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    VILM FLUSSER

    Filosofia da Caixa Preta

    Ensaios para uma futura filosofia da fotografia

    EDITORA HUCITECSo Paulo, 1985

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    Direitos autorais 1983 de Vilm Flusser. Ttulo do original alemo: Fr eine Philosophie derFotografie. Traduo do autor. Direitos de publicao em lngua portuguesa reservadospela Editora de Humanismo, Cincia e Tecnologia Hucitec Ltda., Rua ComendadorEduardo Saccab, 344 04602 So Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319.

    Projeto grfico: Estdio Hucitec.

    Capa: Fred Jordan.Foto da contracapa: Sakae Tajima.

    Flusser, Vilm, 1920

    Filosofia da caixa preta So Paulo : Hucitec, 1985.- 92 p.

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    SUMRIO

    Prefcio edio brasileira

    Glossrio para uma futura filosofia da fotografia

    1 A imagem

    2 A imagem tcnica3 O aparelho4 O gesto de fotografar5 A fotografia6 A distribuio da fotografia7 A recepo da fotografia8 O universo fotogrfico9 A necessidade de uma filosofia da fotografia

    Flusser e a liberdade de pensar, ouFlusser e uma certa gerao 60 Maria Lilia Leo

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    PREFCIO A EDIO BRASILEIRA

    O presente ensaio resumo de algumas conferncias e aulas que pronunciei sobretudo naFrana e na Alemanha. A pedido da European Photography, Gttingen, foram reunidasneste pequeno livro publicado em alemo em 1983. A reao do pblico (no apenas dosfotografos, mas sobretudo do interessado em filosofia) foi dividida, porm intensa. Emconsequncia polmica criada, escrevi outro ensaio Ins Universum der technischenBilder ( Adentrando o universo das imagens tecnicas), publicado em 85, onde procuroampliar e aprofundar as reflexes aqui apresentadas.

    Estas partem da hiptese segundo a qual seria possvel observar duas revoluesfundamentais na estrutura cultural, tal como se apresenta, de sua origem at hoje. Aprimeira, que ocorreu aproximadamente em meados do segundo milnio a C., pode ser

    captada sob o rtulo inveno da escrita linear e inaugura a Histria propriamente dita;a segunda, que ocorre atualmente, pode ser captada sob o rtulo inveno das imagenstcnicas e inaugura um modo de ser ainda dificilmente definvel. A hiptese admite queoutras revolues podem ter ocorrido em passado mais remoto, mas sugere que elas nosescapam.

    Para que se preserve seu carter hipottico, o ensaio no citar trabalhosprecedentes sobre temas vizinhos, nem conter bibliografia. Espera assim criar atmosferade abertura para campo virgem. No obstante, incorporar um breve glossrio de termosexplcitos e implcitos no argumento, no intuito de clarear o pensamento e provocarcontra-argumentos. As definies no glossrio no se querem teses para defesas, mashipteses para debates.

    A inteno que move este ensaio contribuir para um dilogo filosfico sobre oaparelho em funo do qual vive a atualidade, tomando por pretexto o tema fotografia.Submeto-o, pois, apreciao do pblico brasileiro. Faa-o com esperana e com receio.Esperana, porque, ao contrrio dos demais pblicos que me lem, sinto saber para quemestou falando; receio, por desconfiar da possibilidade de no encontrar reao crtica. Esteprefcio se quer, pois, aceno aos amigos do outro lado do Atlntico e aos crticos daimprensa. Que me leiam e no me poupem.

    Percebo que editar este ensaio no contexto brasileiro empresa aventurosa. Queroagradecer aos que nela mergulharam, sobretudo Maria Llia Leo, por sua coragem eamizade. Que sua iniciativa contribua para o dilogo brasileiro.

    V. F.

    So Paulo, outubro 85

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    GLOSSRIO PARA UMA FUTURA FILOSOFIA DA FOTOGRAFIA

    Aparelho: brinquedo que simula um tipo de pensamento.Aparelho fotogrfico: brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias.Autmato: aparelho que obedece a programa que se desenvolve ao acaso.Brinquedo: objeto para jogar.Cdigo: sistema de signos ordenado por regras.Conceito: elemento constitutivo de texto.Conceituao: capacidade para compor e decifrar textos.Conscincia histrica: conscincia da linearidade ( por exemplo, a causalidade).Decifrar: revelar o significado convencionado de smbolos.Entropia: tendncia a situaes cada vez mais provveis.

    Fotografia: imagem tipo-folheto produzida e distribuda por aparelho.Fotgrafo: pessoa que procura inserir na imagem informaes imprevistas pelo aparelhofotogrfico.Funcionrio: pessoa que brinca com aparelho e age em funo dele.Histria: traduo linearmente progressiva de idias em conceitos, ou de imagens emtextos.Idia: elemento constitutivo da imagem.Idolatria: incapacidade de decifrar os significados da idia, no obstante a capacidade del-la, portanto, adorao da imagem.Imagem: superfcie significativa na qual as idias se inter-relacionam magicamente.Imagem tcnica: imagem produzida por aparelho.Imaginao: capacidade para compor e decifrar imagens.Informao: situao pouco-provvel.Informar: produzir situaes pouco-provveis e imprimi-las em objetos.Instrumento: simulao de um rgo do corpo humano que serve ao trabalho.Jogo: atividade que tem fim em si mesma.Magia: existncia no espao-tempo do eterno retorno.Mquina: instrumento no qual a simulao passou pelo crivo da teoria.Memria: celeiro de informaes.Objeto: algo contra o qual esbarramos.Objeto cultural: objeto portador de informao impressa pelo homem.Ps-histria: processo circular que retraduz textos em imagens.Pr-histria: domnio de idias, ausncia de conceitos; ou domnio de imagens, ausncia

    de textos.Produo: atividade que transporta objeto da natureza para a cultura.Programa: jogo de combinao com elementos claros e distintos.Realidade: tudo contra o que esbarramos no caminho morte, portanto, aquilo que nosinteressa.Redundncia: informao repetida, portanto, situao provvel.Rito: comportamento prprio da forma existencial mgica.Scanning: movimento de varredura que decifra uma situao.Setores primrio e secundrio: campos de atividades onde objetos so produzidos einformados.Setor tercirio: campo de atividade onde informaes so produzidas.

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    Significado: meta do signo.Signo: fenmeno cuja meta outro fenmeno.Smbolo: signo convencionado consciente ou inconscientemente.Sintoma: signo causado pelo seu significado.Situao: cena onde so significativas as relaes-entre-as-coisas e no as coisas-mesmas.Sociedade industrial: sociedade onde a maioria trabalha com mquinas.Sociedade ps-industrial: sociedade onde a maioria trabalha no setor tercirio.Texto: signos da escrita em linhas.Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, no obstante acapacidade de l-los, portanto, adorao ao texto.Trabalho: atividade que produz e informa objetos.Traduzir: mudar de um cdigo para outro, portanto, saltar de um universo a outro.Universo: conjunto das combinaes de um cdigo, ou dos significados de um cdigo.

    Valor: dever-se.Vlido: algo que como deve ser.

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    1. A IMAGEM

    Imagens so superfcies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo quese encontra l fora no espao e no tempo. As imagens so, portanto, resultado do esforode se abstrair duas das quatro dimenses espcio-temporais , para que se conservemapenas as dimenses do plano. Devem sua origem capacidade de abstrao especficaque podemos chamar de imaginao. No entanto, a imaginao tem dois aspectos: se deum lado, permite abstrair duas dimenses dos fenmenos, de outro permite reconstituir asduas dimenses abstradas na imagem. Em outros termos: imaginao a capacidade decodificar fenmenos de quatro dimenses em smbolos planos e decodificar as mensagensassim codificadas. Imaginao a capacidade de fazer e decifrar imagens.

    O fator decisivo no deciframento de imagens tratar-se de planos. O significado da

    imagem encontra-se na superfcie e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto,tal mtodo de deciframento produzir apenas o significado superficial da imagem. Quemquiser aprofundar o significado e restituir as dimenses abstradas, deve permitir suavista vaguear pela superfcie da imagem. Tal vaguear pela superfcie chamado scanning.

    O traado do scanning segue a estrutura da imagem, mas tambm impulsos nontimo do observador. O significado decifrado por este mtodo ser, pois, resultado desntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor. Imagens no soconjuntos de smbolos com significados inequvocos, como o so as cifras: no so

    denotativas. Imagens oferecem aos seus receptores um espao interpretativo: smbolosconotativos.

    Ao vaguear pela superfcie, o olhar vai estabelecendo relaes temporais entre oselementos da imagem: um elemento visto aps o outro. O vaguear do olhar circular:

    tende a voltar para contemplar elementos j vistos. Assim, o antes se torna depois, e odepois se torna o antes. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem o eternoretorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginsticapor ciclos.

    Ao circular pela superfcie, o olhar tende a voltar sempre para elementospreferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais dosignificado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relaes significativas. O tempo quecircula e estabelece relaes significativas muito especfico: tempo de magia. Tempodiferente do linear, o qual estabelece relaes causais entre eventos. No tempo linear, onascer do sol a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo d significado aonascer do sol, e este d significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo damagia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens

    o contexto mgico das relaes reversveis.O carter mgico das imagens essencial para a compreenso das suasmensagens. Imagens so cdigos que traduzem eventos em situaes, processos emcenas. No que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. E talpoder mgico, inerente estruturao plana da imagem, domina a dialtica interna daimagem, prpria a toda mediao, e nela se manifesta de forma incomparvel.

    Imagens so mediaes entre homem e mundo. O homem existe, isto , omundo no lhe acessvel imediatamente. Imagens tm o propsito de representar omundo. Mas, ao faz-lo, entrepem-se entre mundo e homem. Seu propsito seremmapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invs de se servir dasimagens em funo do mundo, passa a viver em funo de imagens. No mais decifra as

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    cenas da imagem como significados do mundo, mas o prprio mundo vai sendo vivenciadocomo conjunto de cenas. Tal inverso da funo das imagens idolatria. Para o idlatra o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje,

    de que forma se processa a magicizao da vida: as imagens tcnicas, atualmenteonipresentes, ilustram a inverso da funo imaginstica e remagicizam a vida.

