessante dinâmica do campo científico:

Os encontros científicos vivem cheios de disputas. Há colóquios universitários em que o conferencista mal discursou trinta segundos e já se ouvem perguntas e comentários devastadores na plateia. É instrutivo examinar os procedimentos aos quais um relatório escrito é submetido para possível publicação numa revista científica, sendo depois enviado pelo editor a juízes anônimos que tem como tarefa fazer as seguintes perguntas: o autor fez alguma besteira? Existe alguma coisa nesse trabalho que seja suficientemente importante para ser publicada? Quais são as características desse artigo? Os resultados mais importantes foram descobertos por outra pessoa? A argumentação é adequada, ou o artigo deveria ser reavaliado depois que o autor realmente demonstrar aquilo que nesse trabalho, por ora, é ainda especulação? E tudo isso é anônimo: o autor não sabe quem são os críticos. Essa é a expectativa comum na comunidade científica. Por que toleramos tudo isso? Gostamos de ser criticados? Não, nenhum cientista gosta disso. Todo cientista tem um sentimento de propriedade em relação a suas ideias e descobertas. Mesmo assim ninguém responde aos críticos: “Esperem um pouco; essa ideia é realmente boa; gosto muito dela; não lhe faz mal algum; por favor, deixem-na em paz”. Em vez disso, a regra dura, mas justa é que, se não funcionam, as ideias devem ser descartadas. Não se devem desperdiçar neurônios com o que não funciona. Eles devem ser aplicados em novas ideias que expliquem melhor os dados. O físico britânico Michael Faraday alertou contra essa tentação poderosa: “de procurar as evidências e aparências que estão a favor de nossos desejos, e desconsiderar as que lhe fazem oposição [...]. Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias, assim como resistimos com desgosto ao que se opõe a nós, enquanto todo o preceito de bom senso exige exatamente o oposto”. A crítica válida presta um favor ao cientista (SAGAN, 1997, p.46). Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se não praticamos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos – e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas,

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um mundo de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho (SAGAN, 1997, p.53).

Logo, qual seria critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência? A

resposta que Popper nos concede para a questão é a seguinte: A refutabilidade é o

critério de demarcação entre a ciência e a pseudociência. E ele ainda nos alerta que:

[...] se todos os possíveis estados de coisas se acomodarem a uma teoria, não haverá estado de coisas ou observação ou resultado experimental que possa ser oferecido como evidência confirmadora da teoria. Não haverá diferença observável entre o ela ser verdadeira e o ela ser falsa. Nesses termos, a teoria não veicula informação científica. Por outro lado, somente se houver alguma observação concebível capaz de refutá-la, será a teoria suscetível de teste. E somente se for suscetível de teste será científica (MAGEE, 1973, p.45).

Uma boa brincadeira que serve como treinamento para desenvolver um pensamento

científico e criterioso é tentar “falsear” alguns provérbios ou frases populares. Vamos

tentar? Pense na seguinte frase;

Não faça para os outros aquilo que você não gostaria que fizessem com você.

Ora, minha mãe não ficaria muito feliz se eu lhe desse de presente uma viagem de barco

pelas ilhas Mentawai, na Indonésia, para surfar o dia inteiro em ondas perigosas e que

costumam quebrar sobre afiadíssimas plataformas de corais vivos. Contudo, ela faria isso

por mim, pois sabe que seu filho adora surfar, e esse é um dos melhores lugares do

mundo para fazer isso.

Popper viveu em um período onde importantes teorias estavam sendo erigidas, como as

de Freud e de Adler. Todavia, nenhuma delas era passível de refutações, pois não

permitiam a construção e aplicação de nenhum experimento científico que pudesse

almejar refutá-las. Não havia como inventar estratégias experimentais que pudessem

contraditá-las. Para seus adeptos, as teorias freudiana e/ou adleriana eram capazes de

explicar tudo o que ocorria no âmbito da vida psíquica daqueles que eram submetidos a

elas. Sendo assim, Popper se convenceu de que, a possibilidade que tanto empolgava

seus adeptos, ou seja, a capacidade de explicar tudo, era justamente o que nelas havia

de mais censurável (MAGEE, 1973, p.46). Neste momento o marxismo também gozava

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de grande apelo e popularidade. Entretanto, diferentemente das teorias psicanalíticas,

dele podiam-se deduzir uma grande quantidade de previsões falseáveis, que já se

haviam mostrado falsas. Porém, os marxistas - como acontece até os dias de hoje, -

renunciavam a aceitar as refutações e, de forma incessante empenhavam-se na

reformulação da teoria, com vistas a adequá-la novamente às suas crenças mais

profundas, afastando assim as refutações. Leia abaixo o que Magee nos conta:

Para eles, na prática, tal como se dava com os psicanalistas na teoria, as ideias tinham incontestável certeza de uma fé religiosa e a insistência em que revestissem caráter científico era, embora sincera, improcedente (MAGEE, 1973, p.46).

Popper acredita que o segredo do amplo apelo psicológico exercido por teorias como

essas reside exatamente no fato de tudo explicarem, pois isso confere ao seu defensor

um aprazível sentimento de possessão intelectual e deflagra a segura percepção de que

o mundo é organizado e passível de conhecimento concreto. A aceitação de uma dessas

teorias exerce, segundo nos conta Popper, o efeito de uma revelação intelectual não

disponível aos não iniciados, algo similar a uma conversão religiosa. Acompanhe:

[...] Uma vez abertos os olhos podia-se ver exemplos confirmadores em toda parte: o mundo estava cheio de verificações da teoria. Qualquer coisa que acontecesse vinha a confirmar isso. A verdade contida nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente aqueles que não queriam vê-la. Recusavam-se a isso para não entrar em conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não analisadas, que precisavam urgentemente de tratamento (POPPER, 1982, p.64).

Marxistas e psicanalistas viam evidências confirmadoras de suas teorias em qualquer

lugar que pousassem seus olhares. Os analistas freudianos, por exemplo, asseveravam

que suas teorias eram, de forma bastante recorrente, confirmadas por “observações

clínicas”, ao que Popper nos relata o seguinte:

Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos de sua teoria do sentimento, de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente chocado,

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perguntei como podia ter tanta certeza. “Porque já tive mil experiências desse tipo”, - respondeu; ao que não pude deixar de retrucar - “com este novo caso, o número passará então a mil e um” (POPPER, 1982, p.65).

Talvez, caro/a aluno (a), você possa achar Popper um chato, por acreditar que ele é um

sujeito que não valoriza nada que não seja científico e passível de falseamento. Todavia,

Popper nunca alegou que essas teorias fossem destituídas de importância, absurdas ou

sem valor. Acredita francamente que as teorias propostas por Freud e Adler encerram

sugestões psicológicas interessantíssimas, ainda que não testáveis, e que, no futuro,

podem vir a desempenhar papel proeminente numa ciência psicológica capaz de ser

submetida a testes rigorosos (MAGEE, 1973, p.48). Todavia, as “observações clínicas”

que os analistas ingenuamente acreditam confirmar a teoria, não podem, segundo ele,

ser mais dignas de consideração do que as confirmações diárias que os astrólogos

encontram nas atividades a que se dedicam (MAGEE, 1973, p.47).

As revoluções de Thomas Khun

Assim como o que foi falado de Popper não dá conta da riqueza de seu pensamento, a

filosofia de Thomas Khun (1922-1996) também demandaria muito mais tempo e espaço

do que dispomos neste momento. Todavia, algumas de suas ideias são tão basilares que

não podem ficar de fora de nenhum texto que pretenda apresentar resumidamente a

história do pensamento científico. Sua noção de paradigma é capital, ainda que seja

largamente utilizada de maneira equivocada. O ponto fundamental da proposta de Khun

é que, a aceitação das teorias por parte dos cientistas é muito mais importante do que

até então fora considerado. Outro ponto relevante para Khun diz respeito ao progresso

da ciência, que, segundo ele, ocorre quando a comunidade científica delibera abandonar

uma forma de fazer investigação científica, com seus pressupostos teóricos e

ontológicos, em detrimento de outra que se mostra mais adequada. Isso denota uma

revolução científica, e as revoluções científicas tendem a ocorrer de maneira lenta, pois

sua gestação é ainda mais demorada. Em sua obra A Estrutura das Revoluções

Científicas (KHUN, 2009), Khun afirma que a ciência alterna períodos de normalidade

e anormalidade. Os períodos de normalidade são caracterizados pelo predomínio de

uma única teoria científica, não existindo, neste momento, aquilo que possa ser chamado

de teorias rivais. Elas podem até mesmo existir, mas não são acolhidas pelos cientistas.

Note que neste momento vigora um paradigma, e este é hegemônico na comunidade dos

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cientistas, onde seus agentes estão de acordo quanto ao modelo e às metodologias

utilizadas nas pesquisas. Mas veja bem, esse modelo de pesquisa é muito mais

elaborado e transcende sobremaneira as limitações de uma única técnica, pois

subentende uma concepção de mundo; acordos sobre quais objetos devem ter a primazia

de serem pesquisados; quais objetos “existem”; e, por fim, quais métodos devem ser

utilizados nas pesquisas. A isso Khun denomina paradigma:

Com a escolha do termo [paradigma] pretendo sugerir que alguns exemplos aceitos na prática científica real — exemplos que incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação — proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. São essas tradições que o historiador descreve com rubricas como: “astronomia ptolomaica” (ou “copernicana”); “dinâmica aristotélica” (ou “newtoniana”), “óptica corpuscular” (ou “óptica ondulatória”), e assim por diante. O estudo dos paradigmas, muitos dos quais bem mais especializados do que os indicadores acima, é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu campo de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prática subsequente raramente irá provocar desacordo declarado sobre pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada (KUHN, 2009, p. 21).

Um paradigma sempre é encontrado em períodos onde a ciência é tida como “normal”, o

que pode ser entendido como um momento de acordo tácito e aceitação plena por parte

dos cientistas quanto à teoria que orienta seus trabalhos, inclusive com relação aos

pontos da teoria que são considerados anômalos. De forma resumida, o que temos é o

seguinte:

Período de pré-ciência: caracterizado pela coexistência pacífica de vários paradigmas,

sendo todos eles detentores de estatutos equivalentes quanto à primazia da suposta

obtenção da verdade. Neste período não existe crise, pois todos os paradigmas convivem

bem. Khun afirma que neste momento não existe ciência estabelecida.

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Período de ciência normal: este é um período onde predomina somente um paradigma,

ainda que contenha anomalias, o que é comum a toda teoria. Por este motivo, os

cientistas tendem a conduzir suas pesquisas ignorando as anomalias, e com isso, esse

período caracteriza-se por uma alta produtividade.

Período de crise: neste período a quantidade de anomalias é demasiadamente grande

que a continuidade do modelo se torna inexequível. Gradativamente as investigações

científicas começam a falhar quanto à obtenção dos resultados esperados; o paradigma

antigo passa a ser desacreditado e nenhum outro está disponível para substituí-lo, ainda

que existam paradigmas competidores. Depois de certo tempo, os agentes do campo

científico deliberam pelo paradigma que mostra maiores resultados e, quando o número

de cientistas que militam em um determinado paradigma se torna maior que o número de

cientistas dos paradigmas competidores, observaremos uma mudança de paradigma.

Isso afeta de forma drástica a maneira de ver e compreender o universo, o que transforma

radicalmente nossa concepção de mundo, impactando sobremaneira todos os a maioria

dos setores da sociedade.

Foto 9: Thomas Khun

Desta maneira, passamos a um novo modelo de ciência normal, onde agora impera um

novo paradigma. Os cientistas retomam suas pesquisas, ainda que os objetos

pesquisados e os métodos utilizados por eles sejam bastante distintos, pois, segundo

Khun, o paradigma antigo não é mais acolhido, sendo seus métodos e pressupostos

descartados. Note que a proposta explicativa de Khun é de cunho sociológico, pois trata

do caráter histórico da ciência. Por este motivo, sua proposta é mais conhecida e aceita

nas ciências humanas, ainda que valha para as ciências naturais.

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Provavelmente, a maior contribuição de Khun tenha sido o fato de que ele, de certa forma,

“humanizou” o campo científico, no momento em que apresentou algumas peculiaridades

do comportamento humano, como os jogos de poder que podem orientar as atividades

de seus agentes e que determinam resistências e aceitações em seu interior. Com seu

trabalho, Khun retirou, ou ao menos, fragilizou a “aura imaculada” que alguns leigos ou

mesmo alguns de seus agentes teimavam em conceder a ela. Versaremos mais sobre

este intrigante assunto na Unidade 2.

Para saber mais:

Assista a vídeo aula com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-

marcelloarias.com.br

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MÓDULO 4

Últimas considerações

Como nos relata Khun em sua obra, a ciência é uma instituição com idas e vindas, e com

muito mais desacordo entre seus agentes do que possa parecer aos olhos dos não

iniciados. Muitas vezes, um agente deste campo, apesar de militar em seu interior, não

goza de grande legitimidade de seus pares, exatamente pelo fato de propor ideias que

não vigoram dentro do paradigma vigente do período atual. Este parece ser o caso do

Físico, e agora propagador de ideias espirituais da Nova Era, Amit Goswami.

Goswami foi um dos participantes de um filme de 2004 chamado What the Bleep Do We

Know!? ou What the #$*! Do We Know!? - O Que Diabos nós Sabemos? -, que no Brasil

foi lançado com o nome Quem somos nós? A obra não é um documentário e sim uma

obra ficcional. Porém, a forma com que foi produzida dá a entender ao público leigo, que

se trata de um documentário científico sobre neurobiologia, mecânica quântica e

psicologia, ainda que misture conceitos advindos da metafísica, epistemologia,

pensamento mágico e espiritualidade. O filme é repleto de entrevistas com "especialistas"

em ciência e espiritualidade, o que serviu para confundir ainda mais a percepção que a

população tem daquilo que chamamos ciência, como pode ser apreciado em inúmeros

comentários populares sobre esta película, bastando, para tanto, que você realize uma

pequena pesquisa na internet. O comentário abaixo é um exemplo típico:

Parabéns pela resenha do filme. Finalmente alguém com conhecimento acadêmico e corajoso em expor sua opinião a favor. Considero este filme um dos mais importantes para os dias de hoje. Não interessa se os produtores são desta seita ou daquela seita religiosa ou que um dos entrevistados diz manter contato com seres lemurianos. Muito legal a física quântica estar esclarecendo e provando cientificamente o que os grandes mestres já nos ensinavam a milhares de anos. Parabéns mais uma vez e continue escrevendo.

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Todavia, como não poderia deixar de ser, o filme recebeu e continua recebendo ferozes

críticas de toda a comunidade científica. Físicos, em particular, reclamam que o filme

distorce de forma grosseira o significado de alguns princípios da mecânica quântica. Um

dos críticos da visão propagada pelo filme, e, consequentemente, das ideias de Goswami

é David Albert, professor da disciplina Fundamentos Filosóficos de Física da

Universidade de Columbia. Albert aparece de forma frequente no filme, o os

expectadores tem a clara percepção de que ele apoia as ideias apresentadas no

transcorrer da trama. Contudo, segundo um artigo da revista Popular Science (MONE,

2004), ele ficou bastante descontente com o produto final, e declarou que sua entrevista

foi editada e incorporada ao filme de maneira a deturpar seu posicionamento – que, diga-

se de passagem, é o posicionamento da maioria dos físicos da atualidade - quanto às

questões levantadas pelo filme acerca da relação da consciência com a espiritualidade.

No artigo também é possível apreciar os sentimentos de Albert quanto à sua ingenuidade

após ter sido "pego" pelos cineastas.

No ano de 2006 foi lançada uma versão estendida do filme: What the Bleep!?: Down

the Rabbit Hole - O que bleep!?: caindo no buraco do coelho, e nela é possível apreciar

uma entrevista muito elucidativa com David Albert. Seria bastante importante que você,

aluno (a), visse o filme na íntegra, para depois, retornar a esta parte do livro e reler os

escritos abaixo. Em inúmeras ocasiões tenho feito uso da entrevista de David Albert em

minhas aulas sobre metodologia e filosofia da ciência, pois acredito que Albert consegue

ser muito claro em sua exposição sobre como a ciência deve ser vista e tratada por nós.

Por acreditar e pactuar de sua visão, optei por reproduzi-la na íntegra nas páginas abaixo.

Entrevistador – Então, se puder falar sobre isso - onde o observador se encaixa e a

ligação ou não da consciência na mecânica quântica.

David Albert – Sim. Sim. Algo que acontece na mecânica quântica; uma das inovações

importantes da mecânica quântica é que superamos a fantasia que havia na física até

então sobre a possibilidade de observar algo de modo inteiramente passivo; observar

sem afetar o processo de observar. Seja como for, agora já está bem claro que a

mecânica quântica acabou com isso para sempre. Olhar as coisas envolve interagir com

elas de uma forma cujo efeito não pode ser minimizado por mais delicada que seja sua

tecnologia e por mais dinheiro que você gaste.

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Entrevistador – Você estava dizendo que concluíram que o observador não tinha

nenhum efeito?

David Albert – Não, não... O processo físico de fazer uma medição tem um efeito muito

profundo. Já se especulou muito na literatura sobre que elemento no processo de fazer

uma medição tem esse efeito e como o processo de fazer medição tem os efeitos que

tem. Uma das especulações sobre isso, e que teve o seu auge nos anos 50 e 60 na

literatura cientifica e filosófica foi que o agente ativo era a consciência e as pessoas se

empolgaram com isso por diversos motivos óbvios. Foi um novo elo entre a física e algo

que sempre pareceu estar fora dela. Muito do que se diz sobre a mecânica quântica no

filme trata dessas ideias e uma das coisas que eu quis dizer esta manhã é que essas

ideias não influenciaram o que considero a literatura cientifica e filosófica séria sobre o

assunto durante 30 anos. Houve um período em que as pessoas estavam especulando

desta forma. Havia, como eu disse esta manhã, ideias cada vez mais constrangedoras

do tipo: “Um gato pode produzir esses efeitos com a sua consciência? Um rato pode

produzir esses efeitos com sua consciência?”. No fim, fica claro que as palavras

envolvidas aqui eram tão imprecisas, tão escorregadias, que não se poderia construir

uma teoria cientifica útil com base nelas e essa ideia foi abandonada. E mesmo que essas

ideias fossem úteis e verdadeiras, elas não produziriam uma imagem do modo como me

parece que temos em Quem Somos Nós. Mesmo que a consciência seja o agente em

todas essas teorias, as operações da consciência são regidas por leis matemáticas

externas, concretas, secas, bem rígidas. O salto do envolvimento da consciência, mesmo

que houvesse, para essas afirmações maiores de que: “eu crio minha própria realidade”;

“eu escolho minha experiência”; “que a consciência é a base de todo ser”; “há espaço no

mundo para esse fenômeno intangível da liberdade”; e assim por diante, não teria este

resultado mesmo que a imagem da consciência na medição tivesse dado certo, mas essa

imagem da consciência na medição não deu certo. Então, foi sobre isso que tentei falar

esta manhã, isso de uma forma negativa. O positivo é que há uma quantidade enorme

de trabalhos interessantes feitos nos últimos 20 anos que tentam entender os efeitos que

elas têm. Todo esse trabalho tem um caráter que, nos termos deste filme, chamaríamos

de mecanicistas. Uma imagem bem mais mecanicista do mundo. Este trabalho tenta

entender como alterar as equações de forma a produzir essas mudanças; como

acrescentar coisas físicas a nossa imagem do mundo a fim de mostrar como ocorrem

essas mudanças. Nem tudo se baseia na questão de a consciência poder ser um agente.

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Entrevistador – Quanto às medições, hoje se considera que a medição é um sistema

acoplado com o objeto que se está tentando medir?

David Albert – Sim. Se você quiser explicar, uma das mais profundas mudanças

filosóficas entre a mecânica quântica é que a mecânica clássica é construída do chão

para cima com base no que hoje sabemos que é uma fantasia: a possibilidade de

observar as coisas passivamente. Certo? Ou a possibilidade de, ao menos se formos

cada vez mais cautelosos, nos aproximarmos cada vez mais de uma posição de observar

as coisas de forma completamente passiva, observar as coisas de forma que você tenha

certeza de que não esta no processo de observar algo alterando a própria coisa que está

tentando observar. A mecânica quântica pôs um ponto final nisso! Este fenômeno de

coisas observáveis incompatíveis de que falei esta manhã, deixa bem claro que, nas

medições, certamente é produzida uma perturbação mínima, finita, em qualquer sistema,

medindo qualquer uma de suas variáveis físicas e que não haverá nenhum modo,

nenhum tipo de progresso tecnológico que possa reduzir isso a um nível inferior a esse

nível finito definido. Veja só, todo mundo sempre soube que para medir um sistema é

preciso interagir com ele fisicamente de uma forma ou outra, mas havia a fantasia de que

se podia tornar essa interação cada vez mais delicada à medida que a tecnologia evoluía.

A mecânica quântica nos dá um nível teórico mínimo finito, insuperável de interação

necessária com o sistema para obter qualquer informação dele. Essa é uma mudança

muito decisiva. Então, esse quadro de uma observação desapareceu. Como eu disse,

era tentador em vista de uma descoberta como essa dizer “o que quer dizer observação?”

“o que é que está produzindo a perturbação?”. Era natural se agarrar a algo com a

consciência, e assim por diante. Houve outras coisas a que eles se agarraram

instintivamente, o caráter macroscópico do aparelho medidor em contraste com o caráter

microscópico do objeto medidor. O corte entre o sujeito e o objeto. As pessoas se

agarravam a todo tipo de coisa. A consciência foi uma das coisas que as pessoas

agarraram, mas de uma forma bem preliminar. Isso chegou bem depressa no ponto em

que parecia um beco sem saída no que se refere ao progresso da física e não teve mais

importância desde então, exceto em certas tentativas de se apropriar da mecânica

quântica em outros tipos de programas: programas da nova era; programas

desconstrucionistas; programas pós-estruturalistas, e assim por diante.

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Entrevistador – Você pode falar do fato de muitas pessoas terem uma ideia de que a

ciência é algo bem definido e que há um ponto em que os cientistas concordam que é

que a ciência avança de modo organizado fazendo experimentos, mas a história da

ciência nos conta algo bem diferente...

David Albert – Claro que você tem razão nisso e isso é algo que está bem mais no centro

das atenções das pessoas nos últimos 30 anos com obras como de Kuhn e assim por

diante. A ciência é uma instituição bem discutível, com idas e vindas bem complicadas.

Uma instituição social e humana como outras instituições. Claro que não há unanimidade

entre os cientistas quanto aos fundamentos da mecânica quântica. Claro que há

controvérsias sobre tudo isso. Mas se você só disser isso e deixar para lá, acho que não

está sendo justo com a situação. Eu acho - e isso é uma repetição do que já disse esta

manhã -, que ainda há uma distinção muito importante entre dois jeitos bem diferentes

de entender o mundo. Nenhum é perfeito. Os dois são complicados. Os dois têm idas e

vindas. Mas há uma postura de entender o mundo com a necessidade de encontrar algo

que o faça se sentir bem. Onde você almeja encontrar algo terapêutico. Você vai

descobrir que o que fica no centro do universo, o que existe na base de todo ser é uma

imagem atraente, poderosa, segura, acessível e reconfortante de si mesmo. Foi desta

maneira que o Vaticano entendeu a disputa com Galileu. Era desta maneira que os

vitorianos entendiam sua disputa com Darwin. O problema que o Vaticano teve com

Galileu é que a humanidade estava sendo desalojada do centro do universo. O problema

que os vitorianos tiveram com Darwin foi que os ancestrais do ser humano não eram tão

nobres e tão reconfortantes quanto às pessoas queriam que eles fossem. Parece-me que

uma distinção histórica importante a que a ciência tem direito é a de que ela sempre

representa a resistência a este impulso. É a ciência que sempre representa a exigência

de que nos coloquemos no mundo com uma admiração aberta e autêntica e com um

olhar aguçado, frio e claro de uma forma que dá uma atenção especial à descoberta da

verdade, quer ela seja reconfortante e terapêutica, quer não. As afirmações que há no

filme, como “a consciência é a base de todo ser” ou “nossa consciência se liga à

consciência do campo unificado” etc., devo dizer - e é isso que mais me perturbava -, que

eu ouço nisso ecos vívidos da posição do Vaticano segundo a qual a Terra é o centro do

universo; ou da posição antidarwiniana de que o homem foi criado por Deus; de que

temos uma importância especial; de que temos algum papel especial a desempenhar ou

uma ligação especial; uma conexão especial com o que está na base do universo. Nós

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não sabemos disso! E nosso trabalho ao examinar o mundo é verificar se isso é

verdade ou não, e não entender o mundo com a exigência de que isso seja

verdadeiro ou para escolhermos em que teoria parece defender esse tipo de

afirmação.

Entrevistador – E o que dizer do papel da intuição? Digamos... Como muitos textos

místicos, sábios e outros seres iluminados relatam coisas por que passaram.

David Albert – Está certo. Olhe, eu penso que há outras formas de se distinguir como

entendemos o mundo. Há grandes tradições intelectuais. Tradições intelectuais pelas

quais tenho enorme respeito. De acesso místico ao mundo. De acesso revelatório ao

mundo e tudo mais... E há também a tradição cientifica. E a tradição cientifica é, de modo

bem aproximado, uma abordagem do mundo. As pessoas falam de método cientifico

como um tipo diferente de raciocínio. Não me parece um tipo diferente de raciocínio. O

que se quer dizer com método cientifico é uma tentativa de compreender o mundo de

modo global, assim como entender o projeto de iniciar uma fogueira, ou construir uma

casa, ou tecer a sua própria roupa ou algo assim. Existe esse tipo de raciocínio que

chamamos de senso comum, certo? E o projeto científico é, em essência, ver se

conseguimos expandir o estilo do senso comum fazendo dele uma abordagem completa

do mundo, uma abordagem completa da existência. Penso que esse projeto é

interessante e atraente por dois motivos: Primeiro, porque o senso comum é uma forma

atraente de raciocínio. Segundo, porque o projeto de aplicar o senso comum ao mundo

já teve sucesso espetacular. Por outro lado, parece que poderíamos muito bem

argumentar que o senso comum, e não, por exemplo, a revelação mística, é de fato a

forma correta de consertar uma torradeira, mas não é a forma correta de decidir o que

você pensa de Deus ou coisa do gênero. Para isso, precisamos de métodos totalmente

diferentes. Essas duas afirmações são muito interessantes, são afirmações muito

respeitáveis. A única coisa que acho ruim é misturar as duas.

Entrevistador – Você acha que no futuro, com o tempo, as duas pretendem examinar a

natureza do universo, o grande U... Tudo?

David Albert – Certo.

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Entrevistador – Você acha que haja um modo de as duas convergirem em algum

momento?

David Albert – Não vejo nenhum motivo para acreditar nisso. O que penso de tudo que

se apregoa sobre essa convergência que vemos por toda parte acabou se revelando

vazio quando examinamos. Então... Não! Penso que não. Na verdade, acho que vejo o

contrario. E acho que vejo como outro modo de defender a ideia que tentei defender esta

manhã. No meu ponto de vista, a imagem do mundo e do nosso lugar nele que emerge

através da ciência está cada vez mais desconfortável para nós com o passar do tempo.

Está cada vez mais se distanciando da imagem de nós que existe nas grandes tradições

religiosas, nas grandes tradições místicas e assim por diante. Estamos vendo uma

imagem mecânica de nós mesmos pela ciência que não sabemos como absorver e penso

que o desafio interessante da ciência quanto a nossa imaginação não é ela reproduzir

outros tipos de conhecimento a que temos acesso, mas ela trazer algo totalmente

diferente de todas essas tradições, algo que vem com uma força enorme por causa do

sucesso e da autoridade conquistada pela técnica cientifica algo que é muito difícil

absorvermos. É muito difícil pensarmos sobre nós mesmos como o tipo de aparelhos

mecânicos que a ciência parece estar dizendo que nós somos. Então, não vejo nenhuma

evidencia de convergência nisso e o que considero empolgante no projeto cientifico é

exatamente a forma como ele se desenvolve, tornando a tensão cada vez mais aguda. A

tensão entre a imagem de nós mesmos que vem de varias tradições culturais e a imagem

de nós mesmos que a ciência está nos trazendo mais uma vez, se olharmos para o

progresso. Galileu nos tirou do centro do universo onde varias tradições religiosas

queriam nos colocar. Darwin nos tirou da criação divina onde varias tradições queriam

nos colocar. Freud nos deslocou de outra maneira. A ciência tem progredido se afastando

da convergência com essas tradições e penso que é isso que há de interessante e

desafiador nela. Se ela só convergisse com essas tradições, haveria algo de redundante.

Foto 10: David Albert

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Entrevistador – Em física, é claro que o Santo Graal é a teoria de tudo, então, você teria

de dizer que ela não é a teoria de tudo, ela é a teoria de tudo que há no espaço físico.

David Albert – Sim. Mas talvez queira acrescentar que há motivos para acreditar que o

universo físico é o único universo que existe.

Entrevistador – Certo. Certo. Mas agora será possível algum dia responder essa

pergunta?

David Albert – Se o universo físico é o único universo que existe?

Entrevistador – Sim.

David Albert – Não sei o que seria responder essa pergunta em definitivo, mas pode-se

imaginar que a física possa chegar ao ponto em que possa dizer que tem uma explicação

física completa de por que você movimentou o braço, uma explicação física completa de

por que esta produzindo esses sons, uma explicação física completa de por que se casou

com essa pessoa, uma explicação física completa de todas as palavras que escreveu em

toda a sua vida. Se a física chegar a esse ponto, cada vez haverá uma questão premente

como “Esse outro elemento em que você acredita... Esse elemento não físico em que

você acredita. Pra que serve? O que ele faz no mundo?”. Temos uma explicação física

completa de tudo que parece estar acontecendo. De por que você diz às pessoas que

acredita que tem livre-arbítrio. Teremos uma explicação física de por que você diz que

acredita que o mundo não é totalmente físico! Isso não provará que o mundo é totalmente

físico, mas levantará uma questão bem delicada para uma pessoa que queira negar o

fisicismo, se a física chegar a esse ponto, e veja que não sei se ela vai. Certo?! Mas se

ela chegar, então, haverá uma questão bem aguda do tipo: “Essa alma ou espírito em

que você acredita o que é isso? Pra que serve?” Temos uma explicação de tudo com

base em movimentos dessas partículas. Já verificamos que não é ela que faz você dizer

o que diz, não é ela que faz você escrever o que escreve, nem é ela que faz você casar

com quem casou. O que ela faz? É aí que as coisas podem chegar.

Note meu/minha amigo (a), para aprender as regras do campo científico e conseguir

sobreviver ileso nesta arena de batalhas, o cientista tem que despender alguns anos em

árduo treinamento técnico e emocional. Depois de longo período de aprendizado ele se

acostuma com esta dinâmica e passa a entender que ela está a serviço da humanidade,

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e não contra ele. Contudo, podemos entender o quanto deve ser perturbadora essa

dinâmica aos olhos de um indivíduo forjado no campo da espiritualidade, da autoajuda,

das crenças esotéricas, ou mesmo, porque não dizer, em alguns setores mais

fundamentalistas e dogmáticos da sociedade.

