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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ

SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO

DIRETORIA DE POLÍTICAS E PROGRAMAS EDUCACIONAIS

PDE - PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL

NEUSA MARIA FERREIRA DE CASTRO

UNIDADE TEMÁTICA

A ESCRITA FEMININA: EM BUSCA DA LIBERAÇÃO PELA PALAVRA

UNIÃO DA VITÓRIA - 2010

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NEUSA MARIA FERREIRA DE CASTRO

UNIDADE TEMÁTICA

A ESCRITA FEMININA: EM BUSCA DA LIBERAÇÃO PELA PALAVRA

Produção Didático-Pedagógica elaborada na forma de Unidade Temática, apresentada como um dos requisitos do PDE – Programa de Desenvolvimento Educacional, ofertado pela SEED – Secretaria de Estado da Educação do Paraná em parceria com a Secretaria de Tecnologia e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Me Caio Ricardo Bona Moreira

UNIÃO DA VITÓRIA - 2010

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Dizia-se geralmente que ensinar-lhes a ler e escrever

era proporcionar-lhes os meios de entreterem

correspondências amorosas, e repetia-se, sempre,

que a costura e trabalhos domésticos eram as únicas

ocupações próprias da mulher. Este preconceito

estava de tal sorte arraigado no espírito de nossos

antepassados, que qualquer pai que ousava vencê-lo

e proporcionar às filhas lições que não as daqueles

misteres, era logo censurado de querer arrancar o

sexo ao estado de ignorância que lhe convinha.

Nísia Floresta Brasileira Augusta

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SUMÁRIO

DADOS DE IDENTIFICAÇÃO................................................................. 04

TEMA DE ESTUDO................................................................................. 04

TÍTULO................................................................................................... 04

JUSTIFICATIVA DO TEMA DE ESTUDO.............................................. 04

OBJETIVO GERAL................................................................................ 07

OBJETIVO ESPECÍFICO....................................................................... 07

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................. 08

CRÍTICA LITERÁRIA FEMININA........................................................... 14

BREVE HISTÓRICO DA ESCRITORA STELLA FLORENCE.............. 17

RESENHA DO LIVRO DE CONTOS HOJE ACORDEI GORDA.......... 20

CONTO ¨A VÍTIMA¨............................................................................. 20

ANÁLISE DO CONTO ¨A VÍTIMA¨......................................................... 27

METODOLOGIA..................................................................................... 31

CRÔNICAS DE STELLA FLORENCE................................................... 33

*CORINTO É AQUI................................................................................ 33

*NÁUFRAGO......................................................................................... 35

*VIOLÊNCIA SEXUAL........................................................................... 36

REFERÊNCIAS....................................................................................... 39

ANEXOS................................................................................................... 41

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DADOS DE IDENTIFICAÇÃO

Professora PDE: Neusa Maria Ferreira de Castro

Área: Língua Portuguesa e Literatura

Núcleo Regional: União da Vitória

Professor Orientador: Caio Ricardo Bona Moreira

IES vinculada: FAFIUV – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de União

da Vitória

Escola de Implementação: CEEBJA – Centro Estadual de Educação Básica

para Jovens e Adultos – Ensino Fundamental e Médio.

Público-alvo da implementação: Educandos e educandas do ensino médio

da EJA

Produção Pedagógica: Unidade Temática

TEMA DE ESTUDO

A leitura da obra de Stella Florence e das escritoras preteridas por

uma sociedade patriarcal para estudo da poética feminina na literatura

brasileira.

TÍTULO

A escrita feminina: em busca da liberação pela palavra

JUSTIFICATIVA DO TEMA DE ESTUDO

A literatura foi escrita e institucionalizada exclusivamente pelos homens

e isso só vem se modificando há uns 50 anos. Ainda hoje se define a literatura

que narra histórias de mulheres e seus conflitos femininos e escrita por

mulheres, como uma “literatura feminina¨, ou ainda, pelo uso do termo ¨chick

lit¨. Esta expressão alguns críticos utilizam para se referir – pejorativamente – à

escrita feminina e significa literatura de mulherzinha.

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Menina não entra. Este era o lema da Academia Brasileira de Letras há

pouco tempo. Em 1897, quando foi criada a ABL, foi negada uma vaga à Júlia

Lopes de Almeida, importante romancista, contista e cronista e, em seu lugar,

convidado o marido, Filinto de Almeida, escritor inexpressivo. Em 1930, a

escritora piauiense Amélia de Freitas Beviláqua era forte candidata para a

cadeira nº 23, mas também foi preterida com a justificativa de que no estatuto

constava que a ABL era apenas para os brasileiros, não para as brasileiras. O

mesmo aconteceu com as escritoras Clarice Lispector e Cecília Meireles.

Somente em 1970 uma mulher tornou-se imortal: Raquel de Queiroz. E vinte e

seis anos depois – em 1996 – a escritora Nélida Piñon ocupou o mais alto

posto: a presidência da ABL.

Embora se manifeste de maneiras diferenciadas, a opressão feminina

tem raízes no campo cultural, econômico e político, e continua a produzir

sementes. Por isso a importância em se disseminar, estudar e compreender a

escrita de autoria feminina, já que – tradicionalmente – a análise literária é

considerada um campo neutro, independente de influências como gênero,

orientação sexual, raça ou classe social. E há como comprovarmos que não é

assim: o patriarcalismo se manifestou desde sempre, seja na exaltação dos

escritores masculinos, no ¨esquecimento¨ de obras escritas por mulheres ou na

exclusão feminina dos espaços literários, praticamente todo ocupado por

homens.

Há, atualmente, muitos teóricos e estudiosos que nos sinalizam a

importância de lançarmos sobre a literatura um olhar investigativo, reflexivo e

crítico, buscando desconstruir preconceitos no que se refere à mulher escritora,

leitora e personagem do texto literário de autoria feminina e masculina.

No exercício do Magistério, as mulheres educadoras são

indiscutivelmente, maioria, portanto, devemos refletir sobre o papel que têm

representado na sociedade brasileira, principalmente na literatura. A imagem

da mulher e os preconceitos impostos a ela devem ser analisados, e, com o

auxílio da literatura e de estudiosos do tema, pretendemos dar nossa parcela

de contribuição. Pois, ao mesmo tempo em que a escola tem reproduzido

preconceitos que contribuem para uma imagem negativa da mulher, ela pode

ser um espaço de reflexão, leituras de mundo e consequentes mudanças de

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pensamentos e ações.

A função da literatura na vida escolar e na cotidiana é ajudar a escrever

melhor, além de estimular a fantasia e o término dos preconceitos. Com ela

podemos vivenciar, em parte, papéis muito distantes da nossa realidade e

assim, nos colocarmos “no lugar de”, exercitando a empatia.

O trabalho desta pesquisa e sua implementação na EJA pretende levar

os educandos e educandas a esse exercício, ao estudar a presença da mulher

em nossa literatura. Lendo, ouvindo histórias, cantando e discutindo o assunto,

alunos e alunas, professores e professoras contribuem na formação de uma

sociedade justa, fraterna e igualitária para homens e mulheres.

Segundo as DCE - Diretrizes Curriculares da Educação Básica de

Língua Portuguesa (2008, p. 59), o texto literário permite múltiplas

interpretações, uma vez que é na recepção que ele significa. [...] Além disso, o

texto traz lacunas, vazios, que serão preenchidos conforme o conhecimento de

mundo, as experiências de vida, as ideologias, as crenças, os valores, entre

outros, que o leitor carrega consigo.

E para expandir o conhecimento de mundo dos alunos e alunas da EJA,

tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, a prosa, a poesia e a

música são instrumentos poderosos, seja qual for o tema escolhido – neste

caso –a figura da mulher na obra de Stella Florence e na sociedade brasileira.

Quanto aos teóricos contemporâneos, as DCE (versão final, 2008), nos

orientam ao estudo da Estética da Recepção, criada por Hans Robert Jauss em

1960, na qual o autor propõe sete teses para uma nova metodologia no ensino

da literatura e da Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser, que trata sobre o

resultado estético da obra literária no leitor durante a recepção. Um leitor ideal,

mas nem sempre real.

Estas teorias são de suma importância para os educadores e

educadoras na análise literária e na formação do leitor ou leitora, além de

incrementar o trabalho em relação ao Conteúdo Estruturante da Língua

Portuguesa (Discurso como prática social).

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OBJETIVO GERAL

Aprimorar, pelo contato com os mais variados textos literários que

contemplem o tema “a mulher brasileira em nossa sociedade” a capacidade do

pensamento crítico e a sensibilidade estética dos alunos da EJA, tendo como

referência a obra da escritora Stella Florence.

OBJETVOS ESPECÍFICOS

• Conhecer, ler e interpretar a obra da escritora brasileira Stella Florence,

cujo foco narrativo dirige-se à figura da mulher contemporânea, bem

como a obra das escritoras preteridas pela sociedade patriarcal

brasileira.

• Ler e interpretar diversos textos literários que enfoquem a representação

da mulher ao longo da história brasileira: as questões de gênero, o

mercado de trabalho para a mulher no Brasil atual, as questões

amorosas e também àquelas que cantam a beleza e a força da mulher

brasileira, além da inegável e inestimável presença da mulher indígena

no País.

• Valorizar e conhecer a realidade da mulher brasileira, a fim de amenizar

e transformar pensamentos pejorativos, dando ênfase a temas –

contemporâneos ou não – como o combate ao racismo, a mulher negra

na mídia, o padrão de beleza imposto pela mídia e a violência contra a

mulher.

• Discutir, com o auxílio de textos literários – impressos ou audiovisuais –

uma questão relevante em nossas escolas: o poder da mídia na

construção de uma identidade de corpo feminino e seus vários

desdobramentos.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sou a mulher que sustenta o céu. O arco-íris atravessa meus olhos.

O sol abre passagem até o meu ventre. Meus pensamentos têm o feitio das nuvens. Mas minhas palavras ainda não se ouviram.

Poema das indígenas Ute

A literatura nasceu na antiga Grécia e não tinha esse nome, chamava-se

poesia. Entre uma guerra e outra, os nobres deleitavam-se com as

declamações dos poetas, que preferiam a paz e não participavam das guerras.

Assim nasceram duas obras fantásticas, base para toda a poesia que se

escreveria, a Ilíada e a Odisséia. Depois ela passou a ter caráter educativo e

hodiernamente parece que só lemos poesia para realizar interpretações,

estudo para o vestibular, pretexto para exercícios gramaticais, entre outros

afazeres que damos a nossa amiga poesia.

A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a economia, entre outros (DCE, 2008, p.57).

“Passaram-se muitos séculos até a literatura adotar o nome que

atualmente a identifica” (ZILBERMAN,1990, p.13). É difícil apontar o erro, se é

que houve um, para a dificuldade que existe em fazer dos nossos alunos e

alunas leitoras; leitores de verdade, apaixonados e ávidos por mais e mais

leituras. No entanto, estamos buscando uma solução para este problema, e,

pelos inúmeros artigos, livros e pesquisas sobre o tema, é nítida a preocupação

em fazer o que os gregos faziam bem: simplesmente deleitar-se com a poesia-

literatura.

