Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela de dinheiro e outros Contos Fantásticos e de...
-
Upload
marcio-lima -
Category
Art & Photos
-
view
199 -
download
1
description
Transcript of Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela de dinheiro e outros Contos Fantásticos e de...
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
SumárioAcampamento na noite de primeiro de abril - A panela de dinheiro...............................................................................2Uma Noite Solitária..........................................................15Boneco de Neve................................................................27Um grito na escuridão......................................................37O tempo............................................................................42Era, com certeza, um lobisomem!....................................44A lenda..............................................................................48O Boitatá...........................................................................53Eu e eu mesmo.................................................................67Leão (desertos...)..............................................................71O Mercador da Liberdade.................................................75Um homem caído no chão................................................82Mais um Cristo caído na rua.............................................86Perdido em Curitiba..........................................................90Borboleta........................................................................101O Achado Misterioso......................................................107
1
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Apresentação
O presente trabalho trata-se de uma coletânea deContos Fantásticos publicados nos Jornais Folha doXagu, Folha do Iguaçu, Recanto das Letras e no blogDevaneios Literários do Lima.
A grande maioria dos textos é de contos fantásticosem que a imaginação correu solta, principalmentehabitada por histórias ouvidas de seus pais e parentesde mais idade.
O elemento “medo” foi explorado e rendeu algunscontos interessantes. Nossos medos... o quanto elescriam fantasias... quantas histórias rendem. Talvezescrever, ou contá-los seja uma das formas de superá-los. E, contribuir para que outros superem. Mas até lá,podemos nos divertir muito, pelo elemento“fantástico”.
Teve-se nesta compilação a participação da ProfessoraJaqueline a qual contribuiu com a presente com o
2
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
conto “Perdido em Curitiba”.
Marcio José de Lima, nasceu em Guarapuava,funcionário público, principiou na literatura com seulivro “Devaneios em Prosa” publicado pela EditoraUNICENTRO em 2011. Formou-se em Letras parasuperar sua dificuldade de comunicação,principalmente no que dizia respeito à produçãotextual.
Desejo a todos uma boa leitura!
O autor.
Contato com o autor pelo e-mail:
3
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Acampamento na noite de primeiro de abril - A panela de dinheiro
Todos ali sobre o lúmen da fogueira regateira que
iluminava o rosto de todos. Pequenas histórias saíam
do povo que se exibia pelos sustos vividos pelas
pseudoexperiências vividas. Tio Jango o mais
eloquente dos contadores de histórias se exibia por ter
sido testemunha de muitas. A mais surpreendente foi a
que viveu em uma de suas viagens pelo mundo. Dizia
ele:
4
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
- Olha amigos.
Com os olhos arregalados de quem havia se assustado
muito pelo testemunho ocular de algo assustador.
- Não quero por medo em vocês. Mas, existe muita
coisa que nós não imaginamos nesta vida... Tudo o
que narrei até aqui, foi verdade. Todavia, uma de
minhas histórias, tem o tempero do inimaginável. Isso
aconteceu em 1975, quando contava com 18 anos.
Fiquei sabendo de uma panela de dinheiro enterrada
em um descampado perto da Serra do Rio Jordão.
5
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Que teria sido enterrada pelos Jesuítas
aproximadamente em 1750. Ali não havia ruínas das
Missões. Sabíamos não por mapas, nem por histórias
de hipóteses do ocorrido pelo descentes da região. E
sim, pelo que muitos já haviam vivido quando
passavam por aquelas aragens, principalmente nas
noites de lua cheia do mês de agosto. Quando uma das
vítimas foi assombrada por uma tribo fantasma que
implorava que fosse desenterrado aquilo que os
prendiam ali... Uma caçarola de barro carregada de
moedas de ouro. Este sobrevivente sóbrio, que teve a
6
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
sensibilidade de encarar aquilo como verdade,
convocou-me para aquela empreitada, pois sabia que
eu era homem que acreditava naquilo por já ter vivido
muitas histórias – que a maioria das pessoas não
acredita. E de pronto, aceitei, por também acreditar
naquele homem que merecia todo meu crédito.
- Amigos... saímos com pás, picaretas, enxadas, dois
rosários em cada bolso e nosso santinho de devoção.
Pois, sabíamos que teríamos que rezar muito. O que
ali ganhássemos teríamos que repartir parte com quem
realmente precisava para abençoá-lo. Esta era a regra
7
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
básica para quem era caçador experiente de panelas
de dinheiro. Chegamos ao local em uma noite muito
límpida. Não estava frio, embora a nossa região seja
considerada uma das mais frias do sul, aqueles anos o
inverno era terrível, como vocês sabem, mas apesar
disso aquela noite estava agradável. Deixamos nossos
carros na estrada, pois não dava para chegar de carro
até lá. Pulamos uma cerca de arame. E poucos metros
depois, escutamos algo estranho. Paramos. Parecia um
mugido. Mas, não enxergamos nada. Então, seguimos
nosso destino. Como saberíamos o local? Meu amigo
8
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
narrou que era próximo a um velho ipê. Seria naquele
local aproximadamente. Teríamos que trabalhar a
noite inteira até o amanhecer. Pois, pela lenda, diz-se
que tem que retirá-la até o por do sol. Então teríamos
que nos apressar. Chegamos ao assustador ipê. Digo
isso, por que naquele momento o achava assim. Ele já
foi fazendo um buraco sem ao menos pensar, tive a
impressão de sabia onde era. Poucas pazadas, desistiu.
Eu, confesso. Fiquei naquele momento somente
olhando e pensando. Onde será ao certo? Não havia
uma lógica para aquilo. Mas... era jovem. Não me
9
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
importaria em viver aquela “loucura”. Comecei a
cavocar usando minha lógica. Se tiver próximo do
tesouro, algo ocorrerá. Depois de um certo tempo, de
quase limpar a grama que cercava o ipê, ocorreu algo
muito estranho. O barulho do boi voltou. Paramos...
olhamos para os lados e não havia nada. Concluímos
que aí era a pista que esperávamos. Começamos a
aprofundar nossa procura. Fizemos um buraco de dois
passos quadrados. Quando já estava pelo nosso
joelho, outros brulhos de bichos se juntaram ao
mugido do boi. Agora haviam porcos e cachorros.
10
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Além do barulho de arbusto quebrando. Mas... não
haviam arbustos ali. Era só um descampado. O tempo
começou a fechar. E, em um repente, começou a
chover com muitos raios e trovões. Choveu com
vento. E sombras horríveis assombraram nossa noite.
Ouvimos o canto da tribo em uma língua que não
conhecíamos. Mas à medida que nós afundávamos
nosso buraco o canto tornou-se uma canção religiosa
– ou pelo menso parecia assim - com sotaque parecido
com o português e algo perto do castelhano. Sentimos
cheiro de erva-mate queimada. Chegou ao auge da
11
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
cantoria. E, tudo se silenciou. Paramos um momento.
Olhamos para a paisagem agora coberta pela cerração.
Tremíamos. Nos olhamos. Nos interrogamos.
Seguiríamos aquela empreitada? Certo de que
estávamos próximos ao tesouro continuamos. Um
canto continuou. Barulho de cavalos começaram a
passar próximo a nós como um estouro. Abaixamo-
nos e aos poucos pusemos a cabeça fora do buraco
para ver o que estava ocorrendo. Nada acontecia de
diferente a não ser a cerração que aparentava mais
brilhante agora já revelando a copa de alguns
12
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
pinheiros ao longe. Cavava freneticamente enquanto
meu amigo descasava – quando bati em algo que
parecia uma caixa. Com as mãos, descobrimos, sim
era uma caixa de madeira. Muito dura não parecia
oca, parecia ser preenchida com concreto. Pegamos
algo que parecia uma alça de corda que amarrava a
caixa... Tiramos a terra que a cercava. Tentamos abri-
la. Tentamos movê-la. Mas... a chuva voltou. Agora
mais forte. Os bichos e as cantorias voltaram também
mais fortes. A cerração cobriu o buraco e agora não
enxergávamos mais a caixa, só a sentíamos. O buraco
13
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
começou a encher de água. E quando não era mais
possível permanecer ali – devido a ela, nos retiramos.
