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    LETRAS

    Um anjo-rvoreda Amaznia

    VicenteFranzCecimtransfigurouaAmaznia

    fixando-aemAndara,sementequesetornou

    numaobraquetemvindoasercriadadesde

    1979.Revolucionouanarrativabrasileirae

    acabadelanarKOescurodasemente

    Ana Marques Gasto

    Entrevista Vicente Franz Cecim

    undindo gneros poesia,prosa, ensaio , na onricaAndara transfiguradora daAmaznia,espciederegiometforadavida,queVicen-teFranzCecimescrevetodos

    os seus livros, obra nica emdilogo comfilsofos, poetas e msticos numa comu-nidade sem diferena ontolgica entresereshumanos, animais ouplantas. Cinti-lante e visionria, a escritura do autordeK O escuro da semente, agora publica-do emPortugal, reinventa omundo.

    Desde1979,dedica-secriaodeViagemaAndara,o livro invisvel,originadonamti-ca Amaznia. Acaba de ser publicado emPortugalK O escuro da semente, prosse-guindoessecaminho.umaespciede ta-ca,Andara?Aproximar-nos de Andara e da Amaznianela transfigurada por meio de taca pode seruma das vias. Homero e os dedos rseos daaurora. Se Andara fosse taca, eu seriaUlisses? Hiptese atraente, que promete osdelrios do leito de Circe, o canto das sereias...

    Masnos issoquebusca?No, no s isso o que busco e o que mebusca. E no sozinho. Somos todos Ulissestentando voltar para casa. E onde, a casa?No campo de batalha e colheita que o cos-mos, com seus buracos negros famintos,galxias nascendo e morrendo, enquantoflorescemos e fenecemos sobre a terra. svezes uma ave canta para ns e os homensse mordem como feras quando perdem devista a ternura e a infncia. Suspeito que,no profundo de ns, queremos o menosque o mais, esse mais que o retornar-mos origem sagrada do humano.

    Na sua viagem literria est sempre pre-sente odilogoentre visvel e invisvel?Em Andara, somos todos transeuntes napassagem que vai do visvel ao invisvel edeles retorna, ascenses e quedas. Comoneste K O escuro da semente, que acaba de serpublicado em Portugal.

    Queoutros passos podemosdar nomundodeAndara?Ah, antes de penetrar mais em Andara,teremos ainda de passar pelo palcio damemria de Santo Agostinho. E isso nosdir menos obscuramente o que Andara,que j antecipo como lugar de sonhar elugar de todos os lugares, que tudo absorvee se abre para tudo conter em si. Recordouma frase que est na abertura do segundolivro escrito de Andara, de 1980, Os animaisda terra. Naquele livro, j se dizia: Embora a ave mais bela seja aquela quese recusa a voar. nessa frase que se achae se perde Andara, toda imersa em suasdobras.

    Eessarecusadovooremete-nosparaqu?Para a contemplao, o wu wei, o no-agirdo Tao, ou exige outras asas que realizemo autntico voo adormecido em ns,homens? No sei, tantos livros depois,ainda no sei, e ainda busco a resposta. Seh resposta. Me sinto um anjo cado, quesabe coisas que no sabe e que no poderevelar. Por isso escrevo Andara h todosesses anos, e s os livros de Andara. Paraque outros, lendo, se revelem a si mesmoso que para mim continua oculto e somen-te vislumbrado.

    NesteseulivroKOescurodasemente,comona restante obra, homens,mulheres, ani-mais, filsofosepoetasvivemnummesmoterritriodeestranheza.deumacomuni-dadeque fala?Sim, de toda uma comunidade onrica deseres e coisas, sem distines, que avanamisturando as suas vozes, entoando em coroeste canto: Atravessar o que nos nega, che-gar ao Sim.