A importância social das mulheres enquanto seres que pensam foi e

permanece um desafio para a sociedade moderna, pois a mulher sempre foi

discriminada no meio pensante.

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A história da mitologia grega enaltece as mulheres, representando-as na

figura de suas deusas: Ártemis, Atena, Afrodite, Deméter, Hera, Perséfone,

Pandora e Gaia, ainda que a inteligência e o pensamento sejam simbolizados

pela deusa Minerva (variante latina da deusa Atena). Quanto à Minerva, é

importante realçar que esta veio ao mundo não através do corpo de sua mãe e

sim da cabeça de seu pai, Zeus, o que evidencia desde o início que a mulher

era vista como inferior ao homem.

Para a história, combinar idéias e formar pensamentos sempre foi

considerado um direito pertinente aos homens, porém, mesmo com tanta

discriminação as mulheres conseguiram garantir uma pequena participação na

vida acadêmica, política, científica, literária e em outros espaços culturais e

profissionais.

Um dos poucos apontamentos históricos sobre o assunto foi a criação

de um núcleo de formação intelectual somente para mulheres, um educandário

fundado por Safo, poetisa de Lesbos que nasceu em 625 a.C. O pensamento

que vigorava era que as mulheres somente tinham direito a um corpo e a uma

mente, porém, não os dois ao mesmo tempo, pois desta forma a mulher nunca

poderia gerar a razão.

No Egito há diversas pinturas em tumbas que nos dão informações a

respeito da vida das mulheres egípcias. Elas desenvolviam suas atividades em

espaços fechados, embora tivessem a liberdade de ir e vir. A maioria dos que

sabiam escrever eram homens, mas havia também mulheres que conseguiram

aprender a ler e a escrever. Algumas delas se tornaram escritoras.

Segundo estudos do egiptólogo Antônio Brancaglion Jr., da Universidade

de São Paulo, os egípcios produziram tantos ou mais textos que os gregos e

romanos. E que, dentre as poesias que exaltavam o amor, chama a atenção

aquelas em que a mulher toma a iniciativa, elogiando a beleza do parceiro

(GALILEU, 2001).

Diante do exposto, pode-se afirmar que a inferioridade da mulher foi

vista como natural e invariável e este espectro do “feminino” esteve presente

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na história da literatura e permanece como um combate singular para as

mulheres, escritoras ou não.

Em nossas obras literárias há muitos preconceitos e estereótipos. Em

Marília de Dirceu; na personagem do romance A moreninha, exemplo de

candura, beleza e de tudo o que se esperava de uma mulher na época em que

o romance foi publicado; em Iracema e todos os romances indianistas de José

de Alencar; sem falar nas poesias de José de Anchieta. Porém, o mesmo José

de Alencar escreve Senhora, retratando uma mulher que subverte a ordem

estabelecida, inclusive comprando um marido e tratando-o como os homens

tratavam as mulheres. Surgem também obras como Memorial de Maria Moura,

romance belíssimo escrito por Raquel de Queiróz. A mesma Raquel que

Graciliano Ramos, ao ler sua obra O quinze, não acreditava ter sido escrito por

uma mulher.

Certamente não podemos nos esquecer das indígenas e negras que

lutaram contra a dominação do homem branco (ao contrário da personagem

Iracema, que se jogou aos pés do colonizador, morrendo por ele). O livro Uma

história do feminismo no Brasil, escrito por Céli Regina Jardim Pinto conta toda

a trajetória das mulheres percorrida até os nossos dias. O nome de Bertha Lutz

aparece como de fundamental importância para a primeira fase do feminismo

brasileiro, seguido de nomes como Leolinda Daltro, professora que promoveu a

primeira passeata de que se têm notícias em prol da cidadania feminina em

1917. Exatamente dez anos depois - em 1927 - outra professora obteve o

primeiro título de eleitor feminino: Celina Guimarães Viana, da cidade de

Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ficaram conhecidas como sufragistas, por

terem incendiado as discussões quanto a conceder ou não o direito à mulher

de votar.

Não nos esquivaremos, contudo, do ensino da literatura, somente

tentamos encontrar metodologias que tornem as nossas aulas mais atrativas,

ao mesmo tempo em que ensinem princípios de cidadania e proporcionem

conhecimento ao alunado. Para nos guiar, citamos novamente Zilberman ¨A

crise levou o ensino de literatura a se indagar sobre seu sentido e finalidade.

De certo modo, a literatura precisa descobrir, considerando as novas

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circunstâncias, em que consiste sua natureza educativa (ZILBERMAN, 1990,

p.19).

Para o estudo da literatura, consideramos absolutamente relevante os

escritos, principalmente os poéticos, sobre a figura feminina – escritos por

homens ou mulheres e a introdução ao estudo do ecofeminismo. No século

XIX, as mulheres que escreveram e desejaram fazer dessa ocupação um ofício

remunerado, eram feministas e só o desejo de sair dos seus afazeres

domésticos já indicava como pensavam e liam o mundo.

São deste século os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras

que têm alguma divulgação entre o público letrado. Nos tempos coloniais a

mulher escreveu muito pouco, ou escreveu e os textos não apareceram, ou são

exceção, entre a maioria quase absoluta de textos escritos por homens. A

razão é simples: apenas os homens tinham acesso à educação formal em

seminários de várias ordens religiosas, desde que não fossem pardos e

possuíssem bens.

Um dos primeiros romances brasileiros que se tem notícia não é de um

homem, e sim de Tereza Margarida da Silva e Orta, filha de um português e

uma brasileira. Tereza Margarida escreveu Aventuras de Diófanes, uma obra

de cunho moralista. Ela foi viver em Portugal quando tinha cinco anos,

entretanto, nasceu aqui no Brasil e por isso muitos estudiosos da literatura

brasileira consideram esse como sendo o primeiro romance brasileiro.

Outra escritora que ficou relegada ao esquecimento é Nísia Floresta

Brasileira Augusta, autora da obra Direito das mulheres e injustiça dos homens,

publicado em 1832. A obra de Nísia Floresta trata de assuntos diversos e

mostra sensibilidade e lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e

de tantos países europeus, mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a

luta pelos seus direitos, a caminho da sua emancipação cultural.

Os seres discriminados procuram, na literatura, serem ouvidos. A título

de exemplo, pois há inúmeras referências: Castro Alves, o poeta dos escravos,

ao combater a escravidão em seus poemas e declamações em praça pública,

deu voz aos negros escravizados.

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O ensino de literatura precisa levar nossos alunos e alunas a refletirem

sobre a própria existência para compreender melhor a si mesmos e aos outros.

E como isso ocorre? Através da leitura, ao observar e analisar a condição

humana, através dos sentimentos e conflitos existenciais das personagens de

ficção. E a personagem Gerda – do conto A vítima – é cheia desses conflitos,

portanto, pode servir muito bem aos nossos propósitos. Mas é somente uma

pequena amostra da vasta literatura contemporânea publicada em nosso País.

Vamos lembrar-nos de outra escritora que, discriminada, despertou

interesse e hoje é alvo de discussões acadêmicas: Carolina de Jesus. Mulher

negra, mãe solteira, semi-analfabeta e favelada, ela registrava seu cotidiano

em cadernos que recolhia do lixo. Descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na

favela Canindé, produziu narrativas fortes e dolorosas sobre a condição

humana. Carolina morreu pobre, abandonada e esquecida, mas se a levarmos

para a sala de aula, certamente os educandos e educandas irão gostar da

leitura, mesmo não fazendo parte do cânone literário.

Há que se conhecer ainda a história da primeira mulher que aprendeu a

ler e a escrever no Brasil: Madalena Caramuru. Ela viveu na Bahia, no século

XVI. Era filha do português Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, e da indígena

Moema. Os historiadores descobriram uma carta muito bem escrita

por Madalena - apesar de que alguns contestem a autoria - porque naquela

época encontrar uma mulher alfabetizada era quase impossível. Segundo

pesquisas, ela teria aprendido as primeiras letras incentivada pelo marido, o

português Afonso Rodrigues.

A carta foi enviada ao bispo de Salvador em 1561 e solicitava que ele

intercedesse na defesa das crianças escravas, vítimas de maus-tratos pelos

seus senhores. Um trecho da carta: ¨O abuso que nesta cidade se pratica,

separando os tenros filhinhos dos desgraçados escravos, (...) gerou na alma de

uma herdeira do imortal Caramuru o sentimento de evitar que (...) se pratiquem

esses atos de desumanidade¨. Madalena é a primeira mulher brasileira

alfabetizada de quem se tem notícia (CLAUDIA, abril de 2000, p. 21). Ela usou

o termo ¨desgraçados¨ para se referir aos escravos e em 1869, três séculos

depois, um poeta espetacular usaria esta mesma expressão no poema O navio

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negreiro. Só um detalhe: ele ficou conhecido, foi admirado e ganhou a alcunha

¨O poeta dos escravos¨. Não sem mérito, é claro.

Exemplos como esses merecem destaque e que os escritos dessas

mulheres sejam disseminados, lidos e analisados entre nossos alunos e

alunas. São escritos difíceis de encontrar, mas o acesso que temos hoje às

páginas da web torna mais fácil e prazerosa a pesquisa.

Quanto ao segundo destaque, o ecofeminismo: é um movimento criado

pela feminista francesa Françoise d´Eaubonne em 1974 e simboliza a síntese

entre ambientalismo e feminismo em defesa do meio ambiente. A história

comprova que as mulheres sempre se relacionaram melhor com o meio

ambiente, se comparada aos homens, pois jamais pretenderam subjugar a

natureza.

Termo relativamente novo e que se divide em três vertentes: o clássico,

o espiritualista do Terceiro Mundo e o construtivista. Artigos e teses de

doutorado como o de Rosângela Angelin, militante feminista e doutoranda em

Direito Ambiental na Alemanha, nos elucida melhor o tema:

O ecofeminismo originou-se de diversos movimentos sociais – de

mulheres, pacifista e ambiental – no final da década de 1970, os quais, em

princípio, atuaram unidos contra a construção de usinas nucleares. O

movimento ecofeminista traz à tona a relação estreita existente entre a

exploração e a submissão da natureza, das mulheres e dos povos estrangeiros

pelo poder patriarcal (MIES/SHIVA, 1995: 23). Assim, a dominação das

mulheres está baseada nos mesmos fundamentos e impulsos que levaram à

exploração da natureza e de povos. Tanto o meio ambiente como as mulheres

são vistos pelo capitalismo patriarcal como “coisa útil”, que devem ser

submetidos às supostas necessidades humanas, seja como objeto de

consumo, como meio de produção ou exploração. Além disso, o capitalismo

patriarcal mostra-se intolerante diante de outras espécies, seres humanos ou

culturas que julga subalternos, e o que faz é dominá-los e explorá-los. Neste

contexto estão inseridos tanto o meio ambiente quanto as mulheres (ANGELIN,

ano V, nº. 58, 2006).