Com a decepção dos grandes guerreiros, combinamos
retornar pela manhã. Voltaríamos para casa. Quando
amanhecesse voltaríamos mais equipados, com baldes
para retirada da água. Neste momento
desacreditávamos da lenda, ou coisa parecida. Víamos
somente a lógica, o real. E assim, cansados, muito
cansados nos retiramos quase não encontrando o rumo
à estrada.
A esta altura, todos prestavam muita atenção.
14
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Aparentemente ninguém parecia duvidar. Mas... em
seus interiores. O causo assumia uma vivacidade
pungente, ainda mais com a eloquência do contador
que gesticulava muito e impunha a voz nos momentos
certos de tensão.
Todos atônitos e reticentes, viam o contador de
histórias olhando ao longe.... como se estivesse
desgastado somente pelo esforço de tentar lembrar do
ocorrido. E logo após uma pausa. Continuou:
- Voltamos quando amanheceu o dia. Pulamos a cerca
15
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
de arame. Olhamos o provocador pé de ipê. E, para
nosso espanto, um olhar a cara do outro sem nada
dizer, e como se não fosse possível contar isso para
ninguém – com medo de se ter tido como louco –
olhamos para o chão atônitos - e toda a grama que
recobria aquele lugar estava como se nunca tivesse
sido remexida.
16
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Uma Noite Solitária
_______O vento batia violentamente na parede da
velha casa. Soprava uivante como lobos em noite de
luar. Os trovões, os raios e os relâmpagos se sucediam
em um espetáculo assustador, pelo menos para as
mentes daqueles que não possuíam uma alma pura
para enfrentar o medo proporcionado por uma
apocalíptica noite. Logo começou a chover. O vento
se exaltava cada vez mais, trazendo consigo os
primeiros pingos violentos daquela que seria uma
17
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
tempestade dantesca. Ramiro assustava-se com tudo
isso. Os galhos das árvores batiam na parede, no
telhado; dava-lhe a impressão de que alguém tentava
derrubar a casa.
Ramiro sempre ouvira as histórias dos mais velhos a
respeito das pessoas que foram atingidas por raios,
por isso tremia freneticamente de medo como se fosse
uma apavorada criança, embora estivesse com
dezessete anos. A cada raio, pulava. Estava sozinho.
Seus pais haviam saído ver seu tio, irmão de seu pai
que se encontrava muito doente. Seu tio era para ele
18
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
um herói, contava muitas histórias de viagens, de
passeios, de fantasmas e de lendas de tesouros
escondidos. Narração que vinham seguida de uma
vivacidade pungente, que o emocionava arrancando
sensações mais puras e verdadeiras que somente os
narradores mais eloquentes conseguem.
Vinha-lhe à mente a história do velho João, que seu
tio sempre comentava como testemunho de que a
alma é imortal e, o corpo é um simples abrigo desta.
Dizia ele que na noite em que o velho João falecera
escutou um barulho, como se algo tivesse caído. Foi
19
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
ver o que era. Caminhou pela casa toda e tudo estava
em perfeita harmonia, tudo estava em seu lugar.
Sentiu um frio correr pelo corpo inteiro, mas dizia ele
a si mesmo que estava tranquilo, “era uma reação
natural dos nervos!” Voltava à velha poltrona. Lia um
livro de contos de Edgar Poe. Julgava ele que tais
sensações eram geradas pela temática dos contos
lidos.
Após alguns minutos, novamente ouviu alguma coisa
cair, desta vez a intensidade do barulho era mais alta
e, dava-lhe a impressão de que caiu no piso da
20
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
cozinha. Pensou... “É ladrão”. Pegou a vassoura que
se encontrava perto – era só o que se encontrava por
perto e podia defendê-lo naquele momento pensou - e
caminhou sorrateiramente. O coração em batidas
violentas parecia que sairia correndo e deixaria quem
dele precisava. O suor em seu rosto vertia como água
salobra dos gêiseres. Tentou acalmar-se um pouco e
planejava o ataque. Talvez contra um ladrão.
Aproximou-se da porta da cozinha e pela fresta
observou lentamente, mas nada viu. Caminhou pela
casa toda e nada percebeu de anormal. Tudo em seus
21
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
lugares. Olhou pela janela e tudo estava bem. A
curiosidade o assombrava. Queria saber o que era.
Interrogava--se, levantava hipóteses do que podia ser.
Sentou-se à mesa da cozinha, ficou a refletir, pensou
em rezar. Às primeiras avemarias, escutou o telefone
tocar. Uma voz baixa e triste de uma mulher lhe disse:
“meu irmão se foi. E, como você era muito amigo
dele, lembrei-me de ligar a você.” Tudo isso lhe vinha
à memória. E o pavor era cada vez maior. Falava
baixinho “meus pais, meus pais”...
“Não sei por que as coisas que nos amedrontam
22
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
parecem imperceptíveis quando estamos com nossos
pais”, pensou Ramiro. O vento soprava, parecia-lhe
cada vez mais forte dando-lhe a impressão de que a
velha casa construída há mais de cinquenta anos não
aguentaria. Interrogou-se se poderia gritar para
espantar o horror. Pensou “estou sozinho, e as casas
vizinhas ficam no mínimo a dois quilômetros”, pois
morava em uma chácara. E, em um ato de desespero
berrou. Berrou como o pobre personagem Eurico o
Presbítero - que se atirou em um ato insano contra um
exército sarraceno que o perseguira com o intuito de
23
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
como algo digno dos grandes heróis, ou como o
silêncio que prenuncia algo pior a acontecer.
Ouvia a chuva, e, de certa forma, começava a se
acostumar. Já o vento não soprava tão forte, e os raios
já não eram despejados com a mesma frequência.
Ramiro mirava o retrato de casamento de seus pais,
contemplava a face de ambos, sentindo a saudade dos
solitários ermitões. Relembrou da noite anterior em
que seus pais o aconselhavam para melhorar suas
notas escolares.
Num abrupto instante, escuta um estrondo – como
24
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
jamais ouvira antes -. Algo precedido de uma imensa
luminosidade que tolheu seus sentidos. Sentia-se
como se estivesse gritando apavoradamente, tudo
brilhava ao seu lado. Sua visão não oferecia nitidez
que dá ligação do real, do lógico, ou do possível para
nossas mentes racionais. Era um sonho, um devaneio,
talvez o mesmo que sentiu Dante Alighieri quando viu
tais céus e infernos, como ele mesmo afirma ter visto
com os olhos humanos maravilhas e horribilidades
que a mente depois se esvai na tentativa de relembrá-
las...
25
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Tudo se distorcia. A porta já não estava no mesmo
plano em que se encontrava. Estava ela para ele à
distância, era como se estivesse bem distante, talvez
no horizonte, e sua magnitude era como se fosse a
porta celestial. Gritava ele, mas o som que saía
parecia aos seus ouvidos algo incompreensível, quase
inaudível; afinal ele nem sabia para quem gritar e o
que gritar. A porta se aproxima dele. Como algo que
vem automatamente, como a vida dos humanos, ou
como o movimento das máquinas. Não sentia suas
mãos, que aos seus olhos pareciam disformes, ora
26
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
agigantadas, ora minúsculas. Seu coração batia em um
ritmo descomunal, como se lhe fosse sair do peito.
A saudade batia juntamente com seu peito num
frenesi desvairado, galopava em sua frente sua fé com
algo que ele acreditava, mas há muito havia esquecido
– pela correria do seu quotidiano, ou pelo desleixo
dos afazeres fúteis -.
A porta se aproxima muito mais. Alguém saiu de lá,
não se apresentava nitidamente. Fecha-se a porta.
Abre-se novamente e mais alguém sai de lá. Ambos
revestidos de muito mais luz que o seu ambiente
27
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
atual, que já se encontrava aparentemente muito
iluminado.
Ramiro agora, sente-se correr para a porta em uma i-
n-f-i-n-d-á-v-e-l correria, num caminho tranquilo e já
não tão assustador. Olha mais para as pessoas que se
aproximavam dele e, percebe-os um homem e uma
mulher. Chega mais perto. Suas pernas amolecem e
ele cai. Quando olha para perto de si observa duas
sandálias e logo mais duas e, ouve uma voz doce e
suave que diz em coro “meu filho”.
28
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Boneco de Neve
A neve caía branquinha e todos se sentiam felizes.
