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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O ROMANCE UM BEIRAL PARA OS BENTEVIS: A VISÃO LÚCIDA DE JOSUÉ
MONTELLO
Lucimar Ribeiro Soares
2014
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O ROMANCE UM BEIRAL PARA OS BENTEVIS: A VISÃO LÚCIDA DE JOSUÉ
MONTELLO
Lucimar Ribeiro Soares
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação emCiência da Literaturada
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutorem Ciência da Literatura (Teoria
Literária).
Orientadora:Professora Doutora Teresa Cristina
Meireles de Oliveira.
Rio de Janeiro
Setembro de 2014
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SOARES, Lucimar Ribeiro
O romance Um beiral para os bentevis: a visão lúcida de Josué Montello/ Lucimar
Ribeiro Soares. – Rio de Janeiro: UFRJ,
CLA, 2014.
167 f.
Orientadora: Teresa Cristina Meireles de Oliveira.
Tese (Doutorado) – UFRJ / CLA / Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura, 2014.
Referências bibliográficas: f. 187-196.
1. MONTELLO, Josué. 2. Memória. 3. Patrimônio histórico e cultural. 4. Crítica
social. 4. Modernidade. 5. Surrealismo. I. OLIVEIRA, Teresa Cristina Meireles de.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura
(Teoria Literária). III. Título.
CDU 82.09
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O ROMANCE UM BEIRAL PARA OS BENTEVIS: A VISÃO LÚCIDA DE JOSUÉ
MONTELLO
LUCIMAR RIBEIRO SOARES
Orientadora: Professora Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência
da Literatura (Teoria Literária).
Examinada por:
_____________________________________________________
Professora DoutoraTeresa Cristina Meireles de Oliveira _____________________________________________________
Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto ______________________________________________________
Professor Doutor Eduardo Coelho ______________________________________________________
Professora DoutoraMônica Amin _____________________________________________________
Professora Doutora Flávia Trócolli _____________________________________________________
Professor Doutor Eduardo Coutinho _____________________________________________________
Professora Doutora Anélia Pietrani
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Luz! Mais luz!
Göethe
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Sou especialmente agradecida:
- A Deus, pela onipresença em minha vida, com socorro, alívio e força
contínuos. Eu O louvo!
- À minha família, de quem roubei minutos preciosos de convívio
enriquecedor, pois a leitura, a reflexão e tantas descobertas se impuseram, às
vezes, sem que eu percebesse ou desejasse. Cobriram-me de apoio, de carinho, de
atenção e respeitaram meus silêncios. Obrigada!
- Aos alunos do Curso de Letras,aos colegas e servidores do
Departamento de Letras, da Biblioteca, das Pró-Reitorias de Pós-Graduação, de
Graduação e de Administraçãoda Universidade Estadual do Maranhão, pelo
estímulo constante, pela confiança e por suavizarem estes momentos, partilhando e
colaborando sempre.
- Aos colegas Fabíola de Jesus Santana e Porfírio Cantañedo, sem os
quais este sonho seria impossível.
- Àamiga Bárbara Meireles Mendonça, pelas inúmeras demonstrações de
afeto e solidariedade.
- Aos colegas Mayalu Moreira Félix eJúlio, pelas contribuições efetuadas.
- Aos servidores da Biblioteca Pública Benedito Leite, do Centro de Criatividade
OdyloCosta, filho,do Centro de Ensino de Educação Especial “Helena Antipoff”, da
Fundação da Memória Republicana Brasileira, bem como do Jornal
Pequeno(especialmente, Alberico Carneiro Filho), que abriramportas, armários,
acervos e arquivos, permitindo o desenvolvimento das pesquisas, o registro de
dadose a conclusão desta obra.
- Aos professores do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura-
Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro,especialmente a
Professora Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira, pela atenção, pela partilha
de conhecimentos, saberes einformaçõessobre obras, filmes e fontes bibliográficas.
Estes momentos de partilha foram preciosos e me fizeram crescer.
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Dedico aos meus pais, Jesus Soares e Basilissa Ribeiro Soares, in
memoriam.
À Professora Doutora Angélica Soares, ex-orientadora desta tese,que
interrompeu seu trabalho sem aviso prévio, convocada por Deus para
novas tarefas no mundo maior,com meu carinhoeterno.In memoriam.
Aos meus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas, aos cunhados e
cunhadas, aos primos e primas. Em especial, ao meu primo e grande
amigo,José Antonio Ribeiro de Carvalho, e aos meussobrinhos Rafael dos
Santos Soares, Basilissa Soares Diniz e Leônidas José Andrade Carvalho
Júnior, pelo socorro sempre incontinente.
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RESUMO
Análise da narrativaUm beiral para os bentevis,de Josué Montello (Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989) cujo enredo é constituído de personagens ficcionais e outros
retirados da realidade local, de São Luís - MA. Destes últimos o autor apropriou-se
de seus nomes e ocupações reais, desvelando - lhes o caráter individual e ações
que rotineiramente executaram. As lembranças, as alienações e osdevaneios das
personagens ficcionaispermitem ao leitor estabelecer ilações e desvelar a memória
histórica da cidade e a crítica ao contexto social e político maranhense.
Palavras-chave: Memória. Patrimônio. Histórico e Cultural. Crítica social.
Modernidade.
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RESUMEN
Análisis de la narrativa Um beiral para os bentevis, de Josué Montello (RJ: Nova
Fronteira, 1989) donde el autor se apropia de personajes abstraídos de la realidad
marañense, revelando sus acciones rutinarias, integrándolos a la urdimbre de la
trama y donde el lector percibe el propósito del texto: una crítica al contexto político y
social que se evidencia en São Luís.
Palabras – llave:Crítica - Patrimonios - Modernidad - Centro Histórico - Saneamiento
Urbano
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RESUMÉE
Une analyse du récit Um beiral para os bentevis, de Josué Montello (Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989), dont l'intrigue se compose de personnages fictifs et d'autres,
abstraits de la réalité locale à São Luis-MA. De ces derniers l'auteur s'approprie de
leurs vrais noms et professions, en dévoilant leurs caractère individuel et leurs
actions régulièrement effectuées. Souvenirs, rêves et rêveries de personnages fictifs
permettent au lecteur d'établir des inférences et découvrir la mémoire historique de la
ville et la critique du contexte social et politique du Maranhão.
Mots-clés: Mémoire. Patrimoine. Historique et culturel. La critique sociale. Modernité.
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SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS EABREVIATURAS ........................................................................................... 11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ................................................................................................................ 12
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 13
2 NO VELHO SOBRADO: VISÕES DE SÃO LUÍS....................................................................... 22
3 BILU E ALGUMAS DE SUAS RECORDAÇÕES ...................................................................... 35
4 SÃO LUIS: A EXPANSÃO IMOBILIÁRIA E OS DANOS SOCIAIS ........................................ 52
5 A PEQUENA CIDADE E SEU ANTIGO PATRIMÔNIO ............................................................ 58
6 VENÂNCIO, UM PATRIARCA NO MEIO DA DECADÊNCIA ................................................. 74
7 AS PROPOSTAS E A ANUNCIAÇÃO DO FUTURO ................................................................ 84
7.1 Os pegas ....................................................................................................................................... 85
7.2 Transgressões .............................................................................................................................. 87
7.3 A proposta imoral ......................................................................................................................... 89
7.4 Novos visitantes no casarão ...................................................................................................... 93
8 A NARRATIVA MONTELLIANA: A VISÃO LÚCIDA .................................................................. 98
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 104
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 107
ANEXOS ............................................................................................................................................ 113
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LISTA DE SIGLAS EABREVIATURAS
ABL Academia Brasileira de Letras
CNBB Conselho Nacional dos Bispos do Brasil
CREA Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura
DER Departamento de Estradas de Rodagem
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MIRA Missão Intermunicipal Rural Arquidiocesana
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UDR União Democrática Rural
UEMA Universidade Estadual do Maranhão
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Foto de José Ribamar Bogéa............................................ 24
Ilustração 2 Foto de Bogéa e José Sarney quando amigos.................. 26
Ilustração 3 Ponte do São Francisco.................................................... 29
Ilustração 4 Ponta D‟Areia: vistas panorâmica...................................... 30
Ilustração 5 Escola de Engenharia do Maranhão: Sede inicial e 1°
computador............................................................................
32
Ilustração 6 Lagoa da Jansen................................................................... 33
Ilustração 7 Teatro Artur Azevedo e Lustre Catarinense......................... 34
Ilustração 8 Acervo religioso da Fundação da Memória Republicana
Brasileira.................................................................................
39
Ilustração 9 Fachada do Convento das Mercês........................................ 39
Ilustração 10 Etapas da pesquisa do Padre Mohana.................................. 43
Ilustração 11 Pilha de partituras recuperadas.............................................. 44
Ilustração 12 A nova configuração de São Luís.......................................... 53
Ilustração 13 Saneamento urbano: problema............................................. 56
Ilustração 14 Arquidiocese e altar da Igreja da Sé...................................... 66
Ilustração 15 Casarões sem conservação adequada................................. 73
Ilustração 16 Casarão transformado em estacionamento........................... 77
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1 INTRODUÇÃO
Sempre inquietou poetas, escritores e estudiosos a origem do(s) dom (ns)
que leva(m) um autor a escrever uma obra literária. Alguns deixaramentrever esta
preocupação na própria obra, casos clássicos são Aristóteles, com sua Poética, e
Edgar Allan Poe, que escreveu um texto sobre a composição do seu poema O
Corvo.
Também atravessaram os séculos outras questões acerca da literatura,
algumas ainda indefinidas. Roland Barthes (2005)acrescenta, em A preparação do
romance, além de todas aquelas que podem ter sido arroladas, um bom motivo para
que o estudioso se debruce sobre a literatura: o desejo que impulsiona à escritura.
Mas, ele mesmo se recusa a responder o que o move e foge de explicar como
surgeseu próprio desejo, escrevendo: “Não posso dizer que o Desejo é a origem do
escrever...” (BARTHES, 2005:11). E logo complementa: “[...] só posso dizer que o
Desejo de escrever tem um ponto de partida, que posso localizar:” Parece, então,
haver um novo problema: localizar o ponto de partida deste desejo de escrever,
descobrir o porquê da escrita.
O pensamento de Roland Barthes tangencia com o da autora deste
trabalho, pois, observando-se a obra citada, nota-se que o capítulo de abertura emA
preparação do romance intitula-se “O desejo de escrever” e traz como subtítulo:
“Origem e ponto de partida”,onde Barthes registra:
Por que escrevo? -Poderia ser, entre outras coisas, por dever: por exemplo, para servir a uma Causa, uma finalidade social, moral, instruir, edificar, militar ou distrair. (BARTHES, 2005.11 )
Todas as razões apontadas são bem significativas, relevantes e motivo
suficiente para alguém abraçar uma causa, exercitar a escrita ou comunicar alguma
coisa.O número de poetas, escritores e dramaturgos que escreveram obras por
compromisso com o seu tempo, para edificar ou instruir, enfim, com uma finalidade
social, é ampla e conhecida. Voltaire, Maquiavel, Esopo, Umberto Eco, Bertolt
Brecht, Huidobro, dentre outros, são alguns que podem exemplificar a regra. A lista
égrande e diversificada.
Com estas concepções e lembranças flutuandoem sua mente, a autora
deste trabalho, leu e decidiu analisar a obra Um beiral para os bentevis, escrita pelo
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romancista maranhense Josué Montello, editada no Rio de Janeiro pela Nova
Fronteira, em 1989, uma narrativa interessante cuja leitura lhe pareceu releituras
particulares de fatos conhecidos, diálogo com múltiplas vozes, persuadida da
riqueza da mensagem escondida em seu âmago.
Descobriu o romance analisado em um sebo carioca, por volta de 2011,
durante sua permanência no Rio de Janeiro, para onde havia se deslocado, a fim de
realizar estudos presenciais exigidos pelo Curso de Doutorado em Ciência da
Literatura-Teoria Literária, mantido em convênio pela UFRJ, com a Universidade
Estadual do Maranhão. Naquela ocasião, trazia em mente a informação, transmitida
por seu livreiro maranhense, sobre a venda da Editora Nova Fronteira para um
grupo de capital estrangeiro, que, por sua vez, já o informara sobre a pretensão de
publicar apenas os títulos do seu catálogo que fossem best-seller, condição que não
beneficiaria Josué Montello, o que o livreiro lamentava. Assim, seu olhar convergiu
especialmente para as obras deste autor maranhense, cujos títulos, até em
duplicata, se encontravam em diversos sebos cariocas, de cujas prateleiras, em
breve, imaginou, desapareceriam. Acrescente-se a isto, o fato de ser conterrânea de
Josué Montello.
Em um momento de repouso, com uma de suas obras encimando uma
pilha de livros depositada sobre uma cadeira, ao lado da cama,onde se encontrava
deitada, apanhou-a e folheou Um beiral sobre os bentevis, quando foi devorada pela
narrativa que mesclava ficção e realidade, mas não impedia o reconhecimento de
fatos que tiveram lugar em São Luís, há muitas décadas, nem a identificação de
pessoas, algumas ainda vivas e outras já falecidas, todas elas personagens do
romance ou ali nomeadas e era evidente a similaridade entre os fatos narrados com
suas vidas pessoais e públicas. Curiosa, quanto mais examinava o romance mais
descobria motivos para aprofundar seu exame: identificou costumes locais,
denúncias sobre a gestão inadequada das políticas sociais, a decadência urbana e
social, tudo entrevisto no texto de Josué Montello, muito rico e humanamente
enriquecedor. Tornou-se, então, seu objeto de estudo.
Reconheceu em suas páginas várias personagens vivas ou mortas,assim
como ecos de velhos episódios que, tempos atrás, aconteceram em São Luís,além
de narrativas singulares, às vezespicantes,que circularam na cidade mas,que nem
todos tiveram acesso ou que delas se esqueceram, em virtude do tempo decorrido.
Como um desejo pode levar à escrita do texto, lembrou-se do compromisso social
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do autor, dos sentimentos que experimenta com seu tempo e que sãorazões
suficientes para registrar seu testemunho. É assim, inclusive, que vê esta obra de
Josué Montello: como um registro de fatos que ocorreramemum período da história
de São Luís, vivido pelo autor. Identificar estes fatos é o primeiro dos seus objetivos,
até por que, comoafirmam Wellek e Warren (2003:115): “A Literatura não é
realmente um reflexo do processo social, mas a essência, a suma e o resumo de
toda a história.”
Contrariamente ao que enunciam alguns críticos sobre a escritura
montelliana, a obra exibe uma faceta original: o texto ficcional contém algumas
inserções onde o autor apresenta personagens retirados da vida social maranhense
e prossegue, incorporando-os à narrativa com os nomes com que são conhecidos
eàs mesmas atividades que desenvolvem. Ali, como aponta Flora Sussekind
(1984)em seus estudos sobre a estratégia de elaboração do romance-reportagem,
que pode ter sido parcialmente aproveitada, mas não reproduzida por Josué
Montello, também parecem cumprir a delicada função de restaurar fraturas
flagrantes na sociedade maranhense.
É provável que, aproveitando-se deste estratagema, submeta aos olhos
do público, problemas sociais autoritários e excludentes. A propósito, Flora
Sussekind (1984), estudando os romances-reportagens que marcaram um período
da história literária brasileira, detectou o aproveitamento da realidade, nos casos que
cita, com a incorporação de notícias veiculadas, um “band-aid bem pouco
estético”,“curativo romanesco” para as divisões e fraturas percebidas na sociedade
brasileira.
Flora (1984:175)aponta Heloísa Buarque que também teria registrado o
aproveitamento do jornalismo para fins estéticos e que cita “a literatura de olho no
jornalismo, a reportagem de olho na literatura”. Da mesma maneira como, durante
os primórdios do realismo, os pintores olhavam a literaturatal como a literatura
olhava a pintura, ambas aprendendo sobre a arte de retratar o real.
Ao contrário dos romances-reportagens, construídos no Brasil, na década
de setenta, com as informações disseminadas em textos jornalísticos, notadamente
nos policiais, ao autor de Um beiral para os bentevis não faltaram informações sobre
as personagens sobre as quais esparrama seu olhar. Mas, é indubitável que os
jornais editados em São Luís do Maranhão, sobretudo O Jornal Pequeno,
ofereceram contribuições significativas aos propósitos do autor que as assimilou. O
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romance traz as marcas da sua época, algo que lhe é peculiar, apontam seus
críticos.
A obra, editada em 1989, deve ter sido elaborada em um período anterior
e de exceção política vivenciado pela sociedade brasileira; então é bastante
possívelcomo aponta Sussekind (1984) que, da mesma forma que os autores do
romance-reportagem,o autor tenha sucumbido ao modelo adotado por estes,
incorporando os conteúdos jornalísticos à ficção, de modo peculiar e pessoal. No
ensaioTal Brasil, qual romance?Flora Sussekind(1984:175) escreve algo que se
percebe na obra montelliana: “Quebram-se as fronteiras entre jornalismo e ficção. E
o que se lê são notícias, informação, e não ficção”. Razão pela qual o leitor
montelliano deve adotar a recomendação da ensaísta e aprender “que o significado
do que lê está fora do romance e deve ser procurado nas páginas de jornal”.
Conselho que a autora deste trabalho acolheu e seguiu, encontrando explicações
interessantes para fatos que desconhecia e que o romance de Montello insere,
razão porque incorpora anexos – textos de jornais - que dão sustentabilidade às
assertivas encontradas no decorrer deste exame.
A prosa de Josué Montello, segundo a crítica que o consagrou, é simples
e captura– como capturou a autora – o leitor facilmente. O site WIKIPÉDIA, por
exemplo, registrou um depoimento segundo o qual Josué Montello tem “uma prosa
elegante e fluída, passando ao leitor aquela enganosa sensação de ter sido escrita
de forma ligeira, fácil, sem esforço aparente”. Mais adiante afirma ser o autor avesso
a modernismos, “ignorando as inovações estéticas dos últimos 50 anos”, o que Um
beiral para os bentevis desmente.
Romancista profícuo, dos maiores que o Brasil já teve; Josué Montello
também escreveu discursos, crônicas, ensaios, novelas, antologias, diários,
prefácios, produziu textos para teatro e alguns sobre a história e a teoria da
literatura, tendo, inclusive, realizado uma pesquisa em jornais maranhenses, do que
resultou A Polêmica de Tobias Barreto e os padres do Maranhão, em cuja
obrarevelou à sociedade brasileira aspectos desconhecidos da luta travada pelo
escritor sergipano contra o clero maranhense, além de encontrar tempo e usar a
imaginação para lavrar textos dedicados à infância e a adolescência.
Sua capacidade inventiva o levou a criar narrativas surpreendentes e
cheias de suspenses, assim como personagens marcantes. Também pode se
demonstrar que sua obra assimilou recursos técnicos presentes e valorizados na
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modernidade, tais como informações históricas e notícias de jornal que conferem ao
seus textos – como se verifica em Um beiral para os bentevis – uma singularidade
que se ajusta à trama construída.
O espírito ético que se vislumbra emUm beiral para os bentevis é o
mesmo que,impulsionando-o de forma dinâmica e cívica, o levou a ocupar cargos na
área diplomática, tendo servido na França como representante diplomático do Brasil.
Seu espírito de serviço o levou, também, a ocupar inúmeros cargos de relevância
nacional tendo sido assessor prestigiado do presidente Juscelino Kubitscheck; foi
também reitor da Universidade Federal do Maranhão e criador de inúmeras
instituições, dentre estas, o célebre Museu da República (RJ), e o Museu Sacro do
Maranhão (MA).
Seu trabalho, de imensa relevância social, foi publicamente reconhecido
tendo recebido comendas e prêmios, além da outorga do título de doutorhonoris
causa, concedido pela Universidade Federal do Maranhão e um prêmio do governo
da França, pelo conjunto da sua obra. Integrou a Academia Brasileira de Letras,
onde ocupou a cadeira nº 29, cujopatrono é Martins Pena, admitido em 4 de
novembro de 1954, como 4º ocupante da mesma, à época, e foi recebido pelo
maranhense Viriato Corrêa.E recebeu outros membros ilustres como José
Sarney,José Guilherme Merquior e Evaristo de Morais Filho. Presidiu a ABL de
1994 a 1995. Maranhense, nasceu em São Luís em 21 de agosto de 1917 e faleceu
no Rio de Janeiro em 15 de março de 2006.
Seus editores da Nova Fronteira já acentuaram a fala de Alceu Amoroso
Lima (Tristão de Ataíde), sempre registrada nas orelhas de alguns de seus livros “a
propósito dos múltiplos caminhos, em que se orientou a obra de Josué Montello,
obra que tinha abrangido, à maneira do exemplo de José de Alencar, toda a
realidade brasileira, quer no plano literário, quer no plano geográfico”.
Nas sucessivas experiências romanescas Josué Montello tratou de evitar
repetições temáticas; cada nova narrativa explora uma temática diferente como se
exercesse um constante esforço para melhor compreender a condição humana. Isto
contribuiu para a valorização de sua obra, havendo títulos traduzidos para o alemão,
o sueco, o inglês, o francês e o espanhol.
Essa universalidade temática foi registrada pelos seus críticos, dentre os
quais Wilson Martins que, segundo informa a WIKIPÉDIA “escreve na linha de
Machado de Assis e não está preocupado em ser original... ... Josué Montello
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pertence à família espiritual de Balzac e Dostoievski, de Joice e Thomas Mann, de
Tolstoi e Faulkner, de George Eliot e de Giovanni Verga; de Cervantes e John dos
Passos, de Conrad e Flaubert, de Eça de Queiroz e Machado de Assis, todos
semelhantes nas suas diferenças e diferentes nas suas semelhanças como nas
famílias naturais”.
Como no texto Um beiral para os bentevis, de Josué Montello, publicado
em 1989, encontram-se representações literárias que comunicamverdades, como
comprovar-se-áno decorrer deste trabalho, surge outra questão que precisa de
reflexão e resposta: com que propósito o autor incorporou estas representações? O
recurso constante às contradições, às alienações, através das lembranças
imprevistas do passado recente, evocando experiências que as personagens
experimentaram em família são recuperadas com que propósito?