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O movimento ecofeminista busca a libertação não só da mulher, mas de

todo e qualquer grupo oprimido e, por isso, é realmente maravilhoso. Chegou a

ser considerado como a Terceira onda feminista por Ynestra King, ecofeminista

que avalia e categoriza as correntes feministas e estuda a relação da mulher

com a natureza e a cultura.

De acordo com o texto publicado na enciclopédia livre, mais tarde o

termo foi usado para designar o Movimento Chipko (movimento criado pelas

mulheres pobres na Índia que se abraçavam às árvores para impedir sua

derrubada) Women´s Pentagon Action, nos Estados Unidos da América

(quando duas mil mulheres cercaram o Pentágono em Washington-DC, no dia

17 de novembro de 1980, em defesa do meio ambiente). É a teoria que busca

o fim de todas as formas de opressão. Relaciona as conexões entre as

dominações por raça, gênero, classe social, dominação da natureza, do outro -

a mulher, a criança, o idoso, o índio. Identificam-se vários ecofeminismos que

acordam quanto ao fim dos "ismos" de dominação, sejam eles históricos,

simbólicos, casuais, literários, políticos, religiosos, étnicos e buscam

igualmente o resgate do Ser. Um convívio sem dominante e dominado, onde há

complementação e nunca exploração (WIKIPÉDIA, 03 jun. 2010).

CRÍTIVA LITERÁRIA FEMININA

A professora de Sociologia e crítica literária feminina Regina

Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB,

coordena um grupo de pesquisas que revelou um capítulo sombrio da literatura

brasileira contemporânea. A literatura produzida entre 1990 e 2004 revela a

quase ausência da representação de mulheres negras nos romances

publicados pelas três maiores editoras do País: Companhia das Letras, Rocco

(a mesma editora de Stella Florence) e Record. De um total de 1.245

personagens catalogadas em 258 obras, apenas 2,7% são mulheres negras. E

nas poucas vezes em que apareceram nas páginas dos romances, em

aproximadamente 70% dos casos, as negras ocupavam posições como

empregadas domésticas e profissionais do sexo. Outros papéis recorrentes são

a de escrava, dona de casa e bandida. A mesma pesquisa alerta ainda para o

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fato de que as mulheres mais velhas também estão pouco presente nas

páginas da literatura brasileira contemporânea: de 1.245 personagens

catalogadas, apenas 40 eram mulheres em idade mais avançada (SHINODA,

abril de 2010).

Recentemente foi ao ar a novela Viver a vida da Rede Globo, que

causou polêmica ao trazer como protagonista uma atriz negra: Thaís Araújo.

Quando a atriz foi cotada para personagem principal, muito se falou, dizendo

que o papel ficaria melhor se fosse interpretado por Suzana Vieira, Regina

Duarte, entre outras consagradas, e que ela (Thaís Araújo) precisava ainda ter

muita bagagem profissional para ganhar o destaque de protagonista de uma

novela de horário dito nobre. Infelizmente, o telespectador é levado a aceitar

certas atitudes das personagens como normais e o fato da personagem Helena

aparecer ajoelhada pedindo perdão à Teresa – mulher branca, rica e culta - por

sua filha ter sofrido um acidente, mostrou claramente a submissão, o racismo e

o preconceito existente nos textos globais. Helena não consegue enfrentar o

racismo, e, fragilizada, ocupa uma postura de submissão, ao se ajoelhar aos

pés da mulher branca e pedir perdão, e ainda, não revida o tapa que recebe,

como se fosse obrigada a ¨assumir a culpa¨ por ter abortado, casado com um

homem branco e não ter “cuidado” devidamente da enteada, numa relação que

muito nos lembra mucama e sinhazinha.

O feminismo questiona e faz frente a essas questões e, principalmente,

a qualquer tipo de mídia ou cultura que sejam cúmplices da prática do sexismo.

A crítica literária se concentra contra a aniquilação simbólica da mulher e as

representações culturais impostas a ela pela mídia, a mesma que insiste me

perpetuar os estereótipos. Critica ainda como as mulheres são

responsabilizadas pela cultura de massa considerada baixa e descartável,

enquanto que aos homens são atribuídas as artes, a cultura e a ciência. O

professor Bonnici explicita sobre o início da crítica literária, construída a partir

da Segunda Onda Feminista:

Na Segunda Onda Feminista a crítica literária feminista teve início com Kate Millett, na publicação de Sexual polilics em 1970, seguida por Germaine Greer, Mary Ellmann, Adrienne Rich, Donna Haraway e outras. Há dois tipos de crítica literária

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feminista. Uma refere-se à redescoberta e reavaliação de escrita de autoria feminina; outra envolve a releitura da literatura do ponto de vista da mulher e não do homem (RUTHVEN, 1984). Evidentemente, "ler como mulher" constitui "uma diferença crítica", embora haja grande resistência por parte de críticos tradicionais (inclusive mulheres), que alegam a irrelevância e o valor a-histórico dessa crítica aplicada a obras clássicas. A finalidade da crítica literária e da leitura feministas é focalizar a constituição do estilo, da imagística e das características do patriarcalismo numa determinada obra. Uma leitura feminista dos romances indianistas de José Alencar, por exemplo, não se limita apenas a dizer que Dom Antônio ou Martim são chauvinistas masculinos e, portanto, o autor o é também. Os textos alencarianos se revelam como uma narrativa de desejo e fantasia masculina, definem a mulher como objeto e não como sujeito, e embasam-se na estereotipagem da mulher duplamente colonizada. As estratégias de leitura e os conceitos fundamentais ("ideologia" e "patriarcalismo") moldam a interpretação do leitor dirigindo sua atenção à desigualdade do poder sexual nas obras literárias (DUARTE, 1999). Portanto, a leitura obriga a identidade sexual ou de gênero a se transformar em algo equívoco, questionáyel e aberto às mudanças. Essa hipótese de leitura poderá mostrar não apenas como um texto literário refletirá a ideologia essencialista e oposicionista, mas como ele poderá, ao mesmo tempo, desconstruir os pressupostos tradicionais (BONNICI, 2007).

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BREVE HISTÓRICO DA ESCRITORA STELLA FLORENCE

* Fotos enviadas pela escritora via e-mail.

Stella Florence nasceu em14 de abril de 1967 na cidade de São Paulo,

onde vive até hoje. É formada em Letras, e, antes de se tornar escritora,

foi secretária executiva. Tem uma filha, 30 tatuagens e sete livros

publicados, entre eles o sucesso Hoje Acordei Gorda, um divertido livro

de literatura ficcional adotado pelo AMBULIM-SP, como leitura

terapêutica para pacientes que sofrem de distúrbios alimentares.

Cronista veterana, escreve semanalmente para o portal feminino itodas

e mantém um site oficial <http://www.stellaflorence.com> A mescla de

humor e drama, além do verbo ácido, se tornou a marca registrada de

sua literatura.

A escritora, acusada pelos críticos literários de produzir ¨literatura de

mulherzinha¨ , a chick lit, uma escrita carregada de humor e pendendo

para a auto-ajuda, diz não se preocupar com os rótulos e que eles

podem ajudar a identificá-la, num primeiro momento.

Stella trabalha, sempre de forma cômica, elementos da comunicação de

massa, do entretenimento e do cotidiano. Entretanto, seus contos, crônicas e

romances tratam de situações problemáticas vividas pelas mulheres na

sociedade atual como a obesidade e suas consequências, o corpo e a

sexualidade, a violência, os direitos sexuais e reprodutivos, enfim, dialoga com

questões relevantes, principalmente para o gênero feminino.

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Seu último romance ¨32 – 32 anos, 32 homens e 32 tatuagens¨ trata

sobre a compulsão romântico sexual de uma mulher, retratando, através

de situações vividas no cotidiano, os seus sentimentos de dor, de amor,

de prazer e de frustração. Nesta nova obra, Stella mantém o texto

despojado, de humor inteligente e muita sensibilidade. ¨O diabo que te

carregue!¨ relata a difícil separação de um casal. Stella foi cronista da

revista Criativa e Criativa online, do site Bolsa de mulher, da revista

Ouse e do site Crônicas da vida a dois, com o escritor Eduardo Haak. O

romance ¨Só saio daqui magra¨ é direcionado aos adolescentes.

Para conhecê-la melhor, há duas entrevistas disponíveis no You tube,

uma no Programa do Jô Soares e outra no Sem censura, ambas

divididas em duas partes:

<http://www.youtube.com/watch?v=ZdtwCiMhiDM&NR=1>,

<http://www.youtube.com/watch?v=kkiT1rqzCpU&feature=related>

<http://www.youtube.com/watch?v=C2b4agg5pzw>

<http://www.youtube.com/watch?v=FM-jllLmE9A>

Quando foi ao Acre – Rio Branco – lançar o seu romance ¨32 – 32 anos,

32 homens e 32 tatuagens¨, esteve no programa Ideias da aldeia,

apresentado por Jorge Henrique Queiroz, todas as terças às 21h30min.

O vídeo disponível na web nos apresenta a Stella Florence escritora e

pessoa do bem, numa conversa agradável e inteligente. A qualidade da

produção é excelente, com 39min14s de duração. Vale a pena conferir!

Disponível em:

<http://ideiasdaaldeia.blogspot.com/search?q=stella+florence>

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A escrita de Stella Florence já publicada:

• Hoje acordei gorda – 1999

• Ele me trocou por uma porca chauvinista – 2001

• Ciúme, chulé e um apelido ridículo – 2002

• Ser menina é tudo de bom – 2005

• O diabo que te carregue! – 2006

• Por que os homens não cortam as unhas dos pés? – 2007

• 32 – 32 anos, 32 homens, 32 tatuagens – 2009

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RESENHA DO LIVRO DE CONTOS HOJE ACORDEI GORDA

Hoje acordei gorda, como talvez o título possa sugerir, não

é mais um manual de auto-ajuda ou de receitas mágicas de

emagrecimento. O livro reúne, ao mesmo tempo, o melhor

dos dois lados do mundo literário: a rapidez de um

videoclipe na forma de contos/crônicas e o ininterrupto

prazer que um mesmo tema traz ao leitor acostumado a

romances. Em histórias distintas, Stella Florence oferece um

leve e bem-humorado panorama do dia a dia (e da cabeça) não só de

gordinhos, mas também de pseudogordos (aquela parte absurdamente grande

do mundo que insiste em se sentir enorme vestindo manequim 38). Recheado

de humor e picardia, o conto Manequim 40, por exemplo, relata a revanche de

Cláudia, uma ex-gordinha que deliberadamente leva à loucura as vendedoras

de uma loja de grife. Passa horas e horas experimentando roupas e sai da

butique sem nada comprar. Afinal, às magras tudo é permitido. Stella Florence

consegue manter nos 26 contos um ritmo intenso e surpreendente. Sua

narrativa em momento algum banaliza o tema. Ao contrário, através do humor

a autora mostra com transparência sua poção cruel e mordaz. O humor, aliás,

vem logo nas primeiras páginas. Mário Prata, autor do prefácio, proclama a

autoria de Hoje acordei gorda e diz que Stella Florence é seu pseudônimo.

