8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
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1 ensar h i s t ó r i cruzada:
entre empiri a e refl exi vi dade
MICH AE L WERNE R E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
Professores
daÉcole des Hautes
Etudes em Scences Socales, Paris
reflexão
acerca das
condições
e modaidades de
produção
de um
conhecimento sócio-histónco
passou, ao longo dos
últimos
vinte
anos, por desdobramentos significativos. Duas séries de fatores,
provenientes ao mesmo tempo do movimento interno das
ciências
socias e
do contexto político mas gera, produziram conjuntamente os seus efeitos.
Num
plano
político,
as
mudanças
ocorridas
desde
1989, acopladas a um
processo de aargamento e de
multiplicação
dos
espaços
de
referência
e de
ação
— a
'mundialização',
para retomar um termo consagrado
—,
marcaram
os
paradigmas
de
pesquisa
dando especiamente uma nova atuaidade à exi
gência
de reflexividade. Num plano intelectual, a 'virada culturalista, ao
enfatizar a especificidade ou mesmo o
caráter irredutível
do local, contribuiu
para aprofundar os conhecimentos
acerca
do funcionamento diferenciado
das
sociedades
e das culturas, provocando
assim
uma
fragmentação
dos
saberes
e com isto mesmo, a suarelativização.
1
As interrogações
produzidas pelo esboroamento do colonialismo afe
taram,
por
outro
lado, a
posição
até
então
dominante das
ciências
socias
'ocidentais'. Desde
então, suspetas
de imperialismo intelectua e de
estratégi
as dedominação política, elasvêem suaambição universaista enfraquecida
2
De tas
desenvolvimentos resultam
recomposições
internas em
cada
discipli
na e novos posicionamentos quanto ao lugar das ciências socias no disposi
tivo
gera de
produção
dos
saberes.
Mas
esses
deslocamentos levantam
também questões
que tocam dire
tamente as práticas de pesquisa as maneiras de abordar as fontes e os terre
nos. A
proposição
de
história cruzada,
que desenvolvemos aqui,
inscreve-se
nesse movimento gera. Empregada há
cerca
de dez anos emciências huma-
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 11, n 1/2,2003
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MICHAEL WERNER
E
BÉNÉDICTE
ZIMMERMANN
nas e
socias, estanoção
deu lugar a variados
usos.
Na maioria dos
casos,
ea
remete, de modo vago, a uma ou a um conjunto dehistórias,
associadas
à
idéia
de um cruzamento não especificado. Ela aponta
então
simplesmente
para umaconfiguração de acontecimentos,
mas
ou menos estruturada pea
metáfora
do cruzamento.
Freqüentemente, aliás, tas usos
evocam
histórias
cruzadas, no
plural.
Este emprego corrente, relativamente indiferenciado, dis
tancia-se das
práticas
de
pesquisa
que procuram uma abordagem
mas espe
cífica. Neste caso, ahistória cruzada relaciona geramente em
escaa
naciona,
formações socias,
culturas e
políticas,
partindo da
suposição
que elas man
têm relações entre si.
3
Ela ensea por
outro
lado umareflexão acerca da
operação
que consiste em 'cruzar', tanto no plano
prático
como no intelectu
al. Mas estes
usos
estão apenas começando a fixar-se Este artigo propõe-se
a
tomá-los
precisos, inscrevendo
a noção
nos
debates teóricos e metodológicos
atuas.
Assim especificada num plano empírico eteórico, ahistória cruzada
pode
contribuir
ao
aperfeiçoamento
do instrumental da maioria das
discipli
nas das ciências humanas e
socias.
Três observações liminares situarão nosso propósito.
Primeiro,
ahistó
ria cruzada pertence àfamília dos procedimentos relacionas que, ta como
a
comparação,
os
estudos
de
transferência
e
mas
recentemente, da
Connected
e da
Shared hstory
pergunta peos elos, materiaizados na esfera socia ou
simplesmente projetados, entre diferentes formações historicamente consti
tuídas.
Neste sentido, ea retoma, em novos termos, as discussões fetas ao
longo dos últimos anos sobre acomparação, as transferências e mas generi
camente sobre as
interações sócio-culturais.
4
Ela oferece em particular pistas
novas para sar do impasse dos debates entre comparatistas e especiaistas
em transferências,
5
mas sem
desprezar
as
contribuições dessas
duas
perspec
tivas sobre as
quas
ea se apoia em grande medida
Mas a
história
cruzada ambiciona
também
tratar objetos e
problemáti
cas específicas que escapam às metodologias comparatistas e aos
estudos
de
transferências.
6
Ela permite apreender
fenômenos inéditos
a partir de qua
dros renovados deanálise. Assim fazendo, ea fornece aocasião de sondar,
por
um
viés
particular,
questões geras
como
escaas, categorias
de
análise,
relação entre sincronia e diacronia regimes de histoncidade e da reflexividade.
Enfim,
ea coloca o problema de sua
própria
histoncidade a partir de um
triplo
procedimento de
histoncização:
do objeto, das
categorias
de
análise
e
das
relações
entre o pesquisador e o
objeto.
Ela oferece
assim
uma
'caxa
de
9
DOSSIÊ: A JUSTIÇA NO ANTIGO REGIME
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PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA
ferramentas' que, mas além das ciências históricas, pode ser operaciona em
muitas outras disciplinas que cruzam as perspectivas do
passado
e do presen
te.
7
A COMPARAÇÃO
PERANT E
A
H ISTOR ICID AD E D E SE US OBJET OS
Aqueles que praticam acomparação e tentam controlar seus efeitos,
sea trabahando sobre materias do
passado
ou contemporâneo, têm consci
ência de umasérie de dificuldades que, mesmo se elas se fazem sentir em
situações
variadas, todas concernem a
articulação
entre
método
e
objeto.
Simplificando,
diremos que elas se devem ao fato que, por um lado, a com
paração é umaoperação cognitiva que, na base funciona segundo umprin
cípio deoposição binaria entrediferenças e similitudes, e que, por outro lado,
ea se aplica emciências
socias
a objetos empíricos que são historicamente
situados econstituídos demúltiplas dimensões, imbricadas umas nas outras.
Em si mesmos, os problemas de auto-controle e de reaustamento perma
nente do processo que daí resultamnão são insuperáveis. Eles fazem parte
do pão de cada dia dos comparatistas, e cada um cuida disto à sua maneira.
8
Isto
não impede que as questões de fundo permaneçam. Resumamos breve
mente aqueas que
nutrem
aproblemática dahistória cruzada
A primeira concernea posição
do
observador. Se mantemos o esquema de
base
daoperação cognitiva, acomparação supõe um ponto de vista exterior
aos objetos quesão comparados. E mas, para ver corretamente e limitar os
efeitos deótica,
seria
rigorosamentenecessário que o ponto de vista fosse
colocado ideamente equidistante dos objetos, de
modo
a
produzir
uma
visão simétrica. Enfim, o princípio decoerência dacomparação implica que
o ponto
de
observação
sea
estável
no
espaço
e no tempo. Ora,
sabemos
perfeitamente que emmatéria deobservação dos fatos de
sociedade
e de
cultura, tal ponto de vista, teoricamentepensável, éinacessível naprática da
pesquisa
O pesquisadorestá sempre de uma
forma
ou de outra, envolvido
no campo deobservação; ee investiu seu objeto, nem que sea por sualín
gua peas
categorias
e conceitos que utiliza, por suaexperiência histórica,
peos
saberes
prévios
aos
quas
ee se refere, etc. Sua
posição
é,
portanto,
descentrada Mas ea se submetetambém avariações no tempo e nuncaestá
perfeitamente fixada no espaço. A questão do posicionamento convida as-
TEXTOS DE HISTÓRIA,
vol.
11,
n
Q
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E
BÉNÉDICTE
ZIMMERMANN
sim, a explorar procedimentos corretivos que permitam dar conta de
tas
dinâmicas.
A
segunda
dificuldade
está
ligada
à
precedente Ela vem da
escolha
do
nível da comparação. Que se trate, por exemplo, daregião, do Estado-nação ou
dacivilização, nenhuma destas escaas é ngorosamenteunívoca ou generalizável.
