Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e
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VARIAÇÃO DIALETAL NAS CANTIGAS DE REISADOS: USOS E
DESUSOS NO MUNICÍPIO DE SÃO BERNARDO – MA
Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira (UFMA)1
Rayron Lennon Costa Sousa (UFMA)2
Aldenora Márcia Belo (UFMA)3
RESUMO: Os estudos de um dos elementos da cultura popular é tema deste artigo, cujo enfoque é o da
variação dialetal presente nas cantigas entoadas pelos grupos de reisados no município de São
Bernardo/MA. Buscou-se então, a partir da pesquisa de campo e etnográfica apreender as marcas de
linguagem presentes nas cantigas dos grupos, que em sua maioria são compostos por idosos.
Palavras-chave: cultura popular; variação dialetal; cantigas; reisados.
ABSTRACT: This issue has as focus the elements of popular culture. They are subject of this article,
which has as focus the dialectal variation in the songs sung by groups of reisado, in São Bernardo / MA.
To do that, we make a field research and ethnographic grasp to find language marks in the songs, which
are mostly composed of elderly.
Keywords: popular culture; dialectal variation; songs; reisados.
1. INTRODUÇÃO
Os estudos de linguagem, focando nos elementos da cultura popular vêm
sendo objeto de estudos diversos, tais como a Sociolinguística, que tem procurado
esclarecer como a língua se relaciona nos diferentes contextos socioculturais em que
1 Professora da UFMA, doutoranda em informática na Educação/URGS. Pesquisadora da cultura popular.
brasileira.Membro/líder do grupo de pesquisa Linguagens e Identidades/CNPQ-Capes. 2 Professor especialista, membro do grupo de pesquisa Linguagens e Identidades/CNPQ-Capes.
3Professora da UFMA, Mestra em Cultura e Sociedade/UFMA.
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ocorre, constituindo-se importantes elementos que, muitas vezes, são determinantes no
âmbito de suas variações, para explicar e justificar fatos que se buscar-se explicação
somente do ponto de vista da linguística dificilmente seriam determinados, como sugere
Barbosa (1981, p.158): “Língua, sociedade e cultura são indissociáveis, interagem
continuamente, constituem, na verdade, um único processo complexo” .
Assim, no que diz respeito ao léxico, focando em sua variação no tempo e
espaço, tal assertiva se torna mais congruente em razão de que, no léxico se podem
observar refletidas ideologias, visões de mundo, práticas sociais e culturais, assim como
sistemas de valores de determinados grupos ou comunidades linguísticas.
Este tema, que possui relação fundamental com a linguística, de modo mais
específico com o Português Afro-Brasileiro em Contexto Social, constitui-se uma
discussão acerca de como a realidade lusófona influenciou os usos e costumes
brasileiros, para além das práticas religiosas objeto da Antropologia das Religiões,
penetrando no ambiente das línguas faladas no Brasil, pois entende-se que trata-se de
línguas plural, considerando-se as peculiaridades e principalmente as diversidades
existentes em todo o país, quer do ponto de vista histórico, geográfico ou social, tais
diversidades são conhecidas e estudadas como variedade ou variação linguística.
O objetivo deste artigo será, portanto, discutir, ainda que preliminarmente,
algumas marcas de linguagem, presentes nas falas de integrantes dos grupos folclóricos
conhecidos como reisado, grupos estes, situados na região do Baixo-Parnaíba,
localizada na zona oeste do estado do Maranhão, de modo mais específico, no
município de São Bernardo, enquanto pressuposto para a compreensão de uma
identidade linguística local. Entretanto, tais discussões não se configuram como estudo
conclusivo de caráter hermético em torno de tais variáveis, uma vez que pretende a
partir das categorias de análise selecionadas, estabelecer uma nova configuração nas
pesquisas acerca dos falares no reisado no município de São Bernardo – MA.
Para tanto, vamos analisar os cantos, conhecidos como ladainhas que são os
cânticos entoados no reisado, através de uma etnografia realizada a partir de entrevistas
a homens e mulheres que participam do reisado no município de São Bernardo,
buscando-se traçar de forma multidisciplinar e transversal, o modo como os
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comportamentos e conhecimentos religiosos foram se imbricando aos falares da
população local, de modo mais pontual, dos praticantes do reisado, buscando, para tanto
os fundamentos conceituais que podem nos direcionar a uma reflexão crítica sobre
questões tais como “pertencimento”, “tradição” e “continuidade”.
Buscaremos mostrar a dinamicidade inerente às tradições, enfatizando sua
construção e historicidades próprias e que marcam e caracterizam uma comunidade de
falantes. (LATOUR, 2001).