Cobria toda a cidade. As crianças brincavam, mas
algumas pelo senso de proteção de seus pais, que
visavam proteger a saúde de seus filhos, apenas
observavam pela janela. O mais velho deu a ideia de
construir um boneco de neve.
Logo, a criançada começou a construção, com baldes,
pazinhas seguia feliz a empreitada. A criança mais
velha somente moldava, organizava seus
29
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
companheiros conforme a idade. Construiu-se a base.
Reuniram-se todos e ficaram a contemplar
carinhosamente a criação. Descansaram. Faziam
planos para o dia seguinte. Cada um viria com uma
peça de roupa para vestir o boneco: um traria
cachecol, outro traria um chapéu velho que o pai não
mais usava, outro tampinha de garrafa descartável
para fazer os olhos e botões da blusa; enfim cada um
procuraria o que trazer para deixá-lo com uma boa
aparência.
A noite cai. A criançada procurou dormir cedo para
30
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
levantar mais cedo ainda e continuar a construção.
Cada uma delas possuía uma paz e satisfação por
participar da criação de tal criaturinha.
As portas se abrem. A neve ainda estava muito
espessa e o frio era muito intenso. Baldinhos,
pazinhas se unem novamente. Continuam seus
ofícios. A segunda parte concluía-se. A cabeça já
estava moldada. Três partes unidas em uma só. A
menorzinha questionava como se colocaria o coração
no boneco, pois ele deveria ser capaz de amar seus
amiguinhos, pois a sua mãe lhe falou que o amor vem
31
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
do coração, e é ele que nos faz ser capaz de amar... Os
braços de galhos eram como se tivessem dedos nas
pontas. Os olhos de tampinhas de garrafas
descartáveis eram azuis. O chapéu velho trazido pelo
garoto ruivo era na verdade uma cartola velha, mas
deixou o boneco como um aspecto de cavalheiro. O
cachecol e os botões foram engenhosamente
dispostos. O nariz teve que ser fabricado. Um pedaço
de papel vermelho feito cone deu um ar de gripado ao
boneco. A boca foi um desafio ao grupo. A
menorzinha fez cara feia da expressão infeliz do
32
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
“boeco”. Não queria ela um risco. Queria uma forma
de uma metade de lua. Ele deveria ter cara de feliz.
Em um zape, as crianças concluíram. Houve uma
grande comemoração. Os gritos de alegria se
sucediam. Era para elas um dos dias mais felizes de
suas vidas.
A escuridão caiu. Eles se recolheram, meio que a
contragosto. Nas janelas, todas vigiavam o boneco,
como se alguém pudesse levá-lo dali. Com certeza
todos sonhariam com o resultado do suor de seus
rostos.
33
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
A solidão da escuridão deu a uma fadinha que passava
por ali a ideia de dar vida ao boneco. Ela perguntou a
ele qual seria seu desejo, ele respondeu que gostaria
de subir o monte mais alto daquela região e ver toda a
cidade e o vale onde ela se localizava, com toda sua
natureza exuberante e os mais longínquos lugares em
que pudesse avistar.
E como num passe de mágica o boneco já podia
andar. Iniciou sua subida, mas antes se despediu da
fada, que se perguntava o porquê dele não querer ser
um garoto... A nevasca que caía não fazia com que
34
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
nosso herói desistisse de sua jornada.
Em poucas horas já estava no mais alto de um monte
que naquela região era o maior. De lá de cima,
admirou as luzes que brilhavam lá embaixo.
Lembrou-se das crianças e seus empenhos para
formá-lo o que era agora. Desejou em sua curta vida
de boneco ser uma gigantesca bola de neve. Pensou
em rolar o monte ganhando assim tamanho e força.
Novamente em seus ouvidos ecoaram os gritos
repetitivos da molecada. Pensou que se de lá de cima
rolasse possivelmente causaria uma avalanche e um
35
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
imenso estrago nas suas casas que no vale estavam
erigidas. Sentia ainda pulsar em seu peito um coração
imaginário que a menorzinha o criara. Batia assim
uma saudade do chão que o acolhera e decidiu-se
eternizar pela alegria oferecida às crianças.
Resolveu voltar ao seu lugar. Na metade do caminho,
um lobo Guará que o acompanhava sem ser percebido
o questionou por que não descia rolando, iria mais
rápido. Justificou o boneco que dessa forma era a
correta, pois se rolasse a muitos machucaria;
principalmente aqueles que dedicaram muito a ele.
36
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Em pouco tempo este serzinho absorveu o que de
melhor havia nas pessoas: a preocupação com aqueles
que dedicavam pelo menos um pouco de suas vidas
aos outros, sorrisos, a criatividade, a união, a pureza,
a malícia ingênua, a preocupação com o semelhante;
enfim ele conheceu a pureza do coração das crianças.
Chega novamente àquele lugar a que reconheceu
como sua casa. Durou poucos dias, pois logo chegou a
primavera e com ela os primeiros raios de sol.
Imaginou que sua missão de boneco estava cumprida
e amanhã faria parte das águas que subiriam ao céu e
37
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
de lá retornaria alegremente em um novo ofício - o de
água - levando vida a todos os lugares até chegar
novamente ao imenso e indescritível mar.
38
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Um grito na escuridão
Um grito na escuridão acordou toda a vila. Todos já o
conheciam. João Mauro que era de fora não o
conhecia. Um frio rasgou suas entranhas e o arrepiou
por inteiro. Levantou lentamente devido à escuridão
do seu quarto. Uma espessa névoa tomava todo o
vilarejo. Sair com certeza não o faria, mas a
curiosidade era grande. Dali por diante não dormiu
mais. Várias memórias lhe vinham à cabeça. O
trabalho exaustivo e quase que escravo o fazia
39
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
trabalhar sem parar. Várias desilusões amorosas se
sucediam como um maldição. Também uma crise
financeira mundial levara todas suas economias. A
depressão há pouco curada era seu único trunfo. E
tudo isso passava em sua frente fazendo-o esquecer
aquele assustador grito. Logo o sol nasceu. João
levanta, lava o rosto em frente a um espelho antigo.
Uma mão lhe toca às costas. Sem nada entender, vira-
se rapidamente. Uma assustadora imagem lhe tolda os
sentidos.
Logo na noite seguinte, um novo visitante da vila é
40
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
acordado novamente por um grito mais assustador que
da anterior, em uma noite iluminada de lua cheia. Sem
nada entender mira da janela uma figura que vaga a
esmo por inóspitas ruas de paralelepípedo. Aquela
figura lhe parecia conhecida. Podia ser seu amigo
João Mauro que ficara de lhe esperar para fecharem
negócios na cidade e que estranhamente não estava no
hotel lhe aguardando. O homem sai à rua atrás de seu
provável amigo. Devido a este andar vagarosamente
ele o alcança. Ao alcançá-lo ele põe sua mão sobre
seu ombro. Este para. Um breve segundo de silêncio
41
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
se sucede. Sem se encararem o homem que vagava a
esmo solta um horrendo grito. Envolvido pelo medo
do grito o homem retorna ao hotel em um frenesi
tremendo não conseguindo dominar seus sentidos e
movimentos. João Mauro, ninguém mais o viu. O
grito toda noite de lua cheia se sucede, cada vez mais
assustador, porém ninguém mais sumiu daquele
misterioso vilarejo, em que as pessoas que moram ali
juram nunca mais tê-lo ouvido.
42
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
O tempo...
Um frio corre-lhe a espinha... Aquela ponte do Rio
Coutinho nunca fora tão extensa. Aqueles olhos
brancos. Aquela figura toda coberta de barro, fita-lhe
à distância profundamente seus atentos olhos que
estão alertas ao brilho da luz alta dos faróis do carro
que vem na outra pista. Ele se aproxima -
aparentemente lento - em sua direção. O tempo passa
mais lentamente ainda. A luz de seu carro é baixada
para não ofuscar a visão do motorista. A figura ao
43
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
meio da ponte desaparece... Sua razão não entende.
Mas não ousa perguntar neste momento. Qual seria a
pergunta? Qual seria a resposta? Fala lentamente à
esposa que lhe faz companhia “Para onde foi aquela
figura?” A mesma com voz quase sumida lhe
responde “Não sei! Você também viu?” O silêncio
impera. A resposta não vem...