Todas
elas
são historicamente
constituídas
e
situadas, carregadas
de
conteú
dos específicos e portanto, difíceis de transpor em quadros diferentes. Basta
pensar, por exemplo, nos problemas colocados pelo conceito decivilização,
desenvolvido emcondições históricas particulares, logo que queramos insti
tuí-lo emnível genérico decomparação.
9
Naprática, podemos certamente
contornar
o
obstáculo,
integrando
na
grade
comparativa uma margem
de
desvio,
adaptada
a cada caso estudado. Mas tas desvios ameaçam compro
meter apertinência dos resultados, especiamente no caso decomparações
multilateras que demandam umnúmero elevado deparâmetros.
Além disto, aquestão das escaas provoca efetos diretos sobre adefi
nição do
obeto
dacomparação. Sua
escolha
nuncaé neutra mas semprejá
marcada
por umarepresentação particular que mobiliza categorias específicas histori
camente
constituídas.
Quer se trate de objetos de
aparência
simples e por
tanto,
dotados
de
uma certa
evidência
como
o
desempregado,
o
estudante
ou asrelações de parentesco, ou mesmo de conjuntos mas complexos, como
o
sistema
de ensino ou asrelações entreespaço público e privado, podemos
facilmente mostrar que as grades deanálise divergemnão somente segundo
a
escaa
escolhida mas
também
em
função
da particularidade dos terrenos,
das designações e dastradições de pesquisa a que se refere o pesquisador.
Podemdaí resultardistorções consideráveis: primeiro anível daprópria iden
tificação das entidades, da qua decorrem distintas filiações categonas e pers
pectivas
científicas.
Isto
significa levantar aqui
o
problema
da
constituição
histórica e situada dos
objetos
dacomparação. Para
evitar
oobstáculo da
'naturaidade presumida de tas objetos, muitas vezes éindispensável interro
gar sua histoncidade, e as marcas dexadas por ea sobre suascaracterísticas e
seus usos contemporâneos.
10
Mas ahistoncização dos objetos e dasproblemáticas pode
suscitar
conflitos
entre
lógcas sincrònicas ediacrônicas. A comparação supõe um corte
sincrônico,
ou pelo menos um ponto de
parada
no fluxo temporal, mesmo
que
o
comparatista trate
também
de
processos
de
transformações
ou
possa
fazer comparações no tempo. Mesmo neste caso, ele é levado afixar o seu
92
DOSSIÊ:
A JUSTIÇA
NO
ANTIGO REGIME
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PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA
objeto, a
fazê-lo
parar no
tempo
e
portanto,
de aguma
forma,
a suspender
o tempo. Se ee se aventurar excessivamente nadescrição de encadeamentos
cronológicos
que desembocam em
mudanças específicas, terá
dificuldade
em
justificar
por que, em sua grade
comparativa—
implícita ou explícita
—
ee
se apoia em ta elemento do processo e negligencia tal outro. Daí resulta uma
procura
de
equilíbrio
que, na
prática,
se revela muitas
vezes frágil
e
instável.
Uma
dificuldade suplementar reside na
interação
entre
os
obetos
da compa
ração.
Quando
se estuda sociedades em contato, freqüentemente constatamos
que os objetos e as práticas estão, não somente emsituação deinter-relação,
mas anda se
modificam
reciprocamente sob o efeito darelação estabelecida
Muitas
vezes é o caso,
por
exemplo,
nas
ciências
humanas e socias,
em
que as
disciplinas
e as
escolas evoluempor
meio
das trocas cruzadas, em atividades
culturas como a literatura, amúsica e as artes, ou emdomínios práticos
como a publicidade, as técnicas de
marketing
as culturas deorganização ou
anda as políticas socias. O estudo comparado de tas zonas de contato, que
se
transformam
enquanto interagem, convida o pesquisador a reorganizar
seu quadro conceptua e a repensar
seus
instrumentos
de
análise.
11
Todos
os diferentes pontos que acabamos de levantar remetem ao
problema
da
articulação
entre
uma lógica
de
análise
essenciamente
sincrônica
e objetos historicamente
constituídos.
12
Os desafios suscitados ao pesquisa
dor incitam antes de tudo a uma firme tomada deconsciência dadimensão
histórica. Os estudos detransferências, que emanam precisamente de proces
sos históricos, respondem a estaexigência, colocando, no entanto, outros
problemas.
As TRANSFERÊNCIAS
E
A QU ESTÃO
D O
REFERENCIAL
Se acomparação tende a privilegiar a sincronia, a pesquisa sobre as
transferências se
coloca nitidamente numa
perspectivadiacrônica.
13
Qualquer
que
sea
a
escaa tempora
adotada a pesquisa sobre as
transferências
pressu
põe
um processo que se desenvolve no
tempo.
Analisando
fenômenos
de
deslocamento e de
apropriação,
ea
restitui
encadeamentos factuas. Conse
qüentemente, eanão se basea nahipótese de unidades deanálise estáveis,
mas sobre o estudo de processos detransformação. Como para a compara
ção,
os aportes desta corrente de pesquisa são evidentes e os canteiros de
TEXTOS
DE
HISTÓRIA ,
vol
11,
n
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MICHAEL WERNER E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
obras acionados
revelaram-se
fecundos, não somente na escaa das transfe
rências entre culturas nacionas e regionas, mas também em campos especí
ficos,
como as
relações
entre disciplinas, as
práticas artísticas,
a
história
do
livro
ou ahistória econômica.
14
Emboraofereça respostas aquestões coloca
das pelo comparatismo, os estudos detransferências também apresentam,
por
sua vez,
ângulos
opacos.
Para
simplificar, limitar-nos-emos aqui às trans
ferências entre conjuntos nacionas, mesmo
sabendo
que se trata de proble
mas estruturas que tocam todos os domínios de pesquisa sobre as transfe
rências.
O primeiro problema concerne os quadrosdereferência. Concentrando-se
em
transações
entre dois
pólos,
a
transferência
implica um quadro
fixo
com
portando
pontos de partida e de
chegada
Quaquer
descrição,
quaquer
aná
lise
detransferência pressupõe umcomeço e um fim, a partir dos quas o
processo estudado toma-seinteligível einterpretável. No caso detransferên
cias
internacionas,
tas
pontos de partida e de
chegada situam-se
geramente
no interior de
sociedades
e culturas nacionas
postas
em
contato.
Conseqüen
temente as situações de origem e aqueas que resultam datransferências são
escolhidas por meio dereferências nacionas estáveis e supostamente conhe
cidas:
por exemplo, a historiografia
'alemã'
ou
'francesa,
as
concepções
ur
banísticas próprias àGrã Bretanha ou àRússia, etc.
O
fixismo dos pontos de partida
e
de
chegada
repercute sobre
ainvariància
das
categorias
deanálise.
Constata-se
com efeito que, ta como os quadros de
referência, as
categorias
utilizadas para anaisar atransferência pertencem aos
diferentes registros nacionas.
Ou sea não
somente o objeto da
transferência,
mas também as atividades que lhe são associadas - detradução, por exem
plo — são
apreendidas
por meio de conceitos elaborados no seio de tradi
ções
disciplinares nacionas. Mesmo em se tratando de medir
desvios
ou
fenômenos deaculturação e/ouresistência àaculturação,
eles
são
avaiados
emfunção de modelos estáveis. A significação do desvio se determina com
a auda de
categorias
cuja histoncidade e labilidade ficam entreparênteses.
Mas geramente, as duas dificuldades
precedentes
fazem
aparecer
um
déficit de relexivdadedevido a um insuficiente controle dos circuitos auto-
referencias.
Com
efeito, se ao
nível
das
relações
entre conjuntos nacionas os
estudos
detransferência tinham iniciamente por objetivo tomar
mas
per
meáveis
as fronteiras e quebrar o
mito
de homogenedade das
unidades
na
cionas, acontece que as
categorias
deanálise utilizadas re-introduzem, de
94
DOSSIÊ: A
JUSTIÇA NO ANTIGO
REGIME
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PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA
certa forma
peas
lateras, as
mesmas referências
nacionas que se tratava de
relativizar. O estudo das trocas
produz,
é certo, uma abordagem mas rica da
cultura
de
recepção;
ela evidencia os aportes estrangeiros e
contribui
a
historicizaro
conceito
de cultura nacional. Mas aprópria representação de tal
culturanão está
de
fato
colocada em
questão.
