Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela de dinheiro e outros Contos Fantásticos e de...

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Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela de dinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação Marcio José de Lima Sumário Acampamento na noite de primeiro de abril - A panela de dinheiro...............................................................................2 Uma Noite Solitária..........................................................15 Boneco de Neve................................................................27 Um grito na escuridão...................................................... 37 O tempo............................................................................ 42 Era, com certeza, um lobisomem!.................................... 44 A lenda..............................................................................48 O Boitatá...........................................................................53 Eu e eu mesmo................................................................. 67 Leão (desertos...).............................................................. 71 O Mercador da Liberdade.................................................75 Um homem caído no chão................................................82 Mais um Cristo caído na rua.............................................86 Perdido em Curitiba..........................................................90 Borboleta........................................................................ 101 O Achado Misterioso......................................................107 1

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Tem medo... de quê?

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Marcio José de Lima

SumárioAcampamento na noite de primeiro de abril - A panela de dinheiro...............................................................................2Uma Noite Solitária..........................................................15Boneco de Neve................................................................27Um grito na escuridão......................................................37O tempo............................................................................42Era, com certeza, um lobisomem!....................................44A lenda..............................................................................48O Boitatá...........................................................................53Eu e eu mesmo.................................................................67Leão (desertos...)..............................................................71O Mercador da Liberdade.................................................75Um homem caído no chão................................................82Mais um Cristo caído na rua.............................................86Perdido em Curitiba..........................................................90Borboleta........................................................................101O Achado Misterioso......................................................107

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Marcio José de Lima

Apresentação

O presente trabalho trata-se de uma coletânea deContos Fantásticos publicados nos Jornais Folha doXagu, Folha do Iguaçu, Recanto das Letras e no blogDevaneios Literários do Lima.

A grande maioria dos textos é de contos fantásticosem que a imaginação correu solta, principalmentehabitada por histórias ouvidas de seus pais e parentesde mais idade.

O elemento “medo” foi explorado e rendeu algunscontos interessantes. Nossos medos... o quanto elescriam fantasias... quantas histórias rendem. Talvezescrever, ou contá-los seja uma das formas de superá-los. E, contribuir para que outros superem. Mas até lá,podemos nos divertir muito, pelo elemento“fantástico”.

Teve-se nesta compilação a participação da ProfessoraJaqueline a qual contribuiu com a presente com o

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Marcio José de Lima

conto “Perdido em Curitiba”.

Marcio José de Lima, nasceu em Guarapuava,funcionário público, principiou na literatura com seulivro “Devaneios em Prosa” publicado pela EditoraUNICENTRO em 2011. Formou-se em Letras parasuperar sua dificuldade de comunicação,principalmente no que dizia respeito à produçãotextual.

Desejo a todos uma boa leitura!

O autor.

Contato com o autor pelo e-mail:

[email protected]

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Acampamento na noite de primeiro de abril - A panela de dinheiro

Todos ali sobre o lúmen da fogueira regateira que

iluminava o rosto de todos. Pequenas histórias saíam

do povo que se exibia pelos sustos vividos pelas

pseudoexperiências vividas. Tio Jango o mais

eloquente dos contadores de histórias se exibia por ter

sido testemunha de muitas. A mais surpreendente foi a

que viveu em uma de suas viagens pelo mundo. Dizia

ele:

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Marcio José de Lima

- Olha amigos.

Com os olhos arregalados de quem havia se assustado

muito pelo testemunho ocular de algo assustador.

- Não quero por medo em vocês. Mas, existe muita

coisa que nós não imaginamos nesta vida... Tudo o

que narrei até aqui, foi verdade. Todavia, uma de

minhas histórias, tem o tempero do inimaginável. Isso

aconteceu em 1975, quando contava com 18 anos.

Fiquei sabendo de uma panela de dinheiro enterrada

em um descampado perto da Serra do Rio Jordão.

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Que teria sido enterrada pelos Jesuítas

aproximadamente em 1750. Ali não havia ruínas das

Missões. Sabíamos não por mapas, nem por histórias

de hipóteses do ocorrido pelo descentes da região. E

sim, pelo que muitos já haviam vivido quando

passavam por aquelas aragens, principalmente nas

noites de lua cheia do mês de agosto. Quando uma das

vítimas foi assombrada por uma tribo fantasma que

implorava que fosse desenterrado aquilo que os

prendiam ali... Uma caçarola de barro carregada de

moedas de ouro. Este sobrevivente sóbrio, que teve a

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sensibilidade de encarar aquilo como verdade,

convocou-me para aquela empreitada, pois sabia que

eu era homem que acreditava naquilo por já ter vivido

muitas histórias – que a maioria das pessoas não

acredita. E de pronto, aceitei, por também acreditar

naquele homem que merecia todo meu crédito.

- Amigos... saímos com pás, picaretas, enxadas, dois

rosários em cada bolso e nosso santinho de devoção.

Pois, sabíamos que teríamos que rezar muito. O que

ali ganhássemos teríamos que repartir parte com quem

realmente precisava para abençoá-lo. Esta era a regra

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básica para quem era caçador experiente de panelas

de dinheiro. Chegamos ao local em uma noite muito

límpida. Não estava frio, embora a nossa região seja

considerada uma das mais frias do sul, aqueles anos o

inverno era terrível, como vocês sabem, mas apesar

disso aquela noite estava agradável. Deixamos nossos

carros na estrada, pois não dava para chegar de carro

até lá. Pulamos uma cerca de arame. E poucos metros

depois, escutamos algo estranho. Paramos. Parecia um

mugido. Mas, não enxergamos nada. Então, seguimos

nosso destino. Como saberíamos o local? Meu amigo

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narrou que era próximo a um velho ipê. Seria naquele

local aproximadamente. Teríamos que trabalhar a

noite inteira até o amanhecer. Pois, pela lenda, diz-se

que tem que retirá-la até o por do sol. Então teríamos

que nos apressar. Chegamos ao assustador ipê. Digo

isso, por que naquele momento o achava assim. Ele já

foi fazendo um buraco sem ao menos pensar, tive a

impressão de sabia onde era. Poucas pazadas, desistiu.

Eu, confesso. Fiquei naquele momento somente

olhando e pensando. Onde será ao certo? Não havia

uma lógica para aquilo. Mas... era jovem. Não me

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importaria em viver aquela “loucura”. Comecei a

cavocar usando minha lógica. Se tiver próximo do

tesouro, algo ocorrerá. Depois de um certo tempo, de

quase limpar a grama que cercava o ipê, ocorreu algo

muito estranho. O barulho do boi voltou. Paramos...

olhamos para os lados e não havia nada. Concluímos

que aí era a pista que esperávamos. Começamos a

aprofundar nossa procura. Fizemos um buraco de dois

passos quadrados. Quando já estava pelo nosso

joelho, outros brulhos de bichos se juntaram ao

mugido do boi. Agora haviam porcos e cachorros.

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Além do barulho de arbusto quebrando. Mas... não

haviam arbustos ali. Era só um descampado. O tempo

começou a fechar. E, em um repente, começou a

chover com muitos raios e trovões. Choveu com

vento. E sombras horríveis assombraram nossa noite.

Ouvimos o canto da tribo em uma língua que não

conhecíamos. Mas à medida que nós afundávamos

nosso buraco o canto tornou-se uma canção religiosa

– ou pelo menso parecia assim - com sotaque parecido

com o português e algo perto do castelhano. Sentimos

cheiro de erva-mate queimada. Chegou ao auge da

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cantoria. E, tudo se silenciou. Paramos um momento.

Olhamos para a paisagem agora coberta pela cerração.

Tremíamos. Nos olhamos. Nos interrogamos.

Seguiríamos aquela empreitada? Certo de que

estávamos próximos ao tesouro continuamos. Um

canto continuou. Barulho de cavalos começaram a

passar próximo a nós como um estouro. Abaixamo-

nos e aos poucos pusemos a cabeça fora do buraco

para ver o que estava ocorrendo. Nada acontecia de

diferente a não ser a cerração que aparentava mais

brilhante agora já revelando a copa de alguns

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pinheiros ao longe. Cavava freneticamente enquanto

meu amigo descasava – quando bati em algo que

parecia uma caixa. Com as mãos, descobrimos, sim

era uma caixa de madeira. Muito dura não parecia

oca, parecia ser preenchida com concreto. Pegamos

algo que parecia uma alça de corda que amarrava a

caixa... Tiramos a terra que a cercava. Tentamos abri-

la. Tentamos movê-la. Mas... a chuva voltou. Agora

mais forte. Os bichos e as cantorias voltaram também

mais fortes. A cerração cobriu o buraco e agora não

enxergávamos mais a caixa, só a sentíamos. O buraco

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começou a encher de água. E quando não era mais

possível permanecer ali – devido a ela, nos retiramos.