44
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Era, com certeza, um lobisomem!
Vi tio João se debatendo sozinho no caminho. Pensei,
de novo tio João bebeu... Mirava novamente, e, ele
sumiu no mato. Lutava com alguma coisa, todavia eu
não enxergava nada. Nenhum zunido, grunhido, latido
ou qualquer coisa assim.
Era tardinha e a penumbra começava a tomar conta.
Eu e meus irmãos rimos muito da cena. Tio João,
sempre brincalhão, pensava. Logo minha mãe saiu à
porta. E, riu-se, achou engraçado. Todavia, olhei para
45
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
minha mãe alguns segundos depois, e ela havia se
empalidecido. O sorriso jã não saiu mais. E, brilhou
em seus olhos um medo de outrora - de quando eu era
criança - devido aos sustos pela criação dos filhos...
Silenciou-se, rezou um pouco - creio eu, pois sua boa
mexia. As crianças achavam aquilo um barato e até
chegaram a rolar no chão de tanto rir... Minha mãe
continuava a mexer com a boca como se
cochichasse... Tio João na peleja, agora se rolava pelo
chão. Todo despenteado. Isso durava mais ou menos
uns quatro minutos.
46
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Meu tio gritou. Todos se calaram. Minha mãe se
benzeu... Meu tio olhou para o mato, como que
esperando por algo. E, olhando para lá, foi descendo a
rua. Aproximou-se de nós. Todo sujo. Esperou alguns
segundos. Na rua, havia só nós naquele momento.
O vício do tio, aparentemente, ninguém testemunhara
tal situação de fraqueza sua - logo ele que, apesar
disso, era um herói para criançada, por suas histórias
sempre cheias de vida e de vitórias... ele nunca
perdedor sempre conseguia superar de cabeça erguida
os obstáculos que a via lhe propunha... - agradeci aos
47
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
céus por isso.
O tio olha para nós e fala: "Vocês viram?" Minha mãe
e eu respondemos: "O quê?" Ele se aproximou de meu
ouvido, com um bafo quente, sem odor nenhum de
bebida alcoólica, com um flamejar nos olhos pelo
brilho intenso da lua cheia refletida neles, me disse
"Era, com certeza, um lobisomem!"
48
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
A lenda
Na clareira uma alegre festa à luz dos lampiões.
Amantes se embalam ao som do violão.
Noite de lua cheia.
Um moço com olhar apaixonado mira uma linda
moça de olhos azuis que acompanha a só os balanços
de uma noite festiva.
A moça ao aproximar da meia-noite, olha a escuridão
e corre sorrateiramente para a mata.
O moço atrás sai com passos ligeiros a se preocupar
49
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
com a forasteira que ao primeiro olhar se apaixonara.
No escuro, um barulho... uma fera. Ao ver dor moço,
atacara sua pretendida.
Sem nada entender e, a pronto, saca de sua arma.
A fera da moça se aproxima, olham-se. A moça chora
silenciosamente e como as águas do Amazonas, nesta
noite de lua cheia, brilharam suas lágrimas.
O moço no vão das árvores, atentamente, com receio
de provocar de vez a ira do monstro e ele atacar sua
vítima, observa e espera o momento certo.
A luz da lua a brilhar, mais resplandecente do que
50
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
nunca, brilha no Gigante Amazonas oferecendo um
espetáculo sem igual. Para o moço, aquele momento
era apavorante; para natureza, algo incomum...
A vida pede socorro; o amor intenta vencer
preconceitos, o ódio de outrora, o ciúme que destrói, e
a maldição que aprisionou um amor em segredo que
revoltava a todos.
Um pedido insano da separação, justificativa
impensada-insensata: o pobre e o rico... inimigos de
sangue... inimigos de ideias... inimigos daqueles que
padeciam... talvez uma provável esperança da paz...
51
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
mas que não era desejada.
A dor aprisionou, mas o Amor ainda resiste...
O valente moço atônito, naquele momento que
parecia eterno, solta o fogo de sua arma, que como
vaga-lumes, alcança insanamente a Suçuarana que cai
ao chão.
A moça com o desespero dos amantes enlouquece aos
prantos. Desmorona-se em lágrimas ao lado da fera
que padece.
A fera, agora quase homem, despede-se da moça com
olhar suplicante. A moça segue para o rio... olha para
52
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
trás... vê seu amado em seu último suspiro e, já não
mais caminha... levita-se nas asas da misteriosa Mãe-
d’água, meio ser fantástico, meio mulher... despede-
se.
Do valente moço, ninguém mais sabe nada.
Mas, muito se fala da viúva-moça que às noites de
lua-cheia chora em águas límpidas a falta de seu
amado.
53
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
O Boitatá...
Olá meus amigos! Eu não sou homem de contar
história à toa não. Sou trabalhador que valoriza o
tempo, e sei o quanto ele é precioso, embora saiba o
quanto somos sedentos de uma boa conversa à moda
antiga com todo respeito e bem contada... Sendo
assim, vou contar um causo para vosmecês que não é
que eu queira pôr medo em ninguém, mas aconteceu
de verdade, tá aqui cumpádi Gaudôncio que não me
deixa mentir.
54
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Então, vamos ao que tenho que contar... Era numa
tarde de quinta-feira da semana santa, compadre
Beraldino, homem bravo domador de cavalo, não de
muita corpulência, mas de uma força sem igual, de
peleja dura, mão calejada que nem que eu, me
convidou pra ir à Chácara dele, para mor de conhecê-
la e ver o que tinha feito por lá. Em um momento meu
cumpadi ficou meio que amuado, disfarçado, como
alguém que tem uma coisa muito importante pra
contar... Eu que sou homem vivido, que já vi muita
coisa nessa vida, saquei em um momento que era
55
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
batata o que compadi tinha a me assuntar.
E, pela expressão dele não era pouca coisa não. Num
repente ele me confessou que tinha conseguido
domar um Boitatá... E eu precisava ajudá-lo com a
fera... por saber de minhas empreitadas com a besta.
Mas confesso que nesses assuntos de domar o danado
eu não era muito bom. A curiosidade acendeu...
Um silêncio caiu juntinho c'a noite. Confesso que por
já ter enfrentado o dito e não ter obtido êxito, fiquei fã
de meu cumpádi. Ele, como homem que já sofreu
muito – ao meu ver – silenciou como que já abatido
56
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
pelo ocorrido... E, eu continuei...
- Ora cumpádi, este bicho me surpreendeu quando eu
trabaiava à noite numa serraria, como vigia. Era eu e
mais outro amigo de profissão que tinha que aluitar a
noite inteira espantando a assombração com medo que
ele incendiasse toda madeirama lá guardada. Te conto,
era uma cobra de fogo que pilampeava serpenteando
uns quatrocentos metros para cima e vinha mais ou
menos uns sessenta metros de onde nóis tava.
(Pausa... o locutor olhava ao longe tentando lembrar o
que ocorreu com olhar assustado meio que ofegante,
57
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
continuou)
- Cumpádi, vampiro se mata com estaca de madeira
no coração. Lobisomem com bala de prata, também
no coração... Mas Boitatá não... meu filho pesquisou,
disse que na nossa história ele foi já visto desd'o
descobrimento do Brasil pelo Padre Anchieta e vem
assombrando até hoje... sem que se descobrisse um
jeito de acabar com o dito cujo – Boitatá. Mas, creio
que pelo que venho assuntando com o povo... deve ser
com muita força e fé que se derrota esse bicho...
Mesmo que muitos digam que ele tem até serventia,
58
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
que é proteger as florestas... era o que desconfiava
quando cuidava da serraria, até achava que era
castigo... mas na verdade – não sei bem!
(Pausa)
- Mas, como tava falando – por isso que te invejo meu
cumpádi!
E a conversa rolou mais umas duas horas sobre a
temida assombração... O narrador, continuou...
- Numa das empreitadas, meu amigo de trabalho tinha
me contado que um amigo dele tinha capturado um
Boitatá. Amarrado ele se debateu a noite inteira. No
59
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
dia seguinte era um homem, assim que nem que nós...
de carne e osso. Muita vergonha ele ficou, achando
que era uma armação, descobriu que se tratava de um
amante de uma cumádi com o cumpádi dela... É,
dizem que tem Boitatá que nasce daí... se não me
engano... não me alembro bem...