2. REISADO: À GUISA DE CONTEXTUALIZAÇÃO
O reisado é um auto popular, que contempla aspectos do profano e do
sagrado, ao misturar rezas e devoções com danças e cantos entoados de casa em casa,
que são visitadas em homenagem ao nascimento de Jesus e a visitação dos três reis
magos, no período compreendido entre 25 de dezembro e 06 de janeiro, o “Dia de
Reis”. Recebe variadas denominações em todo o país. Conhecido como “Folia de Reis”,
“Reis”, “Santos Reis” ou apenas reisado, como vamos adotar neste trabalho.
Sua origem é anterior à vinda dos colonizadores portugueses ao Brasil, com
foco no cristianismo católico, ou seja, em Portugal, já acontecia tanto a homenagem à
chegada do Messias, quanto aos três reis magos. A visitação às casas sempre teve o
caráter de festas, pois a cada moradia aonde o grupo chega são oferecidos comidas e
bebidas, geralmente doces e sucos, além de oferta em dinheiro ou “esmolas ou joias”.
Muitos grupos usam vestimentas e indumentárias características. Quanto
maior e mais rica a recepção ao grupo de reisado, mais extensas são as cantorias nas
casas, cantorias estas realizadas por personagens vestidos em trajes de cetim, adornados
por flores e fitas para as mulheres e chapéus de abas largas, para os homens, sendo eles:
o alferes da folia, rei, rainha, mestre sala, Mateus, contramestre e palhaços. Em São
Bernardo isso não existe, no entanto. As roupas usadas são simples; trajes do dia a dia e
os grupos não fazem uso das personagens, da burrinha, da nega-véia ou cabeça de fogo,
do babau (personagem mais violento do folguedo) uma espécie de carcaça de cabeça de
cabalo em que abre e fecha os maxilares, que tentam morder os outros personagens, o
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boi, um galo, entre outros. O foco é na cantoria, o que acaba por caracterizar os grupos
que se apresentam no município.
A cantoria segue um ritual que acontece desde a chegada à casa visitada,
quando é cantada a canção de abertura de porta até a despedida do grupo, após entoar e
dançar outras canções em homenagem aos donos das casas que recepciona o grupo da
melhor forma possível, para reverenciar os reis e o menino Jesus, representados pelo
grupo, em uma demonstração de devoção e fé. De acordo com Cornélio (2009, p.5) os
reisados
[...] são rituais onde o profano e o sagrado andam juntos, festas que
acontecem para a comunicação das pessoas entre si e com o sobrenatural.
Marcam a passagem de um ano para outro, renovando a esperança de dias
melhores, na fé do catolicismo popular veiculado aos cultos afro-brasileiros e
ameríndios.
Verifica-se assim, que os reisados constituem-se como em outras atividades
da cultura popular, como formas de sacralizar o profano, buscando impingir qualidades
sagradas com vistas à aceitação popular. (FERREIRA, 2011).
A festividade corre nas ruas de São Bernardo nos primeiros dias do ano até
o dia 06 de janeiro; o grupo composto em sua maioria por mulheres, sendo senhoras
e/ou idosas, caminham nas principais e tradicionais ruas da cidade, cantando e tirando
esmolas para os três magos, se por acaso o dono da casa não tiver esmolas, o grupo
canta pouco e segue sua caminhada cantante.
O que é arrecadado serve para bancar o festejo e banquete para os
integrantes do grupo. As ofertas são gêneros alimentícios e moedas, intitulados como
“agrados/ joias ao Santo”.
Um grupo que por volta de 10 anos atrás era bem populoso, mas com a
partida de muitos integrantes foi se esvaziando e as gerações mais novas não
demonstram interesse em aderir à tradição.
Nazaré Nunes, uma das idealizadoras da manifestação, afirma “daqui uns
anos, quando todas nós formos embora para o céu, essa festa de Santo Reis vai acabar,
porque as mulheres novas de hoje não querem nem saber disso, diz é que nós anda é
perdendo tempo e sono”, afirmou a integrante.
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3 REISADO EM SÃO BERNARDO/MA
A tradição do Reisado na cidade de São Bernardo, Maranhão, se diferencia
de outros lugares, porque não é comemorada como diz a regra do dia 25 de dezembro,
que se assim fosse seriam onze dias, mas acontece durante os três dias que antecedem a
data da chegada dos Magos à Jerusalém – 06 de Janeiro, dias em que o grupo sai de suas
casas durante a madrugada cantando em uma só voz as cantigas de reisados, o que
diferencia dos reisados que acontecem em outros lugares.