Há dez anos, antes de lançar um livro intitulado Neurofisiologia da Meditação estávamos,

eu e meu amigo e coautor da obra Roberto Serafim Simões ministrando uma aula em um

conhecido curso de formação de instrutores de Yoga. O referido curso sempre teve

pretensões de ser conhecido por sua abordagem científica do tema. Por esse motivo, em

algumas ocasiões, determinados professores eram convidados a palestrar sobre temas

cujo enfoque científico fosse necessário e a abordagem respeitasse os rigores que este

campo do saber solicita. Eu e Roberto éramos dois desses professores. Naquela

ocasião, o objetivo de nossa explanação era apresentar uma abordagem neurofisiológica

e neuroquímica das práticas meditativas e, como nosso público era composto quase que

exclusivamente por leigos no assunto - em sua maioria professores e simpatizantes do

yoga e das práticas meditativas -, adequamos nossa fala à linguagem da plateia e, na

medida em que construíamos nosso raciocínio, tentávamos apontar convergências e

divergências entre as descobertas das neurociências e alguns textos antigos que versam

sobre a prática do yoga, como o famoso Yoga Sutras de Patanjali. Patanjali é uma

personagem bastante conhecida do universo do yoga, a quem se atribui a escrita deste

importante documento. Existem muitas dúvidas quanto a sua existência, sendo até

mesmo propagada uma hipótese de que o texto teria sido escrito por mais de uma

pessoa, e em momentos distintos da história. Todavia, o documento é amplamente

conhecido e, pode-se dizer, serve como um manual que objetiva explicar ao leitor o que

é o yoga e como deve ser praticado. Palestrávamos para aproximadamente duzentas

pessoas quando, no meio de nossa apresentação, um rapaz trajando uma bata pintada

com uma divindade indiana chamada Shiva, alguns colares indianos, uma mancha de

tinta na testa e chinelos de couro desgastados pelo tempo põe-se a ficar em pé e brada

alto e em bom tom para todos os presentes, com especial ênfase a nós, palestrantes:

“Quem vocês pensam que são para ousar colocar em xeque as palavras do grande sábio

e mestre Patanjali!?” Olhei de soslaio para o Roberto - que incrédulo se recuperava do

inesperado golpe e sorrateiramente abaixava seu olhar para não desvalidar a crença do

rapaz com uma gargalhada incontida - e, muito respeitosamente, iniciei minha réplica que

verdadeiramente intencionava, em cinco minutos, explicar-lhe o supra sumo do que está

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contido em toda esta unidade que agora lês. Todavia, meus esforços foram vãos, pois o

discípulo de Shiva não se convenceu de que não éramos ateus impuros pregando a

indiferença, o ceticismo e a discórdia e, num gesto de revanchismo, abriu sua mochila,

retirando do seu interior inúmeros “badulaques”, chinelos de couro, desta feita novos e

perfeitamente embalados, e camisetas de Shiva, Buda, Ghandi e mahatmas diversos, e

começou a comercializar seus itens ali mesmo, no meio do anfiteatro, enquanto eu e

Roberto tentávamos cumprir com nossa obrigação finalizando a palestra para aqueles

que estavam interessados em nos ouvir. Neste momento, lembrei-me de Brian Magee:

O comentário crítico de terceiros, longe de causar ressentimento, deve ser olhado como auxílio valiosíssimo e bem vindo, pois exerce, em notável grau, papel libertador. Talvez seja difícil conseguir que as pessoas condicionadas a receberem de mal grado as críticas e esperando que as críticas sejam por outros mal recebidas e tendendo, portanto, a manter silêncio acerca dos próprios erros e dos erros alheios, formulem as críticas de que o aperfeiçoamento depende. Não obstante, pessoa alguma pode prestar-nos maior serviço do que mostrando o que é errôneo na forma de pensarmos ou agirmos. Quanto maior a falha, maior o aperfeiçoamento que sua exposição torna possível. O homem que acolhe a crítica e age em função dela a prezará a ponto de colocá-la acima da amizade. O homem que repele a crítica, preocupado em manter a própria posição, está fadado a estagnar. Se acolhêssemos em nossa sociedade as atitudes popperianas em face da critica, as relações sociais e interpessoais sofreriam uma revolução sem precedentes * (MAGEE, 1973, p.41-42).

Hoje, acho que compreendo muito mais o referido rapaz. A plateia como um todo não

estava devidamente preparada para nos ouvir, e alguns, como este menino, sentiram-se

agredidos em sua fé, quando o que se almejava, de fato, era somente discutir ideias à

luz do pensamento científico, de maneira reflexiva e não dogmática. Aprendendo a agir

desta maneira, não somente os cientistas podem se sentir libertados, mas todos nós, em

todas as atividades que nos propusermos realizar. Para aqueles cuja fé já não mais

auxilia, a ciência pode ser uma opção, pois podemos aperfeiçoar nossos procedimentos,

identificando assim, o que pode ser melhorado. Consequentemente, no interior do campo

científico, as falhas devem ser verdadeiramente procuradas e em hipótese alguma

contornadas.

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RESUMO

Nesta unidade você foi apresentado à história do pensamento científico. Versamos sobre

os aspectos metodológicos e a intersubjetividade da ciência. Delimitamos os campos de

atuação das ciências naturais e das ciências sociais e pontuamos as diferenças entre a

ciência moderna e a ciência realizada na antiguidade. Trabalhamos também com as

fases mais importantes daquilo que convencionalmente chamamos de revolução

científica, apontando para seus principais agentes, como Copérnico, Galileu, Francis

Bacon, René Descartes e Isaac Newton. Você também foi apresentado à filosofia da

ciência e algumas das ideias e agentes mais importantes deste campo do saber, como

as relações de ideias e as questões de fato; o problema humeano da indução; o método

científico: a concepção tradicional e a concepção de Karl Popper; o critério de

demarcação entre ciência e não ciência; a verificação e o falseamento; a natureza

provisória do conhecimento científico; as revoluções de Thomas Khun; os períodos de

normalidade e anormalidade da ciência, assim como o significado de paradigma

científico.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - O que você entende da frase “Grandes poderes, grandes responsabilidades!” e qual

a relação dela com o conhecimento científico?

2 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas à sua disposição e escreva algo que

diferencie as ciências naturais das ciências sociais.

3 - O que você compreende quando falamos sobre diferentes pontos de observação, e

qual a relação deste assunto com os dilemas que podemos ser vítimas?

4 - Explique o porquê de o campo científico ser intersubjetivamente controlado.

5 - Quais foram os momentos mais marcantes da revolução científica?

6 - O que são os testes controlados?

7 - Estabeleça alguns pontos que explicite as diferenças entre a ciência praticada na

antiguidade e a ciência moderna.

8 - O que vem a ser um pensamento dedutivo?

9 - O que vem a ser um pensamento indutivo?

10 - O que são os Ídolos, propostos por Francis Bacon?

11 - E você meu amigo aluno (a), já identificou quais são os seus ídolos? Seus ídolos se

manifestam na forma de ideias, livros, partidos, igrejas, crenças, professores, filósofos,

partidos políticos? Liste-os abaixo:

Você consegue perceber que durante a sua vida, provavelmente alguns deles foram

trocados por outros? O que acha da música A Lista, de Osvaldo Montenegro? Faça uma lista de grandes amigos Quem você mais via há dez anos atrás Quantos você ainda vê todo dia Quantos você já não encontra mais...

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Faça uma lista dos sonhos que tinha Quantos você desistiu de sonhar! Quantos amores jurados pra sempre Quantos você conseguiu preservar.. . Onde você ainda se reconhece Na foto passada ou no espelho de agora? Hoje é do jeito que achou que seria Quantos amigos você jogou fora? Quantos mistérios que você sondava Quantos você conseguiu entender? Quantos segredos que você guardava Hoje são bobos ninguém quer saber? Quantas mentiras você condenava? Quantas você teve que cometer? Quantos defeitos sanados com o tempo Eram o melhor que havia em você? Quantas canções que você não cantava Hoje assovia pra sobreviver? Quantas pessoas que você amava Hoje acredita que amam você?

12 - De qual maneira o ceticismo ajudou Descartes a chegar às suas certezas?

13 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas à sua disposição e escreva algo

que diferencie o ceticismo filosófico do ceticismo científico.

14 - Qual a diferença básica entre um pensador racionalista e um pensador empirista?

15 - Qual a importância do reducionismo para a ciência?

16 - Qual a importância da filosofia da ciência em nossos dias?

17 - Explique o que David Hume queria dizer quando nos falava sobre as relações de

ideias e as questões de fato.

18 - O que vem a ser o famoso problema humeano da indução?

19 - O que é um mecanismo de correção de erros? Dê um exemplo.

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20 - Qual vem a ser o critério de demarcação entre ciência e não ciência, segundo Karl

Popper?

21 - Diferencie verificação de falseamento?

22 - Falseie as seguintes frases:

Cavalo dado não se olha os dentes.

Quando um não quer, dois não brigam.

Para bom entendedor, meia palavra basta.

Águas passadas não movem moinhos.

Macaco velho não pula em galho seco.

Antes calar que mal falar.

Quem quer faz, quem não quer manda.

Cachorro que late não morde.

Quem usa cuida.

Deus ajuda quem cedo madruga.

Caiu na rede é peixe.

Casa de ferreiro, espeto de pau.

O seguro morreu de velho.

Cada macaco no seu galho.

Quem tudo quer nada tem.

Devagar se vai ao longe.

Falar é fácil, fazer é que é difícil.

Filho de peixe, peixinho é.

Onde há fumaça, há fogo.

Pela boca morre o peixe.

Quem espera sempre alcança.

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23 - Explique a razão das afirmações científicas poderem ser conclusivamente falseadas,

embora não possam ser conclusivamente verificadas.

24 - Qual é a razão da afirmação de que todo conhecimento científico é necessariamente

de natureza provisória?

25 - Comente a frase: “O que a ciência persegue são exatamente esses enunciados de

alto conteúdo informativo e de baixa probabilidade”.

26 - O que é a refutabilidade em ciência?

27 - O que são os períodos de normalidade e anormalidade propostos por Kuhn?

28 - Defina paradigma científico.

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UNIDADE II

Uma Sociologia do Campo Acadêmico / Científico

“O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive”

Bachelard

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MÓDULO 1

Como versamos na unidade 1, a ciência é oriunda da filosofia e esta também originou

um ramo conhecido como ética, que estuda as decisões que tomamos em nossa trajetória

existencial com vistas a alcançar a vida que vale a pena ser vivida e convivida. As ideias

filosóficas são perenes e suas abordagens continuam a nos presentear com o que há de

mais profundo no pensamento humano. Todavia, antes da filosofia houve os mitos, e eles

nos auxiliaram a pensar a vida e o nosso lugar natural, e ainda podem nos conceder

alguns insights encantadores, mesmo que saibamos que Zeus e seus correligionários há

muito já saíram de cena. Para Tales de Mileto e Heráclito, tudo no mundo flui de forma

incessante. Tudo passa, e aprender a viver a impermanência é um imperativo para o bem

viver. Parmênides buscava o ser das coisas, ou seja, suas essências, aquilo que fica e

permanece, o imutável e não a transitoriedade. Sócrates se alegrou com ele, seguiu seus

passos e influenciou seu pupilo Platão, para quem o certo e o errado da vida, a ética das

relações de convivência, dependem de ideias que transcendem a própria vida, pois são

eternas, independentes das circunstâncias. Absolutas. Aristóteles veio de Estagira para

estudar com Platão, mas diferente de seu mestre, acredita que o certo e errado da vida

é regido por uma rigorosa harmonia cósmica, e a inscrição neste cosmos é algo que já

vem marcada. Seu pensamento ético assemelha-se a uma espécie de mitologia

laicizada, temperada com os rigores de uma proto ciência oriunda de um sujeito de rara

genialidade. Epicuro nos lembra de que o certo na vida é não perder de vista os prazeres

simples. Alerta vermelho contra as “prostituições” dos sentidos que podem inviabilizar a

percepção da candura da existência e o desfrute das coisas singelas presentes no

cotidiano. Os estoicos por sua vez nos avisam que o certo é aceitar o destino de forma

imperturbável, e o errado é debater-se contra aquilo que não podemos controlar. Cristo,

nos fala que o certo é tratarmos a todos com igualdade, pois somos irmãos – fraternidade

-, e gozamos de liberdade para ponderar a vida que vale a pena ser vivida. O certo e o

errado da vida têm a ver com a missão que Deus nos deu. Devemos mobilizar nossos

talentos, não importam quais sejam eles, para cumprir o que Ele espera de nós. Os raios

de sol da modernidade principiam a iluminar a longa noite da idade média. Maquiavel é

um dos primeiros a acordar. Sem medo de subverter a ordem, ousa versar sobre a

natureza humana sem dissimular aquilo que observa. Para ele, o certo e o errado da vida

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tem a ver com o que se quer. A ação humana será boa em função do seu efeito.

Maquiavel inaugura o pragmatismo ao afirmar que vive bem quem consegue o que quer.

Descartes nos avisa que a vida será melhor na razão direta da nossa capacidade de

duvidar, pois por meio da dúvida diminuiremos a probabilidade de sermos vítima de

pensamentos enganadores e tirânicos. Spinoza chega para nos alertar sobre a ilusão da

liberdade e bradar que o conhecimento é o mais potente dos afetos. Vive bem aquele

que conhece as causas corretas de seus afetos. Só assim obteremos alguns “grauzinhos”

a mais da tão sonhada liberdade. Bentham e Mill nos convidam a pensar a alteridade,

pois para eles o certo e o errado têm a ver com a felicidade do maior número de pessoas.

Finalmente Kant, baluarte do Século das Luzes, afirma que o certo e errado da vida tem

a ver com a boa vontade. Inaugura o intencionalismo ao afirmar que agirá bem aquele

que intencionar o bem, uma vez que os resultados da ação, invariavelmente escapam a

qualquer um.

Com o Iluminismo surge a crença na infalibilidade da ciência. O pensamento

científico começa a influenciar uma significativa parcela de intelectuais e pensadores. A

filosofia, de cunho especulativo, passa a sofrer a concorrência de outras formas de

pensar a vida e as relações humanas. O século das luzes dá a luz à sociologia, e o

sociólogo, ao fazer uso de eficazes metodologias investigativas, passa a agir, como diria

Max Weber, como um desencantador do mundo, uma vez que muitas das especulações

filosóficas terão dificuldades frente às constatações empíricas – fruto do emprego do

método científico - que apontarão com lucidez algumas das características mais

perturbadoras da vida em sociedade, e consequentemente, do homem.

Uma nova forma de pensar as relações humanas

Se você se recorda caro (a) aluno (a), na unidade 1 versamos sobre o programa de

iniciação científica de nossa faculdade. Você terá à sua disposição aqui na UNIBR a

possibilidade de entrar em contato com o rico pensar científico, e independente de sua

opção de curso superior, saiba que a UNIBR contempla linhas de pesquisa em ciências

naturais e ciências humanas, e esta última ganhou notoriedade com o surgimento da

sociologia. Muitas vezes quando o assunto é sociedade tem-se em mente a ideia de seres

humanos em relações de intersubjetividade, interdependentes uns dos outros. Todavia,

a sociologia não se limita a esses tópicos. A sociologia também se baseia na observação

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atenciosa e metódica dos fenômenos sociais, e para isso preocupa-se em aplicar o

pensamento científico à apreciação e à explicação dos fenômenos sociais. Para Émile

Durkheim (1858 – 1917) a sociologia pode ser compreendida como a “ciência das

instituições, da sua gênese e de seu funcionamento, isto é, de toda a crença, todo o

comportamento instituído pela coletividade” (DURKHEIM 1974, p. 29).

Foto 11: Émile Durkheim

A sociologia enquanto ciência almeja compreender o que acontece na sociedade, e para

isso observa de forma sistemática os fatos que se desenrolam em seu interior. Foi a partir

das obras de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber que a sociologia configurou-se

como uma área de conhecimento singular, com método e objetos próprios. Valores

morais e comportamentos que antes eram considerados naturais e compreendidos por

meio de um de um ponto de vista que não levava em consideração sua historicidade,

passam a ser entendidos como frutos da interação humana. Com isso, a dimensão

temporal de fenômenos que se pensava serem eternos, passa a ser levada em

consideração. Com o desenvolvimento da sociologia temas como o conceito de família;

as análises do dinamismo do mercado; a estrutura e formação do Estado; as religiões;

as concepções morais; os estudos sobre sexualidade; a divisão do trabalho; os modos

de agir; a dinâmica das populações; as estruturas das sociedades e seus modos de

transformação; o conceito de justiça; as questões relativas à violência; entre outros

assuntos não poderiam mais ser analisados sem que se levasse em consideração sua

vertente sociológica. Você gostou de algum desses temas? Que tal colocar em sua

agenda a intenção de pesquisar algo relacionado a eles em uma potencial iniciação

científica?

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Durante toda a Idade Média o homem tinha uma atitude de contemplação passiva do

universo, oriunda de sua submissão ao poder religioso exercido pela monarquia. Todas

as explicações sobre a sociedade estavam baseadas na vontade de Deus. Esse período

começou a ser questionado no Renascimento e no Iluminismo. O Renascimento se

iniciou em algumas cidades italianas no século XIV. Sua característica mais marcante é

a retomada dos valores da cultura greco-romana, e seu ideal preponderante foi o

Humanismo - valorização do homem. Os humanistas foram ferrenhos questionadores dos

valores e da organização social e política da Idade Média. O surgimento do

Renascimento deve ser considerado por meio da análise de dois fatores. O primeiro deles

foi a invenção da imprensa, que permitiu a propagação de vários clássicos greco-

romanos e também bíblicos, outrora somente acessíveis aos monges. O segundo diz

respeito às grandes navegações que ampliaram os horizontes culturais, contribuindo de

forma muito contundente para o questionamento de ideias até então tidas como verdades

absolutas.

Talvez não seja demasiado afirmar que o Renascimento pode ser considerado a

expressão do movimento Humanista em campos como a literatura, as artes, a arquitetura,

a filosofia e a ciência. Todavia, foi dentro do movimento filosófico conhecido como

Iluminismo que o questionamento das explicações do mundo atingiu seu ápice. Esse

movimento filosófico procurou usar a razão para elucidar os fenômenos sociais. Sua

origem é o século XVII, período de extrema fertilidade intelectual. Ao trocar Deus pelo

uso sistemático da razão, o período das luzes patrocinou uma austera crítica da cultura

e da política absolutista, difundindo a racionalidade e propagando que, com esse

instrumento, poderíamos dominar a natureza, alterar seu curso e produzir resultados que

nos levariam a um nível de progresso jamais sonhado em todos os aspectos da

existência.

Antes do Iluminismo, absolutamente tudo poderia ser explicado por meio do divino, do

transcendente, do metafísico. O Iluminismo arguiu e protestou contra isso, e

gradativamente os acontecimentos de nossa vida, tais como a vida política, a economia

das cidades, a cultura e nosso cotidiano, passaram a ser explicados pelo uso da razão,

e o triunfo desta autorizou o entendimento de que o mundo é forjado pela vontade

humana, podendo ser livremente questionado e, principalmente, transformado. O homem

passou a ser o centro do universo, surgindo assim o antropocentrismo.

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Como tinha pretensões de se desvencilhar das ideias absolutistas, a burguesia, classe

que estava em ascensão na Europa, procurou expandir os ideais iluministas, ajudando

assim esse período das luzes a solidificar as bases filosóficas de uma nova sociedade

que tinha como lema a liberdade, a igualdade e a fraternidade, valores outrora cristãos,

agora laicizados.

Apesar de ter ajudado a promover um gigantesco salto para a humanidade, auxiliando-

nos a sair do obscurantismo, já sabemos, principalmente por intermédio de Nietzsche,

que nem todas as promessas do período iluminista se concretizaram. Porém, continua

sendo inegável sua gigantesca contribuição para que pudéssemos nos reconciliar com

nossa humanidade. Além disso, o Iluminismo alavancou o desenvolvimento de novas

formas de pensar, e uma delas deu origem a uma abordagem científica da vida social,

que passou a ser conhecida como Sociologia.

Primeiros pensadores da Sociologia

Auguste Comte nasceu na França, em Montpellier no ano de 1798 e faleceu em Paris

em 1857. Oriundo de uma família católica monarquista teve sólida formação intelectual e

teve como um de seus principais projetos, conceder à sociedade uma análise pautada

nos métodos científicos que se desenvolviam rapidamente em sua época. Sendo assim,

o pensamento sociológico de Comte foi amparado pela ciência positivista, aquela que

se interessava por dados concretos, que pudessem ser mensurados, comparados,

aferidos, enfim, dados que passaram a ser chamados de positivos. Quanto a isso

Giddens nos fala:

Ele [Comte] acreditava que a sociologia deveria aplicar os mesmos métodos científicos rigorosos ao estudo da sociedade que a física ou a química usam no estudo do mundo físico. O positivismo sustenta que a ciência deveria estar preocupada somente com entidades observáveis que são conhecidas diretamente pela experiência. Baseando-se em cuidadosas observações sensoriais, pode-se inferir as leis que explicam a relação entre fenômenos observados. Ao entender a relação causal entre os eventos, os cientistas podem então prever como os acontecimentos futuros ocorrerão. Uma abordagem positivista da sociologia acredita na produção de conhecimento sobre a sociedade, baseada em evidências empíricas tiradas a partir da observação, da comparação e da experimentação (GIDDENS, 2005, p.28).

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Para Comte a sociedade se estabelece da mais simples para a mais complexa e a

evolução não pode prescindir da ordem, pois sem ela não há progresso. A ordenação é

um dos princípios da ciência, e não é à toa que serviu como um dos pilares do

positivismo: “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Com os

primeiros trabalhos de Comte as instituições sociais começam a ser percebidas como

potentes instrumentos de ordenação comportamental, nos doutrinando para que

tenhamos um comportamento adequado. Todavia, na maioria das vezes, esse

ensinamento passa despercebido a nós e não nos damos conta quando cobramos de

outros indivíduos o mesmo comportamento que aprendemos.

Foto 12: Auguste Comte

Comte viveu em uma época embrionária no que diz respeito à sociologia. Essa, nem

mesmo era uma disciplina acadêmica. Contudo, seus passos não passaram

despercebidos por aquele que viria a se tornar o responsável pela implantação da

sociologia no cerne das universidades.

Émile Durkheim também era francês, e nasceu em 1858, em Épinal de Vosges, tendo

falecido em 15 de novembro de 1917. Realizou seus estudos no Liceu Louis Le Grand e

na École Normale Supérieure, onde se graduou em filosofia. Lecionou pedagogia e

ciência social em Bordeaux. No ano de 1902 foi convidado a lecionar na Universidade de

Sorbone, em Paris tornando-se titular da cadeira de pedagogia enquanto também

lecionava sociologia. Em 1913, a cadeira de Sociologia foi transformada em cátedra,

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sendo mérito de Durkheim ter transformado a sociologia numa disciplina amplamente

aceita nas universidades.

Durkheim acreditava que a sociologia deveria preocupar-se com a investigação dos fatos

sociais. Assim, os sociólogos deveriam estudar os aspectos da vida em sociedade que

moldam as ações individuais. Mas o que são os fatos sociais? São as maneiras de atuar,

pensar, agir e sentir que, como práticas da coletividade exercem, de forma amplamente

inconsciente, coerção sobre os indivíduos. Além disso, os fatos sociais são

independentes dos indivíduos e coube a Durkheim a primazia de demonstrar a

exterioridade dos fatos sociais, separando-os de razões pessoais ou consciência

individual. Segundo Durkheim:

Fato social é toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter (DURKHEIM, 1978, p. 13).

Logo, a maneira como agimos é sempre condicionada pela sociedade, pois o agir

individual origina-se no exterior, na sociedade. É-nos imposto pela sociedade e por esta

razão fala-se em coerção social. Fatos sociais tem existência própria e independente da

do indivíduo. Não é difícil perceber, e Geraldo Vandré que nos perdoe ("Vem, vamos

embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, / Não espera acontecer"),

mas para Durkheim, a hora já vem amplamente marcada pela sociedade.

Durkheim tinha a firme convicção de que a sociedade tem vida própria e vai além da

soma dos interesses mais comezinhos das ações individuais. O modo de organizar o

pensamento, de dar vazão aos sentimentos e de patrocinar ações em uma sociedade, já

existe antes dos indivíduos que nela se encontram, e continuará sendo posterior a eles,

pois tem vida própria. A sociedade é como um gigantesco animal que tem vida e

manifestações próprias e transcende em muito as manifestações de caráter individual.

Sendo assim, devemos atentar que os fatos sociais devem ser entendidos como

coisas, e é neste ponto que podemos encontrar ecos de Comte no pensamento de

Durkheim, pois os fatos sociais, sendo externos à vontade e à consciência dos indivíduos,

deveriam ser tratados como coisas materiais e seu estudo ser feito por meio da

observação e da experimentação, ou seja, por intermédio da ciência. Logo, é imperativo

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que o sociólogo tenha uma postura investigativa semelhante a dos pesquisadores das

ciências naturais, que estudam a biologia, a física ou a química. Para exercer a

sociologia Durkheim afirmava que era necessário livrar-se de conceitos pré-

concebidos e de paixões sobre os fenômenos sociais, pois somente assim o

sociólogo poderia investigar a exterioridade e a objetividade dos fatos sociais

como predicados da sua própria natureza.

Cada indivíduo que pertence à sociedade contém um pequeno fragmento dela, e por este

motivo, não é possível compreender a sociedade se olharmos somente para um sujeito

que a compõe. Neste caso, é o todo que tem primazia sobre as partes. É a sociedade

que deseja, pensa, sente e age por intermédio dos indivíduos que lhe dão forma. Do

mesmo modo que a “dureza do bronze não figura nem no cobre, nem no estanho, nem

no chumbo que serviram para formá-lo e que são corpos maleáveis ou flexíveis; figura

na mistura por eles formada” (DURKHEIM, 1978, p. 25). Para Durkheim os indivíduos

não atuam como gostariam de atuar, mas como a sociedade os permite atuar. É a

sociedade quem dita regras, e são os indivíduos que as seguem, na maioria das vezes

de forma automática, impensada, sem sequer perceber que estão seguindo regras que

lhe foram sovadas pelo tecido social.

História dos macaquinhos

Alguns cientistas almejavam fazer uma pesquisa. Para tanto colocaram seis

macaquinhos em uma jaula. Um cacho de bananas foi pendurado no teto desta mesma

jaula. Cada vez que um macaquinho tentava pegar uma banana, um cientista lançava um

forte e dolorido jato de água fria em todos eles. Com o tempo, nenhum macaquinho ousou

tentar pegar uma banana sequer, mesmo que a fome fosse grande. Passado certo tempo,

um dos cientistas apanhou um dos seis macaquinhos e o trocou por um diferente. Este,

ao chegar à jaula, imediatamente tentou apanhar uma banana, mas ao seu primeiro

movimento foi impedido e espancado pelos cinco macaquinhos antigos. Com o tempo,

os cientistas foram trocando todos os macaquinhos antigos por outros macaquinhos, até

chegar a um momento onde existiam seis macaquinhos novos e esfomeados na jaula, e

que nunca tinham levado sequer um único jato frio e dolorido. Todavia, nenhum deles

ousava pegar uma banana. Certo dia, um desses macaquinhos perguntou ao grupo: “Ei

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turma, qual o motivo de não podermos comer as bananas?”. A resposta foi certeira: “Não

sabemos bem, mas é melhor não arriscar, pois as coisas sempre foram assim por aqui”.

Figura 4: Como nascem as crenças

Para saber mais:

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: https://www.youtube.com/ 

watch?v=g5G0qE7Lf0A 

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MÓDULO 2

Sociedade, Ética e Pesquisa Científica

Com o surgimento da sociologia entra em cena uma nova maneira de abordar os

fenômenos éticos, uma vez que passamos a encarar o certo e o errado por meio dos

fenômenos sociais, e a pesquisa científica nos ajuda sobremaneira a conhecer um pouco

mais sobre nós e as relações que vivenciamos no tecido social. A sociedade passa a

decidir o que é correto e o que é incorreto. A moral é vista como um fato social. A ética é

um fato social. A sociedade agora faz parte da equação do bem viver. Para muitos é

instância maior de definição da moralidade, pois quando ocorrem mudanças no seio da

sociedade, quase que invariavelmente essas mudanças são refletidas na codificação

moral outrora vigente. Transforma-se a sociedade, modifica-se o conceito de moralidade.

Agora, para explicar o que é certo ou errado a partir de um ponto de vista sociológico,

devemos, à maneira de Nietzsche, fazer a genealogia da moral. A genealogia dos

valores. E para isso teremos que examinar a sociedade em suas entranhas, abstendo-

nos de manifestar qualquer idealismo. A sociedade terá que ser “fatiada”, e em seu

interior poderemos ter maior clareza da gênese dos valores. O valor das coisas é oriundo

da sociedade. O critério de validação da vida que vale a pena ser vivida é fruto das

relações sociais.

Uma constatação inovadora

Vamos pegar um objeto de interesse de Durkheim para que nos sirva de exemplo de

como nossas inquietações e dúvidas podem ser sanadas por intermédio da pesquisa

científica séria. Uma das colaborações mais revolucionárias que Durkheim nos concedeu

foi sua ideia sobre o suicídio. Perceba caro (a) aluno (a), que quase qualquer assunto

pode ser problematizado pela ciência. Isso abre muitas possibilidades para sua atuação

nesta faculdade. Até o seu tempo acreditava-se que esta ação tinha causas

eminentemente individuais, pessoais. Todavia, Durkheim fez uso de metodologias

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científicas para afirmar que o suicídio era oriundo de causas sociais. Durkheim fez uso

de estatísticas oficiais, bem como das taxas de suicídio em diferentes arcabouços

familiares e em diferentes nacionalidades. Levou em consideração até mesmo as

distintas filiações religiosas. Com tudo isso chegou a conclusões bastante atraentes.

Percebeu uma frequência maior de suicídio entre solteiros, assim como entre os casais

sem filhos. Quanto à influência da religião, Durkheim afirma que a proteção contra o

suicídio não provém dos seus dogmas, mas sim da fundamentação que esta concede a

uma ordem social. Neste sentido, um grupo familiar, um partido político com forte

ideologia ou uma comunidade religiosa exercem proteção eficaz contra o suicídio.

Durkheim aponta para existência de três tipos distintos de suicídio. O primeiro deles é

chamado de suicídio egoísta e é advindo daquilo que chamamos individualismo,

consequência de uma fraca integração social. Quanto menor forem os vínculos sociais,

maior será a probabilidade de se cometer suicídio. No outro extremo da balança temos o

suicídio altruístico, que decorre exatamente do oposto, ou seja, é oriundo de uma

integração social muito forte e contundente. Lembremo-nos dos kamikazes japoneses,

da honra dos samurais, dos homens-bomba muçulmanos. Os vínculos sociais são tão

contundentes que em todos esses exemplos, seus agentes abdicam de suas liberdades

individuais para morrer pelos valores de sua comunidade social. Acompanhe:

[...] os guerreiros dinamarqueses consideravam uma vergonha o fato de morrer na cama, de velhice ou de doença, e suicidavam-se para escapar a essa infâmia. Os godos chegavam mesmo a acreditar que aqueles que morriam de morte natural estavam destinados a viver eternamente em cavernas cheias de animais venenosos. Nos limites das terras dos visigodos havia um grande rochedo, chamado O Rochedo dos Ancestrais, do alto do qual os velhos se lançavam quando estavam cansados da vida (DURKHEIM, 2000, p. 230).

O terceiro tipo de suicídio foi chamado por Durkheim de suicídio anômico. Ele é fruto das

rápidas mudanças sociais, que segundo o autor andam junto com a desestruturação da

sociedade. Decadências econômicas e prosperidades súbitas ocasionam aumento da

taxa de suicídio, pois podem fragilizar os laços que unem o indivíduo à sua sociedade:

Em 1873 eclode em Viena uma crise financeira que atinge o ponto culminante em 1874, o número dos suicídios imediatamente se eleva.

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Passa de 141 em 1872 para 153 em 1873 e 216 em 1874, o que representa um aumento de 51% em relação a 1872 e de 41% em relação a 1873. Isso bem demonstra que essa catástrofe é a causa única desse aumento e que este é sensível, sobretudo no momento mais agudo da crise, isto é, durante os quatro primeiros meses de 1874... não está esquecido o famoso crack da bolsa de Paris durante o inverno de 1882. As consequências se fizeram sentir não apenas em Paris, como em toda a França. Entre 1874 e 1886, o crescimento médio anual da taxa de suicídios era de apenas 2%; em 1882, de 7% além disso, não se dividiu igualmente pelo diferentes momentos do ano, mas concentrou-se, sobretudo nos três primeiros meses, isto é, no momento preciso em que o crack se produziu. Devem-se a esse único trimestre o 59% do aumento total (DURKHEIM, 2003, p. 257).

Desde a publicação do livro O suicídio, muitas pesquisas foram realizadas e muitas falhas

nas análises estatísticas foram encontradas. Todavia, a contribuição de Durkheim

permanece inabalável, pois sua percepção sobre a influência da sociedade neste

acontecimento perturbador foi, como já mencionamos, revolucionária.

Afinal, quem marca a hora?