Assim, antes que suavizar a
ancoragem naciona das histonografias e das disciplinas de
ciências
humanas
e socias, a pesquisa sobre as
transferências
arrisca-se a
consolidá-las.
Mas em
gera, na medida em que os referencias de
análise não são
diretamente ques
tionados,
os estudos de
transferência
se
expõem
ao risco de todo empreen
dimento que negligencia sua
dimensão
auto-referencia: eles
não
fazem mas
que
confortar
os
apriori
que veiculam.
Enfim, coloca-se aquestão dareciproádade e reversiblidade Mesmo que o
programa
relativo às transferências não
tenha fixado regra
iniciamente,
quanto
a este ponto, as pesquisas empíricas geramente se voltaram para processos
lineares simples de uma cultura ou de uma
disciplina
a uma outra, segundo a
lógica daintrodução, difusão erecepção. Mesmo no caso, relativamente
raro,
de
configurações
triangulares, o objeto se
limita
a
transferências sucessivas.
15
Ora,
bem
freqüentemente,
as
situações
são mas complexas, colocando em
jogo
movimentos entre diferentes pontos, em pelo menos duas, normal
mente muitas
direções.
Tas
operações
podem suceder-se no tempo - em
certos
casos
faa-se
então
de
re-transferências
16
- mas
também
se recortar em
parte ou por inteiro, estando
entendido
que uma simultaneidade perfeita
não
é possível.
Elas podem iguamente se cruzar e engendrar
dinâmicas específi
cas, por meio de diferentes tipos de
inter-relações.
Todos
estes
casos esca
pam
a uma
análise
que
estabelece
simplesmente uma
relação
entre um ponto
de partida e um
ponto
de
chegada
Estudar
tas
diferentes
configurações
convida a conceber quadros teóricos e instrumentos metodológicos que per
mitam abordar
fenômenos
de
interação,
implicando uma pluraidade de di
reções e uma multiplicidade de efeitos. A nosso ver, a figura do cruzamento
oferece a possibilidade de pensar tas
configurações.
A
PESQUISA SOBRE
OS
CRUZAME N TOS
No
sentido literal, cruzar significa dispor duas coisas uma sobre a
outra em forma de cruz.
17
Daí resulta um ponto de
intersecção
onde po-
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 11, n
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MICHAEL
WERNE R E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
dem se
produzir
acontecimentos suscetíveis de afetar em graus diversos os
elementos empresença, segundo suaresistência, permeabilidade ou
maeabilidade,
e de seu
entorno.
Essa
idéia
de
intersecção está
no
princípio
mesmo dahistória cruzada ta como estamos nos propondo a desenvolver.
Isto
gera umasérie deconseqüências:
—
A noção
de
intersecção
exclui de
início
o
raciocínio
a
partir
de entida
des
individuais,
consideradas exclusivamente por
elas
mesmas, sem ponto de
referência exterior. Ela rompe com uma perspectiva unidimensional,
simplificadora
e homogeneizadora, embenefício de uma abordagem
multidimensional quereconheça a pluralidade e asconfigurações complexas
que
daí
resultem. Desde
logo,
as
entidades ou os objetos de
pesquisa
não
são
apenas considerados uns emrelação com os outros, mas iguamente uns
através dos outros, emtermos derelações, deinterações, decirculação. O
princípio ativo edinâmico do cruzamento aqui é primordial, emcontraste
com o quadro estático dacomparação que tende afixar os objetos.
— Referir ahistória cruzada aconfigurações relacionas e aprincípios
ativos implica em seguida prestar umaatenção especia às conseqüências do
cruzamento. Considerar que aguma coisa acontece no momento do cruza
mento
é uma
hipótese
forte
da
história
cruzada Esta
última
focaiza tanto
os
cruzamentos propriamente ditos como as suas incidências erepercussões.
Ela não se limita àanálise de um ponto deintersecção ou de um momento
de encontro, mas toma mas largamente em conta os processos suscetíveis de
resultar daí, como aliás sugere o termo 'história' nadenominação rustóna
cruzada.
— Cruzar étambém entrecruzar, entrelaçar, ou sea cruzar diversas ve
zes, segundo temporaidades eventuamente distanciadas. Estecaráter pelo
menos parciamente processua
é
o terceiro aspecto
constitutivo
de uma
pro
blemática dos cruzamentos. Ele nos remete àanálise das resistências, das
inércias, dasmodificações — detrajetórias, de formas, deconteúdos —, ou de
novas combinações que podem ora resultar do cruzamento, ora nee se des
dobrar.
Tas transformações, aliás, não se
limitam
necessariamente aos ee
mentos postos em contato; elas podem tocar anda seu entorno próximo ou
distante e manifestar-se segundo temporahdades distintas.
— Isto nos conduz ao quarto ponto: as entidades, pessoas,
práticas
ou
objetos cruzados ou afetados pelo cruzamento não permanecem forçosa
mente intactos ou
idênticos
a si mesmos.
18
Suas
transformações estão
ligadas
96
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truí-lo, e é num
movimento
de ida e volta entre o pesquisador e seu objeto
que se desenham conjuntamente as
dimensões empíricas
e reflexivas da his
tória
cruzada O cruzamento se dá
assim
como uma atividade congnitiva
estruturante que, por diversas operações de enquadramento, constrói um
espaço decompreensão. Através dee é um processo cognitivo articulando
objeto,
observador e ambiente que se abre O cruzamento das escaas espa
cias
e temporas, que tanto pode ser
intrínseco
ao objeto como o resultado
de uma
opção teórica
ou
metodológica,
é um exemplo particularmente
revelador desta
imbricação
entre
dimensões empírica
e reflexiva (4).
Os CRUZAME NT OS INT RÍNSECOS AO OBJET O
Os cruzamentos
têm
aqui uma ancoragem
empírica
e
são
constitutivos
do objeto de pesquisa Este se confundeentão, em parte ou na totaidade,
com um cruzamento particular, com o estudo de seus componentes e a
maneira como ee se dá, de suas
resultantes
econseqüências. Naprática, em
gera é extremamente
difícil
dissociar esses diferentes
aspectos
e
informá-los
com precisão,
porque os cruzamentos e entrecruzamentos nunca se deixam
reduzir a
esquemas
lineares ou a causaidades simples. Segundo os
casos,
um
ou outro destes aspectos é colocado no centro daanálise, emfunção da
entrada escolhida no processo de cruzamento. A tônica pode incidir sobre a
dimensão histórica
constitutiva dos eementos cruzados e sobre a
história
do
próprio
cruzamento, como na pesquisa feita por Sebastian Conrad sobre a
constituição dahistória japonesa naconfluência entretradição loca e impor
tação de uma historiografia naciona européia.
21
A pesquisa visaentão os
momentos e os fenômenos anteriores ao cruzamento, assim como as moda
lidades desteúltimo.
Mas
também
é
possível interessar-se
pelo que se
passa
a
seguir,
aos produtos e aos processos que o cruzamento
gera mas
ou menos
diretamente. E o
caso
de um estudo reaizado porKapil Ra sobre os efetos
do cruzamento entremétodos hindus e ingleses nagênese de uma cartografia
britânica no começo do século X I X .
2 2
Esta jánão apareceentão mas como
uma
realização
autenticamente
'inglesa,
mas como o resultado de um vai e
vem
entre duas
tradições
distintas que se fecundaram. Da mesma forma
Christine Lebeau mostra em suas
pesquisas
sobre a figura do administrador
no século
X V I I I,
como os
saberes
administrativos
foram
sendo
constituídos
98 DOSSIÊ: A JUSTIÇA NO AN TIGO REGIME
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PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA..
de maneira cruzada pelacirculação, através de toda a Europa, de monografias
e documentos devárias proveniências, conservados nos papéis privados dos
gestores das finanças públicas daépoca.
23
Sea qua for o ponto de partida, o
cruzamento se comporta, nestes estudos, como matriz de base para a cons
trução
do objeto que
será,
em
cada
caso, mas ou menos fortemente apro
priado
àanálise dos momentos anteriores ou posteriores aos pontos de
intersecção propriamente ditos. Neste sentido, trata-se de objetos de pesqui
sainéditos, freqüentemente inacessíveis às problemáticas dacomparação de
das transferências.