Com a decepção dos grandes guerreiros, combinamos

retornar pela manhã. Voltaríamos para casa. Quando

amanhecesse voltaríamos mais equipados, com baldes

para retirada da água. Neste momento

desacreditávamos da lenda, ou coisa parecida. Víamos

somente a lógica, o real. E assim, cansados, muito

cansados nos retiramos quase não encontrando o rumo

à estrada.

A esta altura, todos prestavam muita atenção.

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Aparentemente ninguém parecia duvidar. Mas... em

seus interiores. O causo assumia uma vivacidade

pungente, ainda mais com a eloquência do contador

que gesticulava muito e impunha a voz nos momentos

certos de tensão.

Todos atônitos e reticentes, viam o contador de

histórias olhando ao longe.... como se estivesse

desgastado somente pelo esforço de tentar lembrar do

ocorrido. E logo após uma pausa. Continuou:

- Voltamos quando amanheceu o dia. Pulamos a cerca

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de arame. Olhamos o provocador pé de ipê. E, para

nosso espanto, um olhar a cara do outro sem nada

dizer, e como se não fosse possível contar isso para

ninguém – com medo de se ter tido como louco –

olhamos para o chão atônitos - e toda a grama que

recobria aquele lugar estava como se nunca tivesse

sido remexida.

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Uma Noite Solitária

_______O vento batia violentamente na parede da

velha casa. Soprava uivante como lobos em noite de

luar. Os trovões, os raios e os relâmpagos se sucediam

em um espetáculo assustador, pelo menos para as

mentes daqueles que não possuíam uma alma pura

para enfrentar o medo proporcionado por uma

apocalíptica noite. Logo começou a chover. O vento

se exaltava cada vez mais, trazendo consigo os

primeiros pingos violentos daquela que seria uma

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tempestade dantesca. Ramiro assustava-se com tudo

isso. Os galhos das árvores batiam na parede, no

telhado; dava-lhe a impressão de que alguém tentava

derrubar a casa.

Ramiro sempre ouvira as histórias dos mais velhos a

respeito das pessoas que foram atingidas por raios,

por isso tremia freneticamente de medo como se fosse

uma apavorada criança, embora estivesse com

dezessete anos. A cada raio, pulava. Estava sozinho.

Seus pais haviam saído ver seu tio, irmão de seu pai

que se encontrava muito doente. Seu tio era para ele

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um herói, contava muitas histórias de viagens, de

passeios, de fantasmas e de lendas de tesouros

escondidos. Narração que vinham seguida de uma

vivacidade pungente, que o emocionava arrancando

sensações mais puras e verdadeiras que somente os

narradores mais eloquentes conseguem.

Vinha-lhe à mente a história do velho João, que seu

tio sempre comentava como testemunho de que a

alma é imortal e, o corpo é um simples abrigo desta.

Dizia ele que na noite em que o velho João falecera

escutou um barulho, como se algo tivesse caído. Foi

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ver o que era. Caminhou pela casa toda e tudo estava

em perfeita harmonia, tudo estava em seu lugar.

Sentiu um frio correr pelo corpo inteiro, mas dizia ele

a si mesmo que estava tranquilo, “era uma reação

natural dos nervos!” Voltava à velha poltrona. Lia um

livro de contos de Edgar Poe. Julgava ele que tais

sensações eram geradas pela temática dos contos

lidos.

Após alguns minutos, novamente ouviu alguma coisa

cair, desta vez a intensidade do barulho era mais alta

e, dava-lhe a impressão de que caiu no piso da

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cozinha. Pensou... “É ladrão”. Pegou a vassoura que

se encontrava perto – era só o que se encontrava por

perto e podia defendê-lo naquele momento pensou - e

caminhou sorrateiramente. O coração em batidas

violentas parecia que sairia correndo e deixaria quem

dele precisava. O suor em seu rosto vertia como água

salobra dos gêiseres. Tentou acalmar-se um pouco e

planejava o ataque. Talvez contra um ladrão.

Aproximou-se da porta da cozinha e pela fresta

observou lentamente, mas nada viu. Caminhou pela

casa toda e nada percebeu de anormal. Tudo em seus

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lugares. Olhou pela janela e tudo estava bem. A

curiosidade o assombrava. Queria saber o que era.

Interrogava--se, levantava hipóteses do que podia ser.

Sentou-se à mesa da cozinha, ficou a refletir, pensou

em rezar. Às primeiras avemarias, escutou o telefone

tocar. Uma voz baixa e triste de uma mulher lhe disse:

“meu irmão se foi. E, como você era muito amigo

dele, lembrei-me de ligar a você.” Tudo isso lhe vinha

à memória. E o pavor era cada vez maior. Falava

baixinho “meus pais, meus pais”...

“Não sei por que as coisas que nos amedrontam

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parecem imperceptíveis quando estamos com nossos

pais”, pensou Ramiro. O vento soprava, parecia-lhe

cada vez mais forte dando-lhe a impressão de que a

velha casa construída há mais de cinquenta anos não

aguentaria. Interrogou-se se poderia gritar para

espantar o horror. Pensou “estou sozinho, e as casas

vizinhas ficam no mínimo a dois quilômetros”, pois

morava em uma chácara. E, em um ato de desespero

berrou. Berrou como o pobre personagem Eurico o

Presbítero - que se atirou em um ato insano contra um

exército sarraceno que o perseguira com o intuito de

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como algo digno dos grandes heróis, ou como o

silêncio que prenuncia algo pior a acontecer.

Ouvia a chuva, e, de certa forma, começava a se

acostumar. Já o vento não soprava tão forte, e os raios

já não eram despejados com a mesma frequência.

Ramiro mirava o retrato de casamento de seus pais,

contemplava a face de ambos, sentindo a saudade dos

solitários ermitões. Relembrou da noite anterior em

que seus pais o aconselhavam para melhorar suas

notas escolares.

Num abrupto instante, escuta um estrondo – como

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jamais ouvira antes -. Algo precedido de uma imensa

luminosidade que tolheu seus sentidos. Sentia-se

como se estivesse gritando apavoradamente, tudo

brilhava ao seu lado. Sua visão não oferecia nitidez

que dá ligação do real, do lógico, ou do possível para

nossas mentes racionais. Era um sonho, um devaneio,

talvez o mesmo que sentiu Dante Alighieri quando viu

tais céus e infernos, como ele mesmo afirma ter visto

com os olhos humanos maravilhas e horribilidades

que a mente depois se esvai na tentativa de relembrá-

las...

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Tudo se distorcia. A porta já não estava no mesmo

plano em que se encontrava. Estava ela para ele à

distância, era como se estivesse bem distante, talvez

no horizonte, e sua magnitude era como se fosse a

porta celestial. Gritava ele, mas o som que saía

parecia aos seus ouvidos algo incompreensível, quase

inaudível; afinal ele nem sabia para quem gritar e o

que gritar. A porta se aproxima dele. Como algo que

vem automatamente, como a vida dos humanos, ou

como o movimento das máquinas. Não sentia suas

mãos, que aos seus olhos pareciam disformes, ora

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agigantadas, ora minúsculas. Seu coração batia em um

ritmo descomunal, como se lhe fosse sair do peito.

A saudade batia juntamente com seu peito num

frenesi desvairado, galopava em sua frente sua fé com

algo que ele acreditava, mas há muito havia esquecido

– pela correria do seu quotidiano, ou pelo desleixo

dos afazeres fúteis -.

A porta se aproxima muito mais. Alguém saiu de lá,

não se apresentava nitidamente. Fecha-se a porta.

Abre-se novamente e mais alguém sai de lá. Ambos

revestidos de muito mais luz que o seu ambiente

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atual, que já se encontrava aparentemente muito

iluminado.

Ramiro agora, sente-se correr para a porta em uma i-

n-f-i-n-d-á-v-e-l correria, num caminho tranquilo e já

não tão assustador. Olha mais para as pessoas que se

aproximavam dele e, percebe-os um homem e uma

mulher. Chega mais perto. Suas pernas amolecem e

ele cai. Quando olha para perto de si observa duas

sandálias e logo mais duas e, ouve uma voz doce e

suave que diz em coro “meu filho”.