Houve muito riso nesse momento. Quebrando-se um
pouco da tensão.
Pensei: “Se meu cumpádi me convidou para conhecer
ele, então homem que não havia de ser aquele
Boitatá...”
60
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
O sábado chegou... Convidei cumpádi Gaudôncio e
meu afilhado, já quase hominho, para ir junto à
chácara. Lógico não falei nada pra eles. Queria ver a
cara deles quando vissem o Boitatá, pois sempre
duvidaram de minhas histórias... Só não tinha bem
certeza se era da mesma forma que eles conheciam.
Uma cobra de fogo. Mas acho que de dia não ia
aparecer muito bem o fogo...
Chegamos lá. Compadre Beraldino estava laçando.
Víamos de longe o campo em que era praticado o tiro
de laço... Compadre Beraldino nos enxergou e se
61
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
dirigiu a cavalo nos receber na porteira, faceiro que
ficou. Comentou da laçada, perguntou se lançávamos,
e todos dissemos que não. Sem cerimônia, nos
perguntou se tínhamos vindo para passar a noite por lá
para pescaria e pra roda de pinhão com chimarrão e
uma fritada de tilápia no disco e reforçou o convite
pra gente pernoitar por lá... Tínhamos preparado o
básico para passar a noite por lá... porque não
estávamos muito convictos que passaríamos a noite na
chácara... Mas pra pescaria estava todo material
preparado... sempre carregava minha caixa de pesca
62
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
no carro...
Depois de um dia bem agitado no campo a noite
principiava... Cumpádi Beraldino se lembrou do
bicho. Como que uma certa preocupação assolou-o.
- Ah cumpádi – falou ele. Espero que vocês não
tenham medo. São homens vividos, o teu guri
cumpádi já se recolheu, restando só nós adulto por
aqui. Agora posso apresentar a vocês meu Boitatá.
Olhou-nos com olhar de uma certa malícia... talvez
por exibir sua vaidade...
Compadre Gaudôncio não entendeu muito o que
63
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
estava ocorrendo, pois eu não havia comentado... Riu
discretamente. Mas não falou nada, achando que se
tratava de uma brincadeira... Confesso, eu estava um
pouco ansioso e só. Não tava muito espantado, pois
conhecia a ousadia do cumpádi... e ele chamou...
- Vem cá Tatá!
Já tinha dado até nome pro bicho que coragem manter
um certo afeto pela assombração, tinha domado muito
bem ela. Meu coração gelou. No meio da mata escura
só vi dois olhos muito brilhantes e arregalados a se
mexerem em nossa direção. Não sabia se aguentaria...
64
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Mas fiquei ali firme. Não olhei para os meus
compadres. Só mirava, arrepiado, a mata. Minha
história correu frente aos meus olhos. Quanta luta
travada com aquela figura lendária – para muitos que
não a conhecia como eu. E agora ela 105
•estava ali na minha frente. Domada, mas não sei se
menos perigosa... Eis que se aproxima fazendo um
certo barulho na mata. Vejo dois pares de chifres,
como narrado por alguns povos indígenas, o que o
tornava mais assustador ainda. Imaginei neste
momento como o minotauro... Como explicava esses
dias na tevê – metade homem metade touro... Era só
65
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
imaginação esta figura – lógico que não era assim...
Se tratava do Boitatá. É realmente tinha cabeça de
vaca ou de touro, sei lá, só sei que tinha uma mancha
branca muito luminosa no centro da cabeça em forma
de nuvem. Tonto, tentei falar... Mas não consegui. O
tempo não passava, parecia tudo congelado. O que
demorava quase uma eternidade ocorrer o que
ocorreu... Mas aconteceu... Saiu da mata um boi. Sim
era um boi! Corpulento, se aproxima de compadre
Beraldino, que põe sua mão sobre ele e ele para.
Balançando a cabeça em sinal de aprovação penso: “
realmente, dessa forma ainda eu não tinha ouvido
falar do Boitatá se manifestar quando domado
66
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Eu e eu mesmo
Uma manhã há algum tempo atrás em que o sol
iluminava as árvores, as casas, as pessoas e tudo mais.
Aconteceu-me algo inesperado e que muitos teriam
por mentira... mas às vezes até eu penso se isso foi
real ou imaginário. Mas... vamos ao acontecido.
Encontrei-me por acaso... sim era eu mesmo... só que
alguns anos mais velho. Olhei-me para mim mesmo
(se é que existe tal construção...) de forma surpresa
(aliás confesso tentei fazer heroicamente parecer tudo
67
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
normal). Nós, meros mortais resistimos acreditar em
absurdos... foi o que ocorreu... disse para mim “não
está acontecendo” e isso me ajudou a não acreditar
(pelo menos para aliviar a tensão e me enganar que
não estava acreditando). Portanto... para mim isso não
estava existindo... então relaxei e pude me observar
com um pouco mais de idade...
Eu-futuro estava bem. Quando este fato se sucedeu,
eu tinha uns 18 anos e meu eu-futuro, digamos que
estaria com uns 37. Tinha a mesma fisionomia,
estatura, um pouco mais de peso, cabelos escuros...
68
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Olhamos-nos. Não nos falamos nada. Creio que ele
deve ter estranhado como eu mesmo estranhei tal fato
(mas acho que meu eu futuro já havia ignorado o
passado – tudo bem, pensei). Todavia... agi como se
tivesse acostumado a sempre me encontrar por aí... ele
também, talvez estivesse... Para não me constranger
mais do que já estava constrangido, e quem sabe
constrangendo. Afastei- me. Olhei-me um pouco
mais... desejei-me silenciosamente boa sorte. E me
distanciei. Hoje tenho a idade aproximada em que me
vi com 18 anos. Só uma coisa não bateu, deve ter sido
69
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
algum defeitinho na linha do tempo, hoje sou calvo.
Coisas que só o tempo mesmo explica, um dia vou
entender. Quem sabe!?
70
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Leão (desertos...)
Vi no horizonte tênue luz.
Ao longo do caminho paira a escuridão.
Sôfrego, entristecido, caminha um leão.
Olha o deserto.
Vazio ou cheio, não importa.
Bate a fome, enrobustece-se seu desespero.
Sonha solitária figura; sacode sua juba; régia
imposição.
Embora fera, se desespera...
71
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Antes água farta, hoje areia e pó.
Sente-se só...
O sol, hoje companheiro insólito, rega miragens,
devaneios...
Cai, rola em frenesi... Inebria-se...
Desenha em nuvens arenosas majestosa visão...
Felino, ontem tão forte... Hoje tão frágil criatura.
Sabe que a natureza, implacável mãe, fez-te grande,
faminto, inteligente.
Parece que em teus olhos correm rios de lava,
impunha-te pelo seu fulgor.
72
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Por isso, não se rende à dor.
Chora, cai, bravamente resiste.
Insiste...
Sonhava com dias gloriosos...
Hoje, pesa-te a juba...
Reina, cambaleante, nas areias que cintilam...
Orgulhosamente... tomba com sua coroa...
Sobe ao céu um rei...
Desce à terra um anjo...
Chora, em nuvens ao longe, sábia natureza.
Chega tarde o milagre de quem a todos fez.
73
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Com ele renascem as pequenas criaturas...
A vida que se renova, canta a quem piedosamente, age
e embeleza as areias que em flor relutam pela eterna
ânsia de ver-viver.
74
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
O Mercador da Liberdade
Ela estava ali imóvel. Muito bem embalada, com o
preço à altura do pescoço. Um slogan bem atrativo em
sua camiseta. A embalagem valoriza o produto. A
aparência era tudo. Estava limpinha. O perfume era
bom, uma fragrância agradável que não irritaria o
cliente e quem não passaria despercebida. O produto
bom tem que ter um cheiro agradável. Ao seu lado
estava um outro produto sendo exposto, tão bem
produzido quanto ao primeiro, com todas as
75
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
características de aparência do lote, mas diferia-se
pelo gênero.
Vários consumidores passavam pela vitrine com
olhares cobiçosos. Uma boa olhada nos produtos,
outra nos preços e com sorrisos decepcionados
seguiam. Todavia, permanecia em seus olhares uma
indisfarçável cobiça, e mais um sonho a ser realizado.