A autora acredita que Josué Montello, escritor e homem público de
envergadura nacional, emprestou suas palavras aos desprotegidos e aos leitores,
convertendo-as em depositárias de significações. O texto examinado incorpora a re-
escritura de muitas matérias jornalísticas já veiculadas, anotações de murmúrios
populares, aparentemente destituídos de valor em sua condição de cópia,e apenas
aparenta, como menciona Maurice Blanchot (2011:15),“pertencer à sombra dos
acontecimentos, não à sua realidade, à imagem, não ao objeto, ao que faz que as
próprias palavras possam tornar-se imagens, aparências e não signos, valores,
poder de verdade.”
Blanchot (20011: 32) também afirma “que a linguagem do pensamento
é,por excelência, a linguagem poética”. Vê a literatura como um gesto de ação em
queescrever é pensar e pensar é dizer. “O pensamento é fala pura”, articula
Blanchot (2011:34), lembrando que “a fala poética deixa de ser fala de uma pessoa:
nela ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala “se
fala”.”
A obra Um beiral para os bentevis, de Josué Montello, é um romance com
dezessete capítulos, um dentre mais de cem títulos publicados pelo autor, traduzido
para outros idiomas e que recebeu o Grande Prêmio da Academia Francesa.
O enredo é constituído de personagens que rememoram dramas pessoais
e familiares nos quais tiveram participação, dos quais foram testemunhas ou
receberam informações através de parentes e amigos. São estas lembranças,
despertadas, paulatinamente, que impulsionam a singular narrativa, interrompidas
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pelo presente destas mesmas personagens ou por seus familiares e amigos, que
irrompemem seucotidiano, suscitando evocações novas e contínuas.
A miúdo, espalhadas pela extensão da obra, encontram-se menções
acerca de fatos passados cujos reflexos podem ser percebidos no presente, na
contemporaneidade. O núcleo temático focaliza as experiências vivenciadas por
uma rica e tradicional família de São Luís, desvelando flagrantes de declínio moral,
social e financeiro. No processo de decadência, por motivos diferenciados, deixaram
que se rompessem os laços da união, do respeito e do carinho que deveriam existir
entre si enquanto família.
O discurso presente na obra montelliana evoca lembranças dos estudos
críticos de Walter Benjamin sobre a obra de Charles Baudelaire, contemplando a
expansão parisiense, examinando os problemas que a modernidade introduziu em
Londres e Paris no século XIX. Como boa parte do texto do autor maranhense é
constituída de recordações das personagens, houve a necessidade do estudo das
concepções de Henri Bergsonsobre a memória, quetambém ajudaram a nortear este
trabalho.
São justamenteas inúmeras evocações existentes no texto analisado que
lançam o leitor do texto em comparações, como o confronto entre o novo e o velho,
o presente e o passado, embora se perceba claramente, como diz Jeanne-Maria
Gagnebin (2009:32), que “o sentido literal não é o sentido verdadeiro, “razão pela
qual se buscou uma outra leitura, como a mesma propõe, “sob as palavras”. A
crença em que as palavras se escondem sob as palavras exigiu leituras deobras de
Jacques Le Goff, da própria Jeanne-Marie Gagnebin e deHalbwachs.
A leitura focada em aspectos especiais -que o texto contempla em várias
passagens - induz o leitor a desalojar o que se oculta nas entrelinhas, por
trásdasidéias enunciadas. O fio caudaloso da memória que perpassa toda a obra,
“recolhe as migalhas do passado, para oferecê-lasà atenção do presente”, como
Jeanne-Marie (2009:32) lembra.
Inquieta muito aquilo que na obra se desvela: problemas e preconceitos
sociais típicos de uma pequena cidade, razão porque a autora sentiu-se obrigada a
tentarexaminaros motivos que poderiam ter levado Josué Montello, integrante da
alta burguesia, a lavrar os registros dos fatos que expõe à visão alheia, uma vez que
integrou a mesma classe das personagens cujo perfil retrata. Por esta razão, a
autora analisou muitos textosprimários- inúmeros exemplares do Jornal Pequeno,
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d’O Imparcial, d’O Estado do Maranhão e coletânea com edições de textos
publicados no Jornal do Povo, inclusive suplementos, folders e publicações
institucionais - além de ter efetuado pesquisa de campo para registrar e documentar
informações contidas no enredo do romance analisado, sem perder de vista a
Blanchot (2011: 118), segundo o qual “o compromisso, a postura e a ideologia de
um escritor podem ser estudados não apenas nos seus escritos, mas, também, com
frequência, em documentos extraliterários,” acreditando serperceptível que o autor
empresta sua voz à opinião de intelectuais, à revolta social do povo ante fatos
criminosos reiteradamente perpetrados pela elite sem nenhuma punição,diante do
descompromisso socialdos governos que exercitam o poder sem preocupaçãocom
as minorias e os excluídos, relevando suas necessidades e interesses.
Esta conclusão decorre da estratégia clara e bem delineada que foi
adotada pelo autor em momentos singulares da narrativa, com a incorporação de
formas ideológicas de transmissão da palavra, elaboradas na vida cotidiana, em
variados momentos (Bakhtin). Caso, por exemplo, da expansão imobiliária de São
Luís durante e após o Governo José Sarney à frente do Estado do Maranhão. Para
além das belas ruas e praças, das avenidas amplas e das mansões que surgiram,
substituindo as casas e quarteirões coloniais, existe a pobreza de pequenascasas
sobre palafitas pois a miséria e a desumanidade empurraram os homens, outrora os
donos do pedaço - hoje um rico filão imobiliário, extremamente valorizado - para
uma pequena e pobre nesga de terra e lamasobre o mar.Todos os governos
ignoram os excluídos do lugar, desconhecendo, talvez,Friedrich Schiller (2010: 26)
que escreveu recomendações ao Príncipe, seu mecenas, sobre a arte de governar:
“[...] o mecanismo vivo do Estado, entretanto, precisa ser corrigido enquanto pulsa,
as engrenagens são trocadas enquanto giram”, recomendações que poderiam ser
acolhidas pelos dirigentes políticos do Maranhão em pleno século XXI.
O romance em questão poderia ser classificado como um “roman à clé”,
pois a narrativa se faz muito pela denúnciasutil, expressa pelo autor que, a partir da
realidade de São Luis do Maranhão, exibe as mazelas que vê e, à sua maneira,
clama por mudanças naquela sociedade.
Desta forma pretende-se:
a) Identificar os fatos relatados no enredo, buscando estabelecer
relações com acontecimentos da realidade maranhense, de décadas
passadas e de domínio popular, buscando também, estabelecer
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semelhanças e dessemelhanças com os romances-reportagens que
predominaram na literatura brasileira, na década de 70, escritos por
autores brasileiros.
b) Destacar a importância desses acontecimentos no contexto social
maranhense e compreender com que propósito Josué Montello teria
incorporado estas representações ao enredo.
c) Compreender a manipulação estética levada a efeito na estruturação
do romance.
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2 NO VELHO SOBRADO: VISÕES DE SÃO LUÍS
Pouco lido pelos críticos e estudantes, o romance montelliano Um beiral
para os bentevis, deJosué Montello (RJ: Nova Fronteira,
1989),guardariquezashistórico-literárias que podem ser descobertas em cada
página. Ali estão mencionadas as ruas, avenidas e logradouros de São Luís,
cantados os costumes e tradições de sua gente e, sobretudo, evocado o
desenvolvimento urbano que transformou São Luís,após a década de 60,
imprimindo-lhe à paisagem novas formas, outros contornos bem diferentes dos
percebidos beirais e telhados do centro colonial da cidade. Cada página é um
retorno ao passado, uma viagem onde se descortinamos sonhos e as ambições
dessa mesma gente, assim como a intolerância de pessoas, quase sempre sob
oamparo de conflitantes visões religiosas.
Para lhe dar esta feição peculiar, Josué Montello lançou mão de uma
estratégia bem comum: recolheu da realidade local osfatos eas personagenscom
quecompôs o enredo. Contrariamente ao que fazem outros ficcionistas, não buscou
alegorias para lhes imprimir características sociais, psicológicas, culturais ou de
natureza outra com que pudesse traçar o perfil de suas personagens. Não,ele as
pincelou tal qual se apresentam ou apresentaram quando vivas, mantendo
tambémnomes, atividades e modos de ser, o que permite o reconhecimento fácil e a
identificação de algumas das principaispersonagens. Nos fatos, constata-se que, o
romancenarrauma época da história de São Luís, de sua gente,deseus costumes e
de suasidiossincrasias. Evoca a memória, a trajetória de um período de sua
evolução social.
Tudo começa em um grande sobrado onde sonhos, desejos e paixões se
liquefazem sob o controle férreo do rico e poderoso, mas não piedoso Venâncio
Sezefredo, um empresário solitário, que descobriu que aprimeirade suas
esposasvitimada pela gripe espanhola, o traíra. Ao descobrir que ela tivera muitos
amantes através das cartas deles que ela guardara cuidadosamente, encerrou o luto
no dia seguinte a esta descoberta. Casou-se uma outra vez dois meses depois mas,
enviuvou rapidamente.
A filha que nasceu do último casamento, entregou-a ao padrinho que a
educou em Belém onde cresceu, casou, tornou-se mãe e, juntamentecom o marido,
veio a falecer durante umnaufrágio, quando participavam de procissão em que
23
ambos agradeciamaDeus pelo nascimento da filha. A tragédia obrigou-o a se
deslocar à cidade paraense onde foi buscar Magda, a neta, que passou a educar,
auxiliado por sua irmã Bilu, que renunciou a tudo para se dedicar a esta tarefa.
Venâncio é um homem amargurado, mas é um homem da Igreja, que a
ela se submete, por seus membros é cercado, de seu dinheiro se desfaz para
manter o patrimôniodas instituições clericais e, embora visto e considerado pelo
ArcebispoDom Mota como ovelha, não o é, nem assim é visto pela sua família.Eos
conflitos da famíliade Venâncio em torno de Venâncio formam o enredodo romance.
A família, que a vida, comuma sequência de suas intolerâncias se
incumbiu de dissolver, é motivo de sofrimento, dor e vergonha. Traído pela esposa,
viúvo, sem filhos vivos e solitário, vive em um amplo sobrado de beirais onde acabou
sozinho com a irmãBilu, devota fervorosa de São Benedito, e com a única neta,
Magda, que o decepciona ao ser flagrada pela câmera implacável do
jornalistaRibamar Bogéa, proprietário do Jornal Pequeno, um jornal de grande
repercussão existente em São Luís, nua em pelos sobre a traseira da motocicleta do
namorado, atravessando a ponte do São Francisco. O flash obtido, um furo
sensacional, ilustrou a primeira página deste mesmoJornalPequeno, na edição do
dia seguinte,trazendo a Venâncio e sua família mais dor, indignação e
constrangimento.
Idoso e alquebrado, Venâncio já sucumbira aos conselhos cristãos do
Arcebispo e do padre Mohana, que frequentam comumente o sobrado, desfrutando-
lhe da amizade e da fidalguia à mesa, acolhendo contra sua vontade outra irmã,
Francisquinha, ironicamente apelidada pelos familiares de Vedete(na infância fora
chamada de Naná), em virtude da profissão que escolhera para si e que antes do
seu retorno a São Luís desempenhara em Paris, no famoso cabaré Moulin-
Rouge.Fato comprovado pelos cartazes e roupas que ela guardará enquanto viver,
algo inaceitável pela sua família na pequena e provincial São Luís, após ter sido
desterrada paratão longe pelo irmão ricaço, insatisfeito e envergonhado pelos
escândalosqueela aprontara na cidade, em sua juventude muito bem vivida.O último
deles, determinante da sua ida para aquela cidade francesa, aconteceu no próprio
casarãoem que se encontrava hospedada, quandoa “ovelha- negra” foi surpreendida
traindo em umdos quartos. O adúltero, para escândalo geral, era o cunhado, o
Filogônio. E tudo aconteceu enquantoBebeta, a irmã da Vedete e esposa do
Filogônio, dormia no mesmo casarão, no quarto ao lado. Após sucessos e
24
insucessos em Paris, viúva, gorda, em decadência física e sem um tostão, a Vedete
retornou a São Luís. Retornou ao sobrado com beirais. Retornou em busca de
segurança e da proteção do irmão rico e poderoso, único abrigo que lhe restava.
Com essa estratégia, o ir e o vir das personagens ao sobrado, onde
relembram o passado familiar, o escritor Josué Montello imprime movimento
temporal e dinâmica ao romance. Foi do sobrado, um seguro e oportuno beiral, que
todos voaram em busca de seus sonhos e para onde alguns retornaram em
debandada final. Evocadas as contínuas lembranças dos que ficaram ou voltaramà
antiga casa paterna, as personagens vão e voltam, como os bentevis, aos beirais. É
ali, no casarão do rico, poderoso e intolerante Venâncio, que as angústias destas
personagens em visível decadência se revelam. Estão quase sempre rememorando
as experiências vivenciadas, entre risos e raivas, entre choros e lágrimas.
Como os bentevis que, em suas eternas revoadas, em bandos ou
isoladamente, ao anoitecer pousam nos beirais existentes nos sobrados onde vivem,
para descansar ou fugir das intempéries e ali derramam seu trinado, as personagens
que voltam ao local só silenciam quando a noite desce e a escuridão estende seu
manto repousante sobre elas, adormecendo-as.
Nestes fragmentos, onde se desenrolamacontecimentos, encontra-se o
clímax da história;inicia-se aí o espaço crítico, com a configuração de algumasde
suas personagens principais - Venâncio, Bilu e Magda -, assim como surge o
primeiro personagem claramente retirado do real, orepórter fotográfico, jornalista,
editor e proprietário do Jornal Pequeno, José Ribamar Bogéa.
Ilustração 1: Foto de José Ribamar Bogéa
Fonte: Capa do suplemento Meio Século de Luta e Resistência
O Jornal Pequeno foi idealizado e fundado pelo jornalista José Ribamar
Bogéa e desde 1951, ano de sua fundação, “adquiriu a confiabilidade de todos os
maranhenses,mantendo até hoje uma credibilidadeinquebrantável”,dizLourivalBogéa
25
(2011:5), diretor do jornal, o que não se trata de propaganda enganosa, daí oepíteto
queo jornal exibe orgulhosamente: “o órgão das multidões.”
Inserido na Revista Comemorativa - 60 anos de resistência com que o
Jornal Pequenocomemorou 60 anos de fundação há um editorial (Linha mantida),
assinado por Lourival Bogéa (2011), herdeiro e um dos filhos do fundador, atual
diretor, onde se destacaa lealdade aos fatos como“dever de ofício”, herança do pai
que os filhos e a matriarca, todos hoje à frente do órgão, seguem como cartilha e
sem desvios.
O compromisso do Jornal Pequeno, conforme ali registra, levou seu pai a
enfrentar e vencer, outrora, o poderoso grupo Sarney e a respeito deste episódio
recordaum período da história do jornal:
Houve um momento em 2006 em que o Jornal Pequeno, assumidamente encampou uma luta acirrada pela derrocada do grupo Sarney, amparado na convicção, adquirida ao longo dos anos, de que esse grupo, apesar de todo poder e toda influência nacional, não conseguiu fazer pelo Maranhão o que poderia ter feito. A luta foi coroada de êxito, com a queda do império Sarney. Mas José Sarney, inconformado com a derrota, tomou o poder de volta nos tribunais, graças à inoperância daqueles que, conforme saltou aos olhos, não tiveram a exata compreensão da grandeza do momento e se deixaram vencer, sem maiores resistências.(BOGÉA. 2011: 5 ).
Com a morte do fundador do órgão aos 74 anos de idade, em 4 de março
de 1996, o Jornal Pequenovem perpetuando os ideais de José Ribamar Bogéa,
através da família. Na Revista Comemorativa com que comemorou os 60 anos de
circulação do consagrado jornal, foram republicados alguns artigos assinados por
intelectuais maranhenses que testificam o passado combativo doperiódico,sempre
em defesa do povo maranhense, como seu legítimo e maior porta-voz.
Um dos artigos publicados ao longo de sua trajetória, que aRevista
Comemorativareproduz,intitula-se Momento não; MONUMENTOe está assinado por
Carlos Nina,jurista e ex-presidente da OAB-MA. Originalmente publicado no Jornal
Pequeno, em 11.03.96, na ocasião do falecimento do jornalista José RibamarBogéa,
o autor relembra sua experiência neste veículo de imprensa em quecolaboroucomo
responsável por uma página denominada “A Página da juventude”,na qual o Jornal
Pequeno publicava “crônicas, contos e poesias de jovens que queriam espaço, mas
os donos da cultura do Maranhão não lhes davam.” (BOGÉA. 2011: 33).
Ali, o jurista critica o artigo“Depoimento de Sarney sobre Bogéa”, dalavra
doacadêmico e político José Sarney, publicado no jornal do senador,O Estado do
26
Maranhão, em 05 de março de 1996, no dia seguinte à morte de Bogéa, no qual
José Sarney destaca que ambos foram colegas de profissão nos Diários
Associados, em 1947, e onde José Sarney confessa um fato confirmado com foto
existente no suplemento Meio século de resistência:
Minhas relações com Bogéa não foram sempre tempestuosas. Tivemos momentos de estreito relacionamento. Não quero recordar as nossas divergências. A morteé um fenômeno transcendental que supera todas as separações. Bogéafoi um momento daimprensa maranhense.(CARNEIRO. 2001: 28).
Ilustração 2: Foto de Bogéa e José Sarney, quando amigos
Fonte: Suplemento Jornal Pequeno: Meio Século de Luta e Resistência, (2001:20).
Esta última afirmação, dentre outras, resultaram no artigo Momento não;
MONUMENTO, onde Carlos Ninaprossegue, oferecendo ao público seu testemunho:
Sabe-se que, no Jornal Pequeno, não era preciso exigir, judicialmente,direitode resposta. Ele o assegurava a todos, com a mesma liberdade que sempre abriu suas páginas para quem quisesse manifestar seu pensamento, quer fosse uma poesia, uma crônica, uma crítica, uma denúncia. ( BOGÉA.2011:33).
E continua:
Mas há muito mais e, principalmente, o fundamental: a independência e a inexistênciade censura. E é isto que agrada aos desamparados, que fazem do Jornal Pequeno o estuário de desabafos e cobranças. E é isto também que incomoda aqueles que sentem ameaçada sua impunidade com a cobrança pública.(BOGÉA. 2011:33).
Ainda no mesmo texto, um pouco mais adiante, Ninaacrescenta:
Então, o Jornal Pequeno não morreu nem Bogéa, que sobrevive com o seu jornal, ao qual se incorporará à marca pessoal de seus sucessores, com a característica fundamental que Bogéa sempre preservou: uma espinha
27
dorsal inflexível, que jamais se curvou aos poderososou a qualquer outro interesse espúrio. (BOGÉA. 2011:33).
Mais uma vez, referindo-se ao jornalista Ribamar Bogéa, arremata:
É por tudo isso que o Jornal Pequeno não pode morrer. “É o maior legado deixado por Bogéa a seus filhos e, principalmente, àqueles que, desamparados de toda sorte, precisam de um meio para gritar sua indignação.” (BOGÉA. 2011:33).
Reportando-se diretamente à afirmação constante no Depoimento de
Sarney sobre Bogéa, analisa:
- Disse que o Jornal Pequenoatribuíra-lhe “fato que não era verdadeiro” e que a “ única maneira” que tinha de mostrar sua “ inconformaçãoera usar a Lei de Imprensa. - Quem conhece o episódio sabe que as denúncias divulgadas pelo Jornal Pequeno” foram feitas por um deputado federal. Se eram “inverdades”, processar o jornal nem era a única nem a melhor maneira de reagir, mas demonstrar a verdade à sociedade e não atacar um jornal pelo fato de as ter veiculado, principalmente se, como agora confessa, não tinha o propósito de condená-lo. E se assim era, qual o propósito? Intimidá-lo? - Disse o senador que pretendia apenas defender-se. Que se defendesse. E se tática era a do ataque, que o fizesse contra quem o acusou, não contra a imprensa livre. - Por outro lado, o que parece ser mais grave é a referência feita a La Roque e ao Supremo Tribunal. - Disse o senador “La Roque falou, depois, falou comigo e, no Supremo Tribunal, eu deixei a coisa correr”. - Bogéa ganhou a ação, por unanimidade. Mais diante dessa afirmação – ou insinuação – há que se perguntar: O Supremo Tribunal absolveu Bogéa
porque o senador Sarney “deixou pra lá”?Concluiu-se daí, elementarmente,
sem ser Sherlock Holmes, que, se o senador não tivesse “deixado pra lá”, o Supremo Tribunal condenaria Bogéa ou pelo menos se houvesse unanimidade na decisão, ganharia ou perderia por maioria. Teria La Roque o condão de alterar uma decisão do Supremo Tribunal, se o senador José Sarney não quisesse “deixar pra lá” (BOGÉA.2011.33).
Ainda registrou:
Então, Bogéa não foi como disse o senador, um momento da imprensa maranhense, mas um monumento, cujoselevadosvalores necessários a uma imprensa comungada com o povo, haverão de ser preservados.” (BOGÉA. 2011.33).
28
Em outro artigo, recuperado etambémpublicadonamesma Revista
Comemorativa, intitulado “Valeu, Cara”, da lavra do jornalista e escritor Bernardo
Coelho de Almeida(2011:34), membro da Academia Maranhense de Letras, se lê :
[...] O Jornal Pequenoé um fenômeno da imprensa[...] [...] Mas não foi assim que nasceu o Jornal Pequeno – mais tarde cognominado “o Órgão das Multidões”, por seu aguerrido fundador, Ribamar Bogéa. Ele nasceu do nada[ ...] [...] Ribamar Bogéa viveu momentos difíceis, sofreu perseguições, foi processado, levou porradas, teve seu jornal invadido e empastelado. Mas a tudo resistiu valentemente[ ...] [ ...] (BOGÉA,2011.pág. 34).