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Boneco de Neve

A neve caía branquinha e todos se sentiam felizes.

Cobria toda a cidade. As crianças brincavam, mas

algumas pelo senso de proteção de seus pais, que

visavam proteger a saúde de seus filhos, apenas

observavam pela janela. O mais velho deu a ideia de

construir um boneco de neve.

Logo, a criançada começou a construção, com baldes,

pazinhas seguia feliz a empreitada. A criança mais

velha somente moldava, organizava seus

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companheiros conforme a idade. Construiu-se a base.

Reuniram-se todos e ficaram a contemplar

carinhosamente a criação. Descansaram. Faziam

planos para o dia seguinte. Cada um viria com uma

peça de roupa para vestir o boneco: um traria

cachecol, outro traria um chapéu velho que o pai não

mais usava, outro tampinha de garrafa descartável

para fazer os olhos e botões da blusa; enfim cada um

procuraria o que trazer para deixá-lo com uma boa

aparência.

A noite cai. A criançada procurou dormir cedo para

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levantar mais cedo ainda e continuar a construção.

Cada uma delas possuía uma paz e satisfação por

participar da criação de tal criaturinha.

As portas se abrem. A neve ainda estava muito

espessa e o frio era muito intenso. Baldinhos,

pazinhas se unem novamente. Continuam seus

ofícios. A segunda parte concluía-se. A cabeça já

estava moldada. Três partes unidas em uma só. A

menorzinha questionava como se colocaria o coração

no boneco, pois ele deveria ser capaz de amar seus

amiguinhos, pois a sua mãe lhe falou que o amor vem

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do coração, e é ele que nos faz ser capaz de amar... Os

braços de galhos eram como se tivessem dedos nas

pontas. Os olhos de tampinhas de garrafas

descartáveis eram azuis. O chapéu velho trazido pelo

garoto ruivo era na verdade uma cartola velha, mas

deixou o boneco como um aspecto de cavalheiro. O

cachecol e os botões foram engenhosamente

dispostos. O nariz teve que ser fabricado. Um pedaço

de papel vermelho feito cone deu um ar de gripado ao

boneco. A boca foi um desafio ao grupo. A

menorzinha fez cara feia da expressão infeliz do

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“boeco”. Não queria ela um risco. Queria uma forma

de uma metade de lua. Ele deveria ter cara de feliz.

Em um zape, as crianças concluíram. Houve uma

grande comemoração. Os gritos de alegria se

sucediam. Era para elas um dos dias mais felizes de

suas vidas.

A escuridão caiu. Eles se recolheram, meio que a

contragosto. Nas janelas, todas vigiavam o boneco,

como se alguém pudesse levá-lo dali. Com certeza

todos sonhariam com o resultado do suor de seus

rostos.

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A solidão da escuridão deu a uma fadinha que passava

por ali a ideia de dar vida ao boneco. Ela perguntou a

ele qual seria seu desejo, ele respondeu que gostaria

de subir o monte mais alto daquela região e ver toda a

cidade e o vale onde ela se localizava, com toda sua

natureza exuberante e os mais longínquos lugares em

que pudesse avistar.

E como num passe de mágica o boneco já podia

andar. Iniciou sua subida, mas antes se despediu da

fada, que se perguntava o porquê dele não querer ser

um garoto... A nevasca que caía não fazia com que

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nosso herói desistisse de sua jornada.

Em poucas horas já estava no mais alto de um monte

que naquela região era o maior. De lá de cima,

admirou as luzes que brilhavam lá embaixo.

Lembrou-se das crianças e seus empenhos para

formá-lo o que era agora. Desejou em sua curta vida

de boneco ser uma gigantesca bola de neve. Pensou

em rolar o monte ganhando assim tamanho e força.

Novamente em seus ouvidos ecoaram os gritos

repetitivos da molecada. Pensou que se de lá de cima

rolasse possivelmente causaria uma avalanche e um

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imenso estrago nas suas casas que no vale estavam

erigidas. Sentia ainda pulsar em seu peito um coração

imaginário que a menorzinha o criara. Batia assim

uma saudade do chão que o acolhera e decidiu-se

eternizar pela alegria oferecida às crianças.

Resolveu voltar ao seu lugar. Na metade do caminho,

um lobo Guará que o acompanhava sem ser percebido

o questionou por que não descia rolando, iria mais

rápido. Justificou o boneco que dessa forma era a

correta, pois se rolasse a muitos machucaria;

principalmente aqueles que dedicaram muito a ele.

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Marcio José de Lima

Em pouco tempo este serzinho absorveu o que de

melhor havia nas pessoas: a preocupação com aqueles

que dedicavam pelo menos um pouco de suas vidas

aos outros, sorrisos, a criatividade, a união, a pureza,

a malícia ingênua, a preocupação com o semelhante;

enfim ele conheceu a pureza do coração das crianças.

Chega novamente àquele lugar a que reconheceu

como sua casa. Durou poucos dias, pois logo chegou a

primavera e com ela os primeiros raios de sol.

Imaginou que sua missão de boneco estava cumprida

e amanhã faria parte das águas que subiriam ao céu e

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Marcio José de Lima

de lá retornaria alegremente em um novo ofício - o de

água - levando vida a todos os lugares até chegar

novamente ao imenso e indescritível mar.

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Marcio José de Lima

Um grito na escuridão

Um grito na escuridão acordou toda a vila. Todos já o

conheciam. João Mauro que era de fora não o

conhecia. Um frio rasgou suas entranhas e o arrepiou

por inteiro. Levantou lentamente devido à escuridão

do seu quarto. Uma espessa névoa tomava todo o

vilarejo. Sair com certeza não o faria, mas a

curiosidade era grande. Dali por diante não dormiu

mais. Várias memórias lhe vinham à cabeça. O

trabalho exaustivo e quase que escravo o fazia

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Marcio José de Lima

trabalhar sem parar. Várias desilusões amorosas se

sucediam como um maldição. Também uma crise

financeira mundial levara todas suas economias. A

depressão há pouco curada era seu único trunfo. E

tudo isso passava em sua frente fazendo-o esquecer

aquele assustador grito. Logo o sol nasceu. João

levanta, lava o rosto em frente a um espelho antigo.

Uma mão lhe toca às costas. Sem nada entender, vira-

se rapidamente. Uma assustadora imagem lhe tolda os

sentidos.

Logo na noite seguinte, um novo visitante da vila é

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Marcio José de Lima

acordado novamente por um grito mais assustador que

da anterior, em uma noite iluminada de lua cheia. Sem

nada entender mira da janela uma figura que vaga a

esmo por inóspitas ruas de paralelepípedo. Aquela

figura lhe parecia conhecida. Podia ser seu amigo

João Mauro que ficara de lhe esperar para fecharem

negócios na cidade e que estranhamente não estava no

hotel lhe aguardando. O homem sai à rua atrás de seu

provável amigo. Devido a este andar vagarosamente

ele o alcança. Ao alcançá-lo ele põe sua mão sobre

seu ombro. Este para. Um breve segundo de silêncio

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se sucede. Sem se encararem o homem que vagava a

esmo solta um horrendo grito. Envolvido pelo medo

do grito o homem retorna ao hotel em um frenesi

tremendo não conseguindo dominar seus sentidos e

movimentos. João Mauro, ninguém mais o viu. O

grito toda noite de lua cheia se sucede, cada vez mais

assustador, porém ninguém mais sumiu daquele

misterioso vilarejo, em que as pessoas que moram ali

juram nunca mais tê-lo ouvido.

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Marcio José de Lima

O tempo...

Um frio corre-lhe a espinha... Aquela ponte do Rio

Coutinho nunca fora tão extensa. Aqueles olhos

brancos. Aquela figura toda coberta de barro, fita-lhe

à distância profundamente seus atentos olhos que

estão alertas ao brilho da luz alta dos faróis do carro

que vem na outra pista. Ele se aproxima -

aparentemente lento - em sua direção. O tempo passa

mais lentamente ainda. A luz de seu carro é baixada

para não ofuscar a visão do motorista. A figura ao

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meio da ponte desaparece... Sua razão não entende.

Mas não ousa perguntar neste momento. Qual seria a

pergunta? Qual seria a resposta? Fala lentamente à

esposa que lhe faz companhia “Para onde foi aquela

figura?” A mesma com voz quase sumida lhe

responde “Não sei! Você também viu?” O silêncio

impera. A resposta não vem...

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Marcio José de Lima

Era, com certeza, um lobisomem!