Como o mercado estava aquecido não demoraria
muito a serem arrematadas, essas ricas joias. Eles
certamente seriam vendidos! Mas, diferente de tudo
que a loja possuía, nesses dois espécimes havia
76
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
consigo a opção – antes de estarem ali - de aceitarem
ou não serem vendidos... Estavam ali usufruindo o
resultado de uma das coisas mais belas que lhes havia
sido entregue, o livre arbítrio.
Quem desperdiçaria tal negócio? Produtos de
primeira. Por isso não duraram mais que – para eles
quase que infinitos – quinze minutos para serem
vendidos, logo após a exposição. O negócio foi bom
para o proprietário da loja. Ambos foram vendidos
pelo preço de etiqueta. Sem pechincha, sem barganha.
O comprador só não tinha visto os olhos dos dois,
77
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
pois estavam vendados.
Ao chegar em sua casa o comprador, com toda
paciência que os anos foram responsáveis de
presenteá-lo, tirou as vendas, desembalou-os e os
recepcionou com fraterno abraço. Deu-lhes alimentos,
ofereceu-lhes abrigo – caso desejassem.
Ambos estavam a sua frente atônitos, nem
imaginavam - por não terem recebido em suas vidas -
a razão de tamanho afeto. Resolveram nada indagar.
Pois no contrato de compra e venda não estavam as
opções de emitir juízo, nem indagar. O comprador
78
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
falou: “paguei o preço por vocês e a partir de hoje
vocês estão livres de suas amarras... vocês não são
mais produtos, poderão emitir opinião e gozar do
prazer da contradição, além disso poderão falar,
reclamar, enxergar um mundo novo, amar, chorar e
fazer tudo que desejarem... o limite será o infinito que
se aponta aos seus horizontes. Sigam seus caminhos –
se isso for de seus desígnios – sigam seus
caminhos...”.
Sem nada mais a dizer, somente segurava um sorriso
tendo sua voz presa pela emoção, lágrimas corriam
79
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
pela sua face.
Ambos olharam fixamente o bondoso homem, sem
ainda nada entender. Saíram lentamente à rua...
Olharam para a humilde casa onde residia o
comprador, a qual situava-se em uma área central e
possuía um enorme terreno. À frente da casa estava
um homem recolhendo uma placa de “vende-se”, era
o homem da imobiliária.
O casal ainda continuou a caminhar lentamente na
calçada, esboçaram um sorriso, esboçaram um
entristecer e entraram sem pudores em uma outra loja.
80
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Ofereceram-se novamente a uma nova promoção.
Mas agora tudo seria diferente, pediram para que seus
olhos não fossem vendados.
81
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Um homem caído no chão
Há um homem caído no chão. Quem se importa? Bala
ao peito. Sangue pintando a calçada. Um sonho
estendido no chão, uma esperança... Em casa filhos
riem inocentes. Um sonho desenha no piso sua
silhueta. Mas quem se importa? Todos passam
apressados, resignam-se com a lentidão do trânsito,
com a ignóbil figura, raquítica, de mãos
encouraçadas, de mochilas nas costas, com sua
térmica quebrada, marmita com um resto de comida
82
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
dando nojo nos transeuntes. Envergonha-lhes. O
ônibus vomita pessoas... Aos chutes o corpo anda.
Que culpa tinha este cristão? Todos atônitos com seus
anseios bradam “liberem a rua!” “já é hora de minha
novela.” “Logo começa o jornal.” Todos seguem... A
chuva cai e lava o sangue... Lava a discreta cal que
ainda permeia nas mãos de nosso pitoresco herói. O
corpo está só. Jogado à rua em frente à igreja.
Ouvem-se primeiras cantigas cantadas pelas
beatinhas, pontualíssimas às sete horas da noite... O
sino toca... A plateia canta animada o canto de
83
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
acolhida. Uma criança desobedece a mãe e sai
correndo na chuva levando em suas pequeninas mãos
um cartãozinho com o retrato de Nossa Senhora do
Guadalupe. Ela para tristemente em frente àquele
moribundo corpo, deposita em suas mãos a santinha.
A mãe preocupada com a filha, dissipa-lhe qualquer
vestígio de realidade, grita quase que desesperada
agarrando a mão da pequenina “venha aqui filha o
titio já sara!” A criança olhando para trás joga um
singelo beijo àquela figura. A celebração continua
calorosa.
84
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Mais um Cristo caído na rua
À meia-noite badala o sino da matriz... Olho ao redor
e nada vejo de novo. Somente uma árvore a balançar e
nela um olhar atento de uma coruja, é o que percebo
iluminado pelo holofote. Confesso que não tenho
muito medo. Mas, alguma coisa até me deixa um
pouco assustado. O olho começa a ficar pesado. Sei
que não devo dormir, pois é isso que a minha
profissão exige, sou vigilante. Olho as casas ao redor.
Estou em uma guarita, atento aos monitores da
85
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
vigilância. Vejo um casal na praça em frente a se
agarrarem, coisas da juventude. Beijos calientes. Um
olhar fixo – um para o outro – olham desconfiados ao
redor, o rapaz olha seu relógio e se mandam.
É alta noite. Está na hora de se retirarem. Apanharem
seus transportes.
Boa noite pombinhos! Pensei. Agora ficamos, eu, a
coruja, os monitores, as casas vazias pelo fato de ser
feriado e a maioria das pessoas terem ido viajar, a
praça vazia, além de muito sono. Mas, não posso
dormir!
86
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Vejo alguém se aproximar. Ele fica a olhar a loja ao
lado da mercearia, vizinha de onde trabalho. Pega
uma pedra e arremessa ao vidro. De primeira vez ele
não quebra. Aperto o botão do alarme o qual soa. O
homem não se intimida. Joga nova pedra e o vidro se
desmancha. Não trabalho armado. Tenho que acionar
a polícia, mas creio que não dará tempo. Por isso,
deixo o meu posto. Tranco a porta ao sair para
segurança do local. Grito ao ladrão. Ele com seus
olhos assustados, e se sentindo acuado, só teve uma
reação. Tirou de uma pistola velha, pelo visto era uma
87
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
22 e veio em minha direção com sangue nos olhos,
atirou-me. O gosto do sangue foi imediato. Um calor
invadiu minha alma...
E, em poucos milésimos de segundo pude ver a
amedrontada alma daquele algoz que se incendiava
num mar de desespero – em um inferno de uma vida
inteira. Era o mundo em suas costas... Eu aqui, em
meu humilde trabalho, vítima de toda uma sociedade
desajustada, era visto assim... Mais um Cristo caído
nas ruas...
88
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Perdido em Curitiba
Um calor toma lentamente conta de meus ossos
congelados. A noite foi fria e dolorida. Lembro-me
que antes de adormecer cachorros vieram virar o lixo
da esquina, brigaram por causa de algo e foram
embora. Minha cabeça está latejando, meus ossos
doem, o corpo calejado de maus tratos está ficando
velho e já não suporta a calçado dura. O corpo
reclama, criou vida própria.
89
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Sento-me e me reencosto na parede da lanchonete,
pessoas apressadas passam por mim sem me notar,
vão preocupadas com suas próprias dores, são tão
iguais em seu caminhar, em seus toques toques. Mas
há diferenças. Observo-as atentamente, algumas falam
ao telefone, umas de maneira irritadas, outras de
maneira amorosa. Algumas pessoas combinam com a
paisagem cinzenta do centro de Curitiba, parecem
locomotivas com seus chaminés, vestem escuro ou
roupas surradas e fedem a cigarro. Outras (são
poucas) parecem anjos, possuem cheiro gostoso de
90
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
perfume, têm cheiro de pele limpa. E os cheiros se
misturam ao cheiro de pastel quentinho, de café, de
pão francês. Minha barriga ronca, preciso comer.
Ensaio meu olhar mais suplicante, mais faminto o
direciono à multidão.
Dentre muitos, uma senhora bem vestida, retira de um
pacote de papel pardo um pão, que pelo cheiro estava
fresquinho, e com certo receio atira-o para mim. Eu o
devoro em três mordidas, estou faminto. Sinto uma
coceirinha insistente atrás do pescoço, deve ser sarna,
estou cheirando muito mal.
91
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Ali do meu canto em meio a um trapo, deito-me na
busca de algum conforto. Alguém me cutuca as pernas
com um cabo de vassoura.