O CRUZAMENTO DOS PONTOS DE VISTA
Aqui
nos situamos no
domínio
dos cruzamentos entre terrenos, obje
tos,
escaas,
ou
sea
no domínio das
coisas
que o pesquisador cruza enquan
to os cruzamentos precedentes se produzem sem suaintervenção direta—
mesmo se o simples fato de identificar um objeto como tema reevante da
história cruzada já sea uma forteintervenção de sua parte. Focaizemos ex
clusivamente
essa
distinção.
Em contraste com o
tipo
precedente de cruza
mento, que o pesquisador pode tentar descrever, comprender, mas cujos
mecanismos ee nem sempre conhece e dos quas uma parte sempre lhe
escapará,
este
segundo tipo de cruzamento suscita uma atividade intelectua
estrururante e voluntansta, por meio da qual se desenham os
contornos
não
somente de um objeto, mas também de umaproblemática de pesquisa
Aqui
se coloca a
questão
da
constituição
do objeto, tanto de um ponto de vista
empírico
como
epistemológico.
Assim, um estudo da
recepção
da
Germania
de
Tácito
na Europa entre os
séculos X V
e
X X
pode revelar
fenômenos
de
cruzamentos históricos - acirculação dos argumentos e suareinterpretação
segundo diferentes contextos nacionas - , mas ea podetambém enfatizar a
necessidade de cruzar diferentes
recepções
nacionas para constituir uma pro
blemática
de
pesquisa
de
dimensão européia.
Em suma aconstrução do
objeto,
que podemos considerar numa pers
pectiva webenana como aadoção de um ou devários pontos de vista par
ticulares sobre o objeto,
24
, já é o resultado de diferentes operações de cruza
mento.
E, na medida em que ee pode evoluir ao longo da
pesquisa
o
ponto
de vista adotado suscita
novos
cruzamentos. O pesquisador é levado efetiva-
TEXTÔS DE HISTÓRIA, vol. 11, n
1/2,2003
99
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
12/38
PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA..
anda emrazão de suaprópria inserção na sociedade francesa Seriainútil e
ingênuo
procurar desfazer-se de uma vez por todas deste problema
constitutivo
de quaquer pesquisacientífica.
29
Pode-se
no entanto tentar con
trolar suas
incidências
a partir de um trabaho de
objetivação
das multiformes
relações com
o
objeto —
conscientes de que
estaobjetivação será sempre
parcia
a
fim de melhor controlar os
vieses
que
elas
podem introduzir nos
resultados da pesquisa As modaidades deapropriação do objeto pelo
pes
quisador, as
resistências
do objeto, as
condições prévias
colocadas pela sua
escolha
ou anda
a
manera como podem modificar-se durante
a
pesquisa
as
relações entre o pesquisadore o
objeto,
por exemplo, por meio daredefinição
deste ou pelo reaustamento das problemáticas e das categorias analíticas, são
diferentes aspectos de uma
démarche
reflexiva na qua a
posição
do pesquisa
dor e adefinição do objeto evoluem e seus deslocamentos respectivos são
produtos
de
interações específicas.
O
espaço
de
compreensão criado
pela
pesquisanão
existe apriori
e
se
constitui de formadinâmica através
das
rea
ções cruzadas de um e do outro. Assim
se
encontram simultaneamente con
figuradas dimensões empíricas
e
reflexivas.
O CRU ZAME N T O D E ESCALAS
A questão
das escalas
permite ilustrar
a
forma como empiria
e
reflexividade podem
se
articular numa perspectiva
de
história cruzada
Ela
aponta
o
problema
das unidades
espacias
e
temporas
de
análise,
de sua
escolha raciona emfunção do objeto, do ou dos pontos de vista adotados.
Abordar asquestões de escaa ao mesmo tempo como dimensão intrínseca
ao objeto
e
como opção cognitiva oumetodológica escolhida pelo pesqui
sador,
implica uma ruptura com
uma
lógica
de escaas
pré-constituídas,
mobilizadas automaticamente, como
é
comum
para o
naciona
ou para as
grandes datas
da
cronologiapolítica que
se
impõem como quadros naturas
deanálise, definidos independentemente do objeto.
Este problema das escaas jáfoi objeto deinumeráveis desenvolvimen
tos.
Ele foi colocado particularmente em termos de
relações
entre o micro e
o macro,
e
explorado sobretudo
pela
mcrostoriaitaiana
pela
abordagem
'multiscópica'
francesa
ou anda
pela
Alltagsgeschchte
alemã.
Apesar
de suas
especificidades,
30
essas
três abordagens têm por denominador comum tratar
TEXTOS DE HISTÓRIA,
vol.
11, n
1/2,2003
1 1
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
13/38
MICHAEL WERNER
E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
a
questão
das escaas principalmente como um problema de escolha do
nível
deanálise pelo pesquisador. Assim a mscrostoriaescolhe o micro para mostrar
em
que ee pode enriquecer
e
fazer
evoluir
as
categorias
utilizadas
tradiciona
mente pela
análise
macro.
31
Seus adeptos mas radicas chegam
até
a trazer o
conjunto
dos fenômenos a uma escaamicro pelaconvicção de que o micro
engendraria
o
macro.
32
Já
as
propostas
de
abordagens multiscópicas desen
volvidas
na
França
buscam
escapar
a
essa
perspectiva
dicotômica,
conceben
do os 'jogos de escalascomo umamudança de foco para variar os pontos
de vista sobre
o
passado. Por esteprincípio,
o
loca
aparece
como uma 'mo
dulação
particular' do global e ao mesmo tempo, como uma
versão
dife
rente das reaidades macro-socias.
33
Finamente, •àAlltagsgeschichte fundamenta
a
escolha
do micro e a
crítica
do
macro numa antropologia
das
relações
sociais.
34
Mas ao conduzir muito exclusivamente aquestão das escaas a uma
escolhateórica ou metodológica,
a
mkrostoria,
a
abordagemmultiscópica
e a
Alltagsgeschchtedeixam de colocar de
fato
o problema daarticulação empírica
e do acoplamento de diferentes escaas aonível dopróprio
objeto.
Pois as
escaas
são
tanto
um assunto de escolha intelectua quanto são induzidas peas
situações concretas
de
ação próprias
aos
objetos estudados.
Em regra geral,
os
objetos empíricos relevam
de
muitas
escaas ao
mesmo tempo
e
escapam
a
abordagens
de
foco
único.
E
o
caso,
por exem
plo, daconstituição da categoria de desemprego na Alemanha entre 1890 e
1927.
35
Seus
protagonistas agem, simultânea ou sucessivamente em diferen
tes
níveis:
municipal, nacional, ou mesmo internacional, de tal
modo
que
essas
diferentes
escaas
aí
se constituem
em parte umas através das outras. As
escaas
não poderiam aqui
ser
reduzidas
a
um
fator
explicativo externo, pois
são parte integrante daanálise. Assim, de um ponto de vista espacia, elas
remetem
à
pluraidade
de
cenas,
de
lógicas
e de
interações
a
que pertence
o
objeto
de
análise.
36
De um
ponto
de
vista
tempora,
elas
colocam
a
questão
das tempora idades do observador, do objeto e de suas interferências na
confluência entre empina e metodologia A atenção dada a seus acoplamentos
e
articulações permite
dar
conta
de
interações constitutivas
de
fenômenos
complexos não redutíveis a modelos lineares.
O transnaciona oferece uma boailustração
dessa
dupla aposta
Numa
perspectiva
de
história cruzada
o
transnaciona não pode simplesmente
ser
considerado como umnível suplementar deanálise que viria somar-se ao
local,
regiona ou naciona, segundo uma
lógica
de
mudança
de
foco.
Ele
é,
1 2
DOSSIÊ:
A JUSTIÇA NO ANTIGO
REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
14/38
PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA..
pelo
contrário, apreendido enquanto umnível que se constiui eminteração
com os precedentes e que engendralógicas próprias, com efeitos retroativos
sobre as outras lógicas deestruturação do espaço. Longe de se limitar a um
efeito
de
redução macroscópica,
o estudo do transnaciona faz
aparecer
uma
rede deinter-relações dinâmicas, cujos componentes são em parte definidos
por meio dos vínculos queentretèm e das articulações que estruturam suas
posições.