Vi tio João se debatendo sozinho no caminho. Pensei,

de novo tio João bebeu... Mirava novamente, e, ele

sumiu no mato. Lutava com alguma coisa, todavia eu

não enxergava nada. Nenhum zunido, grunhido, latido

ou qualquer coisa assim.

Era tardinha e a penumbra começava a tomar conta.

Eu e meus irmãos rimos muito da cena. Tio João,

sempre brincalhão, pensava. Logo minha mãe saiu à

porta. E, riu-se, achou engraçado. Todavia, olhei para

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Marcio José de Lima

minha mãe alguns segundos depois, e ela havia se

empalidecido. O sorriso jã não saiu mais. E, brilhou

em seus olhos um medo de outrora - de quando eu era

criança - devido aos sustos pela criação dos filhos...

Silenciou-se, rezou um pouco - creio eu, pois sua boa

mexia. As crianças achavam aquilo um barato e até

chegaram a rolar no chão de tanto rir... Minha mãe

continuava a mexer com a boca como se

cochichasse... Tio João na peleja, agora se rolava pelo

chão. Todo despenteado. Isso durava mais ou menos

uns quatro minutos.

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Marcio José de Lima

Meu tio gritou. Todos se calaram. Minha mãe se

benzeu... Meu tio olhou para o mato, como que

esperando por algo. E, olhando para lá, foi descendo a

rua. Aproximou-se de nós. Todo sujo. Esperou alguns

segundos. Na rua, havia só nós naquele momento.

O vício do tio, aparentemente, ninguém testemunhara

tal situação de fraqueza sua - logo ele que, apesar

disso, era um herói para criançada, por suas histórias

sempre cheias de vida e de vitórias... ele nunca

perdedor sempre conseguia superar de cabeça erguida

os obstáculos que a via lhe propunha... - agradeci aos

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Marcio José de Lima

céus por isso.

O tio olha para nós e fala: "Vocês viram?" Minha mãe

e eu respondemos: "O quê?" Ele se aproximou de meu

ouvido, com um bafo quente, sem odor nenhum de

bebida alcoólica, com um flamejar nos olhos pelo

brilho intenso da lua cheia refletida neles, me disse

"Era, com certeza, um lobisomem!"

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Marcio José de Lima

A lenda

Na clareira uma alegre festa à luz dos lampiões.

Amantes se embalam ao som do violão.

Noite de lua cheia.

Um moço com olhar apaixonado mira uma linda

moça de olhos azuis que acompanha a só os balanços

de uma noite festiva.

A moça ao aproximar da meia-noite, olha a escuridão

e corre sorrateiramente para a mata.

O moço atrás sai com passos ligeiros a se preocupar

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com a forasteira que ao primeiro olhar se apaixonara.

No escuro, um barulho... uma fera. Ao ver dor moço,

atacara sua pretendida.

Sem nada entender e, a pronto, saca de sua arma.

A fera da moça se aproxima, olham-se. A moça chora

silenciosamente e como as águas do Amazonas, nesta

noite de lua cheia, brilharam suas lágrimas.

O moço no vão das árvores, atentamente, com receio

de provocar de vez a ira do monstro e ele atacar sua

vítima, observa e espera o momento certo.

A luz da lua a brilhar, mais resplandecente do que

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Marcio José de Lima

nunca, brilha no Gigante Amazonas oferecendo um

espetáculo sem igual. Para o moço, aquele momento

era apavorante; para natureza, algo incomum...

A vida pede socorro; o amor intenta vencer

preconceitos, o ódio de outrora, o ciúme que destrói, e

a maldição que aprisionou um amor em segredo que

revoltava a todos.

Um pedido insano da separação, justificativa

impensada-insensata: o pobre e o rico... inimigos de

sangue... inimigos de ideias... inimigos daqueles que

padeciam... talvez uma provável esperança da paz...

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mas que não era desejada.

A dor aprisionou, mas o Amor ainda resiste...

O valente moço atônito, naquele momento que

parecia eterno, solta o fogo de sua arma, que como

vaga-lumes, alcança insanamente a Suçuarana que cai

ao chão.

A moça com o desespero dos amantes enlouquece aos

prantos. Desmorona-se em lágrimas ao lado da fera

que padece.

A fera, agora quase homem, despede-se da moça com

olhar suplicante. A moça segue para o rio... olha para

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trás... vê seu amado em seu último suspiro e, já não

mais caminha... levita-se nas asas da misteriosa Mãe-

d’água, meio ser fantástico, meio mulher... despede-

se.

Do valente moço, ninguém mais sabe nada.

Mas, muito se fala da viúva-moça que às noites de

lua-cheia chora em águas límpidas a falta de seu

amado.

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Marcio José de Lima

O Boitatá...

Olá meus amigos! Eu não sou homem de contar

história à toa não. Sou trabalhador que valoriza o

tempo, e sei o quanto ele é precioso, embora saiba o

quanto somos sedentos de uma boa conversa à moda

antiga com todo respeito e bem contada... Sendo

assim, vou contar um causo para vosmecês que não é

que eu queira pôr medo em ninguém, mas aconteceu

de verdade, tá aqui cumpádi Gaudôncio que não me

deixa mentir.

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Marcio José de Lima

Então, vamos ao que tenho que contar... Era numa

tarde de quinta-feira da semana santa, compadre

Beraldino, homem bravo domador de cavalo, não de

muita corpulência, mas de uma força sem igual, de

peleja dura, mão calejada que nem que eu, me

convidou pra ir à Chácara dele, para mor de conhecê-

la e ver o que tinha feito por lá. Em um momento meu

cumpadi ficou meio que amuado, disfarçado, como

alguém que tem uma coisa muito importante pra

contar... Eu que sou homem vivido, que já vi muita

coisa nessa vida, saquei em um momento que era

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batata o que compadi tinha a me assuntar.

E, pela expressão dele não era pouca coisa não. Num

repente ele me confessou que tinha conseguido

domar um Boitatá... E eu precisava ajudá-lo com a

fera... por saber de minhas empreitadas com a besta.

Mas confesso que nesses assuntos de domar o danado

eu não era muito bom. A curiosidade acendeu...

Um silêncio caiu juntinho c'a noite. Confesso que por

já ter enfrentado o dito e não ter obtido êxito, fiquei fã

de meu cumpádi. Ele, como homem que já sofreu

muito – ao meu ver – silenciou como que já abatido

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Marcio José de Lima

pelo ocorrido... E, eu continuei...

- Ora cumpádi, este bicho me surpreendeu quando eu

trabaiava à noite numa serraria, como vigia. Era eu e

mais outro amigo de profissão que tinha que aluitar a

noite inteira espantando a assombração com medo que

ele incendiasse toda madeirama lá guardada. Te conto,

era uma cobra de fogo que pilampeava serpenteando

uns quatrocentos metros para cima e vinha mais ou

menos uns sessenta metros de onde nóis tava.

(Pausa... o locutor olhava ao longe tentando lembrar o

que ocorreu com olhar assustado meio que ofegante,

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Marcio José de Lima

continuou)

- Cumpádi, vampiro se mata com estaca de madeira

no coração. Lobisomem com bala de prata, também

no coração... Mas Boitatá não... meu filho pesquisou,

disse que na nossa história ele foi já visto desd'o

descobrimento do Brasil pelo Padre Anchieta e vem

assombrando até hoje... sem que se descobrisse um

jeito de acabar com o dito cujo – Boitatá. Mas, creio

que pelo que venho assuntando com o povo... deve ser

com muita força e fé que se derrota esse bicho...

Mesmo que muitos digam que ele tem até serventia,

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Marcio José de Lima

que é proteger as florestas... era o que desconfiava

quando cuidava da serraria, até achava que era

castigo... mas na verdade – não sei bem!

(Pausa)

- Mas, como tava falando – por isso que te invejo meu

cumpádi!

E a conversa rolou mais umas duas horas sobre a

temida assombração... O narrador, continuou...

- Numa das empreitadas, meu amigo de trabalho tinha

me contado que um amigo dele tinha capturado um

Boitatá. Amarrado ele se debateu a noite inteira. No

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dia seguinte era um homem, assim que nem que nós...

de carne e osso. Muita vergonha ele ficou, achando

que era uma armação, descobriu que se tratava de um

amante de uma cumádi com o cumpádi dela... É,

dizem que tem Boitatá que nasce daí... se não me

engano... não me alembro bem...

Houve muito riso nesse momento. Quebrando-se um

pouco da tensão.