    Trata-se de alienao do homem em relao a seus prprios instrumentos. Ohomem se esquece do motivo pelo qual imagens so produzidas: servirem deinstrumentos para orient-lo no mundo. Imaginaotorna-se alucinao e o homem passaa ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimenses abstradas. No segundomilnio A. C., tal alucinao alcanou seu apogeu. Surgiram pessoas empenhadas no

    relembramento da funo originria das imagens, que passaram a rasg-las, a fim deabrir a viso para o mundo concreto escondido pelas imagens. O mtodo do rasgamentoconsistia em desfiar as superfcies da imagens em linhas e alinhar os elementosimaginsticos. Eis como foi inventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar o tempo

    circular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a conscincia histrica ,conscincia dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observvel entre os filsofos pr-socrticos e sobretudo entre os profetas judeus.

    A luta da escrita contra a imagem, da conscincia histrica contra a conscinciamgica caracteriza a Histria toda. E ter consequncias imprevistas. A escrita se fundasobre a nova capacidade de codificar planos em retas e abstrair todas as dimenses, comexceo de uma: a da conceituao, que permite codificar textos e decifr-los. Isto mostraque o pensamento conceitual mais abstrato que o pensamento imaginativo, poispreserva apenas uma das dimenses do espao-tempo. Ao inventar a escrita, o homem seafastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele seaproximar. A escrita surge de um passo para aqum das imagens e no de um passo emdireo ao mundo. Os textos no significam o mundo diretamente, mas atravs de

    imagens rasgadas. Os conceitos no significam fenmenos, significam idias. Decifrartextos descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A funo dos textos explicarimagens, a dos conceitos analisar cenas. Em outros termos: a escrita meta-cdigo daimagem.

    A relao texto-imagem fundamental para a compreenso da histria doOcidente. Na Idade Mdia, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e opaganismo imaginstico; na Idade Moderna, luta entre a cincia textual e as ideologiasimaginsticas. A luta, porm, dialtica. medida que o cristianismo vai combatendo opaganismo, ele prprio vai absorvendo imagens e se paganizando; medida que a cinciavai combatendo ideologias, vai ela prpria absorvendo imagens e se ideologizando . Porque isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasg-las, imagens so

    capazes de ilustrar textos, a fim de remagiciz-los. Graas a tal dialtica, imaginao econceituao que mutuamente se negam, vo mutuamente se reforando. As imagens setornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Atualmente omaior poder conceitual reside em certas imagens, e o maior poder imaginativo, emdeterminados textos da cincia exata. Deste modo, a hierarquia dos cdigos vai seperturbando: embora os textos sejam metacdigo de imagens, determinadas imagenspassam a ser metacdigo de textos.

    No entanto, a situao se complica ainda mais devido contradio interna dostextos. So eles mediaes tanto quanto o so as imagens. Seu propsito mediar entrehomem e imagens. Ocorre, porm, que os textos podem tapar as imagens que pretendemrepresentar algo para o homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, no

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    conseguindo reconstituir as imagens abstradas. Passa a viver no mais para se servir dostextos, mas em funo destes.

    Surge textolatria, to alucinatria como a idolatria. Exemplo impressionante de

    textolatria fidelidade ao texto, tanto nas ideologias ( crist, marxista, etc.), quanto nascincias exatas. Tais textos passam a ser inimaginveis, como o o universo das cinciasexatas: no pode e no deve ser imaginado. No entanto, como so imagens o derradeirosignificado dos conceitos, o discurso cientfico passa a ser composto de conceitos vazios; ouniverso da cincia torna-se universo vazio. A textolatria assumiu propores crticas nopercurso do sculo passado.

    A crise dos textos implica o naufrgio da Histria toda, que , estritamente,processo de recodificao de imagens em conceitos. Histria explicao progressiva deimagens, desmagiciao, conceituao. L, onde os textos no mais significam imagens,nada resta a explicar, e a histria pra. Em tal mundo, explicaes passam a sersuprfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.

    Pois precisamente em tal mundo que vo sendo inventadas as imagens tcnicas.E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.

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    2. A IMAGEM TCNICA

    Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos so produtos da tcnica que, porsua vez, texto cientfico aplicado. Imagens tcnicas so, portanto, produtos indiretos detextos o que lhes confere posio histrica e ontolgica diferente das imagenstradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares deanos, e as imagens tcnicas sucedem aos textos altamente evoludos. Ontologicamente, aimagem tradicional abstrao de primeiro grau: abstrai duas dimenses do fenmenoconcreto; a imagem tcnica abstrao de terceiro grau: abstrai uma das dimenses daimagem tradicional para resultar em textos (abstrao de segundo grau); depois,reconstituem a dimenso abstrada, a fim de resultar novamente em imagem.Historicamente, as imagens tradicionais so pr-histricas; as imagens tcnicas so ps-

    histricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagenstcnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posio asimagens tcnicas decisiva para o seu deciframento.

    Elas so dificilmente decifrveis pela razo curiosa de que aparentemente nonecessitam ser decifradas. Aparentemente, o significado das imagens tcnicas se imprimede forma automtica sobre suas superfcies, como se fossem impresses digitais onde osignificado (o dedo) a causa, e a imagem (o impresso) o efeito. O mundorepresentado parece ser a causa das imagens tcnicas e elas prprias parecem ser oltimo efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. O mundo a serrepresentado reflete raios que vo sendo fixados sobre superfcies sensveis, graas aprocessos ticos, qumicos e mecnicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois,imagem e mundo se encontram no mesmo nvel do real: so unidos por cadeia

    ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece no ser smbolo e noprecisar de deciframento. Quem v imagem tcnica parece ver seu significado, emboraindiretamente.

    O carter aparentemente no-simblico, objetivo, das imagens tcnicas faz comque seu observador as olhe como se fossem janelas e no imagens. O observador confianas imagens tcnicas tanto quanto confia em seus prprios olhos. Quando critica asimagens tcnicas (se que as critica) , no o faz enquanto imagens, mas enquanto visesdo mundo. Essa atitude do observador face s imagens tcnicas caracteriza a situaoatual, onde tais imagens se preparam para eliminar textos. Algo que apresentaconsequncias altamente perigosas.

    A aparente objetividade das imagens tcnicas ilusria, pois na realidade so to

    simblicas quanto o so todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado. Com efeito, so elas smbolos extremamente abstratos: codificam textosem imagens, so metacdigos de textos. A imaginao, qual devem sua origem, capacidade de codificar textos em imagens. Decifr-las reconstituir os textos que taisimagens significam. Quando as imagens tcnicas so corretamente decifradas, surge omundo conceitual como sendo o seu universo de significado. O que vemos ao contemplaras imagens tcnicas no o mundo, mas determinados conceitos relativos ao mundo, adespeito da automaticidade da impresso do mundo sobre a superfcie da imagem.

    No caso das imagens tradicionais, fcil verificar que se trata de smbolos: h umagente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado. Esteagente humano elabora smbolos em sua cabea, transfere-os para a mo munida de

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    pincel, e de l, para a superfcie da imagem. A codificao se processa na cabea doagente humano, e quem se prope a decifrar a imagem deve saber o que se passou emtal cabea. No caso das imagens tcnicas, a situao menos evidente. Por certo, h

    tambm um fator que se interpe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agentehumano que o manipula (fotgrafo, cinegrafista). Mas tal complexo aparelho-operadorparece no interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrrio, parece sercanal que liga imagem e significado. Isto porque o complexo aparelho-operador demasiadamente complicado para que possa ser penetrado: caixa pretae o que se v apenas input e output. Quem v input e output v o canal e no o processo codificadorque se passa no interior da caixa preta. Toda crtica da imagem tcnica deve visar obranqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquantoanalfabetos em relao s imagens tcnicas. No sabemos como decifr-las.

    Contudo, podemos afirmar algumas coisas a seu respeito, sobretudo o seguinte: asimagens tcnicas, longe de serem janelas, so imagens, superfcies que transcodificam

    processos em cenas. Como toda imagem, tambm mgica e seu observador tende aprojetar essa magia sobre o mundo. O fascnio mgico que emana das imagens tcnicas palpvel a todo instante em nosso entorno. Vivemos, cada vez mais obviamente, emfuno de tal magia imaginstica: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cadavez mais em funo de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia essa.

    Claro est que a magia das imagens tcnicas no pode ser idntica magia dasimagens tradicionais: o fascnio da TV e da tela de cinema no pode rivalizar com o queemana das paredes de caverna ou de um tmulo etrusco. Isto porque TV e cinema no secolocam ao mesmo nvel histrico e ontolgico do homem da caverna ou dos etruscos. Anova magia no precede, mas sucede conscincia histrica, conceitual, desmagicizante.

    A nova magia no visa modificar o mundo l fora, como o faz a pr-histria, mas osnossos conceitos em relao ao mundo. magia de segunda ordem: feitio abstrato. Tal

    diferena pode ser formulada da seguinte maneira: A magia pr-histrica ritualizadeterminados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modelo: programas.Mito no elaborado no interior da transmisso, j que elaborado por um deus.Programa modelo elaborado no interior mesmo da transmisso, por funcionrios. Anova magia ritualizao de programas, visando programar seus receptores para umcomportamento mgico programado. Os conceitos programa e funcionrio seroconsiderados nos captulos seguintes deste ensaio. Neste ponto do argumento, trata-se decaptar a funo da magia.

    A funo das imagens tcnicas a de emancipar a sociedade da necessidade depensar conceitualmente. As imagens tcnicas devem substituir a conscincia histrica porconscincia mgica de segunda ordem. Substituir a capacidade conceitual por capacidade

    imaginativa de segunda ordem. E neste sentido que as imagens tcnicas tendem aeliminar os textos. Com essa finalidade que foram inventadas. Os textos foraminventados, no segundo milnio A. C., a fim de desmagiciarem as imagens (embora seusinventores no se tenham dado conta disto). As fotografias foram inventadas, no sculo

    XIX, a fim de remagiciarem os textos (embora seus inventores no se tenham dado contadisto). A inveno das imagens tcnicas comparvel, pois, quanto sua importnciahistrica, inveno da escrita. Textos foram inventados no momento de crise dasimagens, a fim de ultrapassar o perigo da idolatria. Imagens tcnicas foram inventadas nomomento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria. Tal intenoimplcita das imagens tcnicas precisa ser explicitada.