Em todo o percurso as mulheres e os poucos homens param em muitas
casas, acordando os moradores que ofertam alguma jóia (comida, objeto, etc) e pedem
para cantar mais, para que a oferta seja maior.
Durante a trajetória são entoadas muitas músicas, quase todas de origem
desconhecida por todos os integrantes, que afirmaram terem aprendido de seus
antepassados e que a autoria não era necessária, e que o necessário é que a tradição
fosse repassada de pai para filho, para que não corresse o risco de acabar, o que é
previsto para daqui alguns anos, de acordo com D. Luisa, integrante de um dos grupos.
Na sede da cidade o Reisado não é tão festejado como na zona rural, onde
os moradores da cobram a visita do grupo todos os anos e, mesmo diante das
dificuldades de locomoção, recursos financeiros e etc, o grupo não mede esforços para
chegar em grande parte das localidades distantes. Quando terminam a cantaria,
carregam consigo a felicidade pela acolhida, pela participação dos moradores, e trazem
as joias recebidas, muitas providas da mandioca (farinha branca, farinha de puba, goma,
farinha de goma, beijus de goma), frutas e outras ofertas típicas da produção de
lavradores.
Os grupos possuem todo um preparo musical de canto, em que os
integrantes ensaiam antes do início, e escolhem as cantigas mais bonitas e melódicas,
que as vozes podem dar vida, e transparecer emoção.
Muitos dos integrantes participam pela fé, fazem promessa aos Santos Reis,
e outros porque gostam da tradição, como afirmou Dona Luíza do Tuta “A gente faz é
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porque gosta, não é porque precisa, é pra nós preservar a tradição”, afirmou. Verifica-se
assim, que as pessoas que participam de grupos como o reisado tem uma relação de
afinidade e proximidade com as atividades das quais participam. Várias pessoas
entrevistadas afirmaram que no que diz respeito ao reisado de São Bernardo, este é uma
manifestação que a cada ano que passa torna-se menor, porque as pessoas falecem, e os
grupos desinteressam-se; as novas gerações nem conhecem a história, e em outros casos
não acontece um retorno, uma boa receptividade.
3.1 Variação linguística: usos e desusos no reisado
São muitos os fatores que fazem com que as palavras mudam ou entrem em
desusos, um deles é o surgimento de novas palavras com o mesmo significado e que
tenha mais adaptabilidade na sociedade contemporânea em que vivemos, em que o mais
“fácil” e “objetivo” é o que se espera, mesmo em alguns casos, fuja-se das regras
impostas pela gramática. Observa-se assim, que a linguagem faz com que nos
relacionemos uns com os outros. Possibilita uma interação entre os semelhantes, que
por sua vez, leva a uma urgência de conviver. Não podemos escolher, somos
empurrados a construir uma linguagem já que vivemos em sociedade e precisamos fazer
comunicação com quem está em nossa volta.
Ressalta-se o fato de sermos seres dotados de necessidades, sendo uma delas
a comunicação, que está em todos os ambientes, desde o formal até o informal, escrito
ou não, de acordo com a norma ou em desacordo com a mesma, havendo assim, uma
linguagem por trás de toda forma de comunicação.
O ser humano tem o poder de transformar essa linguagem, em um processo
de mudança, uso e desuso de vocábulos que somente ocorre porque tem alguém falando,
usando das palavras para fazer comunicação, caso contrário ela nem existiria.
A própria palavra reisado sofreu variação, conforme se observa em Andrade
(1934), citado por Cornelio (2009, p. 5) que comenta que
[...] a palavra Reisado deriva evidentemente de “Reis” e foi uma
masculinização brasileira da palavra portuguesa. Em Portugal existe o termo
“Reisada”, como quem diz “rapaziada” e “patuscada” (coisas próprias de
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rapazes ou de patuscos. Farra ou ajuntamento festivo de gente que se reúne
para dançar e cantar).
Assim sendo, observa-se a dinamicidade e evolução da língua, em um
constante processo de mutação que muitas vezes ocorre a partir da variação linguística.
Existem no Brasil, diferentes e múltiplas variações linguísticas, mesmo que o país tenha
a Língua Portuguesa como sua língua-identidade, devendo-se, porém, considerar que no
âmbito de uma língua existem muitas variações, influenciadas pela localidade (zona
rural, zona urbana, tribo indígena, ribeirinhas, loteamentos etc.).
A língua portuguesa falada no país possui aspectos diferenciados de uma
localidade para outra, que por sua vez apresenta distintos aspectos, tais como os
históricos, geográficos, sociais, estilísticos, entre outros. Como lembra Darcy Ribeiro
(2008, 17), que discorre que surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento
do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e
outros aliciados como escravos, o que denota como nossa língua está estreitamente
vinculada a nossa identidade.