- O rapaz vá procurar outro canto, rapidinho!
A lanchonete vai abrir, não há lugar para um ser como
eu. É hora de começar minhas andanças.
Minhas pernas estão dormentes, espreguiço-me para
ver se resolve. Coço-me. São tantos lugares que me
coçam e dou início ao meu dia sem propósito.
Caminho olhando para o chão, com a desculpa de que
eu possa encontrar algo que sirva, mas na verdade não
92
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
tenho coragem de levantar meus olhos, tenho medo da
rejeição, embora ela seja minha irmã. Sou um ser
machucado, não quero que me façam sangrar.
De cabeça baixa, posso passar por entre as pessoas,
elas abrem um espaço, elas também têm medo de
minha reação, enojam-se do meu cheiro (estou me
iludindo, acho que não me veem e o meu cheiro se
confunde com tantos outros).
Eis que ouço:
- Ei, você, vem aqui!
Olho em direção ao chamado e desconfiado, paro.
93
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
- Você, vem cá!
Era um homem de camisa estampada, bem retrô, bem
menor que a barriga que cobria, calça social e sapato
surrado. A barba grisalha cobria o contorno dos lábios
e em sua mão havia metade de uma coxinha.
- Vem cá rapaz, por que o medo?
Exitei um pouco, mas fui chegando devagar, deu-me a
metade da coxinha e resmungou.
- Muita engraxada! E seguiu seu caminho.
As pessoas são tão boas comigo, sempre tenho o que
comer. E fato que não querem conversa comigo. A
94
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
ternura que eu sonho em ver no olhar é substituída por
medo, nojo ou qualquer coisa parecida com isso, mas
minha barriga vazia sempre recebe um afago.
Entro no Passeio Público, bebo um pouco de água.
Sento-me à sombra de uma árvore e tenho um
momento de paz. Sinto-me seguro aqui apesar de toda
a companhia que me cerca. Mulheres enrugadas, com
beiços lambuzados de batom vermelho, cheirando
perfume forte desfilam de um lado para outro, sabem
que são observadas por olhos fundos dos malandros.
Sorrio por dentro, o bicho homem e seus instintos, ele
95
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
os segue selvagem, sem amor, sem consideração.
Necessidade saciada, dinheiro sujo na mão, nem te
ligo.
É engraçado isso tudo. Fico horas ali a observar,
passam menores fedendo a tíner, olhos esbugalhados
rubros. Passam casais com crianças ansiosas para
verem os bichos. E eu ali feito tapete, camuflado entre
a árvore e a grama, ninguém me vê.
Começo a ficar enebriado pelo movimento, uma
dormência toma conta do meu corpo magro, a vida de
rua não tem nada de bom, é entendiante como
96
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
qualquer outra vida. É triste e tem sabor amargo, é
mais solitária que qualquer ilha do mundo.
Minhas pálpebras começam a se fechar, consigo ouvir
pessoas que de longe vêm se aproximando. De olhos
fechados percebo que elas param perto de mim. Sinto
a respiração do ser, seu hálito de balas de morango.
Afagam minha cabeça.
- Coitado, tão sozinho.
Alguém finalmente é terno comigo, não quero abrir
meus olhos, tenho medo de estar sonhando.- Vou te
levar para casa.
97
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Meu Deus, vou conseguir uma cama quentinha, será
meu grande dia???
Duas pequenas mãos envolvem meu corpo magro e
me levantam do chão, sinto o calor do ser que me
afaga em seu colo e que me carrega para um destino
talvez, mais aconchegante.
No caminho enxergo seres maltrapilhos, homens e
mulheres rotos, famintos cheirando a urina. Sinto
pena desses seres. Eles sim, levam uma vida de cão e
ninguém vai levá-los para casa. (Jaqueline Andrade
98
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Borges1)
1 Professora Guarapuavana da Rede Estadual de Ensino do Paraná, formada em Letras-Português-Inglês e suas Literaturas.
99
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Borboleta
Pobre moça que padece de sofrer de ingratidão.
Embora alegre, sei que segue na correria do mundão.
Não teve tempo de escrever, nem para agradecer o
milagre que agora narro, tão alegre de prazer.
Aconteceu em uma clara tarde, os pássaros a cantar,
eis que passava bela; encantando até o mar. Assobiava
seus dourados anos, a vida a curtir; na desfé sempre
vivia, não se preocupava com o porvir. Era estudo,
100
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
casa, amigos, festas, bem próprio da juventude, era
como se eterna fosse, vivia sempre livre pela cidade.
Seus velhos esquecia, não lembrando mais da
infância. Fazia planos para o amanhã, condizente com
a ganância.
Pensou em tantos mundos, em tantas opções, tinha
tempo para tudo, mas esquecera das orações...
Retomando àquela tarde da qual eu lhes falava;
infelicidade nunca é certa; mas aconteceu onde ela
estava. Foi um carro desgarrado que a pegou por um
acaso – tempo depois fiquei sabendo com detalhes
101
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
todo o caso... A tristeza habitou seus dias a partir desta
tarde. Como uma chama ardeu sua alma, com a ação
de um ébrio, fraco, covarde...
Vários dias no hospital, a recuperar-se do ocorrido,
era a frieza que fazia seu vigor ser corroído, que era
dia a dia semeado da saudade de seus passos. Que ia
pouco a pouco deglutindo a alegria de seus traços...
E o tempo foi passando, e o tempo fez-se amigo,
oportunizou ficar mais com seus e também mais
consigo...
Conhecendo muito mais, conheceu o que não
102
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
conhecia até. Olhando as crianças que brincavam em
seus risos, encontrou-se com a fé... Quis buscar saber
mais, donde vinha a esperança prometida há tanto
tempo por um Deus que se fez criança...
Os dias se passavam, em sua frente a natureza, era
rica em sua composição, diversificada em beleza.
“Se o Pai faz muitos milagres, por que em mim um
não faria?” Decidiu então pedir, ao Grande Deus,
todos os dias... Era busca incessante, oração,
fisioterapia. Buscou apoio também nos braços da
Virgem Maria...
103
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Eis que chego de onde parti, da minha humilde
narração, pois ponho os meus versos a traduzir um
privilegiado coração...
Eis que à sua frente passa uma linda borboleta, bate as
asas intercalando cores preta e violeta...
Dá nela uma vontade de correr ao observar lindo
inseto, que celebra a vida em plenitude em seu viver
tão modesto...
Eis que uma perna se mexe, a outra a seguir, com os
braços se apoia, com seu corpo a erigir...
O milagre se opera, desde então começa a andar,
104
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
recupera como antes, sua beleza como o mar...
Os dias se sucedem, os amigos se reaproximam, se
afasta pouco a pouco, dos que de coração a amam...
dos quais quando está triste sempre a reanimam.
Na correria do dia a dia, esquece-se de orar.
Agradecer é parar, e parar não quer pensar...
De braços abertos ficaram família, Deus e Maria. Eles
não querem o mal da moça, e cada um deles diz “te
amo, siga em frente minha filha!”.
105
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
O Achado Misterioso
Era um dia como qualquer um outro. Juvenal, um
jovem catador de recicláveis, entoava uma melodia
aos assobios quando avistou uma mala. Era uma linda
mala. Olhou para os lados para tentar avistar se havia
alguém que a reclamaria. Ninguém aparecia naquele
beco, eram sete horas da manhã. Pensou em ficar
esperando até que o dono aparecesse. Colocou a mala
em seu carrinho, escondeu-a. Lembrou-se de ver quais
106
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
eram os detalhes dela para ver se a pessoa que
aparecesse reclamá-la saberia descrevê-la. Daí sim a
devolveria. Juntou o reciclável do beco e nada. As
janelas se abriam. As pessoas punham as roupas nos
varais. As chaminés cuspiam fumaça, saíam pais para
levarem suas crianças à escola. Uma senhora que saía
muito cedo caminhar estava a voltar de sua matinal
caminhada. Juvenal disfarçava e ficava a esperar... E
nada... Nove horas da manhã. O pobre catador
aguardava... Sua barriga roncava. Seu pensamento
neste momento era de deixar a mala ali e seu dono
107
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
que voltasse buscá-la. Mas, será que outra pessoa, que
não seu dono, a encontraria. Enfim, deixá-la não.