Se Émile Durkheim afirmava que a hora já vinha marcada pela sociedade, Max Weber

(1864 - 1910), outro grande nome da sociologia, asseverava ser importante também levar

em conta o sentido que os indivíduos constroem para legitimar suas ações e suas

escolhas. Pensemos por exemplo na questão da dominação. Para Weber, alguém que

se deixe dominar pode fazê-lo devido a hábitos não refletidos, mas também por perceber

de forma racional que esta concessão pode trazer-lhe algum ganho. E isso também é

válido para o dominador. Segundo Weber, existe uma dinâmica social entre dominador e

dominado que permite o estabelecimento de certo equilíbrio entre as partes. É a

justificativa que o dominado concede para sua dominação, e não a maneira de execução

do poder por parte do dominador, a responsável pela legitimação do ato de dominação.

O dominado, desse modo, torna-se o sujeito de uma ação, cujo sentido construído por

ele pode legitimar o poder do dominador. Pode-se concluir que a dominação é passível

de ocorrer por convicções pessoais, por dependências de caráter afetivo ou econômico,

ou, ainda, porque os envolvidos nesta dinâmica desejam alcançar algum tipo de benefício

futuro, como por exemplo, ser reconhecido, apoiado ou receber algum ganho em

determinada esfera. Logo, Weber não descarta as inclinações pessoais na dinâmica

social. É a natureza dos desejos que motiva o tipo de dominação, e a natureza dos

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desejos pode ser encontrada na complexa relação entre a sociedade e os indivíduos que

a compõe. Isso não deixa de ser uma profunda relação social. Contudo, é constituída

pelos sentidos que os indivíduos concedem para sua ação.

Figura 5: Max Weber

Weber difere de Durkheim, para quem a sociedade estava sempre na frente dos

indivíduos. Em Weber, os indivíduos são participantes na construção da História. Seus

desejos se mesclam às regras sociais gerando padrões complexos de relação e

comportamento, ora conscientes, ora inconscientes. Nada surge meramente da cabeça

dos envolvidos, uma vez que todas as ações estão baseadas em relações sociais

(BOTTOMORE; NISBET,1980).

Na Sociologia de Weber não existe a oposição entre indivíduo e sociedade que

encontramos em Durkheim, uma vez que as normas sociais só se tornam sólidas quando

aparecem nos indivíduos sob a forma de uma motivação. Cada indivíduo age por um

motivo que é dado pela tradição, por interesses de caráter racional ou mesmo emocional.

Weber discorda de Durkheim, pois acredita que a hora não vem marcada pela sociedade.

Afirma que podemos entender a dinâmica social por meio de diferentes aspectos, e

nenhum deles é melhor que outro. Há sempre diversas interpretações possíveis quando

se trata de análise social.

Para saber mais: 

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: https://www.marcelloarias.com.br 

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MÓDULO 3

Os Campos Sociais de Pierre Bourdieu –

Parte 1

Pierre Félix Bourdieu (1930 – 2002) foi um renomado sociólogo francês. Sua fama foi

mundial, e teve seu período áureo no final do século XX. Herdeiro direto de Émile

Durkhein, Max Weber e também de Karl Marx, exerceu um enorme impacto em diversas

áreas do conhecimento, como a educação, as ciências sociais e a comunicação. Para

um aluno (a) mais atento (a) ficará evidente o quanto este autor nos é caro para que

possamos obter maior clareza quanto aos mecanismos subjacentes ao campo social que

agora começamos a conhecer, ou seja, o campo acadêmico, científico.

Figura 18: Pierre Félix Bourdieu

Como cientista que era, assim como seus predecessores, Bourdieu se diferencia dos

filósofos por abster-se de fazer especulações que não possam ser comprovadas

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empiricamente. Sua obra já seria densa mesmo se ele não acrescentasse a ela uma

gigantesca quantidade de informações colhidas ao longo dos anos em suas pesquisas

de campo. Números, tabelas, fórmulas, cálculos, gráficos, estatísticas e demais

instrumentais científicos concedem à sua produção intelectual um significativo peso,

assim como um ônus para aqueles que almejam criticá-la, pois, para argumentar com

este autor de forma séria, é indispensável contrapor seus achados empíricos, o que

dificulta sobremaneira a existência de um bom número de críticos abalizados e sérios.

Fora isso, sua escrita é desprovida de qualquer preocupação didática. Seu estilo literário

é inversamente proporcional à sua gigantesca genialidade, ou seja, tosco. Um de seus

livros mais emblemáticos é sem sombra de dúvidas A Distinção, Crítica Social do

Julgamento, que foi publicado na década de sessenta, sendo essa obra um exemplo

clássico do que foi dito (BOURDIEU, 2006). Para aqueles que entram em contato com

sua produção intelectual, a primeira impressão é que ela é por demais densa, enigmática,

obscura. Sua forma de escrever é radicalmente confusa e seu didatismo simplesmente

não existe. Kant e Heidegger provavelmente se sentiriam orgulhosos e representados

por Bourdieu, pois esses três senhores são de uma leitura um tanto quanto “indigesta”.

Todavia, antes de entrar em contato com seu pensamento, fui apresentado a ele por

intermédio de um grande professor chamado Clóvis de Barros Filho. Foi ele quem me

concedeu - como brinca o filósofo Luc Ferry -, as “chaves do castelo” de Bourdieu. Sem

elas, a leitura dos originais poderia ter se tornado um pesadelo de enormes proporções.

E é sempre prudente reiterar que muitas das ideias didáticas contidas nesta obra que

agora tens em mãos, são oriundas do professor Clóvis. E como ainda não existe uma

forma de se referenciar aulas, fica aqui um agradecimento a este professor admirável,

modelo a ser seguido por todos aqueles que ainda acreditam na força de um mestre

apaixonado pelo que faz e no poder que uma didática sem precedentes tem de introduzir

lucidez onde antes havia obscuridade e desconhecimento. E para você, querido (a) aluno

(a) que recém chegou, este é mais um aprendizado para você. Nenhum professor tira

suas ideias do nada e nenhum cientista elabora suas pesquisas a partir do zero. Por este

motivo, é sempre elegante e ético citar as fontes originais de onde suas ideias evoluem

ou de onde sua pesquisa científica emana. Lembre-se disso durante todo o transcorrer

de sua jornada acadêmica.

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Figura 19: Luc Ferry

O pensamento de Bourdieu é bastante perturbador para aquelas pessoas com

convicções idealistas muito arraigadas. Metafísicos podem ter facilmente um colapso

nervoso ao lê-lo. Bourdieu extrapola o quanto pode em realismo, aspereza, crueza, mas

isso não obscurece o fascínio de seu pensamento, pelo contrário, enaltece sua fertilidade.

Sigamos em frente, então.

A ilusão naturalista

Um dos conceitos com o qual Bourdieu colocou muito foco em sua carreira foi o da ilusão

naturalista, o que em sumo é uma crítica às afirmações da primazia da natureza sobre

o social. Em outras palavras, muitas coisas que na sociedade temos a tendência de

considerar como sendo genéticas, hereditárias, biológicas, são na verdade ecos de uma

socialização que nos foi imposta. O aparente natural tem sua origem no social. Bourdieu

acredita que nos acostumamos a naturalizar nossas ações do cotidiano, ignorando de

forma grosseira a maneira como o trabalho social vai sovando nossas convicções mais

profundas e vitimando nossa consciência de forma lenta e sorrateira. Como já dizia

Durkheim, e aqui começamos a ver as heranças de Bourdieu sendo expostas, muitas

coisas ditas naturais são fatos sociais, intervenções sociais tão profundas e arraigadas

que na maioria das vezes passam despercebidas para aqueles que se acostumaram a

viver suas vidas concedendo ao piloto automático a primazia da condução de suas

existências. Se quisermos escapar da quase inexorável teia de atos irrefletidos e crenças

disfuncionais, teremos que desenvolver a capacidade de identificar o socialmente

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explicável. Esse passo é um pré-requisito imperativo para todos que desejam fazer

ciência de maneira séria, e para todos aqueles que desejam despir-se de seus

moralismos ingênuos e de seus imaginários metafísicos que nos acorrentam ao senso

comum e a seu pensar ingênuo.

Para Bourdieu, a naturalização dos comportamentos humanos retira da sociedade o ônus

da responsabilidade dos resultados. Para Bourdieu, este tipo de comportamento é

excelente para os dominantes, e aqui revisitamos temas já desenvolvidos por seus

antecessores, como Weber. O conceito de natureza humana pode facilmente mascarar

os processos sociais de dominação, pois quando arrogamos ao indivíduo atributos inatos,

acabamos por rotulá-lo antes mesmo de nascer. Um dos aspectos mais facilmente

naturalizáveis diz respeito às questões relativas aos gêneros. Gênero social é algo

diametralmente diferente de sexo biológico. Neste momento, apenas considere que as

diferenças de gênero podem não ser biologicamente determinadas, mas culturalmente

produzidas. Homens e mulheres, desde a mais tenra idade, ou melhor, mesmo antes de

nascer, são socializados em papéis diferentes. O que encontramos na seção de

brinquedos para meninos? Super heróis lutadores e corajosos, carrinhos, blocos de

montar, bolas, acessórios para prática de esportes etc. E na seção das meninas?

Bonecas, produtos de maquiagem, carrinhos para bebês, cozinhas de brinquedo, tábua

de passar roupas de brinquedo etc. Aprendemos a comportar-nos de acordo com papéis

comunicados socialmente, e um deles é o de menino que aprende como ser um homem

e o de menina que aprende como comportar-se como uma futura mãe e dona de casa.

Bourdieu aponta por meio de suas pesquisas os mecanismos sociais que facilitam a

dominação masculina, tornando-a legitima e plenamente aceita tanto pelos homens

quanto pelas mulheres. Para mim, autor da obra que você agora lê, e que tenho formação

filosófica, mas também em neurobiologia, é impossível deixar de levar em consideração

as recentes descobertas das neurociências, da genética e de outras áreas que nos

presenteiam com uma cativante visão de nossa natureza. A biologia, por exemplo, nos

concede um suporte inato inquestionável e separa machos e fêmeas de forma bastante

evidente e inequívoca. Todavia, a diferenciação entre machos e fêmeas nada tem a ver

com os conceitos de masculinidade e feminilidade que estão intimamente atrelados aos

diferentes constructos sociais oriundos dos mais diversificados períodos históricos pelos

quais passamos. Para tanto, basta perceber que o que se esperava de um homem na

Era dos Vikings é bastante diferente do comportamento masculino atual. Sendo assim,

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Bourdieu afirma que grande parte da naturalização dos comportamentos humanos nada

mais é do que um pretexto para ocultar uma complexa edificação social que varia

amplamente de lugar para lugar. Mais ainda, que os constructos simbólicos oriundos da

sociedade subvertem constantemente os ditos suportes biológicos, ainda que para a

maioria das pessoas isso não seja evidente. Todavia, a ilusão naturalista não tem a ver

somente com gênero, ela também se estende para todas as declarações referentes às

diferenças étnicas, o que ajuda na propagação dos preconceitos raciais e na crença que

reforça posturas etnocêntricas nefastas.

A influência de Karl Marx

Bourdieu foi fortemente influenciado por Karl Marx (1818 - 1883), e de certa forma,

estendeu a análise social deste pensador. Por este motivo, valerá à pena conhecermos

um pouquinho da obra de Marx. Não é pequeno o número de pessoas que critica Marx

sem ao menos conhecer um fragmento de seu pensamento. É comum associá-lo com

comunistas comedores de criancinhas, com o colapso dos países do bloco socialista,

com as ditaduras de Josef Stalin, Nicolae Ceauşescu e companhia. O que poucos sabem

é que o pensamento de Marx é brilhante e revolucionário e que é praticamente impossível

compreender a sociedade e a dinâmica do comportamento das relações humanas sem

conceder-lhe o devido crédito. Marx foi um cientista e um idealista ao mesmo tempo.

Como cientista, realizou uma primorosa análise da sociedade que continua válida até os

dias atuais. Como idealista, sonhou com um mundo melhor que, infelizmente, não se

concretizou. Quando criticamos Marx, é provável que estejamos criticando o Marx

sonhador. Criticar o Marx cientista já é tarefa para poucos, pois sua análise social foi

requintada e bastante elegante. Provavelmente ainda ouviremos falar deste cidadão por

séculos. Todavia, é pertinente lembrá-los que nossa disciplina versa sobre Metodologia

e Filosofia da Ciência. Pontuo esta lembrança, pois acredito que alguns de vocês podem

estar se questionando se é realmente necessário adentrarmos nessas questões quando

nosso objeto de estudo parece ser de outra natureza. A resposta para esta inquietação é

um contundente SIM. Pois se não compreendermos a natureza social do campo

científico, não estaremos prontos para abraça-lo com entusiasmos e responsabilidade.

Daí a necessidade de uma análise social do campo acadêmico e científico. Então,

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revigore-se que o melhor ainda está por vir. Continuemos com nossa leitura. Escreva

suas dúvidas que em breve estaremos juntos para esclarecê-las mais uma vez.

Figura 20: Karl Marx

Marx afirma que os valores que concedemos às coisas do mundo não são explicáveis

por essas coisas em si. Seja uma prancha de surfe, um evento esportivo, uma obra

literária, uma composição musical, necessitamos de uma referência que facilite a

valoração, e esta referência é a infraestrutura econômica. Em outras palavras, a

produção dos bens materiais nos concede parâmetros para valorar as coisas como sendo

boas ou ruins, e consequentemente, como certas ou erradas. A economia seria assim o

lugar privilegiado para encontrar os valores das coisas do mundo. Quanto maior a

produção dos bens materiais, melhores serão as coisas. A produção de bens materiais

concede as respostas para tudo no mundo. Se existe produção de bens materiais a coisa

é boa, caso contrário, não tem valor algum!

Contudo, existe um conflito inserido nesta dinâmica de produção de bens materiais, e

esse conflito é polarizado entre a burguesia, dona dos meios de produção, e o

proletariado, grupo que vende sua força de trabalho. Se quisermos entender o valor das

coisas, devemos entender a relação de conflito entre esses dois grupos. Marx afirma que

a luta entre essas duas classes sociais nos concede a chave para entendermos a gênese

dos valores sociais, pois existe uma maneira burguesa de conferir valor ao mundo. Essa

maneira tende a universalizar-se, pois os burgueses são fortes para impor seus valores

à classe proletária. Gradativamente, esses valores se tornam irretorquíveis e absolutos.

Pense com parcimônia caro (a) aluno (a), para a maioria da população, o que a classe

dominante afirma ser bom e bonito, acabará sendo, pois os veículos midiáticos são, na

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sua maioria, veículos burgueses. Pense nas revistas de moda, nas revistas que expõe a

vida das celebridades. Recorde-se dos programas televisivos dos canais abertos, a

esmagadora maioria das rádios de cunho não alternativo, entre outros. Em resumo, se

nosso desejo é entender a gênese do certo e do errado, devemos estudar em

profundidade as formas como a burguesia oprime o proletariado e faz valer seus pontos

de vista. Bourdieu concorda com Marx, mas vai além, pois não acredita que seja somente

por esta via que entenderemos a genealogia dos valores. Dizer que a sociedade, dividida

em dois grandes grupos, é a fonte maior do bem e do mal, é ancorar a análise social em

algo muito amplo. A divisão da sociedade em classes burguesa e trabalhadora explica

muitas coisas, todavia, deixa muitas outras de fora. É deste ponto que Bourdieu continua

a análise social.

Os campos sociais

O conceito de campo social é provavelmente um dos mais fecundos e originais de Pierre

Bourdieu. Entendê-lo de forma clara poderá conceder a você, caro (a) estudante, uma

enorme ampliação em sua capacidade reflexiva e perceptiva, e isso facilitará bastante a

compreensão dos mecanismos de organização social que subjazem ocultos em uma

grande parcela dos conflitos sociais. Depois de absorver a lógica inerente a este conceito

é muito provável que você passe a ter maior clareza da dinâmica das relações humanas,

e que paulatinamente deixe de lado certo tipo de moral pueril fruto de crenças

relativamente ilusórias a respeito da natureza de nosso comportamento.

Mas afinal, o que vem a ser um campo? Um campo pode ser definido como um espaço

onde pessoas, ou agentes sociais, ocupam posições simbolicamente determinadas.

Essas posições sociais são as responsáveis pela forma como as relações entre as

pessoas são constituídas. É importante frisar que o espaço ocupado por um determinado

campo não é necessariamente um espaço físico, é um espaço abstrato. As relações

sociais de um determinado campo poderão acontecer em qualquer lugar onde os agentes

se encontrarem. Sendo assim, as posições sociais são muito mais atreladas ao

simbolismo do que a um determinado lugar geograficamente determinado, e mesmo

quando as distâncias físicas entre os agentes de um campo são aumentadas, ou

diminuídas, as distancias ditas simbólicas não sofrerão nenhuma alteração. Nas palavras

de Bourdieu:

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Eu não sou atopos, sem lugar, como Platão dizia de Sócrates, ou “sem vínculos nem raízes”, como afirma um tanto às pressas, aquele que por vezes se considera como um dos fundadores da sociologia dos intelectuais, Karl Mannheim (BOURDIEU, 2001, p.160).

Não existe ninguém que não esteja caracterizado pelo lugar em que está situado de

maneira mais ou menos permanente (BOURDIEU, 2001 , p.165).

Durkheim afirma que a sociedade estabelece suas regras aos indivíduos, impondo a eles

muitas maneiras de agir que, por vezes, acabam sendo inconscientes. Desta maneira,

não nos damos conta da coerção social a que estamos sendo submetidos. Aprendemos

padrões de comportamento praticamente a cada instante. Alguns deles nos foram

ensinados, como por exemplo, as regras de convivência e etiqueta, como o uso dos

talheres à mesa, não falar com a boca cheia, entre outras. Contudo, pense na distancia

que você mantém ao falar com outra pessoa. Essa distância obedece a certo limite que

não costumamos subverter, e para a maioria das pessoas este comportamento foi

adquirido naturalmente, inconscientemente, sem que precisássemos de orientação para

realizá-lo. Distâncias físicas entre diferentes sujeitos são aprendidas inconscientemente,

e este é um bom exemplo de como, ao longo dos anos, a sociedade vai-nos sovando

gradativamente, subvertendo em muitos aspectos o livre arbítrio que muitos de nós

pensamos ter na maioria das ocasiões.

Mas, voltemos aos campos sociais. Sabemos que as posições sociais não podem ser

definidas pela forma clássica de definição de objetos, ou seja, de maneira universal e

própria, pois as posições sociais tornam-se estéreis quando analisadas em si mesmas.

Elas necessitam ser definidas por tautologia, uma vez que a presença do seu oposto é

indispensável para que possamos conceder-lhe um significado. As posições sociais são

sempre polarizadas, relacionais, pois algo é o que o outro não pode ser. Assim, um

soldado só é soldado em função do cabo, um burguês só o é em função da classe

proletária, um professor em função de seu aluno, um chefe só é chefe em função de seu

subordinado e assim por diante.

As estruturas do campo

Todo campo social é estruturado, ou seja, é cortado por eixos que lhe dão sentido e

conferem singularidade às posições sociais ocupadas por seus agentes. Pense por

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exemplo no campo político. Ele é cortado por um eixo que lhe confere a possibilidade de

identificarmos seus agentes sociais ao centro, à esquerda ou à direita. A partir desse eixo

é possível aproximar ou afastar os agentes sociais, e isso facilita a identificação do

posicionamento de cada um deles. Se tomarmos, por exemplo, um esporte, como o surfe,

perceberemos que ele é estruturado por meio de modalidades. Existem surfistas que

surfam deitados sobre pequenas pranchas de espuma, são chamados de bodyboarders.

Existem os que surfam em pé, com pequenas pranchas de fibra de vidro, conhecidos

como shortboarders. Encontramos surfistas que gostam de surfar em pé, com pranchas

muito grandes, são os longboarders. Existem ainda surfistas competidores profissionais

e surfistas profissionais que são pagos por grandes empresas somente para viajar e

produzir fotos em lugares espetaculares, esses são conhecidos como free surfers.

Apesar de tudo isso pertencer ao esporte surfe, essa estruturação concede uma enorme

diferenciação aos seus praticantes. Não somente no que diz respeito à técnica esportiva,

mas principalmente no comportamento, na forma como compreendem suas atividades,

no jeito de se vestir, de agir, de falar sobre suas modalidades. Enfim, são quase que

pertencentes a “tribos” diferentes. O campo jornalístico também apresenta vários eixos

estruturantes, como por exemplo, o jornalismo de massa da Rede Globo, das Revistas

Veja, Época, Istoé, e o jornalismo de cunho alternativo como o da Revista Carta Capital.

No campo da arte podemos contrapor a arte popular à arte apreciada e consumida pelas

elites. O campo jurídico tem uma grande diversidade de eixos estruturantes como o dos

advogados trabalhistas, advogados de empresas, juízes, promotores, delegados,

defensores públicos, etc. O campo acadêmico é traspassado por um eixo

estruturante que muito nos interessa e que cliva o campo em duas metades

bastante distintas, o das universidades particulares e o das faculdades, centros

acadêmicos e universidades privadas. Tradicionalmente, as universidades públicas

são o reduto privilegiado da produção científica, pois gozam de incentivos financeiros

advindos do Estado, e saiba caro (a) aluno (a), produzir pesquisa científica de

qualidade é bastante trabalhoso, desafiador e oneroso. Todavia, ainda que as

faculdades, centro acadêmicos ou mesmo universidades privadas não tenham

necessariamente a obrigação de serem os agentes principais no que tange a produção

de ciência e tecnologia, não podem se conceder o luxo de virar as costas para esta

gigantesca necessidade social. Daí a importância de conceder a todo e qualquer aluno

universitário, as noções mais basilares deste campo em particular. Fora isso, a

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identificação dos eixos estruturantes pertencentes a cada campo social facilita a

percepção das peculiaridades comportamentais de cada um dos seus agentes sociais –

em nosso caso, professores e alunos; professores orientadores de trabalhos científicos

e seus alunos orientandos; coordenadores de núcleos de pesquisa etc -, assim como a

possibilidade de identificar também a posição que cada um desses agentes exerce dentro

de seu respectivo campo.

As estruturas de pensamento do filósofo, do escritor, do artista ou do erudito, bem como dos limites do que se lhes impõe como pensável ou impensável, são sempre dependentes, em certa medida, das estruturas de seu campo, portanto da história das posições constitutivas desse campo e das disposições nele favorecidas (BOURDIEU, 2001, p.120).

Uma das coisas mais peculiares dentro da sociologia dos campos é a descoberta de que,

muitas vezes, o reconhecimento que um agente goza dentro de seu campo, nem sempre

é refletido no senso comum e vice versa. É preciso fazer parte do campo para

compreender a força e o poder simbólicos que determinados agentes são

detentores, pois, quando não se conhece o campo profundamente, quando não se tem

noção das regras inerentes a cada campo social, temos a tendência de imaginar

posicionamentos fantasiosos e irreais para determinados agentes. Lembre-se da unidade

1, quando versamos sobre Amit Goswami. Este senhor ganhou enorme popularidade

escrevendo livros sobre espiritualidade e física quântica. Todavia, a reputação dele não

é oriunda do campo da física, e sim do campo do esoterismo. Para um leitor menos

prudente e atencioso, conceder a Amit Goswami uma reputação dentro do campo

científico da física pode ser uma confusão bastante recorrente de ser encontrada. Logo,

para vocês que agora adentram o campo acadêmico, é imperativo que se saiba que o

reconhecimento de personalidades fora do seu campo, muitas vezes pode não refletir o

reconhecimento desta mesma personalidade dentro do campo. Fátima Bernardes pode

ser tida pelo senso comum como uma das maiores jornalistas do Brasil, todavia, se

perguntarmos ao povo quem foi Cláudio Abramo é provável que poucos o reconheçam.

Entretanto, dentro do campo jornalístico Abramo, ainda que falecido, detém uma

quantidade muito superior de capital simbólico.

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Todo campo tem regras

Um campo é um local onde invariavelmente ocorrem as disputas do jogo social. Uma

grande quantidade de regras é oriunda de algum tipo de jurisdição. Todavia, as regras

mais interessantes de serem analisadas são as de caráter tácito, ou seja, aquelas

que existem, mas não estão necessariamente impressas em nenhum manual e nem

tampouco podem ser baixadas com auxílio do “doutor Google”. Os campos são

verdadeiras arenas abstratas onde se desenrolam as contendas sociais. Eles são

repletos de agitação, conflito, competição, mas também são permeados de cooperação,

concordância, anuência e aquiescência explícitas quanto aos procedimentos internos do

campo. O americano Kelly Slater, onze vezes campeão mundial de surfe, teve em sua

carreira um rival bastante feroz, o havaiano Andy Irons. O campo social esportivo onde

ambos duelavam foi palco de acontecimentos memoráveis que oscilavam entre o conflito

aberto permeado de aspereza, e a proximidade quanto à atividade que concedia sentido

às suas vidas. Enquanto agentes do mesmo campo enfrentavam-se de forma cáustica e

apoiavam-se mutuamente em defesa das regras do jogo que permitia a continuidade do

arcabouço do campo onde duelavam e tiravam seu sustento. Foi assim também durante

a década de oitenta com os deputados constituintes Lula e Guilherme Afif Domingos, que

por razão de estruturação do campo eram ao mesmo tempo adversários, mas também

amigos sinceros, competidores e defensores das condições necessárias de manutenção

e reprodução das regras do jogo político. O campo científico também não é asséptico.

Kuhn – vimos isso na unidade 1 – já nos alertou sobre os jogos de poder que existem em

seu interior, e é importante que tenhamos ciência disso no momento em que decidimos

fazer parte de um determinado campo social. Contudo, por mais que a mídia insista em

nos enganar, sempre existirá muito mais afinidade entre Kelly Slater e Andy Irons, entre

Lula e Afif, entre Galvão Bueno e Luciano do Valle, entre Anderson Silva e Cris Weidman

do que entre pessoas que não jogam o mesmo jogo.

Permitirei-me citar-me como exemplo caro (a) aluno (a). Uma das atividades que exerço

em minha vida profissional é a docência universitária, e esta atividade me permitiu

conhecer um grande amigo, que por anos a fio foi diretor geral da nossa UNIBR, seu

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nome é Danilo Nunes. Além de amigo, sempre fui um grande admirador do professor e

líder Danilo Nunes. Todavia, ainda que sejamos amigos; ainda que ambos tenhamos uma

sincera e aberta admiração recíproca; socialmente somos competidores, pois

ministramos aulas na mesma faculdade e da mesma disciplina – comportamento

organizacional. Aos olhos de Bourdieu, seria ingenuidade imaginar que ambos, eu e

Danilo, não buscamos a consagração e os troféus simbólicos presentes no interior do

campo acadêmico, como já dito, perpassado pelo eixo que origina duas realidades

opostas, universidade pública e universidade privada. Ambas com universos, regras,

troféus e comportamentos distintos entre seus agentes, assim como detentoras de

consagrações simbólicas radicalmente diferentes. Siga Bourdieu abaixo:

Como o campo artístico, cada universo erudito possui sua doxa específica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência. Paradoxalmente, as grandes oposições taxativas acabam unindo os mesmos que se opõe através delas, visto que é preciso concordar em admiti-las para que se esteja apto a contrapor-se a seu propósito, ou, valendo-se de sua mediação, de produzir então tomadas de posição imediatamente reconhecidas como pertinentes e sensatas mesmo por parte daqueles aos quais elas se opõem e que por sua vez lhes opõem. Esses pares de oposições específicas (epistemológicas, artísticas etc.), que são também pares de oposições sociais entre adversários cúmplices no interior do campo, delimitam, inclusive em política, o espaço legítimo de discussão, excluindo como absurdo, eclético ou simplesmente impensável, qualquer tentativa de produzir uma posição não prevista (quer se trate da intrusão absurda ou deslocada do “ingênuo”, do “amador” ou do autodidata, ou da grande inovação subversiva do heresiarca, religioso, artístico ou mesmo científico) (BOURDIEU, 2001, p.122).

As portas de entrada

A entrada em um campo social seja ele qual for, obedece a alguns critérios que não

podem ser facilmente subvertidos. Todo campo tem os jogadores que estão em plena

atividade, deleitando-se com o jogo, competindo pelos seus troféus. Em contrapartida,

existem os pretendentes, aqueles que ainda não estão nem sequer no banco de reservas,

mas almejam poder jogar. Por exemplo, a porta de entrada do seleto grupo dos surfistas

de ondas grandes, os denominados big riders, é um desempenho convincente quando o

mar atinge proporções épicas. A porta de entrada do campo jurídico é sem sombra de

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dúvidas o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No caso do campo

acadêmico a porta de entrada é a aquisição da titulação conferida pela finalização

de um bom mestrado, e uma boa iniciação científica pode ser a anteporta de

entrada deste campo, PENSE NISSO COM CARINHO. Contudo, nesses três exemplos,

a transposição dessas portas configura somente o primeiro passo. Um passo que

credencia o agente social a jogar o jogo relativo a esse campo determinado. Mas a

patente ainda é baixa. A porta de entrada qualifica o jogador para jogar o jogo nas

posições mais inferiores, e a contundência com a qual a sociedade vai definindo os

próximos passos é bastante evidente àqueles com olhares atentos. O que poderá ser

feito e o que não poderá ser feito para galgar as próximas etapas é geralmente percebido

durante um processo longo e moroso, pois assim que se adentra um determinado campo,

fica evidente aos mais atentos que seus agentes sociais disputam os troféus do campo

dispondo de um capital simbólico radicalmente diferente. O capital simbólico pode ser

definido como um conjunto de recursos que cada agente social lança mão com vistas à

disputa dos prêmios específicos dos campos nos quais está inserido e já pode ser

considerado um agente legítimo.

Um fato que deve ser pontuado e apreciado com bastante parcimônia, é que os capitais

simbólicos tendem a ter validade somente dentro de campos específicos. Por exemplo,

um doutoramento pode ser considerado uma gigantesca aquisição de capital simbólico

no campo acadêmico. Todavia, este título tem validade quase nula no seio do mundo

corporativo. De forma inversa, um MBA pode conceder algumas preciosas fichas para

um executivo jogar o jogo das corporações, mas não será levado em consideração na

hora em que esse mesmo executivo almeje ministrar algumas aulinhas no curso de

Administração de Empresas de uma universidade qualquer. Em outras palavras, poderes

e capitais simbólicos adquiridos em um determinado campo, quase que invariavelmente

não tem validade em outros campos, ainda que muitos agentes sociais se esforcem no

sentido de validar esta conversão. Todavia, o preço a ser pago na forma de taxas

simbólicas de conversão de capital, na maioria das vezes inviabiliza o sucesso desses

esperançosos agentes sociais. Nas palavras de Bourdieu:

De outro lado, se é verdade que os ocupantes de posições dominantes nos diferentes campos estejam unidos por uma solidariedade objetiva fundada na homologia entre tais posições, eles também se opõe, no interior do campo do poder, por relações de concorrência e de conflito, sobretudo a respeito do princípio de dominação dominante e de “taxa de

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câmbio” entre diferentes espécies de capital que fundamentam as diferentes espécies de poder (BOURDIEU, 2001, p.125).

Marília Gabriela não foi poupada quando fez incursões pelas telenovelas. Lobão foi

censurado quando se aventurou como apresentador da MTV. Antônio Ermírio de Moraes

e Silvio Santos fracassaram em suas tentativas de adentrar o campo político. No campo

acadêmico científico a taxa cobrada é ainda mais elevada, e os rigores que devem ser

obedecidos precisam ser conhecidos por todo e qualquer agente social que pretenda

fazer parte deste campo.

Dentro do campo a repartição do capital é intensamente desigual, díspar, e a quase

totalidade do que se aplaude em um agente social é a posição já conquistada, sua

história, seus troféus, seus feitos, em suma, o que já se fez, e não o que se almeja fazer.

O capital social é outorgado, pelos pares, pelos jogadores do campo, e como todos eles,

na maioria das ocasiões, concordam com as regras, sejam elas tácitas ou jurídicas, a

invasão abrupta de um determinado campo é invariavelmente vista como subversão das

regras. Logo, quanto maior o reconhecimento dos pares, dos demais jogadores do

campo, maior será o poder simbólico do agente que goza deste reconhecimento.