A VÍTIMA

"O corpo conserva os vestígios bem marcados dos cuidados que se teve com ele

ou dos acidentes que sofreu Acontece o mesmo com a alma. Quando ela se despoja do corpo,

conserva os traços evidentes de seu caráter, de seus sentimentos,

e as marcas que cada um dos seus atos lhe deixou. "

Sócrates (470 - 399 a.c.)

– Sinto muito.

– Mas eu sou inocente, juro!

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– Entendo sua posição e isso será considerado na audiência: não se preocupe,

você possui muitos atenuantes.

– Não é uma questão de atenuantes, dr. Miguel, sou inocente cem por

cento!

– Por favor, apenas Miguel.

– Tudo bem: Miguel. Como podem me acusar assim se nunca quis que isso

acontecesse! E não aconteceu!

– Ninguém a está acusando, Gerda. Existem várias causas que você julga

ignorar e que, no entanto, sempre estiveram pulsantes na sua consciência.

Porém, não se desespere. Aliás, nunca, em hipótese alguma, se desespere:

esse estado dificulta o processo analítico e o tornará mais lento sem, contudo,

desviá-Ia um milímetro da justa decisão. O seu histórico é bastante doloroso e

isso a beneficiará.

– Quanta injustiça, meu Deus ... já sofri tanto, e agora isso!'

– Não há injustiça alguma. Injustiça haveria se você estivesse sendo

maltratada ou se não contasse com meu apoio, por exemplo. Queixas não têm

serventia, Gerda. Você realmente é suicida, de uma categoria diferente da

comum mas, ainda assim, suicida.

– Eu devo estar ficando louca mesmo: eu não me matei, não me matei, não

dá pra ver, não?

– O que vejo é uma corrosão progressiva de suas forças vitais

impulsionada, essencialmente, pela sua própria vontade desencadeando a

morte. Os mecanismos da vida são um tanto complexos e o que parece ser

uma resposta definitiva é, muitas vezes, apenas a ponta de um delgado e

profundo iceberg. Primeiro você precisa se conscientizar de que se suicidou de

forma lenta e indireta. Então, tudo ficará mais fácil.

– Do que você está falando? Que história é essa de que me suicidei e

corrosão sei lá o quê?! Tudo o que fiz na vida foi cair... cair e sofrer!

– Você diz que só fez cair e sofrer e o "cair" foi sua maior...

– Culpa. Culpa, não é? Vamos lá: diz!

– Não. Cair foi sua maior escolha, sua responsabilidade.

– Você está querendo me dizer que depois de viver quarenta e sete anos num

verdadeiro inferno, tratada como uma aberração, amada como uma barata

caseira, surrada dia e noite por uma dependência que não me permitiu um só

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minuto de perfeita alegria, vão ser tachadas de suicida por ter comido demais?

Como se eu adorasse aquela situação? Como se já não tivesse sofrido o

bastante? O que é isso? As mocinhas da moda são abençoadas; pelo que

verifico, têm algum privilégio que me foi tirado! Por que, hein? Porque sou feia

demais, desgraçada demais, deformada demais para a estética dos anjos?

Porque sou gorda? Mas nem morta eu vou me livrar disso?

– Calma Gerda. Vamos passear a beira– mar um pouco e lhe explicarei

tudo. E afinal, quem está morto aqui? Estamos mais vivos do que jamais

estivemos. Além do mais, eu lhe prometo: nada de mal irá lhe acontecer.

– Miguel, eu só queria ser como todo mundo, poxa! Por exemplo: estacionar

em qualquer vaga no shopping! Sabe, eu tinha sempre que estacionar do lado

de alguma pilastra por causa do vão maior, senão não conseguia abrir bastante

a porta pra sair do carro.

– Sim, eu sei.

– Com 15 anos não quis ir à Disney com os meus primos ricos porque não ia

caber no assento do avião. Disse pra eles que já era uma mocinha bem

crescida para gostar dessas bobagens, quando meu maior sonho era ir pra lá!

Eu acordava todas as manhãs com os olhos inchados e mentia pra minha mãe

dizendo que era conjuntivite; a verdade é que eu chorava até dormir, morrendo

de vontade de estar lá com eles... Você sabe que um monte de vezes deixei de

ir ao cinema, no teatro, num restaurante, com medo de não caber nas cadeiras

e as pessoas rirem de mim mais ainda do que já riam?

– Eu sei, sim.

– Foi nessa época que comecei a passar por um batalhão de especialistas,

todos com o mesmo diagnóstico: comida. Controle a comida. Reduza a

quantidade. E eu sonhava!... Depois de cada médico, me imaginava magra

caminhando pelas ruas de minissaia: que prazer! Mas as dietas eram como

bilhetes do Missão impossível: depois de muito pouco tempo, se

autodestruíam.

– Você tem senso de humor, Gerda.

– Alguma coisa a gente tem que desenvolver quando a natureza não ajuda, ué.

Por isso os perfeitamente belos acabam se tornando irretocavelmente

insossos. Pra que vão se esforçar em ser inteligentes, interessantes, sagazes,

espirituosos, se o mundo já cai aos seus pés com um simples piscar de

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pestanas? Eles são chamados de suicidas por nunca terem precisado de

alguém pra amarrar os sapatos deles?

– Os perfeitamente belos, como você diz, são, muitas vezes, perfeitamente

infelizes. As variantes são imensas, mas vou lhe dar um exemplo. Venha

comigo.

– Aonde você está me levan ...

– Não tema, apenas continue de mãos dadas comigo. Estamos na superfície

da Terra.

– Ahh... tão rápido!?

– Vê essa moça deitada? Você a reconhece?

– Calma, deixa eu ver. Hum... claro que sim, ela é uma

modelo superfamosa! Ah, que corpo ela tem... Queria ver ela se virar com o

meu, isso sim!

– Chegue mais perto.

– Pra que ela está lendo essa bobagem? Eu já fiz essa dieta; é batata: você

emagrece, mas fica anêmica e, aí, dá– lhe vitamina... Hei, o que são essas

lesões na barriga dela?

– Só nós as estamos vendo, Gerda. São muito semelhantes às que você

tem.

– Eu? Mas eu fiquei tanto tempo naquele hospital depois que morri...

– Você não morreu.

– É, é.

– Você esteve e está em tratamento e, por agora, sob minha responsabilidade.

Chegará o dia em que irá se curar por completo.

– E isso na garganta dela? Eu não tenho isso, tenho?

– Não, isso você não tem. Veja que ela está bem mais comprometida do que

você. Uma jovem com fama, beleza, fortuna e que, para manter a forma exigida

pelo mercado de trabalho que escolheu, se submete aos mais deprimentes

processos, acabando por desenvolver, inclusive, uma terrível doença pela qual

ela não teria necessariamente de passar.

– Posso ver?

– Foi para isso que a trouxe aqui.

– Ai, Miguel! Ela está comendo feito uma louca! Nossa, como sei o que é isso

... Hei, que que está acontecendo? Pra que esse tubo de borracha? Ai, credo, é

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assim que ela machuca a garganta! Que horror, coitadinha! Miguel, a gente não

pode fazer alguma coisa? Por Deus!

– Fico feliz em ver que você se apieda dela, contudo nós não devemos

interferir neste caso. Ela está sendo constantemente auxiliada e você ainda

não está pronta para ver tudo. – Então alguém vai ajudar ela, não vai?

– Claro que sim, contanto que ela também se ajude. Nós

não podemos interferir no livre– arbítrio de quem quer que seja. Ela sabe,

através da consciência, que precisa de um médico, porém tem medo de que

sua doença caia no domínio público e comprometa sua carreira. Seu orgulho a

está fazendo piorar e dificultando nosso trabalho.

– Mas e se alguém dissesse isso pra ela: se você aparecesse, agora, na

sua frente?

– Se isso houvesse acontecido com você, você acreditaria nos seus

sentidos? Diga– me, sinceramente.

– Ah, eu ia... não, você tem razão. Eu ia achar que foi uma alucinação ou

coisa assim. Mas ela pode acreditar, Miguel, tente!

– Gerda, não é justo agirmos assim. A liberdade e a consciência são

propriedades inalienáveis do ser e entre as duas cada um tem de encontrar o

equilíbrio por própria vontade. Mas como lhe disse, seu caso está sendo

acompanhado de perto por companheiros nossos que incansavelmente,

através da intuição, dos sonhos, lhe sopram bons conselhos. No entanto, a

decisão será sempre dela e o mérito ou demérito dessa decisão também.

Apenas se houver extrema necessidade, eles poderão exercer influência mais

direta sobre os fatos.

– Coitadinha! Deitada no banheiro desse jeito...

– Temos de voltar.

– ...

– Você compreende agora, Gerda?

– Um pouco, acho que sim. Se ela não se ajudar vai também ser considerada

suicida.

– Sim, vai. E de uma classe mais grave que a sua. Contará, porém, com

toda a assistência, assim como você conta.

– Mas então não existe escapatória? Todo gordo feliz e assumido, todo

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magro tentando continuar magro, todo gordo infeliz tentando ficar menos gordo,

vai se encontrar nessa situação do lado de cá?

– Não, de maneira alguma. Há muitas pessoas gordas que cuidam da

saúde com previdência e são, aliás, muito felizes. Há pessoas magras que se

conservam de forma saudável e, se não o podem ou não o conseguem,

aceitam normalmente as mudanças do tempo. Há pessoas ainda que, diante

de um exame limítrofe e uma advertência dura por parte dos médicos, passam

a pensar, antes, nos anos que ainda estão por vir, nos entes queridos que

precisam delas na Terra, e dominam seus vícios, controlam suas

dependências, sejam elas quais forem, em prol da vida, simplesmente pela

vida.

– Foi o que não fiz Miguel. Os médicos disseram que eu tinha hipertensão

aguda. Comecei a ter pressão alta depois que um namorado meu... ele foi

embora porque eu fiquei ... você sabe tudo da minha vida?

– Sim, sei.

– Então você sabe do Jonas?

– Sei. Não precisa se envergonhar de nada, Gerda, sei tudo o que aconteceu.

Jonas ainda está na Terra, porém você não deve vê– Io: não é recomendável,

por enquanto.

– Você sabe até o que eu estou pensando...

– Com o tempo você perceberá os meus pensamentos também. Nós

estávamos conversando sobre a sua hipertensão. Vamos voltar a ela?

– Ah, é... Então, um dos médicos que me examinou chegou a dizer claramente:

"Ou a senhora faz uma dieta rigorosa a partir de hoje, ou não vai ter muito

tempo de vida." – E o que você pensou?

– Ah, fiquei com medo, claro, mas depois pensei: "A minha vida é uma droga

mesmo, então pra que deixar de lado o único prazer que tenho?"

– Foi isso mesmo o que você pensou?

– Foi sim, Miguel.

– A que conclusão você chega?

– Que eu me entreguei. Que não valho nada. Que sou uma droga mesmo.