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    A inveno da imprensa e a introduo da escola obrigatria generalizaram aconscincia histrica; todos sabiam ler e escrever, passando a viver historicamente,inclusive camadas at ento sujeitas vida mgica: o campesinato proletarizou-se. Tal

    conscientizao se deu graas a textos baratos: livros, jornais, panfletos. Simultaneamentetodos os textos se baratearam (inclusive o que est sendo escrito). O pensamentoconceitual barato venceu o pensamento mgico-imaginstico com dois efeitos inesperados.De um lado, as imagens se protegiam dos textos baratos, refugiando-se em ghettoschamados museus e exposies, deixando de influir na vida cotidiana. De outro lado,surgiam textos hermticos (sobretudo os cientficos), inacessveis ao pensamentoconceitual barato, a fim de se salvarem da inflao textual galopante. Deste modo, acultura ocidental se dividiu em trs ramos: a imaginao marginalizada pela sociedade, opensamento conceitual hermtico e o pensamento conceitual barato. Uma cultura assimdividida no pode sobreviver, a no ser que seja reunificada. A tarefa das imagenstcnicas estabelecer cdigo geral para reunificar a cultura. Mais exatamente: o propsito

    das imagens tcnicas era reintroduzir as imagens na vida cotidiana, tornar imaginveis ostextos hermticos, e tornar visvel a magia subliminar que se escondia nos textos baratos.Ou seja, as imagens tcnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam constituirdenominador comum entre conhecimento cientfico, experincia artstica e vivncia polticade todos os dias. Toda imagem tcnica devia ser, simultaneamente, conhecimento(verdade), vivncia (beleza) e modelo de comportamento (bondade). Na realidade, porm,a revoluo das imagens tcnicas tomou rumo diferente, no tornam visvel oconhecimento cientfico, mas o falseiam; no reintroduzem as imagens tradicionais, masas substituem; no tornam visvel a magia subliminar, mas a substituem por outra. Nestesentido, as imagens tcnicas passam a ser falsas, feias e ruins, alm de no teremsido capazes de reunificar a cultura, mas apenas de fundir a sociedade em massa amorfa.

    Por que isto se deu? Porque as imagens tcnicas se estabeleceram em barragens.

    Os textos cientficos desembocam nas imagens tcnicas, deixam de fluir e passam acircular nelas. As imagens tradicionais desembocam nas tcnicas e passam a serreproduzidas em eterno retorno. E os textos baratos desembocam nas imagens tcnicaspara a se transformarem em magia programada. Tudo, atualmente, tende para asimagens tcnicas, so elas a memria eterna de todo empenho. Todo ato cientfico,artstico e poltico visa eternizar-se em imagem tcnica, visa ser fotografado, filmado,videoteipado. Como a imagem tcnica a meta de todo ato, este deixa de ser histrico,passando a ser um ritual de magia. Gesto eternamente reconstituvel segundo oprograma. Com efeito, o universo das imagens tcnicas vai se estabelecendo comoplenitude dos tempos. E, apenas se considerada sob tal ngulo apocalptico, que afotografia adquire seus devidos contornos.

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    3. O APARELHO

    As imagens tcnicas so produzidas por aparelhos. Como primeira delas foi inventada afotografia. O aparelho fotogrfico pode servir de modelo para todos os aparelhoscaractersticos da atualidade e do futuro imediato. Analis-lo mtodo eficaz para captaro essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) at osminsculos (como os chips), que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente suporque todos os traos aparelhsticos j esto prefigurados no aparelho fotogrfico,aparentemente to incuo e primitivo.

    Antes de mais nada, preciso haver acordo sobre o significado do aparelho, j queno h consenso para este termo. Etimologicamente, a palavra latina apparatusderiva dos

    verbos adparare e praeparare. O primeiro indica prontido para algo; o segundo,disponibilidade em prol de algo. O primeiro verbo implica o estar espreita para saltar espera de algo. Esse carter de animal feroz prestes a lanar-se, implcito na raiz dotermo, deve ser mantido ao tratar-se de aparelhos.

    Obviamente, a etimologia no basta para definirmos aparelhos. Deve-se perguntar,antes de mais nada, por sua posio ontolgica. Sem dvida, trata-se de objetosproduzidos, isto , objetos trazidos da natureza para o homem. O conjunto de objetosproduzidos perfaz a cultura. Aparelhos fazem parte de determinadas culturas, conferindo aestas certas caractersticas. No h dvida que o termo aparelho utilizado, s vezes,para denominar fenmenos da natureza, por exemplo, aparelho digestivo, por tratar-se dergos complexos que esto espreita de alimentos para enfim digeri-los. Sugiro, porm,que se trata de uso metafrico, transporte de um termo cultural para o domnio da

    natureza. No fosse a existncia de aparelhos em nossa cultura, no poderamos falar emaparelho digestivo.

    Grosso modo, h dois tipos de objetos culturais: os que so bons para seremconsumidos (bens de consumo) e os que so bons para produzirem bens de consumo.(instrumentos). Todos os objetos culturais so bons, isto : so como devem ser, contmvalores.Obedecem a determinadas intenes humanas. Esta, a diferena entre as cinciasda natureza e as da cultura: as cincias culturais procuram pela inteno que se escondenos fenmenos, por exemplo, no aparelho fotogrfico, portanto, segundo tal critrio, oaparelho fotogrfico parece ser instrumento. Sua inteno produzir fotografias. Aquisurge dvida: fotografias sero bens de consumo como bananas ou sapatos? O aparelhofotogrfico ser instrumento como o faco produtor de banana, ou a agulha produtora de

    sapato?Instrumentos tm a inteno de arrancar objetos da natureza para aproxim-los dohomem. Ao faz-lo, modificam a forma de tais objetos. Este produzir e informar se chama

    trabalho. O resultado se chama obra. No caso da banana, a produo maisacentuada que a informao; no caso do sapato, a informao que prevalece. Facesproduzem sem muito informarem, agulhas informam muito mais. Sero os aparelhosagulhas exageradas que informam sem nada produzir, j que fotografias parecem serinformao quase pura?

    Instrumentos so prolongaes de rgos do corpo: dentes, dedos, braos, mosprolongados. Por serem prolongaes, alcanam mais longe e fundo a natureza, so maispoderosos e eficientes. Os instrumentos simulam o rgo que prolongam: a enxada, o

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    dente; a flecha, o dedo; o martelo, o punho. So empricos. Graas revoluoindustrial, passam a recorrer a teorias cientficas no curso da sua simulao de rgos.Passam a ser tcnicos. Tornam-se, destarte, ainda mais poderosos, mas tambm

    maiores e mais caros, produzindo obras mais baratas e mais numerosas. Passam achamar-se mquinas. Ser ento, o aparelho fotogrfico mquina por simular o olho erecorrer a teorias ticas e qumicas, ao faz-lo?

    Quando os instrumentos viraram mquinas, sua relao com o homem se inverteu.Antes da revoluo industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as mquinaseram por eles cercadas. Antes, o homem era a constante da relao, e o instrumento eraa varivel; depois, a mquina passou a ser relativamente constante. Antes osinstrumentos funcionavam em funo do homem; depois grande parte da humanidadepassou a funcionar em funo das mquinas. Ser isto vlido para os aparelhos? Podemosafirmar que os culos (tomados como proto-aparelhos fotogrficos) funcionavam emfuno do homem, e hoje, o fotgrafo, em funo do aparelho?

    O tamanho e o preo das mquinas faz com que apenas poucos homens aspossuam: os capitalistas. A maioria funciona em funo delas: o proletariado. De maneiraque a sociedade se divide em duas classes: os que usam as mquinas em seu prprioproveito, e os que funcionam em funo de tal proveito. Isto vale para aparelhos? Ofotgrafo ser proletrio, e haver um foto-capitalista?

    Em tais perguntas sente-se que, embora razoveis, no ferem ainda o problema doaparelho. Por certo: aparelhos informam, simulam rgos, recorrem a teorias, somanipulados por homens, e servem a interesses ocultos. Mas no isto que oscaracteriza. As perguntas acima no so nada interessantes, quando se trata deaparelhos. Provm, elas todas, do terreno industrial, quando os aparelhos, emboraprodutos industriais, j apontam para alm do industrial: so objetos ps-industriais. Daperguntas industriais (por exemplo, as marxistas) no mais serem competentes para

    aparelhos. A nossa dificuldade em defini-los se explica: aparelhos so objetos do mundops-industrial, para o qual ainda no dispomos de categorias adequadas.

    A categoria fundamental do terreno industrial (e tambm do pr-industrial) otrabalho. Instrumentos trabalham. Arrancam objetos da natureza e os informam.

    Aparelhos no trabalham. Sua inteno no a de modificar o mundo. Visam modificara vida dos homens. De maneira que os aparelhos no so instrumentos no significadotradicional do termo. O fotgrafo no trabalha e tem pouco sentido cham-lo de

    proletrio. J que, atualmente a maioria dos homens est empenhada em aparelhos,no tem sentido falar-se em proletariado. Devemos repensar nossas categorias, sequisermos analisar nossa cultura.

    Embora fotgrafos no trabalhem, agem. Este tipo de atividade sempre existiu. O

    fotgrafo produz smbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, contadores,administradores sempre fizeram o mesmo. O resultado deste tipo de atividade somensagens: livros, quadros, contas, projetos. No servem para serem consumidos, maspara informarem: serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisesfuturas. Estas pessoas no so trabalhadores, mas informadores. Pois atualmente aatividade de produzir, manipular e armazenar smbolos (atividade que no trabalho nosentido tradicional) vai sendo exercida por aparelhos. E tal atividade vai dominando,programando e controlando todo trabalho no sentido tradicional do termo. A maioria dasociedade est empenhada nos aparelhos dominadores, programadores e controladores.Outrora, antes que aparelhos, fossem inventados, a atividade deste tipo se chamava

    terciria, j que no dominava. Atualmente, ocupa o centro da cena. Querer definir

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    aparelhos querer elaborar categorias apropriadas cultura ps-industrial que estsurgindo.

    Se considerarmos o aparelho fotogrfico sob tal prisma, constataremos que o estarprogramado que o caracteriza. As superfcies simblicas que produz esto, de algumaforma, inscritas previamente (programadas, pr-escritas) por aqueles que oproduziram. As fotografias so realizaes de algumas das potencialidades inscritas noaparelho. O nmero de potencialidades grande, mas limitado: a soma de todas asfotografias fotografveis por este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui o nmerode potencialidades, aumentando o nmero de realizaes: o programa vai se esgotando eo universo fotogrfico vai se realizando. O fotgrafo age em prol do esgotamento do

    programa e em prol da realizao do universo fotogrfico. J que o programa muitorico, o fotgrafo se esfora por descobrir potencialidades ignoradas. O fotgrafomanipula o aparelho, o apalpa, olha para dentro e atravs dele, afim de descobrir semprenovas potencialidades. Seu interesse est concentrado no aparelho e o mundo l fora s

    interessa em funo do programa. No est empenhado em modificar o mundo, mas emobrigar o aparelho a revelar suas potencialidades. O fotgrafo no trabalha com oaparelho, mas brinca com ele. Sua atividade evoca a do enxadrista: este tambm procuralance novo, a fim de realizar uma das virtualidades ocultas no programa do jogo. E talcomparao facilita a definio que tentamos formular.