Para saber mais: 

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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MÓDULO 4

Os campos Sociais de Pierre Bourdieu – Parte 2

O conceito de Illusio

Que todo o jogo tem troféus, isso já falamos. Todavia, o que são esses troféus? Platão

nos fala que o homem comum é guiado pelos desejos e que com o uso da razão pode

transcendê-los. O filósofo nada mais seria, segundo este pensador, do que o sujeito que

supera suas inclinações mais viscerais, no intuito de conhecer a verdade. Todavia, muita

água rolou debaixo da ponte platônica, e apesar de sua inegável contribuição para o

aprimoramento do pensamento humano, hoje são poucos os pensadores sérios, sejam

eles filósofos, sociólogos ou neurobiólogos, que acreditam que o homem possa abdicar

de todas as suas inclinações e desejos, com vistas ao atingimento de ideias eternas e

verdades imutáveis. Somos seres humanos, e faz parte de nossa humanidade buscar

carinho, afeto, reconhecimento, algum status, certo tipo de diferenciação, uma premiação

aqui, uma promoção acolá, um título qualquer ali, um certificado pendurado na parede.

Todo o campo tem troféus, e eles são bastante específicos. O campo jornalístico os tem,

o jurídico, o artístico, o acadêmico, o esportivo, etc. E por mais que se tente explicar aos

agentes de outros campos, o valor do troféu só é percebido por quem joga o jogo, e isso

pode muito bem ser uma definição do conceito de illusio, ou seja, a naturalização do

valor dos troféus para os agentes inseridos no campo. Quem não joga o jogo, não

entende a motivação de quem joga.

Em lugar de se inserir na ordem dos princípios explícitos, das teses formuladas e defendidas, a illusio faz parte da ação, da rotina, das coisas que se faz e que se faz porque se fazem e na verdade sempre se fez assim. Todos aqueles engajados no campo, defensores da ortodoxia ou da heterodoxia, partilham a adesão tácita à mesma doxa que torna possível a concorrência entre eles e lhes impõe seu limite. [...] ela impede de fato o questionamento dos princípios da crença, que ameaçaria a própria existência do campo. Os participantes não tem nada a responder quanto às questões sobre as razões da pertinência, do engajamento

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visceral no jogo, e os princípios que podem ser invocados nesse caso não passam de racionalizações post festum destinadas a justificar, tanto para si como para os outros, um investimento injustificável (BOURDIEU, 2001, p.124).

[...] cada campo confina assim os agentes a seus próprios móveis de interesse os quais, a partir de um outro ponto de vista, ou seja, do ponto de vista de um outro jogo, tornam-se invisíveis ou pelo menos insignificantes ou até ilusórios (BOURDIEU, 2001, p.117).

Muitos troféus podem ser materializáveis, em taças, medalhas, placas etc. Porém, a

maioria dos troféus é simbólico, e quem não está inserido no campo, não está apto a

compreender suas regras, sua dinâmica, as relações entre seus agentes. Sendo assim,

terá grande dificuldade para compreender a motivação dos jogadores na disputa por

esses símbolos. Por exemplo, mestrados, doutorados, pós-doutorados, livres-docências,

são todos troféus do mundo acadêmico científico. Para conquistá-los, os agentes do

campo acadêmico abdicam anos de convívio com a família, de diversão e lazer, de

investimento em outros campos sabidamente mais rentáveis financeiramente do que o

campo acadêmico. Passados aproximadamente quinze anos de luta incessante, podem

qualificar-se para disputar uma vaga em uma universidade e desfrutar de um salário de

aproximadamente oito mil reais. Sim caro aluno (a), é pouco! Muito pouco! Comparado

ao esforço, é mesmo uma vergonha! Todavia, muitas pessoas passam a vida em busca

dessas titulações, e é importante que se perceba que por detrás delas existem valores

simbólicos que são incomensuráveis. Motivações advindas de outras esferas que não a

econômica. Reconhecimento de outras ordens. É assim no campo acadêmico, e é assim

também em inúmeros outros, onde as motivações transcendem interesses econômicos,

e isso, como veremos um pouco mais à frente, de certa forma subverte a perspectiva

social de Marx, que acreditava que estudando as relações de conflito entre burgueses e

proletários compreenderíamos a totalidade da sociedade.

O professor Clóvis de Barros Filho, assim como eu, um crítico das receitas prontas, das

fórmulas mágicas para atingir o sucesso, das universalizações de cases de sucesso, ao

criticar a efetividade das palestras motivacionais nos lembra em uma de suas aulas que:

“Toda motivação pressupõe um contexto social mais amplo do que uma palestra possa

proporcionar. A motivação é a quantidade de energia que você disponibiliza para buscar

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troféus em espaços específicos de convivência que são os teus. Espaços onde você se

sente um agente legítimo. A motivação pressupõe a inscrição em um contexto relacional

de jogo que é social, não é pessoal”.

Em suma, ninguém pode tirar proveito do jogo, nem mesmo os que dominam, sem se envolver a fundo no jogo, sem se enredar nele: isto significa dizer que não haveria jogo sem adesão (visceral, corporal) ao jogo, sem o interesse pelo jogo enquanto tal, que constitui o princípio de interesses diversos, até mesmo conflitantes, dos diferentes jogadores, das vontades e aspirações que os animam e que, produzidas pelo jogo, dependem da posição que nele ocupam (BOURDIEU, 2001, p.187).

Bourdieu chamava os desejos de eros, assim como Platão em sua obra O Banquete . Os

agentes sociais estão sempre erotizados, isto é, desejosos. E essa carga erótica é

recorrentemente direcionada para a busca dos troféus dos campos. Os agentes articulam

estratégias com vistas à aquisição dos capitais específicos do campo. Todavia, esses

desejos parecem não ser tão nefastos quanto Platão nos falou. Eles fazem parte de nossa

humanidade. Estão incrustados nas sinapses de nosso sistema nervoso central. E como

seres humanos, somos agentes de obras magníficas, obras não tão admiráveis e obras

pouco atraentes. Assim também é no seio dos campos sociais. Tem gente que joga

dentro das regras, tem gente que abusa das faltas, tem gente que subverte o aceitável

no afã da conquista do troféu. Tem sido assim desde o começo dos tempos. Faz parte

da natureza humana. Natureza temperada com pitadas de sociedade, ou quem sabe,

sociedade temperada com pitadas de natureza. Ponto de origem de conflitos, de inveja,

de ciúmes, de rancores e de mágoas, os troféus, mais especificamente os troféus do

campo acadêmico científico, também ajudaram na erradicação de doenças; no avanço

da tecnologia; na melhora sensível da qualidade de vida; pois foi buscando todos os tipos

de premiações, que o homem evoluiu. Saímos em busca do triunfo e fomos deixando as

marcas e os legados de nossas conquistas.

Uma vez inseridos na sociedade, a probabilidade de nos inscrevermos nas contendas

sociais é quase inexorável, pois isso é decorrência do nosso pertencimento e da nossa

inscrição no jogo da vida. Mas nem todos tem a sorte de fruir sua humanidade de forma

integral. Lembremo-nos de Émile Durkheim e sua obra O Suicídio. Nela, Durkheim afirma

pela primeira vez que o suicídio tem causas sociais e que, uma vez inscrito em um

contexto social, os riscos de cometê-lo são menores, excetuando-se, como visto

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anteriormente, os casos extremos de inscrições sociais muito incisivas. É possível que o

risco de por fim a própria existência esteja relacionado ao fato de não estarmos nem

sequer no banco de reservas. De não estarmos disputando nenhum jogo. De não nos

sentirmos agentes legítimos de nenhum ambiente social. É claro que existem casos de

suicídio que devem ter outras explicações que não as sociais. Mas as taxas de suicídio

são bastante elevadas, e é provável que uma grande parcela da população não se mate

quando perde um jogo, mas pode ter maiores chances de fazê-lo quando não se vê

disputando nada. Isso justifica olharmos a questão da inclusão com olhos mais

parcimoniosos e benevolentes. Trabalhar no afã de conceder à maioria das pessoas a

chance de participar dos jogos. Existem muitos campos, muitos troféus, muitos níveis de

disputa, muitas possibilidades de sucesso. Perseguir troféus pode afastar a depressão,

a sensação de isolamento, de falta de pertencimento. Isso já se sabe há muito tempo.

Não é ideia original. A vida tem que fazer algum sentido, mesmo que esse sentido seja

uma fantasia. Por isso caro aluno (a), lembre-se do que falamos na unidade 1: agora

você é um privilegiado. Desfrute de seus anos aqui dentro desta faculdade. Você é um

jogador, uma agente social do campo universitário, que é a antessala de inúmeros outros

campos. Não desperdice esta oportunidade que muitos querem e poucos conquistam.

A relatividade dos valores

Houve um tempo em que este professor que vos fala exerceu a atividade de surfista

profissional. Não é à toa que muitos de meus exemplos são advindos desta inserção no

campo esportivo. Ponto para Bourdieu. Contudo, isso foi há muito tempo. Nesta época

existiam dois surfistas profissionais muito competentes, um deles era Francisco Alfredo

Alegre Aranã, o Cisco. O outro, Alexandre “Picuruta” Salazar, ambos na casa dos vinte e

oito anos. A maneira como surfavam era soberba, e por anos a fio os tive como modelos

a ser seguidos, copiados, imitados, enfim, plagiados. Em algumas ocasiões meu estilo

de surfar foi comparado ao deles, e para mim, isso foi a glória.

Recentemente Lulu Santos gravou um CD com músicas de Roberto Carlos. Pode-se

afirmar que Lulu “plagiou” Roberto. Todavia, com autorização prévia do Rei e de suas

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gravadoras. Plágio na forma de homenagem. Plágio negociado previamente. Todos

aplaudiram Lulu. Bela obra como sempre.

No campo científico, não tem conversa! Plágio sem autorização, à maneira de

Marcello em sua prancha de surfe, fim de carreira para o cientista plagiador.

Picuruta se enaltece com o plágio de Marcello. Marcello se aborrece com o plágio

de seus textos! Plágio autorizado, no mundo científico? Impossível! Não existe!

Logo, voltemos aos valores. Voltemos à moral. Voltemos à ética. Plagiar é bom ou ruim?

Para Platão existe uma verdade absoluta habitando o mundo das ideias. A forma do

plágio é uma só. O que ele é? Só o filósofo poderá um dia descobrir. Para Kant, teríamos

que perguntar a nós mesmos: “O mundo seria viável com todos plagiando a todos?” Se

a resposta for não, vale o imperativo categórico! Não plagie nunca! Para Bourdieu, tudo

depende do campo em questão. Messi é idolatrado, pois copiou Maradona. Marisa Monte

canta Cartola e é aplaudida. Rod Stewart americanizou o teteretê do Benjor, mas

esqueceu de avisá-lo. Deu “treta”! Pintor que reproduz Renoir, Vincent van Gogh,

Picasso, não sofre grandes críticas, desde que assine seu próprio nome e caracterize a

obra como “estudo”. E cientista quando arrisca um plagiozinho, provavelmente começa a

decretar o fim de sua carreira.

Nos campos existe uma severa proteção às regras do jogo e seus agentes, e como vimos,

o capital simbólico de cada campo só vale mesmo dentro do campo original. Por este

motivo, as estratégias para a conquista desses capitais variam na exata medida em que

variam os campos. Nos campos os jogadores articulam meios e recursos para obter seus

troféus, e na maioria das vezes são conscientes disso. Suas estratégias obedecem à

dinâmica proposta por Maquiavel, mas também as transcendem, pois o comportamento

dos agentes em sociedade é muito mais significativo naquilo que tange as ações não

articuladas, não pensadas, não realizadas na forma de estratégias conscientes. Para

Pierre Bourdieu, aquilo que não nos damos conta em nossa vida social é o que de mais

significativo um sociólogo pode investigar. Maquiavel limitou sua análise social ao que

era percebido com clareza. Bourdieu foi ainda mais requintado em sua investigação, e

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percebeu que muitos comportamentos sociais são inconscientes. Sendo assim, não

podem ser manifestados em termos estratégicos, a isso se denomina habitus.

O conceito de habitus

O conceito de habitus não é novo. David Hume, filósofo britânico que já estudamos na

unidade 1, o investigou com bastante perspicácia. Todavia, com relação a este tema,

Bourdieu nos apresenta uma visão ainda mais profunda que a de Hume, pois sua análise

foi científica e não meramente especulativa. O habitus é um conjugado de inclinações

para agir, todas elas construídas socialmente, mas que não orbitam a consciência de

seus agentes.

O conceito de habitus tem por função primordial lembrar com ênfase que nossas ações

possuem mais frequentemente por princípio o senso prático do que o cálculo racional

(BOURDIEU, 2001, p.78).

Temos a tendência de respeitar regras sociais sem pensar na conveniência disso, como

os seis macaquinhos dos quais já falamos. O habitus é um saber prático incorporado em

nosso comportamento devido a toda trajetória de nossas vidas. Quase nada, quando

versamos sobre estar no mundo, tem a ver com heranças biológicas. Para Bourdieu,

olhos azuis podem até ser explicados pela genética, mas não existe sangue azul, e sim

socializações azuis. Saberes que se sabem sem que saibamos que os sabemos.

Deliberações que foram feitas sem a parcimônia da escolha abalizada.

A lógica específica de um campo se institui em estado incorporado sob a forma de um habitus específico, ou melhor, de um sentido do jogo, ordinariamente designado como um “espírito” ou um “sentido” (“filosófico”, “literário”, “artístico” etc.), que praticamente jamais é posto ou imposto de maneira explícita. Pelo fato de operar de modo insensível, ou seja, gradual, progressiva e imperceptível, a conversão mais ou menos radical (conforme a distância) do habitus originário requerido pela entrada no jogo e consequentemente a aquisição do habitus específico acaba passando despercebida quanto ao essencial (BOURDIEU, 2001, p.21).

Todavia, tudo aquilo que não sabemos bem de onde vem, temos a tendência naturalizar.

E assim vamos “biologizando” todos os aspectos da vida, sejam eles “biologizáveis” ou

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não. E assim vamos nos dispondo a agir sem nos sentirmos obrigados a pensar na ação.

Um acadêmico se comportará como um acadêmico por toda sua vida, pois age como um

acadêmico sem que perceba que o faz de forma automática, pois foi forjado em um

espaço específico de massificação de mentes. Tenderá a ministrar aulas nos botecos da

vida, mesmo nas situações mais inapropriadas. Assim também será com os agentes do

campo esportivo, do jurídico, do artístico etc. O habitus prescinde do pensar estratégico.

Por este motivo, quem age por habitus é rápido, ligeiro, acelerado. Acompanhe:

Cada campo é a institucionalização de um ponto de vista nas coisas e nos habitus. O habitus específico, imposto aos novos postulantes como um direito de entrada, não é outra coisa senão um modo de pensamento específico (um eidos), princípio de uma construção específica da realidade fundada numa crença pré-reflexiva no valor indiscutível dos instrumentos de construção e dos objetivos assim construídos (um ethos) (BOURDIEU, 2001, p.121).

Mas, se por um lado o habitus nos concede eficácia e eficiência, por outro lado pagamos

o preço da homogeneização comportamental. Tornamo-nos autômatos sem muita

inovação. Restringimos nossa capacidade de pensar, e com isso nos ancoramos em

pontos de vista desgastados, corroídos. E isso pode acontecer até mesmo entre

cientistas! Habitus é um jeito de agir oriundo do campo, e como existem muitos campos,

haverá sempre muitos habitus. Nesse sentido, todos nós somos, invariavelmente, vítimas

dos campos aos quais pertencemos. Propagamos cegamente seus dogmas, suas doxas,

muitas vezes sem perceber que o fazemos. Caminhamos pela vida como escravos dos

campos específicos em que fomos modelados como argila.

Muitas pessoas têm resistência a aceitar o conceito de habitus, pois muitos de nós fomos

forjados em um sistema de crenças que nos fez acreditar que temos total controle sobre

nossos atos. Todavia, desde Spinoza: “Podemos ter somente graus de liberdade”;

Nietzsche: “Algo pensa em mim!”; Freud: “O eu não é senhor nem mesmo em sua própria

casa”; e Durkhein: “A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais

como coisas”, essa crença vem sendo constantemente posta a prova. Bourdieu também

não deixou por menos:

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Sob as aparências mais triviais, quais sejam as da banalidade cotidiana tão apreciadas pela imprensa e tão acessível a qualquer repórter, o mundo social esconde as revelações mais inesperadas sobre o que menos queremos saber acerca do que somos (BOURDIEU, 2001, p.18).

[...] o agente nunca é por inteiro o sujeito de suas práticas: por meio das disposições e da crença que estão na raiz do envolvimento no jogo, quaisquer pressupostos constitutivos da axiomática prática do campo (a doxa epistêmica, por exemplo) se introduzem até nas intenções aparentemente mais lúcidas (BOURDIEU, 2001, p.169).

Não somos tão responsáveis quanto a nossa moral cristã, Descartes e Kant nos fizeram

pensar. Quase nada é biológico, a não ser o suporte sináptico que dá possibilidade ao

social se manifestar em nós. Somos movidos por células e neurônios sociais. Somos

resultados de uma trajetória de vida inscrita em um determinado campo social. Todavia,

apesar de não sermos cem por cento agentes de nossas ações, podemos como vimos

acima, dar algum crédito a Spinoza quando nos alerta de que por intermédio da razão

podemos adquirir maiores graus de liberdade. Liberdade deliberativa - ainda que em

pequenos graus; consciência ampliada; responsabilidade para perceber que nossa

presença, mesmo que não acreditemos, também afeta o mundo; e abertura para novas

aprendizagens. As passagens do livro Meditações Pascalianas, onde Bourdieu cita

Gilbert Ryle são perfeitas para encerrarmos, ao menos por ora, o assunto habitus, uma

vez que nos lembram de que fazemos parte de um grande sistema onde cada efeito só

ocorre, na razão direta da permissão do objeto afetado:

Poder-se-ia então estender à explicação das condutas humanas uma proposição de Gilbert Ryle: assim como não se deve dizer que o vidro quebrou porque uma pedra o atingiu, mas que ele se quebrou, quando a pedra o atingiu, porque ele era quebrável, tampouco se deve dizer que um acontecimento histórico determinou uma conduta, sendo preferível mostrar que ele teve esse efeito determinante porque um habitus suscetível de ser afetado por tal acontecimento lhe conferiu tamanha eficácia. Aliás, tudo isso pode ser visto de maneira particularmente clara quando um acontecimento insignificante, aparentemente fortuito, desencadeia enormes consequências, capazes de parecer desproporcionais àqueles dotados de habitus diferentes (BOURDIEU, 2001, p.181).

As disposições não conduzem de modo determinado a uma ação determinada: elas só se revelam e se realizam em circunstâncias apropriadas e na relação com uma situação. Pode então ocorrer que elas

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permaneçam sempre em estado de virtualidade, assim como a coragem guerreira na falta de guerra (BOURDIEU, 2001, p.182).

Dominantes e dominados

Se o campo é um espaço abstrato onde agentes se posicionam, alguns desses agentes

estão muito melhor posicionados do que outros. Estes são os dominantes. Os que estão

em uma localização inferior são chamados de dominados. Para Bourdieu - e isso é

bastante impactante aos idealistas da igualdade -, as pessoas não se equivalem. O

alemão Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo contemporâneo, advoga a necessidade

de um espaço público, onde os agentes sociais debatam abertamente com vistas à

escolha do melhor argumento (HABERMAS, 2012). Bourdieu, e suas pesquisas

chacoteiam de tal pretensão. Para ele os fatos sociais dizem tudo. Basta olhar a

sociedade com olhos descontaminados de ilusões vãs para perceber que quem manda

decide e ponto final.

[...] Habermas submete as relações sociais a uma dupla redução ou, o que dá no mesmo, a uma dupla despolitização, fazendo com que a política se desloque, sem dar disso impressão, para o terreno da ética: ele reduz as relações de força políticas a relações de comunicação (e à “força sem violência do discurso argumentativo que permite realizar o entendimento e suscitar o consenso”) (BOURDIEU, 2001, p.81).

O campo é um espaço de diferenças marcantes e de dominação candente. Nele, não

existe espaço para igualdades à moda cristã. Lembre, contudo, caro leitor, que não

estamos a falar de indivíduos isolados. O assunto aqui é mais abstrato, porém de grande

objetividade. Estamos a falar de algo muito maior do que o sonho de meia dúzia de

indivíduos. O assunto é o campo social, e nele, não existe equidade, justeza. Quando se

almeja ouvir uma posição filosófica para um assunto qualquer, buscamos a opinião de

uma Marilena Chauí, ou de uma Scarlett Marton, e não do professor de filosofia do ensino

médio de seu filho. Quando o assunto é história, procuramos por um Leandro Karnal, e

não pelo tio José, leitor assíduo da enciclopédia Barsa e Mirador. Quando o assunto é

música popular brasileira, recorremos a Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano

Veloso, e não ao Falcão, nem tão pouco a Tiririca, pois os primeiros agentes de cada

exemplo concedido são detentores de um gigantesco capital simbólico, sendo os demais,

agentes cuja posição no campo é significativamente inferior. Da mesma maneira, quando

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quiséssemos entender de ciência, deveríamos consultar um verdadeiro cientista, e não o

professor universitário de Metodologia da Pesquisa Científica que nunca publicou uma

pesquisa científica sequer.

Maquiavel, em sua obra O Príncipe, nos fala que quem tem o poder deseja ardentemente

mantê-lo. Bourdieu nos ensina que um dominante, seja ele quem for e esteja ele inserido

em qualquer campo, desejará sempre continuar a dominar. Por isso adotará de forma

irrestrita, uma postura conservadora, pois deseja conservar seu capital, e se possível

adquirir ainda mais. O dominado, por sua vez, não tem o poder, e isso o leva a querer

subverter as rígidas regras e estruturações do campo com vistas à aquisição de capital

simbólico que o permita ascender posições. Todo dominado é um subversivo! Todo

dominante é um conservador.

Quando um subversivo, independente de qual campo estejamos falando, passa a ser

dominante, invariavelmente adotará estratégias de conservação. O caminho até o topo

de qualquer campo é árduo e cheio de desafios e intempéries. Quando se chega à

posição de dominante, muitos anos já se passaram desde que outrora o dominado tinha

esperanças de revolucionar as leis e normatizações do campo em questão. Quando se

chega à posição de dominante o que se almeja é conservá-la para desfrutar das

benesses do poder. Quando se chega ao topo tem-se a impressão de que ele é seu por

merecimento. Por esse motivo, todo revolucionário tende a virar conservador. Toda a

esquerda tende a transmutar-se em direita. Toda a ideologia destinada a tornar o mundo

um lugar mais justo, equânime, igualitário se esfacela impiedosamente. E mesmo que os

subversivos estejam em número muito maior, a subversão é inglória. Os conservadores

detém o poder nas portas de entrada do campo, e também tem as “chaves do inferno”,

para onde podem jogar os subversivos a qualquer momento. Os conservadores, por

serem influentes, dificultam o caminho ao topo. Os conservadores, por estarem alinhados

com conservadores de outros campos - homologia de campos -, organizam cartéis de

todos os tipos com vistas a dificultar e impedir toda e qualquer tentativa de subversão da

ordem jurídica ou tácita dos campos.

O poder se diferencia e se dispersa. [...] ele só se realiza e se manifesta por meio de todo um conjunto de campos unidos por uma verdadeira

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solidariedade orgânica, ao mesmo tempo diferentes e interdependentes (BOURDIEU, 2001, p.124).

Hoje, caro (a) aluno (a), se você desejar adentrar o campo acadêmico científico, por

exemplo, terá que entrar pela única porta de acesso a esse campo, ou seja, o mestrado

– ainda que a iniciação científica seja uma antessala, como já foi pontuado. Quem optar

fazê-lo terá primeiro que se sujeitar aos estágios probatórios. Passará por muitas

sabatinas. Será impedido de trabalhar, pois se espera dedicação exclusiva aos estudos

científicos do campo acadêmico. Terá que estudar uma quantidade considerável de

assuntos para as provas de admissão ao mestrado, e todos os livros de leitura obrigatória

foram escritos pelos dominantes do campo acadêmico. Uma vez admitidos no mestrado,

terá que pesquisar os assuntos de interesse dos dominantes do campo acadêmico,

quase nunca os seus. Participará de congressos e simpósios que são organizados pelos

mesmos dominantes do campo acadêmico. Dependerá desses mesmos dominantes para

conseguir uma bolsa de estudos que mal dará para a alimentação. Sendo assim, serão

anos e anos de refeições nos famosos “bandejões universitários”, onde a dificuldade de

saber se o que se come é frango, carne ou porco é, via de regra, tão desafiadora quanto

a defesa pública de sua dissertação de mestrado. Aliás, essa mesma dissertação deverá

ser publicada na forma de artigos científicos, e o aval final sobre a pertinência ou não em

publicá-la será concedido pelos editores e revisores dos periódicos científicos em

questão, não por coincidência, cargos de responsabilidade dos dominantes do campo.

Tudo isso se repetirá no doutoramento e no pós-doutoramento. Depois de anos, você

prestará um concurso público e será aprovado como o mais novo acadêmico de uma

universidade qualquer. Parabéns, você acaba de se tornar um dominante! E tudo o que

você mais odiou em toda a sua vida. Todas as mazelas pelas quais passou e julgou

injustas, censuráveis e desonestas. Todos os encontros entristecedores que você teve

na vida acadêmica por conta das posturas reacionárias, conservadoras e retrógradas

daqueles que um dia foram seus dominantes, serão exatamente reproduzidas por você.

Isso vale para o campo artístico, jurídico, jornalístico, esportivo etc. As regras pouco ou

nada mudam. As estruturas em quase nada se alteram. Os dominantes, ainda que outros,

seguirão incólumes, segurando seus baluartes conservadores e desfilando seus

comportamentos reacionários.

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Espere! Não me abandone! Não vá embora! Eu sei! Você ficou com um pouco de raiva

do que leu agora. Com você seria diferente. Foi diferente. Não tenho o direito de falar

isso de você. Mas não sou eu quem fala! É Pierre Bourdieu! E não é bem de você

enquanto indivíduo que ele está se referindo, é de uma massa esmagadoramente maior

do que suas ideologias mais pessoais e comezinhas. É de um espírito coletivo, social,

admiravelmente enorme chamado campo social, que foi por anos investigado com os

requintes e instrumentos forjados neste mesmo campo acadêmico ao qual nos referimos,

e onde Bourdieu, como dominante que foi, fez carreira durante toda a metade do século

XX.

O sociólogo tem a particularidade, de modo algum um privilégio, de ser aquele que possui a tarefa de dizer as coisas do mundo social, dizendo-as, tanto quanto possível, tal como elas são: nada disto destoa do normal, do trivial. O que torna sua situação paradoxal, por vezes impossível, é o fato de estar cercado por pessoas que ignoram (ativamente) o mundo social e nada falam a seu respeito [...] ou, então, que se inquietam e falam, por vezes até bastante, mas sem saber grande coisa a respeito [...] Desta maneira, quando faz simplesmente o que tem que fazer, o sociólogo rompe o círculo encantado da negação coletiva (BOURDIEU, 2001, p.14).

Você pode discordar dele, mas lembre-se, a obra deste senhor é enorme. Os dados

pesquisados são tantos que causam vertigens nos não iniciados. Prepare-se muito bem

para argumentar com Bourdieu, será um desafio de proporções abissais.

Mas, voltemos à questão da dominação. Como ela se sustenta? Vimos que na medida

em que você vai tendo condições de subverter o campo, vai gradativamente perdendo o

interesse em subvertê-lo. É sabido, desde os escritos de Max Weber, que se um

dominado é dominado, provavelmente percebe algum tipo de vantagem em sua posição

na estrutura do campo, pois se essa posição lhe fosse insuportável, as estruturas sociais

entrariam em colapso. Sendo assim, o gradativo acúmulo de capitais simbólicos vai

outorgando aos agentes sociais a percepção de que a chegada ao topo é franqueada a

qualquer um. Além disso, a existência de troféus intermediários permite que muitos

agentes se alegrem no transcorrer do percurso. Logo, para que exista legitimidade na

dominação é imperativo que a grande maioria dos agentes compartilhe desse tipo de

illusio, ou seja, a naturalização não somente do valor dos troféus almejados, mas acima

de tudo, a crença de que eles são plenamente acessíveis a todos aqueles que se

esforçarem para atingi-los. Isso torna a dominação aceitável.

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O poder será legítimo quando for exercido por alguém que é entendido como autorizado

a exercer tal posto. Esse tipo de poder necessita que os pares do dominante que ocupam

posições inferiores na estrutura do campo reconheçam-no como alguém que chegou ao

topo obedecendo às regras inerentes ao seu campo social. Nada pode ser percebido

como arbitrário e despótico, ainda que muitas vezes o seja de forma velada, como nos

processos seletivos que nos fazem crer que os agentes sociais disputam troféus em pé

de igualdade, quando na realidade, tais disputas tendem a mascarar as gigantescas

diferenças sociais pré-existentes ao referido processo. Pense bem, e responda: Quem

está mais bem preparado para concorrer a uma vaga em uma universidade pública, o

filho de um banqueiro ou um estudante de escola pública da periferia da zona leste de

São Paulo? Os processos seletivos tendem a conceder um ar de retidão, de justeza, de

lisura às disputas sociais, mas na esmagadora maioria das vezes são ações que tendem

a conservar no poder os dominantes de ontem, ainda que representados por seus filhos,

netos e bisnetos. Sendo assim, segundo Pierre Bourdieu, legitimar é somente tornar

aceitáveis situações fáticas de grande injustiça. [...] o reconhecimento, que não é outra

coisa senão o desconhecimento do arbitrário de seu princípio (BOURDIEU, 2001, p.126).

Talvez um dos maiores interesses da sociologia seja o estudo das mudanças sociais.

Mas as permanências seduziram Bourdieu durante toda a sua trajetória, e se Zygmunt

Bauman, com muita elegância advoga que vivemos na impermanência líquida, a solidez

das permanências dos dominantes no ápice de seus respectivos campos não pode ser

negada tão facilmente.

Foto 13: Zygmunt Bauman

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Uma sociologia do pensamento

Bourdieu era um filósofo de formação, mas sua carreira foi gradativamente enveredando

para a investigação social. Foi obcecado pelo trabalho e apresentou no decorrer de sua

trajetória um genuíno interesse em esclarecer as ideias filosóficas a partir de uma

perspectiva sociológica. Esse interesse colocou a filosofia em uma situação vulnerável,

pois para o filósofo tradicional, sovado nas crenças deste campo, sua função primordial

é descobrir a verdade. Entretanto, quando analisada pelo ponto de vista da sociologia de

Bourdieu, nenhuma ideia filosófica, por mais elegante que possa parecer, é desprovida

dos interesses pessoais de quem a propõe, e isso também vale para o campo acadêmico

científico, ao qual Bourdieu consagrou um livro inteiro Homo Academicus (BOURDIEU,

2011). Logo, diria Bourdieu, “Não existem atos desinteressados”. Todas as ideias

filosóficas e mesmo científicas, por mais belas e atraentes que sejam, estão a serviço

dos interesses pessoais de seus proponentes. As três passagens abaixo explicitam

claramente esse ponto de vista em Bourdieu:

Ora, para além dos conflitos que os opõe, nossos filósofos “modernos” ou “pós-

modernos” têm em comum esse excesso de confiança nos poderes do discurso

(BOURDIEU, 2001, p.11).

Na ordem do pensamento, não existe, como lembrava Nietzsche, concepção imaculada

(BOURDIEU, 2001, p.12).

Os que gostam de acreditar no milagre do pensamento “puro” devem resignar-se a admitir que o amor à verdade ou à virtude, como qualquer outra espécie de disposição, deve necessariamente algo às condições em meio às quais se formou, ou seja, a uma posição e a uma trajetória sociais (BOURDIEU, 2001, p.12).

Se você conceder o devido crédito às ideias de Bourdieu, deverá durante sua trajetória

universitária fazer uma análise social das ideias proferidas por todos os seus professores.