Aos autores destes fragmentos juntaram-se outros pensadores, poetas,
escritores e diversos intelectuais maranhenses que se associaram àsinúmeras
reverências prestadas aos familiares de José Ribamar Bogéa, porocasião de sua
morte, entre os quais J. B.Bastos, Nonato Masson, Cunha Santos, Lago Burnett,
Eyder Paes, Jámenes Calado e o poeta Nauro Machado. Este últimoescreveuuma
carta à filha de Bógea, Josilda Bogéa,e como todos exaltou o papel do Jornal
Pequeno e a dignidade do seu fundador. Em “Carta para Josilda”, o poeta Nauro
Machado( BOGÉA, 2011:36) finaliza o texto com louvores ao jornalista e sua obra:
[...]“Bogéa soube escrever superiormente para a nossa gente. Eu diria que o povo pensa aquilo que ele conseguiu fazer-lhe incutir[...] [...] O jornal, para ele,era a profilaxia capaz de nos limpar das mazelas morais com que pretendem incapacitar-nos para a leitura real de um tempo injusto que nos cerca e dói a cada minuto de nossas vidas[...] [...] Ele acima de tudo, foi um homem que jamais se vendeu. E por ter sido incorruptível, o Maranhão chora a perda e o acolhe e reverencia no chão de nossos homens verdadeiramente grandes[...]. (BOGÉA. 2011: 36).
Através desses olhares críticos percebe-se, então, que a escolha desta
personagem do romance montelliano foi bem urdida para integrar a trama. O
jornalista e exímio fotógrafo, captor do flash de Magda, despida e sobre a moto do
namorado, atravessando a ponte de São Francisco, foto que iria estampar, no dia
seguinte, a primeira página do famoso Jornal Pequeno, foi uma escolha singular.
Esta personagem, conforme previsto pelo autor, iria enfrentaro rico e
poderoso empresário Venâncio Sezefredo e, de quebra, a Igreja, face às ligações
entre ambos,papel apropriado e adequado à figura de Bogéa, como se Josué
29
Montello buscasse com esta escolha um efeito prático, dispensando o esforço de
penetrar na elaboração alegórica para retratá-lo. Estabeleceu com esta decisão uma
comunicação de sentimentos, uma identidade imediata com o leitor. Pelo menos,
com o leitor maranhense que conhecia José Ribamar Bogéa.
Nesta alturado enredo, o autor introduz, ainda, outro elemento para o qual
é necessário atentar: a ponte do São Francisco, de relevante importância no
desenvolvimento imobiliário de São Luís,marco histórico-temporal, implementada
quando José Sarney, ex-presidente do Senado Federal e ex-presidente da
República, era Governador do Maranhão.
Ilustração 3: Ponte do São Francisco
Fonte: Upaon-Açu. 400 anos. (2012:17)
Sua construção sempre esteve ligada apenas à imagem deste famoso
político eapresenta-secomoum divisorsocial: havia umacidadeantes da ponte e
existe outra muito diferenteapóssua construção. A nova, fruto da modernidade, não
abriga nem aspedras coloniais da velha São Luís.
Uma publicação denominadaEspaço de São Luís - Testemunho de
Haroldo Tavares(São Luís: Editora daUEMA, 2008) resultou da homenagem que a
Associação Comercial do Maranhão prestou ao ex-prefeito de São Luís, Engº.
Haroldo Tavares, emdezembro de 2004, oportunidade em que sua filha, citada na
obraapenas como Valéria, leu um discurso elaborado e guardado desde 19 de
fevereiro de 1968, que foi transformado em obra graçasao esforço louvável do Engº.
Bolbi Mirandado Nascimento, professor da UEMA, que informa tê-la organizado, o
que a ficha catalográfica da obra não confirma.
30
Salta aos olhos o subtítulo com que foi nomeada: Testemunho de Haroldo
Tavares. Então, folheando esta brochura, se percebe que ela contém muitos relatos
significativos nas suas poucas quarenta e duas páginas que recuperam a memória
de São Luís. A 4ª capa destaca palavras do Profº. José Augusto, Magnífico Reitor da
UEMA,quando da publicação, que ressalta: “O mais importante, nesse depoimento
de Haroldo Tavares, é que ele provoca um alargamento da visãodetransformação
tão fundamental e abrangente da cidade de São Luís [...]” No entanto, não apenas
isto deve ser creditado ao autor, pois o texto promove o alargamento da memória
histórica maranhense. É uma obra pequenapelo modesto número de páginas, com
texto e iconografia, mas corajosa e extremamente significativa para a história
maranhense, principalmentea história de São Luís.
Na obra é destacada a participação do Clube de Engenharia do
Maranhão, fundado em 18.03.49 e “reconhecido como instituição de utilidade pública
em 14 de outubro daquele ano, pelo decreto lei nº 358, da Assembléia Legislativa do
Estado”, conforme informa o engenheiro Bolbi Miranda (TAVARES. 2008:09) na
apresentação da pequena obra. E foi este clube que trouxe, posteriormente, o
CREA- Conselho Regional de Engenharia eArquiteturapara o Maranhão, em 1973,
com o fim de desenvolver a tarefa de pensar eprojetar ações em prol do
desenvolvimento do Estado do Maranhão.
Seu prefaciador, Eng.º José Ribamar Fonseca (TAVARES, 2008:11),
destaca a importância social e logística da ponte do São Francisco no que tange ao
desenvolvimento urbanístico e imobiliário de São Luís ao escrever:
Custa imaginar que há trinta anos São Luís espraiava-se até as cercanias do Rio Anil, a cavaleiro das Av. Getúlio Vargas e João Pessoa. A Ponta D‟Areia era local distante e só alcançável de barco. Ir até à Praia do Olho D‟Água, constituía-se verdadeira aventura de fim de semana.(TAVARES, 2008:11).
Ilustração 4: Ponta D‟Areia: áreas urbanizadas após aponte do São Francisco
Fonte: Upaon-Açu. 400 anos. (2012:120, 121)
31
A trajetória desse desenvolvimento, implementado a partir do governo
José Sarney, está delineada na obra em queo ex-prefeito Haroldo Tavares(2008:15)
apresentou “um testemunhoparaestabelecer nomes e fatos importantespara nossa
comunidade, eventualmente omitidos nesse momento.” Oscréditos devidos são
tributados a quem julga merecer, pois Tavares rememora: “Das prioridades do
governo Sarney, quero ressaltar: a pavimentação das ruas de São Luís; a
construção da ponte do São Francisco; todo o apoio para o porto do Itaqui e a
restauração do Teatro Arthur Azevedo.” (TAVARES, 2008:15).
Para que a tarefa desafiadora se concretizasse foi preciso construir uma
Escola de Engenharia, o que foi feito, pois o Estado contava com apenas 35 (trinta e
cinco) engenheiros. O depoente afirma que a idéia vingou e que a Escola de
Engenharia foi inauguradaem 1968 e, no ano seguinte, esta já havia adquirido seu
primeiro computador, comoorgulhosamente informa, outra obra sempre consignada
apenas à atuação de José Sarney:“Nasceu rápido, idônea e moderna. Mas, à pedido
do governador Sarney foi integrada à estrutura do Estado sem, contudo, nunca
sofrer qualquer interferência política.” (TAVARES, 2008:17).
Mais adiante o autor arremata nesse importante testemunho histórico e
bemesclarecedor:
Nosso compromisso com os alunos era o de receberem seu diploma já reconhecido pelo governo federal e registrado no CREA do Maranhão. Assim foi feito. E em 1973, já nas novas instalações do Bacanga, festejamos a formatura da primeira turmamaranhense de25 jovens engenheiros. (TAVARES, 2008:18).
Ao mencionar a ponte do São Francisco, registra: “Ponte do São
Francisco. Dela, ficaram encarregadas as equipes competentes da Diretoria de
Estudos e Projetos do DER. Representou a integração definitiva das praias à cidade.
Foi a última obra entregue pelo governo Sarney.” (TAVARES, 2008:19).
Desta maneira, ouvida a expressão dos que projetaram a ponte do São
Francisco, percebe-se o reconhecimento de sua importância logística e o que
representou no desenvolvimento sócio-econômico local, impulsionando não apenas
a expansão imobiliária e empresarial como, surpreendentemente, a instalação de um
pólo universitário, uma vez que a Escola de Engenharia se tornou o embrião
dafutura Universidade Estadual do Maranhão. Foram estas soluções inusitadas e
inovadoras que garantiram ao ex-prefeito Haroldo Tavares a fama de “sonhador”.
32
Ilustração 5: Escola de Engenharia do Maranhão: Sede inicial e 1° computador
Fonte: Espaço de São Luís – Testemunho de Haroldo Tavares. (2008:17)
Todo esse legado resultou da decisão pessoal do dinâmico Haroldo
Tavares(2008:16), pois conformeescreve: “Eesse início, tomei como prioridade
particular, já que dependeria desses profissionais concretizar tantas idéias e
continuá-laspelas gerações seguintes.” Visão que efetivamente ocorreu,
determinando a expansão urbanística de São Luís em todas as direções, com a
multiplicação de estradas, construção de barragem e pontes, obras que
consolidaram a ocupação urbana de inúmeras outras áreas da cidade. Tudo isso
tributado, até então, apenas ao governo de José Sarney ou à sua atuação política,
não sendo de domínio público a contribuição pessoal dos profissionais citados no
texto/testemunho.
É bem provável que a ausência deste reconhecimento social tenha
gerado murmúrios ou ressentimentos compreensíveis, mas não há outros registros
conhecidos que permitam um exame mais aprofundado dos fatos. Porém, nesse
mesmo texto,é possível inferir que isto pode ter acontecido, pois há mais três
registros que evidenciam, pelo menos, a reivindicação da paternidade das idéias. A
crítica é clara, dirigida aos envolvidos e conflita com fatos que são de domínio
público:
Outra decorrência da Ponta D‟Areia era a necessidade de criar o acesso à travessia do Igarapé da Jansen. Optei pela idéia de construir uma lagoa a ser formada pelo carregamento de terra expulsandolateralmente o lodo por compressão. Sedimentado, esse maciço foi escavado, e, depois, abertos vertedouros ao nível inferior das marés cheias. Era solução baratíssima e renderia à cidade um belo ponto de lazer. Mas, vale salientar é obra de engenharia mesmo. Não se trata de reduto ecológico de formação natural. Parece-me certo exagero terem-na enquadrado na Constituição Estadual como Zona de Preservação Ambiental. (TAVARES, 2008:28).
33
Ilustração 6: Lagoa da Jansen: obra de engenharia
Fonte: Suplemento São Luís400 anos. O Imparcial. (2012:27)
O segundo esclarecimento parece ser mais urgente, pois o autorlembra
que é sua a idéia que, como as demais, é atribuída ao ex-Governador José Sarney:
Pelo encanto que sucinta a festa do Bumba-Meu-Boi, preciso relatar que para o auto original, consagrando a morte do boi, sugerir em vez disso, que ressuscitássemoso animal. E a festa resistiria alegre e viva em nosso imaginário, para além do calendário cronológico.(TAVARES, 2008:29).
Reivindicando também a legítima paternidadede outras ideias que
circulam em São Luís socialmente, beneficiando outros, continua a testemunhar:
Sempre tratei, nas minhas administrações de valorizar o que nos é mais caro: nossa arte, nossa tradição, nosso patrimônio, facetas da alma peculiar da gente maranhense. Aquisição de obras dos nossos pintores e escultores; festivais de música popular; o Projeto Mirante; a difusão de manifestações folclóricas para o Brasil; gravação de Lp‟s dos sotaques do Bumba-Meu-Boi em estúdios no Rio de Janeiro, as festas da juçara; as escolinhas de arte Japiaçu e as de esportes; Sim, uma seqüência profícua de iniciativas que acabaram revigorando o orgulho de sermos diferentes e donos de riquezas muito próprias. (TAVARES, 2008:28).
A respeito do patrimônio histórico local, também oferece sua contribuição
para que os turistas, os historiadores e pesquisadores sejam tratados com respeito e
os artesãos maranhenses, igualmente, venham a ser valorizados e reconhecidos
pela habilidade, além de evidenciar aexcelência da genética familiar:
Enquanto multiplicavam-se as estradas de produção, das prioridades iniciais, faltava apenas o Teatro Arthur Azevedo. O que seria uma reforma, na prática, traduziu-se em ampla reconstrução com parcos recursos. Para decoração dos ambientes, recorri à minha irmã Eney Santana. E por citá-la, reporto-me à curiosa origem do lustre em cristal. Na verdade, já o havíamos comprado, por catálogo, de Santa Catarina, apesar da versão equivocada e corrente de se tratar de peça original de 1817. Porque inadequado para
34
harmonia estética do novo salão, Eney optou em aproveitar a habilidade dos nossos artesãos para refazer em novas linhas a estruturados tais cristais catarinenses. É esse lustre, de brilho maranhense que acende até hoje as luzes donovo Teatro, desde a reinauguração de 1969.(TAVARES, 2008:20).
Ilustração 7: Teatro Artur Azevedo e lustre catarinense
Fonte: Centro Histórico de São Luis- Maranhão: Patrimônio Mundial. (1998:73,75)
Está implícita uma acusação de manipulação das informaçõesque
circulam em textos turísticos ou promocionais, o que pode acontecer ou ter
acontecido pela desídia de algum servidor, pela real ignorância dos fatos ou pela
crença na antiguidade da peça mencionada. Todos os que possamestar envolvidos,
silentes, por algum motivo.
Desta forma, compreende-se que todos aqueles envolvidos com as
tarefasqueforam fomentadas atravésdo Clube de Engenharia se ressintam da
ausência de reconhecimento público pelas suas ações inovadoras e dinâmicas.
Háalgo além do testemunho que pode serabstraído das entrelinhas, pois, apesar de
tudo que fizeram e que está bem claro nas42 páginas esclarecedoras, estes fatos só
vieram à luz na administração do ex-governador Jackson Kleper Lago, período da
publicação da obra-testemunho, apesar do textoter sido escrito,como afirma o autor,
desde 1968, período em que o governador do estado era José Sarney. Por que a
publicação não saiu antes? Por que foi omitido publicamente o trabalho desses
profissionais? Sanar esta omissão, restaurando a verdade, não seria o objetivo real
da atenção do ex-prefeitoEngº Haroldo Tavaresque consigna, humilde e nobre, os
créditos devidos a muitos profissionais etambém aos políticos.
Éóbvio que todos estes fatos podem não ter chegado ao público em geral
de forma circunstanciada, mas deveriam ser do conhecimento do mundo político,
dos intelectuais e daqueles que circulam socialmente nestes ambientes. Poderia
Josué Montello ter conhecido o texto manuscrito?Saberia destes fatos ou desses
35
ressentimentos? Quereria, a seu modo, recuperar a memória, tributar seu respeito,
destacando sua relevância, suscitando o desejo do leitor de conhecer sua história?
Nota-se que, na obra de Josué Montello, a apresentação de personagens,
prolongar-se-á pela extensão da narrativa, de forma descontínua, sendo
acompanhada pelo registro de atividades e ações que as mesmas desempenharam
ou desempenham na vida real, cotidianamente, como “dever de ofício”, o que implica
dizer com senso de responsabilidade e compromisso social. A realização deste
trabalho trouxe, seguramente, bem-estar social a São Luis.
3BILU E ALGUMAS DE SUAS RECORDAÇÕES
No sobrado, após tomar conhecimento do flagrante fotográfico exibido na
primeira página do Jornal Pequeno, leitura matutina e rotineira de Venâncio e Bilu,
reinava silêncio sepulcral e tudo foi feito para que as coisas retornassem ao normal.
Todos - Bilu e os membros do clero - se consorciaram para que a “ovelha”Venâncio
se acalmasse e superasse mais um choque. Entretanto, seria preciso que muito
tempo decorressee,enquanto as horas passavam,Bilu esperavaseu retorno e de
Magda,que saíra de casa sob açoite, fugindo das chicotadas que o avô pretendia lhe
aplicar, e ainda não voltara. Enquanto os aguardava, antigas lembranças afloraram,
trazidas pelas circunstâncias.Entremeandoas lembrançasque acorreram, surgiram
fatos nos quaisseus familiares tiveram participação ou dos quais foram testemunhas
e estes são desvelados ao leitor, bem simplesmente, amarrados de forma
consistente à narrativa.
Bilu, estairmã de Venâncio, é a única que sempre morou com ele no velho
casarão de beirais e o ajudou a criar Magda. Em tempos passados, como a Vedete
relembrarácerto dia, em um raro momento de ternura, Bilu fora bonita, sorridente e
até feliz. Certa noite, deitada na cama, a Vedete recordará da irmã, traçando
seuretrato quando jovem:
E era tão linda, quando mocinha, com seus cabelos crespos, e seu sinalzinho preto no queixo, no canto da boca. E como sabia rir a boa da Bilu! Um riso feliz. Um riso bom. Mas não tinha corpo bonito. Não, não tinha. Muito peito, quase sem cintura. Mas com os olhos bonitos, que o tempo, esse bruxo, esse calhorda, esse cretino, havia empapuçado, tirando-lhes o brilho e a graça. (MONTELLO. 1989:118).
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Bilu é a única mulher da cidade que Venâncio não tivera vontade de
vergastar com o chicote que brandira contra as mulheres que encontrara em seu
caminho, até porquequase nunca saía de casa, sendo caridosa, católica como ele,
a ponto de renunciarà sua própria vida para viver em função dos outros membros da
família. Com o tempo e os constantesconflitos familiares, solidificara sua
fé:nãofrequentava regularmente a igreja, mas acolhia com hospitalidade ímpar aos
membros do clero que frequentavam o casarão, pois o mesmo era uma extensão do
Arcebispado. Entre estes recintos e junto aos que neles circulavam, osconflitos
familiares se dissipavam.
Ocasionalmente auxiliada pelo prestimosoVeludo, um prestador de serviços
eventuais a casa, registro de uma prática maranhense costumeira,Bilu sozinha
cuidava doimenso casarão. Todas as tarefas da casa lhe eram rotineiras, destino
também comum das mulheres maranhenses que ficavam solteiras eque residiam
com irmãos casados ou que permaneciamno lar paterno, acompanhando familiares
idosos e necessitados de maiores cuidados. Nos poucos e raros momentos de folga,
ia à janela por onde a vida lhe chegava, outra prática local. Os comentários ouvidos
de passagem, em conversas com vizinhas e amigas que recolhiam novidades em
diferentes recantos da cidade, já ofereciam motivos para preocupação.
Bilu, inclusive, por diversas vezes já presenciara da janela do casarão a
evolução dos costumes com “as mulheres quase nuas, os meninos sabendo de
tudo, os homens em mangas de camisa, ou de blusão de meia-manga, as freiras
sem hábito, os padres sem batina, as mulheres casadas mudando de marido como
se muda de roupa...” (MONTELLO, 1989:31). Algumas idéias ou sentimentos foram
inspirados em conversas que aconteciam no recesso familiar onde família significava
a inclusão do Arcebispo Dom Mota e dos padres que circulavam no casarão,
assíduos frequentadores dolocal, dentre os quais o médico e Padre JoãoMohana,
autor de obra comemorada sobre educação sexual.
Dessa forma, assuntos que circulavam na cidade acabavam chegando
aos ouvidos dos moradores, inspirados por diferentes grupos que frequentavam o
sobrado. Sem que soubessem o ponto de partida, os fatos tornavam-se comuns.
Afé de Biluse manifestava claramente quando os conflitos explodiam e
não tinha com quem falar: recorria então a São Benedito, de quemera devota e a
quem contavatodos os problemas,como se falasse com uma pessoa de carne e
osso, sempreatentaàs necessidades familiares, sem desejos pessoais.
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Como várias personagens do enredo, elatambém rememorava. Após o
susto causado pelaúltima estripulia de Magda, que ela vira tambémno Jornal
Pequeno,agora, sentada em uma cadeira de balanço, exclamou: “- Desta vez -
concluiu, tentando desfazer o ar de riso que lhe aumentava as bochechas flácidas -
o mano tem razão: a loucura não podia ser maior”. (MONTELLO, 1989:13).
Em face da experiência adquirida, sabendo como seriam os dias
seguintes, Bilu recorreu mais uma vez a São Benedito e é aos pés da imensa
imagem do santo “de quase um metro”, presente de Jeremias Borba ao irmão, que
se lançou em busca de apoio para aguentar a tempestade: “– O que me vale é que o
senhor, meu santo, sempre me ensina o caminho da paciência. Se não fosse isso,
não sei o que seria de mim.” (MONTELLO, 1989:19).
Este lugar e esta posição – ajoelhada defronte de São Benedito – lhe
eram familiares, pois, em sua fé no poder do santo, confiava-lhe há muito suas
provações. Assim, aindaaflita, prosseguiu, conversando com o santo, o terço entre
os dedos:
Tornou a fazer outra estripulia. Das dela coitada. Desde menina é assim. Não adianta conselho nem carão. Nem ela endireita nem o avô se corrige. Vai ser assim até os fins dos tempos. E eu que aguente o repuxo. Aguento, por que não? É minha sina. Sei que estou neste mundo para isso, e baixo a cabeça, conformada. Conformada, não obediente.(MONTELLO, 1989: 20).
Segurando o terço, que lhe ia escorregando das mãos, continuou:
- A estripulia nova foi a maior. Deixou as outras para trás, longe. E com aquela carinha de inocência. E é inocente, meu santo. É. Conheço a Magda. Não fez o que fez por maldade ou sem-vergonhice. Ainda não apurei direito o que foi mesmo que houve, mas posso lhe garantir: Magda fez o que fez por bondade. Foi. Posso lhe assegurar. O senhor vai me dizer: - E você acha mesmo, Bilu, que é por bondade que uma moça de dezoito anos atravessa a ponte, nua, na garupa da motocicleta do namorado? – E eu lhe respondo: - É meu santo. (MONTELLO, 1989:19-20).
A tal estripulia a deixarade queixo baixo, impaciente, tão impaciente que
confiou a nova preocupação ao santo de sua devoção, prometendo não se levantar
defronte dele enquanto Magda - que saíra, fugindo das vergalhadas de cinto que o
avô procurava lhe infligir - não retornasse para casa sã e salva. Porém, cansou de
esperar e se levantou porquanto as rotinas da casa, onde era pouco mais que uma
empregada, assim o exigia. Bilu sozinha cuidava da casa de Sezefredo, exemplo
38
perfeito da mulher subjugada pelo irmão rico, como as mulheres do PeríodoColonial
brasileiro que, ultrapassado o períodoapropriado de casamento, ficavam sob guarda
e dependência do patriarca, conforme desvela Bocayúva (2001) em seus estudos
sobre a obra Casa Grande& Senzala, de Gilberto Freire. Antesreconheceu, como
costumava confiar ao santo:“- Só acredito porque vi no jornal. O
velhoVenâncioSezefredome mostrou. Na primeira página. Com
fotografia.”(MONTELLO, 1989:30).