    Aparelho brinquedo e no instrumento no sentido tradicional. E o homem que omanipula no trabalhador, mas jogador: no mais homo faber, mas homo ludens. E talhomem no brinca comseu brinquedo, mas contraele. Procura esgotar-lhe o programa.Por assim dizer: penetra o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas. De maneira que o

    funcionrio no se encontra cercado de instrumentos (como o arteso pr-industrial),nem est submisso mquina (como o proletrio industrial), mas encontra-se no interiordo aparelho. Trata-se de funo nova, na qual o homem no constante nem varivel,

    mas est indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em toda funo aparelhstica ,funcionrio e aparelho se confundem.

    Para funcionar, o aparelho precisa de programa rico. Se fosse pobre, ofuncionrio o esgotaria, e isto seria o fim do jogo. As potencialidades contidas noprograma devem exceder capacidade do funcionrio para esgot-las. A competncia doaparelho deve ser superior competncia do funcionrio. A competncia do aparelhofotogrfico deve ser superior em nmero de fotografias competncia do fotgrafo que omanipula. Em outros termos: a competncia do fotgrafo deve ser apenas parte dacompetncia do aparelho. De maneira que o programa do aparelho deve ser impenetrvelpara o fotgrafo, em sua totalidade. Na procura de potencialidades escondidas noprograma do aparelho, o fotgrafo nele se perde.

    Um sistema assim to complexo jamais penetrado totalmente e pode chamar-secaixa preta. No fosse o aparelho fotogrfico caixa preta, de nada serviria ao jogo dofotgrafo: seria jogo infantil, montono. A pretido da caixa seu desafio, porque,embora o fotgrafo se perca em sua barriga preta, consegue, curiosamente, domin-la. Oaparelho funciona, efetiva e curiosamente em funo da inteno do fotgrafo. Istoporque o fotgrafo domina o inpute o output da caixa: sabe com que aliment-la e comofazer para que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho, sem no entanto, saber o que sepassa no interior da caixa. Pelo domnio do input e do output, o fotgrafo domina oaparelho, mas pela ignorncia dos processos no interior da caixa, por ele dominado. Talamlgama de dominaes funcionrio dominando aparelho que o domina caracteriza

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    todo funcionamento de aparelhos. Em outras palavras: funcionrios dominam jogos paraos quais no podem ser totalmente competentes.

    Os programas dos aparelhos so compostos de smbolos permutveis.Funcionar permutar smbolos programados.Um exemplo anacrnico pode ilustrar

    tal jogo: o escritor pode ser considerado funcionrio do aparelho lngua. Brinca comsmbolos contidos no programa lingstico, com palavras, permutando-os segundo asregras do programa. Destarte, Vai esgotando as potencialidades do programa lingstico eenriquecendo o universo lingstico, a literatura. O exemplo anacrnico porque alngua no verdadeiro aparelho. No foi produzida deliberadamente, nem recorreu ateorias cientficas, como no caso de aparelhos verdadeiros. Mas serve de exemplo aofuncionamento de aparelhos.

    O escritor informa objetos durante seu jogo: coloca letras sobre pginas brancas.Tais letras so smbolos decifrveis. Aparelhos fazem o mesmo. H aparelhos, porm, queo fazem melhor que escritores, pois podem informar objetos com smbolos que no

    significam fenmenos, como no caso das letras, mas que significam movimentos dosprprios objetos. Tais objetos assim informados vo decifrando os smbolos e passam amovimentar-se. Por exemplo: podem executar os movimentos de trabalho. Podem,portanto, substituir o trabalho humano. Emancipam o homem do trabalho, liberando-opara o jogo.

    O aparelho fotogrfico ilustra o fato: enquanto objeto, est programado paraproduzir, automaticamente, fotografias. Neste aspecto, instrumento inteligente. E ofotgrafo, emancipado do trabalho, liberado para brincar com o aparelho. O aspectoinstrumental do aparelho passa a ser desprezvel, e o que interessa apenas o seuaspecto brinquedo. Quem quiser captar a essncia do aparelho, deve procurar distinguir oaspecto instrumental do seu aspecto brinquedo, coisa nem sempre fcil, porque implica oproblema da hierarquia de programas, problema central para a captao do

    funcionamento.Uma distino deve ser feita: hardware e software. Enquanto objeto duro, o

    aparelho fotogrfico foi programado para produzir automaticamente fotografias; enquantocoisa mole, impalpvel, foi programado para permitir ao fotgrafo fazer com quefotografias deliberadas sejam produzidas automaticamente. So dois programas que seco-implicam. Por trs destes h outros. O da fbrica de aparelhos fotogrficos: aparelhoprogramado para programar aparelhos. O do parque industrial: aparelho programado paraprogramar indstrias de aparelhos fotogrficos e outros. O econmico-social: aparelhoprogramado para programar o aparelho industrial, comercial e administrativo. O poltico-cultural: aparelho programado para programar aparelhos econmicos, culturais,ideolgicos e outros. No pode haver um ltimo aparelho, nem um programa de todos

    os programas. Isto porque todo programa exige metaprograma para ser programado. Ahierarquia dos programas est aberta para cima.Isto implica o seguinte: os programadores de determinado programa so

    funcionrios de um metaprograma, e no programam em funo de uma deciso sua, masem funo do metaprograma. De maneira que os aparelhos no podem ter proprietriosque os utilizem em funo de seus prprios interesses, como no caso das mquinas. Oaparelho fotogrfico funciona em funo dos interesses da fbrica, e esta, em funo dosinteresses do parque industrial. E assim ad infinitum.Perdeu-se o sentido da pergunta:quem o proprietrio dos aparelhos. O decisivo em relao aos aparelhos no quem ospossui, mas quem esgota o seu programa.

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    O aparelho fotogrfico , por certo, objeto duro feito de plstico e ao. Mas no isso que o torna brinquedo. No a madeira do tabuleiro e das pedras que torna oxadrez, jogo. So as virtualidades contidas nas regras: o software. O aspecto duro dos

    aparelhos no o que lhes confere valor. Ao comprar um aparelho fotogrfico, no pagopelo plstico e ao, mas pelas virtualidades de realizar fotografias. De resto, o aspectoduro dos aparelhos vai se tornando sempre mais barato e j existem aparelhospraticamente gratuitos. o aspecto mole, impalpvel e simblico o verdadeiro portador devalor no mundo ps-industrial dos aparelhos. Transvalorizao de valores; no o objeto,mas o smbolo que vale.

    Por conseguinte, no mais vale a pena possuir objetos. O poder passou doproprietrio para o programador de sistemas. Quem possui o aparelho no exerce opoder, mas quem o programa e quem realiza o programa. O jogo com smbolos passa aser jogo do poder. Trata-se, porm, de jogo hierrquicamente estruturado. O fotgrafoexerce poder sobre quem v suas fotografias, programando os receptores. O aparelho

    fotogrfico exerce poder sobre o fotgrafo. A indstria fotogrfica exerce poder sobre oaparelho. E assim ad infinitum. No jogo simblico do poder, este se dilui e se desumaniza.Eis o que sejam sociedade informtica e imperialismo ps-industrial.

    Tais consideraes permitem ensaiar definio do termo aparelho. Trata-se debrinquedo complexo; to complexo que no poder jamais ser inteiramente esclarecido.Seu jogo consiste na permutao de smbolos j contidos em seu programa. Tal programase deve a meta-aparelhos. O resultado do jogo so outros programas. O jogo do aparelhoimplica agentes humanos, funcionrios, salvo em casos de automao total deaparelhos. Historicamente, os primeiros aparelhos (fotografia e telegrafia) foramproduzidos como simulaes do pensamento humano, tendo, para tanto, recorrido ateorias cientficas. Em suma: aparelhos so caixas pretas que simulam o pensamentohumano, graas a teorias cientficas, as quais, como o pensamento humano, permutam

    smbolos contidos em sua memria, em seu programa. Caixas pretasque brincam depensar.

    O aparelho fotogrfico o primeiro, o mais simples e o relativamente maistransparente de todos os aparelhos. O fotgrafo o primeiro funcionrio, o maisingnuo e o mais vivel de ser analisado. No entanto, no aparelho fotogrfico e nofotgrafo j esto, como germes, contidas todas as virtualidades do mundo ps-industrial.Sobretudo, torna-se observvel na atividade fotogrfica, a desvalorizao do objeto e avalorizao da informao como sede de poder. Portanto, a anlise do gesto de fotografar,este movimento do complexo aparelho-fotgrafo, pode ser exercido para a anlise daexistncia humana em situao ps-industrial, aparelhizada.

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    4. O GESTO DE FOTOGRAFAR

    Quem observar os movimentos de um fotgrafo munido de aparelho (ou de um aparelhomunido de fotgrafo) estar observando movimento de caa. O antiqussimo gesto docaador paleoltico que persegue a caa na tundra1. Com a diferena de que o fotgrafono se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto ,pois, estruturado por essa taiga2artificial, e toda fenomenologia do gesto fotogrfico develevar em considerao os obstculos contra os quais o gesto se choca: reconstituir acondio do gesto.

    A selva consiste de objetos culturais, portanto de objetos que contm intenesdeterminadas. Tais objetos intencionalmente produzidos vedam ao fotgrafo a viso da

    caa. E cada fotgrafo vedado sua maneira. Os caminhos tortuosos do fotgrafo visamdriblar as intenes escondidas nos objetos. Ao fotografar, avana contra as intenes dasua cultura. Por isto, fotografar gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidadeocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrarfotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condies culturaisdribladas.

    A tarefa difcil. Isto porque as condies culturais no transparecem,diretamente, na imagem fotogrfica, mas atravs a triagem das categorias do aparelho. Afotografia no permite ver a condio cultural, mas apenas as categorias do aparelho, porintermdio das quais aquela condio foi tomada. Em fenomenologia fotogrfica, Kant inevitvel.