Todas elas, por mais desinteressadas que possam parecer, camuflam desejos,

inclinações, pretensões, ambições e aspirações daquele que fala. Todos nós somos

interessados, e isso não é necessariamente algo ruim, egoísta, mesquinho. A natureza é

amoral, e evoluiu graças à tendência, essa sim genuinamente biológica, de lutarmos pela

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nossa autopreservação. Bourdieu faz renascer na sociologia o que Nietzsche já tinha

introduzido na filosofia, pois para eles, tudo que se produz intelectualmente, tudo o que

se desnuda na linguagem, está diretamente relacionado à potência de agir. Em outras

palavras, está relacionado à erotização do comportamento, ancorado nas águas nem

sempre transparentes da libido desejante. Spinoza, um dos poucos filósofos respeitados

e admirados por Nietzsche, afirmava que da mesma forma que o corpo necessita alegrar-

se e busca o conforto para si, a alma também busca incessantemente os encontros

alegradores por meio dos pensamentos que possam aumentar sua potência, seu

conatus. Não existem atos desinteressados. Não há cognição pura. Não há pensamentos

virgens.

Bourdieu acredita que se entendermos o que um filósofo deseja, ou o que qualquer

agente social deseja, entenderemos o seu pensamento com muito mais clareza.

Entender as inclinações desejantes das pessoas colabora sobremaneira para que

possamos entender a maneira como seu pensamento é manifesto. Se você quiser

aprender a fazer ciência de verdade, seja ela natural ou social, você não deveria

“comprar” as primeiras falas de ninguém, seja ele quem for. Lembremo-nos de Francis

Bacon e de Descartes. E tem mais, para Bourdieu, só seremos bem sucedidos na

construção de uma genealogia do pensamento a partir do momento em que aceitarmos

que o que as pessoas querem são fatos sociais. Seus desejos são definidos no campo.

Não há espaço para veleidades de cunho pessoal.

Para entender um jornalista, é imperativo realizar uma sociologia do campo jornalístico.

Para entender a fala de um advogado, de um médico, de um artista plástico, de um

professor universitário, de um cientista, de um poeta, de um chefe de cozinha será

imperativo investigar a genealogia dos valores de cada uma dessas pessoas, e isso

pressupõe um mergulho em todos esses campos sociais. Definindo e clarificando os

espaços onde cada agente transita, teremos maiores chances de entender suas agruras

e seus conflitos existenciais. Sendo assim, alerta-nos Bourdieu, toda interpretação do

texto pelo texto, quando se trata de entender os filósofos, por exemplo, um professor

orientador de pesquisas científicas, ignora o que existe de mais importante em suas

ideias, ou seja, as questões sociais que forjaram seu pensar. O que importa é o que está

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fora do texto, diria Bourdieu com relação aos filósofos. Todo sentido de algo estará

sempre fora desse algo. O professor Clóvis de Barros exemplifica isso de forma

primorosa ao nos perguntar: “Qual o sentido da cidade de São Vicente?”. Para

respondermos a esta questão é necessário estarmos fora da cidade de São Vicente. O

mesmo vale para agentes sociais, pois o sentido lhes escapa, pois o habitus ofusca suas

inteligências, privando-os de graus mais elevados de racionalidade. Para saber o sentido

de um texto necessitamos investigar a circunstância social em que esse texto foi gerado.

Só uma sociologia séria da linguagem dará conta de uma atribuição de sentido mais

contundente. Os campos sociais facilitam o encontro com as lógicas de produção de

sentido. É necessário recuar, olhar de fora, abster-se de envolvimentos especulativos

grosseiros, amparar-se em metodologias menos subjetivas que permitam olhar a questão

dentro de uma perspectiva de significação mais sólida.

Últimas considerações

Como foi dito acima, não existem atos desinteressados. Por detrás de toda ação existe

interesse. Dalai Lama, por mais que possa aparentar aos espiritualistas ser uma pessoa

desapegada, tem também seus interesses. Competiu arduamente pelo poder político

espiritual do Tibet e ainda cultiva um ego, pois é um homem, um ser humano como todos

nós. Mesmo as pessoas que aparentam não ter interesses, ainda assim os tem em

grande medida com as coisas que as alegram. Todas as ações que fazemos dentro da

sociedade geram efeitos. Ações egoístas podem gerar efeitos nefastos. Ações

aparentemente desprovidas de interesses pessoais podem trazer muitos ganhos para

seus agentes. Brad Pitt e Angelina Jolie são bons exemplos. Os ganhos sociais que esse

casal teve devido as suas posições engajadas frente aos assuntos sociais que

sensibilizam o senso comum são evidentes. Essas afirmações podem parecer muito

fortes, mas simplesmente representam o homem em toda a sua crueza, ainda que a

sociedade mascare essas obviedades.

Bourdieu faz uso de premissas que concedem ao homem o direito de se preocupar com

a sua alegria. Não há nenhum crime nisso, uma vez que o homem também tem

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inclinações desejantes como todos os outros animais. Todavia, seus desejos

transcendem às aspirações por comida e sexo. Ao homem também cabe buscar os

troféus de seu campo. Brinquedos de gente grande. E levando isso em consideração,

uma das coisas que um estudante universitário deve ter em mente diz respeito à dinâmica

dessa busca. Em todas as civilizações o homem direcionou sua energia desejante com

vistas à conquista dos troféus que vimos falando. Mas muitos de nós canalizamos a libido

para a direção errada, e passamos a vida buscando premiações que pouco ou quase

nada tem a ver conosco. Muitas vezes alguns estudantes podem não perceber que sua

busca e suas metas podem ser insensatas, pois eles podem estar querendo se inserir

em um campo que não é necessariamente um lugar alegrador e alavancador de suas

potências de agir, mesmo na conquista dos troféus. Pode-se ficar tão absorto na dinâmica

do jogo e na sedução da competição, que se deixa ofuscar pelo brilho dos troféus, sem

perceber que esses podem transmutar-se em meros entulhos acumuladores de pó e de

ácaro, em nada colaborando para a concessão de sentido último às nossas existências.

Forma nefasta de canalização erótica. Por isso, caro (a) aluno (a), aproveite que você

está iniciando sua jornada acadêmica e avalie se o campo social relativo à futura

profissão que você escolheu é, de fato, o que mais lhe agrada. Pondere também se sua

inserção no campo acadêmico / científico pode alegrar-lhe no futuro, pois você pode ser

um administrador, um educador físico, um médico ou um advogado e, paralelamente,

atuar na área científica.

Por último, vale à pena afirmar que a compreensão das ideias de Bourdieu pode ter a

força necessária para redimir o homem. Como os estoicos, Maquiavel, Spinoza, Hume,

Nietzsche e Freud, esse autor não se esquivou de investigar o homem em toda a sua

crueza e aspereza. Absorver suas ideias pode não lhe acrescentar uma visão muito doce

da vida, mas sem sombra de dúvidas te concederá uma sagacidade muito além da média,

capacitando-o para jogar o jogo da vida com muito mais instrumentos, assim como a

exercer sua atividade profissional com maior lucidez.

Para saber mais: Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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RESUMO

Nesta unidade aprendemos como surgiu a crença na infalibilidade da ciência estudando

o Renascimento e o Iluminismo. Estudamos muitos pensadores da sociologia, como

Auguste Comte, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Aprendemos com Pierre

Bourdieu importantes conceitos como o conceito de campo social, a ilusão naturalista, as

estruturas do campo social, a força e o poder simbólicos dos agentes do campo social, o

conceito de Illusio, a relatividade dos valores e das regras que norteiam cada campo

social - entre eles o acadêmico científico -, o conceito de habitus, o conceito de

dominantes e dominados e de conservadores e subversivos.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Qual a relação do Iluminismo com a ciência moderna?

2 - Faça uma pesquisa na internet e nas bibliotecas e responda o motivo que os

iluministas a crerem na infalibilidade da ciência?

3 - Defina o que vem a ser um fato social.

4 - Comente o parágrafo abaixo:

Para exercer a sociologia Durkheim afirmava que era necessário livrar-se de conceitos

pré-concebidos e de paixões sobre os fenômenos sociais, pois somente assim o

sociólogo poderia investigar a exterioridade e a objetividade dos fatos sociais como

predicados da sua própria natureza.

5 - O que Pierre Félix Bourdieu quer nos dizer quando apresenta o conceito de ilusão

naturalista?

6 - Comente de maneira resumida tudo que você compreende sobre os campos sociais.

7 - Comente a maneira como o campo acadêmico é estruturado.

8 - Comente de maneira resumida e objetiva o que vem a ser capital simbólico dos

agentes sociais.

9 - Bourdieu, quando nos apresenta o conceito de campo social fala sobre regras de

caráter jurídico e tácito. O que são essas regras?

10 - Na sociologia de Bourdieu o que vem a ser a Illusio?

11 - Comente o conceito de habitus da sociologia de Bourdieu.

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12 - Os campos sociais são compostos por agentes sociais que Pierre Bourdieu costuma

denominar de dominantes e de dominados. Comente a respeito do comportamento de

cada um desses agentes, tomando por base o campo acadêmico científico.

13 - A qual campo ou campos sociais você acredita pertencer?

14 - O curso superior que você escolheu pertence a qual campo social?

15 - De que forma ele é estruturado?

16 - Qual o seu posicionamento atual dentro deste campo?

17 - Qual é a sua parcela de capital simbólico dentro deste campo?

18 - Quão satisfeito você está atualmente em seu campo social?

19 - A quais fatores você atribui o seu atual posicionamento dentro das estruturas de seu

campo?

20 - Quais são as regras que normatizam o jogo que é jogado no interior de seu campo?

21 - Qual o seu nível de conhecimento das regras jurídicas e tácitas de seu campo social?

22 - Como se comportam essas regras na medida em que o posicionamento de seus

agentes é alterado?

23 - Você saberia discursar com clareza sobre o que é permitido, o que é tolerado e o

que é abominado em seu campo social?

24 - E no campo social acadêmico científico?

25 - Você saberia aferir a quantidade de capital simbólico que você detém no campo ou

nos campos em que atua?

26 - Quais métodos você utiliza para realizar essa aferição?

27 - Qual foi a porta de entrada do campo social que você atua hoje?

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28 - Você deseja mudar de campo?

29 - Pensa em converter capital simbólico de seu campo atual para o desejado?

30 - Tem ciência das taxas de conversão que lhe serão cobradas?

31 - Quais são as portas de entrada do campo social que você almeja entrar?

32 - Qual a trajetória que deverá ser seguida rumo à aquisição dos troféus inerentes a

este campo? E com relação ao campo acadêmico científico?

33 - O que lhe motiva na vida? Essa motivação está a serviço da conquista de qual troféu?

34 - Você se sente desmotivado em algum aspecto da sua vida? Caso afirmativo, em

quais espaços de convivência você acredita que pode estar desperdiçando sua energia?

Referencial Bibliográfico

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BOTTOMORE, T & NISBET, R. História da análise sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. _______. Questões de sociologia. Lisboa: fim de Século, 2003. _______. A distinção. Crítica social do julgamento. 2ª. Edição. Porto Alegre: Editora Zouk, 2006. _______. Homo academicus. 2ª. Edição. Florianópolis: Editora UFSC, 2011. COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. _______. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Nova Cultural, 1996. DURKHEIM, E. Educação e sociologia. 7ª. Edição São Paulo: Melhoramentos, 1967. _______. As regras do método sociológico: São Paulo: Martins Fontes, 1978. _______. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. GIDDENS, A. Sociologia: Uma breve, porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. GIDDENS, A. Sociologia. 4ª. Edição. Porto Alegre: Artmed, 2005. HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes, 2012. MAGEE B. Confissões de um filósofo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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UNIDADE III

Lógica, a Linguagem da Ciência

“A maior parte das pessoas prefere morrer a pensar; na verdade, é isso que fazem”

Bertrand Russell

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MÓDULO 1

Introdução

Parabéns! Chegamos à unidade 3 e agora você será apresentado a alguns assuntos de

grande relevância para todos aqueles que querem aproveitar ao máximo seu período

acadêmico. Até o presente momento você conheceu algumas ideias bastante complexas,

assim como alguns dos pensadores mais importantes de nossa história, e ainda assim

continua firme em sua leitura, que a partir de agora intenciona esclarecer um pouquinho

uma ferramenta que subjaz a todos os grandes pensamentos apresentados até aqui. A

argumentação é provavelmente a ferramenta mais eficaz de qualquer pensador. A

filosofia não seria possível sem ela e, consequentemente, também não o seriam outras

formas de saber e de raciocínio, como os utilizados na ciência. Todavia, por que a

argumentação é tão necessária? Teóricos da comunicação respondem a esta pergunta

afirmando ser a argumentação necessária quando o intento é persuadir e vencer seus

oponentes por meio de batalhas linguísticas. Outros asseveram que a boa argumentação

ajuda a ampliar o conhecimento, pois faz diferentes ideias interagirem gerando novas

sínteses. Contudo, é importante frisar que bons argumentadores sabem que a

competição argumentativa tem como foco as ideias e não as pessoas que as propõe. Se

o debate for parcimonioso e respeitoso, o objetivo final não será simplesmente

vencer, mas acima de tudo, conhecer.

Quando entramos em contato com as regras da argumentação, imediatamente

começamos a identificar algumas falhas em nossa maneira de raciocinar. Muitas crenças

que propagamos durante nossas vidas podem ser desprovidas de um arcabouço

argumentativo que as tornem válidas. Por este motivo, conhecer um pouco mais as regras

para elaboração de argumentos mais consistentes pode ser de grande valia para aqueles

que desejam expor suas ideias de forma mais clara e compreensível ou até mesmo

colocá-las à prova. Durante sua jornada acadêmica você será convidado a realizar

trabalhos. Participará de debates. Apresentará suas ideias publicamente. Por estes

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motivos, é importante que entenda que, no campo acadêmico - como vimos na unidade

2 -, as regras são outras. O senso comum não tem espaço neste ambiente, nem

tampouco a religião. No mundo acadêmico científico as ideias são discutidas tendo como

pano de fundo as regras da lógica argumentativa. Sendo assim, é prudente que você

se familiarize com elas o quanto antes, para que possas ser um jogador mais eficaz e

eficiente e aproveite ao máximo sua estadia neste ambiente.

O exercício da argumentação pressupõe o domínio dos rudimentos da lógica. Porém,

apesar da origem do pensamento lógico já contar com mais de dois mil e quinhentos

anos, poucas pessoas são capazes de fazer uso dela com relativa competência.

Apostolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou escreveram um agradável livro em forma

de quadrinhos cujo nome é Logicomix: Uma Jornada Épica em Busca da Verdade

(DOXIADIS & PAPADIMITRIOU, 2013). Este projeto bastante inovador e ousado é

baseado na vida de um dos mais importantes filósofos e lógicos de todos os tempos, o

inglês Bertrand Russell. Logo no início da história em quadrinhos podemos apreciar o

professor Russell iniciando uma palestra em uma universidade com a seguinte fala:

Bom, o reitor me pediu para falar sobre “o papel da Lógica nas questões humanas”. Mas

se eu levar seu pedido ao pé da letra vocês vão assistir à palestra mais curta da história!

A lógica, de modo bem genérico, é parte da filosofia, e investiga os tipos de raciocínios

como válidos ou inválidos. Para tal investigação, a lógica considera uma série de

elementos que abrangem o entendimento do que é raciocínio. A lógica investiga, por

exemplo, o que é proposição, o que é premissa, o que é conclusão, o que é uma relação

de consequência e, mesmo, o que é raciocínio. Lógica, neste sentido, é a reflexão sobre

a validade do raciocínio a partir da análise dos seus aspectos formais.

Explicar a origem de seus pontos de vista, defendendo suas conclusões de forma não

dogmática tem sido uma característica dos bons pensadores, principalmente na tradição

filosófica. Juvenal Savian Filho, em seu pequeno, mas esclarecedor livro Argumentação:

A Ferramenta do Filosofar, nos apresenta uma boa introdução a este tema:

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Na atividade filosófica, o filósofo pode chegar a novas interpretações de nossa experiência do mundo, assim como pode renovar antigas interpretações. Mas, antes de tudo, ele é um “especialista” da argumentação e da demonstração. Como sua atividade é sempre feita em diálogo com outros pensadores, cientistas, artistas etc., ele desenvolve a habilidade própria de analisar a maneira como argumentamos para justificar nossas certezas e opiniões. Certamente vem daí a imagem do filósofo como alguém que sempre duvida ou pergunta. Essa imagem é parcialmente verdadeira, pois, como dissemos, o filósofo também pode chegar a certezas. Sua dúvida não é aquela dúvida infantil e gratuita, que pergunta a todo tempo “por quê?”, pelo puro prazer de perguntar ou sem ter interesse pela resposta. Ao contrário, é uma dúvida que busca explicitar os motivos pelos quais pensamos o que pensamos (FILHO, 2011, p.10-11).

A lógica formal também é uma das ferramentas utilizadas pelo filósofo clínico em seu

trabalho (PACKTER, 1997, p.34). Por meio dela é possível estudar os conceitos, os

raciocínios e os juízos do partilhante, ou seja, do indivíduo que busca auxílio de um

filósofo clínico com vistas a resolver suas questões existenciais. Por meio da lógica o

filósofo clínico pode observar como seu partilhante estrutura seu pensamento, justifica

suas crenças e defende seus valores.

Como a lógica pressupõe o uso de regras e a valorização do pensamento racional, seu

uso consciente pode beneficiar todos que buscam melhorar sua comunicação. Pense

bem caro (a) aluno (a), quando um aprendiz de cientista escreve um artigo de iniciação

científica ou seu trabalho de conclusão de curso, ou quando um cientista publica seus

artigos científicos ou sua dissertação de mestrado ou sua tese de doutorado, seu maior

desafio é discutir os dados que foram colhidos durante os experimentos. Essa discussão

precisa obedecer às regras da boa argumentação. Todavia, o pensamento lógico e

racional pode não ser suficiente para dar conta da complexidade da vida, principalmente

quanto o assunto é a subjetividade das relações humanas. Por este motivo é bom que

fique claro que a lógica tem sua importância, mas também tem seus limites. Mas não

adentraremos nesta questão agora. Acredito que a argumentação lógica e racional não

é garantia de vida boa para nenhum de nós, mas não podemos esquecer que a fala de

Russell é bastante reveladora do pouco uso que alguns de nós fizemos desta ferramenta

até o presente momento. Sendo assim, em um primeiro momento enaltecerei esta

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intrigante e sedutora maneira de pensar, deixando para o final deste capítulo algumas

das críticas mais comuns que o pensamento lógico pode sofrer.

Mas afinal, o que é um argumento?

Há alguns anos tive a grata surpresa de me deparar com um livro que abordava a questão

da argumentação de uma maneira bastante divertida e de fácil compreensão. Tratava-se

da obra do professor Sergio Navega, intitulada Pensamento Crítico e Argumentação

Sólida: Vença suas Batalhas pela Força das Palavras (NAVEGA, 2005). Acredito já ter

deixado claro no decorrer desta obra que admiro bastante os professores que se

esforçam para transmitir conteúdos densos de maneira palatável e aprazível. Contudo,

nem sempre este tipo de trabalho é bem compreendido no mundo acadêmico.

Infelizmente, muitos acadêmicos associam clareza, simplicidade e didática com falta de

rigor acadêmico e pobreza de conteúdo. Um bom exemplo disso foram as constantes

críticas que ainda hoje são dirigidas a Jostein Gaarder, autor de O Mundo de Sofia:

Romance da História da Filosofia (GAARDER, 2004). Graças à Gaarder milhares de

pessoas tiveram a oportunidade de compreender pensamentos desafiadores de maneira

singela e poética. Mas, voltando à lógica, são inúmeros os textos de peso e fôlego que

poderiam ter sido utilizados por mim na elaboração das bases desta unidade. Entretanto,

foi a generosa didática do professor Sergio Navega que me pareceu mais adequada aos

objetivos que eu tinha em mente quando escrevi estas linhas. Muitos exemplos abaixo

são oriundos da sua obra.

Porém, precisamos voltar aos nossos argumentos. Os constituintes fundamentais dos

argumentos são as proposições, frases que se colocadas em uma sequência ordenada

presenteiam-nos com ideias elaboradas. São exemplos de proposições: Ontem teve

muitas ondas; todos os homens são mortais; nosso curso de coaching ontológico tem

vinte e cinco alunos. Já os seguintes exemplos não podem ser confundidos com

proposições: Se quiser surfar, aprenda a nadar!- isto é uma forma imperativa; Onde fica

a cidade de Santos? - isso é uma questão; Eu vos declaro marido e mulher! - isso é uma

declaração.

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As proposições são os alicerces de todo argumento, e um argumento pode ser

entendido como um tipo de alegação suportada por outras alegações. O objetivo de um

argumento é promover suporte para que uma conclusão seja considerada válida. Sendo

assim, não podem ser considerados argumentos: as opiniões; as descrições; os fatos; as

histórias; as questões; as expressões afetivas; as explicações, etc. Veja abaixo um

exemplo de argumentação:

Premissa 1 - Todos os filósofos clínicos tem que estudar com um professor desta

área por no mínimo três anos antes de começar a clinicar.

Premissa 2 - Germano estudou como um professor de filosofia clínica por mais de

três anos.

Conclusão - Portanto, Germano já pode clinicar.

Contudo, preste bastante atenção no exemplo abaixo:

Premissa 1 - Meu despertador do celular não tocou hoje cedo.

Premissa 2 – Minha esposa saiu cedo com meu carro e não me avisou.

Conclusão - Logo, não pude estudar filosofia pela manhã.

Note que a conclusão acima pode confundi-lo e até fazê-lo acreditar que é decorrente

das premissas, mas isso não é verdade. O exemplo acima não é um argumento válido.

A conclusão é somente um fato isolado, facilmente verificável sem que seja necessário

recorrer às premissas. É importante entender que um argumento bem apresentado é

composto por uma alegação que é antecedida por uma série de premissas que lhe

validam. Agora, pense e responda caro (a) aluno (a): suas opiniões têm sido

apresentadas na forma de argumentos válidos? Saiba que no campo acadêmico

científico isso lhe será constantemente cobrado, pois “achismos” e

“achologismos” não costumam ser tolerados dentro desse campo.

Toda opinião pode ser transformada em argumento, e talvez, mais importante do que o

direito a opinião, seja o dever de transformá-la em bons argumentos. Em se tratando de

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professores, estudantes universitários, aprendizes de cientista, cientistas, líderes, isso

poderia ser tido como um imperativo categórico? O que você acha?

Os filósofos e professores Michael Bruce e Steve Barbone elaboraram uma obra de

grande importância para todos aqueles interessados em compreender melhor as

questões filosóficas e a maneira como os pensadores as apresentam em seus

argumentos. O livro Os 100 Argumentos mais Importantes da Filosofia Ocidental

condensa alguns dos principais argumentos utilizados para defender pontos de vista

sobre lógica, ética, metafísica, filosofia da religião, ciência, linguagem, epistemologia,

entre outros. Dentro em breve reproduziremos alguns desses argumentos. Porém, é

interessante ver como Bruce e Barbone iniciam essa obra:

[...] “Mostre-me os argumentos” é o grito de guerra dos filósofos. Como todo mundo tem sentimentos, opiniões e experiências pessoais subjetivas, a filosofia apela à base comum quando se trata de avaliar objetivamente as alegações. O raciocínio lógico é independente de compromissos políticos ou religiosos. Para simplificar, um argumento é válido ou não é (BRUCE & BARBONE, 2013, p.17).

Um argumento será considerado inválido se não for possível identificarmos nexos

de causalidade entre as premissas e a conclusão. Aprecie novamente o exemplo

abaixo e veja se consegue contra argumentar á ponto de colocar em xeque a conclusão:

Premissa 1 - Meu despertador do celular não tocou hoje cedo.

Premissa 2 – Minha esposa saiu cedo com meu carro e não me avisou.

Conclusão - Logo, não pude estudar filosofia pela manhã.

Também é possível encontrarmos um argumento logicamente válido, ainda que

suas premissas e suas conclusões sejam totalmente falsas. Sendo assim, é

importante entender que a validade de um argumento não garante a sua veracidade. Por

exemplo:

Premissa falsa 1 – Todos os cientistas bebem suco de uva.

Premissa falsa 2 - Todos os bebedores de suco de uva são tenistas.

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Conclusão falsa – Portanto, todos os cientistas são tenistas.

Já no exemplo abaixo todas as premissas e a conclusão são verdadeiras, mas o

argumento em si não é válido, pois não existe nexo de causalidade entre as premissas e

a conclusão:

Premissa 1 – Todos os leões comem carne.

Premissa 2 – Todas as vacas comem capim.

Conclusão – Logo, todas as focas e golfinhos vivem no mar.

No estudo da lógica o conceito de validade só é aplicado a argumentos. Quando

duvidamos da validade de um deles, pode-se dizer que é um argumento fraco. Todavia,

o conceito de validade é restrito aos argumentos. Não faria sentido algum analisar a

validade de nossas opiniões - quando não expressas na forma de argumentos - ou dos

fatos que se desenrolam em nosso cotidiano, por exemplo. Também não faria sentido

algum afirmar que uma determinada descrição não é válida, ou afirmar que uma

expressão emotiva é inválida. As proposições também não podem ser válidas ou

inválidas, pois a elas caberá a denominação de verdadeiras ou falsas. Agora pense bem

amigo (a) estudante, é possível discordar da conclusão de um argumento válido? Sim! É

possível. Por exemplo:

Premissa 1 – Psiquiatras precisam ajudar seus pacientes.

Premissa 2 – Psiquiatras admitem que não existem testes objetivos para se

detectar psicopatologias.

Premissa 3 – Psiquiatras admitem que nunca curaram nenhum paciente.

Conclusão – Logo, a Psiquiatria não tem ajuda os pacientes.

Note que, no exemplo acima, a conclusão é oriunda das premissas, e sendo assim, o

argumento é válido. Todavia, podemos discordar da conclusão, uma vez que não é

necessário curar um paciente para que ele se sinta melhor, ou para que sua vida social

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seja mais plena etc. Ainda que a psiquiatria não cure seus pacientes, ela pode estar a

serviço de muita coisa boa para seus pacientes.

Você costuma apresentar seus argumentos obedecendo a este formato padrão, ou seja,

premissa 1, premissa 2, premissa X, conclusão? Nem todas as pessoas tem este hábito,

ainda que o formato padrão facilite muito a comunicação e a compreensão das ideias.

Líderes, professores e cientistas que dominam formas mais eficazes de comunicação

podem colaborar com seus com a compreensão de seus interlocutores se estiverem

dispostos a apresentar seus pontos de vista desta forma, ou ainda a ajudar seus

interlocutores a apresentar seus argumentos no formato padrão:

Formato Padrão

Já que [premissa 1].

E [premissa 2].

E [premissa 3].

Portanto [conclusão].

Vamos brincar um pouco? Leia o pequeno texto abaixo.

Acabei de receber a informação de que, infelizmente, não é possível aceitar a inscrição

do surfista Kelly Slater nos torneios do circuito mundial de surfe deste ano de 2015. Como

pode ser comprovado, Kelly Slater é um extraterrestre e chegou ao planeta Terra

pilotando sua nave espacial há trinta anos. Além do mais, pelo que me foi dito, Kelly Slater

entrou no Havaí de forma ilegal, e, de acordo com o regulamento do circuito mundial de

surfe, isso impede a efetivação de sua inscrição nos torneios que compõe este circuito.

Assim, eu gostaria que você informasse a ele que não podemos acolher sua inscrição e

que ele deve guardar já a sua arma de plasma*.

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Foto 14: Kelly Slater

Qual a conclusão?

Quais são as premissas?

Premissa 1 – Extraterrestres ilegais não podem se inscrever para competir no

circuito mundial de surfe.

Premissa 2 – Kelly Slater é um extraterrestre ilegal.

Conclusão – Kelly Slater não pode se inscrever para participar dos torneios do

circuito mundial de surfe.

Agora caro (a) estudante, gostaria que você criticasse o argumento. Lembre-se que, no

senso comum, muitas pessoas afirmariam que E.Ts não existem. Todavia, isso não seria

criticar o argumento, pois não é este assunto que está em pauta. Além do mais, você

teria que provar que E.Ts não existem – lembre-se de Karl Popper -, e isso o colocaria

em uma situação bastante complicada, uma vez que a existência ou não de E.Ts ainda

é uma questão em aberto e de difícil, para não dizer impossível falseamento. Uma forma

Curiosidade

* Nota: exemplo adaptado de Navega (2005, p.38).

Kelly Slater é um surfista norte americano ganhador de onze títulos mundiais. É sem sombra de dúvidas o maior surfista de todos os tempos e um dos maiores esportistas que o mundo já viu. Suas conquistas e suas performances foram e são tão espetaculares que muitos de seus adversários o chamam de E.T.

 

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mais eficaz de criticar o argumento seria perguntar: Onde está a lei ou o decreto que

determina que extraterrestres ilegais não podem se inscrever nos torneis do circuito

mundial de surfe? Se a lei não existir, o argumento inteiro destruído. Se Kelly Slater não

for um extraterrestre, mas um ser humano dotado de qualidades excepcionais para a

realização destas tarefas específicas, o argumento é colocado em xeque. Se Kelly Slater

for de fato um extraterrestre, mas esteja devidamente registrado e legalizado no planeta

Terra, o argumento inteiro é descartado.

Se você almeja melhorar seus argumentos é possível fazer uso de algumas abordagens

que podem auxiliá-lo (a). Vamos a elas.

Para Saber mais: 

 Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br 

 

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MÓDULO 2

Cuidados Básicos na Construção de Argumentos

O encargo da prova

Um tema bastante peculiar quando versamos sobre argumentação diz respeito ao que

ficou conhecido como o encargo da prova. Em um debate argumentativo aquele que

propõe a alegação por meio de um argumento será sempre o responsável em

providenciar o seu suporte. Quando um cientista defende sua tese de doutorado terá que

fazer o mesmo. E você também! Terá que argumentar de forma exemplar em seu

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC. Todavia, no dia a dia encontramos muitas

falácias argumentativas como a explicitada abaixo:

Paulo - Minha teoria afirma que no fundo dos oceanos habitam hominídeos muito

inteligentes. É um desmembramento da raça humana que deu origem ao mito e as

estórias de sereias. Todavia, eles têm medo de nós e se escondem muito bem.

José - Tenho dificuldade de acreditar nisso. Você pode providenciar algumas

evidências sobre essa teoria?

Paulo - Não entendo por que você duvida de mim? Qual a prova você tem de que

não pode haver uma civilização de “sereias” vivendo no fundo dos oceanos?

O encargo da prova é algo tão importante em nossa sociedade que é um dos princípios

básicos que devem ser respeitados quando a justiça julga os cidadãos. Assumimos que

todos são inocentes até prova em contrário. Não cabe ao réu provar a sua inocência, e

sim o promotor provar que esse é culpado. E você, acredita que tem concedido

evidências suficientes para suas teorias, seus pontos de vista, suas teses morais, suas

opiniões?

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Se você claudicou ao responder a pergunta acima, vamos enfrentar o problema de

frente? Para que um argumento seja considerado bom as premissas devem respeitar

quatro tópicos: aceitabilidade; suficiência; relevância e refutabilidade.

Aceitabilidade

As premissas que dão suporte ao argumento tem que ser aceitáveis, não apenas para

quem defende o argumento, mas também para quem o contesta. Todavia, não esqueça

que quando falamos em aceitabilidade não estamos nos referindo ao conceito de

verdade. Premissas aceitáveis não garantirão a veracidade do argumento. Por fim, a

aceitação das premissas dependerá bastante das pessoas que estão argumentando. Em

um debate franco e respeitoso, o que está em jogo são as ideias, e é importante que

todos os debatedores estejam dispostos a aceitar o melhor argumento, ainda que não

seja o seu. No final, todos ganharão, pois a ideia passará a ser utilizada por todos os que

veem nela um bom modelo de representação da verdade relativa de ponta. Note o

exemplo abaixo:

Premissa 1 - Tudo o que comemos ou mata ou engorda.

Premissa 2 – Comer brócolis não mata.

Conclusão – Portanto, comer brócolis engorda.

Esse argumento é logicamente válido, pois sua conclusão decorre das premissas

utilizadas. Todavia, a primeira de suas premissas é inaceitável. Muita coisa que

comemos, nem mata e nem engorda. Um bom exemplo são as fibras, que passam

incólumes pelo trato digestório.

Relevância

As premissas podem ser aceitáveis, mas ainda assim, irrelevantes. Para que o argumento

seja um bom argumento é necessário que as premissas sejam relevantes, ou seja,

tenham implicação direta na veracidade ou falsidade da conclusão. Por exemplo:

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Premissa 1 - O filme “Matrix” teve ótimos efeitos especiais.