– Não, nada disso! Você se entregou sim, tem responsabilidade e dela

trataremos amanhã na audiência, no entanto você não é uma droga nem

tampouco nada vale. Pelo contrário, mostrou– se compadecida com o drama

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de uma moça cuja vida pouco antes você depreciava. Existem muitos de nós

que cuidam dessas pessoas; espíritos que, como você,já passaram pelo

mesmo drama. Se você quiser, poderá ajudar também, dentro de algum tempo.

São casos complexos, posso lhe assegurar que você apenas arranhou a

realidade das coisas, em contrapartida eles são muito enriquece dores e

ternos.

– Miguel, isso seria fascinante, mas eu vou ser condenada amanhã... ih,

vou ficar presa?

– Ora, Gerda, que idéia, claro que não! Você não será "condenada", nem

presa. Prisões são estados de alma, literalmente, que podem se prolongar por

milênios ou desasnuviar– se em segundos, dependendo da compreensão do

indivíduo: por isso é tão importante que você compreenda. O que você precisa

é aprender uma série de coisas que ainda desconhece' para estar em condição

de me acompanhar. Há muito o que fazer, Gerda, mãos à obra! Estamos

acertados?

– Nossa... Estamos, claro que estamos! Puxa, Miguel, se eu tivesse

encontrado alguém como você lá na Terra, a vida teria sido bem mais fácil pra

mim...

– Tenho certeza absoluta disso.

– Você tem nome de anjo, Miguel. Você é um anjo, não é?

– Não.

– Ah, claro que é.

– Não, querida, não sou um anjo. Quem sabe um dia mereça esse indicador

carinhoso.

– Tá bom, Miguel, finge que eu acredito: você não é anjo. Então você é o que,

hein?

– Eu sou o filho que você optou por não ter.

Stella Florence

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ANÁLISE DO CONTO ¨A VÍTIMA¨

Este conto faz parte do livro Hoje acordei gorda, escrito pela paulistana

Stella Florence e publicado pela Rocco. Além de Stella, há outras escritoras

contemporâneas que se posicionam quanto a questões importantes à

discussão de gênero e às mulheres como: obesidade, aborto, solidão, violência

contra a mulher, estupro, abuso sexual, auto-expressão sexual, entre outros.

No entanto, há críticas de que Stella dialoga livremente com a literatura ¨chick

lit¨, que seria uma literatura direcionada a mulheres urbanas, profissionais e às

voltas com seus problemas amorosos e sexuais: tendência forte no mercado de

livros após o sucesso Diário de Bridget Jones, da escritora inglesa Helen

Fielding.

O conto A vítima relata a problemática da mulher frente aos padrões de

beleza que a forçam a viver oprimida. A mulher cobra de maneira absurda de si

mesma atitudes e comportamentos exigidos pelo mundo machista e patriarcal e

isto a deixa vulnerável e com sua auto-estima em frangalhos. Nesse conto

(ficção criada por Florence, todavia, realidade para inúmeras mulheres

comprovada em estatística) o desenrolar da trama se dá na contramão: a

personagem Gerda quer ser bonita, porém fracassa. O desespero, aliado ao

sentimento de rejeição, resulta em tragédia, levando-a ao suicídio. A

incapacidade de não resistir à compulsão de comer revela o estado emocional

abalado dessa mulher que, mesmo se tratando com os melhores médicos, não

vence o vício e a tristeza, sucumbindo a ambos.

A busca de um padrão de beleza está aliada à auto-estima: a thymós.

Palavra de origem grega significando o reconhecimento que a pessoa requer

dos outros, ou seja, a parte da personalidade humana que pede que outros

reconheçam seu próprio valor. Thomas Bonnici descreve tal condição tomando

a opressão masculina por mote:

A opressão feminina é o resultado de uma estruturação de poder pela qual a ideologia masculina e a Weltanschauung masculina dominam a totalidade da sociedade humana, deixando a mulher hierarquizada e restrita a funções societárias estritamente ligadas à sua biologia (BONNICI, 2007, p. 194)

A problemática maior está na culpa que a mulher sente ao perceber

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que não foi forte o suficiente para resistir às pressões. O conto trata de um

assunto comum e que, infelizmente, faz parte da realidade cotidiana de

milhares de mulheres e nesse exato ponto que a literatura ganha com o que se

discute no decorrer da narrativa.

Com certeza, a autora traz à tona esse universo de preocupações

vivenciadas por tantas mulheres que sofrem preconceito por serem gordinhas e

se sentem culpadas por não terem o corpo exigido pelos padrões de beleza. A

mulher deixa de viver em sociedade por medo e isso pode levá-la ao vício ou à

depressão. São muitos os problemas vivenciados por mulheres de todas as

idades, que, para manterem um corpo bonito, acabam desenvolvendo

péssimos hábitos alimentares. E, como consequência, contraem doenças

gravíssimas. Esse assunto é muito polêmico, pois ao mesmo tempo em que

uma mulher critica outra por comer demais, essa mesma mulher se mutila para

ser parecida com alguém que considera o ideal da beleza. As clínicas de

cirurgia plástica estão cheias, as de estética e cabeleireiros também.

Certamente é saudável a mulher desejar melhorar sua aparência e investir na

beleza, porém, há certa dificuldade para se definir até que ponto o feio é feio e

o bonito é bonito, pois esse conceito depende de cada pessoa. De nada

adianta mudar a aparência da mulher, se ela continua insegura, infeliz e se

sentindo feia. A verdadeira beleza encontra-se nas atitudes e na maneira como

conduzimos nossas vidas. O que precisamos fazer é deixar nossa beleza

interior vir à tona e nos emocionar com as coisas simples que nos rodeiam.

A revista Psique ciência & vida, nº 44, ano IV, publicou uma reportagem

sobre o número assustador de meninas que estão insatisfeitas com o corpo e,

aquelas que têm condições financeiras, recorrem ao bisturi. Um trecho da

matéria Bisturi precoce: ¨Pesquisa revelou que das mais de 600 mil cirurgias

estéticas realizadas no Brasil, 10% são em adolescentes (...) O culto à beleza

reflete para a adolescente a idealização de que ser belo é significado de saúde,

felicidade e dinheiro¨. Além disso, segundo a psicóloga Cora Ferreira, há uma

inversão de valores em que adolescentes querem ser adultas e mulheres

maduras fazem de tudo para parecerem cada vez mais jovens.

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O que nos interessa é o pedagógico, a labuta diária em nossas escolas

e como faremos para tornar nossas aulas melhores. Então, será que nós,

educadores e educadoras, que temos diante de nós adolescentes, a maioria

meninas, não precisamos entender desses problemas? Claro que nossos

alunos e alunas não fazem as tais cirurgias estéticas, mas será que não estão

sofrendo ainda mais por isso? E o ânimo para estudar e a indisciplina, pode,

em alguns casos, estar acontecendo por problemas como esses?

O final do conto nos faz refletir quanto à prática do aborto ao revelar a

concretização do filho que ela não quis ter por se sentir triste, sozinha e

amargurada. Há ainda outra possibilidade de leitura: o sentimento de culpa

também pode ser porque ela optou por não ter o filho, apesar de não ficar claro

que cometeu o aborto. Ela pode ter tido a chance de planejar a gravidez, mas

se recusou ao papel de mãe. A professora Maria de Fátima Sena, em uma

postagem para o GTR- Grupo de Trabalho em Rede analisou bem esta

questão:

A pessoa nasce mulher, numa sociedade em que os homens são os reis, nasce gorda, cresce gorda, é discriminada, avaliada, subjugada, menosprezada e ainda tem a obrigação de gerar, sozinha, um filho de uma relação que não deu certo e, pior ainda, é ele quem fará parte da seção de tortura no seu julgamento final? (SENA, GTR, 2010)

Quanto à linguagem, a autora utiliza a linguagem poética, como função

emotiva e poética predominante, pois mesmo nós – professores e professoras

– de literatura, às vezes nos pegamos confusos quanto à poética em textos em

verso ou prosa. A linguagem poética não se encontra somente nos textos

escritos em versos, e em Florence percebemos isso claramente. O poético não

necessariamente se refere apenas à poesia, mas também à prosa. Segundo o

dicionário Priberam:¨ Uma poética está interessada no estudo de obras

literárias, particularmente as narrativas, criando conceitos interessados em

explicar melhor essas obras¨.

Ou seja, precisamos analisar a voz que se depreende dos textos de

Florence e como o discurso feminista se materializa nos seus escritos,

mostrando valores relativos à mulher que se transformaram ao longo do tempo.

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Florence toca em questões polêmicas, que estão aí, nos rondando e às

nossas escolas. Além disso, usa uma linguagem popular, informal e atrevida,

mas que nossos alunos e alunas entendem perfeitamente. E não há como nos

escondermos, mesmo que o assunto seja de difícil trato, como o aborto.

Precisamos tomar cuidado para não julgar a Gerda. E acredito que aí está um

discurso NÃO DITO que podemos analisar com a classe. A partir do conto,

surgem inúmeras possibilidades de debate sobre o tema, que está no

Congresso Nacional esperando e sendo pressionado para ser aprovado.

Quanto à escolha de textos literários ou não, teóricos e teóricas

modernos vêm sinalizando que - podemos sim - ler e ofertar aos nossos

pupilos o que gostamos, sem, contudo, deixarmos os clássicos de lado. Eles

foram e sempre serão base da arte literária, antiga ou contemporânea. Vamos

então a Lima Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Stella Florence ou Clarice

Lispector. O importante é deixarmos de dizer (apenas) que a leitura é

imprescindível e passar a ler verdadeiramente e com prazer.

E como ¨ampliar as visões de mundo¨ é um dos desafios quando

ensinamos literatura (se é que se pode ensinar literatura) cito EZEQUIEL T. DA

SILVA: ¨Ler literatura? Voar junto para outros lugares humanos, próximos

do meu porque também meus, e hermeneuticamente retornar, agora

muito mais conectado aos acontecimentos da vida.¨ A literatura nos oferece

uma riqueza de possibilidades . Então precisamos abrir uma brecha a outras

literaturas que vêm chegando e contando histórias de um jeito diferente, mais

ao gosto do nosso tempo e dos jovens. Quem sabe os escritos de hoje não

serão os clássicos de amanhã. O certo é que nossos alunos e alunas não

estão lendo os clássicos, como gostaríamos, então vamos mudar o rumo da

prosa. Por que não levarmos para nossas salas de aula um livro digital ou um

áudio livro? E Stella Florence, Elisa Lucinda, Marcelino Freire, Salgado

Maranhão, Céu e Cíntia Moscovich, só para citar alguns dentre tantos bons

escritores, escritoras, poetas e poetisas contemporâneos.

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METODOLOGIA

Esta Unidade Temática tem a pretensão de auxiliar os educadores da

área de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira que desejem utilizar-se deste

material, por compartilhar das mesmas angústias, principalmente para os

alunos do ensino médio da modalidade EJA e demais modalidades

diferenciadas de ensino do Estado do Paraná.