    As categorias fotogrficas se inscrevem no lado outputdo aparelho. So categorias

    de um espao-tempo fotogrfico, que no nem newtoniano nem einsteiniano. Trata-sede espao-tempo nitidamente dividido em regies, que so, todas elas, pontos de vistasobre a caa. Espao-tempo cujo centro o objeto fotografvel, cercado de regies depontos de vista. Por exemplo: h regio espacial para vises muito prximas, outra paravises intermedirias, outra ainda para vises amplas e distanciadas. H regies espaciaispara perspectiva de pssaro, outras para perspectiva de sapo, outras para perspectiva decriana. H regies espaciais para vises diretas com olhos arcaicamente abertos, eregies para vises laterais com olhos ironicamente semifechados. H regies temporaispara um olhar-relmpago, outras para um olhar sorrateiro, outras para um olharcontemplativo. Tais regies formam rede, por cujas malhas, a condio cultural vaiaparecendo para ser registrada.

    Ao fotografar, o fotgrafo salta de regio para regio por cima de barreiras. Mudade um tipo de espao e um tipo de tempo para outros tipos. As categorias de tempo eespao so sincronizadas de forma a poderem ser permutadas. O gesto fotogrfico um

    jogo de permutao com as categorias do aparelho. A fotografia revela os lances dessejogo, lances que so, precisamente, o mtodo fotogrfico para driblar as condies dacultura. O fotgrafo se emancipa da condio cultural graas ao seu jogo com ascategorias. As categorias esto inscritas no programa do aparelho e podem sermanipuladas. O fotgrafo pode manipular o lado outputdo aparelho, de forma que, porexemplo, este capte a caa como relmpago lateral vindo de baixo.

    1Tundra: pantanal siberiano (N. Ed.)2Taiga: floresta siberiana (N. Ed.)

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    O fotgrafo escolhe, dentre as categorias disponveis, as que lhe parecem maisconvenientes. Neste sentido, o aparelho funciona em funo da inteno do fotgrafo.Mas sua escolha limitada pelo nmero de categorias inscritas no aparelho: escolha

    programada. O fotgrafo no pode inventar novas categorias, a no ser que deixe defotografar e passe a funcionar na fbrica que programa aparelhos. Neste sentido, aprpria escolha do fotgrafo funciona em funo do programa do aparelho.

    A mesma involuo engrenada das intenes do fotgrafo e do aparelho pode serconstatada na escolha da caa. O fotgrafo registra tudo: um rosto humano, uma pulga,um trao de partcula atmica na cmara Wilson, o interior do seu prprio estmago, umanebulosa espiral, seu prprio gesto de fotografar no espelho. De maneira que o fotgrafocr que est escolhendo livremente. Na realidade, porm, o fotgrafo somente podefotografar o fotografvel, isto , o que est inscrito no aparelho. E para que algo sejafotografvel, deve ser transcodificado em cena. O fotgrafo no pode fotografarprocessos. De maneira que o aparelho programa o fotgrafo para transcodificar tudo em

    cena, para magicizar tudo. Em tal sentido, o fotgrafo funciona, ao escolher sua caa, emfuno do aparelho. Aparelho-fera.Aparentemente, ao escolher sua caa e as categorias apropriadas a ela, o fotgrafo

    pode recorrer a critrios alheios ao aparelho. Por exemplo: ao recorrer a critriosestticos, polticos, epistemolgicos, sua inteno ser a de produzir imagens belas, oupoliticamente engajadas, ou que tragam conhecimentos. Na realidade, tais critrios esto,eles tambm programados no aparelho. Da seguinte maneira: para fotografar, o fotgrafoprecisa, antes de mais nada, conceber sua inteno esttica, poltica, etc., porquenecessita saber o que est fazendo ao manipular o lado output do aparelho. Amanipulao do aparelho gesto tcnico, isto , gesto que articula conceitos. O aparelhoobriga o fotgrafo a transcodificar sua inteno em conceitos, antes de podertranscodific-la em imagens. Em fotografia, no pode haver ingenuidade. Nem mesmo

    turistas ou crianas fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente, porquetecnicamente. Toda inteno esttica, poltica ou epistemolgica deve, necessariamente,passar pelo crivo da conceituao, antes de resultar em imagem. O aparelho foiprogramado para isto. Fotografias so imagens de conceitos, so conceitostranscodificados em cenas.

    As possibilidades fotogrficas so praticamente inesgotveis. Tudo o que fotografvel pode ser fotografado. A imaginao do aparelho praticamente infinita. Aimaginao do fotgrafo, por maior que seja, est inscrita nessa enorme imaginao doaparelho. Aqui est, precisamente, o desafio. H regies na imaginao do aparelho queso relativamente bem exploradas. Em tais regies, sempre possvel fazer novasfotografias: porm, embora novas, so redundantes. Outras regies so quase

    inexploradas. O fotgrafo nelas navega, regies nunca dantes navegadas, para produzirimagens jamais vistas. Imagens informativas. O fotgrafo caa, a fim de descobrir visesat ento jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho.

    Na realidade, o fotgrafo procura estabelecer situaes jamais existentes antes.Quando caa na taiga, no significa que esteja procurando por novas situaes l fora nataiga: mas sua busca so pretextos para novas situaes no interior do aparelho.Situaes que esto programadas sem terem ainda sido realizadas. Pouco vale a perguntametafsica: as situaes, antes de serem fotografadas, se encontram l fora, no mundo,ou c dentro, no aparelho? O gesto fotogrfico desmente todo realismo e idealismo. Asnovas situaes se tornaro reais quando aparecerem na fotografia. Antes, no passam devirtualidades. O fotgrafo-e-o-aparelho que as realiza. Inverso do vetor da significao:

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    no o significado, mas o significante a realidade. No o que se passa l fora, nem o queest inscrito no aparelho; a fotografia a realidade. Tal inverso do vetor da significaocaracteriza o mundo ps-industrial, todo funcionamento.

    O gesto fotogrfico srie de saltos, o fotgrafo salta por cima das barreiras queseparam as vrias regies do espao-tempo. gesto quntico, procura saltitante. Todavez que o fotgrafo esbarra contra barreiras, se detm, para depois decidir em que regiodo tempo e do espao vai saltar a partir deste ponto. Tal parada e subseqente deciso semanifestam por manipulao determinada do aparelho. Esse tipo de procura tem nome:dvida. Mas no se trata de dvida cientfica, nem existencial, nem religiosa. dvida detipo novo, que mi a hesitao e as decises em gro de areia. Sendo tal dvida umacaracterstica de toda existncia ps-industrial, merece ser examinada mais de perto. Todavez que o fotgrafo esbarra contra um limite de determinada categoria fotogrfica, hesita,porque est descobrindo que h outros pontos de vista disponveis no programa. Estdescobrindo a equivalncia de todos os pontos de vista programados, em relao cena a

    ser produzida. a descoberta do fato de que toda situao est cercada de numerosospontos de vista equivalentes. E que todos esses pontos de vista so acessveis. Comefeito: o fotgrafo hesita, porque est descobrindo que seu gesto de caar movimentode escolha entre pontos de vista equivalentes, e o que vale no determinado ponto devista, mas um nmero mximo de pontos de vista. Escolha quantitativa, no-qualitativa.

    O tipo novo de dvida pode ser chamado de fenomenolgico, porque cerca ofenmeno (a cena a ser realizada) a partir de um mximo de aspectos. Mas a mathesis(aestrutura fundante) dessa dvida fenomenolgica , no caso da fotografia, o programa doaparelho. Duas coisas devem ser, portanto, retidas: 1. a prxis fotogrfica contrria atoda ideologia; ideologia agarrar-se a um nico ponto de vista, tido por referencial,recusando todos o demais; o fotgrafo age ps ideologicamente; 2. A prxis fotogrfica programada; o fotgrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no

    aparelho. Esta ao ps-ideolgica e programada, que se funda sobre dvidafenomelgica despreconceituada, caracteriza a existncia de todo funcionrio etecnocrata.

    Finalmente, no gesto fotogrfico, uma deciso ltima tomada: apertar o gatilho(assim como o presidente americano finalmente aperta o boto vermelho). De fato, ogesto do fotgrafo menos catastrfico que o do presidente. Mas decisivo. Narealidade, estas decises no so seno as ltimas de uma srie de decises parciais. Oltimo gro de uma srie de gros, que, no caso do presidente pode ser a gota dgua.Uma deciso quantitativa. No caso do fotgrafo, resulta apenas na fotografia. Isto explicaporque nenhuma fotografia individual pode efetivamente ficar isolada: apenas sries defotografias podem revelar a inteno do fotgrafo. Porque nenhuma deciso realmente

    decisiva, nem sequer a do presidente ou do secretrio-geral do partido. Todas as decisesfazem parte de sries claras e distintas. Em outros termos: so decises programadas.Tais consideraes permitem resumir as caractersticas do gesto de fotografar:

    gesto caador no qual aparelho e fotgrafo se confundem, para formar unidade funcionalinseparvel. O propsito desse gesto unificado produzir fotografias, isto , superfciesnas quais se realizam simbolicamente cenas. Estas significam conceitos programados namemria do fotgrafo e do aparelho. A realizao se d graas a um jogo de permutaoentre os conceitos, e graas a uma automtica transcodificao de tais conceitospermutados em imagens. A estrutura do gesto quntica: srie de hesitaes e decisesclaras e distintas. Tais hesitaes e decises so saltos de pontos de vista para pontos devista. O motivo do fotgrafo, em tudo isto, realizar cenas jamais vistas, informativas.

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    Seu interesse est concentrado no aparelho. Esta descrio no se aplica, em suas linhasgerais, apenas ao fotgrafo, mas a qualquer funcionrio, desde o empregado de banco aopresidente americano.

    O resultado do gesto fotogrfico so fotografias, esse tipo de superfcies que noscerca atualmente por todos os lados. De maneira que a considerao do gesto fotogrficopode ser a avenida de acesso a tais superfcies onipresentes.

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    5. A FOTOGRAFIA

    Fotografias so onipresentes: coladas em lbuns, reproduzidas em jornais, expostas emvitrines, paredes de escritrios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressasem livros, latas de conservas, camisetas. Que significam tais fotografias? Segundo asconsideraes precedentes, significam conceitos programados, visando programarmagicamente o comportamento de seus receptores. Mas no o que se v quando paraelas se olha. Vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamentesobre superfcies. Mesmo um observador ingnuo admitiria que as cenas se imprimiram apartir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento no lhe convm. O fatorelevante para ele que as fotografias abrem ao observador vises do mundo. Toda

    filosofia da fotografia no passa, para ele, de ginstica mental para alienados.No entanto, se o observador ingnuo percorrer o universo fotogrfico que o cerca,no poder deixar de ficar perturbado. Era de se esperar: o universo fotogrficorepresenta o mundo l fora atravs deste universo, o mundo. A vantagem permitir quese vejam as cenas inacessveis e preservar as passageiras ( o que, afinal de contas, sejaadmitido, j uma filosofia da fotografia rudimentar).