Premissa 2 - Os atores atuaram com muita competência.

Conclusão – Logo, o filme conta uma história real.

Suficiência

Ainda que algumas premissas sejam aceitáveis e relevantes, podem não conceder

suporte suficiente para a conclusão. O que você acha do exemplo abaixo?

Premissa 1 – Sal em excesso causa hipertensão.

Premissa 2 – O Ministério da Saúde tem obrigação de zelar pela saúde das

pessoas.

Conclusão – Logo, o Ministério da Saúde deve controlar a venda de sal.

Note que apesar de aceitável e relevante, as premissas acima não são suficientes para

suportar a conclusão. Se o Ministério da Saúde tivesse a incumbência de controlar a

venda de sal, provavelmente deveria controlar a venda de todos os alimentos, pois, em

excesso, quase tudo faz mal a saúde, até a água.

Refutabilidade

Argumentos bons devem ser refutáveis. Quando fazemos uso de argumentos que não

nos permitem realizar experiências para tentar falseá-lo estamos no âmbito dos

fundamentalismos irrefutáveis, logo, não filosóficos e muito menos científicos. Sendo

assim, voltemos à questão da melhora dos argumentos. Como é possível aprimorar a

capacidade argumentativa? Pensar antes de falar pode ser um bom começo. Pense

em seus argumentos. Prepare-os com antecedência. Analise as premissas que lhe

parecem mais frágeis e organize suporte adicional para elas. Se o argumento lhe parecer

demasiadamente complexo, solidarize-se com seu interlocutor, apresentando-o de forma

lenta. Construa seu raciocínio gradativamente. Outra estratégia prudente é evitar as

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declarações categóricas. Opte pelo uso das declarações qualificadas, como no exemplo

abaixo.

Categórica: Concluímos que todos os fiscais são corruptos.

Qualificada: Concluímos que existem alguns fiscais corruptos.

Como já mencionado, na medida do possível tente eliminar ambiguidades e frases de

caráter vago de seus argumentos. Seja claro. A utilização do formato padrão pode auxiliá-

lo bastante. Muitos bons argumentadores também optam por declarar antecipadamente

os pontos fracos de seus argumentos. Isso evita que seu oponente possa demonstrar

força durante o debate. Esse tipo de estratégia é muito utilizado por acadêmicos nas

defesas de suas dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Ao apontar as falhas

do próprio trabalho, a banca examinadora fica fragilizada, pois, findada a apresentação,

não terá muitas “críticas novas” para fazer ao trabalho. Lembre-se disso na hora em que

for defender seus trabalhos durante sua estadia por aqui. Todavia, antes disso é

necessário desenvolver a competência para identificar as falhas de seu próprio trabalho

com antecedência, e é para isso que serve uma boa iniciação científica. Por último,

prepare-se da melhor forma possível para ser capaz de refutar todas as possibilidades

contrárias à sua hipótese de pesquisa. Para isso é necessário desapegar-se de seu

argumento. Tente você mesmo encontrar fragilidades nele. Identifique em seu argumento

a premissa mais forte, mais contundente, mais exuberante e, tente anulá-la você mesmo

(a), contrapondo-a a um novo argumento. Somente por meio deste tipo de desapego

poderemos nos tornar bons argumentadores. Em última análise, um bom argumentador

está em busca da melhor representação momentânea da verdade e não da vitória no

debate.

Para Saber mais: 

 Assista a vídeo aula com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br 

 

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MÓDULO 3

Um pouco de História

Os primeiros estudos sobre a lógica datam da Grécia antiga, e foi Aristóteles (384-322

a.C.) que a levou a um outro patamar. Aristóteles, diferentemente dos pré-socráticos, dos

sofistas, de Sócrates e de seu professor Platão concede à lógica um tratamento singular,

transformando-a em uma disciplina que merece uma investigação rigorosa e sistemática.

Por isso, Aristóteles é considerado o pai fundador da lógica. Em sua obra Organon,

Aristóteles defende que a lógica serve de instrumento para a filosofia, facilitando a

distinção entre os padrões de raciocínios corretos e os incorretos. Sendo assim, a lógica

foi concebida como um instrumento de análise e compreensão do pensamento, algo

essencial para o filósofo e, posteriormente, para todo e qualquer cientista, seja ele ligado

às ciências naturais ou às ciências humanas, pois o auxilia a pensar com rigor, clareza e

coerência.

A lógica aristotélica engloba duas tarefas distintas: a formulação de conclusões

teóricas a partir de outras proposições igualmente teóricas - teoria do silogismo -, e a

formulação de conclusões teóricas a partir de observações empíricas -indução. Sua

maneira de abordar a lógica foi hegemônica durante quase dois mil anos. Foi somente

no século XVII que Gottfried W. Leibniz (1646-1716), filósofo e matemático alemão ensaia

uma mudança significativa no rumo do desenvolvimento histórico da lógica. Em sua obra

Dissertatio de Arte Combinatória de 1666, Leibniz sugere a construção de um sistema

exato de notação, um tipo de linguagem simbólica universal semelhante à álgebra, que

representaria o pensamento. O intento de Leibniz era conceber uma escrita formal

composta de um pequeno número de signos suscetíveis de representar, segundo regras

combinatórias, todos os conceitos pensáveis. Para tanto, bastaria aplicar certas

operações para obter, por meio de simples cálculos, a resposta para qualquer pergunta

- calculus ratiocinator (DELACAMPAGNE, 1997, p. 18). Contudo, Leibniz veio a falecer

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antes de atingir seu objetivo e o posterior sucesso da filosofia de Kant ofuscou o projeto

de uma formalização matemática do raciocínio.

Figura 6: Gottfried W. Leibniz

No transcorrer do século XIX a ideia de Leibniz foi retomada por vários filósofos-

matemáticos como Bolzano, Boole, De Morgan, Peirce e, finalmente, por Gottlöb Frege

(1848 – 1925) que concretiza a criação da lógica matemática. A obra de Frege influenciou

os trabalhos de grandes filósofos e matemáticos como George Cantor, Alfred North

Whitehead e Bertrand Russell, e o trabalho de todos esses pensadores culminou com o

desenvolvimento de diversas áreas da filosofia, da ciência e da tecnologia, tornando-se

a base das linguagens da computação, tão difundidas e necessárias nos dias atuais.

Saiba caro (a) aluno (a), seu Facebook, seu Instagram e seu WhatsApp são todos filhos

dos trabalhos dessa turminha da pesada. Todavia, neste momento não nos interessa

adentrar neste ramo específico da lógica matemática. Meu objetivo aqui é mais singelo e

me limitarei a investigar algumas peculiaridades de nossa linguagem verbal cotidiana.

A lógica busca uma maneira específica de estruturação do pensamento. Procura

obter frases com um tipo de arcabouço que prescinda dos pensamentos originais,

bastando a apresentação de formas genéricas para que aceitemos sua lógica interna.

Vamos entender melhor isso. Veja como a frase abaixo é intuitiva e óbvia:

Premissa 1 – Todos os homens são mortais.

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Premissa 2 – Sócrates é um homem.

Conclusão – Portanto, Sócrates é mortal.

O que caracteriza a lógica é que ela ainda é óbvia e intuitiva mesmo que possa parecer

estranha e incompreensível. Note que a estrutura dos argumentos abaixo são iguais a

utilizada no argumento acima, com exceção de que, nos exemplos abaixo identificamos

o nexo de causalidade, mas não compreendemos o conteúdo:

Premissa 1 - Todos os Bligs blofam

Premissa 2 - Blég é um Blig

Conclusão - Logo, Blég blófa

Premissa 1 – Todos os A têm um B

Premissa 2 – Um C é um A

Conclusão – Logo, os C têm um B

O pensamento lógico pode seduzir, ainda que seja impessoal. Suas formas ainda serão

válidas mesmo na ausência de qualquer característica pessoal. Ela pode ser utilizada

como instrumento de qualquer área do conhecimento, da filosofia à física. Da geografia

ao direito etc. Por não depender das informações do mundo, a lógica é autossuficiente.

Ao aceitarmos as premissas, sejam elas claras ou obscuras, poderemos ter que aceitar

a conclusão. Sendo assim, a lógica é a arte de estudar a validade ou não das

estruturas gerais do pensamento independente do seu conteúdo - significado.

A lógica pode estar presente tanto em raciocínios dedutivos, quanto em indutivos. Vamos

recordar um pouco este assunto discutido na unidade 1? Fazemos uso de deduções e

induções rotineiramente, ainda que muitos de nós não saibamos dos limites que cada

uma dessas formas de pensar pode esconder. De maneira genérica, podemos afirmar

que o pensamento dedutivo é um método de raciocinar um pouco mais forte, pois permite

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que obtenhamos conclusões mais certeiras. Já os pensamentos indutivos nos concedem

apenas probabilidades. Vamos ver alguns exemplos.

Dedução

Premissa 1 – Todos os golfinhos são mamíferos.

Premissa 2 – Todos os mamíferos têm pulmões.

Conclusão – Sendo assim, todos os golfinhos têm pulmões.

Indução

Premissa 1 – Este ganso é preto.

Premissa 2 – Os gansos que vimos ontem no parque do Ibirapuera eram pretos.

Conclusão – Sendo assim, todos os gansos são pretos.

Lembre-se que a indução é um tipo de raciocínio que sugere como será o futuro com

base em algumas poucas ocorrências do passado. Por este motivo a indução é entendida

como uma forma de argumentação que parte do particular - ocorrências ou amostras

específicas -, em direção ao genérico com vistas ao atingimento de determinações gerais.

Todavia, apesar de ser muito utilizado não somente no senso comum, mas também nas

ciências, o pensamento indutivo pode nos fazer correr sérios riscos:

Premissa 1 - Meu amigo sempre surfa em uma praia do Recife que é infestada de

tubarões.

Premissa 2 – Meu amigo nunca foi mordido por um desses tubarões.

Conclusão – Logo, eu também vou surfar naquela praia.

A generalização indutiva de algumas evidências pode ser bastante arriscada. Sendo

assim, estamos em uma situação um pouco constrangedora, pois as deduções são

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formas de argumentar que só nos serão benéficas se as premissas que a compõe sejam

de qualidade e validem a conclusão, e as induções, por sua vez, só nos concedem

probabilidades. Na verdade, o termo “provar” muito utilizado no senso comum, só

tem mesmo sentido em lógica e em matemática, e mesmo assim, existem

restrições. Nem mesmo nas ciências podemos provar nada. Poderemos, quando muito,

suportar empiricamente hipóteses por meio de cálculos probabilísticos. Voltaremos a este

assunto em breve.

Aristóteles foi o primeiro pensador que fez uso dessas estruturas de pensamento. O

silogismo aristotélico é uma maneira de raciocinar por meio da utilização de três

proposições, sendo as duas primeiras chamadas premissas e a última conclusão. É um

tipo de argumento dedutivo, onde a conclusão é uma consequência lógica das premissas

que estão ligadas a ela por uma relação de consequência. Neste tipo de raciocínio, o

sujeito e o predicado das três proposições estão sempre inter-relacionados. Sendo assim,

os silogismos são discursos que com certas coisas postas, outra coisa necessariamente

decorrerá delas. Isso é bem intuitivo. Vejamos os exemplos abaixo:

Premissa 1 – Todos os seres humanos são mortais.

Premissa 2 – Os santistas são seres humanos.

Conclusão – Portanto, os santistas são mortais.

Premissa 1 – Todos os S são P.

Premissa 2 – Os C são S.

Conclusão – Portanto, C são P.

Os silogismos permitem que se obtenham formas genéricas que são válidas em todas as

situações:

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Premissa 1 – Todos os A são B.

Premissa 2 – Todos os B são C.

Conclusão – Portanto, todos os A são C.

Premissa 1 – Todos os A são B.

Premissa 2 – Nenhum B é C.

Conclusão – Portanto, nenhum A é C.

Premissa 1 – Alguns A são B.

Premissa 2 - Todos os B são C.

Conclusão – Portanto, alguns A são C.

Premissa 1 – Alguns A são B.

Premissa 2 - Nenhum B é C.

Conclusão – Portanto, alguns A não são C.

Todavia, é preciso cautela, pois nem sempre funciona de maneira tão perfeita. Atende

para os exemplos abaixo e perceba que o último deles, apesar de ter a mesma estrutura

que os dois que o antecedem é bastante falho:

Premissa 1 - Um X pode ser um Y.

Premissa 2 - Um Y pode ser um Z.

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Conclusão - Logo, um X pode ser um Z.

Premissa 1 - Um homem pode ser um surfista.

Premissa 2 - Um surfista pode ser um brasileiro.

Conclusão - Logo, um brasileiro pode ser um surfista.

Premissa 1 - Um homem pode ser um surfista.

Premissa 2 - Um surfista pode ser uma mulher.

Conclusão - Logo, um homem pode ser uma mulher.

Uma coleção de argumentos falaciosos

Falácias são falhas no processo argumentativo. Todos nós a cometemos em alguns

momentos de nossas vidas. É verdade que alguns de nós a cometem com bastante

constância, e isso pode ser constrangedor se ocupamos cargos de docência, de

liderança, ou mesmo se atuamos como cientistas ou aprendizes de cientistas. Por este

motivo, é prudente olharmos para nossas limitações argumentativas com bastante

parcimônia, pois, como tudo na vida, a capacidade de apresentar argumentos com

clareza e isentos de falhas é algo que pode ser conseguido com treino.

As falácias denunciam a ineficácia do argumentador em atacar as premissas do

argumento de seu interlocutor. Vale à pena relembrar que quando estamos em um

debate, o que queremos analisar são ideias. Qualquer tentativa de invalidar o caráter do

argumentador oponente, de desviar o assunto ou de desqualificar a ideia sem atacar

coerentemente suas premissas será visto como uma falha argumentativa. Vejamos

alguns exemplos de falácias:

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Exemplo 1:

Todos sabem que o altivo vereador é um vigarista costumaz, logo como podemos

concordar com sua ideia de redução de impostos?

Nome da falácia: ad hominem; ataque ao homem.

Essa falácia ocorre quando se opta por atacar a pessoa que proferiu o argumento e não

as premissas do argumento. Não se discute a ideia por detrás do argumento. Isso mostra

fraqueza argumentativa. É muito mais fácil atacar uma pessoa do que seus argumentos.

O vereador pode ser um trapaceiro e ainda assim sua proposta pode ser boa.

Exemplo 2:

Esta instituição comporta-se me maneira paternalista, porque ela trata seus funcionários

como crianças.

Nome da falácia: argumento circular; circularidades reflexivas.

Note que, quem faz uso do argumento acima está afirmando que X é verdadeiro porque

X é verdadeiro.

Exemplo 3:

Como posso acatar o argumento de que fumar faz mal a saúde, se o médico que me

informou sobre este assunto também é fumante?

Nome da falácia: tu quoque; você também; ad hominem tu quoque.

Essa falácia se funda quando se utiliza os erros cometidos por outros - principalmente os

do argumentador oponente - para desqualificar o argumento apresentado.

Tenha sempre em mente caro (a) aluno (a), que todas as críticas que você receber em

sua trajetória acadêmica serão, ou ao menos devem ser direcionadas aos seus trabalhos,

às suas ideias, aos seus argumentos. Faça o mesmo com seus professores. Esforce-se

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para não levar nada para o âmbito pessoal, afinal, estamos em um ambiente propício

para se discutir ideias sem melindres. No final, todos saem ganhando.

Exemplo 4:

Como não provaram que extraterrestres não existem, então eles devem existir.

Nome da falácia: apelo à ignorância; ad ignorantium; prova por ignorância.

Aqui o argumentador conclui que algo é verdadeiro só porque não pode ser provado como

falso, ou vice versa.

Exemplo 5:

O Doutor Drauzio Varela afirmou que o PIB deve crescer 6% no ano de 2015. Ele é muito

inteligente, deve saber do que está falando.

Nome da falácia: apelo à autoridade; ad verecundiam; falácia da especialidade universal.

Perceba que o suporte do argumento acima não é oriundo das premissas, mas da

autoridade que o argumentador tem em outro campo do saber, ou campo social, para

recordarmos de Bourdieu. O apelo à autoridade tenta estender a especialidade de origem

e a popularidade de um dado pensador a outros campos de atuação que não são os

seus.

Exemplo 6:

Devemos destinar recursos do Estado com vistas a fomentar a arte e a cultura em nosso

país, pois todas as grandes potências da história da humanidade agiram desta maneira.

Nome da falácia: apelo à tradição; ad antiquitatem; apelo ao velho; apelo ao passado.

Perceba que a neste caso, a conclusão pode até ser boa, todavia as premissas não dão

o devido suporte a ela. O argumento justifica sua aceitação afirmando que no passado

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sempre foi assim. O apelo à tradição ancora-se na noção indutiva de que tudo o que

funcionou no passado irá funcionar no futuro. Porém, vimos anteriormente que o

raciocínio indutivo pode ocasionar sérios problemas.

Exemplo 7:

[após um bom argumento sobre porque não deve ser enviado dinheiro para a Etiópia]:

Como você pode ser cruel e não destinar recursos internacionais à Etiópia? Pense em

todos os homens, mulheres e crianças que estão morrendo de fome por lá! (NAVEGA,

2005, p.150)

Nome da falácia: apelo à pena; ad misericordian.

No exemplo acima se faz uso de termos que apelam para a emocionalidade do

interlocutor. Não se pode analisar a força de um argumento com base no sentimento

de pena, pois o envio de dinheiro para a Etiópia pode não resolver a questão, uma vez

que o mesmo pode ser desviado para milícias, pode não chegar a ser utilizado para suas

finalidades, etc. Este contra-argumento falacioso clama pela piedade do interlocutor e se

abstém de apresentar premissas contundentes que possam se opor às premissas

utilizadas anteriormente no argumento contrário.

Exemplo 8:

Devemos baixar os impostos e as taxas dos serviços públicos, pois a maioria do povo

deste país apoia essa medida.

Nome da falácia: apelo ao público; ad populum; ad numerum.

O argumento se apoia na popularidade, ou seja, já que a maioria concorda com o que se

está sendo alegado devemos acatar o desejo da maior parte. É sempre bom recordar

que o desejo da maioria nem sempre aponta para a melhor decisão, uma vez que a

maioria foi a responsável pela crucificação de Jesus Cristo, pelo equívoco no julgamento

de Sócrates, pela eleição do Tiririca, pela aceitação de Hitler da Alemanha nazista, enfim,

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na história da humanidade a maioria também tem feito uma quantidade inestimável de

besteiras.

Exemplo 9:

João: Eu acredito que o capitalismo é bom porque ele incentiva as pessoas a trabalhar

e a poupar.

José: Você acha que o capitalismo é bom porque diz que a riqueza vem à mão de quem

trabalha, mas isso é claramente falso, já que muitas pessoas ricas simplesmente herdam

suas fortunas sem nunca trabalhar, por isso o capitalismo é um fracasso (NAVEGA, 2005,

p.153).

Nome da falácia: espantalho.

Na falácia acima o argumentador altera o argumento oponente distorcendo a ideia

original. Em outras palavras, o argumento é transformado em um “espantalho”, que por

ser feito de palha pode pegar fogo facilmente.

Exemplo 10:

A discussão da proibição de fumantes em ambientes fechados não é oportuna. Todos

nós desejamos melhorar a qualidade do ar que respiramos, mas não é justo que se faça

isso com os fumantes se há coisas mais graves a atacar. A poluição do ar de nossa

cidade é muito mais grave por causa dos automóveis que nela circulam. Seria muito mais

importante concentrarmos nossos esforços no estabelecimento de mecanismos de

redução da poluição de veículos automotores (NAVEGA, 2005, p.156).

Nome da falácia: red herring; missing the point; conclusão irrelevante.

O red herring introduz tópicos irrelevantes no assunto que está em pauta. Agindo desta

maneira o adversário tenta desviar o assunto inicial, mudando o foco do debate. A

questão introduzida pode até ser pertinente e digna de discussão, todavia, isso não

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justifica a fuga da questão inicial. A falácia red herring diferencia-se da do espantalho,

pois nesta última o argumento é deformado e no red hering o argumento é desviado

Exemplo 11:

A inteligência inata dos brasileiros é claramente maior agora do que há quarenta anos, já

que durante esse período nosso índice de alfabetização cresceu muito devido aos

programas educacionais implantados pelos sucessivos governos (NAVEGA, 2005, p.

157).

Nome da falácia: non sequitur; não há implicação.

O non sequitur pode ser facilmente identificado quando não há conexão lógica entre as

premissas e a conclusão. É um tipo de falácia engraçada, pois a falta de relação entre os

tópicos do argumento pode caracterizar certo tipo “ingenuidade alucinada”. Lembre-se

que todo argumento necessita que as premissas conduzam para a veracidade da

conclusão. As falácias non sequitur falham totalmente neste quesito. No exemplo acima

fica clara a confusão. Se a inteligência é inata, como pode ser melhorada com os

programas de educação?

Exemplo 12:

A competição é a melhor forma de educarmos as crianças, pois representa de forma

bastante clara e inequívoca as regras da natureza.

Nome da falácia: apelo à natureza.

Alega-se que um argumento é verdadeiro devido a sua referência à natureza. Todavia,

raciocine comigo caro (a) amigo (a) estudante. Você encontra celulares na natureza?

Liquidificadores? Vacinas? Antibióticos? Naves espaciais? Geladeiras? Livros? Skates?

Sendo assim, apelar para a natureza pode não ser uma boa estratégia, uma vez que

parece não haver razões suficientes nem para aceitar, nem para rejeitar as soluções ditas

naturais.

Exemplo 13:

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Desde que comecei a tomar comprimidos de creatina minha energia aumentou. Logo, a

creatina é um potente energético.

Nome da falácia: post hoc ergo propter hoc; falácia da falsa causa.

Assume-se que por anteceder um episódio, este deve necessariamente ser a sua causa.

O aumento de energia pode ser advindo de infinitas causas e sua determinação necessita

de investigações mais parcimoniosas, ou seja, científicas!. Nosso “tomador de creatina”

pode estar dormindo um pouco mais, ou ainda tenha mudado para um trabalho mais

agradável, ou quem sabe esteja namorando a Deborah Secco. Tudo isso pode ajudar

bastante no aumento da energia do rapaz. À noite segue-se o dia, mas não podemos

dizer que a noite provoca o dia (NAVEGA, 2005, p. 162).

Para tornar ainda mais clara esta ideia, veja o exemplo:

Mais pessoas morrem em hospitais do que em qualquer outro lugar. Portanto, internar-

se em hospitais causa a morte (NAVEGA, 2005, p. 163).

Para Saber mais: 

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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148  

MÓDULO 4

Os limites da lógica

A lógica pode falhar?

Já vimos que algumas construções aparentemente lógicas podem conter armadilhas para

nós. Vamos analisar mais algumas dessas possibilidades? O que você acha do seguinte

exemplo? Ele pode falhar?

Premissa 1 – X está à direita de Y.

Premissa 2 – Y está à direita de W.

Conclusão - Logo, X está à direita de W.

W Y X

Todavia, satisfazer-se ao encontrar um exemplo que valide o argumento pode ser uma

grande armadilha. Pense, por exemplo, em um sujeito X, um Y e um W conversando em

uma mesa redonda! Note como o silogismo é facilmente refutado.

Isso nos alerta para certo tipo de automatismo que muitos de nós somos vítimas, pois

quando queremos defender nossos pontos de vista, quase que invariavelmente

buscamos exemplos que possam validá-los. Todavia, esta é uma maneira bastante frágil

de raciocinar, como já nos alertou o grande filósofo Karl Popper. Lembre-se que ele

argumentava que na ciência, o conhecimento só consegue crescer por meio da falseação

de hipóteses. Não basta tentar confirmar a veracidade de uma ideia, é necessário pensar

constantemente em sua refutação. Aquilo que confirma uma teoria, não é algo que possa

ser utilizado para garantir a sua veracidade. Por outro lado, aquilo que a falseia, por meio

da evidência contrária, confere uma irrefutável confirmação de que a teoria é falha.

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149  

Em ciência é imprescindível que as alegações sejam passíveis de ser falseadas. Essa

falseabilidade é essencial por motivos óbvios, pois, se não há como reprovar uma

alegação qualquer, então a alegação está fora do universo da crítica e é invulnerável a

qualquer contra argumentação. Alegações que não possam ser testadas são inúteis, ao

menos para a Ciência. Todavia, mesmo fora do universo científico, quando, por

exemplo, estamos á frente de uma empresa tendo que escolher a ação mais

adequada em uma dada circunstância, buscar argumentos contrários à hipótese

escolhida pode ser uma ação necessária para que se possam evitar prejuízos

advindos de uma investigação pobre em termos de lógica.

Muitos daqueles que se familiarizam com as regras do debate e da argumentação

acabam desenvolvendo a capacidade de detectar os pontos fracos da defesa de um

oponente. Isso é o que buscam fazer muitos pensadores críticos desde a Antiguidade.

Um exemplo deste tipo de abordagem nos é dado por Brian Magee em seu livro

Confissões de um Filósofo. Por ter sido bastante próximo de Karl Popper, Magee afirma

que sua forma de debater era oposta à dos filósofos que o antecederam. Popper

buscava encontrar o argumento mais forte do seu oponente e o atacava de forma

impiedosa. Porém, sempre que possível Popper aperfeiçoava o argumento de seus

adversários antes de atacá-lo. Para tanto, fazia uso de diversas páginas de exame

preliminar onde procurava extrair fraquezas ou contradições, permitindo assim que

a argumentação do seu oponente ficasse ainda melhor. Somente depois de agir

desta maneira começava a investir com ferocidade contra ele. O resultado era, na

maioria das ocasiões, devastador. No final, não restava nada da argumentação

contrária a não ser os créditos e concessões que o próprio Popper já apontara

(MAGEE, 2001, p.135).

Outro problema que pode surgir diz respeito à complexidade da linguagem. Nossa

linguagem é concreta, mas também pode ser permeada de muitos devaneios, uma vez

que somos seres abstratos que se compreendem em suas abstrações. Isso pode

ocasionar enormes problemas para os silogismos, que foram, por séculos, considerados

formas perfeitas de raciocinar. Veja o exemplo abaixo:

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Premissa 1 – Nenhum animal com rabo de peixe é uma sereia.

Premissa 2 – Todas as sereias tem rabo de peixe.

Conclusão – Alguns animais com rabo de peixe não são animais com rabo de

peixe.

Como pode ser observado, poderemos produzir silogismos paradoxais sempre que

fizermos uso de termos concretos misturados com termos abstratos. Por este motivo caro

(a) aluno (a), abstrações não tem lugar na ciência. Isso também poderá ocorrer quando

fizermos uso de termos vagos. Veja só como isso funciona:

Premissa 1 – Nada é melhor que a eudaimonia (o bem supremo; a felicidade).

Premissa 2 – Mas um espetinho de frango é melhor do que nada.

Conclusão – Portanto, um espetinho de frango é melhor que a eudaimonia.

A construção do raciocínio acima fez uso da palavra nada. Mas, dependendo do contexto

essa palavra pode ser possuir diversos significados. O filósofo Wittgenstein afirmava que

nossa linguagem é um apanhado de muitos jogos diferentes, e com muitas regras

distintas. A nossa linguagem tem tanta flexibilidade que pode originar uma infinidade de

jogos. A linguagem pode ser jogada para tantos lados que os silogismos aristotélicos,

que por séculos foram os modelos de perfeição linguística, podem ser facilmente

invalidados.

Foto 15: Ludwig Wittgenstein

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151  

O pensamento do senso comum carece muito da lógica, e muitos problemas

educacionais e corporativos poderiam ser evitados se levássemos Bertrand Russell um

pouquinho mais a sério. Entretanto, existem situações que podem ser logicamente

erradas e ainda assim ter relevância prática inegável. Isto ocorre devido a inúmeros

motivos, e um deles diz respeito à dependência de nosso raciocínio daquilo que ocorreu

no passado e também das nossas intenções pragmáticas específicas. Veja um raciocínio

lógica e pragmaticamente inválido:

Premissa 1 – Se aquilo é um pombo (A), então aquilo é um animal (B).

Premissa 2 – Aquilo não é um pombo (Negação do antecedente – A).

Conclusão – Portanto, aquilo não é um animal (Negação indevida do

consequente – B).

Aquilo poderia ser um gato, um cachorro, um pato etc. Logo, a negação do consequente

é indevida. Contudo, preste atenção ao seguinte exemplo e note que a estrutura é

exatamente a mesma do exemplo dado acima, porém, seu conteúdo é plenamente

aceitável:

Premissa 1 – Se você lavar o meu carro (A), eu lhe pago trinta reais (B).

Premissa 2 – Você não lavou o meu carro (negação do antecedente – A).

Conclusão – Portanto, não vou lhe pagar trinta reais (negação indevida do

consequente? – B. Negação devida do consequente? – B).

Se analisarmos o argumento acima em termos puramente formais perceberemos que ele

comete o mesmo erro de negação do antecedente com a indevida negação do

consequente. Porém, a estrutura argumentativa também pode ser analisada em termos

práticos. Agindo assim pode-se perceber que o argumento respeita as nossas maneiras

de condução das atividades do cotidiano, onde temos o hábito de esperar pagamento

apenas quando se realiza o serviço contratado. No dia a dia isso é aceitável, contudo,

em termos puramente lógicos, isso é insatisfatório, pois eu poderia lhe dever trinta reais

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152  

por outros trabalhos, por exemplo. Sendo assim, o argumento acima é logicamente falho,

mas é pragmaticamente aceitável.

Podemos também analisar a lógica por meio da neurobiologia. Nosso cérebro não evoluiu

para trabalhar com a lógica! Os seres humanos estão no planeta a duzentos mil anos, e

por quase todo esse período nosso cérebro teve que lidar com desafios bem menos

complexos do que os impostos pela lógica, como fugir de um predador, por exemplo. A

necessidade de se trabalhar com a lógica é algo muito recente em termos evolutivos.

Muito provavelmente, na medida em que nosso cérebro continue evoluindo, teremos

cada vez mais facilidade em lidar com problemas de ordem lógica. Nossas linguagens

ainda não são muito adequadas para suportar esses desafios. Nosso mundo é caótico e

nos surpreende a cada instante. Definitivamente a lógica nos é cara e imprescindível em

inúmeras situações e contextos, mas definitivamente também, nosso mundo não opera

de forma lógica!

Que tal um desafio? O exemplo abaixo foi retirado do livro Pensamento Crítico e

Argumentação Sólida. Como será que você vais se sair?

Duas cartas foram retiradas de um baralho e colocadas com a face para baixo em uma

mesa. Alguém que viu as duas cartas, diz para você que somente uma das proposições

abaixo é verdadeira:

Proposição 1 - Existe um Rei ou um Ás ou ambos na mesa.

Proposição 2 - Existe uma Dama ou um Ás ou ambos na mesa.

Dado que somente uma das proposições acima é a verdadeira, quais as cartas mais

prováveis de termos na mesa?

Qual carta você escolheu? Parece que uma delas seria o Ás, pois existem duas chances

de tê-la na mesa, certo?

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Sinto muito! Se você escolheu o Ás, você errou! Veja o que nos diz o professor Sergio

Navega em seu exemplo:

Suponhamos que a proposição 1 seja verdadeira. Se ela for verdadeira, então uma carta é um Rei, ou um Ás ou ambos. É isso que diz a proposição 1. Se for um Rei e um Valete, por exemplo, a proposição 1 será verdadeira, e a proposição 2 será falsa, o que satisfaz o nosso enunciado: Somente uma das proposições é verdadeira. Logo, Rei e Valete são soluções aceitáveis para o problema. Mas se o Ás for uma das cartas – não importa qual é a outra – então a proposição 1 será verdadeira, mas a 2 também será! Portanto, não podemos ter um Ás na proposição 1 e da mesma maneira na proposição 2. O Ás é a única carta que não pode ocorrer dadas essas circunstâncias! Temos grandes dificuldades de escapar da tendência de achar provável algo que é, na verdade, logicamente impossível (NAVEGA, 2005, p.76).