Resolveu aguardar.
•Dona Jurubeba sai à janela e estranha a inusitada
permanência do homem da reciclagem mais do que os
quinze minutos habituais os quais demorava para
fazer a coleta. Mas, mesmo assim ela se recolhe.
Juvenal se incomoda e, ninguém... Pensa, ninguém
mesmo vem buscá-la. Resolve ficar sentado na praça
à frente do beco e aguardar o descuidado que deixara
uma linda mala ali a esmo. Olho fixo e um senhor se
108
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
aproxima. Distinta pessoa, ao ver do Juvenal, muito
bem vestida, com um impecável terno. Deve ser ele o
proprietário, pensou o preocupado Juvenal. Bateu à
porta da mulher do número 18 e conversou
ligeiramente saindo com uma caixa pequena embaixo
do braço, que após passar perto do nosso herói,
descobriu uma caixa com xícaras pelo desenho que
tinha na mesma. Cumprimentou o simpático senhor e
este foi embora. Concluiu que não era o dono. Quem
deixaria ali aquela maleta? Quem voltaria para
reclamá-la? Será que alguém saberia dizer alguma
109
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
coisa a respeito. Em quem confiar? Como perguntaria
às pessoas? Faltavam ideias ao homem que cuidava
tão bem do lixo. Até que chegasse a resposta, resolveu
comer alguma coisa. Trazia em sua sacola um pedaço
de pão e uma garrafa de refrigerante com chá dentro.
Comeu, a cada mordida se preocupava quando iria
sair dali. O lanche acabou e ainda nada. Ninguém
aparecia para levar a mala. Pensou em jogar fora e fim
do problema. “Mas que ideia a minha, que falta de
consideração com as pessoas” refletiu nosso honesto
homem. Faltava-lhe conhecimento. A quem entregar a
110
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
mala? O medo passava-lhe pelos nervos como um
choque a lhe arrepiar. “Por que medo?” Decidiu ver
melhor a mala. Chacoalhou-a. Parecia haver algo lá
dentro que pareciam papéis. Achou que podia ser
dinheiro. Por um momento, sentiu-se feliz. Ajudar
alguém. Talvez a pessoa que perdeu o dinheiro
voltasse para buscá-lo. Certamente, o pagamento do
mês. Pensou de pronto: as crianças em casa à espera
do pai coma compra do mês, a esposa pronta para
cumprir suas obrigações... “Que prazer ajudar
alguém”, devaneava Juvenal. A tarde vem e a sombra
111
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
já não conseguia impedir os ardentes raios solares que
queimavam a pele escura do esforçado agente
ecológico. Este a imaginar a chegada do homem que
esquecera ou perdera o dinheiro. “Será mesmo que é
dinheiro?” Interrogou-se.
•Sentado quase o dia todo, poucas pessoas haviam
notado nosso reflexivo homem. Os pássaros lhe
faziam companhia. Ele ficava a indagar a eles, em
pensamento, se sabiam de quem era aquela bendita
mala. Decidiu. Em um lapso de pensamento decidiu
pela libertação. Ver o que havia na mala. O coração
112
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
quase lhe sai pela boca. Palpitava-lhe que seria
confundido com um ladrão, um bandido. Mas
precisava abrir e ver se havia ali alguma pista que
levasse ao seu irresponsável dono. Agora o suor
escorria-lhe ao rosto, lavava-lhe a alma, talvez fosse o
momento... Nunca imaginou que partiria daquela
forma. “Não, decididamente, não! Não vou morrer!”
Mesmo que seu coração lhe falasse o contrário. Não
tinha sentido tal sensação até aquele momento. Mas...
a curiosidade era maior e pensou “Já que vou morrer
quero saber o que vai me levar!” A mala olhava quase
113
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
que sorridente àquele infeliz. Justiça seja feita, por
que se preocupar tanto com um ser tão ignóbil? Uma
pessoa que deixava uma ma- leta em qualquer lugar pode
ter feito propositalmente, talvez um descuido ou até
mesmo para se desfazer dela. Qual destas indagações seria
a correta? Filosofava Juvenal. A emoção, a curiosidade, o
medo, a sublimação... Nunca havia refletido tanto. Nunca
pensara tanto para encontrar uma resposta. Seu coração
nunca sentira tanta emoção. A preocupação era com
outrem e, nem ao mesmo o conhecia. Um desconhecido
nunca o influenciara desta forma. A preocupação com
outra pessoa se fazia clara ao nosso paciente catador.
114
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
Sempre gostou do que fazia. Não sabia bem definir o que
o movia diariamente àquele ofício. Achava que era só a
ânsia de viver e ter por que viver. Todavia, naquele
momento sentia-se importante, não sabendo exatamente
por quê. A angústia. A curiosidade. O peso na consciência
que o fazia sentir culpado. Tudo isso o atormentava. As
mãos suavam, a cabeça rodava, a falta da esposa neste
momento se fazia grande - pois saberia ela o que fazer –
mas ele... Em um relance helicoidal, a mala espiralava-se
em um escuro buraco negro que lhe tolhera aos poucos sua
consciência. A mala às mãos. Agora ao peito. Resolveu
sentar-se recostado ao carrinho, quando... o mundo
115
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
começou a fugir-lhe, levando consigo seus sentidos. Em
um grande sonho surreal, ele abria a mala e de lá saíam
mansões, carros dos mais variados tipos e marcas cada um
mais belo e brilhante que o outro, comidas que não saberia
descrever - pareciam-lhe deliciosas – mas distantes se
faziam, assim doía-lhe ainda mais seu estômago.
•Sua família – como se fosse espectadora desse sonho
– apreciava atônita tamanho acontecimento. Tais
coisas os distanciavam cada vez mais, até que Juvenal
já ao longe dos seus, sente-se muito só. Muito só. Ele
unicamente deseja transpor as barreiras impostas pelo
116
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
que saía da maleta. A mesma é alvejada por uma
inesperada pedra – vinda não sabe de onde. Ela se
fecha. E o que dela saiu some. Assim, nosso herói se
sente aliviado, pois se vê novamente próximo de seus
familiares. Eles o abraçam e aliviado despede-se.
Alguns minutos depois, retoma seus sentidos e, avista
ao seu lado a maleta. Estava aberta. Atônito vê em seu
interior um livro velho e um maço de papéis escritos.
O homem que faz a coleta do reciclável não sabe ler.
A curiosidade lhe corrói a alma. Por que não estudei?
– indagou Juvenal. Os conselhos de sua mãe para que
117
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
estudasse açoitava-lhe. No entanto... teria
imediatamente saber o que estava escrito naqueles
papéis e o que era aquele livro. Para a sua sorte vinha
alegremente um meni- no que pela rua assoviava sem
parar. Sem cerimônia ele foi parado. Perguntou-lhe se
ele sabia ler. Respondeu – meio com receio - com a
cabeça que sim. Deu-lhe os papéis – mesmo o menino
achando aquilo muito estranho - leu meio que
silabicamente, mas leu. A primeira página dizia assim:
“Quero desculpar-me da forma que achei para repartir
do muito que colecionei em minha vida. Os anos se
118
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
passaram e descobri nisto que deixei registrado nas
folhas que se seguem um grande tesouro, que me fez
um homem feliz, livre e, sobretudo solícito. Resolvi
repartir com você, pois certamente saberá assimilar
com sabedoria o que lhe deixo. Acredito que se
mudou a minha vida, poderá mudar a sua. Deixo-lhe
um exemplar desta preciosidade que para mim é uma
bússola num mundo em que as pessoas andam sem
saber para onde e por quê. Um grande abraço de um
amigo” Inesperadamente, a ira nos olhos de Juvenal
era visível. Os papéis foram lançados furiosamente
119
Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação
Marcio José de Lima
em seu carrinho. “Quem me roubou? Levou o que
havia nesta maleta me deixando só estas folhas sem
valor. Talvez houvesse joias, dinheiro ou sei lá o que
mais. Pobre de novo! Somente desejei ter uma casa
digna. Comida...” Afirmou furiosamente. O menino
lhe perguntou “Hei, o senhor vai que-rer este livro?”
O homem disse que poderia ficar com ele. “Obrigado
moço” disse o menino sorrindo – e levando consigo
um exemplar usadíssimo da Bíblia Sagrada.
120