    Mas ser verdade? Se assim for, como explicar que existam fotografias preto-e-branco e fotografias em cores? Haver, l fora no mundo, cenas em preto-e-branco ecenas coloridas? Se no, qual a relao entre o universo das fotografias e o universo lfora? Inadvertidamente, o observador ingnuo se encontra mergulhado em plena filosofiada fotografia, a qual pretendeu evitar.

    No pode haver, no mundo l fora, cenas em preto-e-branco. Isto porque o preto e

    o branco so situaes ideais, situaes-limite. O branco presena total de todas asvibraes luminosas; o preto a ausncia total. O preto e o branco so conceitos quefazem parte de uma determinada teoria da tica. De maneira que cenas em preto-e-branco no existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas

    imaginam determinados conceitos de determinada teoria, graas qual so produzidasautomaticamente. Aqui, porm, o termo automaticamente no pode mais satisfazer oobservador ingnuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crtica dafotografia, eis o ponto crtico: ao contrrio da pintura, onde se procura decifrar idias, ocrtico de fotografia deve decifrar, alm disso, conceitos.

    O preto e o branco no existem no mundo, o que grande pena. Caso existissem,se o mundo l fora pudesse ser captado em preto-e-branco, tudo passaria a ser

    logicamente explicvel. Tudo no mundo seria ento ou preto ou branco, ou intermedirioentre os dois extremos. O desagradvel que tal intermedirio no seria em cores, mascinzento... a cor da teoria. Eis como a anlise lgica do mundo, seguida de sntese, noresulta em sua reconstituio. As fotografias em preto-e-branco o provam, so cinzentas:imagens de teorias (ticas e outras) a respeito do mundo.

    A tentativa de imaginar o mundo em preto-e-branco antiga. Faltavam apenas osaparelhos adequados a tal imaginao. Dois exemplos desse maniquesmo pr-fotogrfico:1. Abstraiam-se do universo dos juzos os verdadeiros e os falsos. Graas a tal abstrao,pode ser construda a lgica aristotlica, com sua identidade, diferena e o terceiroexcludo. Esta lgica, por sua vez, vai contribuir para a construo da cincia moderna.

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    Ora, a cincia funciona de fato, embora no existam juzos inteiramente verdadeiros ouinteiramente falsos, e embora toda anlise lgica de juzos os reduza a zero;2. abstraiam-se do universo das aes as boas e as ms.Graas a tal abstrao, podem

    ser construdas ideologias (religiosas, polticas, etc.). Essas ideologias, por sua vez, vocontribuir para a construo de sociedades sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam defato, embora no existam aes inteiramente boas ou inteiramente ms, e embora todaao se reduza, sob anlise ideolgica, a movimentos de fantoche. As fotografias empreto-e-branco so resultados desse tipo de maniquesmo munido de aparelho.Funcionam.

    E funcionam da seguinte forma: transcodificam determinadas teorias (em primeirolugar, teorias da tica) em imagem. Ao faz-lo, magicizamtais teorias. Transformam seusconceitos em cenas. As fotografias em preto-e-branco so a magia do pensamentoterico, conceitual, e precisamente nisto que reside seu fascnio. Revelam a beleza dopensamento conceitual abstrato. Muitos fotgrafos preferem fotografar em preto-e-

    branco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos smbolosfotogrficos: o universo dos conceitos.As primeiras fotografias eram, todas, em preto-e-branco, demonstrando que se

    originavam de determinada teoria da tica. A partir do progresso da Qumica, tornou-sepossvel a produo de fotografias em cores. Aparentemente, pois, as fotografiascomearam a abstrair as cores do mundo, para depois as reconstiturem. Na realidade,porm, as cores so to tericas quanto o preto e o branco. O verde do bosquefotografado imagem do conceito verde, tal como foi elaborado por determinada teoriaqumica. O aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. H, porcerto ligao indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque l fora: oconceito cientfico verde se apoia, de alguma forma, sobre o verde percebido. Mas entreos dois verdes se interpe toda uma srie de codificaes complexas. Mais complexas

    ainda do que as que se interpem entre o cinzento do bosque fotografado em preto-e-branco e o verde do bosque l fora. De maneira que a fotografia em cores mais abstrataque a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografias em cores escondem, para oignorante em Qumica, o grau de abstrao que lhe deu origem. As brancas e pretas so,pois, mais verdadeiras. E quanto mais fiis se tornarem as cores das fotografias, maisestas sero mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade terica que lhes deuorigem. (Exemplos: verde Kodak contra verde Fuji.)

    O que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem.So, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser impresses automticas domundo l fora. Tal pretenso precisa ser decifrada por quem quiser receber a verdadeiramensagem das fotografias: conceitos programados. Destarte, o observador ingnuo se v

    obrigado, malgr lui, a mergulhar no torvelinho das reflexes filosficas que procuroueliminar, por consider-las ginstica mental alienada.Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deciframento. Que fao ao

    decifrar um texto em alfabeto latino? Decifro o significado das letras, esses determinadossons da lngua falada? Decifro o significado das palavras compostas de tais letras? Decifroo significado das frases compostas de tais palavras? Ou devo procurar, por trs dosignificado das frases, outros significados, como a inteno do autor e o contexto culturalno qual o texto foi codificado? Para decifrar o significado da fotografia do bosque verde,bastaria ter decifrado os conceitos cientficos que codificaram a fotografia, ou devo ir maislonge? Assim colocada, a questo do deciframento no ter resposta satisfatria, j quetodo nvel de deciframento assentar sobre mais um a ser decifrado. Mas podemos, no

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    caso da fotografia, evitar este regresso ao infinito. Para decifrar fotografias no precisomergulhar at o fundo da inteno codificadora, no fundo da cultura, da qual asfotografias, como todo smbolo, so pontas de icebergs. Basta decifrar o processo

    codificador que se passa durante o gesto fotogrfico, no movimento do complexofotgrafo-aparelho. Se consegussemos captar a involuo inseparvel das intenescodificadoras do fotgrafo e do aparelho, teramos decifrado, satisfatoriamente, afotografia resultante. Tarefa aparentemente reduzida, mas na realidade gigantesca.Precisamente por serem tais intenes inseparveis, e por se articularem de formaespecfica em toda e qualquer fotografia a ser criticada.

    No entanto, o deciframento de fotografias possvel, porque, embora inseparveis,as intenes do fotgrafo e do aparelho podem ser distinguidas.Esquematicamente, a inteno do fotgrafo esta: 1. codificar, em forma de imagens, osconceitos que tem na memria; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que taisimagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre.

    Resumindo: A inteno a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessveis aoutros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a inteno programada noaparelho esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma deimagens; 2. servir-se de um fotgrafo, a menos que esteja programado para fotografarautomaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4.fazer imagens sempre mais aperfeioadas. Resumindo: a inteno programada noaparelho a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhesirvam de feed-backpara o seu contnuo aperfeioamento.

    Mas por trs da inteno do aparelho fotogrfico h intenes de outros aparelhos.O aparelho fotogrfico produto do aparelho da indstria fotogrfica, que produto doaparelho do parque industrial, que produto do aparelho scio-econmico e assim pordiante. Atravs de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma nica e gigantesca

    inteno, que se manifesta no output do aparelho fotogrfico: fazer com que osaparelhos programem a sociedade para um comportamento propcio ao constanteaperfeioamento dos aparelhos.

    Se compararmos as intenes do fotgrafo e do aparelho, constataremos pontosde convergncia e divergncia. Nos pontos convergentes, aparelho e fotgrafo colaboram;nos divergentes, se combatem. Toda fotografia resultado de tal colaborao e combate.Ora, colaborao e combate se confundem. Determinada fotografia s decifrada, quandotivermos analisado como a colaborao e o combate nela se relacionam.

    No confronto com determinada fotografia, eis o que o crtico deve perguntar: atque ponto conseguiu o fotgrafo apropriar-se da inteno do aparelho e submet-la suaprpria? Que mtodos utilizou: astcia, violncia, truques? At que ponto conseguiu o

    aparelho apropriar-se da inteno do fotgrafo e desvi-la para os propsitos neleprogramados? Responder a tais perguntas ter os critrios para julg-la. As fotografiasmelhores seriam aquelas que evidenciam a vitria da inteno do fotgrafo sobre oaparelho: a vitria do homem sobre o aparelho. Foroso constatar que, muito emboraexistam tais fotografias, o universo fotogrfico demonstra at que ponto o aparelho jconsegue desviar os propsitos dos fotgrafos para os fins programados. A funo de todacrtica fotogrfica seria, precisamente, revelar o desvio das intenes humanas em proldos aparelhos. No dispomos ainda de uma tal crtica da fotografia, por razes que serodiscutidas nos prximos captulos.

    Confesso que o presente captulo, embora se chame A fotografia, no consideroualgumas das mais importantes caractersticas da fotografia. Minha desculpa que seu

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    propsito era outro: abrir caminho para o deciframento de fotografias. Resumo, pois, oque pretendi dizer: fotografias so imagens tcnicas que transcodificam conceitos emsuperfcies. Decifr-las descobrir o que os conceitos significam. Isto complicado,

    porque na fotografia se amalgamam duas intenes codificadoras: a do fotgrafo e a doaparelho. O fotgrafo visa eternizar-se nos outros por intermdio da fotografia. O aparelhovisa programar a sociedade atravs das fotografias para um comportamento que lhepermita aperfeioar-se. A fotografia , pois, mensagem que articula ambas as intenescodificadoras. Enquanto no existir crtica fotogrfica que revele essa ambigidade docdigo fotogrfico, a inteno do aparelho prevalecer sobre a inteno humana.

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    6. A DISTRIBUIO DA FOTOGRAFIA

    As caractersticas que distinguem a fotografia das demais imagens tcnicas se revelam aoconsiderarmos como so distribudas. As fotografias so superfcies imveis e mudas queesperam, pacientemente, serem distribudas pelo processo de multiplicao ao infinito.So folhas. Podem passar de mo em mo, no precisam de aparelhos tcnicos paraserem distribudas. Podem ser guardadas em gavetas, no exigem memrias sofisticadaspara seu armazenamento. No entanto, antes de considerarmos sua caracterstica de folhade papel , refletiremos por pouco que seja, sobre o problema da distribuio deinformaes.