Pretendemos ainda oportunizar aos nossos educandos e educandas da

EJA o contato com a diversidade e riqueza da MPB – às vezes desconhecida

para muitos brasileiros – que tratem do tema desenvolvido. Espera-se que esse

contato os torne aptos a dar sentido aos textos lidos ou cantados em classe. O

uso do recurso audiovisual e do impresso irão incrementar as aulas, assim

como o das TICs – Tecnologias da Informação. Todos os recursos

mencionados agradam a maioria dos alunos e alunas jovens e adultos e,

aliados ao interesse destes, o trabalho será, com toda certeza, gratificante e

bastante prazeroso para a comunidade escolar.

São escassos os filmes mencionados para o trabalho pedagógico

relacionados ao tema da obesidade, porém, encontramos dois possíveis de se

trabalhar: um documentário e um filme, ambos produzidos nos EUA. O

documentário de Morgan Spuriock ¨Super Size Me¨ sobre os hábitos

alimentares em ¨fast-foods¨ mostra cenas de comida com detalhes sobre as

técnicas publicitárias da rede McDonald’s para satisfazer seus clientes, e o

custo real deste tipo de costume alimentar em termos de saúde, segundo os

especialistas. O outro é o filme ¨Libs.¨ (abreviação para libras, unidade de

medida de peso usada nos EUA), escrito em parceria com o principal

protagonista, Carmine Famiglietti. O filme aborda com seriedade o vício da

comida e o protagonista é masculino, pois este é um problema de saúde não

apenas das mulheres e não só do Brasil (CORREIO DO BRASIL, ano X,

número 3630).

Para utilizar o conteúdo desta Unidade Temática, seguem alguns

indicativos:

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• Leitura dos contos do livro digital Hoje acordei gorda, de Stella Florence,

que encontra-se disponível na web

<http://www.scribd.com/doc/24288128/Stella-Florence-Hoje-Acordei-

Gorda.

• Debate com a turma no formato mesa-redonda sobre a escrita de Stella

Florence. Críticas, sugestões, opiniões e novas interpretações serão

aceitas e muito bem-vindas.

• Assistir o documentário de Morgan Spuriock ¨Super Size Me¨ sobre os

hábitos alimentares em ¨fast-foods e um pequeno trecho do filme ¨Libs.¨,

de Carmine Famiglietti. Com estes dois vídeos, o debate realizado na

aula anterior e os contos de Stella Florence, estará lançada uma

campanha contra a ditadura da magreza, leia-se beleza, imposta pela

mídia, principalmente às mulheres.

• Introdução ao estudo de poemas que retratam o feminino, de autoria

feminina ou não. Aqueles que tiverem sido musicados veiculados na TV

pendrive e os outros lidos pela turma ou pela professora ou professor.

Para esta aula: Aviso da lua que menstrua (Elisa Lucinda), Conceição

das crioulas (Andreína Afonsina dos Santos) e Essas meninas (Carlos

Drummond de Andrade). Os dois primeiros textos foram selecionados

porque fazem parte da Coleção Cadernos de EJA, que se encontra em

nossa biblioteca, em número suficiente para todos os alunos da turma.

• Uma aula deverá ser dedicada às canções, literalmente, pois a turma irá

cantar a mulher brasileira. Elegemos 3 (três) dentre tantas maravilhosas:

a mulher lutadora na ditadura militar, a que não aceita os rótulos

impostos pela mídia e a divina e majestosa. O bêbado e a equilibrista,

de João Bosco e Aldir Blanc, Bobagem, de Maria do Céu Whitaker

Poças ou simplesmente Céu e Rosa, composta pelo mestre Pixinguinha

e na interpretação de Marisa Monte.

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• Estudo da vida e obra de algumas mulheres que escreveram de forma

solitária, numa época em que quase nada lhes era permitido. Elencamos

apenas 3 (três) para as aulas sete e oito:Nísia Floresta Brasileira

Augusta, Florentina Vitel e Beatriz Brandão. Aqui fica a critério do

professor ou da professora a escolha de outras escritoras preteridas

pela sociedade patriarcal.

• Pesquisa na web ou na biblioteca da escola de textos, imagens,

biografias, entre outros, sobre as escritoras mencionadas (aula nº 7).

Neste momento, a turma será convidada a compor poemas ou escrever

pequenos contos sobre o tema estudado até esta aula.

• Esta aula se destina à organização de uma noite de poesia. A

organização será coletiva, pautada no respeito à individualidade dos

alunos e alunas, que poderão declamar, ler, cantar, ilustrar ou apenas

fazer uso do poder da palavra para contar histórias.

• Ensaio e novas pesquisas para a realização de uma noite de arte em

homenagem a essas escritoras maravilhosas que foram estudadas e

que poderá ser chamado I Varal poético feminino.

CRÔNICAS DE STELLA FLORENCE

CORINTO É AQUI*

Você fecha o livro, chocada. Absolutamente chocada. Medeia, a tragédia de

Eurípides, é uma das obras literárias mais cruéis de todos os tempos.

Vamos à história: Medeia jamais mediu esforços para favorecer seu amado,

Jasão. Após uma série de aventuras, eles se estabelecem em Corinto e, para

espanto de Medeia, Jasão, com a cara de pau que Deus lhe deu, desposa a

filha do rei Creonte. Ao saber da traição do esposo, Medeia não levanta a

fronte, não tira os olhos do chão, não se alimenta, se abandona à dor, se

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consome em lágrimas e ouve as consolações dos amigos dura como um

rochedo.

Jasão jura de pés juntos à Medeia que seu objetivo, ao se casar com a filha do

rei, é dar irmãos reais aos seus filhos (seus dois filhos com Medeia) e, assim,

protegê-los quanto ao futuro incerto. Verdade ou não, ela está por demais

ferida para ser razoável. E decide se vingar.

Qual a vingança de Medeia? Matar o rei? Matar a nova companheira de Jasão?

Sim, ela faz isso. Envenena uma coroa, um vestido e manda de presente para

a noiva. Ao tocar nas peças, a moça morre vítima de crudelíssimos

padecimentos. O rei Creonte igualmente perece ao tentar ajudar a filha. Mas

esse ainda não é o cerne de sua vingança.

Cega pelo rancor de mulher rejeitada, Medeia usa um punhal e assassina os

próprios filhos, indiferente a seus gritos infantis. Por fim, exibe, de longe, seus

corpinhos inertes para um Jasão em desespero. Ele implora para abraçar os

filhos uma última vez e os sepultar, mas Medeia, no arremate de sua vingança,

não permite e vai embora.

Você lê a tragédia e pensa: “Impossível uma mãe chegar a esse extremo”.

Será? Será mesmo? O que você diria sobre formas metafóricas de matar os

próprios filhos? O que você diria sobre as Medeias modernas?

As Medeias modernas usam as crianças como instrumentos de ataque ao ex.

Elas insuflam seus filhos contra ele. Elas envenenam consciências infantis com

tormentos que pertencem apenas à história de duas pessoas adultas. Não raro,

elas conseguem exterminar ou reduzir drasticamente o convívio das crianças

com o pai.

Em seu supremo egoísmo, as Medeias modernas se disfarçam atrás da natural

preocupação que mães têm com seus filhos: “Estou fazendo isso pelo bem

deles!”. A não ser que o ex em questão seja um pedófilo ou alguém com pós-

graduação em violência, elas não estão pensando no bem das crianças coisa

nenhuma. As Medeias modernas estão fazendo isso por vingança: amarga,

quente e crua vingança. Corinto, quem diria, é aqui.

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NÁUFRAFO*

Em 1955, o destróier colombiano “Caldas” emborcou no Caribe e oito

tripulantes desapareceram no mar. Apenas um sobreviveu. Luís Alexandre

Velasco ficou 10 dias numa balsa à deriva, sem água e sem comida, até

chegar, semimorto, a uma praia deserta ao norte da Colômbia.

Após ter sido, a contragosto, transformado em herói pela então ditadura militar

do país, Velasco ofereceu sua história ao jornal “El Espectador”. Para escrever

seu depoimento, um repórter iniciante foi designado: Gabriel García Márquez,

hoje um dos maiores escritores do planeta. Por conta dessa matéria, publicada

em capítulos, o jornal foi fechado e García Márquez teve que se exilar em

Paris. Velasco perdeu o cargo na Marinha e a fama recente. Mas onde estão o

amor e o sexo, afinal? Estão no último parágrafo: confie em mim.

Peço agora que você pare e entre um instante na pele do náufrago. É quase

meio-dia quando o destróier emborca. Velasco se agarra a uma balsa. Três de

seus amigos se debatem ao redor. Inutilmente, ele tenta salvá-los: em minutos,

todos desaparecem.

Sozinho, Velasco acredita que o resgate não demorará. Olhos fixos no

horizonte, ele acompanha o pôr do sol, a noite escura e o nascer de um novo

dia. Aparecem aviões: três ao todo. O último deles esteve tão perto, enquanto

Velasco agitava sua camisa no ar, que ele teve certeza de que havia sido visto.

Mas não havia. Às cinco da tarde chegam os primeiros tubarões. Brilho de

luzes na superfície do mar: apenas um novo nascer do sol. Desespero, fome,

sede, dificuldade para respirar, dor, sono, a pele fervendo em bolhas. Outro

dia, um navio aparece no horizonte. Velasco rema furiosamente contra o vento,

mas o navio se afasta sem vê-lo. No quinto dia, torturado pela fome, Velasco

captura com as mãos uma gaivota. No entanto, mesmo há tantos dias sem

comer, ele percebe que não é capaz de comer qualquer coisa. Um novo dia,

ondas altíssimas. A balsa vira. Velasco nada em agonia, consegue alcançá-la e

se amarra ao estrado com o próprio cinto. A balsa emborca de novo e ele

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quase se afoga preso debaixo dela. Sorte os tubarões estarem longe naquele

momento. No dia seguinte, Velasco come os cartões de papel molhados que

tinha no bolso e sente algum conforto. Depois, tenta comer nacos do seu cinto

e sapatos, mas eles são duros demais. Um grande peixe pula dentro da balsa

tentando escapar dos tubarões. Velasco prova apenas dois bocados da carne

crua antes que um tubarão o ataque roubando o peixe e engolindo seu remo.

Outro dia, alucinações: o acidente se repete minuto a minuto. A água muda de

cor e Velasco supõe estar perto da terra. Porém, mais um dia se passa sem

que apareça sombra de costa no horizonte. Semi-inconsciente, ele tem certeza

de que vai morrer. Nesse instante, vê contornos de coqueiros, mas julga ser

apenas delírio. No dia seguinte, porém, os coqueiros estão mais próximos.

Velasco decide nadar os dois quilômetros que o separam da costa. Num

esforço sobre-humano, ele se arrasta, com o corpo em carne viva, e chega até

uma praia deserta.

Eu pedi que você entrasse na pele de Velasco, mas isso foi um blefe. você já

está na pele dele. À deriva, sem alimento, sem água, castigada pelo sol, iludida

por miragens, rondada por tubarões, com possibilidades de alimento que se

mostram intragáveis, com aviões que te sobrevoam, mas não te vêem e, ainda

assim, você continua sua busca por terra firme. Quando pensa que as suas

forças se esgotaram, alguma coisa tola, como gaivotas ou a mudança da cor

da água, te traz esperança para continuar. A questão é: quanto mais você

aguenta viver à deriva?