57
Encarada por esteângulo, ahistória cruzada pode abrir pistas
promissoras para a escrita de uma escrita dahistória da Europa que não se
reduza à soma das histórias dos Estados membros ou de suasrelações polí
ticas, mas que considere a diversidade das transações, negociações e
reinterpretações que se dão em diferentes
cenas
em tomo de uma grande
variedade de objetos e cuja
combinação
contribui
a modelar com geometria
variável umahistória européia.
A abordagem em termos de cruzamento favorece a ultrapassagem
dos arrazoados queopõem
micro
e macro, insistindo pelo contrário em sua
inextricável imbricação. A noção de
escaa
neste caso, não remete ao
micro
ou ao macro, mas aos diferentes espaços em que se inscrevem as interações
constitutivas do processo anaisado. Em outros termos, as escaas que nos
interessamsão
aqueas
construídas ou mobilizadas nas situações estudadas, e
são
tanto espacias quanto temporais, e
suas
variações
não
sãó' ó' apanágio
exclusivo do pesquisador mas também o produto dos protagonistas das
situações estudadas. Vê-se
portanto
que o cruzamento pertence ao mesmo
tempo
ao registro do objeto de estudo eàquele dos procedimentos de pes
quisa ligados às escolhas do pesquisador. Na suaversão mas exigente, a
história cruzada pretende
estabelecer
conexões entre os dois registros e en
trelaçar assim empiria e reflexividade.
UMA INDUÇÃO PRAGMÁTICA...
Mas, como estudar, objetivar
essas
diversas formas de cruzamento? O
exemplo das escaas
permitiu formular
agumas
proposições
que
convém
agora
aprofundar.
Insistir
sobre a necessidade de partirdó objeto de pesqui
sa e das situações concretas deação conduz a uma conduta
indutiva
e prag
mática.
De um
ponto
de vista
epistemológico,
toda
produção
de conheci
mento sócio-histónco associa procedimentos indutivos e dedutivos, é certo,
TEXTOS DE
HISTÓRIA,
vol.
11,
n 1/2,2003
103
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
15/38
MICHAEL WERNER E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
mas em
proporções variáveis.
38
No caso
da
comparação,
onde a parte dedu
tiva
é geramente
importante,
as
problemáticas
nacionas previamente dadas
e cristaizadas numa
língua
e em categorias de
análise
particulares tendem
então
a prefigurar uma parte dos resultados. A
história
cruzada
não
escapa à
Inércia dessaformatação
naciona preestabeecida mas sua
inflexão indutiva
procura limitar-lhe
os efetos por meio de um dispositivo de pesquisa no
qua os objetos, as categorias e as grades deanálise se austem passo a passo
durante a pesquisa Assim Nicolas
Mariot
e Jay Rowell mostram, num estu
do
sobre as visitas de
chefes
de Estado na
França
e Alemanha
às vésperas
da
primeira
guerra mundial, como a
transposição
de uma
problemática
e de
uma grade de
pesquisa
de um
país
a outro pode ser testada Reveando uma
dissemetna das
situações, não
somente no desdobramento
prático,
mas
tam
bém
na
vocação simbólica
destas visitas, apontando importantes
distanciamentos entre as diferentes maneras de conceber e de categorizar a
ação pública ou as relações entre o centro e a periferia, uma ta verificação
leva a revisar aproblemática inicial e a reformular as categorias que a
estruturavam.
39
Portanto, o
princípio
da
indução
faz aqui
referência
a um
processo de
produção
de conhecimento em que os diferentes eementos são
definidos
e se
necessário,
reposicionados entre si. Seu
caráter pragmático
deve
além
disto audar a
limitar
a
tentação
das
construções apnorísticas
e a
contornar
o
obstáculo
do essenciahsmo das categorias demasiado
estáticas.
A indução pragmática
implica
portanto partir
do objeto de estudo e
das
situações
de
ação
em que ee é considerado e se desdobra em
função
de
um ou devários pontos de vista previamente definidos, mas submetidos a
reaustes permanentes motivados peainvestigação empírica, apoiar-se nas
situações
permite
escapar
a um uso
cômodo
e
preguiçoso
do contexto
40
,
recusando seu
caráter genérico
e preestabelecido, e integrando uma
reflexão
acerca
dos
princípios
que regem sua
definição.
Cabe
aí uma
análise
da manei
ra pea qua as
pessoas
se
apegam
efetivamente ao
mundo,
da
construção
específica desteúltimo
e do contexto agenciado por essa atividade em cada
caso particular, e finamente, dos
usos
que ta
construção viabiliza.
A
atenção
dada
às situações é também uma forma de questionar o caráter de
extenondade, freqüentemente engessado, do
contexto,
parafazê-lo parte in
tegrante da
análise.
Ta como a escolha das
escaas,
a
definição
do contexto
não
é
privilégio
exclusivo do pesquisador. Ela remete
também
a referencias
próprios
aos objetos e às atividades
estudadas
e
desta
forma
se
torna
uma
1 4
DOSSIÊ:
A JUSTIÇA
NO
ANTIGO REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
16/38
PENSAR
A HISTÓRIA
CRUZADA..
dimensão
importante da
história
cruzada Assim, ea
íntegra
no trabaho de
contextualização
operado pelo pesquisador, a
dimensão
referencia dos ob
jetos e das
práticas anaisadas,
levando em conta não só a variedade das
situações
de
ação
em que as
relações
com o contexto se estruturam, mas
também
o efeito que o estudo de
tas situações exerce
sobre os procedimen
tos
analíticos
do pesquisador.
41
Nesta
acepção,
a
noção
de
situação designa
não somente um quadro específico deação tal como definido por Erving
Goffman, mas anda - e iguamente importante - as
interações
particulares
que prevaecem nesse quadro.
42
Por sua vez, a
referência
à
ação
situa a
dinâ
mica das atividades
concretas
das
pessoas
em
situações dadas
no
âmago
da
análise. Mas além das construções preestabelecidas, a abordagempragmáti
ca permite assim identificar, por um lado, as
referências
e as categorias efeti
vamente mobilizadas na
ação
e por
outro,
as maneiras como
elassão
mobi
lizadas.
43
A indução pragmática não
significa no entanto, entrincheirar-se em um
nível
micro, ou limitar-se a uma
justaposição
de
situações,
em detrimento de
toda
forma de
generalização.
Mas a
generalização provém então
da
combi
nação destas situações diversas
e das
lógicas
de
ação
que
lhes são próprias.
44
A emergência
de formas comuns de
organização
do concerto no
século
X IX
na Europa pode ser assim estudada a partir de
constelações
locas, muito
variadas, e
através
das
práticas concretas
dos atores.
Instituições
como as
sociedades
de concertos ou figuras
genéricas
como o
empresário
e o
agente
de concertos nascem, com efeito, no interior de uma pluraidade de configu
rações
e
segundo lógicas
que
não
podem se reduzir a um
processo
de evolu
ção
linear, que alguns
autores
gostariam de resumir numa progressiva
comercialização
ou numa
diferenciação
generaizada de
funções ligadas
à
organização
do concerto.
Seus
contornos se definem, pelo
contrário,
nos
choques
entre as expectativas e as
estratégias
de atores, por
vezes contraditó
rias, às
quas
respondem enquanto vão se estruturando.
45
Da
mesma forma,
a
indução pragmática
não significa restringir-se a temporaidades
curtas
de
ação
em detrimento da longa
duração.
Peo
contrário,
o tempo longo das
estruturas aí se conjugaàs conjunturas curtas daação, numaanálise da ativida
de socia fundada sobre o estudo das
relações dinâmicas
entre
ação
e estrutu
ra Deste
ponto
de vista a atividade das
pessoas
se revea ao mesmo tempo
estruturada e estruturante,
46
numa
relação
de
interferências recíprocas
entre
estrutura eação. Mas essaestruturação é menos determinada pela necessida-
TEXTOS DE HISTÓRIA,
vol.
11,
n
Q
1/2,2003
1 5
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
17/38
MICHAEL
WERNER E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
de de um processo irreversível que pelo cruzamento naação de dificuldades
e
recursos
que são em parte estruturamente dados, em parte ligados à con
tingência das situações.
47
Assim, por exemplo, a maor parte de nossas insti
tuições relevam de uma dupla ancoragem: numahistória estrutura longa que
marca sua
lógica
e seu funcionamento, e em conjunturas
singulares
de
ação
decisivas para suaaparição e suatransformação.