    Essa a exigncia radical de Andara, a daqueda?O homem precisa se deixar cair do pontoinsustentvelondeseinstalouparaterodirei-to de adquirir asas. Ser durante a sua quedaque ir descobrir a leveza possvel. Agarradoem seu tronco, pendurado de si mesmo como

    se mantm, auto-suficiente fruta que no dfrutos, como poder cumprir a sua misso desemear-se,desemearacoisahumananaterrae ser a chuva inversa dos cus? Em Andaraesttudocaindoetudosubindo.Andaraessese cruzar no meio do caminho entre a asa e aserpente,passandopelohomemagarradoemseutroncoelanandosobreeleclaresesom-bras para que finalmente veja: a terra l noalto, o cu embaixo de si.

    Como v omundo literrio no contexto dasuaobra?De um ponto de vista exterior, o ponto devista do que se chama literatura, K O escu-ro da semente surge num tempo em que aliteratura agoniza por toda parte, na insen-sibilidade, no cinismo, abandonada emmos de astuciosos artesos falsificadoresde palavras e oferecida como produto a serconsumido avidamente por leitores mortos.Os livros de Andara querem a ressurreiodo leitor.

    Que tipode leitor querAndara?O leitor vivo, no-passivo, co-autor. nessecrepsculo triste que K se recusa a cintilarpassivamente, ignorando a noite prxima.K um livro que se prope em iconescritu-ra, falando aos olhos onde as palavras calam.Antes dele, j em plena noite da literatura,outro livro visvel de Andara, Serdespanto,tambm lanado em Portugal, em 2001, eainda indito no Brasil, se quis apenas escri-tura, a nica via para uma possvel salvaoda literatura.

    Crnamorteda literatura?Devemos salvar a literatura de sua agonia?Ou deixar esse organismo agonizante defi-nitivamente de lado e dar espao flores-cncia de um outro corpo de presenada palavra, vivo? O que Andara persegue?A palavra praticada como vida, a literaturapraticada como ontologia.

    O processo de escrita destes livros tem,de algummodo, a ver com o auto-retratoouaauto-representao?

    E depoisdas palavras?

    ndara comeou por sersemente, depois arbusto,depoisaAmazniainteiratecidoinfindveldehistriasmticasedefbulas,depoisrvore que d frutos e se

    transformaemregio-metforadavidaintei-ra,depoisflorestaquequerirdovisvelaoinvi-svel.Andaranotemfim.EmAndaraotextotextura,deacordocomametforamedieval.Andara Vicente Franz Cecim em escriturade si mesmo, notvel escritor paraense(Belm,Brasil)queacriouenquantogeogra-fia verbal e lugar sagrado.

    VicenteFranzCecimnasceunaAmaznia,dedicando-se,desde1979,criaodeumani-caobra,ViagemaAndara,olivroinvisvel, umno-livrodeondenascemosoutros,osvisveis,queocompem,entreosquais13forampubli-cadosnoBrasileumdeles,Serdespanto, emPortugalpelamodeAntnioCabrita(man,2001),entoapontadopelacrticaportuguesacomo um dos melhores lanamentos do ano.Entre os ttulos deste longo caminho,Aasaeaserpente,Terradasombraedono,Si-lencioso como o Paraso.K O escuro da sementeacabadeserlanadoentrens(VeroVerso).

    Prmio de Revelao de Autor da Associa-oPaulistadosCrticosdeArte(APCA,1980),Meno Especial no Prmio Literrio Inter-nacionalPluralnoMxico,(1981),GrandePr-miodeCrticadaAPCA(1988),VicenteFranzCecim,pertencentelinhagemdeumGuima-resRosa,fazcoabitarnasuaescritadeAnda-rafilsofosepoetas,msticoseinsectos,aveseserpentes,viajandopordentrodascoisascomaestranhezadequemlevitacomoumanjode-serdado,comoescreveopoetaFabrcioCar-pinejar.