Levantando-se, dirigiu-se para a cozinha, não antes que seus olhos turvos
resvalassem “nas tábuas do soalho, por cima dos sucessivos leques coloridos que a
luz abria em toda a extensão da varanda, ao pé da fileira de janelas.” (MONTELLO,
1989: 24). Leques formados com a projeção dos raios de solatravés dos vidros
existentes nas janelas com persianas, como um convite à serenidade, rotina sempre
presente nos sobradões coloniais.
O enredo da narrativa, como se montasse um quebra cabeças, permite
que se veja, nesta altura, como já foi feito anteriormente, mais um aspecto temporal
que prossegue convergindo para José Sarney, ex-governador do Maranhão.
Este político pertence à Igreja Católica, ainda que não seja de domínio
público que seja “praticante”. No entanto, tem interesse – e isto é público – em
imagens de santos, notadamente antigos e volumosos que lhe são presenteados por
amigos e admiradores, tal como o velho Venâncio, que recebeu de Jeremias Borba
a imagem de São Benedito, de “quase um metro”, de presente.
Entre os bens pessoais que o ex-presidente José Sarney doou e integram
o acervo da Fundação da Memória Republicana Brasileira, instalada no Convento
das Mercês, com sede a Rua da Palma, n° 549, em São Luís - MA, encontram-
sedesenhos, pinturas ou gravuras de santos, imagens de santos de tamanhos
variados e, inclusive, um exemplar de quase um metro de Nossa Senhora das
Dores.
Parte desse acervo pessoal, constituído de imagens volumosas, durante
décadas, esteve sob a guarda do seu Antenor, outrora residente à Rua do Veado, n°
96, em São Luís, um piedoso devoto de Santo Antônio, que declarava a qualquer
pessoa que visitasse seu santuário ( ocupava toda uma sala ), ou o procurasse em
busca de intercessão junto ao santo ao qual se devotava, que o acervo de santos
de dimensão volumosa entronizados em seu santuário, cujos nomes ele tinha prazer
39
em declinar, não lhe pertenciam, sendo propriedade pessoal de José Sarney e D.
Kyola Sarney, mãe dele.
Ilustração 8:Acervo religioso da Fundação da Memória Republicana Brasileira
Fonte: Foto da autora
Ilustração 9:Fachada do Convento das Mercês
Fonte: Centro Histórico de São Luís-Maranhão(1998:80)
Um elemento que converge para sua veracidade – como no caso do
testemunho de Haroldo Tavares – é a cobertura efetivada pelo Sistema Mirante de
Comunicação sobre as comemorações queo popularíssimo “seu Antenor”realizava
infalivelmente de 1º a 13 de junho de cada ano, encerradas com uma procissão que
percorria várias ruas do bairro em que residia e áreas adjacentes, conforme se pode
constatar em repetidas edições do jornal O Estado do Maranhão, de anos variados
até sua morte em 1997. Sem que seja preciso mencionar a cobertura televisiva da
TV Mirante, ambos veículos de comunicação da família Sarney.
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As semelhanças visualizadas no enredo que aproximam a figura do ex-
governador da personagem ficcional Venâncio devem (e têm) um propósito que se
conhecerá.
Dias depois do episódio do flash, após um café da manhã, como alguns
dos seus familiares o farão no decorrer da narrativa,Bilu tambémirá rememorarmais
uma vez os velhosfatos, alguns dos quais envolveram suafamília e a igreja.Lembrou-
se, por exemplo, deuma fala que Magda mencionara ao ter sido convidada pelo
visitante assíduo do casarão, o padre Mohana, durante um encontro casualde
ambos na Arquidiocese, para ajudá-lo com um legado que descobrira em uma das
suas muitasvisitasàscidades de Caxias e Codó, no interior do Maranhão:
–Sabe com quem me encontrei, ontem,Tia Bilu? Com o Padre Mohana. Já chegou de Caxias.Corado.Bem disposto.Perguntou como iam todos aqui. E que vem ver meu avô, uma noite destas.Achou em Caxias e Codó, nas velhas igrejas, outras músicas antigas.Do tempo do Império.A pilha das músicas, na casa do Padre Mohana, já é mais alta que ele.Músicas que se tocavam e cantavam aqui no Maranhão, no tempo da minha bisavó.E mesmo no tempo do Capitão-mor. Padre Mohana quer fazer um livro sobre essas músicas. Me perguntou se eu podia ajudá-lo.E eu disse: - Como, Padre Mohana? – Ele respondeu:- Ora,como? Primeiro, tocando no piano, depois pondo todas em ordem, devidamente separadas e classificadas: - Pensei um pouco, e disse que sim, que eu o ajudaria. (MONTELLO, 1989:161).
O fragmento supracitado, extraído da obra romanesca em exame, é uma
fala de Magda, dias após o episódio da sua nudez sobre a moto, o que deixou seu
avô Venâncio, defensor intransigente de velhos princípios morais e religiosos,
ressentido. Desta forma, ele se manteveem silêncio durante muitos meses, mudo,
remoendo solitariamente seus pensamentos e suas mágoas. Não dirigia a palavra a
Magda, não lhe respondia, limitando-se a tomar o café em sua companhia e de Bilu,
esfarelandomigalhasde pão sobre o bordado da toalha.
Como se reproduzisse a ação da personagem que delineia no romance,
Josué Montello esfarela também migalhas da memória histórica maranhense,
relatandofatos que são do conhecimento da elite cultural maranhense. Pois é fato de
domínio público que o padre João Mohana, médico, sacerdote maranhense, escritor,
dramaturgo, pesquisador e um brilhante intelectual, durante suas andanças pelas
igrejas localizadas no interior do Maranhão, descobriu um imenso legado musical,
constituído por obra musical sacra e profana de autores brasileiros, principalmente
41
de maranhenses. Assim,Josué Montello ratificaesta descoberta,mencionando-a em
vários trechos da narrativa. Ela se espalha entre vários capítulos, deixando-se
entrever nas tarefas que Magda desempenha.
Os diálogos de Magda e Bilu revelam um meticulosoacompanhamento do
trabalho que envolveu a descoberta,demonstrando, desta forma, sua
familiaridadecom o padre Mohana e com a pesquisa levada a efeito pelo
sacerdote/escritor até a conclusão da tarefa de trazer a lume o notável achado.
Então, observa-se que João Mohana é o mais novo personagem, também retirado
da realidade maranhense pelo autor do enredo.
É interessante observar que este relato sobre o achado do Padre João
Mohana surge no decorrer do café da manhã, no casarão, onde aspersonagens
presentes – Bilú e Venâncio – estão em silêncio, ouvindo Magda. Mudos, apenas
ouvindo. Apesar disto,Magda conversa sem esperar respostas, sem se preocupar
com o silêncio de ambos, “a quem conta o que tem de contar,a quem diz o que tem
a dizer.”(MONTELLO, 1989:161),como se fosse dever, também de Josué Montello,
falar sobre o legado cultural de valor inestimável que o padre estava pesquisando.
Como os pombos que arrulham e os bentevis que cantam nos fios e
beirais, sem quaisquer preocupações em ser ouvidos - mas o são - Josué Montello
desfia a memória histórica maranhense, registrando o seu tempo, os fatos que
pretende documentar. E osfarelos da memória se juntam a outros, nesta narrativa,
como o registro nominal de personagens e suas ações, tais como foram conhecidos
em vida ou como o são. Ele conta, ele diz!
O padre João Mohana, personagem em foco, era médico, sacerdote e
intelectual maranhense, tendo integrado a MIRA - Missão Intermunicipal Rural
Arquidiocesana, criada pelo ex-Arcebispo Metropolitano de São Luís, Dom Delgado,
quando este ainda era um bispo. Em tal condição, como se lê na obra A grande
música do Maranhão (Rio de Janeiro:Editora Agir,1974), desenvolveu pesquisas
sobre a música maranhense, sintetizadas nesta obra. Sua atuação se assemelha à
do grande intelectual, poeta e pesquisador musical Mário de Andrade, que também
soube dar importância às manifestações musicais populares, recolhendo, pelo Brasil
inteiro, material de inestimável valor. O Padre Mohana definiu seu próprio
comportamento, aproveitando a ocasião que o cargo lhe oportunizava, da seguinte
maneira:“Procurei tirar partido dessa intermunicipalidade [...][...] E nessas viagens eu
não desligava o botãozinho obsessivo do perdigueiro farejador de som. Nos
42
intervalos das consultas, minha ocupação era caçar música. E quantas perdizes
amarrei!”. (MOHANA,1974:19).
Os diálogos de Magda com Bilu, que se encontram espalhados por vários
capítulos, demonstram que Josué Montello, na condição de intelectual engajado,
conheceu todos os passos encetados pelo pesquisador, pois as tarefas que, no seu
enredo, foram solicitadas a Magda pela personagem PadreMohana, também foram
executadas pelo próprio na vida real e estão detalhadas na obra em que este
compilou os resultados do seu achado, um legado cultural sem precedentes.
Mohana ouvia músicas tocadas por músicos maranhenses, ouvia músicos
falarem sobre suas músicas e as de outros companheiros, registrando
minuciosamente as informações recebidas que o levassem a localizar acervos,
partituras, obras e pessoas que renovassem este ciclo.Fazia audições reservadas
com músicos e intérpretes pararegistrar e confrontar as informações que
obtinha,visando o estabelecimento dos textos musicais e dos acervos de autores;
onde houvesse dúvidas era incansável. Estes “momentos” podiam durar todo um
dia, quando aguardava pacientemente que uma lembrança surgisse na mente de um
dos músicos ou intérpretes que buscava para ajudá-lo a recompor partituras,
estabelecer textos musicais com absoluta fidelidade, sempre persistente e ético.
Comprava velhos acervos musicais com seus próprios recursos, inclusive
caixotes repletos de partituras impregnadas de cupins e promovia,logo a seguir,a
assepsia necessária, preservando os textos musicais. Perdeu muitas obras para
“esses pequenos assassinos” e também para outros bem maiores, os fogueteiros,
que exercitavam a tarefa de explodir foguetes e rojões, em momentos de
comemoração nas cidades do interior, com velhas partituras, pois o papel em que
músicos fixavam sua arte eram mais resistentes e mais adequados para o exercício
de explodir foguetes e morteiros, preservandoo corpo dos fogueteiros com mais
segurança durante as explosões.
Restabeleceu originais, retirou muitas partituras de “mãos fogueteiras”
(MOHANA,1974) com a valiosa colaboração de informantes locais, de
apreciadoresda música, de velhos músicos e intérpretes do interior maranhense,
assim como através do auxílio de obras musicais publicadas ou mencionadas em
textos que localizou em bibliotecas brasileiras espalhadas no país. Também contou
com o apoio de órgãos regionais ligados à música e aos músicos. Para tais tarefas
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era incansável, não poupando tempo nem seu próprio dinheiro. Ele descreveu o seu
envolvimento cada vez maior com a músicae os músicos:
O filão despontava. Eu não ouvia apenas. Eu via a mina defronte de mim. Devia haver essa mina de música, - música maranhense. Tudo aquilo que chegava era apenas sinal, pequena mostra, advertência! Aí me lancei. A suspeita virou decisão. A decisão virou aventura. A aventura virou descoberta. (MOHANA, 1974:10,11).
Ilustração10: Etapas da pesquisa do Padre Mohana
Fonte: A Grande Música do Maranhão. p.37 e 23
Este trabalho cansativo, laborioso, de casa em casa, de cidade em
cidade, resultou da sua persistência e obstinação pois os músicos, suas viúvas ou
suas famílias com respectivos espólios se encontravam espalhados pelo Estado e
até em outras cidades do país. Detectou, inclusive, a publicação de obra musical de
autor maranhense na Europa, mais precisamente em Leipzing, na Alemanha, esta,
inacessível. Anota em sua bela obra/testemunho: “Todo o meu tempo disponível era
empregado em caçar partituras maranhenses.” (MOHANA, 1974:12).
Durante todo o seu esforço, constantemente se deparava com um inimigo
habitual, tratado com bom humor:
Preciosidadesdesrespeitadas pela poeira me embeveciam. Até que chego ao fundo de um dos caixotes e encontro a carnificina. O exército de cupins lá estava, saqueando claves, destruindo notas, devorando harmonias,
degolando Ignácio Cunha”. (MOHANA, 1974:13).
Mohana comprava tanto partituras e acervos musicais, quanto velhos
instrumentos. Ao lançar sua obra sobre a pesquisa, já citada, fez questão de incluir
seu endereço (Rua Formosa nº 119, - 65.000 São Luís-Maranhão) em uma das
44
páginas,para futuras remessas, contatos e o prosseguimento das pesquisas, como
se a longa tarefa não lhe pesasse. Crítico e sabendo-se cercado de inconsciência,
ele registrou: “Durante vinte e três anos de trabalho, de emoções, de alegrias, de
raivas, de viagens e de visitas sem conta, este peregrino da música maranhense
criou calos nos pés enas mãos, mas não nos olhos, felizmente.” (MOHANA, 1974:21).
O trabalho que Mohana chamou de perdigueiro foi detalhado por Josué
Montello, que o incorporou ao enredo analisado, tranquilamente, revelando
intimidade com João Mohana, respeito ao seu trabalho e conhecimento de sua obra
escrita ou, quem sabe, do seu trabalho de pesquisa, todos anteriores à publicação
de Um beiral para os bentevis. Na obra montelliana, a personagem ficcional Magda,
a neta de Venâncio, também se deliciava com as músicas que Mohana lhe
entregava, tocando-as ao piano,fazia anotações musicais a seu pedido, como ele o
fazia na vida real com outros músicos, e propiciava com seu excelente desempenho,
sempre elogiado pela personagem Mohana, momentos agradáveis à sua tia Bilu,
que apreciavasuas audições ao piano, instrumento existente no casarão.
Quando, no enredo,Mohana se deslocava ao interior e retornava, o
trabalho de Magda também se avolumava e, quando esta falou à tia Bilu sobre uma
pilha imensa de trabalho que a esperava, não se tratava de uma hipérbole. O próprio
Padre Mohana se fez fotografar ao lado da pilha de partituras, foto que se encontra
reproduzida neste trabalho, e que ilustra seu livro A grande música do Maranhão, no
qual se encontra a legenda:
Elevando-se a mais de dois metros, a pilha de partituras que Pe. Mohana exibe é símbolo do alto nível atingidopela música maranhense do passado, tanto a erudita como a popular. Nela estão missas, novenários, operetas, romanzas, moletos, antífonas, polkas, valsas, dobrados, pastorais, rapsódias, sambas, mazurcas, sonatas, cateretês, modinhas, sinfonias, etc, etc. (MOHANA,1974:63).
Ilustração11: Pilha de partituras recuperadas
Fonte: A Grande Música do Maranhão. (1974:63)
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Coube a ele, comestas pesquisas, a descoberta de obras celebradas de
autoria de Antonio Rayol, dentre estas,missa solene para quatro vozes, sinfonias,
missa de réquiem a quatro vozes, prelúdios, hinos, serenatas, barcarolas, ave-maria
e outras que totalizam vinte e oito peças. Também descobriu quatro peças de
Dunshee de Abranches,paida condessa Pereira Carneiro, sobre quem se verá em
outro momento, além de nove peças do famoso músico Hygino Bíllio, muitas e
diversificadas peças musicais, cujo patrimônio pode ser conhecido, gravado,
divulgado, estudado, a partir de sua contribuição com estapesquisade dedicação
extremada. Patrimônio cultural que integra o acervo cultural do Maranhão,
presenteado pelo pesquisador.
Ao finalizar seu livro,Mohana (1974:94) lamentou tudo quanto não pudera
obter, reconstituir, localizar, consciente da grandeza do trabalho realizado, sem
apoio público e, referindo-se ao acervo de Antonio Rayol, anotou:“Imagino oque
perdemos de ouvir, de ver, de gravar. Árias, duetos, coros, ejaculados, do potencial
melódico e do talento orquestrante de Rayol, sonorizando os personagens de
Alencar.” Seu trabalho tem um valor cultural inestimável e ele sabia disso, então, no
mesmo fragmentodeixa o convite: “Olhemos os brilhantes que ficaram. São
tantos...”.
O legado de Mohana está detalhadona obra que editou, resultado do seu
trabalho paciente, que lhe consumiu vinte e três anos de sua vida, levou-oaos
lugares mais distantes e até inóspitos, em todo o Maranhão e também fora dele, o
fez entrar em contato com pessoas de todos os níveis sociais, culturais e
econômicos, algumas das quais lhe impuseram longo tempo de paciente espera
para lançá-lo, finalmente, no desespero da busca infrutífera, até por se ressentirem
de uma plenaconsciência acerca do tesouro que detinham em suas mãos. Todavia,
muitas delas sucumbiram ante o encanto, à delicadeza e a firmeza do médico,
sacerdote e pesquisador emérito, passando às suas mãos acervos que, graças ao
seu amor à música, se tornaram um bem público, um legado inédito e raro, um
patrimônio imaterial sem precedentes, que Josué Montello reverencia,mencionando-
o.
O Padre Mohana, consciente da grandeza do legado
egenerosamente.registrou algo bem interessante e desconhecido da maioria dos
intelectuais maranhenses, assim como do grande público, e que surpreende:
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Mesmo em ambientes de alto nível cultural, julga-se que o fenômeno “Atenas Brasileira” foi exclusivamente literário. Mesmo nas rodas de intelectuais é pacífica a aceitação do clichê: ”No Maranhão falou-se o melhor português do Brasil. Também eu pensava assim, até alguns anos atrás” [...] Só então, depois de ter vivenciado os primeiros anos da pesquisa, foi que me dei conta de ter descoberto um patrimônio ignorado pelos brasileiros e pelos próprios maranhenses. Só então fui me conscientizando de que ocorrera na música fenômeno semelhante ao da literatura. E pude concluir: o Maranhão não foi apenas cenário de um fenômeno literário espantoso, mas também palco de uma impressionante criatividade musical, superior à de qualquer outro centro brasileiro, quer no Sul, no Norte ou mesmo no Centro. Não apenas nas letras o Maranhão justificou o honorífico posto de “Atenas Brasileira”. Também na música.(MOHANA. 1974: 114 e 115).
Mais adiante, preocupado com a possibilidade de transmissão desse
legado, sabendo da potencialidade do que descobrira, se pergunta:
É a pergunta que me fazem e que me faço. Qual o destino do tesouro? Que fazer com ele? Onde guardá-lo? Onde protegê-lo, preservá-lo? Onde torná-lo mais útil aos pesquisadores, aos musicistas, aos musicólogos, aos historiadores da música, aos compositores, aos protestantes, aos professores de música, aos regentes, aos corais, às orquestras, aos concertistas, às gravadoras? Uma conclusão é certa. Não sairá do Brasil. Mas, por enquanto, a pergunta fundamental é esta: No Brasil, onde ele se tornará mais acessível ao maior número e aos mais capacitados? No Maranhão ou no Sul?(MOHANA, 1974: 117).
A memóriaprodigiosa de Josué Montello, queviveu durante um período de
sua vida na França, onde foi embaixador do Brasil junto à UNESCO(1985 a 1989) e
Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil (1969 e 1870) país, onde se cultua a
Arte, a História e a memória de forma ímpar, sempre lhe foi útil, conforme se
constata em outras obras de sua lavra onde recorreu à história do Maranhão e
vivências pessoais.Aliás,WinfriedKreutzer (1992:8)já chamara aatençãopara esse
recurso comumente levado a efeito por Josué em algumas de suas obras e,
referindo-se aos Tambores de São Luís sobre a qual se deteve e elaborou um
ensaio premiado diz: “Não pode haver dúvida que muito valeram à obra experiências
pessoais e recordações da infância do autor”, o quetambém pode ser observado
neste romanceonderecorre às experiências já vivenciadassocialmente, além da sua
memória pessoal. Por exemplo, Josuéevoca lembranças da França e as desfila em
profusão, atravésdo olhar de Francisquinha, irmã de Venâncio, que ali teria vivido
47
como ex-vedete do célebre cabaré Moulin-Rouge, após ter sidoexpurgada do Brasil
pelo irmão rico e carola. Alquebrada, gorda, envelhecida, com as papadas caídas,
ela não aceita suadecadência e credita ao irmão, bem sucedido financeiramente,
sua desgraça.
Ainesperadaviuvez e o hábitodo jogofizeram com que ela, a Vedete,
dilapidasse a fortuna que herdarado ex-marido em cassinos franceses, obrigando-a
a retornar ao velho casarão e à situação humilhante emque ali se
encontrava.Insatisfeita, relembrava comumente sua vida luxuosa e boêmia em Paris,
após o desfecho do adultério que não lhe causara qualquer comoção interior, até
porque fora na viagem de ida a Paris, quando o irmão a deportara da família, que
conhecera Charles, um francês rico, muito rico, com quem viera a casar, tornando-se
milionária.Se as lembranças da vida luxuosa que experimentara na Europa, ao lado
dele, acorriam-lhe mais vezes que o necessário era porque se comprazia nestes
devaneios, confrontando-os com a vida que levava e com aquela que poderia
desfrutar, se o irmão rico e poderoso, Venâncio, assim o desejasse.
A Vedetelembrava comumente que fora casada com Charles, rico
empresário que, apaixonado por ela, lhe fez todas as vontades, pagou todas as suas
extravagâncias e, ao morrer, deixou-lhe uma fortunaconsiderável que ela dilapidou
nas roletas dos cassinos, sobretudo nos de Monte Carlo. Naná, como também a
chamavam, evocava comumente este passado, circunscrito aos seus momentos de
solidão, momentos em que ela se sentia abandonada pelos seus próprios familiares.
Egoisticamente, sempre lembrava a vida que usufruíra.
Charles fora rico o bastante para se tornar empresário da noite, em Paris,
comprando um lugar para ela poder exibir seu corpo e sua dança, “enxovalhando”,
dessa forma, sua famíliacom a profissão escolhida. Ao retornar para São Luís sem
tostão, trouxera muitas malas recheadas devestimentas que usara no famoso
cabaré, além de cartazes, lembranças desses tempos áureos, quando seu corpo
bem delineado e sua beleza estonteantede Medusa,que ali se entreviam, atraíam os
olhares e provocavam os homens.