48
O ponto de vista de uma
pragmática socia permite
pensar
ainterdependência dessas duas dimensões,
a partir daobservação dos deslizamentos e dos distanciamentos que inter
vém ao longo daação e que autorizam momentos deinovação institucional.
Atenta simultaneamente
às
conjunturas curtas da
ação
e
às condições
estrutu
ras de possibilidade estaúltima, uma ta abordagem abre perspectivas para
pensar
conjuntamente a
mudança
e a estabilidade.
... E REFLEXIVA
Tal como
sugere
o exemplo das escalas, estaindução pragmática é
também reflexiva Este é um dos pontos que distinguem ahistória cruzada
tanto
do comparatismo - que, ideamente, postula a
existência
de um ponto
de vista exterior
permitindo,
sea
construir objetos
comparáveis,
como apli
car-lhes
questionários analíticos comuns — quanto dos
estudos
detransferên
cia
—
que em gera, não questionam seus pressupostos referencias. Não abor
daremos aqui aquestão de fundo, debatidahá mas de umséculo nas ciências
sociais.
49
Sublinharemos apenas
aguns aspectos
em que a
história
cruzada
pode contribuir ao enfrentamento do desafio da reflexividade Tanto aindução
pragmática como os procedimentos dehistoncização que lhesão
associados
na
história
cruzada geram formas de reflexividade. Ligada
às lógicas
da
ação,
a
indução pragmática
leva a
reaustar
os
princípios
e a
lógica
da
pesquisa
em
cada um dos
seus
desdobramentos. A histoncização, por sua vez, coloca em
relação escalas espaço-temporais variadas com diferentes regimes de
histoncidade e composições deobservação elas mesmas historicamente si
tuadas.
A história
cruzada das disciplinas permite ilustrar certos
aspectos
desta
problemática da reflexividade. Se considerarmos, por exemplo, as imbncações
das histonografias alemã e norte-americanapós-1945 a partir de um ponto
de vista
alemão,
americano ou
francês,
obteremos
perspectivas
e de repente,
1 6
DOSSIÊ: A JUSTIÇA NO ANTIGO
REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
18/38
PENSAR
A
HISTÓRIA
CRUZADA..
interpretações
bem diferentes. A
emigração
e o
exílio
de historiadores ae
mães nos Estados Unidos, areimportação pela Alemanha após 1950, de
teorias onginanamente alemãs, porém
nesse
meio-tempo aclimatadas e ame
ricanizadas
— como foi o
caso
de grandes painéis da sociologia weberiana—
, somados
a
fenômenos
de
recepção
como
aquele
da Escola de Chicago,
fundem tantas imbricações
que incitam-nos a
reavaiar
os pontos de vista a
partir dos quas as diferentes interpretações foram elaboradas. Denomina
ções correntes como a sociologiaalemã tomam-se fluidas, difíceis de se
utilizar
semprecaução, sem faar denoções complexas como o
Historismus
e
suastraduções (historiásm, historiásme,
istorismo etc), que remetem cada uma a
percepções, tradições
e metodologias diferentes.
50
Por isto, o pesquisador
está hoje levado a considerar seuspróprios conceitos e instrumentos analíti
cos como o resultado de um
processo
de cruzamento complexo em que
tradições nacionas e disciplinares amagamaram-se conformeconfigurações
variadas,
e a reintroduzir em sua pesquisa os pontos de vista corresponden
tes.
A publicação e arecepção de
O Orientalismo
de Edward Said
51
ilustram
uma outra forma de abordar aquestão da reflexividade em termos de
cru
zamento. Colocando-se a si mesmo, por sua
socialização
familiar e intelectu
al,
numa dupla
situação
de hibridismo e de
exílio,
52
Sad
tentou reelaborar a
visão globa de um Oriente desenvolvida a partir do fim do século XVII I ,
peas sociedades ocidentas à procura de atendade cultural.
53
Sua constru
ção é já em si mesma o resultado de um duplo cruzamento: ao nível da
pesquisa que cruza pontos de vista 'orientais' e 'ocidentas', e sobre o plano
do
objeto, já que a
representação
do Oriente produzida
pelas
sociedades
ocidentas contém no reverso a imagem reflexiva do Ocidente. Mas a recep
ção
do
livro
sugeriu anda outros tipos de cruzamento. Assim O
Orientalismo
se inscreveria num
movimento
de 'ocidentalismo', ou
sea
uma
representa
ção
do Ocidente produzida peos
não-ocidentais
que retomaria
ínvertendo-
as,
características
estruturas do orientalismo, como a
construção
de uma
atendade, o princípio dicotômico e atendência àtotalização.
54
Nahistória
dos conceitos, esse tipo deinversão foi quaificado por Reinhart Koselleck
de 'contra-conceito simétrico' (Asymmetrischer Gegenbegnff), estando en
tendido
que,
para
ee conceitos fundamentas
freqüentemente
geram concei
tos
antônimos, 'assimétricos'
porque
secundários
e portanto claramente
subordinaos aos concetos fundamentas originais.
55
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 11, n 1/2,2003
1 7
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
19/38
MICHAEL WERNE R E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
Na perspectiva dahistória cruzada no entanto, insistiremos
antes
de
tudo nas interações e nos efetos e reflexividade induzidos pelo sistema de
'duplo
espelho'. Pouco importa
saber
se o orientaismo dos 'ocidentas' não
faz mas que refletir suaprópria representação do Ocidente, ou anda se o
ocidentaismo dos 'orientais' apenas inverte os princípios do 'orientalismo'
dos ocidentas. A
história
cruzada prefere buscar colocar em
evidência
o
tecido espesso dos entrecruzamentos, a partir das
referências
efetivamente
mobilizadas por uns e por outros na
elaboração
de
suasrepresentações res
pectivas. Assim fazendo, ea
não
se fecha num
espaço
de
indecisão
relativista
ou de infinitas relações
especulares
em que as diferentes posições se anulari
am. Peo contrário, eapropõe utilizar o cruzamento das
perspectivas
e o
deslocamento dos pontos de vista
para
produzir efetos de conhecimento
próprios. A reflexividade à qua ea se abrenão é um formalismo vazio, mas
um campo relaciona criador de sentido.
O TRABALHO SOBRE ASCATEGORIAS
0 Orientalismode
Sad
exemplificatambém o impacto analítico das ca
tegorias
utilizadas.
Trata-se
aí de um
outro ponto
levantado
pela
história
cru
zada
Com efeito, frente ao
obstáculo
das
comparações dissimétricas
— que
postulam
a similitude das
categorias
partindo de um simples equivaente se
mântico,
sem problematizar as
práticas freqüentemente
divergentes que
elas
recobrem - ou
negativas
- que avaiam uma sociedade por meio de uma
categoria
nela
ausente utilizada por suapertinência no meio de origem do
pesquisador—, impõe-se umavigilância muito particular. Estavigilância pode
se exercer por meio de um trabaho sistemático sobre as categorias, no du
plo
sentido de
categorias
de
ação
e de
análise.
56
Se todo
raciocínio
procede por
categorização, esta permanece
muitas
vezes implícita,
enquanto sua
explicitação
parece uma base
necessária
a toda
pesquisa
comparativa.
57
Saber
de quê se faa e de onde se faa: esse duplo
desafio é centra
para
a
história
cruzada Porque as
categorias
são tanto o
produto de umaconstrução intelectua como o ponto de apoio daação, elas
colocam de modo incontornável aquestão darelação entre conhecimento e
ação, nas situações estudadas bem como ao nível do protocolo de
pesquisa
1 8
DOSSIÊ:
A
JUSTIÇA
NO
ANTIGO
REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
20/38
PENSAR
A
HISTÓRIA
CRUZADA..
Graças àatenção que lhes é
dada
abre-se uma viapossível para lidar
conjun
tamente com empiria e reflexividade.