Pensei: “Se meu cumpádi me convidou para conhecer

ele, então homem que não havia de ser aquele

Boitatá...”

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Marcio José de Lima

O sábado chegou... Convidei cumpádi Gaudôncio e

meu afilhado, já quase hominho, para ir junto à

chácara. Lógico não falei nada pra eles. Queria ver a

cara deles quando vissem o Boitatá, pois sempre

duvidaram de minhas histórias... Só não tinha bem

certeza se era da mesma forma que eles conheciam.

Uma cobra de fogo. Mas acho que de dia não ia

aparecer muito bem o fogo...

Chegamos lá. Compadre Beraldino estava laçando.

Víamos de longe o campo em que era praticado o tiro

de laço... Compadre Beraldino nos enxergou e se

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dirigiu a cavalo nos receber na porteira, faceiro que

ficou. Comentou da laçada, perguntou se lançávamos,

e todos dissemos que não. Sem cerimônia, nos

perguntou se tínhamos vindo para passar a noite por lá

para pescaria e pra roda de pinhão com chimarrão e

uma fritada de tilápia no disco e reforçou o convite

pra gente pernoitar por lá... Tínhamos preparado o

básico para passar a noite por lá... porque não

estávamos muito convictos que passaríamos a noite na

chácara... Mas pra pescaria estava todo material

preparado... sempre carregava minha caixa de pesca

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no carro...

Depois de um dia bem agitado no campo a noite

principiava... Cumpádi Beraldino se lembrou do

bicho. Como que uma certa preocupação assolou-o.

- Ah cumpádi – falou ele. Espero que vocês não

tenham medo. São homens vividos, o teu guri

cumpádi já se recolheu, restando só nós adulto por

aqui. Agora posso apresentar a vocês meu Boitatá.

Olhou-nos com olhar de uma certa malícia... talvez

por exibir sua vaidade...

Compadre Gaudôncio não entendeu muito o que

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Marcio José de Lima

estava ocorrendo, pois eu não havia comentado... Riu

discretamente. Mas não falou nada, achando que se

tratava de uma brincadeira... Confesso, eu estava um

pouco ansioso e só. Não tava muito espantado, pois

conhecia a ousadia do cumpádi... e ele chamou...

- Vem cá Tatá!

Já tinha dado até nome pro bicho que coragem manter

um certo afeto pela assombração, tinha domado muito

bem ela. Meu coração gelou. No meio da mata escura

só vi dois olhos muito brilhantes e arregalados a se

mexerem em nossa direção. Não sabia se aguentaria...

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Marcio José de Lima

Mas fiquei ali firme. Não olhei para os meus

compadres. Só mirava, arrepiado, a mata. Minha

história correu frente aos meus olhos. Quanta luta

travada com aquela figura lendária – para muitos que

não a conhecia como eu. E agora ela 105

•estava ali na minha frente. Domada, mas não sei se

menos perigosa... Eis que se aproxima fazendo um

certo barulho na mata. Vejo dois pares de chifres,

como narrado por alguns povos indígenas, o que o

tornava mais assustador ainda. Imaginei neste

momento como o minotauro... Como explicava esses

dias na tevê – metade homem metade touro... Era só

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Marcio José de Lima

imaginação esta figura – lógico que não era assim...

Se tratava do Boitatá. É realmente tinha cabeça de

vaca ou de touro, sei lá, só sei que tinha uma mancha

branca muito luminosa no centro da cabeça em forma

de nuvem. Tonto, tentei falar... Mas não consegui. O

tempo não passava, parecia tudo congelado. O que

demorava quase uma eternidade ocorrer o que

ocorreu... Mas aconteceu... Saiu da mata um boi. Sim

era um boi! Corpulento, se aproxima de compadre

Beraldino, que põe sua mão sobre ele e ele para.

Balançando a cabeça em sinal de aprovação penso: “

realmente, dessa forma ainda eu não tinha ouvido

falar do Boitatá se manifestar quando domado

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Marcio José de Lima

Eu e eu mesmo

Uma manhã há algum tempo atrás em que o sol

iluminava as árvores, as casas, as pessoas e tudo mais.

Aconteceu-me algo inesperado e que muitos teriam

por mentira... mas às vezes até eu penso se isso foi

real ou imaginário. Mas... vamos ao acontecido.

Encontrei-me por acaso... sim era eu mesmo... só que

alguns anos mais velho. Olhei-me para mim mesmo

(se é que existe tal construção...) de forma surpresa

(aliás confesso tentei fazer heroicamente parecer tudo

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Marcio José de Lima

normal). Nós, meros mortais resistimos acreditar em

absurdos... foi o que ocorreu... disse para mim “não

está acontecendo” e isso me ajudou a não acreditar

(pelo menos para aliviar a tensão e me enganar que

não estava acreditando). Portanto... para mim isso não

estava existindo... então relaxei e pude me observar

com um pouco mais de idade...

Eu-futuro estava bem. Quando este fato se sucedeu,

eu tinha uns 18 anos e meu eu-futuro, digamos que

estaria com uns 37. Tinha a mesma fisionomia,

estatura, um pouco mais de peso, cabelos escuros...

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Marcio José de Lima

Olhamos-nos. Não nos falamos nada. Creio que ele

deve ter estranhado como eu mesmo estranhei tal fato

(mas acho que meu eu futuro já havia ignorado o

passado – tudo bem, pensei). Todavia... agi como se

tivesse acostumado a sempre me encontrar por aí... ele

também, talvez estivesse... Para não me constranger

mais do que já estava constrangido, e quem sabe

constrangendo. Afastei- me. Olhei-me um pouco

mais... desejei-me silenciosamente boa sorte. E me

distanciei. Hoje tenho a idade aproximada em que me

vi com 18 anos. Só uma coisa não bateu, deve ter sido

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Marcio José de Lima

algum defeitinho na linha do tempo, hoje sou calvo.

Coisas que só o tempo mesmo explica, um dia vou

entender. Quem sabe!?

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Marcio José de Lima

Leão (desertos...)

Vi no horizonte tênue luz.

Ao longo do caminho paira a escuridão.

Sôfrego, entristecido, caminha um leão.

Olha o deserto.

Vazio ou cheio, não importa.

Bate a fome, enrobustece-se seu desespero.

Sonha solitária figura; sacode sua juba; régia

imposição.

Embora fera, se desespera...

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Marcio José de Lima

Antes água farta, hoje areia e pó.

Sente-se só...

O sol, hoje companheiro insólito, rega miragens,

devaneios...

Cai, rola em frenesi... Inebria-se...

Desenha em nuvens arenosas majestosa visão...

Felino, ontem tão forte... Hoje tão frágil criatura.

Sabe que a natureza, implacável mãe, fez-te grande,

faminto, inteligente.

Parece que em teus olhos correm rios de lava,

impunha-te pelo seu fulgor.

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Marcio José de Lima

Por isso, não se rende à dor.

Chora, cai, bravamente resiste.

Insiste...

Sonhava com dias gloriosos...

Hoje, pesa-te a juba...

Reina, cambaleante, nas areias que cintilam...

Orgulhosamente... tomba com sua coroa...

Sobe ao céu um rei...

Desce à terra um anjo...

Chora, em nuvens ao longe, sábia natureza.

Chega tarde o milagre de quem a todos fez.

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Marcio José de Lima

Com ele renascem as pequenas criaturas...

A vida que se renova, canta a quem piedosamente, age

e embeleza as areias que em flor relutam pela eterna

ânsia de ver-viver.

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Marcio José de Lima

O Mercador da Liberdade

Ela estava ali imóvel. Muito bem embalada, com o

preço à altura do pescoço. Um slogan bem atrativo em

sua camiseta. A embalagem valoriza o produto. A

aparência era tudo. Estava limpinha. O perfume era

bom, uma fragrância agradável que não irritaria o

cliente e quem não passaria despercebida. O produto

bom tem que ter um cheiro agradável. Ao seu lado

estava um outro produto sendo exposto, tão bem

produzido quanto ao primeiro, com todas as

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Marcio José de Lima

características de aparência do lote, mas diferia-se

pelo gênero.

Vários consumidores passavam pela vitrine com

olhares cobiçosos. Uma boa olhada nos produtos,

outra nos preços e com sorrisos decepcionados

seguiam. Todavia, permanecia em seus olhares uma

indisfarçável cobiça, e mais um sonho a ser realizado.