No que diz respeito à geografia, destaca-se o sotaque e muitas variações
fonéticas, que são observadas muitas vezes na pronúncia dos vocábulos e que
caracteriza as diferentes regiões do país, assim como as comunidades linguísticas. Um
exemplo é o falar característico ao estado do Pará, onde fonemas como o “l” tem som de
“lh”, a exemplo de linha e galinha, pronunciados como “lhinha” e “galhinha”, ou
mesmo o “s” sibilado, comum ao falar carioca. E assim, a língua portuguesa vai se
diversificando, convindo ressaltar que mesmo com essa diversidade, todos os falantes
do país se comunicam sem dificuldade de compreensão e comunicação,
independentemente da região onde more, ou seja, oriundo. Tais diversidades são frutos
das construções que o homem faz na língua.
Nossa pesquisa buscou descrever algumas peculiaridades no falar dos
moradores bernardenses e que se evidenciam nas cantigas de Reisados, especialmente
aquelas cantadas pela terceira idade em São Bernardo. Após a pesquisa e análise das
mesmas buscou-se à luz de diferentes teorias descrever o falar bernardense, focando na
variedade presente na linguagem da população situada como terceira idade, no contexto
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das cantigas de reisado. Evidenciam-se aqui variações linguísticas presentes a partir de
determinados vocábulos, ou seja, de palavras que nascem e se adaptam à realidade, e
que são facilmente encontradas; palavras que entram em desusos, desaparecem, tudo
dentro das cantigas de Reisados.
3.1.1 Das cantigas
Com base nas cantigas colhidas diretamente pelos participantes do reisado
bernardense e após análise das mesmas, fez-se algumas constatações, que iremos
descrever na medida em que formos mostrando cada uma. A “chegança” dos grupos
geralmente acontece com cantos de entrada, que podem variar ou sofrer modificações,
como se verá a seguir.
3.1.1.1 Cantiga 1
Ou de casa ou de fora
Vem cá, Maria ver quem é./Ou de casa ou de fora
Vem cá, Maria ver quem é
Senhores dono da casa, e sai e vem ver/É o cravo e a rosa com
açucena no pé
Não pense que é muita gente/Que samo só três companheiro
Esta casa está bem feita/E por dentro e por fora não
Esta casa está bem feita/E por dentro e por fora não
Por dentro cravos e rosas/E por fora manjiricão
E por fora manjiricão
Deus lhe pague o Santo Reis/Dado de bom coração
Deus lhe pague o Santo ReisDando de bom coração
Deste mundo sua saúde e lá do outro a salvação/
E lá no outro a salvação
Na cantiga 1, entoada pelo grupo de D. Luísa, usada para saudar os donos da
casa, observa-se que a variação é de número, não havendo concordância entre os
vocábulos “senhores” e “dono da casa”. Considerando o que preconiza Duboiset al
(1998, p. 470) que discorre que o plural se constitui marca gramatical que categoriza o
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substantivo. Cabe, entretanto, ressaltar que no caso em tela o uso do plural de forma
diferenciada da norma padrão de uso da língua portuguesa justifica-se pelo falar
popular, evidenciado na linguagem oral dos cantadores de reisado. No verso “Que samo
só três companheiro” verifica-se a troca do fonema [o] de somos por [a], além da
supressão do [s] como marca de plural em “somos” e “companheiros”. Observa-se
também a troca do [i] por [e] em manjericão.
3.1.1.2 Cantiga 2 - Nasceu o menino Deus
Já nasceu o menino Deus/Já nasceu o menino Deus
Já nasceu o que nos louvareá/Já nasceu o que nos louvareá
E a rosa nasceu siá, a rosa nasceu/Nasceu siá, a rosa nasceu.
Verifica-se em /louvareá/ em oposição a “louvará”, que houve a inserção do
fonema [e], constituindo-se então o fenômeno denominado epêntese, que é a ocorrência
ou inserção de um fonema, geralmente uma vogal.
Uma importante variação linguística analisada nas cantigas é a troca da
vogal e pela vogal i, e da vogal o pela vogal u, comumente encontradas em todas as
cantigas analisadas; outra é que as palavras não concordam em número, por exemplo:
somo ao invés de somos.