Um dos pontos altos da lógica na história do pensamento humano diz respeito ao

movimento intelectual que o positivismo lógico defendia. Bryan Magee nos conta que o

depois da Segunda Guerra Mundial o centro da filosofia britânica era a universidade de

Oxford. Nela, a influência dominante era o positivismo lógico, e a obra de maior impacto

neste período foi o livro Linguagem, Verdade e Lógica de A.J Ayer. Os positivistas lógicos

interessavam-se na distinção entre sentido e falta de sentido. Este movimento intelectual

teve início na Alemanha, no chamado Círculo de Viena e estendeu-se a outras

localidades. Seus integrantes estavam convencidos de que a maioria dos pensadores

metafísicos - aqueles que filosofam com coisas que não se pode fazer experiência - mais

conhecidos falava tolices em tom bombástico. Os positivistas lógicos britânicos nutriam

a mesma convicção com respeito à obra de muitos filósofos (MAGEE, 2001, p.38). Mas,

o que queriam os positivistas lógicos?

O positivismo lógico ou empirismo lógico foi desenvolvido por membros do Círculo de

Viena tendo como base o desenvolvimento da lógica moderna. Em seu início, o Círculo

de Viena foi liderado por Moritz Schlick, que ajudou a constitui-lo na medida em

que serviu como catalisador de um grupo de discussão formado por cientistas e

filósofos com o objetivo de criar uma nova filosofia da ciência que apoiasse de

maneira rigorosa uma demarcação do científico e do não científico. O Círculo de

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Viena teve influências de Ernst Mach, Percy Bridgman e Ludwig Wittgenstein, sendo este

último autor do Tractatus Logico-Philoshophicus, obra seminal que os membros do

Círculo se inspiraram para a construção das suas premissas.

A filosofia deste grupo restringia todo conhecimento à ciência. Naquele momento da

história é bastante compreensível que um grupo de cientistas e filósofos atraídos e

seduzidos pela lógica intencionasse aplicá-la a toda e qualquer forma de pensamento

que almejasse atingir algum tipo de conhecimento. Para tanto, fizeram uso do

verificacionismo para rejeitar qualquer pensamento metafísico, não necessariamente

como uma farsa, mas como algo destituído de significado. Todavia, não podemos

esquecer que o ser humano é dotado de afetos, paixões, emoções, que pouco ou nada

tem a ver com a lógica. Esta é um instrumento necessário para alguns momentos de

nossa vida. Como dissemos, para determinar se um argumento era significativo ou não,

os positivistas lógicos faziam uso do verificacionismo como critério para fazer a

demarcação entre o que era científico e o que não era. Asserções só seriam

cognitivamente significativas se fosse possível determinar um procedimento finito para

obter sua verdade de forma conclusiva. Sendo assim, afirmações metafísicas, teológicas

e até mesmo éticas eram consideradas como pseudoproblemas.

Com o tempo, as doutrinas do positivismo lógico foram sendo cada vez mais atacadas

por diversos pensadores, um dos críticos era o já citado Karl Popper. Popper, apesar de

franco defensor da lógica, não aceitava que o verificacionismo pudesse ser uma das

bases do conhecimento. Já sabemos que para ele, buscar aquilo que pode falsear uma

teoria, uma ideia, uma crença, um ponto de vista, um argumento é uma atitude muito

mais científica do que buscar aquilo que os confirme. Com esse tipo de procedimento

Popper chegou mesmo a afirmar que nada pode ser provado, nem mesmo em ciência. O

que podemos obter são meras probabilidades. A grande citação abaixo foi retirada da já

citada obra de Magee. No meu entender, a leitura que Magee faz do legado deixado por

Karl Popper é bárbara. Nela é possível perceber a lucidez de Popper, que buscou durante

toda a sua vida conceder a Ciência uma base rigorosa, sem cair na armadilha de acreditar

que por meio dela chegaríamos às certezas absolutas:

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Foi com relação à filosofia da ciência que Popper elaborou suas ideias mais fundamentais: que nunca somos capazes de estabelecer com segurança a veracidade de qualquer enunciado irrestritamente geral sobre o mundo e, portanto, de nenhuma lei ou teoria científica (é importante deixar claro que ele não está falando de enunciados singulares, mas de enunciados irrestritamente gerais; é possível às vezes ter certeza de uma observação direta, mas não da estrutura explanatória que a explica; as observações diretas e os enunciados singulares são sempre suscetíveis a mais de uma interpretação); que, por ser impossível em termos lógicos chegar a estabelecer a veracidade de uma teoria, qualquer tentativa nesse sentido é uma tentativa de fazer o impossível em termos lógicos; portanto, não é só o positivismo lógico que deve ser abandonado em virtude de seu verificacionismo, mas também toda a filosofia e toda a ciência envolvidas com a busca da certeza, busca que dominou o pensamento ocidental de Descartes até Russell; que por não conhecermos, e nunca podermos conhecer no sentido tradicional dessa palavra, a verdade de qualquer uma de nossas ciências, todo o nosso conhecimento científico é, e sempre será falível e corrigível; que nosso conhecimento não aumenta, como ao longo dos séculos como se acreditou que acontecesse, pelo perpétuo acréscimo de novas certezas existentes, mas pela repetida derrubada de teorias existentes por teorias melhores, o que significa principalmente teorias que explicam mais ou que geram previsões mais exatas; que devemos esperar que essas teorias melhores, por sua vez, sejam um dia substituídas por teorias ainda melhores; e que o processo jamais terá fim, de modo que o que chamamos de nosso conhecimento somente pode chegar a ser constituído de nossas teorias; que nossas teorias são produto de nossa mente; que somos livres para inventar absolutamente qualquer teoria, mas que, antes que qualquer teoria dessas possa ser aceita como conhecimento, é preciso que se demonstre que ela é preferível a qualquer outra ou quaisquer outras que substituiria caso a aceitássemos; que uma preferência dessa ordem somente pode ser estabelecida por testes rigorosos; que, embora os testes não possam estabelecer a veracidade de uma teoria, eles podem determinar sua falsidade – ou revelar falhas nela – e, portanto, embora não possamos nunca ter elementos para acreditar na veracidade de uma teoria, podemos ter elementos decisivos para preferir uma teoria a outra; que, por conseguinte, o comportamento racional consiste em basear nossas escolhas e decisões no “que nos é dado saber” ao mesmo tempo que procuramos substituí-lo por algo melhor. Logo, se quisermos progredir, não devemos lutar até a morte em defesa de teorias existentes, mas acolher as críticas a elas e permitir que nossas teorias morram no nosso lugar (MAGEE, 2001, p.212).

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Popper, tido como uma das maiores mentes do século XX, quiça da história do homem

na Terra, concede-nos durante o transcorrer de toda a sua enorme obra “pílulas de

modéstia”, tão necessárias em um mundo onde as certezas “pipocam” por todos os lados.

A grande crítica endereçada aos livros de autoajuda é que a quase totalidade dos títulos

existentes fazem uso da mesma estratégia: 1-buscam encontrar em nossa sociedade

exemplos de pessoas que se adequem às “teorias” propostas na obra; 2- uma vez

encontrados os exemplos, esses são imediatamente universalizados, como se a

aplicação da fórmula utilizada por uma pessoa ou por um pequeno grupo de indivíduos

pudesse garantir o sucesso de todos os que seguissem seus passos. Sendo assim, o

que a autoajuda nos propõe é um tipo bastardo e medíocre de verificacionismo de terceira

categoria, sem perceber que até mesmo os argumentos dos positivistas lógicos - sem

exceção, todos filósofos e cientistas brilhantes -, foram solapados pelos potentes

argumentos de Karl Popper há muitos e muitos anos. Ainda assim, os títulos abaixo

continuam a seduzir milhões e milhões de leitores pelo mundo afora, autoajudando

assim, os autores das referidas obras:

Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie.

A Chave Mestra do Sucesso. 24 Lições Para Alcançar Tudo o que Deseja, de

Charles F. Haanel.

Deixe Os Homens aos seus Pés. Como se Tornar uma Mulher Poderosa e

Irresistível, de Marie Forleo.

Trabalhe 4 Horas por Semana. Fuja da Rotina, Viva Onde Quiser e Fique Rico, de

Timothy Ferriss.

Casamento Blindado. O Seu Casamento à Prova de Divórcio, de Renato e

Cristiane Cardoso.

Como Motivar as Pessoas, de Ian Maitland.

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A Chave do Segredo. Use a Lei da Atração Para Obter Tudo o que Quiser, de Jerry

e Esther Hicks.

A Magia do Marketing Pessoal. O Segredo das Pessoas Bem Sucedidas, de

Edmundo Vieira Cortez.

O Segredo da Mente Milionária. Aprenda a Enriquecer Mudando os Seus

Conceitos Sobre Dinheiro e Adotando os Hábitos das Pessoas Bem Sucedidas, de T.

Harv Eker.

Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes, de Stephen Covey.

A obra de Popper, apesar de revolucionária, ainda é bastante desconhecida do público

em geral e até mesmo entre professores universitários. Sendo assim, é compreensível

que muitos autores de autoajuda acreditem em suas teorias e continuem propagando em

alto e bom tom ideias que foram descartadas pelo gênio de Popper há décadas.

Karl Popper faleceu num sábado, dia 17 de setembro de 1994, aos 92 anos de idade. No dia seguinte, três dos quatro maiores jornais dominicais da Grã-Bretanha o descreveram, ou publicaram citações que o descreviam, como o mais importante filósofo do século XX. Antes que terminasse o mês, artigos com o mesmo tom foram publicados no mundo inteiro. É claro que não será decidido pelos jornais quem acabará sendo considerado o maior filósofo do século XX. No entanto, a lista de indicados é de fato curta: Russell, Wittgenstein, Heidegger, Popper (MAGEE, 2001, p.225).

Bem caro (a) aluno (a), até aqui pontuei e enalteci a lógica, pois afinal, estamos a falar

sobre a ciência. Todavia, não é minha intenção erigir mais um fundamentalismo ao estilo

dos positivistas lógicos. Para tanto, mais uma vez chamo Brian Magee para fazer um

salutar contraponto. Ao pontuar suas limitações Magee de certa forma nos alerta

para os limites da lógica em nossa vida. Russell estava certo ao afirmar que as

pessoas em geral não fazem uso do pensamento lógico e com isso acabam deixando de

fruir insights de grande profundidade e que poderiam auxiliá-las nos desafios do

cotidiano. Por outro lado, uma significativa parcela de acadêmicos, formadores de

opinião, passou a agir como se tudo pudesse ser avaliado por meio de análises lógicas

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de termos e proposições, e isso maculou o que de mais significativo existia dentro da

filosofia.

A questão original da filosofia ao longo da maior parte de sua história foi “em última análise, o que existe?”. Essa foi a pergunta predominante para os pré-socráticos; e, quando não dominou, ela esteve subjacente à maior parte da melhor filosofia desde aquela época. Em busca de uma resposta, os filósofos fizeram uma grande quantidade de perguntas secundárias, tais como: Qual a natureza dos objetos físicos?; O que é o espaço?; O que é a relação causal?; O que é o tempo? E, por uma progressão natural a partir daí, passaram a preocupar-se profundamente com a possibilidade do conhecimento humano: Como podemos descobrir essas coisas?; Podemos conhecer algumas delas com certeza?; Em caso positivo, qual?; E como poderemos ter certeza de conhecer quando realmente conhecermos? [...] E ao longo de dois milênios e meio, a maioria dos filósofos engajados nessas buscas teria considerado ridícula, se não incompreensível, a opinião de que todos os problemas filosóficos eram, em última análise, questões a respeito do uso – lógico - da linguagem. Um ou dois deles, Locke, por exemplo, acreditavam que considerações acerca da linguagem desempenhavam um papel muito importante na investigação filosófica, mas jamais passou pelas suas cabeças imaginar que tais considerações constituíssem o principal problema da filosofia (MAGEE, 2001, p. 76).

[...] O que não aceito é que as características do nosso sistema de representação sejam linguísticas em qualquer sentido fundamental ou primordial. [...] Se ergo os olhos quando escrevo esta frase, minha visão absorve imediatamente metade de um aposento contendo dezenas, se não centenas, de itens e formas multicores em relações desordenadas entre si. Vejo tudo com clareza, nitidez, instantaneamente e sem esforço. Não existe forma concebível de palavras nas quais eu pudesse condensar esse ato visual simples e unitário. [...] não há palavras para descrever as formas irregulares dos objetos que vejo, nem há palavras para descrever as relações espaciais tridimensionais múltiplas e concomitantes nas quais vejo objetos diretamente uns em relação aos outros. Não há palavras para as gradações e nuances diferentes de cor que eu vejo, nem para as densidades variadas de luz e sombra. Sempre que vejo, tudo o que a linguagem pode fazer é indicar, com generalidade extrema e nos termos mais amplos e grosseiros, o que eu estou vendo (MAGEE, 2001, p.85).

Perceba caro (a) aluno (a), que Bryan Magee nos fala da visão, mas poderia falar-nos

igualmente sobre todos os cinco sentidos e as dificuldades em colocar nossas

percepções em palavras continuariam a ser as mesmas. Nota-se ai um limite da lógica

argumentativa, pois sendo essa constituída de proposições - premissas e conclusão -, e

sendo as premissas e conclusões dependentes das palavras que as compõe, fica

evidente que em alguns momentos teremos dificuldades em representar nosso mundo

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de maneira lógica e congruente. Se introduzirmos nesta equação nossos sentimentos,

paixões, alegrias, sofrimentos, a falta de palavras pode assumir proporções épicas.

Pensemos em um exemplo que julgo bastante elucidativo. Uma mulher que perde seu

amado marido torna-se viúva. Todavia, a viuvez dessa mulher não representa sua dor e

seu sofrimento. Um filho que perde o pai torna-se órfão, mais seu estatuto de órfão não

concede a nós a percepção de sua saudade. Um pai que perde um filho... O que é mesmo

um pai que perde um filho? Como se designa um pai que perde um filho? Parece que

neste caso a própria sabedoria popular se incumbiu de calar-se. A perda de um filho é

algo tão brutal que optamos por não nomear a situação. Esse fato é inominável. Não há

palavras, asserções, argumentos, análise, lógica que de conta desse dado de realidade.

E neste ponto podemos começar a perceber o grande desafio a que estamos submetidos,

todos nós, mas em especial os terapeutas, os filósofos clínicos, os filósofos coachs, os

professores, os líderes e todos aqueles profissionais que lidam diretamente e

profissionalmente com a complexidade da linguagem humana. A verdade, assevera

Magee, é que nenhuma das nossas experiências diretas pode ser posta em palavras de

modo adequado (MAGEE, 2001, p. 86). Talvez não seja demasiado afirmar que o

raciocínio lógico e a análise linguística ainda sejam as ferramentas menos utilizadas

pelos seres humanos. Seu desconhecimento nos impõe gigantescas mazelas. Todavia,

caberá a você caro (a) aluno (a), agora aprendiz de cientista, a identificação das

circunstâncias em que tal análise possa ser-nos útil. Não podemos esquecer que em

algumas ocasiões devemos procurar o modo correto de sentir o problema em questão,

pois se não procurarmos o modo correto de raciocinar, talvez possamos nos decepcionar

com o resultado de nossa busca.

A Lógica e as argumentações sólidas e consistentes podem ser bênçãos em nossas

vidas. Há muito para aprender com elas. Muitos pensadores nos legaram insights

preciosos que nos auxiliam a detectar falhas em nosso processo argumentativo, e ao

identificá-las abrimos a possibilidade de reavaliá-las com vistas à elaboração de

pressupostos existenciais mais adequados às nossas mais profundas convicções.

Entretanto, este livro versa sobre filosofia e ciência, e esses campos do saber não

aceitam dogmatismos de qualquer espécie. Por este motivo tenho me esmerado em

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ajudar você a construir um bonito castelo, mas também tenho me policiado para que você

não se esqueça de que ele é feito de areia:

Toda a argumentação de qualquer natureza, incluindo a demonstração matemática, tem de começar por algum ponto. Precisa não só ter uma premissa (ou premissas), mas também uma norma (ou normas) de procedimento. Ora, essas premissas, bem como essas normas de procedimento, não podem elas mesmas ser validadas pela argumentação, porque, se o fossem, a argumentação seria circular – estaria dando por certo aquilo que pretenderia provar. Isso quer dizer que toda a argumentação, toda prova, toda demonstração lógica, por mais rigorosa que seja, deve inevitavelmente pressupor pelo menos uma premissa e pelo menos uma norma de procedimento para as quais não forneça nenhuma justificação (MAGGE, 2001, p.188-189).

Contudo, ainda que falha; ainda que limitada; ainda que restrita; a lógica é imprescindível

ao cientista, ao estudante, ao administrador de empresas, ao líder, ao professor etc. É

certo que ela não dará conta de tudo. Nada da conta de tudo. Mesmo assim é uma

competência da qual não podemos nos dar ao luxo de prescindir:

Vale, porém, esclarecer o que o próprio Russell acreditava ser o ponto principal da análise filosófica. Russell partia do pressuposto de que a tarefa principal da filosofia era a compreensão do mundo. A seu ver, isso implicava ter convicções que pudéssemos justificar, o que por sua vez nos impunha duas necessidades filosóficas: em primeiro lugar, a análise das nossas convicções mais importantes, de modo a deixar claro para nós mesmos, bem como para os outros, exatamente o que elas significavam e acarretavam; e, em segundo lugar, o fornecimento de fundamentos adequados para mantê-las, o que significava produzir provas convincentes ou argumentação válida para elas, além da capacidade de responder com eficácia às críticas contra elas (MAGEE, 2001, p. 80).

Acompanhe abaixo alguns exemplos de grandes argumentos.

Argumento de Parmênides: A refutação da mudança

Premissa 1 – A mudança é real (suposição de reductio*)

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Premissa 2 – Se a mudança é real, então envolve (a) um objeto chegando à

existência ou começando a ter alguma propriedade ou (b) um objeto se tornando

não existente ou deixando de ter alguma propriedade.

Premissa 3 – Se (Premissa 2), então há diferentes tempos, ou seja,

passado/presente/futuro.

Conclusão 1 – Há diferentes tempos, ou seja, passado/presente/futuro (silogismo

hipotético, Premissa 1, 2, 3).

Premissa 4 – Não há diferentes tempos – só o presente existe.

Conclusão 2 – Há diferentes tempos e não há diferentes tempos (conjunção

Conclusão 1, Premissa 4).

Conclusão 3 – A mudança não é real (reductio, Premissa 1, Conclusão 2)

(BARDON, 2013, p.84-85)..

Argumento de Jean Paul Sartre: a favor da liberdade

Premissa 1 – Para que um dado estado de coisas cause deterministicamente uma

ação humana, a eficácia causal desse estado de coisas teria que derivar

exclusivamente de características desse estado de coisas.

Premissa 2 – Um dado estado de coisas não tem significado em sim mesmo.

Curiosidade:  

*Nota: Reductio ad absurdun é uma tática indireta utilizada para provar que uma proposição é verdadeira, assumindo como correta a proposição oposta, ou seja, sua contradição e depois mostrando que esta induz a uma conclusão que é falsa, justificando desta forma a proposição original. É importante notar que, para qualquer proposição, ou essa proposição é verdadeira, ou a sua negação é verdadeira.

 

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Premissa 3 – Se um dado estado de coisas não tem significado em si mesmo,

então seu significado tem que lhe ser conferido pela pessoa que o experimenta.

Conclusão 1– O significado de um dado estado de coisas tem que lhe ser

conferido pela pessoa que o experimenta.

Premissa 4 – O significado de um estado de coisas é a fonte do seu poder de

motivar (ou causar) a ação.

Premissa 5 – Se o significado de um estado de coisas é a fonte do seu poder de

motivar (ou causar) a ação, então, no caso de uma ação humana, a eficácia causal

do estado de coisas não deriva exclusivamente de características desse estado

de coisas.

Conclusão 2 – No caso de uma ação humana, a eficácia causal do estado de

coisas não deriva exclusivamente de características desse estado de coisas.

Conclusão 3 – Nenhum estado de coisas pode causar deterministicamente uma

ação humana.

Premissa 6 – Nenhum estado de coisas pode causar deterministicamente uma

ação humana, então nossas ações são livres.

Conclusão 4 – Os seres humanos são inescapavelmente livres (GORDON, 2013,

p.165).

Argumento de Aristóteles: a favor da liberdade do perfeccionismo

Premissa 1 – Há um bem supremo para a humanidade, visto em geral como

felicidade..

Premissa 2 – Se um bem é desejado, então esse bem constitui felicidade.

Premissa 3 – A vida virtuosa realiza a função de um ser humano ao atualizar o

pleno potencial dessa pessoa.

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Premissa 4 – Se algum bem realiza a função de um ser humano atualizando o

pleno potencial dessa pessoa, então esse bem é desejado como um fim em si

mesmo.

Conclusão 1– A vida virtuosa é desejada pelos seres humanos como um fim em

si mesma.

Premissa 5 – Se algum bem realiza a função de um ser humano, então é suficiente

para tornar boa a vida da pessoa.

Conclusão 2 – A vida virtuosa é suficiente para tornar boa a vida de um ser

humano.

Conclusão 3 – A vida virtuosa é desejada como um fim em si mesma e é suficiente

para tornar a vida boa.

Conclusão 4 – A vida virtuosa constitui a felicidade, o bem supremo para a

humanidade (SILVERMAN, 2013, p.263).

Argumento de Si Karl Popper: da demarcação

Premissa 1 – Se uma teoria é científica, então faz afirmações ou previsões que

podem ser refutadas.

Premissa 2 – Uma teoria que garante apenas confirmação (e ignora evidências

refutáveis) não pode ser refutada.

Conclusão 1 – Uma teoria que só pode ser confirmada e não refutada não é

científica, mas pseudocientífica. (SWAN, 2013, p.407).

Seja bem vindo (a) amigo (a) estudante. Agora você é um dos nossos. É um (a)

acadêmico (a)!

Para Saber mais: 

Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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164  

RESUMO

Nesta unidade estudamos as regras da lógica argumentativa e as condições para que

um argumento seja considerado válido. Versamos sobre o formato padrão de exposição

de ideias, assim como sobre o encargo da prova. Discutimos os critérios de validação de

argumentos: aceitabilidade, relevância, suficiência e refutabilidade. Estudamos um pouco

de história da lógica com ênfase na lógica aristotélica. Definimos o que são falácias

argumentativas concedendo exemplos para cada uma delas. Por último, apontamos

alguns limites do pensamento lógico.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Qual o objetivo final de um debate pautado nas regras lógicas da boa da

argumentação?

2 - Quais as regras da lógica argumentativa?

3 - Quando um argumento pode ser considerado válido?

4 - Defina o que vem a ser um argumento.

5 - O que são proposições?

6 - Comente a afirmação abaixo:

Também é possível encontrarmos um argumento logicamente válido, ainda que suas

premissas e suas conclusões sejam totalmente falsas.

7 - O que vem a ser formato padrão quando versamos sobre montagem de argumentos?

8 - Explique o que vem a ser o “encargo da prova”?

9 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como aceitabilidade

10 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como relevância

11 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como relevância

12 - Explique o critério da boa argumentação conhecido como suficiência

13 - Como é possível aprimorar a capacidade argumentativa?

14 - O que vem a ser uma declaração categórica?

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15 - O que vem a ser uma declaração qualificada?

16 - Quais as duas tarefas distintas que engloba a lógica aristotélica?

17 - O que vem a ser o calculus ratiocinator ?

18 - Defina o que vem a ser lógica?

19 - Comente o texto abaixo:

Na verdade, o termo “provar” muito utilizado no senso comum, só tem mesmo sentido em

lógica e em matemática, e mesmo assim, existem restrições.

20 - O que são falácias argumentativas?

21 - Faça uma pesquisa em jornais impressos, revistas, internet e televisão e identifique

ao menos dez falácias argumentativas propagadas por esses veículos de comunicação.

22 - A lógica pode falhar? Caso afirmativo, em quais momentos?

23 - Comente o parágrafo abaixo:

Todavia, mesmo fora do universo científico, quando, por exemplo, estamos á frente de

uma empresa tendo que escolher a ação mais adequada em uma dada circunstância,

buscar argumentos contrários à hipótese escolhida pode ser uma ação necessária para

que se possam evitar prejuízos advindos de uma investigação pobre em termos de lógica.

24 - Comente o parágrafo abaixo:

Popper buscava encontrar o argumento mais forte do seu oponente e o atacava de forma

impiedosa. Porém, sempre que possível Popper aperfeiçoava o argumento de seus

adversários antes de atacá-lo. Para tanto, fazia uso de diversas páginas de exame

preliminar onde procurava extrair fraquezas ou contradições, permitindo assim que a

argumentação do seu oponente ficasse ainda melhor. Somente depois de agir desta

maneira começava a investir com ferocidade contra ele. O resultado era, na maioria das

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ocasiões, devastador. No final, não restava nada da leitores menos atentos e pouco

críticos? argumentação contrária a não ser os créditos e concessões que o próprio

Popper já apontara (MAGEE, 2001, p.135).

25 - O que foi o Círculo de Viena?

26 - De que maneira os livros de autoajuda podem ser perniciosos para leitores menos

atentos e pouco críticos?

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Referencial Bibliográfico

AIUB, M. Para entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio De janeiro: Wak Editora, 2004. BRUCE, M & BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São Paulo: Cultrix, 2013. DELACAMPAGNE, C. História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

DOXIADIS, A & PAPADIMITRIOU, C.H. Logicomix: Uma jornada épica em busca da verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. GAARDER, J. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. 53ª Reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

GORDON, J. O argumento de Sartre a favor da liberdade. In: BRUCE, M & BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São Paulo: Cultrix, 2013. FILHO, J.S. Argumentação: a ferramenta do filosofar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. MAGEE, B. Confissões de um filósofo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

NAVEGA, S. Pensamento crítico e argumentação sólida: Vença suas batalhas pela força das palavras. São Paulo: Publicações Intelliwise, 2005. PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre: AGE Editora, 1997. SEARLE, J. O que é a linguagem: algumas observações preliminares. TSOHATZIDIS, S.L (org.) A Filosofia da Linguagem de John Searle. São Paulo: Editora UNESP, 2012. SILVERMAN, E.J. O argumento de Sartre a favor da liberdade. In: BRUCE, M & BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São Paulo: Cultrix, 2013. SWAN, L.S. Sir Karl Popper e o argumento da demarcação. In: BRUCE, M & BARBONE, S. (orgs). Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental. São Paulo: Cultrix, 2013. WOLK, L. Coaching, a arte de soprar brasas. São Paulo: Qualitymark Editora Ltda, 2008.

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UNIDADE IV

Aspectos Básicos da Metodologia da Pesquisa

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MÓDULO 1

Conhecimento Científico e Pesquisa – Uma introdução

Agora que você já foi apresentado à filosofia e à sociologia do campo acadêmico

científico, e que já tem conhecimento sobre a maneira como se deve discutir as ideias no

campo científico, ou seja, obedecendo as regras da lógica argumentativa, podemos

versar sobre as questões de âmbito metodológico que podem ser relevantes para sua

trajetória acadêmica Todavia, caso você anseie adentrar no campo da pesquisa científica

com mais contundência, é imprescindível que você entre em contato com os livros de

metodologia sugeridos em nossas referências bibliográficas, uma vez que o objetivo no

presente momento é simplesmente fazer uma pequena introdução ao tema.

Já afirmamos que dentre as diversas formas de fruir o mundo, e dentre os diversos

campos que interpretam os fenômenos do universo objetivo e subjetivo, é a ciência que

se propõe a descobrir a realidade de modo preciso e sistemático. Sendo assim, o

conhecimento científico intenciona preencher uma lacuna no conhecimento disponível

em uma determinada área do conhecimento. Os objetivos de uma pesquisa científica

podem ser, entre outros: estabelecer a coerência interna entre conceitos no interior de

uma dada teoria; demonstrar a existência ou a ausência de relações entre diferentes

fenômenos; desenvolver novas tecnologias ou mesmo descobrir novos usos para

tecnologias já conhecidas; descrever em detalhes as condições sob as quais um

fenômeno ocorre (LUNA, 2002).

As faces do desenvolvimento de um projeto de pesquisa científica

Fase 1 – Identificação do tema e do problema

Toda e qualquer pesquisa científica deve começar com uma inquietação, um incomodo,

uma dúvida, ou seja, um problema a ser solucionado. E seria bastante interessante que

esse problema produzisse no pesquisador uma grande vontade de solucioná-lo. Esses

problemas que são investigados pelos cientistas habitam o interior de determinadas

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171  

áreas de conhecimento que indicam o tema da pesquisa. São exemplos de tema em

ciências humanas: educação infantil; lógica; filosofia da ciência; filosofia política; etc. São

exemplos de temas em ciências naturais: codificação genética; fisiologia do exercício;

nutrição esportiva; etc. Logo, a primeira coisa que você deve fazer quando intenciona

aprender a pesquisar de maneira científica é reconhecer o seu problema de pesquisa,

lembrando que ele se insere dentro de um tema. Contudo, pense bem amigo (a)

estudante, quase nunca uma pesquisa parte do zero, uma vez que existem milhares de

pessoas espalhadas pelo mundo pesquisando o mesmo tema. Sendo assim, nesta fase

o pesquisador deve principiar o levantamento bibliográfico com vistas a familiarizar-se

com os dados que seus colegas pesquisadores já descobriram previamente. Dos

anteriores saberes, que na ciência são sempre vistos como insuficientes e limitados,

espera-se que nasça o desejo de conhecer mais sobre a questão investigada. A maneira

mais simples de se colocar um problema de pesquisa é por meio de uma interrogação,

uma pergunta. No entanto, é importante frisar que uma questão em si, não é suficiente

para caracterizar um problema. O que caracteriza um problema científico são as

questões cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer (SAVIANI apud

GROPPO; MARTINS, 2007). Groppo e Martins (2007) pontuam alguns processos

básicos para uma boa delimitação do problema de pesquisa:

1 - O problema deve ser formulado como pergunta.

2 - O problema deve estar situado no tempo e no espaço.

3 - O problema deve ser uma pergunta cuja busca da resposta seja viável.

4 - O problema deve manifestar uma dúvida com um mínimo de originalidade.

Já para Laville e Dionne (1999) uma boa pergunta deve ser:

1 - Significativa: ou seja, deve estar a serviço do desenvolvimento progressivo do

conhecimento do tema.

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2 - Clara: uma pergunta de pesquisa deve ser clara. O que você compreende quando

ouve a seguinte pergunta: “Quais serão os efeitos da musculação sobre os idosos?” A

quais efeitos o pesquisador se refere? Estéticos? Efeitos sobre o sistema ósseo?

Cardiovascular? Endócrino? Neural? A quais idosos? Do sexo feminino? Masculino?

Saudáveis? Portadores de necessidades especiais? A qual método da musculação o

pesquisador se refere? Resistência muscular localizada? Hipertrofia?

Veja agora um exemplo bem delimitado:

Quais seriam os efeitos de um programa de hipertrofia muscular - realizado com auxílio

dos aparelhos de musculação -, de três meses de duração, duas vezes por semana, uma

hora por sessão, sobre o sistema cardiorrespiratório de idosos saudáveis do sexo

feminino?

3 - Exequível: é prudente que o pesquisador se assegure de que dispõe dos meios -

tempo, colaboradores, recursos financeiros, instrumental adequado etc - para concretizar

a pesquisa que está sendo proposta. É preciso prever com bastante lucidez as diversas

dificuldades práticas que podem surgir no decorrer da pesquisa.

Fase 2 – Planejamento

O próximo passo é a elaboração do projeto de pesquisa, que se caracteriza como uma

ferramenta imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa, uma vez que concede

ao pesquisador uma rota clara que deve ser seguida. Um projeto de pesquisa é composto

pelos seguintes itens: tema; formulação do problema; objetivos; justificativa;

referencial teórico; metodologia; cronograma; referências.

a) Tema: o tema deve ser o primeiro item a ser explicitado no projeto de pesquisa. O

título do projeto, em geral, já apresenta o tema da pesquisa.

b) Formulação do problema ou introdução: a formulação do problema é apresentada

por meio da revisão da literatura pertinente ao tema em questão. É no interior dos

conhecimentos atuais sobre um determinado tema que se encontrarão as lacunas a

serem preenchidas com as próximas pesquisas.