Mas
esta
consideração não
visa exatamente a categoria em si mesma e
sim
os seus diferentes eementos constitutivos e seu agenciamento. Ora,
tas
eementos são suscetíveis avariações eflutuações que convidam a romper
com
a
íntangibüidade
das categorias e a assumir sua labilidade. Escapar ao
essenciaismo das categorias
supõe
aqui raciocinar em termos de processo
situado decategonzação — o processo remetendo às interações temporas e
espacias constitutivos da categoria Categorias como a pasagem (ou o de
semprego, a
cultura,
a velhice, a
doença,
os
operários,
os colarinhos brancos,
etc.)
são
historicamente datados e parciamente estruturados
peas
problemá
ticas
que presidiram a suaconstituição. No caso de pasagem e seus equiva
lentes - sempre aproximados, em cada idioma e cultura -,
essaconstituição
foi
progressiva c
pôs
em jogo, no interior mesmo de cada entidade nacional,
uma pluraidade delógicas decategorizações próprias aos diferentes grupos,
lugares ou
pessoas
implicadas no processo: artistas,
associações
de
botânicos,
ligas e sociedades locas de embelezamento,
associações
de
vizinhança,
etc.
Somente uma abordagem situada permite evidenciar mecanismos específi
cos de
categorização
que puderam prevaecer ao
nível
desses
diferentes
gru
pos em
épocas
diversas e que, mesmo não sendo hoje mas
perceptíveis,
contribuem,
no entanto, a modelar as práticas patrimoniais queestão atua
mente em curso naFrança e na Alemanha.
58
A abordagem processua per
mite assim perceber melhor as
implicações
dos desdobramentos categonas,
problematizando seus diversos componentes, mas ou menos estabilizados.
Referir-se àcategorização implica,
portanto,
raciocinar, não de maneira abs
trata e gera, mas em ligação com o estudo dos dispositivos deação, dos
esquemas
de
interpretação
e dos procedimentos de
generalização
que
con
correm
àinstituição de uma categoriagenérica.
59
Mas além do
interesse
que
ea apresenta para aanálise e acompreensão das relações entre
pessoas
ou
entidades que
não
compartilham os mesmos sistemas de
referência,
uma ta
perspectiva categonal permite, graças àintrodução de umadimensão
diacrônica, escapar ao cont5role de modelos culturais implícitos e redutores.
Esta
dimensão
se abre para a
problematização
da
histoncização
e para a
maneira como a
história
cruzada se relaciona com o campo
histórico.
TEXTOS DE HISTÓRIA,
vol.
11,
n1/2,2003
1 9
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
21/38
MICHAEL
WERNER E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
HlSTORICIZAR
A história
cruzada convida o pesquisador a questionar a histoncidade
de
seus
objetos e de
seuspróprios
procedimentos. Entretanto, se como já
foi
dito,
a abordagem proposta toca o conjunto das
ciências
socias, por que
nestas condições, manter o nomegenérico dehistória? Muitas razões moti
vam esta
escolha Primeiro, o movimento de
histoncização
dos
saberes
em
ciências
socias,
em que a maor parte de
nossas
disciplinas se encontram
engaadas.
Iniciada
desde
o
começo
do
século X IX , reforçada pelas cnses
sucessivas
dos diferentes positivismos e aceerada peos questionamentos re
centes
dos objetivismos
científicos,
60
a
histoncização
é hoje em dia uma di
mensão incontomável
da
produção
de conhecimento sobre as
sociedades
humanas. Dela participa o conjunto das ciências
socias,
mesmo aqueas que
como a Economia, tendem a
pensar-se
antes de tudo como
ciências
do
presente Tomado pelo
ângulo
que nos interessa aqui, histoncizar significa
articular o dado fundamenta da reflexividade e as temporaidades
múltiplas
que entram na
construção
do objeto desde que o consideramos como uma
produção situada no tempo e no espaço. A história cruzada participa deste
empreendimento abrindo pistas para
repensar,
no tempo
histórico,
as rea
ções
entre
observação,
objeto de estudo e instrumentos
analíticos
postos em
movimento.
Em seguida a
referência
à
história
se justifica pela
atenção dada
ao processo de
constituição,
tanto dos objetos como das categorias, assim
como
àgênese das configurações deanálise e deação. Aqui também, o que
está
em jogo é menos a
dimensão
tempora por si mesma que a
incidência
da
pluraidade das temporaidades sobre aidentificação dos objetos e a cons
trução
das
problemáticas.
Este apoio sobre a
história
engloba
portanto,
um
substrato comum às disciplinas que de uma forma ou de outra, são con
frontadas à histoncidade de
seus
materias e de
seus
instrumentos. Finamen
te,
o termo
história
remete
também
à componente narrativa descritiva e
compreensiva de todaciência socia empírica. Essanarração pode ser feita
no
presente para
descrever
uma
situação,
ou tratar do
passado,
para tornar
inteligível
certos
aspectos
constitutivos do objeto de estudo.
61
Desde que
controlados no plano analítico, os
agenciamentos
de uma escrita em forma
de relato podem constituir um aporte
heurístico
fecundo para o conjunto
das ciências
sociais.
62
Um dos desafios dahistória cruzada é reconceptuaizar
certos
aspectos
dessas
múltiplas relações
entre
história
e
ciências
socias.
11
DOSSIÊ:
A JUSTIÇA NO ANTIGO REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
22/38
PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA..
A histoncização engaa
o
pesquisador
e sua
relação com
o objeto.
Ela
se
volta
para os fenômenos do
passado
assim
como
para a maneira deabordá-
los,
estabelecendo
um
elo
entre
as
duas
dimensões.
Referida
ao
objeto
de
estudo,
a
histoncização intervém
antes e
depois do cruzamento, tomado no
sentido
de ponto de
intersecção
e de
postura emrelação. Para acima
ela se
volta
para
a
dimensão histórica constitutiva dos eementos
que se
cruzam
e
para ahistória do cruzamento propriamente
dito.
O objeto seconstrói assim
em função
de uma
problemática
de cruzamento em que ele é o vetor. Isto
implica,
proncipalmente,
que o
cruzamento não
é
considerado
uma
figura
abstrata antecipadamente
dada mas
como um desenvolvimento temporal
desdobrando
sua
histoncidade
própria.
Para
abaxo,
a
histoncização
perse
gue asconseqüências do cruzamento. Nessenível também, ainscrição histó
rica opera segundo uma
lógica
de
contextualização
em duplo sentido: levan
do em conta
a
constituição histórica do
objeto, ela
explora os efetos que
ele
exerce
sobre um
entorno, contribuindo
para
sua
transformação; constelação
de aspectos que remetem a umahistória complexa que se
abre
por
inteiro
às
inter-relações e àinterdependência de seus diferentes componentes. Mas a
história cruzadanão pode
se confundir
com umahistória
total.
Partindo
da
dinâmica
das
atividades
socias
em
relação
com um objeto
de
estudo
parti
cular,
ela
visa pelo contrário, fenômenos específicos, excluídas outras for
mas deinteração que não relevem do cruzamento. Um ta ponto de partida
significa que o objeto de estudo não tem uma forma definitiva antecipada
mente colocada mas
que se
trata decircunscrevê-lo
e de o definir
por meio
da
pesquisa
Isto implica, por exemplo, que
as categorias
utilizadas não são
dadas
de
uma vez por todas, mas submetidas
elas
também
a
um trabaho
de
histoncização. Encontramos aqui, desdobrado nas diferentes temporaidades
da
história,
o
princípio
da
abordagem indutiva.
Processua, ahistória cruzada é um empreendimento aberto que leva
em conta de um
ponto
de vista
interior, as
variações de
seus
componentes
e
de um
ponto
de vista exterior, sua especificidade emrelação
a
outras históri
as
possíveis.
Ela
tem parentesco com
uma
história
dos
problemas
e dos
questionamentos, buscando evitar o duplo essenciaismo de umaobjetivação
peos fatos — supostamente diretamente
acessíveis
ao observador — e de uma
reificação
das
estruturas
-
supostamente determinando antecipadamente,
segundo um
princípio tautológico,
os resultados da
pesquisa
Em oposição
a
uma perspectiva essenciaista
a
idéia
de
cruzamento aponta primeiro, uma
TEXTOS DE HISTÓRIA,
vol.