VIOLÊNCIA SEXUAL*

Que um homem desconhecido, um desequilibrado, uma criatura forjada e

endurecida num submundo paralelo (até submundo tem ética) fizesse o que ele

me fez como se tomasse uma cerveja, é possível. Mas alguém que beija a

palma da sua mão quando você está triste, que lhe mostra o esconderijo da

chave de casa, que conhece sua mãe, seus amigos, que conhece você… É

difícil de acreditar.

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Esta foi a causa de eu ter ficado imóvel quando ele me violentou. Nessas horas

extremas não há como prever reações: a dor vai direto para o corpo e, sem o

raciocínio a conduzi-la, ele simplesmente fala ou grita ou chora ou quebra ou

dói ou morre ou qualquer outra coisa que não faça sentido.

Quando ele foi ao banheiro, cheguei a pensar que havia morrido e me

transformado num fantasma (invisível, inodoro, imaterial) e ele apenas se

masturbara violentamente enquanto eu, espírito errante, deitara ali, bem

naquele momento, por descuido: tudo não passara de um grande engano! Não,

nenhum engano: o mais difícil para uma mulher violentada por um conhecido é

ela se convencer de que houve, sim, um estupro.

Antes que ele voltasse, fui embora. No meu apartamento, a primeira coisa que

fiz foi entrar no chuveiro. Sozinha sob a água quente, senti náuseas, tonturas e

cólicas: meu corpo tentou – até o limite em que um corpo pode expelir resíduos

de si mesmo – expulsar desesperadamente qualquer lembrança daquilo.

Uma imagem – naquela época recente – se desenhou quando fechei o

chuveiro e os olhos: nós havíamos ido juntos a um show e depois de horas em

pé (imobilidade imposta pela multidão que nos cercava) me agachei enlaçando

suas pernas numa posição claramente canina. Daquela maneira permaneci

enquanto ele acariciava meus cabelos – exatamente como faria se um cão lhe

roçasse os joelhos. O mesmo carinho. A mesma intenção. Um cachorro.

As dores físicas se tornaram insuportáveis (as emocionais permaneceram

insuportáveis por muitos anos). Madrugada no pronto-socorro. Luzes brancas

sem manutenção piscavam no corredor estreito. O médico, ao ver as marcas

no meu corpo, perguntou: “Você quer fazer algo a respeito disso?”. Minha

insegurança, meu medo e minha vergonha disseram “não”.

Os estudiosos analisam corpos marcados, medidas de mordidas, restos de

pele sob unhas, líquidos nas entranhas, espessura e profundidade de

arranhões. E o resto? E quando eu o aceitei sobre mim, sem vontade? E

quando me calei numa festa em que ele insinuou que eu era burra? E quando

parei de sair com meus amigos porque ele tinha ciúme? Quem era meu

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agressor, então? Eu disse “não!” naquela noite, disse bem alto, repeti, implorei,

mas era tarde: eu já havia ensinado àquele homem que meus desejos eram

negligenciáveis.

*Crônicas disponíveis no site itodas http://itodas.uol.com.br/amor-e-sexo

Acesso em 02 jun 2010.

* Fotos enviadas por e-mail pela escritora.

Stella Florence

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REFERÊNCIAS

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BRASÍLIA. Ministério da Educação. SECAD-Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC. Mulher e trabalho. In: MAZZEU, F. J. C.; DEMARCO, D. J.; KALIL, L. (Coord.). São Paulo: Unitrabalho – Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho. Brasília-DF, 2007 (Coleção Cadernos de EJA). DPLP - Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Priberam Informática S.A. Disponível em:<http://www.priberam.pt/DLPO/> Acesso em: 02 fev.2010. FLORENCE, S. Hoje acordei gorda. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ____________. Só saio daqui magra. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. ____________. Site oficial da escritora Stella Florence. Disponível em: <http://www.stellaflorence.kit.net/fotos.html > Acesso em: 17 abril 2010. ____________. Crônicas na página online amor e sexo do itodas. Disponível em: <http://itodas.uol.com.br/amor-e-sexo> Acesso em: 02 jun 2010.

GALILEU. São Paulo: Globo S/A, maio de 2001, ano 10, nº 1, p. 25.

LAJOLO, M. O que é literatura? São Paulo: Brasiliense, 15 ed., 1994. LEAL, V. M. L. As escritoras contemporâneas e o campo literário brasileiro: uma relação de gênero. 2008, 249 f. Tese ( Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008. LUCINDA, E. O semelhante. Rio de Janeiro: Record, 5 ed., 2006, pp. 123-125.

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MONTE, M. A Rosa- Uma homenagem às mulheres. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=EX_mlgq9iEc> Acesso em: 18 abril 2010. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua Portuguesa. 2008. _______. Secretaria de Estado da Educação. GTR- Grupo de Trabalho em Rede. A poética feminina em Stella Florence. Dia a dia Educação/e-escola: 2009/2010. PIXINGUINHA. Rosa. Letra da canção disponível em: <http://letras.azmusica.com.br/P/letras_pixinguinha_34351/letras_otras_23236/letra_rosa_-_pixinguinha_1419923.html> Acesso em: 03 mar. 2010. POÇAS, M. C. W. Bobagem. Canção disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ytd4Rwtm6CE> Acesso em: 18 abril 2010.

REVISTA. Psique – ciência & vida. In: Bisturi precoce. São Paulo: Escala, Ano IV, nº. 44.

ROSENFELD, A. Reflexões sobre o Romance Moderno. In: Texto/ Contexto. Ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969. SHINODA, C. Fora da história: negras não têm espaço na literatura contemporânea. Disponível em: http://sapatariadf.wordpress.com/2009/03/10/fora-da-historia-negras-nao-tem-espaco-na-literatura-contemporanea/ Acesso em: 06 abril 2010. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA. Manual de normalização bibliográfica para trabalhos científicos. Ponta Grossa: UEPG, 2005.

WIKIPÉDIA – Enciclopédia livre. Ecofeminismo. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ecofeminismo> Acesso em: 03 jun 2010.

ZILBERMAN, R. Literatura e pedagogia: ponto e contraponto. In: ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. – Porto Alegre; Mercado Aberto, 1990. 64. p. – (Série Contrapontos).

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ANEXOS

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ENTREVISTA: STELLA FLORENCE

Stella Florence, em seu livro de estréia, foi confundida com o escritor Mário

Prata. No prefácio de HOJE ACORDEI GORDA o escritor afirma ser Stella um

pseudônimo seu, o que gerou confusão. Ambos estiveram no PROGRAMA DO

JÔ em agosto de l999 para – entre risadas e muito charme – esclarecer o fato.

Hoje essa escritora paulistana é autora de vários livros, entre eles os sucessos

O DIABO QUE TE CARREGUE! e 32 – 32 ANOS, 32 HOMENS, 32

TATUAGENS.

Como meu projeto PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) - edição

2009, programa de capacitação docente promovido pela Secretaria de

Educação do Governo do Paraná, retrata os seus escritos e, seguindo a idéia

do professor Caio Ricardo Bona Moreira, meu orientador na FAFIUV de União

da Vitória, resolvi elaborar esta entrevista. Conversei com a Stella me valendo

desta maravilha, as páginas da web – que aprendi a gostar e achar útil – e ela

gentilmente concordou em conceder esta entrevista, em meio a seus inúmeros

compromissos. Vamos a ela.

Neusa – O que a motivou deixar a profissão de secretária para se dedicar

exclusivamente à de escritora?

Stella Florence - Talvez seja possível resumir em uma palavra: vocação. Foi

um surto da alma: aos 29 anos, eu me levantei, peguei minha bolsa, e fui

embora do escritório como um zumbi em transe. Dias depois a ideia de voltar a

escrever (coisa que eu fazia não profissionalmente na infância e adolescência)

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me pareceu óbvia, irrefreável. Por mais absurda que parecesse minha decisão

naquele momento, eu nunca tive qualquer dúvida de que a mudança de

profissão daria certo. Eu estava envolvida por uma espécie de lucidez espiritual

– que poderia facilmente ser confundida com loucura, é claro. (risos).

Neusa – Dia desses, li num artigo que Paulo Polzonooff Jr. – crítico curitibano

e autor do livro O cabotino - acredita que ¨Se você não tem talento, nem

morrendo de estudar você será um literato respeitável.¨ Você concorda com ele

ou pensa que sim, a gente pode se tornar um escritor ou escritora?

Stella Florence – Ele está coberto de razão! É fundamentalmente o talento (e

a perseverança, a leitura, a prática) que cria um bom escritor; já o estudo (e a

perseverança, a leitura, a prática) cria um bom crítico.

Neusa – Gostei muito dos contos de Hoje acordei gorda, porém, um me

deixou irada no início e no fim feliz: Eva era gorda mesmo. Pareceu-me que,

nesse conto, a mulher é vista de forma estereotipada e no final dá uma alegria,

um consolo por, finalmente, alguém afirmar que o natural é ser gordo e os

magros é que são os anormais. Poderia comentar sobre esse assunto?

Stella Florence – A ideia desse conto-crônica é brincar com a possibilidade de

uma origem gorda para todos nós, já que a queda do paraíso tem similaridades

com uma quebra de dieta. É apenas uma brincadeira sobre as teorias

esdrúxulas que tecemos em torno das mesas de bar, quando o álcool começa

a afetar nosso raciocínio.

Neusa – E quanto a um assunto bastante polêmico, o aborto, é contra ou a

favor? Quando lemos o conto A vítima, ficamos com a impressão que a dona

da escrita meio que redime a protagonista Gerda. A impressão é verdadeira ou

não?

Stella Florence – Sim, é. Sou a favor da legalização do aborto, não do aborto

em si. Não conheço nenhuma mulher que acorde um dia e pense: “Puxa, eu

nunca fiz um aborto na vida, preciso ter essa experiência!”. Portanto, não faz

sentido ser a favor de algo que só causa dor à mulher. No entanto, é preciso

que haja a legalização para que quem escolher se submeter a ele o faça com

condições básicas de saúde. No conto que você cita, um dos meus preferidos,

Gerda está morta e se vê amparada por um espírito que crê ser seu anjo da

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guarda. Ao insistir sobre sua identidade, o espírito que a acompanhava com

imenso carinho diz sem nenhuma mágoa: “Eu sou o filho que você optou por

não ter”. É uma visão minha: acredito que o amor e a compreensão dos limites

e das carências do outro sempre irão vencer a parada.

Neusa - Alguns críticos e críticas, entre eles, Regina Dalcastagné e Tânia

Ramos, a consideram uma escritora de auto-ajuda, propensa à prática da

literatura conhecida como ¨cick lit¨¨. O que pensa disso?

Stella Florence – Sim, eu sou tida como uma representante brasileira da

chamada ¨chick lit¨ (literatura de mulherzinha). Não me preocupam os rótulos,

eles são necessários para que você seja identificada num primeiro momento.