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c) Objetivos: caracterizam-se por aquilo que se pretende com a investigação. Como o

pesquisador não pode preencher todas as lacunas de conhecimento presentes no interior

de um dado tema, precisará delimitar seus objetivos de forma clara e sucinta. Os objetivos

serão mais bem compreendidos se você pensar na resposta que se concede à pergunta:

para que?

d) Justificativa: todo projeto tem sua relevância, e a explicitação dela é função da

justificativa da pesquisa. Nesse item do projeto você defenderá a sua pesquisa,

pontuando por que ela deve ser realizada. A justificativa é mais bem compreendida

quando se pensa na resposta concedida a pergunta: por que?

e) Referencial teórico: caracteriza-se pela apresentação de uma compilação das

pesquisas já realizadas sobre o tema em questão, assim como dos autores que servirão

de suporte nas análises dos dados coletados pela pesquisa - discussão dos resultados.

É importante frisar que o referencial teórico só pode ser feito após o pesquisador ter

realizado um bom levantamento bibliográfico.

f) Metodologia: aqui o pesquisador deve descrever como a sua pesquisa será realizada

definindo o tipo de pesquisa, o campo, os sujeitos e o tipo de abordagem que será

utilizada: qualitativa, quantitativa ou qualiquantitativa.

g) Cronograma: o cronograma servirá como instrumento orientador do tempo estipulado

para cada uma das etapas do desenvolvimento da pesquisa.

h) Referências: devem ser apresentadas as referências utilizadas na elaboração do

projeto, em ordem alfabética, respeitando de maneira rigorosa as normas da

Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT. Disponível no portal da UNIBR.

Fase 3 – Desenvolvimento da pesquisa

Esta fase deve ser iniciada apenas após a conclusão da fase 2 e a aprovação da pesquisa

pelos Comitês de Ética e Pesquisa que analisarão se a metodologia não fere direitos

humanos ou mesmo direitos básicos dos animais, caso a pesquisa envolva a utilização

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deles. Compreende as etapas de coleta, análise dos dados e interpretação das

informações.

a) Coleta: caracteriza-se pelo momento em que o pesquisador colhe os dados por meio

das fontes e técnicas definidas no projeto de pesquisa. Não se pode esquecer que a

coleta deve estar totalmente relacionada ao problema de pesquisa e aos objetivos da

investigação.

b) Análise: após a coleta o pesquisador deverá organizar os dados coletados,

agrupando-os, apresentando-os, descrevendo-os. Existem inúmeras maneiras de fazer

isso, uma vez que existem muitas formas de coletar informações. A forma com que os

dados serão analisados deverá ter sido prevista no projeto e estar relacionada com

o problema e aos objetivos da pesquisa.

c) Interpretação: é nesta etapa que os pesquisadores realmente se diferenciam, pois

aqui, a capacidade crítica é imperativa. A ação de interpretar as informações está

relacionada ao significado que o pesquisador concederá aos seus dados. É aqui

que as possíveis respostas ao problema proposto serão explicitadas.

Fase 4 - Comunicação da pesquisa

Um processo científico só será finalizado quando for feita a comunicação de seus

resultados. Todo conhecimento científico deve tornar-se público para que possa ser

criticado e aproveitado, não somente pela comunidade científica, mas por toda a

população. Há várias maneiras de divulgar o resultado de uma pesquisa. Todavia,

primeiramente ela deverá ser divulgada internamente, dentro do campo científico por

meio de artigos científicos, relatórios, teses de doutoramento, dissertações de mestrado,

monografias etc. Somente em uma segunda etapa os resultados chegarão ao grande

público, por meio das mídias de massa.

Para saber mais: Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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MÓDULO 2

Levantamento Bibiográfico e Redação Científica

O levantamento bibliográfico ou a revisão da literatura é uma parte de grande

importância para todo e qualquer pesquisador, pois, como vimos, nenhum conhecimento

científico deriva “do nada”, uma vez que tecem relação com as descobertas feitas

anteriormente pelos agentes sociais do campo acadêmico/científico. Isto aponta para o

grande cuidado que todos os pesquisadores devem ter ao citar as fontes originais dos

conhecimentos que embasarão suas pesquisas. Lembrem-se do que foi falado

anteriormente quanto às regras do campo científico. O plágio é crime e não pode ser

tolerado. Portanto, é imperativo que muita atenção seja concedida a esta questão.

Luna (2002) afirma que o levantamento científico está a serviço de vários objetivos.

Vamos acompanhar quais são eles:

a) Determinação do “estado da arte”: objetiva descrever o estado atual de uma dada

área de pesquisa, delimitando o que já se sabe, quais as lacunas existentes, assim como

onde se encontram os principais dilemas metodológicos ou teóricos.

b) Revisão teórica: objetiva delimitar um dado problema de pesquisa dentro de um

quadro de referência teórico que intencione explicá-lo.

c) Revisão de pesquisa empírica: objetiva explicar como o problema em questão vem

sendo abordado, especialmente do ponto de vista metodológico.

d) Revisão histórica: objetiva a recuperação da evolução de um conceito, área, tema

etc ao longo do tempo.

Talvez uma das informações mais importantes que você, caro (a) aluno (a), necessita ter

neste seu momento inicial de flerte com o campo acadêmico/científico, diga respeito aos

lugares onde se deve procurar pelas referências de seu trabalho. Logo, para que

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176  

possamos iniciar nossa conversa é imperativo que você saiba que os dias de busca no

Google findam aqui! Uma pesquisa científica precisa ser muitíssimo mais elaborada e

rebuscada do que uma simples e pouco eficaz visita ao Google. Moroz e Gianfaldoni

(2006) nos concedem algumas dicas sobre onde procurar as obras e publicações que

serão referenciadas por você em seus futuros trabalhos científicos:

Nas bibliotecas físicas, devem-se buscar:

a) Os arquivos das próprias bibliotecas, comumente organizados por autor e assunto,

que relacionam as obras disponíveis naquela biblioteca;

b) Os índices bibliográficos, catálogos ou boletins, anualmente organizados na forma de

sumários por autor e/ou assunto, e que disponibilizam o que foi publicado em revistas e

livros especializados;

c) As dissertações de mestrado e teses de doutorado.

d) Os periódicos científicos especializados em diversos temas e que são publicados

sistematicamente são imprescindíveis, pois o material divulgado é, sem sombra de

dúvidas, o mais atualizado. São milhares e milhares de periódicos científicos distintos e,

na maioria das vezes, o senso comum desconhece inteiramente a existência dessas

publicações por não se tratar de literatura disponibilizada em veículos midiáticos de

massa, e sim destinada aos agentes específicos do campo científico.

Seria bastante prudente que você iniciasse suas primeiras jornadas de busca de tais

periódicos. Para tanto, seguem abaixo algumas indicações de onde obter referências on-

line.

a) Portal de periódicos da Capes: disponibiliza textos completos de diversos periódicos,

tanto brasileiros quanto internacionais; No Brasil o sistema Qualis avalia os periódicos.

Ele pertence a CAPES – Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,

do Governo Federal. O Qualis dá uma qualificação, ou seja, uma nota, aos periódicos

produzidos no Brasil. Sim! É isso mesmo! Os periódicos têm pesos distintos. Eles não se

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equivalem! Existem periódicos que concedem grande prestígio aos cientistas que

publicam neles – capital simbólico, você se recorda? – e outros bem menos exuberantes.

b) SciELO – Scientific Electronic Library Online: é uma biblioteca em formato

eletrônico e que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros.

A SciELO é fruto de um projeto de pesquisa da FAPESP - Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de São Paulo, juntamente com a BIREME - Centro Latino-Americano

e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. A partir de 2002, o Projeto conta com

o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

c) BIREME - O Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da

Saúde, também conhecido por meio da sigla BIREME - de sua denominação original

Biblioteca Regional de Medicina -, é um órgão internacional ligado a Organização Pan-

Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS). Busca

democratizar o acesso à informação, conhecimento e evidências científicas na área da

saúde. Localiza-se na cidade de São Paulo, junto à Universidade Federal de São Paulo

- UNIFESP. A Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) é desenvolvida pela BIREME em

cooperação com outras instituições locais, nacionais e internacionais das áreas da saúde,

e intenciona disponibilizar através de seu portal o acesso a referências bibliográficas em

espanhol, português e inglês. Por meio do portal da BVS pode-se te acesso a

documentos como artigos científicos, teses, monografias, trabalhos de congressos etc. É

possível ter acesso a esses textos a partir do portal da BVS ou mesmo por meio da

solicitação de serviços como fotocópias, quando não disponíveis online.

Outra dica de extrema relevância é a seguinte, atente-se sempre em consultar as

referências citadas nos artigos que você encontrar, assim como nas teses e nos livros

que você estiver pesquisando. Agindo assim você terá facilmente acesso ao

levantamento bibliográfico realizado por outro colega seu para efetuar seu trabalho.

Mesmo quando o tema das teses, artigos e livros não tenha ligação direta com seu objeto

de pesquisa, ainda assim vale a pena consultar as suas referências. A melhor fonte desse

tipo são os artigos de revisão de literatura.

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A redação científica

Na unidade 2 você estudou algumas considerações sobre a lógica argumentativa e sua

relevância para o campo acadêmico/científico, principalmente no que diz respeito à

comunicação de ideias. Todavia, existem ainda mais alguns aspectos que precisam ser

abordados quando versamos sobre a redação de uma pesquisa científica. Os processos

escritos de comunicação são parte integrante do processo de produção da ciência. Os

cientistas precisam escrever, e, apesar de não ser cobrado deles a primorosa escrita de

um Gabriel Garcia Marquez ou de um José Saramago, ainda assim sua escrita precisa

ser boa o suficiente para cumprir com seus objetivos de maneira efetiva. A escrita permite

a liberdade, quer seja de posicionamento no mundo, quer seja de deliberação da própria

vida, caso as pesquisas científicas não fossem devidamente redigidas e publicadas,

seríamos prisioneiros das opiniões propagadas por aqueles que detém o poder

econômico. “Só quando sabemos que podemos confiar na pesquisa de outros somos

capazes de nos libertar daqueles que, controlando nossas crenças, controlariam nossa

vida” (BOOTH; COLOMB; WILLIAMS, 2005, p. 9). Os autores citados agora também nos

concedem suas percepções a respeito de três fatores que relevam a importância da

escrita em uma pesquisa. São eles:

a) Deve-se escrever para lembrar, caso contrário, nossos estudos se perderão na

vastidão da memória.

b) Deve-se escrever para entender, pois ao colocar as ideias no papel elas

gradativamente vão se tornando mais claras.

c) Deve-se escrever para ter perspectiva, pois ao projetarmos nossos pensamentos no

papel, podemos ter a possibilidade de vê-los por meio de diferentes olhares.

Quanto ao estilo do texto científico também podemos Gil (2002) nos pontua algumas

considerações:

a) Busque a impessoalidade evitando referências pessoais como “meu projeto”, “minha

pesquisa”. Opte por expressões como “este projeto”, “a presente pesquisa”, etc.

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b) Persiga a objetividade, evitando desvios desnecessários.

c) Seja claro. Evite ambiguidades. Evite fazer uso de expressões com duplo sentido,

palavras supérfluas, repetições desnecessárias, prolixidade em geral.

d) Busque a precisão, escolhendo palavras e expressões que traduzam com primazia e

exatidão o que se quer transmitir.

e) Persiga a coerência, esmerando-se para apresentar as ideias em uma sequência

lógica e ordenada.

f) Seja conciso e expresse suas ideias com poucas palavras. Frases longas atrapalham

a compreensão e tornam a leitura mais morosa e cansativa.

g) Busque a simplicidade. Ainda que alguns possam crer que simplicidade seja sinônimo

de pouco requinte e sofisticação, esta é uma das qualidades mais difíceis de serem

alcançadas. Aquele que sabe verdadeiramente consegue se expressar de maneira

simples, porém, sem abrir mão do conteúdo requintado e profundo.

Durante todo o processo, e ao final da redação, faça algumas perguntas a você mesmo:

a pergunta formulada está bem clara e compreensível?; Minha pergunta é realmente

original?; Tenho domínio sobre todos os termos que utilizei no texto?; Outros poderiam

ter feito a mesma pergunta de modo diferente?; Esses termos são dominados e

compreendidos por todos ou é necessário algum tipo de esclarecimento adicional?;

(LAVILLE; DIONNE, 1999). Provavelmente você terá dificuldades para responder a essas

perguntas sozinho (a). Sendo assim, participe de grupos de estudo e discussão. Ampare-

se em seus professores. Busque auxílio em seu orientador. Enfim, legitime seu

pertencimento no campo acadêmico/científico e não tenha vergonha de pedir ajuda aos

seus pares. Ao final, todos nós sairemos ganhando.

Para saber mais: Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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MÓDULO 3

Os Tipos de Pesquisa

Pesquisa

O sujeito que conduz a pesquisa científica e o objeto por ele investigado podem se

relacionar de diversas maneiras, e esta relação faz com que o conhecimento científico -

por mais que o pesquisador se esforce para impedir que isto aconteça -, seja ao mesmo

tempo objetivo e subjetivo. É objetivo pelo fato de envolver um dado objeto de

investigação, e ao mesmo tempo é subjetivo, pois envolve um indivíduo que esquematiza,

planeja, desenvolve, analisa, interpreta e comunica suas descobertas. A relação sujeito-

objeto pode ser interpretada a partir de três diferentes modelos teóricos. Acompanhe o

que nos diz Ghedin e Franco (2008):

Modelo objetivista

Aqui a relação estabelece-se a partir do objeto, pois parte-se do pressuposto que o

pesquisador pode ter uma postura passiva, ou seja, sem nenhuma interferência na

pesquisa. O modelo objetivista parte de alguns princípios norteadores, que não deixam

de ser sistemas de crenças, e ancora-se muito na visão moderna da ciência:

a) A exterioridade da realidade, composta de fatos isolados, ilhados;

b) A busca de relações causais entre os fatos, e de uma neutralidade científica;

c) Abstenção de envolvimentos e compromissos sociais e coletivos;

d) Uma aberta associação entre verdade e comprovação empírica;

e) O pressuposto de que os fenômenos da natureza e os fenômenos sociais são regidos

pelas mesmas leis;

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f) Somente o conhecimento empírico e lógico é considerado conhecimento válido, sendo

o rigor científico aferido por meio de medições. Conhecer é quantificar;

g) A crença de que o todo é composto da somatória de partes e que, basta dividi-lo para

entender que se possa compreender a totalidade (lembre-se de Descartes);

h) O foco na compreensão do funcionamento das coisas em detrimento de sua finalidade;

i) Os fatos sociais são percebidos como desprovidos de movimento, contradição e

historicidade.

Modelo subjetivista

Neste modelo observamos uma inversão total quanto ao modelo objetivista. Parte-se do

pressuposto de que o sujeito tem supremacia sobre o objeto de conhecimento. Sendo

assim, assume-se que a realidade é percebida como criação do sujeito. Segundo Ghedin

e Franco (2008), os princípios norteadores do modelo subjetivista são os seguintes:

a) A supremacia do sujeito sobre o objeto de conhecimento;

b) Valoriza-se mais a subjetividade do pesquisador;

c) O objeto a ser conhecido guarda relação com o que é significativo ao sujeito que o

investiga;

d) O sujeito é o criador da realidade;

e) Abole procedimentos quantificáveis, diferente do modelo objetivista que os privilegia.

Pode-se, entre outras coisas, incorrer nas seguintes falhas:

a) Identificação excessiva do pesquisador com o próprio ambiente de trabalho, sem

manter um distanciamento minimamente necessário do objeto de pesquisa;

b) Falta de estabelecimento de relações e confrontações necessárias com teorias já

existentes;

c) Confundir relatos pessoais com interpretações significativas de um dado contexto

social, como pode acontecer no caso das pesquisas denominadas “história de vida”, por

exemplo.

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Modelo subjetivista

Este modelo supera a dicotomia das duas abordagens anteriores. Sujeito e objeto estão

em ininterrupta e dialética relação, não de maneira determinista, mas como resultado da

intervenção humana na prática. Os princípios desse modelo são:

a) Parte-se do pressuposto de que o homem é um ser social e histórico, intensamente

determinado por seus contextos, criador de sua realidade social e transformador de suas

condições de vida;

b) A realidade empírica é tida como o ponto de partida na construção do conhecimento,

mas não pode ser o ponto de chegada;

c) Não há possibilidade de separação entre o sujeito que conhece e seu objeto de

pesquisa, pois o sujeito também faz parte daquela realidade. Aqui podemos nos lembrar

das críticas que fiz ao meu próprio trabalho de doutoramento na unidade 1, você se

recorda de algumas delas? Que tal revistar a unidade 1?;

d) O processo de conhecimento não se limita à mera descrição de dados estatísticos,

mas intenciona conceder explicações mais profundas sobre tais números, relacionando-

os aos singulares contextos dos quais emanam.

Quão profundo pode ser o estudo científico?

Pesquisa exploratória

A maior característica deste tipo de pesquisa é o fato de ter como principal objetivo a

aquisição de uma maior familiaridade com o objeto de estudo. Na maioria das vezes ela

é realizada quando o pesquisador não encontra na literatura específica, dados suficientes

para formular uma pergunta adequada ao seu projeto de pesquisa. Pense bem amigo (a)

estudante, sabemos muita coisa a respeito de vários assuntos, tais como, distribuição de

renda no país, evasão escolar, cursos universitários mais procurados. Sendo assim, não

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seria pertinente realizar mais estudos exploratórios sobre tais temas. Todavia, investigar

os efeitos bulling digital realizado por intermédio do facebook pode nos trazer

informações preciosas e que ainda não dispomos de forma adequada.

Pesquisa explicativa

Já a pesquisa explicativa tem como objetivo principal analisar e correlacionar aspectos

que envolvem fatos já conhecidos, esmerando-se para explicar os motivos da ocorrência

destes fatos. Sendo assim, na pesquisa exploratória descobrem-se fatos novos e na

explicativa desnudam-se os seus motivos, sendo, portanto, a pesquisa explicativa mais

profunda do que a exploratória.

Pesquisa quantitativa e qualitativa

Podemos abordar os problemas das pesquisas de maneira quantitativa, qualitativa ou

mesmo fazendo uso de uma mistura de abordagens conhecida como modelo

quantiqualitaivo.

Pesquisa quantitativa

A pesquisa do tipo quantitativa é uma das características mais antigas da ciência, pois

como a ciência teve início com a investigação dos fenômenos naturais, quantificá-los,

prevê-los e, posteriormente, dominá-los, era o objetivo de todo e qualquer cientista. Este

tipo de pesquisa afirma que todos os dados podem ser quantificados, até mesmo os de

caráter subjetivo, como opiniões, posicionamentos políticos, pontos de vista etc, pois se

pode traduzir todos esses dados em números, tabelas e gráficos. Busca-se, desta

maneira, uma generalização de caráter indutivo. Quantificar os dados permite a

mensuração das variáveis estabelecidas, explicando, posteriormente, suas mútuas

influências por meio da análise de suas frequências e correlações estatísticas. Assim,

termos como variáveis, desvio padrão, porcentagem, média, probabilidade, moda,

mediana farão parte do seu dia a dia. É isso mesmo amigo (a), se você não entende de

estatística, precisará do auxílio de um profissional da área. Por este motivo, as pesquisas

científicas quase nunca são publicadas com um único autor, pois este precisará do apoio

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e amparo de inúmeros especialistas, todos considerados coautores da referida pesquisa.

Sendo assim, saber trabalhar em grupo, legitimar pontos de vistas diferentes dos seus e

amparar com parcimônia as diferenças são habilidades imprescindíveis ao futuro

cientista.

É bastante comum que no início de sua carreira de cientista você cometa alguns

equívocos, como acreditar que a mera aplicação de um questionário constitui uma

pesquisa, ou mesmo confundir uma simples descrição dos dados encontrados com uma

análise interpretativa parcimoniosa e profunda amparada nos dados já existentes na

literatura. Todavia, tranquilize-se! Você está adentrando agora o campo

acadêmico/científico, e com, um pouco de boa vontade e muito apoio de seus professores

orientadores você poderá aprender a fazer ciência de uma maneira bastante exemplar.

Pesquisa qualitativa

A pesquisa qualitativa é muito utilizada em ciências humanas. Mas como as ciências

humanas surgiram bem depois das ciências naturais, durante muito tempo fizeram uso

das metodologias utilizadas pelos cientistas que investigavam os fenômenos naturais.

Contudo, as ciências humanas têm características distintas das ciências naturais e, ao

ponderar a realidade social como sendo portadora de relações entre sujeitos que estão

inseridos em contextos históricos bastante circunstanciais e singulares, ficou evidente

que os métodos quantitativos não supriam as expectativas dos pesquisadores das

humanidades. Surgiu assim a pesquisa qualitativa, iniciando a utilização de métodos

alternativos aos modelos quantitativos empiricistas oriundos das ciências naturais. Aqui

o pesquisador é um participante ativo que se esforça para compreender e interpretar os

dados, fazendo uso daquilo que chamamos de hermenêutica. Que tal fazer uma

pesquisa na internet sobre este termo?

Na pesquisa qualitativa cada situação é tida como única. Logo, o método indutivo é muito

pouco útil, pois não se busca estabelecer leis gerais e universais e sim compreender um

determinado indivíduo ou grupo dentro de características circunstanciais que são

bastante específicas. Pense, por exemplo, em um pesquisador que se insira por um

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tempo no universo dos usuários da droga crack da Praça da Sé na cidade de São Paulo.

Este é um exemplo de investigação de um grupo social muito específico, que usa termos

específicos em sua fala, que são portadores de jogos de linguagem bastante peculiares

e de comportamentos que só fazem sentido dentro deste contexto singular. A situação

investigada pode tão somente auxiliar na compreensão parcial de casos similares, pois

cada grupo é único em suas qualidades de manifestação.

Em resumo, a análise qualitativa investiga os contextos fluentes das relações entre os

sujeitos investigados - relações intersubjetivas - Os dados coletados não se restringem

ao que aparentemente emana e salta aos olhos do pesquisador, pois estes revelam, ao

pesquisador mais competente, dados ocultos, regras tácitas – lembra-se de Bourdieu? –

e inúmeros “não ditos” de grande relevância e pertinência para a compreensão do objeto

estudado.

Pesquisa “quanqualitativa”

Não podemos esquecer que a ciência e seus métodos não estão prontos. A cada

momento percebemos lacunas e impropriedades em nossas maneiras de investigar o

mundo e a realidade. A pesquisa qualitativa, por exemplo, emergiu de uma visão

dicotômica entre quantidade e qualidade, e esta visão ainda pode ser percebida em

muitos campos de pesquisa. Ainda existem pesquisadores que acreditam que as ciências

naturais são “mais ciência” do que as ciências humanas. A contrapartida também pode

ser percebida com bastante facilidade. Bourdieu novamente nos auxilia nesta

compreensão, pois o campo científico é transpassado por eixos que facilitam o

posicionamento de seus agentes e, um dos eixos é o que separa os pesquisadores

adeptos do método quantitativo daqueles adeptos dos métodos qualitativos. Entretanto,

gradativamente já se reconhece que quantidade e qualidade são propriedades

interdependentes de um mesmo fenômeno, o que, de certa maneira, enfraquece a tensão

que já foi bem maior há alguns anos (GHEDIN & FRANCO, 2008).

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Pesquisa pura versus pesquisa aplicada

Podemos ainda abordar a pesquisa como sendo de natureza pura ou de natureza

aplicada. Este é mais um eixo que transpassa o campo científico. A pesquisa pura,

também chamada de fundamental tem como característica mais marcante a condução

de estudos que estão a serviço de satisfazer a curiosidade intelectual do pesquisador.

Em outras palavras, a pesquisa não está a serviço de nada, “não serve para nada”. A

curiosidade intelectual e investigativa é sua primeira motivação, e a compreensão de um

fenômeno natural particular é seu único objetivo. Sendo assim, suas consequências são

meramente teóricas e conceituais, não tendo nenhuma aplicação social imediata.

Os maiores incentivadores da pesquisa pura são os países desenvolvidos, e isto se deve

a um único motivo: lá dinheiro não é o problema! Pesquisa científica de qualidade é

bastante onerosa em termos financeiros. Sendo assim, é compreensível que países não

desenvolvidos optem pelas pesquisas aplicadas. Contudo, saiba que os resultados

meramente teóricos e conceituais da pesquisa pura de hoje, geralmente tornam-se

aplicáveis no futuro. Por este motivo, os países em desenvolvimento estão sempre atrás

dos países desenvolvidos em termos de ciência e tecnologia, o que os coloca em um

lugar de vulnerabilidade quando o assunto é dependência externa. A pesquisa aplicada,

por sua vez, é uma investigação amparada e motivada pela necessidade concreta de

solucionar problemas imediatos. As consequências desse tipo de pesquisa estão a

serviço dos problemas sociais mais agudos.

Para saber mais: Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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MÓDULO 4

Para finalizar

Como Analisar e Organizar os Dados Obtidos

Uma vez realizada a coleta dos dados, é necessário que o pesquisador organize-os, para

posteriormente efetuar uma boa análise, tornando-os compreensíveis para si mesmo e

para todos os leitores que venham a se interessar por seu assunto. Para tanto é

imperativo explicar adequadamente seus achados, pois é neste momento que os bons

pesquisadores diferenciam-se dos medianos, uma vez que a capacidade crítica do

pesquisador fica evidente na forma como discute seus dados.

Depois da organização e discussão dos resultados é preciso deixar claro quais são as

conclusões da pesquisa. Na maioria das vezes elas devem ser sucintas. Partindo-se dos

objetivos que foram elencados no início da pesquisa é possível conceder um significado

aos resultados que emergem dos dados, discutindo a pertinência deles, suas

implicações, quer sejam de caráter científico puro ou sociais aplicadas, e se as

conclusões corroboram ou não os estudos anteriores que serviram de referência no início

da investigação (MOROZ; GIANFALDONI, 2006).

Como dito acima, esta etapa diz muito sobre a capacidade crítica do pesquisador, uma

vez que nela o pesquisador dialoga com os resultados encontrados, esforçando-se para

responder a todas as dúvidas explicitadas nos parágrafos anteriores de seu texto

científico. Como não poderia deixar de ser, é neste momento que a subjetividade do

pesquisador se mostra com mais contundência, uma vez que ele estará indo além de

seus dados, estabelecendo relações com toda a bibliografia do campo escolhido,

identificando áreas de convergência e possíveis lacunas a serem preenchidas em futuras

pesquisas.

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A comunicação da pesquisa

Como já foi falado aqui, a pesquisa científica precisará ser transformada em um texto

sucinto, claro, compreensível e objetivo. Os textos científicos formais podem ser

produzidos em diversos formatos, e dependendo da situação serão escritos na forma de

artigo, relatório, projeto de pesquisa, monografia de conclusão de curso superior,

dissertação de mestrado, tese de doutorado etc. A escolha do formato dependerá da

situação na qual o pesquisador se encontre.

É importante lembrar que escrever para os outros é sempre mais desafiador do que

escrever para si mesmo. Logo, enquanto se escreve é pertinente imaginar quais são as

necessidades e expectativas daqueles que entrarão em contato com seu texto científico.

Lembre-se que você adentrará um campo social específico, e nele existem algumas

normas que devem ser respeitadas. Para fazer parte do campo científico você terá que

obedecê-las.

Outro ponto importante e que deve ser lembrado é o fato de que, ao publicar a sua

pesquisa, o pesquisador deixa automaticamente de ser o “dono” de suas descobertas,

uma vez que, como o próprio nome diz, a publicação as torna públicas, incorporando-as

no vastíssimo espaço de conhecimento desenvolvido pelos agentes sociais que compõe

a comunidade científica. Logo, a comunicação é etapa final de um processo de pesquisa,

e todo o pesquisador deve, para respeitar seus colegas, coautores, professores,

orientadores e órgãos financiadores de sua pesquisa, cumprir com esta obrigação. Ainda

será cobrado do pesquisador sua participação em encontros científicos, seminários,

congressos, simpósios e debates acadêmicos. Mas caberá ao autor da pesquisa decidir

se sua comunicação terminará nos limites do campo científico ou se ele se esforçará para

expandir esses limites acadêmico-científicos, divulgando-a nos veículos midiáticos de

massa, o que concederá à referida pesquisa uma abrangência social ainda maior.

Chegamos ao final de nossa jornada que objetivou apresentar as bases históricas,

filosóficas, sociológicas e metodológicas da pesquisa científica. O assunto, como você

pôde observar, é extenso e bastante profundo, e ainda que eu tenha me esmerado para

apresentar os aspectos que julgo mais importantes para uma compreensão inicial do

assunto, muitos tópicos ficaram de fora, de modo que seria muito relevante que você, a

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partir de agora, caminhasse de maneira autodidata, realizando pesquisas, efetuando

leituras, formando grupos de estudo e procurando estabelecer contatos mais próximos

com os professores com quem você tem maior afinidade.

Uma última dica pode auxiliá-lo um pouco mais nessa sua jornada inicial pelo campo

acadêmico/científico. Existe uma plataforma disponível na internet conhecida como

Plataforma Lattes. Nela você encontrará o currículo de todos os professores e cientistas

brasileiros. Vale à pena navegar um pouco por lá, pois esta plataforma colocará você em

contato com a trajetória profissional de todos os professores que ministrarão aulas para

você aqui na UNIBR, assim como com um número muito significativo de pesquisadores

brasileiros que tem ajudado a fomentar o conhecimento, a ciência e a tecnologia em

nosso país. Seja bem vindo ao campo acadêmico/científico! Seja bem vindo à UNIBR!

Desfrute desta maravilhosa etapa de sua vida e, parabéns! Agora você é um acadêmico!

Para saber mais: Assista as vídeo aulas com este conteúdo e acesse o site: http://www.e-marcelloarias.com.br

 

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RESUMO

Nesta unidade estudamos as fases do desenvolvimento de um projeto científico: tema;

formulação do problema; objetivos; justificativa; referencial teórico; metodologia;

cronograma; referências. Versamos sobre ética e investigação científica, assim como as

fases da pesquisa científica propriamente dita. Discutimos a pertinência do levantamento

bibliográfico, os desafios da redação científica e os principais tipos de pesquisa científica

existentes.

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EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

1 - Quais são as fases do desenvolvimento de uma pesquisa científica?

2 - O que você entende por identificação do tema e do problema?

3 - O que caracteriza um problema científico? Segundo Groppo e Martins (2007), quais seriam os processos básicos para uma boa delimitação do problema de pesquisa?

4 - Uma boa pergunta deve conter quais critérios?

5 - Um projeto de pesquisa deve ser composto por quais itens?

6 - Quais são as principais funções de um Comitê de Ética e Pesquisa?

7 - Quais as etapas de uma boa pesquisa científica?

8 - Para que serve a realização de um bom levantamento bibliográfico antes do início da pesquisa científica?

9 - O que vem a ser o Portal de periódicos da Capes?

10 - O que vem a ser o SciELO?

11 - O que vem a ser a BIREME?

12 - Verse sobre o modelo objetivista de pesquisa cientifica.

13 - Verse sobre o modelo subjetivista de pesquisa cientifica.

14 - Verse sobre o modelo dialético de pesquisa cientifica.

15 - O que vem a ser uma pesquisa exploratória?

16 - O que vem a ser uma pesquisa explicativa?

17 - O que vem a ser uma pesquisa pura?

18 - O que vem a ser uma pesquisa aplicada?

19 - O que vem a ser uma pesquisa quantitativa?

20 - O que vem a ser uma pesquisa qualitativa?

21 - O que vem a ser uma pesquisa qualiquantitativa?

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22 - O que vem a ser a Plataforma Lattes?

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Referencial Bibliográfico

BOOTH, W.C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J.M. A arte da pesquisa. 2a Edição. São

Paulo: Martins Fontes, 2005.

GHEDIN, E & FRANCO, M.A.S. Questões de método na construção da pesquisa em educação. São Paulo: Cortez, 2008.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4a Edição. São Paulo: Atlas, 2002.

GROPPO, L.A & MARTINS, M.F. Introdução à pesquisa em educação. 2a Edição. Piracicaba: Biscalchin Editor, 2007.

LAVILLE, C & DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa

em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Editora UFMG,

1999.

LUNA, S.V. Planejamento de pesquisa: uma introdução. São Paulo: EDUC, 2002.

MOROZ, M & GIANFALDONI, M.H.T.A. O processo de pesquisa: iniciação. 2a Edição.

Brasília: Líber Livro, 2006.