    O homem capaz de produzir informaes, transmiti-las e guard-las. Tal

    capacidade humana antinatural, j que a natureza como um todo sistema que tende,conforme o segundo princpio da termodinmica, a se desinformar. H fenmenos, porcerto, na natureza (sobretudo os organismos vivos) que so igualmente capazes deproduzir informaes e de transmiti-las e guard-las. O homem no o nico epiciclonegativamente entrpico, na linha geral da natureza, rumo entropia. Mas o homemparece ser o nico fenmeno capaz de produzir informaes com o propsito deliberadode se opor entropia. Capaz de transmitir e guardar informaes no apenas herdadas,mas adquiridas. Podemos chamar tal capacidade especificamente humana: espritoe seuresultado, cultura.

    O processo dessa manipulao de informaes a comunicao que consiste deduas fases: na primeira, informaes so produzidas; na segunda, informaes sodistribudas para serem guardadas. O mtodo da primeira fase o dilogo, pelo qual

    informaes j guardadas na memria so sintetizadas para resultarem em novas (htambm dilogo interno que ocorre em memria isolada).

    O mtodo da segunda fase o discurso, pelo qual informaes adquiridas nodilogo so transmitidas a outras memrias, a fim de serem armazenadas.

    H quatro estruturas fundamentais de discurso:1. os receptores cercam o emissor em forma de semicrculo, como no teatro; 2. o emissordistribui a informao entre retransmissores, que a purificam de rudos, para retransmiti-laa receptores, como no exrcito ou feudalismo; 3. o emissor distribui a informao entrecrculos dialgicos, que a inserem em snteses de informao nova, como na cincia; 4. oemissor emite a informao rumo ao espao vazio, para ser captada por quem nele seencontra, como na rdio. A todo mtodo discursivo, corresponde determinada situao

    cultural: o primeiro mtodo exige situao responsvel; o segundo , autoritria; oterceiro, progressista; o quarto, massificada. A distribuio das fotografias se d peloquarto mtodo discursivo.

    Fotografias podem ser manipuladas dialogicamente. Por exemplo: possveldesenhar-se em cartazes fotogrficos bigodes ou outros smbolos obscenos, criando,assim, informao nova. Mas o aparelho fotogrfico programado para distribuiodiscursiva rumo ao espao vazio, como o fazem a televiso e o rdio. Todas as imagenstcnicas so assim programadas, salvo o vdeo, que permite interao dialgica.

    Mas o que distingue as fotografias das demais imagens tcnicas que so folhas.E por isso se assemelham a folhetos. Filmes, para serem distribudos, necessitam deaparelhos projetores; fitas de vdeo, de aparelhos televisores. Fotografias nada precisam.

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    verdade que existem dispositivos, e que recentemente foram inventadasfotografias eletrnicas, que exigem distribuio por aparelhos. Porm, o que conta emfotografias a possibilidade de serem distribudas arcaicamente.

    Por serem relativamente arcaicas, as fotografias relembram um passado pr-industrial, odas pinturas imveis e caladas, como em paredes de caverna, vitrais, telas. Ao contrriodo cinema, as fotografias no se movem, nem falam. Seu arcasmo provm dasubordinao a um suporte material: papel ou coisa parecida. Mas essa objetividaderesidual engana. Um quadro tradicional um original: nico e no multiplicvel. Paradistribuir quadros, preciso transport-los de proprietrio a proprietrio. Quadros devemser apropriadospara serem distribudos: comprados, roubados, ofertados. So objetos quetm valor enquanto objetos. Prova disto que os quadros atestam seu produtor: traosdo pincel por exemplo. A fotografia, por sua vez, multiplicvel. Distribu-la multiplic-la. O aparelho produz prottipos cujo destino serem estereotipados. O termo originalperdeu sentido, por mais que certos fotgrafos se esforcem para transport-lo da situao

    artesanal situao ps-industrial, onde as fotografias funcionam. Ademais, no so toarcaicas quanto parecem.A fotografia enquanto objeto tem valor desprezvel. No tem muito sentido querer

    possu-la. Seu valor est na informao que transmite. Com efeito, a fotografia oprimeiro objeto ps-industrial: o valor se transferiu do objeto para a informao. Ps-indstria precisamente isso: desejar informao e no mais objetos. No mais possuir edistribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). Trata-se de dispor de informaes(sociedade informtica). No mais um par de sapato, mais um mvel, porm, mais umaviagem, mais uma escola. Eis a meta. Transformao de valores, tornada palpvel nasfotografias.

    Certamente objetos carregam informaes, e o que lhes confere valores. Sapatoe mvel so informaes armazenadas. Mas em tais objetos, a informao est

    impregnada, no pode se descolar, apenas ser gasta. Na fotografia, a informao est nasuperfcie e pode ser reproduzida em outras superfcies, to pouco valorosas quanto asprimeiras. A distribuio da fotografia ilustra, pois, a decadncia do conceitopropriedade.No mais quem possui tem poder, mas sim quem programa informaes e as distribui.Neo-imperialismo. Se determinado cartaz rasgar com o vento, nem por isso o poder daagncia publicitria, programadora do cartaz, ficar diminudo. O cartaz nada vale e notem sentido querer possu-lo. Pode ser substitudo por outro. A comparao da fotografiacom quadros impe repensar valores econmicos, polticos, ticos, estticos eepistemolgicos do passado.

    A decadncia do objeto e a emergncia da informao evidenciam-se melhor emfotografias que nas demais imagens tcnicas que nos cercam. O receptor de filme ou de

    programa de TV no segura nada em sua mo, mas o receptor da fotografia ainda temum objeto entre os dedos, e o despreza. Vivencia concretamente o quanto ficaramdesprezveis os objetos. Ao segurar a fotografia entre os dedos, o receptor se engajacontra o objeto e em favor e em favor da informao, smbolo da superfcie da fotografia.Exatamente como faz o receptor de folheto. Aps decifrada a mensagem simblica, afolha pode ser descartada. No entanto, o paralelismo entre fotografia e folheto no deveser exagerado. Ambos so objetos desprezveis, por certo. Mas a inteno da fotografia oposta do folheto: transcodifica a mensagem linear do folheto em imagem. Quermagiciz-la.A fotografia antifolheto. Para prov-lo, basta considerar como fotografiasso distribudas.

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    Embora no necessitem de aparelhos tcnicos para sua distribuio, as fotografiasprovocaram a construo de aparelhos de distribuio gigantescos e sofisticados.

    Aparelhos que se colam sobre o buraco output do aparelho fotogrfico, a fim de sugarem

    as fotografias por ele cuspidas, multiplic-las e derram-las sobre a sociedade, pormilhares de canais. O aparelho de distribuio passa a fazer parte integrante do aparelhofotogrfico, e o fotgrafo age em funo dele. Tais aparelhos, assim como os demais, soprogramados para programar os seus receptores em prol de um comportamento propcioao seu funcionamento, cada vez mais aperfeioado. Sua distino dos demais aparelhos o fato de dividirem as fotografias em vrios braos, antes de distribu-las. Tal divisodistribuidora caracteriza as fotografias.

    Todas as informaes podem ser subdivididas em classes. Por exemplo,informaes indicativas(A A); imperativas( A deve ser A); optativas (que A seja

    A). O ideal clssico dos indicativos a verdade; dos imperativos, a bondade; dosoptativos, a beleza. Na realidade, porm, a classificao insustentvel. Todo indicativo

    cientfico tem aspectos polticos e estticos; todo imperativo poltico tem aspectoscientficos e estticos; todo gesto optativo (obra de arte) tem aspectos cientficos epolticos. De maneira que toda classificao de informaes mera teoria.

    Os aparelhos distribuidores de fotografias transformam-nas em prxis. H canaispara fotografias indicativas, por exemplo, livros cientficos e jornais dirios. H canais parafotografias imperativas, por exemplo, cartazes de propaganda comercial e poltica. E hcanais para fotografias artsticas, por exemplo, revistas, exposies e museus. No entanto,tais canais dispem de dispositivos que permitem a determinadas fotografias deslizaremde um canal a outro. Fotografias do homem na lua podem transitar entre revista deastronomia e parede de consulado americano, da para exposio artstica, e da paralbum de ginasiano. A cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: decientfica passa a ser poltica, artstica, privativa. A diviso das fotografias em canais de

    distribuio no operao meramente mecnica: trata-se de operao detranscodificao. Algo a ser levado em considerao por toda crtica de fotografia.O fotgrafo colabora nessa transcodificao da fotografia pelos aparelhos de distribuio,e o faz de maneira sui generis. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir suafotografia. Fotografa em funo de determinada publicao cientfica, determinado jornal,determinada exposio, ou simplesmente em funo de seu lbum. Do ponto de vista dofotgrafo, duas razes o movem: primeira, o canal lhe permitir alcanar grande nmerode receptores, pois seu engajamento precisamente eternizar-se num mximo depessoas; segunda, o canal vai sustent-lo economicamente, pois a fotografia, enquantoobjeto desprezvel, no tem valor de troca. Em suma: o canal para o fotgrafo ummtodo para torn-lo imortal e no morrer de fome (quanto ao lbum, por ser canal sui

    generis, aparentemente privado, ser discutido no captulo seguinte).No canal, a inteno do fotgrafo e do aparelho se co-implicam pela mesma involuo jdiscutida: o fotgrafo fotografa em funo de um jornal determinado, porque este lhepermite alcanar centenas de milhares de receptores e porque o paga. O fotgrafo crestar utilizando o jornal como mdium, enquanto o jornal cr estar utilizando o fotgrafoem funo de seu programa. Do ponto de vista do jornal, quando a fotografia recodificaos artigos lineares em imagens, ilustrando-os, est permitindo a programao mgicados compradores do jornal em comportamento adequado. Ao fotografar, o fotgrafo sabeque sua fotografia ser aceita pelo jornal somente se esta se enquadrar em seu programa.De maneira que vai procurar driblar tal censura, ao contrabandear na fotografia elementosestticos, polticos e epistemolgicos no previstos no programa. Vai procurar submeter a

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    inteno do jornal sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal tentativaastuciosa, pode vir a aceitar a fotografia com o propsito de enriquecer seu programa. Vaiprocurar recuperar a inteno subversiva. Pois bem, o que vale para jornais, vale para os

    demais canais de distribuio de fotografias, uma vez que todos revelaro, sob anlisecrtica, a luta dramtica entre a inteno do fotgrafo e a do aparelho distribuidor defotografias.