O seu corpo sedutor, sua beleza exuberante e suas provocações
trouxeram vergonha à sua família, residente do outro lado do Atlântico que,
preconceituosa, arepudiava. Seus irmãos recebiamas cartas queenviava, falandodo
seu sucesso em Paris, as fotos e cartazes onde eravisualizada seminua,
oportunidades que usava para convidar os membros da família a experimentarem o
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mesmo caminho que trilhara. Da alta sociedade maranhense, não aceitavam nem
poderiam conviver com uma artista. Uma vedete!
Bilu rememorouainda uma vezeste momento sombrio, enquanto esperava
o retorno de Magda que saíra fugida, pulando os muros da casa sob o chicote do
avô, Temia que pudesse ter ocorrido a influência nefasta da Vedete- como já
acontecera no passado comCalu, a primeira ex-esposa de Venâncio– eninguémlhe
informarasobre o acontecimento que estavam vivenciandonaquela ocasião.
A presença da irmã na casa reforçava também a lembrança de sua
ocupação passada, vista como indigna, o que a tornava uma pessoa sob suspeita,
inclusive e, principalmente, no âmbito familiar. Sua presença e o preconceito latente
em cada um dos moradores da casa contra ela são, como esclareceHalbwachs
(1990, p.46),“condições que permitem a essas duas influências combinar melhor sua
ação, para que a lembrança reapareça e seja reconhecida.” Em perfeita coerência,
de súbito, lembrando-se desse escândalo, Bilu recorda claramente:
- Meu Deus, só eu sei o que foi o escândalo da Vedete, neste mesmo sobrado. Eu, Binoca Alexandrina da Silva e Pontes. Eu, que nesse tempo ainda pensava em me casar e ter também minha casa. Parece que estou vendo o Venâncio Sezefredo, ali, naquela mesma varanda aos berros: - Não admito pouca-vergonha nesta casa. Pouca-vergonha, não. Se quer virar bicho, entregando-se ao boi como uma novilha assanhada, que vá embora daqui para o pasto. Vaca, não! – E a Vedete que nesse tempo ainda era Francisquinha, linda, uma verdadeira boneca: - Vaca é a tua futura mulher, Sezefredo. Dou o que é meu, e a quem quiser. Não tens nada com isso – E ele, mais exaltado, tão exaltado como ficou com a Magda: - Aqui, debaixo destas telhas, não! Estou aqui no lugar de meu pai. – E a Francisquinha, ali na escada, só de calcinha e sutiã (que nesse tempo se chamava corpinho): - Teu pai, só, não: - Nosso pai. Estas telhas também são minhas. Minhas. Muito minhas. Como são da Bilu, da Lizoca, do Tonico, da Bebeta. – E o Filogônio, marido da Bebeta, responsável por toda a confusão: - Primeiro me ouve, Venâncio Sezefredo. Primeiro me ouve. Uma chispa de riso aflorou às pupilas da Tia Bilu enquanto continuava a lavar louça. E falando à água da torneira que se derramava sobre o bule ainda sujo: - Hoje, acho graça; na hora, tive medo. O Filogônio era um tipinho de homem. Baixinho. De bigode frisado. Cavanhaque. Sempre cheiroso. Metido a conquistador. A Bebeta, uma mosca-morta. Depois é que ficou de cavalinho na venta, segundo o Venâncio Sezefredo.Naquele tempo, não passava de uma mulher comprida, sempre calada, de olhos baixos, afundada na cadeira da mesa, rodando os polegares. E o Filogônio, de pé, com a mão direita torcendo a ponta do bigode para o Venâncio Sezefredo, que estava do outro lado da mesa, furioso, com as veias do pescoço puladas: - Primeiro, quero ser ouvido. Não nego que errei. Não, não nego. Não devia ter feito o que fiz. Mas não estou arrependido. Não, não estou. – E subindo a voz, quando a Bebeta se pôs a chorar alto, e o Tonico e eu (eu também, de repente) gritamos para que ele se calasse: - Esperem. Esperem. Quero falar. Estou com a palavra. Exijo que me ouçam.
49
Outra pausa de Tia Bilu. Para uma risadinha. E passando a lavar a xícara grande do Venâncio Sezefredo: - A Francisquinha ali na escada, limpando as unhas, com um ar feliz como se estivesse gostando (e estava, e estava, porque nesse tempo queria desafiar o mundo). O Tonico, com as mãos na cava do colete, do lado da sala. Eu, perto dele. E o Godô, de quem ainda não falei. O Godô, ainda de batina de padre, gordo, calado, com as mãos entrelaçadas por cima da barriga (sem saber, coitado, que ia morrer estupidamente, pouco depois), sério, ora baixando os olhos, ora subindo os olhos, como se estivesse mudo, no confessionário, ouvindo a confissão da família. O Venâncio Sezefredo parecia que ia estourar.Vermelho como um pimentão. Tão alto que escondia o quadro da parede. E sacudindo as pernas com o braço nas costas da cadeira da cabeceira, por trás da Lizoca; da Lizoca que só sabia gaguejar, se estava nervosa. Nesse dia, só fazia tremer os beiços, muito branca, mexendo a cabeça, para aprovar tudo quanto dizia o Venâncio Sezefredo, sempre que o Venâncio Sezefredo falava aos berros. Nova pausa de Tia Bilu, para outra risadinha. E passando a enxugar a louça, depois de lavar as mãos e a fechar a torneira: - Só faltava o cachorro latir e o canário cantar. Com certeza latia um e cantava outro; eu é que não me lembro. Há umas coisas que eu lembro como se estivesse vendo agora; outras, não. Mas, desse caso, me lembro de tudo. De tudo. Com absoluta nitidez. Pendurou a primeira xícara no gancho da prateleira, no armário das louças, deixando abertas as duas portas. E enxugando a xícara da Magda: - Me lembro perfeitamente do Filogônio dando um passo, sem tirar a mão do bigode, com a cabeça bem levantada: - Digo, e repito: não estou arrependido! O que fiz, tornaria a fazer! – E o Venâncio Sezefredo, crescendo para ele, como se os dois fossem se atracar: - Aqui, não. Fique sabendo que não. Sou eu que respondo por esta casa. Sou o mais velho. E hei de defender minha família. – Godô, coitado, espalmou as mãos, nervoso, pedindo calma. – E o Filogônio, firme, para o Venâncio Sezefredo: - Espere. Não ferva com pouca água. Faço meu o apelo do Padre Godô: calma. Deixem eu me explicar. – E movia as mãos no ar, parecendo que ia rir. Afinal, conseguiu se explicar: - Peço ao Padre Godô que me perdoe se o que vou dizer for uma heresia. O que penso, digo. E sei que sou filho de Deus. Como todos aqui. Não me julgo melhor que ninguém. Posso continuar me explicando? Obrigado. Ouçam. – Agora tinha mesmo um arzinho de deboche, com a cabeça meio de lado. E ele, sério: - O corpo de cada um de nós tem seus caprichos. Se não obedecemos aos caprichos de nosso corpo, nosso corpo nos apoquenta dia e noite, até que a gente entrega os pontos. – Olhou para o meio da escada, sorriu para a Francisquinha, feliz. E tornando a torcer o bigodinho, continuou: - Ninguém pode negar... nem mesmo o Padre Godô, com todas as suas virtudes, a Francisquinha é um pedaço de mulher. – E mais alto, sempre sério: - Silêncio, silêncio. Estou falando. Faço um apelo ao Venâncio Sezefredo para que me assegure a palavra. Não quero ser interrompido. – O Godô ficou do lado dele: - Com gritos, ninguém se entende. Fala, Filogônio. – E o Filogônio, cínico: - Comparem a Francisquinha com a Bebeta, minha mulher. Não há termo de comparação. Podem berrar, podem gritar, como estão berrando e gritando, e eu morro dizendo a verdade: não, não há. Mas eu só vim a admirar a Francisquinha, assim bonitona, saudável, depois de casado com a Bebeta. Sem querer, me tornei um mau marido. Eu, um cavalheiro. Não queria saber daBebeta.E o meu corpo, este meu corpo, coitado, a me dizer: - Te lembra da Francisquinha. Olha a Francisquinha.A Francisquinha é única. E está no teu caminho, Filogônio.
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Sem conter o riso, Tia Bilu tinha-se esparramadono banco de madeira, ao lado do fogão, com a barra da saia no meio das pernas e as mãos no joelho, a olhar para a tartaruga assustada, que se mantinha quieta por baixo do armário das louças, com a cabeça fora do casco como se estivesse a escutá-la. E recolhendo o riso que me deu agora, aqui na cozinha, me deu também na varanda, com o Filogônio falando. De tão cínico,o diabo do homem parecia estar representando.Estou vendo a cara dele, debochada, risonha, continuando a falar. O Filogônio levanta mais a cabeça, joga-a para trás,pausando as palavras, dando-lhes um tom dramático, novamente sério: -Houve uma noite em que não me contive.Saí de meu quarto,na ponta dos pés,respeitando o sono da Bebeta. Eu tinha de contar meu sofrimento a Francisquinha.Era impossível viver nas labaredas de minha fogueira. Dormia mal, comia mal, sempre com a Francisquinha aqui. E bateu na testa. Francisquinha,interessada, deixou de limpar as unhas com as próprias unhas, desceu outro degrau da escada. E o Filogônio, estimulado pela própria fluência: - O sobrado dormia. Silêncio. Só o relógio, exemplarmente acordado, contando os segundos: tique-taque, tique-taque. Subi aquela escada no escuro, apalpando o corrimão. Acreditem no que vou dizer: não foi preciso bater no quarto da Francisquinha. A porta – veja bem isto, padre Godô, para sentir a conspiração das circunstâncias – só estava encostada. Dentro do quarto, em cima da cômoda, uma velinha acesa no castiçal guiou meus passos até a cama generosa em que a Francisquinha – que aqui está, e não me deixa mentir – esperava por mim, sentindo todo o meu drama, sem que eu lhe tivesse dito sobre ele uma só palavra! Mais cínico, mais debochado, repuxando um canto da boca, o Filogônio afinou o bigode, tossiu, consertou a garganta. E olhando para o Venâncio Sezefredo, que enclavinhava as mãos no respaldo da cadeira, prestes a explodir: - Aqui eu paro. O resto... Não, o resto eu calo. E com o dedo em riste para o Venâncio Sezefredo: - Ouça agora a minha queixa. Tudo podia continuar no melhor dos mundos, com o sobrado dormindo, a Bebeta sonhando, o Padre Godô rezando, a Bilu preparando o enxoval (é a idéia fixa de toda mulher na idade dela) e eu e a Francisquinha, lá em cima, discretamente, escondidamente, obedecendo aos apelos da natureza, se o senhor meu cunhado, com a sua costumeira vocação para desmancha-prazer, e sem ter sido chamado não aparecesse lá no quarto, de improviso, e em camisolão de dormir, e acendesse a luz. Mas patético, sacudindo as mãos à altura dos ombros, sem se impressionar com o ar agressivo do outro, rematou, olhando para ele: - E que foi que o senhor lucrou com isso, Venâncio Sezefredo? Nada. Ou melhor: tudo. Esta briga, este mal-estar, esta confusão, com a Bebeta zangada, eu zangado, o Padre Godô, e a pobre da Francisquinha decidida a ir embora daquipara ser vedete em Paris”
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[...] - E como acabou a briga ? Com todo o mundo contra o Venâncio Sezefredo; o Filogônio e a Bebeta saindodaqui, o Godô também, a Francisquinha idem; a Lizoca , coitada, gaguejando, e o Venâncio pagando a parte de cada um no sobrado. Só eu fiquei, por não ter para onde ir. E fiz bem. Ao menos não voltei, como a Francisquinha, nem fui morrer longe daqui, como a Lizoca, a Bebeta e o Filogônio; nem levei um tiro por engano,como o Godô. (MONTELLO,1989:.25-30).
Bilu rememora o escândalo causado por Francisquinha, sua irmã, após o
retorno desta ao velho casarão, o que só aconteceu cinquenta anos depois deste
episódio, que separou toda a família. Logo a seguir, cada um tomou seu caminho.
Porém, ao contrário do que pensavaBilu até então, não foraapenas naquela
oportunidadeque ambos, Filogônio e Francisquinha, se encontraram nos braços um
do outro. A própria Francisquinha, no decurso do enredo, se incumbiu de desfazer o
equívoco.
Em momento de intimidade e sofrimento, após a morte de Karl, que será
vista em outro momento, Francisquinha seaproximou de Magda e lhe confidenciou:
- Já tiveste desses momentos, Magda? Ah, então ainda não sabes para que é que fomos criadas.Não, não sabes. Se soubesses, já tinhas ido atrás do teu maluquinho. Eu, quando soube, perdi a cabeça. E foi aqui, neste sobrado, que vim asaber. Com outro maluquinho: o Filogônio, meu cunhado, marido de Bebeta. A Bebeta não sabia o marido que tinha. Um artista, Magda. Sabia ser homem. Fazia do corpo da gente um violino. Mas não um violino qualquer.Um Stradivarius.Trabalhava bem .Trabalhava.Sou grata a ele. Foi o Filogônio que, a bem dizer, me atirou nos braços do Charles, no navio que me levou para o Havre. Ah, o Charles. Outro artista. Mais polido. Mais requintado.O Filogônio- instintivo; o Charles – culto, preparado. Fez de mim o que quis.”(MONTELLO, 1989: 244).
Continuamente indiferente ao impacto que suas palavras
geralmentecausavam nos presentes e despreocupada quanto aos sentimentos
alheios, na ocasião dessa confissão, reveloumais uma de suas peraltices eróticas,
provavelmente a última deste tipo, sentada em uma cadeira de braços onde se
encontrava buscando uma posição confortável, pernas estendidas para frente:
[...] E suspirando; -Eu volto aencontrar o Charles. O meu Charles.Com o favor de Deus. Do outro lado da vida.E nunca mais me desgrudo dele. E de repente, firmando os pés como se fosse levantar:
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-Não tivestes atração pelo Karl ? Eu tive. Maluqueira de velha assanhada.Sou a primeira a reconhecer. Passou. Uma noite. Subi ao quarto dele. Não cantei. Não dancei. Fiquei caladinha, na beira da cama, a olhar para ele. E o Karl, coitado, não percebeu que eu estava ali para me entregar. Eu, a Francisquinha.Ele, sempre tocando. Tocando e me assanhando. Terminei voltando ao meu quarto, sem me despedir dele.Fiquei de bruços, deitada, ouvindo o Karl tocar. E chorei. Chorei muito.Eu não era mais a Francisquinha. Não, não era. Meu tempo tinha passado. Como alguém que é deixada na estação quando o trem vai embora. (MONTELLO, 1989: 244).
Magda não lhe disse nada. Não teceu qualquer comentário, embora
Francisquinha falasse do próprio sobrinho, o Karl, filho de outra irmã já falecida, a
Lizoca. Doente mental, Karl viera da Alemanha onde residia e, como ela, também se
encontravahospedado no casarão, graças àintervençãodo Padre Mohana, como
sempre. E, também como sempre, contrariamente aos desejos do rico irmão que
não suspeitava de umplano que ela traçara, escrevendo uma carta aos parentesque
se encontravam distantes para reuni-los nesse velho casarão, em São Luís.
4 SÃO LUIS: A EXPANSÃO IMOBILIÁRIA E OS DANOS SOCIAIS
O desenvolvimento imobiliário de São Luís,na década de 1960, projetou a
mudança estrutural do planourbanístico, com o alargamentoda cidade para além da
ponte do São Francisco, determinando a sensível modificação de bairros e suas
áreas adjacentes. Surgiram bairros novos com ruas, avenidas, logradouros públicos,
conjuntos habitacionais, condomínios, casas e edifícios exibindo projetos
arquitetônicos inovadores que outra configuração imprimiram à antiga cidade,
detentora de inestimável patrimônioarquitetônico colonial, devidamente tombado
pela UNESCO.
Todaesta mudança se iniciou no governo José Sarney, após a construção
e inauguração da ponte do São Francisco, sempre mencionada desta forma pela
população local por conduzir ao bairro que recebe este nome. Sem ela, nada do que
ocorreu na área teria sido possível.
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Ilustração12: Espigões: a nova configuração de São Luís
Fonte: Upaon-Açu. São Luís/400 anos. (2012:12)
No texto, a nova configuração que a cidade de São Luís experimentou se
desvela de forma insistente no sonho manifesto de Francisquinha.Ela queria porque
queria residir em um dos novos bairros, surgidos após a inauguração da ponte do
São Francisco, desejo impossível para ela, mas permitido aos que possuíssem alto
padrão de vida e detivessem recursos consideráveis, como Venâncio, o seu irmão.
Certa ocasião, derramou o olhar à sua volta, pousou-o sobre a parede do quarto
onde viu seu velho retrato e, examinando a si mesma, concluiu:
-Sim, sou eu. Eu, Francisquinha.Eu, Naná. A mesma que aqui está, velha, acabada, vivendo de favor, no sobrado do Venâncio Sezefredo. Esta peste.Este explorador.Este avarento.E cada vez mais rico. Sem saber o que faça do dinheiro. E aqui. Neste sobrado da Praia Grande. Podendo morar numa casa moderna.No Olho d’Água, no Calhau. No Araçagy. Como Veludo como mordomo. Com carro na porta. Com várias criadas. Com telefone. E recebendo os amigos, com a boa bebida, os bons salgadinhos. E o Pergentino a publicar o retrato dos amigos. O meu, inclusive. Mesmo assim. Gorda, de papada, de bochechas caídas. (MONTELLO, 1989:185).
Como era um sonho irrealizável, Francisquinha, a Vedete, voltou no
tempo e se viu em uma carruagem do tempo de Napoleão, passeando pelos
Champs-Elysées, noArco do Triunfo, na Avenida Foch, no Bois de
Boulogne,sólugares de luxo da cidade de Paris. A lembrança era tão forte que ela
chegouaté a sentir as primeiras lufadas dos ventos frios do outono francês, sua
estação preferida, viu as folhas caindo das árvores para indicar o fim de umciclo de
vida. Como a sua própria vida que se encontrava findando. Em São Luís!
Alienada, querendo perpetuar estes instantes que vivera com mordomia e
conforto, recusava-se a ajudar nos serviços domésticos, sempre a cargo de Bilu e
Magda, embora ficasse acordada até altas horas da madrugada. Entre lamentações
e reclamações exigia ser tratada como antigamente, quando fora vedete do Moulin-
Rouge, em cujos palcos brilhara e de onde atraíra olhares cobiçosos sobre si, o que
a deleitara. Sabia que fora desejada e que seu corpo fora perfeito. E ansiava o dia
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em que reencontraria seu marido, que lhe proporcionara tudo quanto desejara,
porém, Deus não precisava apressar este encontro...
Não suportava sequer a menção de estar sob o mesmo teto que seu
irmão rico, e sem dinheiro para comprar os cigarros que consumia, sempre
adquiridos por Veludo, um voyeur, empregado eventual da casa a quem se
afeiçoarae que os trocava porvelhasfotos suas e cartazes dos shows que fizera,
única pessoa que valorizava suas recordações. Financeiramente subjugada,
dependia da casa e da comida que o irmão lhe fornecia, pois não detinha mais
nenhum vintém da herança que dilapidara dionisiacamente nos cassinos de Monte
Carlo. Mas não respeitava os valores observados pelo irmão e único dono da casa
em que se hospedava.
Na suaânsia de viver a vida com sofreguidãocomo vivera em Paris,
cercada de luxo e conforto, esparramada sobre a cama, a Vedetetambém
relembrava os momentos cerimoniosos que, junto com os irmãos e amigos, teria
desfrutado quandojovem. Nas rememorações solitárias, ela dava vida aos instantes
que São Luís viveu, quando lhe era possível, então, ouvir as músicas que
encantaram e animaram os salõesdos clubes sociais que frequentava com seus
familiares,comoo CassinoMaranhense, à época, na Rua Grande. Luar do sertão, de
Catulo da Paixão Cearense, os choros de Pixinguinha e os sambas de
Lamartineeram algumas dessas músicas.Lembranças quesurgiam pouco a pouco,
como uma névoa“[...] que ganha cor e tende a imitar a percepção[...][...] emergindo
das trevas para a luz”, conforme Bergson(2003:48) justifica.
Para ela São Luís representava o ocaso, o fim. Ela voltara ao beiral em
busca de segurança, da segurança familiar, grupal. Como os bentevis! Eles voam,
voam em revoada e pousam nos beirais onde costumam repousar ... e ver! Sempre
nos mesmos! Se alguma dúvida existisse sobre sua tristeza e revolta em retornar a
São Luís, em carta que escreveu à sua irmã Celuta, a Vedete registrou de forma
bem esclarecedora, consciente da sua decadência e de que os tempos são outros: “
[...] É verdade: mudei muito. Da água para o vinho. Ou melhor: do vinho para a
água, e água que sai da torneira, com a ferrugem do cano[...]”(MONTELLO,
1989:190).
Visualizava o início da sua decadência com a morte de Charles, seu
marido, quando as incursões no jogo a levaram à bancarrota. Ainda uma vez,desta
feita sem choro ou lamentação, rememorou sua “mudança do vinho para água”,
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lembrando dos bens que perdera em Cassinos de Monte-Carlo. Perdera muito,
conforme se entrevê no fragmento a seguir, onde se pode vislumbrar também a sua
solidãoapós a morte de seu grande amor, Charles:
Já fazia uma semana que vinha ali todas as noites, para sair quase de manhã, com a claridade do novo dia a atenuar na cidade o fulgor da iluminaçãopública. Esempre perdendo. Perdera a casa de Saint-TropezPerdera os dois cavalos de Longchamps. Perdera o apartamento da Avenida Montaigne, em Paris. Perdera parte de suas jóias.Mas ainda lhe restavam a casa de Versalhes, alugada a um diplomata panamenho, e as ações do Crédit Lyonnais, guardadas no cofre, numa das agências do seu banco, juntamente com o envelope de francos suíços. (MONTELLO, 1989: 115-116).
Tempos depois dissipara tudo e nada mais restara. Agora, acolhida no
velho casarão, “sem eira nem beira” ou seja, sem recursos e sem moradia, servida
por Bilu a quem azucrinava com sua sineta “nem sempre ouvida”, a Vedete
lembrava-se que, egoisticamente, no passado...