Como o mercado estava aquecido não demoraria

muito a serem arrematadas, essas ricas joias. Eles

certamente seriam vendidos! Mas, diferente de tudo

que a loja possuía, nesses dois espécimes havia

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Marcio José de Lima

consigo a opção – antes de estarem ali - de aceitarem

ou não serem vendidos... Estavam ali usufruindo o

resultado de uma das coisas mais belas que lhes havia

sido entregue, o livre arbítrio.

Quem desperdiçaria tal negócio? Produtos de

primeira. Por isso não duraram mais que – para eles

quase que infinitos – quinze minutos para serem

vendidos, logo após a exposição. O negócio foi bom

para o proprietário da loja. Ambos foram vendidos

pelo preço de etiqueta. Sem pechincha, sem barganha.

O comprador só não tinha visto os olhos dos dois,

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pois estavam vendados.

Ao chegar em sua casa o comprador, com toda

paciência que os anos foram responsáveis de

presenteá-lo, tirou as vendas, desembalou-os e os

recepcionou com fraterno abraço. Deu-lhes alimentos,

ofereceu-lhes abrigo – caso desejassem.

Ambos estavam a sua frente atônitos, nem

imaginavam - por não terem recebido em suas vidas -

a razão de tamanho afeto. Resolveram nada indagar.

Pois no contrato de compra e venda não estavam as

opções de emitir juízo, nem indagar. O comprador

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Marcio José de Lima

falou: “paguei o preço por vocês e a partir de hoje

vocês estão livres de suas amarras... vocês não são

mais produtos, poderão emitir opinião e gozar do

prazer da contradição, além disso poderão falar,

reclamar, enxergar um mundo novo, amar, chorar e

fazer tudo que desejarem... o limite será o infinito que

se aponta aos seus horizontes. Sigam seus caminhos –

se isso for de seus desígnios – sigam seus

caminhos...”.

Sem nada mais a dizer, somente segurava um sorriso

tendo sua voz presa pela emoção, lágrimas corriam

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Marcio José de Lima

pela sua face.

Ambos olharam fixamente o bondoso homem, sem

ainda nada entender. Saíram lentamente à rua...

Olharam para a humilde casa onde residia o

comprador, a qual situava-se em uma área central e

possuía um enorme terreno. À frente da casa estava

um homem recolhendo uma placa de “vende-se”, era

o homem da imobiliária.

O casal ainda continuou a caminhar lentamente na

calçada, esboçaram um sorriso, esboçaram um

entristecer e entraram sem pudores em uma outra loja.

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Marcio José de Lima

Ofereceram-se novamente a uma nova promoção.

Mas agora tudo seria diferente, pediram para que seus

olhos não fossem vendados.

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Marcio José de Lima

Um homem caído no chão

Há um homem caído no chão. Quem se importa? Bala

ao peito. Sangue pintando a calçada. Um sonho

estendido no chão, uma esperança... Em casa filhos

riem inocentes. Um sonho desenha no piso sua

silhueta. Mas quem se importa? Todos passam

apressados, resignam-se com a lentidão do trânsito,

com a ignóbil figura, raquítica, de mãos

encouraçadas, de mochilas nas costas, com sua

térmica quebrada, marmita com um resto de comida

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Marcio José de Lima

dando nojo nos transeuntes. Envergonha-lhes. O

ônibus vomita pessoas... Aos chutes o corpo anda.

Que culpa tinha este cristão? Todos atônitos com seus

anseios bradam “liberem a rua!” “já é hora de minha

novela.” “Logo começa o jornal.” Todos seguem... A

chuva cai e lava o sangue... Lava a discreta cal que

ainda permeia nas mãos de nosso pitoresco herói. O

corpo está só. Jogado à rua em frente à igreja.

Ouvem-se primeiras cantigas cantadas pelas

beatinhas, pontualíssimas às sete horas da noite... O

sino toca... A plateia canta animada o canto de

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Marcio José de Lima

acolhida. Uma criança desobedece a mãe e sai

correndo na chuva levando em suas pequeninas mãos

um cartãozinho com o retrato de Nossa Senhora do

Guadalupe. Ela para tristemente em frente àquele

moribundo corpo, deposita em suas mãos a santinha.

A mãe preocupada com a filha, dissipa-lhe qualquer

vestígio de realidade, grita quase que desesperada

agarrando a mão da pequenina “venha aqui filha o

titio já sara!” A criança olhando para trás joga um

singelo beijo àquela figura. A celebração continua

calorosa.

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Marcio José de Lima

Mais um Cristo caído na rua

À meia-noite badala o sino da matriz... Olho ao redor

e nada vejo de novo. Somente uma árvore a balançar e

nela um olhar atento de uma coruja, é o que percebo

iluminado pelo holofote. Confesso que não tenho

muito medo. Mas, alguma coisa até me deixa um

pouco assustado. O olho começa a ficar pesado. Sei

que não devo dormir, pois é isso que a minha

profissão exige, sou vigilante. Olho as casas ao redor.

Estou em uma guarita, atento aos monitores da

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Marcio José de Lima

vigilância. Vejo um casal na praça em frente a se

agarrarem, coisas da juventude. Beijos calientes. Um

olhar fixo – um para o outro – olham desconfiados ao

redor, o rapaz olha seu relógio e se mandam.

É alta noite. Está na hora de se retirarem. Apanharem

seus transportes.

Boa noite pombinhos! Pensei. Agora ficamos, eu, a

coruja, os monitores, as casas vazias pelo fato de ser

feriado e a maioria das pessoas terem ido viajar, a

praça vazia, além de muito sono. Mas, não posso

dormir!

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Marcio José de Lima

Vejo alguém se aproximar. Ele fica a olhar a loja ao

lado da mercearia, vizinha de onde trabalho. Pega

uma pedra e arremessa ao vidro. De primeira vez ele

não quebra. Aperto o botão do alarme o qual soa. O

homem não se intimida. Joga nova pedra e o vidro se

desmancha. Não trabalho armado. Tenho que acionar

a polícia, mas creio que não dará tempo. Por isso,

deixo o meu posto. Tranco a porta ao sair para

segurança do local. Grito ao ladrão. Ele com seus

olhos assustados, e se sentindo acuado, só teve uma

reação. Tirou de uma pistola velha, pelo visto era uma

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Marcio José de Lima

22 e veio em minha direção com sangue nos olhos,

atirou-me. O gosto do sangue foi imediato. Um calor

invadiu minha alma...

E, em poucos milésimos de segundo pude ver a

amedrontada alma daquele algoz que se incendiava

num mar de desespero – em um inferno de uma vida

inteira. Era o mundo em suas costas... Eu aqui, em

meu humilde trabalho, vítima de toda uma sociedade

desajustada, era visto assim... Mais um Cristo caído

nas ruas...

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Marcio José de Lima

Perdido em Curitiba

Um calor toma lentamente conta de meus ossos

congelados. A noite foi fria e dolorida. Lembro-me

que antes de adormecer cachorros vieram virar o lixo

da esquina, brigaram por causa de algo e foram

embora. Minha cabeça está latejando, meus ossos

doem, o corpo calejado de maus tratos está ficando

velho e já não suporta a calçado dura. O corpo

reclama, criou vida própria.

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Marcio José de Lima

Sento-me e me reencosto na parede da lanchonete,

pessoas apressadas passam por mim sem me notar,

vão preocupadas com suas próprias dores, são tão

iguais em seu caminhar, em seus toques toques. Mas

há diferenças. Observo-as atentamente, algumas falam

ao telefone, umas de maneira irritadas, outras de

maneira amorosa. Algumas pessoas combinam com a

paisagem cinzenta do centro de Curitiba, parecem

locomotivas com seus chaminés, vestem escuro ou

roupas surradas e fedem a cigarro. Outras (são

poucas) parecem anjos, possuem cheiro gostoso de

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Marcio José de Lima

perfume, têm cheiro de pele limpa. E os cheiros se

misturam ao cheiro de pastel quentinho, de café, de

pão francês. Minha barriga ronca, preciso comer.

Ensaio meu olhar mais suplicante, mais faminto o

direciono à multidão.

Dentre muitos, uma senhora bem vestida, retira de um

pacote de papel pardo um pão, que pelo cheiro estava

fresquinho, e com certo receio atira-o para mim. Eu o

devoro em três mordidas, estou faminto. Sinto uma

coceirinha insistente atrás do pescoço, deve ser sarna,

estou cheirando muito mal.

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Marcio José de Lima

Ali do meu canto em meio a um trapo, deito-me na

busca de algum conforto. Alguém me cutuca as pernas

com um cabo de vassoura.