    A escritura de Cecim, que convoca umacomunidadedegnerosprosa,poesia,ensaio linguagem poderosa no neologismo e nametaforizao e lida com as palavras em des-locao,tornando-sematriadeumidiomaou-tro um antes da linguagem , o do invisvel(Paraondeiremos,homens,depoisdaspala-vras?).Tudo circula num labirinto de frag-mentosefracturasentreluzesombra,noexis-tindo diferena ontolgica entre seres huma-nos,animaiseplantas,animadoseinanimados.Vicente abandona a literatura para se perdernoinfinito,arrancandooleitorvisofuncio-nal das coisas. Escreve na sua inquietude vi-sionria, rebelde, constri uma arquitecturasonoraeasctica.Sabequeasolidoumho-mem,umossoouumanimal.C

    A

    Com o vazio que transborda. ele que nosescreve. Fui fazendo essa descoberta medi-da que ia criando os livros visveis deAndara. Andara me escreve, por isso escre-vo Andara, que a Amaznia onde nascitransfigurada atravs de mim. Se eu nodedicasse toda a minha vida a praticar essaalquimia de me tornar cada vez mais um serde escritura e cada vez menos um homemescritor, Andara no existiria. Andara umser de espanto geogrfico. A Amaznia, ageografia espantosa. a natureza sagradaque torna possvel essa impossvel Andara.

    No sendomais literatura, como diz, asuaescrita inscreve-senoterritriodoquemais frgil e fulgurante?Um territrio em que tudo est em infuso,sim, claro-escuro, submerso na antiga alqui-mia das palavras, onde tudo cesse suas vidasseparadas e se funda no uno: prosa, poesia,meditaes, reflexes, texto em escritura, aiconescritura, insectos e homens, o visvel eo invisvel, o dito e o no dito, o silncio e avoz, a pgina branca e a pgina escrita, osonhado e o vivido. Andara quer a fusototal, quer a fisso que abra a fenda por ondetudo se reencontre na unidade original..Nesse sentido, a poesia, o amor esto dolado de um no poder, no sentido da suarecusa?Andara ainda busca a amizade das coisaspelas coisas.

    Essaprocuramanifesta-secomoemK?No cu, na terra, no silncio da pginaem branco, na palavra erguida em ru-nas, nas imagens que falam caladas. K,como os outros livros de Andara, buscaem toda parte.

    Aboliu o acto de contar uma his-tria?No, para redespertar a literaturacom outras vozes no necessriocalar as histrias. A minha Amaznia,que prefiro chamar de floresta sagra-da, um imenso labirinto de lendas,fbulas, mitos, histrias que se con-tam e so contadas sem limites nemfronteiras entre real e imaginrio. Eassim tambm K O escuro da semen-te. Uma alegoria, uma liturgia queconta a histria de K, letra que ascen-deu do alfabeto humano e nos cuspousou na mo esquerda de , estan-do, para sua surpresa, a sua mo direi-ta agora vazia.

    A sua obra , sobretudo, indagao,pergunta.Queprocuraquandoescre-ve, que recebequandoo faz?A imaginao a nossa maior bocade perguntas. Uma vez eu disse: EmAndara, se a pedra se pergunta: Umdia serei semente, e serei rvore, edarei frutos? Se o vento se pergunta:que pulmo me emite como voz sempalavras? Se o homem se pergunta: a minha sombra mais real que eu?Todas as perguntas deixam de o serno momento em que so feitas e setornam realidades de Andara.

    Andara a certeza da dvida no serhumano?Reconhecendo a ignorncia humana,Andara terra de hipteses. Andara ,fosse, seria, quem sabe. Melhor assimdo que a arrogncia tola de um saberque ainda no temos. Mas no sou umpessimista: eu disse: um saber queainda no temos. C

    F

    Devemos salvar aliteratura da suaagonia? Andarapersegue a palavrapraticada comovida, a literaturacomo ontologia,diz Vicente Cecim

    Vicente Franz Cecim

    K O escuro da semente

    Ver o Verso

    334 pginas