[...] De Paris, no apartamento imenso da Avenue Montaigne, tão grande quanto um andar inteiro do sobrado, ela, Francisquinha, podia acolher toda a família (menos o estúpido do Venâncio Sezefredo, em quem a Calu, a doida, tinha posto os chifres merecidos). Pensara nisso muitas vezes, sobretudo pelo Natal, com a cidade iluminada, sobretudo o Arco do Triunfo, a Torre Eiffel, as árvores dos Champs Élisées, da Praça da Concórdia, da Avenue Montaigne. A sua Avenida Montaigne. Mas fora adiando, adiando, adiando, com as viagens, os compromissos e não chamara ninguém. (MONTELLO, 1989:118).
São Luís também mudara e, como a Vedete, não seria possível se
precisar se fora da água para o vinho ou do vinho para a água enferrujada! Os
empresários ocuparam-se em construir centenas de conjuntos econdomínios
imobiliários e milhares de casas, muitas destas casas e condomínios com novos
projetos arquitetônicos, privilegiando o conforto de seus proprietários, cercando-os
de luxo e esplendor, mas despreocupados do comprometimento com o meio-
ambiente, com a poluição das praias e rios, estes últimos os locais onde deságuam
os esgotos urbanos de São Luís como coletadores involuntários dos fluxos de
dejetos e detritos provenientes da área expansora.
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Ilustração13: Saneamento urbano: problema na ilha
Fonte: São Luis 400 anos. (202:19)
A construção da ponte do São Francisco permitiu que a cidade se
projetasse para fora do seu perímetro colonial e a outrora pequena cidade se
expandiu e resplandeceu. Os novos ricos da cidade de São Luís - àquela época sem
comércios ou indústrias de grande porte -, classe flutuante e constituída de médios
empresários, ocupantes de funções comissionadas e cargos públicos, deprefeitos
municipais e integrada por outros políticos, agora tinha uma referência: o eldorado
urbano chamado Calhau.
Bairro com ruas largas, amplas, planas e longas avenidas com asfalto
substituíram as ruas estreitas, os pequenos e antigos becos com os seus também
antigos e ruidosos paralelepípedos. Praças arborizadas com algumas áreas até
floridas realçavam novas fachadas de empresas modernas, com nomes criativos e
letreiros luminosos onde os produtos eram expostos em vitrines reluzentes e
especialmente decoradas que convidavam ao consumo.
O contraste entre o novo e o velho se impunha, sendo a ponte do São
Francisco o marco divisório. Esta revitalização urbanística, ao contrário do que
poderia ser esperado, não concorreu para promover a ascensão social como um
todo. Antes, atraiu um grande contingente populacional, oriundo do interior do
estado e sem recursos para garantir a própria sobrevivência, que se alojou em
bolsões periféricos ao longo de toda a ilha, das pontes e dos bairros. Uma pequena
reprodução do que ocorrera na Londres do séc. XIX e na Paris de Baudelaire, como
comprovam os estudos de Walter Benjamin sobre a obra de Baudelaire (1989).
Fugindo das secas, da pobreza, do coronelismo, da miséria, na
expectativa de melhorar de vida, obtendo bons empregos e salários justos, esta
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multidão foi se aglomerando em palafitas e invasões (ANEXO1) onde inexistiam
condições mínimas de saúde, educação e saneamento básico.
Nenhuma política reestruturou estas áreas periféricas que, em pleno
século XXI, ainda abrigam graves problemas estruturais e sociais.Reestruturaram a
cidade, abrindo-a à sanha expansionista, contribuindo para o fortalecimento das
empresas imobiliárias que se ocuparam com a venda de lotes, glebas e construções
residenciais, condomínios e edifícios, estes de uso múltiplo.
A cidade se ressentia da ausência de planejamento e o jornalista Neiva
Moreira, através do Jornal do Povo, conforme se constata no artigo “Expansão
Urbana na Cidade”, publicado na edição que veiculou em 28 de janeiro de 1953, na
célebre 2ª página, já denunciava osvelhos problemas, cobrando soluções das
autoridades:
São Luís está crescendo [...][...] pior é que o crescimento é desordenado,acentuando os problemas urbanísticos atuais.Não se compreende que não tenhamos um Plano-Diretor, elaborado pela engenharia municipal, traçando o eixo de crescimento e o plano de novas ruas [...] [...]Como está não é possível continuar. (BUZAR, 1997:123).
Revelando-se visionário, Neiva Moreira anteviu algo, presente na
contemporaneidade:
[...] São Luís está com um porto em construção e esse porto criará, em torno doItaqui, uma área obrigatória de expansão urbanística [...] [...] A prefeitura não pode ficar alheia ao seu planejamento, nem ser, depois, surpreendida com um enxame de ruas e favelas[...](BUZAR, 1997:123).
A ausência dos elementos cobrados determinou o surgimento de bolsões
periféricos e invasões que hoje circundam todos os bairros de São Luís. Neles o
crime campeia, ocultando em si mesmos estimulantes de vícios, o acesso às
variadas drogas e à prostituição, produzindo em consequência os crimes hediondos,
dentre os quais a pedofilia e o estupro, produtos da modernidade no Maranhão, que
se encontram em franco crescimento, comoatestam os jornais (ANEXO2).
Atualmente urge a presença de mecanismos que fomentem, via educação, a
inserção social de tantos excluídos e a superação de déficits sociais, objetivando a
eliminação do subemprego, da sub-moradia e do sub-cidadão.
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5 A PEQUENA CIDADE E SEU ANTIGO PATRIMÔNIO
Como muitas autoridades maranhenses, inconsciente tanto em relação às
questões morais quanto às sociais que não via, desafiando a cada dia o seu irmão,
constrangendo Bilu, a irmã velha e alquebrada, a lhe prestar serviços como
doméstica, a Vedete julgava sua permanência no casarão colonial um favor que
fazia a Venâncio, em razão da fama que acumulara. Para ela, a celebridade que
gozara em Paris, trazia “nobreza” ao velho casarão, uma aura nova, sempre avessa
ao provincianismo local onde os moradores riam dos valores que ela priorizava. Um
destes momentos pode ser vislumbrado no seguinte fragmento:
Com o penico na mão, a Bilu lhe contou: - Apareceu aí um moço, dizendo que é jornalista do Diário do Maranhão, e querendo falar com você para uma entrevista. Eu disse que você, quando está no banho, não atende ninguém. Ele disse que volta mais tarde. Que é que eu digo quando ele voltar? E a Vedete, subitamente importante, alterou os seios com a palma das mãos, ergueu mais a cabeça, compôs o decote do vestido, séria, superior: - Bilu, você fez muito mal em não me chamar. Eu, mesmo na banheira, recebia esse moço. Aprenda isto: jornalista a gente recebe. Eles têm seus fricotes, mas sem eles a gente não vive, quando tem um nome, quando tem o que dizer e o que contar, como eu. Como eu – repetiu, subindo o tom da voz, como agastada. E numa ordem, como se falasse, em Paris ao motorista senegalês: - Quando ele voltar, traga-o aqui. E foi tomar outro banho para receber de tarde o jornalista. No almoço, embora fosse doida por alho, dispensou o alho, para não ficar cheirando a alho quando estivesse falando ao jornalista. E como não sabia ao certo a hora em que ele ia chegar, não fez a sua sesta, no alvoroço de se preparar para a entrevista. Antes de escolher o vestido e o sapato, sacudiu com impaciência a sineta de metal, no alto da escada, chamando a Bilu. E como esta tardasse veio mais para perto, descendo alguns degraus, e dali voltou a chamar pela outra, badalando a sineta e gritando-lhe pelo nome. Sempre impaciente, desceu outros degraus, badalou mais forte. E quando a Bilu apareceu, estremunhada, sonolenta, os olhos mais empapuçados, com uma expressão de arrelia: - Bilu de minha alma, não te esqueças de que eu tenho de receber um jornalista. Volta aqui. Me ajuda a preparar a casa. Sobe. Vem cá. E abraçou-a, e beijou-a requisitando-se em todo o seu charme, a ponto de dar palmadinhas contentes nas bochechas da mana.
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- Hoje estou te achando linda. Palavra de honra. Não é para ti agradar: Estás uma boneca. Não sei mesmo como ficaste para tia. Assim linda, me dás mais uma vez a certeza de que os homens daqui são cegos. Como é que não te viram, Bilu? Como é que te deixaram solteira? Em Paris, posso-te assegurar, estarias muito bem casada. Ou amigada. E enquanto falava, saltitante, lépida como se os anos e a velhice não lhe pesassem, arrastava móveis, puxava cortinas, ajeitava tapetes, toda ela entregue ao alvoroço e à imaginação da entrevista que ia dar. Houve um momento em que parou de arrastar o sofá, com um alvoroço ainda maior: - Será que o jornalista vai trazer fotógrafo? Na certa, vai. Não se compreende jornalista sem fotógrafo. Sem fotógrafo e sem gravador. E cheio de malícias. Pondo casca de banana para ver se a gente escorrega. E apertando as bochechas da Bilu: - Mas, mesmo assim, são uns amores. Eu, quando me fotografam ponho a mão debaixo do queixo para esconder a papada. Hoje, se o moço simpático (um jornalista sempre é simpático, Bilu), quiser me fotografar, assim velha, assim gorda, passo a cantada nele para só publicar no jornal as minhas fotos do bom tempo. Eu, no Moulin Rouge. Eu, em Longchamps, com os meus cavalos ao lado do meu Charles. Do meu saudoso Charles, para quem peço a Deus, todas as noites, que lhe dê um bom lugar. Eu, no Plaza Athenée, visitando a exposição de um brasileiro. Eu, na praia, na Côte d`Azur. Eu, com o presidente Dechanel. Eu, com a Duquesa de Windsor, minha melhor amiga. Ah, Bilu, agora sim, agora é que o Maranhão vai ver quem é esta vedete. A famosíssima Naná. A derradeira paixão do Presidente Lebrun. Aquela que o Maurice Chevalier fez tudo para ter nos braços, e não teve. Ouvindo o relógio da varanda bater pelas três horas, assustou-se: - Bilu, olha a hora, e eu aqui, ainda por me arrumar. Meteu-se no vestido longo, cor de telha, ajustado ao tom de sua pele (segundo seu amigo Dior),pintou-se bem, realçando o traço das sobrancelhas, o sombreado dos olhos, o cabelo repartido ao meio, com uma risca a lhe subir da testa para a nuca, uma flor no peito, um grande colar de bijuteria, muitas pulseiras, e partiu, por fim, para a mais difícil das batalhas: meter nos sapatos de salto alto os pés inchados. Aconteceu o que temia: os pés se recusaram a acomodar-se na estreiteza dos sapatos elegantes. Quase chorou. E foi a Magda – tão boazinha – que veio cá em cima, com os velhos sapatos, da primeira mulher do Venâncio Sezefredo, e o certo é que, por um verdadeiro milagre de São Benedito, os sapatos se afizeram aos pés da vedete, como os houvessem guardados para aquele oportunidade, para aquele momento. E a Bilu, nessa hora, arquejante, já no topo da escada: - Francisquinha, o moço esta aí. Sentada no meio do sofá, tendo às costas, na parede, um dos cartazes do Moulin Rouge, com ela a exibir os seios e a esconder o sexo na tanguinha minúscula, era uma grande flor desabrochada, assim de pé, esguia, radiosa, trazendo na cabeça uma grande pena colorida.
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E quando o jornalista se aproximou, gordo, compacto, moreno, na camisa esporte, estendeu-lhe a mão sem levantar-se: - Aqui me tem, muito contente com a sua visita. E quando soube que ele se chamava Ubiratan Teixeira, e era poeta, contista e teatrólogo, fez três ós de espanto, com este remate: - Tenho a impressão de que, em Paris, me falaram no seu nome. E mais viva, animando-se: - Sabe que se parece com o Charles? O meu Charles? O grande, o inesquecível Charles Simon, meu marido? É verdade. Parece. E muito. Assim gordinho, moreno, um pouquinho barrigudo. Até fiquei emocionada. Nem pude me levantar. E levada pelas recordações: - Que saudade. Parece que foi ontem. Passou depressa. Há dias em que penso que minha vida não passou de um sonho. Um belo sonho. E quebrando os olhos, nostálgica: - Sabe como foi que conheci o Charles? Já vai saber. O Charles é uma das chaves de minha vida. Abriu o meu futuro. Sabe como? A bordo do navio que me levou do Rio ao Havre. Daqui fui para o Rio. Do Rio para Lisboa. De Lisboa para o Havre. Ao sair do Rio, logo no primeiro dia, ou melhor, na primeira noite, conheci o Charles. No salão de festas do navio francês. Elegantíssimo. Me viu, apaixonou-se. Perdidamente. Eu, como mulher, fiquei na minha, como hoje se diz. Dei corda. Me retraí. O certo é que, de madrugada, era Charles para lá, Francisquinha para cá, na maior intimidade. Debaixo de um luar lindíssimo. Um luar de encomenda. De cartão-postal. Convidou-me a ir com ele para o camarote. Um camarote de luxo. Imenso. Fui. Bendita a hora em que me decidi. De corpo inteiro. Como quem se atira de cabeça na piscina. Nunca mais nos separamos. (MONTELLO, 1989:120-123).
Insensível quanto aos valores que transgredira de forma contínua desde a
adolescência, não era apenas Bilu e Venâncio que a viam como uma ovelha-negra
mas toda a sociedade local a sabia assim. Seu descaso em relação aos valores
tradicionais,que conspurcava, causava sua inaceitaçãofamiliar e repúdio por parte
dos moradores de São Luís.
Ela, cujo passado de fama na cidade-luz era do conhecimento popular, se
comprazia em relembrar estes momentos por onde passava e dava fartas
entrevistas aos jornalistas, ávidos por escândalos.
Se, em tempos passados fora expurgada do seio familiar, sem que os
parentes sentissem orgulho da profissão que exercera no famoso cabaré de Paris,
agora se vingava dando entrevistas escandalosas aos jornais de São Luís que
alavancavam suas edições. Os repórteres aproveitavam-se da popularidade que
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tivera, publicavam suas fotos e entrevistas, que causavam enorme impacto na
pequena cidade, o que só trazia mais desgosto a Venâncio,que não sabia o que
fazer para controlar sua irmã. Despreocupada quanto ao que poderia ser feito pelo
jornalista com suas informações, aproveitou uma nova oportunidade e forneceu mais
munição ao repórter Ubiratan Teixeira, jornalista e dramaturgo,outroramuito
conhecido em São Luís, personagem que tambémfoi extraído da realidade local e
que, com bem menos, já faria uma fogueira:
Suspirou. E ao ver que o jornalista ia escrevendo numa folha de papel pautado: - Está tomando nota? Era o que ia lhe propor. Minha vida é um romance. Um belo romance. Um lindo romance, com umerro final, um erro de palmatória: em vez de acabar em Paris, em Londres, em Roma, em Madri, vai acabar aqui, neste sobrado, de modo chinfrim, com o Venâncio Sezefredo a pensar que me faz um grande favor, dando-me abrigo, quando a verdade é que o favor quem faz sou eu, vindo para cá, com todo o meu grande nome e toda a minha imensa glória. Porque a verdade é que eu sou grande. Gloriosa. Até os pardais de Paris me conhecem. Sabem quem eu sou. E o Ubiratan, como se duvidasse: - E essa sua glória lhe caiu do céu, D. Francisquinha? E ela, com rapidez, quase agastada, corrigindo: - Não me chame de Francisquinha. Francisquinha é o nome de casa, para os íntimos. Me chame de Naná, que é meu nome artístico. E mais cordata, respondendo à pergunta: - Caiu. Caiu do céu. Perfeitamente. Sob a forma de marido. Por que o que fui, o que sou, devo ao Charles. Riquíssimo. Nascido para me fazer as vontades. Eu queria ser vedete, quando chegamos a Paris. E ele me pôs no Moulin Rouge, como dono. Eu, por meu lado, não desapontei meu marido. Nunca fui vaiada. Nunca. Pelo contrário: aplaudidíssima. Desde a minha estréia. O meu caro amigo jornalista há de me perguntar: - Mas como, D. Naná? – Já lhe vou explicar. Tardou, com a mão espalmada no ar, sorriu, olhou o jornalista pelo canto dos olhos, faceira, graciosa: - Ontem de madrugada, na minha cama, sem sono, repassando minha vida depois de me lembrar de outras vidas de que fui testemunha, cheguei a esta conclusão: a vida é uma roleta. Na roleta, uns ganham tudo, outros ganham alguma coisa, e outros mais não ganham nada. Rigorosamente nada, como se a roleta os enjeitasse. Ou que passasse a rejeitar, a repelir, a mandar embora. Simples questão de boa sorte, de pouca sorte ou de má sorte. Tudo associado ao giro da roleta. Mas sem dispensar a ajuda das circunstâncias, que também influem. No meu caso, as circunstâncias foram decisivas. De-ci-si-vas. Como? Foi aqui, nesta nossa São Luís, onde não se fala em balé, que comecei a dançar. Com quem? Com umgrande bailarino
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austríaco que tinha vindo para cá antes da guerra, perseguido como judeu, e que se fez passar aqui por massagista. Um suspiro imenso tufou-lhe o peito. E com vivacidade; - Lá embaixo, na parte térrea do sobrado, há um espaço grande, vazio. Vocês, maranhenses, deviam pôr ali uma placa: “Aqui, neste porão, a grande Naná começou a dançar.”E é verdade. Ali eu saltava, fazia ginástica, dançava. Meu corpo era uma pluma. E ondulando as mãos que o tempo maltratara: - Uma pluma ao vento. E o Ubiratan, duvidando: - E quando chegou a Paris, começou logo a dançar? - E quem é que dança, assim do pé para a mão, seu moço? Suba, suba. Ponha esforço nisso. Ponha tempo. Ponha força de vontade. E a verdade é que, na minha estréia no Moulin Rouge, a casa estava assim, sem uma mesa vazia. Salão repleto. Com muita gente de pé. E todos a me aplaudirem. Todos. Foi assim até o meu acidente. - Acidente? - Acidente – confirmou Francisquinha – Acidente de automóvel. Levei três meses no hospital. Quando saí, andava com dificuldade. Depois, endireitei o andar. Mas na hora de voltar a dançar, cadê perna? Um bom tempo, meu simpático jornalista, pode fazer de uma grande dançarina um canastrão: acabei. Meu consolo foi o Charles. Ali. Sempre do meu lado. Adivinhando meus pensamentos. Ubiratan parou de escrever, ergueu o olhar, deu ao rosto uma expressão de malícia inocente: - Sempre fiel ao Charles, Dona Naná? E ela, após um silêncio, alongando o monossílabo: - Nnnnão. Tive os meus amantes. Príncipes. Presidentes de República. Artistas. Acadêmicos. Só não tive um rei entre os meus amantes porque, uma tarde, me distraí e dei o bolo no encontro que prometi ao Farouk. Sim, o rei. O Farouk. O rei Farouk. O amigo jornalista esta duvidando? É natural. Vivendo onde vive, tem o direito de duvidar. Pois fique sabendo que o Farouk, desapontando, tomou nesse dia a maior bebedeira da vida dele. Quebrou o bar do hotel aos pontapés. Aos murros como um doido. Se ainda estivesse no Egito, tinha destruído uma pirâmide. Por minha causa, amigo. Por causa do bolo da Naná Ubiratan pediu licença para fumar, acendeu o cigarro. Antes que ele guardasse a carteira, ela tirou para si outro cigarro: - Para lhe fazer companhia. E o Ubiratan, com o fósforo aceso perto do cigarro: - E o Charles sabia desses amantes?
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- Sabia. Eu lhe contava tudo. E ele sorria, ria, dizia que Deus, depois ter feito a Francisquinha, tinha quebrado a forma. Novo suspiro longo. E cerrando os olhos, fatigada: - Até que veio a doença cruel e foi esvaziando o Charles diante de meus olhos. Implacavelmente. Foi aí que, uma noite, ele me levou ao Cassino, em Monte Carlo. Foi para a mesa da roleta comigo. Ele, numa cadeira; eu, noutra, e o croupier, defronte. E o meu Charles, acabado, chupado, de espinha vergada, ergueu a cabeça, outro homem, outra pessoa, acompanhando o giro da roleta. Como se a saúde lhe tivesse voltado. E eu, a olhar para ele, assombrada com o milagre. Tornou a suspirar. E erguendo a cabeça, como se o ar lhe faltasse: - A roleta parava, o Charles parecia que voltava a sucumbir. Puro engano. Tornava a jogar, renascia. Uma maravilha, meu amigo. Os médicos deviam estudar a fundo o poder curativo da roleta. Infelizmente, com o meu Charles, com a doença implacável, estava mesmo azarado, perdia sempre. Quase perdemos tudo. Quase. Mas, de nosso vasto império, alguma coisa restou para a viúva. Porque o Charles, doente, e perdendo na roleta, não aguentou o rojão. Apagou. No automóvel, quando voltávamos do cassino. Despachei-lhe o corpo para Paris. E em Paris, fiz-lhe um grande enterro. De encher os olhos. De causar inveja. De dar vontade de morrer para ter um enterro igual. Uma verdadeira apoteose. E como se o enterro do Charles e a má-sorte da roleta repentinamente a aborrecessem, tirando-lhe o gosto de recordar, fez um gesto de despedida, mandando o jornalista embora: - Agora, chega. Já falei o bastante para uma grande entrevista. Vá para o seu jornal escrever. Faço questão de uma página inteira. Com esta fotografia. Só esta. Bem no meio da página. E deu-lhe a fotografia dos vinte anos. Quando chegou a Paris.(MONTELLO, 1989:123-126).
No dia seguinte, da forma como previra, abriu o jornal que a “songa-
monga” daMagda lhe entregara e “toda ela resplandecera, vendo-se no alto da
página, nova e bela.” (MONTELLO,1989:128).Magda a auxiliou a encontrar os
óculos sem os quais não poderia se ver ou ler o texto, este fundamentado na
entrevista que concedera a Ubiratan Teixeira.Aí,uma nova surpresa: pois encontra e
lê nesse mesmo jornal, tambémum texto que repercute o passeio noturno de Magda,
talvez em consequência da bombástica entrevista que dera e que levara o repórter a
produzir outras associações. Surpreendendo-se, pergunta a Magda:
É mesmo verdade o que está aqui no jornal? Que tu atravessaste a ponte, na garupa de uma motocicleta, com o teu namorado, nua ?