- O rapaz vá procurar outro canto, rapidinho!

A lanchonete vai abrir, não há lugar para um ser como

eu. É hora de começar minhas andanças.

Minhas pernas estão dormentes, espreguiço-me para

ver se resolve. Coço-me. São tantos lugares que me

coçam e dou início ao meu dia sem propósito.

Caminho olhando para o chão, com a desculpa de que

eu possa encontrar algo que sirva, mas na verdade não

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Marcio José de Lima

tenho coragem de levantar meus olhos, tenho medo da

rejeição, embora ela seja minha irmã. Sou um ser

machucado, não quero que me façam sangrar.

De cabeça baixa, posso passar por entre as pessoas,

elas abrem um espaço, elas também têm medo de

minha reação, enojam-se do meu cheiro (estou me

iludindo, acho que não me veem e o meu cheiro se

confunde com tantos outros).

Eis que ouço:

- Ei, você, vem aqui!

Olho em direção ao chamado e desconfiado, paro.

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Marcio José de Lima

- Você, vem cá!

Era um homem de camisa estampada, bem retrô, bem

menor que a barriga que cobria, calça social e sapato

surrado. A barba grisalha cobria o contorno dos lábios

e em sua mão havia metade de uma coxinha.

- Vem cá rapaz, por que o medo?

Exitei um pouco, mas fui chegando devagar, deu-me a

metade da coxinha e resmungou.

- Muita engraxada! E seguiu seu caminho.

As pessoas são tão boas comigo, sempre tenho o que

comer. E fato que não querem conversa comigo. A

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Marcio José de Lima

ternura que eu sonho em ver no olhar é substituída por

medo, nojo ou qualquer coisa parecida com isso, mas

minha barriga vazia sempre recebe um afago.

Entro no Passeio Público, bebo um pouco de água.

Sento-me à sombra de uma árvore e tenho um

momento de paz. Sinto-me seguro aqui apesar de toda

a companhia que me cerca. Mulheres enrugadas, com

beiços lambuzados de batom vermelho, cheirando

perfume forte desfilam de um lado para outro, sabem

que são observadas por olhos fundos dos malandros.

Sorrio por dentro, o bicho homem e seus instintos, ele

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Marcio José de Lima

os segue selvagem, sem amor, sem consideração.

Necessidade saciada, dinheiro sujo na mão, nem te

ligo.

É engraçado isso tudo. Fico horas ali a observar,

passam menores fedendo a tíner, olhos esbugalhados

rubros. Passam casais com crianças ansiosas para

verem os bichos. E eu ali feito tapete, camuflado entre

a árvore e a grama, ninguém me vê.

Começo a ficar enebriado pelo movimento, uma

dormência toma conta do meu corpo magro, a vida de

rua não tem nada de bom, é entendiante como

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Marcio José de Lima

qualquer outra vida. É triste e tem sabor amargo, é

mais solitária que qualquer ilha do mundo.

Minhas pálpebras começam a se fechar, consigo ouvir

pessoas que de longe vêm se aproximando. De olhos

fechados percebo que elas param perto de mim. Sinto

a respiração do ser, seu hálito de balas de morango.

Afagam minha cabeça.

- Coitado, tão sozinho.

Alguém finalmente é terno comigo, não quero abrir

meus olhos, tenho medo de estar sonhando.- Vou te

levar para casa.

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Marcio José de Lima

Meu Deus, vou conseguir uma cama quentinha, será

meu grande dia???

Duas pequenas mãos envolvem meu corpo magro e

me levantam do chão, sinto o calor do ser que me

afaga em seu colo e que me carrega para um destino

talvez, mais aconchegante.

No caminho enxergo seres maltrapilhos, homens e

mulheres rotos, famintos cheirando a urina. Sinto

pena desses seres. Eles sim, levam uma vida de cão e

ninguém vai levá-los para casa. (Jaqueline Andrade

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Marcio José de Lima

Borges1)

1 Professora Guarapuavana da Rede Estadual de Ensino do Paraná, formada em Letras-Português-Inglês e suas Literaturas.

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Marcio José de Lima

Borboleta

Pobre moça que padece de sofrer de ingratidão.

Embora alegre, sei que segue na correria do mundão.

Não teve tempo de escrever, nem para agradecer o

milagre que agora narro, tão alegre de prazer.

Aconteceu em uma clara tarde, os pássaros a cantar,

eis que passava bela; encantando até o mar. Assobiava

seus dourados anos, a vida a curtir; na desfé sempre

vivia, não se preocupava com o porvir. Era estudo,

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Marcio José de Lima

casa, amigos, festas, bem próprio da juventude, era

como se eterna fosse, vivia sempre livre pela cidade.

Seus velhos esquecia, não lembrando mais da

infância. Fazia planos para o amanhã, condizente com

a ganância.

Pensou em tantos mundos, em tantas opções, tinha

tempo para tudo, mas esquecera das orações...

Retomando àquela tarde da qual eu lhes falava;

infelicidade nunca é certa; mas aconteceu onde ela

estava. Foi um carro desgarrado que a pegou por um

acaso – tempo depois fiquei sabendo com detalhes

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Marcio José de Lima

todo o caso... A tristeza habitou seus dias a partir desta

tarde. Como uma chama ardeu sua alma, com a ação

de um ébrio, fraco, covarde...

Vários dias no hospital, a recuperar-se do ocorrido,

era a frieza que fazia seu vigor ser corroído, que era

dia a dia semeado da saudade de seus passos. Que ia

pouco a pouco deglutindo a alegria de seus traços...

E o tempo foi passando, e o tempo fez-se amigo,

oportunizou ficar mais com seus e também mais

consigo...

Conhecendo muito mais, conheceu o que não

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Marcio José de Lima

conhecia até. Olhando as crianças que brincavam em

seus risos, encontrou-se com a fé... Quis buscar saber

mais, donde vinha a esperança prometida há tanto

tempo por um Deus que se fez criança...

Os dias se passavam, em sua frente a natureza, era

rica em sua composição, diversificada em beleza.

“Se o Pai faz muitos milagres, por que em mim um

não faria?” Decidiu então pedir, ao Grande Deus,

todos os dias... Era busca incessante, oração,

fisioterapia. Buscou apoio também nos braços da

Virgem Maria...

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Marcio José de Lima

Eis que chego de onde parti, da minha humilde

narração, pois ponho os meus versos a traduzir um

privilegiado coração...

Eis que à sua frente passa uma linda borboleta, bate as

asas intercalando cores preta e violeta...

Dá nela uma vontade de correr ao observar lindo

inseto, que celebra a vida em plenitude em seu viver

tão modesto...

Eis que uma perna se mexe, a outra a seguir, com os

braços se apoia, com seu corpo a erigir...

O milagre se opera, desde então começa a andar,

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Marcio José de Lima

recupera como antes, sua beleza como o mar...

Os dias se sucedem, os amigos se reaproximam, se

afasta pouco a pouco, dos que de coração a amam...

dos quais quando está triste sempre a reanimam.

Na correria do dia a dia, esquece-se de orar.

Agradecer é parar, e parar não quer pensar...

De braços abertos ficaram família, Deus e Maria. Eles

não querem o mal da moça, e cada um deles diz “te

amo, siga em frente minha filha!”.

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Marcio José de Lima

O Achado Misterioso

Era um dia como qualquer um outro. Juvenal, um

jovem catador de recicláveis, entoava uma melodia

aos assobios quando avistou uma mala. Era uma linda

mala. Olhou para os lados para tentar avistar se havia

alguém que a reclamaria. Ninguém aparecia naquele

beco, eram sete horas da manhã. Pensou em ficar

esperando até que o dono aparecesse. Colocou a mala

em seu carrinho, escondeu-a. Lembrou-se de ver quais

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Marcio José de Lima

eram os detalhes dela para ver se a pessoa que

aparecesse reclamá-la saberia descrevê-la. Daí sim a

devolveria. Juntou o reciclável do beco e nada. As

janelas se abriam. As pessoas punham as roupas nos

varais. As chaminés cuspiam fumaça, saíam pais para

levarem suas crianças à escola. Uma senhora que saía

muito cedo caminhar estava a voltar de sua matinal

caminhada. Juvenal disfarçava e ficava a esperar... E

nada... Nove horas da manhã. O pobre catador

aguardava... Sua barriga roncava. Seu pensamento

neste momento era de deixar a mala ali e seu dono

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que voltasse buscá-la. Mas, será que outra pessoa, que

não seu dono, a encontraria. Enfim, deixá-la não.