    Tal crtica rara. Os crticos no reconhecem, via de regra, a funo codificadorado canal distribuidor na fotografia criticada. Assumem, como um dado no-criticvel, quecanais cientficos distribuem fotografias cientficas; que agncias de propagandadistribuem fotografias publicitrias; que galerias de arte distribuem fotografias de arte.Desta maneira, os crticos tornam invisveis os canais distribuidores de fotografias.Funcionam em funo da inteno de tais canais, os quais, precisamente, se quereminvisveis. Para isto os crticos so pagos: eis sua funo no interior dos aparelhos. Aocalarem os crticos sobre a luta entre fotgrafo e canal, colaboram com os aparelhos em

    sua inteno de absorver a inteno do fotgrafo contra o aparelho. Trata-se decolaborao no significado pejorativo de trahison des clercs1, e ilustra a funo dosintelectuais em situao onde aparelhos dominam. Ao formularem perguntas do tipo

    fotografia arte?, ou o que fotografia politicamente engajada?, sem admitirem quetais perguntas vo sendo respondidas automaticamente pelos canais, os crticoscontribuem para o ocultamento dos aparelhos programadores.

    Ao considerarmos a distribuio de fotografias, esbarramos naquilo que as distingue dasdemais imagens tcnicas: so imagens imveis e mudas do tipo folha, e podem serinfinitamente reproduzidas; poderiam ser distribudas como folhetos, no entanto o so poraparelhos gigantescos que as irradiam por discurso massificante; enquanto objetos, asfotografias no tm valor: este reside na informao que guardam superficialmente; so,portanto, objetos ps-industriais: o interesse se desvia para a informao e no para o

    objeto que se abandona; antes de serem distribudas, as fotografias so transcodificadaspelo aparelho de distribuio, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somentedentro do canal, do medium, adquirem seu ltimo significado; nessa transcodificao,cooperam tanto o fotgrafo quanto o aparelho. Este fato silenciado pela maior parte dacrtica, o que torna os aparelhos de distribuio invisveis para os receptores dasfotografias. Graas a tal crtica funcional, o receptor da fotografia vai receb-la de modono-crtico. E ser assim que os aparelhos de distribuio podero programar o receptorpara comportamento mgico que sirva de feed-backpara seus aparelhos.

    1Do livro de Julien Benda, A traio dos clrigos (N. Ed.)

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    7. A RECEPO DA FOTOGRAFIA

    De modo geral, todo mundo possui um aparelho fotogrfico e fotografa, assim como,praticamente, todo mundo est alfabetizado e produz textos. Quem sabe escrever, sabeler; logo, quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para captarmos a razopela qual quem fotografa pode ser analfabeto fotogrfico, preciso considerar ademocratizao do ato fotogrfico. Tal considerao poder contribuir, de passagem, nossa compreenso da democracia em seu sentido mais amplo.

    Aparelho fotogrfico comprado por quem foi programado para tanto. Aparelhosde publicidade programam tal compra. O aparelho fotogrfico assim comprado ser de

    ultimo modelo: menor, mais barato, mais automtico e eficiente que o anterior. O

    aparelho deve o aperfeioamento constante de modelos ao feed-backdos que fotografam.O aparelho da indstria fotogrfica vai assim aprendendo, pelo comportamento dos quefotografam, como programar sempre melhor os aparelhos fotogrficos que produzir.Neste sentido, os compradores de aparelhos fotogrficos so funcionriosdo aparelho daindstria fotogrfica.

    Uma vez adquirido, o aparelho fotogrfico vai se revelar um brinquedo curioso.Embora repouse sobre teorias cientficas complexas e sobre tcnicas sofisticadas, muitofcil manipul-lo. O aparelho prope jogo estruturalmente complexo, mas funcionalmentesimples. Jogo oposto ao xadrez, que estruturalmente simples, mas funcionalmentecomplexo: fcil aprender suas regras, mas difcil jog-lo bem. Quem possui aparelhofotogrfico de ltimo modelo, pode fotografar bem sem saber o que se passa nointerior do aparelho. Caixa preta.

    O aparelho brinquedo sedento por fazer sempre mais fotografias. Exige de seupossuidor (quem por ele est possesso) que aperte constantemente o gatilho. Aparelho-arma. Fotografar pode virar mania, o que evoca uso de drogas. Na curva desse jogomanaco, pode surgir um ponto a partir do qual o homem-desprovido-de-aparelho sesente cego. No sabe mais olhar, a no ser atravs do aparelho. De maneira que no estface ao aparelho (como o arteso frente ao instrumento), nem est rodando em torno doaparelho (como o proletrio roda a mquina). Est dentro do aparelho, engolido por suagula. Passa a ser prolongamento automtico do seu gatilho. Fotografa automaticamente.

    A mania fotogrfica resulta em torrente de fotografias. Uma torrente memria quea fixa. Eterniza a automaticidade inconsciente de quem fotografa. Quem contemplarlbum de fotgrafo amador, estar vendo a memria de um aparelho, no a de um

    homem. Uma viagem para a Itlia, documentada fotograficamente, no registra asvivncias, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde o aparelho oseduziu para apertar o gatilho. lbuns so memrias privadas apenas no sentido deserem memrias de aparelho. Quanto mais eficientes se tornam os modelos dosaparelhos, tanto melhor atestaro os lbuns, a vitria do aparelho sobre o homem.

    Privatividade no sentido ps-industrial do termo.Quem escreve precisa dominar as regras da gramtica e ortografia. Fotgrafo

    amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples, inscritos ao ladoexterno do aparelho. Democracia isto. De maneira que quem fotografa como amadorno pode decifrar fotografias. Sua prxis o impede de faz-lo, pois o fotgrafo amador crser o fotografar gesto automtico graas ao qual o mundo vai aparecendo. Impe-se

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    concluso paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difcil se tornaro deciframento de fotografias, j que todos acreditam saber faz-las.

    Mas ainda no tudo. As fotografias que sobre ns se derramam so recebidas

    como se fossem trapos desprezveis. Podemos recort-las de jornais, rasg-las, jog-las.Nossa prxis com a mar fotogrfica que nos inunda faz crer que podemos fazer delas ecom elas o que bem entendermos. Tal desprezo pela fotografia individual distingue a suarecepo das demais imagens tcnicas. Exemplo: ao contemplarmos cena da guerra noLbano em cinema ou TV, sabemos que nada podemos fazer a no ser contempl-la. Aocontemplarmos cena idntica em jornal, podemos recort-la e guard-la, ou simplesmenterasg-la para embrulhar sanduche. Isso leva a crer que podemos agir ao recebermos amensagem de tal guerra, que podemos assumir ponto de vista histrico face guerra.

    Analisemos essa falsa atitude histrica face fotografia.A fotografia da guerra no Lbano em jornal mostra uma cena. Exige que nosso

    olhar a escrutine pelo mtodo j discutido anteriormente. O olhar vai estabelecendo

    relaes especficas entre os elementos da fotografia. No sero relaes histricas decausa e efeito, mas relaes mgicas do eterno retorno. Por certo, o artigo que afotografia ilustra no jornal consiste de conceitos que significam as causas e os efeitos detal guerra. Porm o artigo lido em funo da fotografia, como que atravs dela. No oartigo que explica a fotografia, mas a fotografia que ilustra o artigo. Este s textono curioso sentido de ser pr-texto da fotografia. Tal inverso da relao texto-imagemcaracteriza a ps-indstria, fim de todo historicismo.

    No curso da Histria, os textos explicavam as imagens, demitizavam-nas.Doravante, as imagens ilustram os textos, remitizando-os. Os capitis romnticos serviamaos textos bblicos com o fim de desmagiciz-los. Os artigos de jornal servem sfotografias para serem remagicizados. No curso da Histria, as imagens eramsubservientes, podia-se dispens-las. Atualmente, os textos so subservientes e podem

    ser dispensados. Os pases assim chamados subdesenvolvidos comeam a descobrir talfato. No decorrer da Histria, o iletrado era um aleijado da cultura dominada por textos.

    Atualmente, o iletrado participa da cultura dominada por imagens. Lutar contra oanalfabetismo vai-se revelando luta quixotesca. Contudo, no so apenas os pasessubdesenvolvidos que comeam a perceb-lo, Johnny cant spell nos Estados Unidos. Oanalfabetismo fotogrfico est levando ao analfabetismo textual.

    No , pois, historicamente, que agimos face guerra do Lbano; agimosritualmente. Recortar a fotografia do jornal ou rasg-la agir ritualmente. A fotografiaest sendo manipulada como em ritual de magia. No fundo, no somos ns que amanipulamos, ela que nos manipula. E da seguinte forma: a cena fotogrfica da guerrano Lbano consiste de elementos que se relacionam significativamente. No sentido

    temporal, um elemento precede outro e pode suceder ao precedente. No sentido desuperfcie, um elemento d significado a outro e recebe significado de outro. Destarte, asuperfcie da imagem passa a ser significativa, carregada de valores. Est plena dedeuses. Mostra o que bom e o que mau: os tanques so maus; as crianas so

    boas; Beirute em chamas infernal, os mdicos de uniforme branco so anjos. Afotografia hierofania: o sacro nela transparece. E o que vale para esta fotografia relativaao Lbano, vale para todas as demais. So, todas elas, imagens de foras inefveis quegiram em torno da imagem, conferindo-lhe sabor indefinvel. Imagens de foras ocultasque giram magicamente. Fascinam seu receptor, sem que este saiba dizer o que o fascina.

    O receptor pode recorrer ao artigo de jornal que acompanha a fotografia par darnome ao que est vendo. Mas, ao ler o artigo, est sob a influncia do fascnio mgico da

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    fotografia. No quer explicao sobre o que viu, apenas confirmao. Est farto deexplicaes de todo tipo. Explicaes nada adiantam se comparadas com o que se v. Noquer saber sobre causas ou efeitos da cena, porque esta e no o artigo que transmite

    realidade. E como tal realidade mgica, a fotografia no a transmite; ela a prpriarealidade.

    A realidade da guerra no Lbano, a realidade ela mesma est na fotografia. Nopode estar alhures. Se o receptor da fotografia for para o Lbano ver a guerra com seusprprios olhos, estar vendo a mesma cena, j que olha tudo pelas categorias dafotografia. Est programado para ver magicamente. E para que fazer tal viagem, se afotografia lhe traz a guerra para sua casa? O vetor de significado se inverteu: o smbolo o real e o significado o pretexto. O universo dos smbolos (entre os quais, o universofotogrfico dos mais importantes) o universo mgico da realidade. No adiantaperguntar o que a fotografia da cena libanesa significa na realidade. Os olhos vem o queela significa, o resto metafsica de m qualidade.

    E assim a fotografia vai modelando seus receptores. Estes reconhecem nela forasocultas inefv