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E ela explodiu na gargalhada, quando a Magda lhe confirmou com a cabeça. Que maravilha, Magda! E ninguém me falou! E ninguém me disse nada! Eu aqui em cima comendo mosca! [...] Não se conteve: levantou-se, curvou-se sobre a Magda, apertou-a contra o peito, beijou-a, afastou-a de si para olhá-la melhor: -Ai, meu Deus, que maravilha! Tu fizeste mesmo isso, Magda? E já faz mais de mês? Aqui em São Luís? Nua mesmo,toda pelada, com tudo de fora? Ai que beleza! [...] - Que grande dia, Magda! E eu a pensar que,nesta terra, não acontecia nada de importante! Caramba! São Luís cresceu para mim. Mudou muito.Da água para o vinho.Dá vontade de gritar, de sair, de ir para o Largo do Carmo, de correr para a porta do Hotel Central e berrar, berrar muito, como se o mundo fosse acabar. Magda, me pega, me aperta, para eu sentir mesmo que não estou sonhando, que tudo é verdade! E após um silêncio longo, segurando as mãos de Magda: - Querida, tu não podes ficar aqui. Tens de sair. Tens de conquistar o mundo como eu conquistei. Subir muito. Subir mais do que eu subi. E não cair como eu caí. Sai daqui. Vai-te embora. O mundo é dos audazes. Dos que sabem lutar. Não nasceste para te acabar nesta vidinha medíocre. Teu horóscopo é outro. Uma estrela nova faiscou quando nasceste. Comigo também foi assim. (MONTELLO, 1989: 128-129).
Alguma coisa bem similar ao que se encontra no enredo já ecoava nos
ouvidos dos maranhenses desde muito tempo, quando Neiva Moreira publicara o
artigo“Nós preferimos a obscuridade”, veiculada na edição de 11 de julho de 1950,
do Jornal do Povo, de onde foram pinçados os fragmentos transcritos a seguir, onde
ele denuncia a omissão política, o descompromisso social, a corrupção pública e as
atitudes melífluas que tanto agradam o mundo político.
A incompatibilidade do senador Vitorino com as nossas tradições é um ponto alto de sua atividade pública. Ele não perde oportunidade para rebaixar o nosso passado, desacreditar o acervo de trabalho dos nossos homens públicos, reduzir de importância as conquistas das figuras que têm liderado a nossa terra. Suas reiteradas e enfáticas declarações, no melancólico discurso, insistiram neste ponto; nunca o Maranhão foi tão falado, teve tanto prestígio, contou com um número tão considerado de seus filhos empregados no Rio. O senador VitorinoFreire confunde prestígio com notoriedade. Na verdade, nunca fomos tão falados e detratados como agora. O Sr. José Américo de Almeida descreve um panorama entristecedor do governo de Dutra, seus erros, falhas, deficiências, as negociatas, abusos e violência, e chama a isso a “era de Vitorino”. Como Vitorino, é senador pelo Maranhão, é natural que nos caiba a glória de ser ele o patrono dessa era. Os lideres políticos, a
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imprensa, o rádio, o teatro, a rua Carioca popularizaram a “copa e cozinha” e o grupo de “domésticos” que gravita em torno de Dutra. O nome do senador Vitorino vem sempre ao lado e ele mesmo proclama que “não sairemos da copa”. Ora, Vitorino é senador pelo Maranhão. Logo as honras dessa campanha de ridículo, descrédito e desprestigio que envolve a copa e os “domésticos” é, necessariamente repartida com o nosso Estado. Mas há mais. É comum aparecer na imprensa do Rio notícia como esta: “O funcionário A está fazendo tais ou quais negociatas na autarquia X, na repartição Y ou no banco Z. O autor é pupilo do senador pelo Maranhão Vitorino Freire”. E lá se vem o nome do Maranhão crescendo no prestigio da opinião pública nacional. (BUZAR, 1997:31).
Em outro artigo, igualmente veiculado no Jornal do Povo, em 01 de julho
de 1958, do mesmo Neiva Moreira, homem corajoso e intrépido, “O saldo que fica”,
se lê:
As repercussões, para nossa terra, da presença de uma comitiva como a que nos honra há vários dias, só poderão ser medidas numa dimensão maior de tempo. O Maranhão não necessita apenas, emboradisso precise muito, de obras públicas e melhores práticas políticas e administrativas. Necessita, também de conhecimento, de contatos, de debate e incorporação de idéias novas [...] [...] Todos se fizeram porta-vozes espontâneos e apaixonados dos interesses e reivindicações da nossa terra. [...] [...]Se a essas circunstâncias junta-se a vinculação pessoal e familiar, como é o caso da Condessa Pereira Carneiro, então, o interesse, para o Maranhão, amplia-se consideravelmente. Nenhum de nós nem Odylo, nem eu, nem Gullar ou Josué Montello, poderia dar à filha de Dunshee de Abranches uma idéia objetiva e real de São Luis e de seu povo e uma informação que retratasse fielmente as perspectivas do progresso e do desenvolvimento do Estado e as características próprias do meio cultural em que vivemos. No caso particular da Condessa Pereira Carneiro, essa tarefa tem sido fácil em São Luis. Não exagero falando de sua fulminante popularidade da ilha, em poucos dias, todos a estimam, desde o governo e a Oposição, as classes ricas e os setores pobres, para cada pessoa tem uma palavra cativante e revela uma preocupação humana que a todos agrada. Mas, não é só isso. Em pouco, a Condessa passou a ser uma militante do progresso de São Luis. Nas conversas que mantém com os que dirigem o Estado ou a Prefeitura reivindica e sugere, com o desembaraço de quem defende a terra e oferece contribuição adequada à solução de seus problemas. O prefeito Macieira foi sensível a uma dessas reclamações: a escultura em frente ao Palácio do Arcebispo, não funcionava, até que a Condessa reivindicasse um pouco d‟água para que os contornos magníficos da grande obra de Newton Sá ressaltassem num ambiente apropriado. É um detalhe, mas, sem dúvida, expressivo da sua participação nos problemas da cidade. (BUZAR, 1997:241-242).
Através deste artigo se evidencia a articulação política do escritor Josué
Montello, um intelectual engajado, vinculado aos problemas políticos do Maranhão
onde exerceu cargos e funções, criou diversas instituições, inclusive o Museu Sacro
e cujos problemas, no enredo da narrativa se encontram bem representados
(preconceitos, habitação, saneamento básico e patrimônio cultural) ecriticados.
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Vivenciando estes problemas, buscando solução para eles, ao lado de outras
pessoas - políticos ou não - tão dinâmicas quanto ele, encaixou-os na narrativa,
mostrando com este gesto sua solidariedade.Desvelou-a, notadamente no cuidado
com o patrimônio, que exige atenção e consciência de políticas públicas.Sobre
alguns problemas, comono caso da limpeza da escultura visualizada no artigo, Neiva
Moreiraalerta que é tão somente questão de sensibilidade, de
planejamento(ANEXO3), exigindo ação administrativa que pode demandar pouco
tempo e parcos recursos. São Luís, como no exemplo citado o demonstra,
reconhece e acolhe quem lhe trata bem, algo que deveria ser de interesse da classe
política, sempre preocupada com suaimagem.
A entrevista que a Vedete dera ao conhecido jornalista Ubiratan Teixeira
tinha sido uma bomba, repercutindo como nunca na cidadepequena e suburbana
onde inexistia a construção de uma identidade positiva para o artista, o que impedia,
além de tudo, que suas entrevistas fossem recebidas como homenagem ao seu
trabalho, razão por que o comportamento da população se traduzia em repúdio, com
atos concretos. Os artigos de Neiva Moreira, igualmente, repercutiam bastante e
comprovavam não haver para os políticos locais, também, identidade positiva.
No artigo de Neiva Moreira, “Nós preferimos a obscuridade” (BUZAR,
1997:31), delineia-se de forma clara os escândalos que envolviam o Maranhão
àquela época, o tamanho da repercussão destes escândalos, assim como a
indiferençada classe política (como aconteceu com Francisquinha, indiferente à
opinião dos leitores do jornal onde foi publicada a sua entrevista). Mesmo assim, os
jornais cumpriam e cumprem o dever, como aconteceu e acontece com o Jornal
Pequeno (representante da classe, escolhido por Montello) que busca os fatos, dá
vez e voz a quem cobra providências ou denuncia, cumprindo seu papel. A história,
como ensina Walter Benjamin(1989), se repete.
Ilustração14: Arquidiocese e altarda Igreja da Sé
Fonte: Centro Histórico de São Luis- Maranhão: Patrimônio Mundial. (1998:81) e Upaon-Açu, São Luís 400 anos. (2012:83)
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Um reflexo da amplitude da repercussão dos acontecimentos na pequena
cidade pode ser percebido na passagem anterior, extraída da obra de Montello, e
naque se segue em que todo sentimento de rejeição social se manifesta de forma
clara e espontânea, em um espaço público que deveria estar infenso a tais
demonstrações: na igreja da Sé, na Catedral Metropolitana, durante a missa das
dezoito horas,no domingo, um momento relevante na vida social e religiosa de São
Luís, onde o episódio transcorre.
Assim como os escândalos políticos, areconstrução dos escândalos que
Francisquinha já aprontara em São Luís não se eclipsavam na memória da
população.No caso da Vedete, ganhou mais evidência no casarãopela conversa que
Jeremias Borba manteve com Venâncio, após novo acontecimento envolvendo-a,
transformado em escândalo. Os comportamentos delineados no fragmento a seguir
desvelam a intolerância e o preconceito social encontrados no seio da sociedade,
parecendo que as palavras do Cristo e a tolerância que Ele disseminou não
encontraram eco naquela comunidade cristã ali reunida, como “se não falassem
mais a mesma língua”:
E o Jeremias Borba, com a novidade a lhe encher a boca: - Você fez falta na missa de hoje. Muita gente. Sobretudo senhoras. Dom Mota rezou a missa, Padre Mohana disse a prédica. E à moda dele, com muito jeito, com muita carapuça, sem ofender nem magoar ninguém. Parecia que a missa ia ser a missa de todos os domingos, na Sé, às dez horas. A mesma exibição de vestidos. Alguns pilantras em mangas de camisa. Na porta, os mendigos de sempre. Nisto, já depois da leitura do Evangelho, um rumor entre os fiéis. Até Dom Mota desviou o olhar para o começo da nave, enquanto marcava o missal, e eis que nos aparece, imagine quem? Vestida daquele jeito. Pintada daquele modo. O Venâncio Sezefredo atalhou: - A Francisquinha? E o Jeremias Borda, espantado: - Já soube? -Dom Mota me falou. E o Jeremias, reagindo: - Mas falou com muitos panos quentes, ao jeito de Dom Mota. Compadecido da pobre senhora. Decidido a ajudá-la, se fosse preciso. Atencioso. Amável. Transformando os defeitos em qualidades. Acertei? Logo vi. Coisas de Dom Mota. Nasceu assim, vai morrer assim. Mas a coisa foi diferente. E muito.
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Venâncio Sezefredo trouxe ao rosto uma expressão de sofrimento: - Foi o que pensei primeiro, quando ele me falou da Francisquinha, na igreja, sentada no meu lugar, defronte do altar. Dom Mota dourou a pílula. Quer dizer que houve escândalo? Jeremias Borda pensou um momento. E ajudando com as mãos as palavras veementes: - Pensando bem, sim. Perfeitamente. E ao ver que o Venâncio Sezefredo se movia na cadeira, desencostando-se do espaldar de couro que o suor de corpo havia molhado: - Houve mesmo quem pensasse em tirá-la dali à força. A senhora do Governador Neiva conseguiu conter o Zairi Pereira e o Professor Vicente Rego, que já iam lhe pedir que saísse. Ou saía por bem, ou saía por mal. Ali é que não podia ficar, com aquele ar de doida, aquele vestido longo, aquele decote, aquele rosto pintado, fazendo rir os meninos, que logo se puseram a cochichar, uns com os outros, com a zombaria e o deboche dos nossos meninos. Os adultos, por seu lado, também sorriam, riam e cochichavam. Eu, com cara de riso, recomendava calma aos mais exaltados. Do altar, Padre Mohana, sentindo a confusão, tratava de recomendar calma, baixando as mãos espalmadas, como quem rege uma orquestra sem a batuta, na hora em que a música tem de baixar. Foi preciso que Dom Mota , quando partia a hóstia por cima do cálice , usasse de energia , ordenando silêncio e respeito , em tom firme, de cara trombuda : ̶ Estamos na Casa de Deus ̶ lembrou , quase arreliado, e o silêncio se restabeleceu, enquanto a Francisquinha movia a cabeça para os fiéis, olhando em seu redor, e acenando. Desencostado da cadeira, Venâncio Sezefredo havia trazido o corpo para a frente, com os pés firmados no tapete, prestes a levantar-se. E o Jeremias, com ar de riso: - Na hora do Padre-Nosso, a Francisquinha, em vez de dizer a oração como todo mundo, disse cantando, e modulando a voz, como no teatro lírico. Contente. Feliz. Padre Mohana achou graça. Mas o mais engraçado veio depois, na hora dos cumprimentos. Você não vai acreditar, Venâncio Sezefredo: a Francisquinha saiu pela nave cumprimentando todo mundo, até as crianças. O riso foi geral. Dom Mota, que quase não ri, riu também, e foi ele, em pessoa, que pegou a Francisquinha pelo braço, polidamente, educadamente, para que ela voltasse ao banco, e ela voltou depois de apertar a mão de Dom Mota. Com a mão diante da boca, para esconder a falha da dentadura, Jeremias Borda já estava de olhos molhados, no esforço para conter o riso; mas este, copioso, como que lhe escorregava da cara, dos olhos miúdos, dos cabelos despenteados, e ele ria, ria sempre, defronte do Venâncio Sezefredo mais sério, mais trombudo, e que se tinha levantado. - Na hora da comunhão, outra cena. Quando as duas filas iam se formando, ela deu uma carreirinha, jogou para trás a Dona Aninha Falcão , de xale preto na cabeça : ̶ Primeiro, eu, que vim de mais longe . Com licença . ̶ E disse por mímica que ia também comungar: bateu no peito, mostrou o Cristo, mostrou a hóstia que Dom Mota tinha acabado de erguer na ponta dos dedos, fez o gesto de que ai comê-la, e adiantou o rosto, de boca aberta. Dom Mota deu-lhe a comunhão, mandou que ela voltasse ao seu lugar. Antes de voltar, ela fez uma vênia demorada, curvando muito a
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cabeça, com a mão para a frente, como a artista quando agradece as palmas da platéia no meio do palco, e regressou ao seu lugar, de mão no peito, pálpebras descidas, tudo teatral. Quem havia comungado não era a Francisquinha, filha do Dr. Chico Bento, era a Naná, artista do Moulin Rouge. O rosto lívido do Venâncio Sezefredo estava agora crispado, tenso, os olhos parados, com ira a lhe subir do peito para o rosto. E o Jeremias Borda, enxugando os olhos, no mesmo tom divertido: - No fim da missa, quase que acontecia o pior. A Francisquinha veio saindo da igreja, toda faceira, toda prosa, andando devagar pelo meio da nave, como se estivesse na passarela. Acenava para os dois lados, como num desfile, risonha, vaidosa, requebrando-se toda, e o povo, em vez de sair para o adro, como sempre acontece, enquanto o sino toca pelo fim da missa, vinha era chegando. Lá fora, gente; aqui dentro, gente. Todos querendo ver a Francisquinha. Ver e pegar. Sentir a Francisquinha. Padre Mohana, nessa hora, teve uma idéia salvadora: fez a Francisquinha voltar depressa, trancou-a na sacristia, onde ainda estava Dom Mota. Ela, assustada, beijou o anel do arcebispo, disse que estava nervosa, queria tomar um táxi. Dom Mota saiu pelo fundo da igreja e foi leva-la até o carro do Celestino, defronte do Hotel Central. E sério, sem reparar na fisionomia devastada do Venâncio Sezefredo, agora vermelho, de punhos contraídos: - De tudo isso eu fui testemunha. Vi com meus olhos, ouvi com os meus ouvidos. E há mais, Venâncio Sezefredo. Muito mais. Eu soube de tudo pelo Celestino motorista, que é meu vizinho. Venho da casa dele. Contou-me todo o passeio da Francisquinha pelas praias, até São José de Ribamar, no carro de capota arriada. E ante o semblante carrancudo do Venâncio Sezefredo: - Você, como irmão mais velho, tem de saber o que se passou. Posso contar? Então ouça lá. A Francisquinha, depois de tomar o carro do Celestino, ainda nervosa, mudou logo: não queria ir mais para o sobrado, queria dar uma volta pela cidade, e mais: queria conhecer a nova São Luís, de que já lhe tinha falado, ainda em Paris, contando maravilhas. Mas não em carro fechado. Abriu a bolsa, tirou de dentro uma cédula novinha, estalando, e disse ao Celestino: - Meu simpático amigo, o dinheiro consegue tudo. Ontem, dentro de um livro, achei esta cédula. Cem dólares. Já pensou? Eu, com ela, em Paris, arriscava no jogo, e ganhava uma fortuna. Para dar depois um banquete no Maxim‟s. Aqui tenho de ser mais modesta. Nada de excessos. Noblesse oblige. Mas, com 100 dólares, podemos conseguir um carro aberto, daqueles em que, no meu tempo, se fazia o corso no carnaval. Quero dar uma volta na cidade em carro aberto. Depois, vamos ao Araçagy, de que me falaram com entusiasmo; eu, como vedete do Moulin Rouge, e o meu simpático amigo, como meu motorista, almoçaremos uma peixada maranhense no Ricardão. Tudo por minha conta. Iremos pelas praias, daremos uma volta longa, voltaremos à Praia Grande, e ali eu fico, rindo, cantando, muito feliz, para voltar a suspirar, saudosa, debaixo das telhas do senhor meu irmão.
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O Celestino providenciou o carro numa velha garagem da Rua do Passeio, a dois passos do cemitério, e nele instalou a Francisquinha, sentada no meio do banco, como num trono. Andando devagar, para todo mundo ver. Rua do Passeio, Rua dos Remédios, Praça Gonçalves Dias, Rua das Hortas, Rua do Sol, Largo do Carmo, Avenida Beira-Mar, e o povo nas janelas respondendo aos acenos da Francisquinha. Houve mesmo quem atirasse serpentinas, como no corso, e esguichasse lança-perfumes, como no bom tempo. Palmas. E o grito que de repente pegou: - Vedete! Vedete! E ela, feliz, rindo alto, atirando beijos, acenando, querendo ficar de pé, e caindo, caindo e levantando, desequilibrando no carro em movimento, como no júbilo de uma apoteose. No Ricardão, quando entrou, foi reconhecida: bateram-lhe palmas, muita gente se levantou, e ela teve de autografar guardanapos e folhas de papel com seu nome artístico, Naná, todo em maiúsculas, e um traço horizontal por baixo. À mesa, numa das alas do restaurante escancarado, confidenciou ao Celestino, que arrastara pressurosamente a cadeira para que ela sentasse: - É sempre assim, no mundo inteiro. Depois da peixada farta que o Ricardão lhe ofereceu como cortesia da casa, e por entre novos autógrafos, ela voltou ao carro, pesada, repleta, quase cedendo a um começo de sonolência, na longa estrada batida de sol. Em breve, vencendo os estirões infinitos, o vento a despertou, alvoraçando-lhe os cabelos, fustigando-lhe as orelhas, batendo-lhe no rosto, tufando-lhe a barra do vestido, e a Francisquinha se pôs a cantar, já sem pó-de-arroz nem pintura, nos sacolejos e na animação da viagem. Já na cidade, no meio da Avenida Beira-Mar, sugeriu-lhe o Celestino, também sonolento, de pálpebras pesadas, sentindo o efeito das últimas cervejas: - Agora, vai a senhora para a sua casa, e eu, para a minha. Por hoje, basta de passeio. E o Jeremias Borba para o Venâncio Sezefredo, que ainda o escutava com um grande ar abobalhado: - E tudo por obra e graça da entrevista. E o Verlâncio Sezefredo: - Que entrevista? - Você ainda não leu a entrevista que ela deu ao Ubiratan Teixeira, longa, com todos os seus escândalos, e que saiu hoje em toda uma página, com seu retrato, no Estado do Maranhão? E exibindo a página no jornal escancarado: - Leia, Venâncio Sezefredo. A nossa Francisquinha é apresentada aí como a maior vedete do Moulin Rouge, em todos os tempos.
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Venâncio Sezefredo, em silêncio, de boca entreaberta, correu os olhos pelo texto impresso, tonto, revoltado, com vontade de chorar. E devolvendo o jornal ao amigo, que lhe sentia a revolta e o nojo: - Eu vou ter de pôr a Francisquinha no hospício. Contra a minha vontade. Mas ponho. Não tenho outra saída. (MONTELLO, 1989: 150-153).
Apropriando-se das representações constantes nestes fragmentos, Josué
Montello desmascara as instituições sociais locais, denuncia a insensibilidade e os
preconceitos, dentre os quais aqueles que atingem a mulher, bempersistentes.
Entretanto, o autor faz as revelações ao público leitor, mais uma vez sem tomar
parte em discussões, desinteressando-se de discutir preconceitos sociais ou
questões relevantesaos movimentos feministas (prostituição, perda da virgindade,
adultério, agressão à mulher, uso da pílula, etc.), questões em moda à época do
lançamento do livro de Montello, que os registra no enredo. Reitera-se a crença em
que ele empresta sua pena à voz dos sujeitos de quem recolhe seus universos
ideológicos, papel do poeta.
Da mesma forma age em outro fragmento curioso danarrativa,
quandoMagda leva a Vedete para dar um passeio pela Praia Grande, em um
momento de descanso. Revelando a empreendedora que virá a ser, Magdavisualiza
reais potencialidades na utilização sócio-cultural desta área, espaço relevante no
tombamento de São Luís como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, opinião
já abraçada por outros intelectuais maranhenses. Magda exclama:
- Olhe daqui. Que maravilha! Aqui, sim, é que devia ser o campus da Universidade, com as escolas, as residências de estudantes e professores, o teatro, o cinema, o clube de regatas, as praças de esportes.Nãoquiseram?Queroeu. (MONTELLO, 1989:203).