Resolveu aguardar.

•Dona Jurubeba sai à janela e estranha a inusitada

permanência do homem da reciclagem mais do que os

quinze minutos habituais os quais demorava para

fazer a coleta. Mas, mesmo assim ela se recolhe.

Juvenal se incomoda e, ninguém... Pensa, ninguém

mesmo vem buscá-la. Resolve ficar sentado na praça

à frente do beco e aguardar o descuidado que deixara

uma linda mala ali a esmo. Olho fixo e um senhor se

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aproxima. Distinta pessoa, ao ver do Juvenal, muito

bem vestida, com um impecável terno. Deve ser ele o

proprietário, pensou o preocupado Juvenal. Bateu à

porta da mulher do número 18 e conversou

ligeiramente saindo com uma caixa pequena embaixo

do braço, que após passar perto do nosso herói,

descobriu uma caixa com xícaras pelo desenho que

tinha na mesma. Cumprimentou o simpático senhor e

este foi embora. Concluiu que não era o dono. Quem

deixaria ali aquela maleta? Quem voltaria para

reclamá-la? Será que alguém saberia dizer alguma

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coisa a respeito. Em quem confiar? Como perguntaria

às pessoas? Faltavam ideias ao homem que cuidava

tão bem do lixo. Até que chegasse a resposta, resolveu

comer alguma coisa. Trazia em sua sacola um pedaço

de pão e uma garrafa de refrigerante com chá dentro.

Comeu, a cada mordida se preocupava quando iria

sair dali. O lanche acabou e ainda nada. Ninguém

aparecia para levar a mala. Pensou em jogar fora e fim

do problema. “Mas que ideia a minha, que falta de

consideração com as pessoas” refletiu nosso honesto

homem. Faltava-lhe conhecimento. A quem entregar a

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mala? O medo passava-lhe pelos nervos como um

choque a lhe arrepiar. “Por que medo?” Decidiu ver

melhor a mala. Chacoalhou-a. Parecia haver algo lá

dentro que pareciam papéis. Achou que podia ser

dinheiro. Por um momento, sentiu-se feliz. Ajudar

alguém. Talvez a pessoa que perdeu o dinheiro

voltasse para buscá-lo. Certamente, o pagamento do

mês. Pensou de pronto: as crianças em casa à espera

do pai coma compra do mês, a esposa pronta para

cumprir suas obrigações... “Que prazer ajudar

alguém”, devaneava Juvenal. A tarde vem e a sombra

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já não conseguia impedir os ardentes raios solares que

queimavam a pele escura do esforçado agente

ecológico. Este a imaginar a chegada do homem que

esquecera ou perdera o dinheiro. “Será mesmo que é

dinheiro?” Interrogou-se.

•Sentado quase o dia todo, poucas pessoas haviam

notado nosso reflexivo homem. Os pássaros lhe

faziam companhia. Ele ficava a indagar a eles, em

pensamento, se sabiam de quem era aquela bendita

mala. Decidiu. Em um lapso de pensamento decidiu

pela libertação. Ver o que havia na mala. O coração

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quase lhe sai pela boca. Palpitava-lhe que seria

confundido com um ladrão, um bandido. Mas

precisava abrir e ver se havia ali alguma pista que

levasse ao seu irresponsável dono. Agora o suor

escorria-lhe ao rosto, lavava-lhe a alma, talvez fosse o

momento... Nunca imaginou que partiria daquela

forma. “Não, decididamente, não! Não vou morrer!”

Mesmo que seu coração lhe falasse o contrário. Não

tinha sentido tal sensação até aquele momento. Mas...

a curiosidade era maior e pensou “Já que vou morrer

quero saber o que vai me levar!” A mala olhava quase

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Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação

Marcio José de Lima

que sorridente àquele infeliz. Justiça seja feita, por

que se preocupar tanto com um ser tão ignóbil? Uma

pessoa que deixava uma ma- leta em qualquer lugar pode

ter feito propositalmente, talvez um descuido ou até

mesmo para se desfazer dela. Qual destas indagações seria

a correta? Filosofava Juvenal. A emoção, a curiosidade, o

medo, a sublimação... Nunca havia refletido tanto. Nunca

pensara tanto para encontrar uma resposta. Seu coração

nunca sentira tanta emoção. A preocupação era com

outrem e, nem ao mesmo o conhecia. Um desconhecido

nunca o influenciara desta forma. A preocupação com

outra pessoa se fazia clara ao nosso paciente catador.

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Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação

Marcio José de Lima

Sempre gostou do que fazia. Não sabia bem definir o que

o movia diariamente àquele ofício. Achava que era só a

ânsia de viver e ter por que viver. Todavia, naquele

momento sentia-se importante, não sabendo exatamente

por quê. A angústia. A curiosidade. O peso na consciência

que o fazia sentir culpado. Tudo isso o atormentava. As

mãos suavam, a cabeça rodava, a falta da esposa neste

momento se fazia grande - pois saberia ela o que fazer –

mas ele... Em um relance helicoidal, a mala espiralava-se

em um escuro buraco negro que lhe tolhera aos poucos sua

consciência. A mala às mãos. Agora ao peito. Resolveu

sentar-se recostado ao carrinho, quando... o mundo

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Marcio José de Lima

começou a fugir-lhe, levando consigo seus sentidos. Em

um grande sonho surreal, ele abria a mala e de lá saíam

mansões, carros dos mais variados tipos e marcas cada um

mais belo e brilhante que o outro, comidas que não saberia

descrever - pareciam-lhe deliciosas – mas distantes se

faziam, assim doía-lhe ainda mais seu estômago.

•Sua família – como se fosse espectadora desse sonho

– apreciava atônita tamanho acontecimento. Tais

coisas os distanciavam cada vez mais, até que Juvenal

já ao longe dos seus, sente-se muito só. Muito só. Ele

unicamente deseja transpor as barreiras impostas pelo

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Marcio José de Lima

que saía da maleta. A mesma é alvejada por uma

inesperada pedra – vinda não sabe de onde. Ela se

fecha. E o que dela saiu some. Assim, nosso herói se

sente aliviado, pois se vê novamente próximo de seus

familiares. Eles o abraçam e aliviado despede-se.

Alguns minutos depois, retoma seus sentidos e, avista

ao seu lado a maleta. Estava aberta. Atônito vê em seu

interior um livro velho e um maço de papéis escritos.

O homem que faz a coleta do reciclável não sabe ler.

A curiosidade lhe corrói a alma. Por que não estudei?

– indagou Juvenal. Os conselhos de sua mãe para que

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Marcio José de Lima

estudasse açoitava-lhe. No entanto... teria

imediatamente saber o que estava escrito naqueles

papéis e o que era aquele livro. Para a sua sorte vinha

alegremente um meni- no que pela rua assoviava sem

parar. Sem cerimônia ele foi parado. Perguntou-lhe se

ele sabia ler. Respondeu – meio com receio - com a

cabeça que sim. Deu-lhe os papéis – mesmo o menino

achando aquilo muito estranho - leu meio que

silabicamente, mas leu. A primeira página dizia assim:

“Quero desculpar-me da forma que achei para repartir

do muito que colecionei em minha vida. Os anos se

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Acampamento na noite de primeiro de abril – A panela dedinheiro e outros Contos Fantásticos e de Imaginação

Marcio José de Lima

passaram e descobri nisto que deixei registrado nas

folhas que se seguem um grande tesouro, que me fez

um homem feliz, livre e, sobretudo solícito. Resolvi

repartir com você, pois certamente saberá assimilar

com sabedoria o que lhe deixo. Acredito que se

mudou a minha vida, poderá mudar a sua. Deixo-lhe

um exemplar desta preciosidade que para mim é uma

bússola num mundo em que as pessoas andam sem

saber para onde e por quê. Um grande abraço de um

amigo” Inesperadamente, a ira nos olhos de Juvenal

era visível. Os papéis foram lançados furiosamente

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Marcio José de Lima

em seu carrinho. “Quem me roubou? Levou o que

havia nesta maleta me deixando só estas folhas sem

valor. Talvez houvesse joias, dinheiro ou sei lá o que

mais. Pobre de novo! Somente desejei ter uma casa

digna. Comida...” Afirmou furiosamente. O menino

lhe perguntou “Hei, o senhor vai que-rer este livro?”

O homem disse que poderia ficar com ele. “Obrigado

moço” disse o menino sorrindo – e levando consigo

um exemplar usadíssimo da Bíblia Sagrada.

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