Carrego os rótulos de escritora de humor, de auto-ajuda, de literatura feminina,

de chick lit, de cronista ácida, etc. Como diz uma de minhas tatuagens: “sou

várias e todas verdadeiras”.

Neusa – Na época de sua publicação, muitas pessoas pensavam que o livro

de contos Hoje Acordei Gorda, foi escrito por Mário Prata. Isso a chateou ou

você encarou com bom humor?

Stella Florence – Eu AMEI! Foi o melhor presente que uma escritora iniciante,

como eu era na época, poderia receber. Imagine alguém que você admira e

respeita muitíssimo fingir que escreveu seu livro e ainda dizer “este é meu

melhor livro”. Eu babei de orgulho! Tenho convicção que, no Hoje Acordei

Gorda, o Mario Prata, genial como sempre, criou um dos melhores prefácios da

literatura.

Neusa – Esta é um ¨clichê¨, sem dúvida, mas que adoramos saber: quais seus

livros de cabeceira e qual está lendo no momento? E seus autores preferidos,

poderia comentar sobre eles?

Stella Florence – Para não estender demais a resposta, vou centralizar em

dois dos meus preferidos: sou apaixonada pelo Gabriel García Márquez e pelo

Tennessee Williams. Acho “Um bonde chamado desejo” (de T.W.) uma peça

brilhante que consegue, através de duas personagens (Blanche e Stella),

abordar quase todos os aspectos do feminino. Já Gabo (leio tanto Gabriel

García Marquez que me sinto íntima do escritor colombiano a ponto de chamá-

lo pelo apelido) é imbatível na maneira como aborda o amor e o sexo. Ninguém

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fala de sexo como Gabo (isso para não falar no aspecto jornalístico e mágico

de sua obra espetacular). Quanto a minha cabeceira, o único livro que sempre

está lá é o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec.

Neusa – Você teria alguma idéia ou um posicionamento de como os docentes

poderiam incutir o gosto pela leitura em seus alunos e alunas, já que é sabido

da dificuldade que há quanto à prática da leitura nas escolas?

Stella Florence – Todo mundo gosta de ler. Quem acha que não gosta é

porque não encontrou seu (ou seus) escritor predileto, aquele que traduz seu

pensamento, suas dores, suas entranhas, com mestria, clareza e sentimento.

Oferecer aos alunos opções mais amplas de literatura (inclusive com nomes

que não obrigatoriamente figurem no primeiro escalão) pode ajudar.

Neusa – O escritor João Guimarães Rosa, em suas andanças e viagens como

cônsul, embaixador do Brasil e em muitas excursões pelo Mato Grosso,

anotava em cadernos cenas, conversas, paisagens, como pretexto na criação

de seus personagens. E para você, de onde vem a inspiração?

Stella Florence – Estou o tempo todo (mesmo que não queira) absorvendo,

elaborando e editando tudo o que acontece fora e dentro de mim. Mas eu não

faço anotações: se não desenvolvo o texto imediatamente e a ideia desaparece

é porque não era uma boa. A ideia boa sempre volta.

Neusa - No conto Tive de quebrar minha garota, do livro Ele me trocou por

uma porca chauvinista (p. 117), você menciona um colaborador: Carlos

Eduardo Miranda. Pode nos contar sobre ele, se foi mesmo guitarrista e tocou

com Eric Clapton ?

Stella Florence – Carlos Eduardo Miranda é o nome verdadeiro do escritor

Eduardo Haak, com quem tenho uma filha. Somos muito amigos e ele me

ajudou com os detalhes técnicos desse texto, pois ele também toca guitarra

(aliás, Eduardo está preparando um livro delicioso de curiosidades sobre o

assunto). Ah, e não, ele nunca tocou com Clapton, a história é toda ficcional.

Neusa – Aqui, finalizo esta entrevista deliciosa. Stella é franca, honesta e dona

de uma simplicidade e humildade incríveis. Aceitou em responder esta

entrevista e, carinhosamente, se prontificou a me enviar outros materiais,

inclusive fotos, para a elaboração do projeto e produção didático-pedagógica.

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Cada vez tenho mais certeza: vale a pena conhecê-la, principalmente sua obra.

Obrigada Stella! Que conquiste mais e mais leitores!

AVISO DA LUA QUE MENSTRUA

Moço, cuidado com ela!

Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...

Imagine uma cachoeira às avessas:

cada ato que faz, o corpo confessa.

Cuidado, moço

às vezes parece erva, parece hera

cuidado com essa gente que gera

essa gente que se metamorfoseia

metade legível, metade sereia.

Barriga cresce, explode humanidades

e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar

mas é outro lugar, aí é que está:

cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..

Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente

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que vai cair no mesmo planeta panela.

Cuidado com cada letra que manda pra ela!

Tá acostumada a viver por dentro,

transforma fato em elemento

a tudo refoga, ferve, frita

ainda sangra tudo no próximo mês.

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou

é que chegou a sua vez!

Porque sou muito sua amiga

é que tô falando na "vera"

conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela

delicada força quando voltar a ela.

Não vá sem ser convidado

ou sem os devidos cortejos..

Às vezes pela ponte de um beijo

já se alcança a "cidade secreta"

a Atlântida perdida.

Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.

Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas

cai na condição de ser displicente

diante da própria serpente

Ela é uma cobra de avental

Não despreze a meditação doméstica

É da poeira do cotidiano

que a mulher extrai filosofando

cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso

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julgando a arte do almoço: Eca!...

Você que não sabe onde está sua cueca?

Ah, meu cão desejado

tão preocupado em rosnar, ladrar e latir

então esquece de morder devagar

esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir

chama de vaca e galinha.

São duas dignas vizinhas do mundo daqui!

O que você tem pra falar de vaca?

O que você tem eu vou dizer e não se queixe:

VACA é sua mãe. De leite.

Vaca e galinha...

ora, não ofende. Enaltece, elogia:

comparando rainha com rainha

óvulo, ovo e leite

pensando que está agredindo

que tá falando palavrão imundo.

Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!

Elisa Lucinda (Da série “Ímpetos”, agosto de 1990)

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CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Da Comunidade Conceição

A vocês quero falar

Onde o povo descobriu

Um jeito novo de trabalhar

Fugindo da escravidão

As crioulas aqui chegaram

Fiaram aquele algodão

E seu patrimônio compraram

Não sabiam que assim estavam

Fazendo do seu artesanato

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Povo simples de pequena cultura

O ofício que sempre desempenharam

Se antes alguém viu como insignificantes

Vejam agora um povo vitorioso

Que se assumem como negros

Bem felizes e importantes

Andreína Afonsina dos Santos

* Andreína Afonsina dos Santos é trabalhadora da Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, no sertão pernambucano, a 550 quilômetros de Recife.

ESSAS MENINAS

As alegres meninas que passam na rua, com suas pastas escolares, às vezes

com os seus namorados. As alegres meninas que estão sempre rindo,

comentando o besouro que entrou na classe e pousou no vestido da

professora; essas meninas; essas coisas sem importância.

O uniforme as despersonaliza, mas o riso de cada uma as diferencia. Riem

alto, riem musical, riem desafinado, riem sem motivo; riem.

Hoje de manhã estavam sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar

das coisas sem importância. Faltava uma delas. O jornal dera notícia do crime.

O corpo da menina encontrada naquelas condições, em lugar ermo. A

selvageria de um tempo que não deixa mais rir.

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As alegres meninas, agora sérias, tornaram-se adultas de uma hora para

outra; essas mulheres.

Carlos Drummond de Andrade

O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

(João Bosco / Aldir Blanc – 1979) Intérprete: Elis Regina

Caía a tarde feito um viaduto

E um bêbado trajando luto

Me lembrou Carlitos

A lua, tal qual a dona do bordel,

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens, lá no mata-borrão do céu,

Chupavam manchas torturadas, que sufoco!

Louco, o bêbado com chapéu-coco

Fazia irreverências mil pra noite do Brasil.

Meu Brasil.

Que sonha com a volta do irmão do Henfil.

Com tanta gente que partiu num rabo de foguete.

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Chora a nossa pátria mãe gentil,

Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil.

Mas sei que uma dor assim pungente

Não há de ser inutilmente, a esperança

Dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha pode se machucar

Asas, a esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar...

João Bosco e Aldir Blanc

Histórico: Composta em 1979, tornou-se um símbolo da luta pela anistia. Pela

volta dos exilados e pela abertura política do regime militar. Carlitos,

personagem mais famoso de Charles Chaplin, representa a população

oprimida, mas que ainda consegue manter o bom humor, denunciava as

injustiças sociais de forma inteligente e engraçada. A Equilibrista dançando na

corda bamba, de sombrinha, é a esperança de todo um povo.

Henrique de Sousa Filho, conhecido como Henfil, foi um cartunista, quadrinista,

jornalista e escritor brasileiro. Seu irmão, Herbert José de Sousa, conhecido

como Betinho, foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro;

concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Miséria e pela

Vida. Com o golpe militar, em 1964, mobilizou-se contra a ditadura, sem nunca

esquecer as causas sociais. Mas, com o aumento da repressão, foi obrigado a

se exilar no Chile em 1971.

Maria era mãe de Betinho (irmão de Henfil) e Clarice mulher do jornalista

assassinado a mulher do jornalista assassinado na ditadura militar: Wladimir

Herzog. Portanto, as Marias e Clarisses, no plural, fazem referência às mães,

talvez irmãs ou mulheres de pessoas que se foram, ou mesmo deixaram o

nosso país, lutando por um ideal, um sonho: ver o Brasil livre.

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ROSA Compositor: Pixinguinha Intérprete: Marisa Monte

Tu és, divina e graciosa

Estátua majestosa do amor

Por Deus esculturada

E formada com ardor

Da alma da mais linda flor

De mais ativo olor

Que na vida é preferida pelo beija-flor

Se Deus me fora tão clemente

Aqui nesse ambiente de luz

Formada numa tela deslumbrante e bela

Teu coração junto ao meu lanceado

Pregado e crucificado sobre a rósea cruz

Do arfante peito seu

Tu és a forma ideal

Estátua magistral oh alma perenal

Do meu primeiro amor, sublime amor

Tu és de Deus a soberana flor

Tu és de Deus a criação

Que em todo coração sepultas um amor

O riso, a fé, a dor

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Em sândalos olentes cheios de sabor

Em vozes tão dolentes como um sonho em flor

És láctea estrela

És mãe da realeza

És tudo enfim que tem de belo

Em todo resplendor da santa natureza

Perdão, se ouço confessar-te

Eu hei de sempre amar-te

Oh flor meu peito não resiste

Oh meu Deus o quanto é triste

A incerteza de um amor

Que mais me faz penar em esperar

Em conduzir-te um dia

Ao pé do altar

Jurar, aos pés do onipotente

Em preces comoventes de dor

E receber a unção da tua gratidão

Depois de remir meus desejos

Em nuvens de beijos

Hei de envolver-te até meu padecer

De todo fenecer

Pixinguinha

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