11,
n
1/2,2003
111
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
23/38
MICHAEL WERNE R E BÉNÉDICTE ZIMMERMANN
interação que, em
seguida
—
e esta é uma de suascaracterísticas
decisivas
—
modifica os eementos que interagem. Neste sentido, ea se abre para uma
história
'no segundo grau'. Assim, no
domínio
de uma
história
cruzada das
disciplinas deciências humanas, ahistoncização discutenão
apenas
os fenô
menos decategorização e deconceptualização próprias a cada disciplina ou
sub-disciplina
mas
também
o trabaho de
tradução
entre os conjuntos, bem
como
os deslocamentos de
fronteira
e as
transformações
induzidas
peas
interações. Ao nível dos questionamentos, ea pode, em seguida explorar as
vias peas
quas
as problemáticas seconstituíram e interagiram por sua vez,
em configurações
institucionas
variadas
de uma disciplina e de um
país
a
outro.
63
Uma
história
cruzada da
construção
diferenciada da Idade
Média
na
Europa no século X I X
—
objeto que
escapa seja
de uma abordagem
comparatista sea de uma
pesquisa
em termos detransferências
—
pode as
sim
ilustrar, tanto as modaidades da
constituição
do questionamento, como
o jogo das transações das quas ea se nutre.
64
Ela
permite,
enfim, pelo viés da
variação das escaas temporas e peaproblemática da reflexividade, inscre
ver
este
objeto em questionamentos acerca dos usos contemporâneos da
referência
à Idade
Média
e sobre
suas relações
com as
concepções
de
modernidade.
Mas genericamente em lugar de submeter
seus
materias a
paradigmas funcionaistas ou estruturaistas, a
história
cruzada procura, por
tanto, adaptar seus instrumentos analíticos à especificidade do seu objeto.
Enquanto
história-problema
voltada para conjuntos de
questões
comuns a
diferentes disciplinas, ea se inscreve assim num processo de reelaboração
historiográfica do qua ea constitui uma das mahas.
REAGREGAR
No
entanto, a
histoncização
das
problemáticas não
aprisiona a
história
cruzada numa espira relativista E verdade que a rede inter-relaciona tecida
peos fenômenos de cruzamento conduz a articular o lugar relativo dos ato
res bem como das categorias descritivas eanalíticas, e portanto, asituá-los
uns em
relação
aos outros, num processo de
desconstrução. Além
disto,
tomar
em conta os cruzamentos e sua
inscrição
numa
história
relativiza as
posições de uns e de outros, bem como suasconceptualizações respectivas.
Mas
essa
relativização
- que é, no
fundo,
uma
operação
de colocar em rea-
112
DOSSIÊ: A
JUSTIÇA NO ANTIGO
REGIME
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
24/38
PENSAR A HISTÓRIA CRUZADA.
ção
-, longe de desembocar
num
relativismo
histórico,
65
aqui é produtora de
sentido.
Partindo dos distanciamentos entre diferentes pontos de vistapossí
veis, fazendo faar suasdiferenças e a maneira
como,
historicamente, elas se
constituíram,
muitas
vezes
de
modo
interdependente, a
história
cruzada ofe
rece
a
possibilidade
de
reagregar
esses
eementos
e de produzir
efeitos
de
conhecimento próprios.
66
Assim, o estudo
feito
por
Heidrun
Friese
acerca
do paradigma do espaço mediterrâneo nasciências socias é ao mesmo tem
po
uma
desconstrução
do paradigma homogeneizante
promovido
pela an
tropologia
anglo-saxônica nos
anos
1980, e umarecomposição dos diferen
tes eementos constitutivos dasrepresentações do Mediterrâneo, a
partir
de
uma
análise
da diversidade interna do
espaço mediterrâneo
e
de seu papel
de
encruzilhada
67
Se ela não se abre ao relativismo histórico, ahistória cruzada não se
inscreve tampouco numalógica deregressão histórica infinita A histoncização
não
se confunde aqui com uma
contextualização
que levaria sempre mas
longe ainvestigação histórica, buscando umarepresentação mas detahada
do passado e de suasrelações com o presente. Ao contrário, ela seconstrói e
se circunscreve em
função
de um objeto e de uma
problemática
que
permi
tam
identificar temporaidades pertinentes
e
desta
forma
enquadrar
o
pro
cesso dehistoncização. As
pesquisas
desenvolvidas há uns dez
anos
na
Ale
manha a respeito da
Itistoricização
do historicismo'
permitiram
mudar o
estatuto e os usos da
noção
de Historismus que deixou de ser uma etiqueta
ago polêmica para tornar-se um verdadeiro objeto histórico. Num
duplo
movimento
deinternacionalização e de abertura disciplinar, mostrou-se, por
um
lado, como os debates
alemães
sobre o historicismo
foram
articulados às
discussões
geras acerca
darelação àhistória em outros países europeus e
por
outro
lado, como
as
diferentes disciplinas,
da
economia
à
história,
pas
sando pea teologia e pela
lingüística,
reagiram, cada uma à sua maneira mas
sempre solidanamente,
à
questão
da
constituição histórica dos
saberes.
68
De
repente, asquestões que estavam inicialmente colocadas em termos de
con
trovérsia
interna à
corporação
dos historiadores,
opondo
os
partidários
e os
críticos
do Historismus, encontraram
respostas através
das
operações
de
histoncização cruzadas, cujos limites se impuseram por si mesmos de certa
forma
na medida em que aproblemática ia sendo deslocada e reconfigurada
em função
dos resultados da pesquisa Fica claro portanto que, mesmo se,
abstratamente, adelimitação dahistoncização não pareça fácil de determi-
TEXTOS
DE
HISTÓRIA, vol. 11, nl/2,2003
113
8/19/2019 WERNER,Michael - Pensar a História Cruzada
25/38
MICHAEL WERNER E BÉNÉDICTE
ZIMMERMANN
nar,
naprática o seu
maneo
é
regulado por
critérios deadequação
entre
questão e
resposta encontrada
e,
em gera,
não constitui
de
fato
um
proble
ma.
69
Feto de uma vez este esclarecimento, podemos retomar as relações
entre diacronia e sincronia cujacoordenação é sempre delicada tanto para a
comparação
como para
o
estudo
dastransferências.
Quando
ele se
volta
para fatos
da
vida socia, cada ato
deprodução de
conhecimento combina
não
apenas coordenadas
situadas
no
espaço-tempo, as
anda
representações
sincrônicas ediacrônicas do que vai
acontecendo.
70
Enquanto
operação
cognitiva
a
identificação
de
um objeto
ou de
um
processo releva da sincronia;
o ato lógico de assinaar ou de estabeecer umaligação, etc, funciona segun
do o princípio da imediaticidade e tende a abstrar adimensão tempora. Em
revanche enquanto atividades situadas no tempo,
tas
operações colocam
necessariamente aidéia de um desenvolvimento diacrônico dentro do qua
elas constituem
um
dos momentos.
Uma
das
contribuições
da
história
cruza
da
é
que
ela
permite articular
essas
duas
dimensões, lá
onde
acomparação
privilegia a
realização
de um
raciocínio sincrônico
e onde os estudos de trans
ferências se
apegam
àanálise de
processos
diacrônicos. Através
da
história
cruzada os registros
sincrônicos ediacrônicos são,
ao
contrário,
constante
mente
reagenciados
uns em
relação
ao outros.
Estamos, neste caso, perto daquilo
que
Koselleck chama
a
não-
contemporaneidade do
simultâneo
ou
a
simultaneidade do
não-contem-
porâneo ,
71
isto é,
o
entrecruzamento de
tempora
idades
históricas
diferen
tes que, mesmo
se
distanciando
de
um
padrão de
medida
comum, se
interpenetram
a
ta
ponto
que não
é
mas
possível representá-las de forma
linear
e
unidimensional.
72
Se,
para
R.
Koselleck,
estes fenômenos
são
correlacionados sobretudo apráticas eruditas e apercepções diferencias do
progresso entre os intelectuas,
também
é
possível analisá-los
em
outros
gru
pos socias, cruzando, por exemplo, asexperiências do tempo próprias aos
agricultores e aosoperários, ou anda a diferentes gerações. Mas aproposi
ção se
mostra iguamente fecunda
naseqüência dasconsiderações de R.
Koselleck, para a
história
das disciplinas
científicas
onde, apesar da represen
tação de
um tempo
único
inerente
àidéia de
progresso,
as
atividades
de
diferentes comunidades disciplinares, repartidas em
espaços
institucionais,
políticos e
culturas variados,
estão
bem longe
de
serem
reguladas
por um