A palavra “sinhá” que é uma derivação de senhora, uma alusão a como os
escravos tratavam as senhoras foi substituída por /siá/, verificando-se a supressão do nh,
o que denota o uso de uma variação eminentemente social. Puzzinato e Aguilera (2006,
p. 23.) citam Marroquim para comentar a respeito dos usos de sinhá e sinhô, postulando
que
Outra observação de Marroquim diz respeito à prosódia africana dos
pronomes de tratamento, sinhá e sinhô que passaram a siá e siô. A forma de
tratamento siá fez surgir a forma sía, que era considerada vulgar, ao lado de
sá. Sía fez surgir, talvez, seu, por ser o seu correspondente masculino,
influenciado pelo possessivo.
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Para fins de redução teórica e objetivando focalizar os aspectos da
apreensão de sentidos dos cantares do reisado, faz-se necessário estabelecer um limite
de base teórica com vistas à uma conclusão preliminar. Assim, observamos que a língua
propõe amplas discussões acerca das variações linguísticas privilegiando os aspectos de
ordem histórica, geográfica e social.
Entretanto, inferimos a partir da observação dos sujeitos envolvidos na
presente pesquisa que ainda que se amplie a discussão para a faixa etária do falante ou
para a região a qual pertença, permanecerá como categoria invariável, o aspecto social
que estará presente tanto histórica quanto geograficamente nesse falante. O que
explicaria, por exemplo, as relações de aproximação e distanciamento entre as
manifestações de reisado na Baixada Ocidental e Oriental. Temáticas essas pertinentes
ao desenvolvimento de pesquisas dentro dessa mesma configuração.
O aspecto social, relacionado à faixa etária também se faz presente nos
versos cantados por D. Juju, também integrante de grupo de reisado da cidade de São
Bernardo/MA, como se observa em:
Ô de casa, ô de fora/Mãe Geromi, quem tai?/ É o cravo mais a
rosa com Açucena no pé/Que noites são essa? Noite de
alegria/Nasceu Jesus Cristo filho de Maria
Quando Deus andou no mundo/convidou seus companhêro/para
tirar o Santo Reis/No dia sei de janêro/
Pedindo anos bom/pedindo anos bom/boa festa de Reis
Senhora dona da casa/Saia fora, venha ver
Vem a pagar o santo Reis/Dado di bom coração
Que noite são essa/Noite de alegria
Nasceu Jesus Cristo filho de Maria
Deus lhe pague o Santo Reis/dado de bom coração
Nesse mundo ganha um premo/e no outro a salvação
Pedindo anos bom/pedindo anos bom/Boa festa de Reis
Nota-se nos versos acima, a troca do fonema [ni] por [mi], além da
supressão do [mo ]final, tendo assim /Geromi/ em vez de Gerônimo.
Verifica-se também, a supressão do /i/ em companheiro, observando-se o
uso de /companhêro/.
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Observou-se a-se assim, que as variações linguísticas encontradas nas
cantigas cantadas são frutos da falta de escolarização, contrárias ao que a norma padrão
preceitua e que são facilmente encontradas no meio da população entrevistada, quase
todos com pouco ou nenhuma escolaridade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cultura popular é importante aspecto que demarca e denota as
características sociais, geográficas e históricas dos sujeitos e lugar onde vivem.
O modo de falar dos sujeitos retrata sua origem e modos de vida, razão
porque é importante o estudo da variedade linguística, que neste caso se mostra ainda
preliminar, haja vista estarmos em fase inicial.
O Reisado ou Santo Reis como é conhecido em São Bernardo, é uma
herança deixada de pais para filhos, como uma identidade cultural, folclórica e religiosa,
uma forma de estender e aumentar a fé.
Ainda que de forma lenta, mas gradativa, os poucos grupos buscam
preservar a manifestação, que é repassada de geração para geração, ainda que se observe
que a cidade cresceu e cresce gradativamente, e os tempos mudaram a ponto de grande
parte da população não conhecer o Reisado e muito menos sua história.
Grande parte da Zona Rural abraça o Reisado com euforia, alegria e
gratidão, se entrelaçam com os tiradores, dançantes e tocadores da festa de Reis,
fazendo da manifestação um motivo de confraternização e euforia.
Verificou-se a partir da análise das letras das cantigas do reisado
bernardense que estas não sofreram modificações do ponto de vista semântico. As
cantigas permanecem as mesmas desde o início da tradição na cidade de São Bernardo,
verificando-se a partir da pesquisa que as mesmas foram preservadas durante todo o
tempo em que estão expostas.
As pessoas que participam da manifestação preferem que continuem assim,
para que não perca a mesma essência do início.
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É então importante que seja estudado o falar presente nas atividades
culturais, como forma de verificar as marcas linguísticas que caracterizam as
comunidades.
REFERÊNCIAS
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Recebido Para Publicação em 15 de julho de 2013.
Aprovado Para Publicação em 26 de julho de 2013.
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