Entretanto, o autor também coloca na boca da revoltada Francisquinha
uma fala polifônica que reflete a opinião de muitos outros moradoresde São Luís,
apanhados de surpresa com o tombamento da cidade como “Patrimônio Histórico da
Humanidade”, fato que agregou aos donos dos imóveis da área circunscrita
responsabilidades financeiras adicionais com a conservação permanente
docasariotombado, sem comunicados ou consultas prévias. Isto se reflete no
discurso irônico da irreverente Francisquinha:
-Vou ser franca contigo, Magda. Se eu soubesse que a Praia Grande era isso que eu vi nesta tarde de domingo, não tinha saído de casa.Não, não
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tinha.Sair para quê? Para ver paredes pichadas, rótulas partidas, casas destruídas, sobrados entregues ao mato e às ratazanas? Ruas esburacadas? Ralos entupidos? Os pés de mamona e as trepadeiras crescendo nos telhados? Lixo nas calçadas? (MONTELLO, 1989: 204).
Tanto a visão de Magda quanto o pensamento de Francisquinha são
enunciados incorporados à narrativa, de discursos proferidos por intelectuais e
moradores, reflexos polifônicos tanto “dessas linguagens sociais com sua lógica
interna” quanto “representação dos sujeitos falantes e de seus universos
ideológicos” a que Bakhtin (1993:162) faz referência quando analisa o
romance.Ratificando a polifonia,Halbwachs (1990:47), inclusive, alerta:
Quantas vezes reprimimos então, com uma convicção que parece toda pessoal, reflexões tomadas de um jornal, de um livro ou de uma conversa.Elas correspondem tão bem a nossa maneira de ver que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos nós. Já tínhamos pensado nisso: nós não percebemos que não somos senão um eco.
Com o título de Patrimônio Histórico da Humanidade concedido pela
UNESCO à cidade de São Luís, a conservação patrimonial dos imóveis, logradouros
e monumentos públicos da áreatombada significou a manutenção e a conservação
rigorosa de formas e materiais, nem sempre uma responsabilidade fácil de
administrar, inclusive economicamente, ainda que o Governo do Estado do
Maranhão disponha de um plano de ação em que há uma espécie de ajuda solidária
aos proprietários de imóveis desta área tombada, em troca da adesão destes ao
projeto governamental.
De qualquer forma, como o tombamento não foi acompanhado de forte
esquema de conscientização social nem de um programa amplo e contínuo de
valorização da área, sequer de treinamento e capacitação da rede escolar,
frequentemente a imprensa e o IPHAN (órgão fiscalizador) apontam desvios de
conduta e descuido social. Jornalistas, escritores, educadores, moradores e turistas
apontam o desleixo com o patrimônio histórico (ANEXOS4 a 12),como se viu no
caso em que foi protagonista a Condessa Pereira Carneiro, citado no artigo de Neiva
Moreira, anteriormente mencionado.
Seguramente se trata daobservação polifônica e crítica de um autor que,
em vida, foi diplomata,intelectual e homempúblico viajado e acostumado com o
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desvelo com que o patrimônio histórico doutras plagas é tratado pelos órgãos
encarregados de sua segurança e conservação, assim como pela população do
local.
Ilustração15: Casarões sem conservação adequada na Praia Grande
Fonte: Fotos da autora
Constata-se que o escritor, enquanto criador, como se parodiasse alerta
de Halbwachs, empresta sua voz ao leitor para que este, relembrando fatos comuns
que circulam na cidade como textos de domínio público, pareça ter convicções e
sentimentos idênticos que estariam despertos em si como reagentes aos fatos sobre
os quais ouvira.
Halbwachs (1990: 47) afirma que:
[...] a complexidade de nossos sentimentos e de nossas preferências não são mais que a expressão dos acasos que nos colocaram em relação com grupos diversos ou opostos, e que a parte que representamos em cada modo de ver está determinadapelaintensidade desigual das influências que estes tem, separadamente, exercido sobre nós. (HALBWACHS, 1990:47).
No mesmo texto, mais adiante, Halbwachs (1990:47) acrescenta que“de
qualquer maneira, na medida em que cedemos sem resistência a uma sugestão de
fora, acreditamos pensar e sentir livremente.”
Tais ironias, sutis, não passam despercebidas. E levam a que se redobre
cuidados na análise, leitura e releitura das linhas da narrativa onde há um número
significativo de citações de pessoas que efetivamente integraram e, algumas, ainda
integram a vida social e cultural de São Luís. Josué Montello, em tais ocasiões,
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manteve o vínculo de cada uma delas às suas reais ocupações: diversos músicos
citados estão relacionados à música, pesquisadores, à pesquisa, os sacerdotes, às
suas ocupações peculiares, repórteres e jornalistas, ao jornalismoeos logradouros e
espaços urbanísticos mencionados existem. Muitos dos nomes mencionados que
integram a narrativa em análise são nomes conhecidos que integraram ou integram
oOlimpocultural,social e religioso de São Luís.
Sem que se queira, insinua-se um questionamento, uma suspeita. Apesar
de poder relegar o real, Josué Montello não o fez, não o negligenciou. Com que
finalidade o fez? Como diz Afrânio Coutinho (1968:18), há uma forma, há um
princípio unificador que “determina a ordem e a conexão das partes num todo
coerente e singular.” O aristotélico sistema de sinais que Afrânio Coutinho (1968)
menciona serve a um propósito. E é preciso descobri-lo.
6 VENÂNCIO, UM PATRIARCA NO MEIO DA DECADÊNCIA
Parece estranho que no decurso da narrativa pertinências aconteçam e
ocorram distorções apenas no tocante às ações de VenâncioSezefredo. Este é
retratado comohomem de Igreja que assiste missa religiosamente,
umgenerosocontribuinte das obras que a Igreja promove, um homem que
sempreacolhe de forma irrestrita as opiniões do Padre Mohana e do arcebispo Dom
Mota, a quem são levadas incontinenti as delicadas questões de família que
acontecem no casarão e a quem Venâncio Sezefredo obedece em silêncio, de
cabeça baixa, ainda que sempre as orientaçõesemitidas por estes religiosos se
choquemcom as falas e atos praticados por Venâncio. Eles são a família que
Venâncio não tem mais. São eles que o pacificam, controlam seus ímpetos e o
forçam a reler as emoções sempre em desequilíbrio.
Homem de igreja, vive cercado pelos seus nomes mais significativos, aos
quaisa família – principalmenteele mesmo e a irmã Bilu - acolhem em seu
respeitável sobrado com atenção e cortesia só dispensáveis aos amigos de longas
datas que já passaram nos testes que a vida oferece, sendo reconhecidose
recebidos como amigos. Bilu, por exemplo, sabe o ponto certo do frango que Dom
Mota aprecia e também que, após a refeição, lhe apraz saborear a sobremesa,
deleitando-se com o café quente com que encerra sempre a refeição.
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O próprio Dom Mota, Arcebispo Metropolitano de São Luís,
denominaVenâncio de “ovelha do seu rebanho” e éele a única pessoa que se atreve
e quem lhe tira das mãos o chicote com que violento vergasta as mulheres que
encontrou no caminho, após verexposta na primeira página do Jornal Pequeno,a
foto de Magda.Sob a chincalhada malta que o persegue durante o trajeto, emterrível
descontroleerevoltado, procura vingar-se nas mulheres que encontrou em sua via
crucis pelo despudor da netaMagda, a sua Magda, criada desde pequena por
ele,Venâncio Sezefedo. Despudorque, para Bilu, seacentua quando ela lembraque
Magda fora Verônica na última procissão de São Benedito.
Esta via crucis começou ao amanhecer, quando cumpria o hábito de ler
os jornais e se deparou com a matéria, na primeira página do Jornal Pequeno.
Incrédulo, olhava sem crer no que seus olhos desvelavam. Com o Jornal Pequeno e
a prova do crime nas mãos, convoca a neta Magda que o surpreende com a
resposta, após lhe perguntar:
-E esta mocinha, aqui, no Jornal Pequeno, é mesmo você? - Sim, sou eu. E o velho, levantando-se,já com a mão à procura do chicote que pendia da parede, perto do corredor: -Tu? Minha neta? Pelada? Atravessando a ponte? E tenscoragem de confessar que és tu? Tu? A neta de Venâncio Sezefredo? (MONTELLO, 1989:33).
Posteriormente, flagrado por Dom Mota, que fora incontinenti alertado
pela neta transgressora, com o chicote em riste, agredindo as mulheres que ia
encontrando em seu percurso, sem distinção de classe social, em sua fúria
descontrolada, este o desarma do instrumentode açoite e o conduz à sua sala no
Palácio Episcopal onde o faz sentar, oferece-lhe um café quente e tenta suavizar-lhe
as mágoas e ressentimentos, entre crises de choro e constatações doloridas. De
forma suave, mas firme, voz enérgica e semblante suave, lhe diz: “-Suba,suba -
ordenou-lhe. O senhor precisa de meus conselhos, assim como eu preciso dos
seus.Temos muito que conversar.”(MONTELLO, 1989:39). Ante a hesitação de
Venâncio, a energia da voz o incentivou a acolher o convite: “Se o senhor não subir
por bem, eu o ponho no ombro e o levo. Escolha. Aqui é que não ficamos.”
(MONTELLO, 1989:39).
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Apesar dos laços de amizade profunda que os uniam, Venâncioressentia-
se dos trajes em que se encontrava – estava de chinelos e em mangas de camisa -,
razão por que relutava em adentrar assimno Palácio Episcopal, o que nunca
acontecera antes. Após narrar um episódio sobre o uso da batina, referindo-se a ela
alegoricamente como“a pele que a Igreja nos dá, quando nos ordena” e
confidenciar-lhe que, devido ao calor local, os padres deveriam andar da forma
como Venâncio se encontrava, o Arcebispo venceu sua relutância e o acolheu
delicadamente:
Só assim eu tinha o meu bom amigo Venâncio Sezefredo no meu palácio de pobre, a esta hora da manhã.E o melhor é que faz dois dias que penso no senhor. Éverdade:penso no senhor.Querendo lhe falar.A propósito das obras de nossa catedral. Olhou de relance a rua, o largo em frente, a Praça Benedito Leite, a calçada do Hotel Central, inteirando-se de que já se havia dispersado a malta que acompanhara o Venâncio Sezefredo. E de costas para a claridade da Avenida Maranhense, em cujas árvores espalhadas se esgoelavam os bentevis. -A Sé, como sabe o meu bom amigo, é tombada pelo Patrimônio Histórico, no Rio de Janeiro. Nenhuma obra se pode fazer ali sem ouvir o Patrimônio.Ora, eu quero fazer uma coisa, na reforma da catedral, e o Patrimônio diz que não.Que eu não posso alterar nada no prédio tombado.Eu teimo, por um lado, e o Patrimônio também teima, pelo outro.Até agora, não chegamos a um acordo. E, acercando-se da porta do gabinete: -O meu bom amigo Venâncio Sezefredo, acostumado a lidar com o Patrimônio Histórico, por força das obras de seus sobrados da Praia Grande, toda ela tombada, pode me fazer o obséquio de olhar comigo as obras da Sé, para me ajudar a sair do impasse? Veja o que eu posso fazer e o que eu não posso fazer. Quero me louvar na sua palavra. [...] O palácio também é seu, meu bom amigo.Se é que podemos chamar de palácio esta casa velha. (MONTELLO, 1989:41).
Nestes fragmentosdo romance montellianoencontra-se, mais uma vez, a
revelação de um problema que atinge não apenas a Arquidiocese de São Luís,
cujoprocesso de tombamento ocorreu através de órgão localizado no Rio de Janeiro,
mas os moradores de São Luís, que foram apanhados pelo tombamento de uma
extensa área da cidade, sem quaisquer consultas prévias, o que acarretou aos
proprietários dos imóveis da área tombada responsabilidades adicionais com a
manutenção destes, contrariando muitos dos seus donos, despreocupados com a
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conservação exigidae mais interessadosna busca de soluções funcionais que gerem
recursos financeiros na guerra pela sobrevivência.
Ilustração16: Casarão virou estacionamento no Centro Histórico
Fonte: Foto da autora
O jornalista Neiva Moreira (BUZAR, 1997: 54-57) escreveuo artigo “A
incorrigível Praia Grande”, publicado no Jornal do Povo, em 28 de janeiro de 1951.
À época, já alertava para o desinteresse dos ricos proprietários de imóveis do local
que não investiam na conservação dos seus bens, preferindo alugá-los para
exploração comercial, o que contribuiu para o esvaziamento da área, sem falar na
transferência do porto que ali existira e que estimulou o espírito de acomodação,
sem renovações que oferecessem outras opções de ganho (ANEXO 13).
É interessante frisar que a política de orientação do Centro Histórico
prevê o uso residencial nas áreas do Centro Histórico (ANDRÈS, 1998:68). Phellipe
Andrés, referindo-se à questão habitacional de São Luis, afirma:
O déficit atual alcança cerca de 200.000 pessoas, que se encontram residindo nas áreas periféricas, em condições desumanas. Todavia, existe no Centro histórico uma rara oportunidade de conjugar as soluções necessárias para preservar o rico acervo de arquitetura urbana e ao mesmo tempo minorar o agudo problema habitacional para um razoável contingente de trabalhadores, que necessitam morar perto do seu local de trabalho. (ANDRÈS, 1998:72).
A continuidade das denúncias por parte do IPHAN e pela imprensa até o
século presente revela a existência de um problema que se agrava com as
constantes violações ao previsto que confronta com o pretendido. Assim,não é
incomum a denúncia, por parte da imprensa escrita e televisiva, do uso desses
imóveis tombados, que são destruídos interiormente para funcionarem até como
estacionamentos de carros, conforme se constata em um passeio rápido na área.
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Por outro lado, constata-se que há morosidade nas obras para
conservação e adaptação destes bens, quandopromovidas pelo próprio Governo
Estadual, mesmo quando as instalações estão previstas para acolher órgãos
vinculados ao Estado, como no caso da Universidade Estadual do Maranhão que
recebeu um prédio antigo, na área da Praia Grande, para instalar seu Curso de
História. A reforma arrastou-se por muito mais tempo do que fora previsto
inicialmente, suscitando, inclusive, manifestações de protesto dos alunos da
instituição (ANEXO 14). Percebe-se que, de forma insensível, são exercidas
cobranças sobre indivíduos que o próprio Estado julga um pesado ônus.
Em Figuras, Fatos e Figurões (1997), obra da autoria do próprio Josué
Montello, estão reunidos ensaios em que o autor examina textos de escritores
nacionais e internacionais e revela que a “correspondência elucida o romance”,
referindo-se a La recherche du temps perdu. Aponta ali, também, a murmuração em
torno das cartas escritas por Voltaire, refletidas em artigos publicados no Journal
Renard, justificando-as como estratégias que poderiam auxiliar o poeta na escritura
de sua obra, algo similar ao que adotou em Um beiral para os bentevis.
Outra estratégia inovadora que expõe e defende, refere-se à valorização
do patrimônio colonial maranhense e sua incorporação ao texto literário, como
menciona no ensaio “Entre o céu e a terra“ (1997:32-46), inclusive exemplificando
como a utilizou:
[...]Já em 1862, Gentil Homem dera um pano de amostra de sua vivacidade polêmica, no livro em que tomou como tema a administração local do Major M.F. de Souza Aguiar, Um presidente e sua aventura. [...] E há mais: no Parnaso Maranhense, de 1861, lá está ele, assim como está no Clarim Liberal, no Recife, e no Publicador Maranhense, em São Luís. [...] Junte-se ainda a participação de Gentil homem num romance coletivo que se publicou em São Luís, em 1866, A casca da caneleira. Toda essa obra teriasaído,em grande parte da torre sobranceira que domina São Luís, no palaceteda Rua Grande e faz esquina com a Rua do Passeio , e que incorporei á minha Universidade pensando em fazer dali, com a informatização respectiva, o Banco de dados sobre o Maranhão, com vistas às pesquisas de estudantes e professores. O prédio, por estar tombado, era-me oferecido por bom preço: urgia adquiri-lo e foi o que fiz. Mas a casa de Gentil Homem de Almeida Braga já estava em meu caminho há muito mais tempo. Datava isto de 1950, quando escrevi o Labirinto de Espelhos, romance que José Olympio publicaria dois anos depois. Aparece esta casa no cap. VII do romance, no trecho que assimcomeça: “Floreando a bengala, Proença ia pela calçada da Rua Grande, quase
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àesquina da Rua do Passeio, a resvalar o olhar pela frontaria de azulejos do imenso casarão de janelas em ogiva. [... ] (MONTELLO, 1997:34-35).
Em outro fragmento do mesmo texto, delineia o porquê dessa apropriação
literária, bem como ratifica a fala que colocou na boca de Magda, valorizando o
casario colonial, em Os beirais para os bentevis, conforme se constata:
Nesta minha obstinação de ser útil à minha terra, cheguei a pensar em fazer da Praia Grande, em São Luís, o campus da Universidade, levando em conta a magnífica localização de seu conjunto arquitetônico, quase todo de imponentes sobradões de azulejos.
Por este tempo, com a transferência do porto de São Luís para o Itaqui, a vasta área se acha praticamente deserta, já com alguns sobrados a ruírem, Outros, desfigurados, ostentavam talos de mamona por cima do beiral de seus mirantes. (MONTELLO,1997:34 e 35).
Depois que o arcebispo Dom Mota, avisado incontinenti pela neta Magda,
localiza Venâncio Sezefredo e toma-lhe o chicote de suas mãos, não se encerra
com este seu gesto a pequena via crucis da condenação social. Muitos se
regozijaram com sua humilhação pública eis que, censor de condutas consideradas
inadequadas, Venâncio Sezefredohavia coligido um bom número de inimigos. Sua
intolerância com as falhas alheias, sobretudo dos familiares, e a censura aos valores
que conflitavam com os dogmas da Igreja Católica contribuíram para a situação.
Durante sua acolhida forçada no Palácio Episcopal, contrafeito com a
evolução social e, sobretudo com a liberdade que as mulheres vinham desfrutando,
revelou-se um arguto observador das moralidades, acompanhando como um
observador privilegiado, a evoluçãoedecadência que atingia a sociedade, até
esbarrando na própria Igreja. Entre lágrimas, relata ao Arcebispo:
Dom Mota formalizou-se, olhando um pouco de lado o Venâncio Sezefredo, que lhe restituíra a xícara repleta: -Não gostou do café, amigo? E o velho cabisbaixo, como se não ousasse erguer o olhar: -Não pude Dom Mota. Tentei tomar, não me passou na garganta.Mas o café é ótimo, deu para sentir. E, por fim, levantando os olhos molhados. -Já sabe o que se passou com a minha neta? -Já. E já mandei dizer ao diretordo jornal que fiquei revoltado.Que não admito que se faça o que ele fez.E já dei ordem: tão cedonão me entra aqui
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o Jornal Pequeno.E mais: que não me apareça aqui enquanto não reparar o mal que fez. E era tão firme a voz do arcebispo, tão veemente, tão convicta, que o Venâncio Sezefredo ficou um momento parado, a olhar para Dom Mota. Depois reagindo: -Mas reparar como, Dom Mota, se o mal já está feito? Se a minha neta está na rua da amargura? Se o nome da família está enxovalhado? Não basta o que fez a Francisquinha? E olhe que a Francisquinha, quando quis se perder como vedete de cabaré, foi para foradaqui e mudou de nome. E para voltar como voltou: velha, caduca, desfigurada, horrenda, e ainda pensando que é bonita. Um horror, Dom Mota. E patético, como se fosse se levantar, segurando com firmeza os braços da cadeira: -Agora, a Magda. Nua, na rua, Dom Mota, e com testemunhas, e com fotografia no jornal.Estou arrasado.Não sei o que faço de mim. Perdi a cabeça. Minha vontade era bater em todas as mulheres de São Luís. Todas. Só escapando a Bilu, que não sai de casa.O resto é o que o senhor está vendo.Mesmo na igreja. (MONTELLO. 1989:43 - 46).
Demonstrando que não era apenas Bilu quem sabia o que acontecia
socialmente, entrevendo o movimento popular das janelas do sobrado e sobre estes
extraindo conclusões, nem que oúnico voyeur que o casarão abrigava era o humilde
Veludo, mencionou, desvelando-se:
Levantou-se, sorveu o ar da rua, como o náufrago que vem à tona das águas, bracejando, num esforço supremo: - Domingo passado, na missa da Sé, com o PadreMohana no altar, sentou ao meu lado a senhora de um colega meu da Praia Grande. Sabe como vinha vestida? Como uma rameira, do tempo da pensão do Chicó. Sim, senhor. Cruzou as pernas, com as barras do vestido aberta, mostrando as coxas.Sim senhor: exibindo-se. Estamos em Sodoma, Dom Mota. Em Sodoma. Patético, erguia as mãos convulsas à altura da cabeça, os olhos crescidos, no impulso da cólera: - E balançando os peitos, Dom Mota. Posso lhe garantir que estava ali, na Sé, do meu lado, sem sutiã. Como é que sei? Pelo cavaco do vestido e pelo decote. E essa senhora (ou que outro nome tenha), na hora da comunhão, comungou. Como é possível isso, Dom Mota? Minha vontade, quando passo nas bancas de jornal do Largo do Carmo, da Praça Benedito Leite ou da Praça do Panteon, é tirar dali as revistas indecentes que o Rio e São Paulo nos mandam todas as semanas. Conversei sobre isso com Padre Mohana. Também está horrorizado. E quando que eu pensava que a minha neta – criada com o rigor e o cuidado que o senhor conhece – estava imune à devassidão generalizada, que é que acontece? O que nunca aconteceu aqui, nem no Rio, nem em São Paulo, nem na Bahia, nem na terra onde a Francisquinha foi ser artista: a Magda nua, atravessando a ponte, e com fotografia na primeira página do Jornal Pequeno. Que é que eu vou fazer agora comigo, Dom Mota? E com ela?
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A revolta imobilizou, como num flagrante fotográfico, com as mãos espalmadas, de dedos abertos, os braços levantados, os olhos crescidos, os lábios entrecerrados. (MONTELLO. 1989:43 a 46).
Os fragmentos que virão a seguir escancaram efeitos da modernidade
maranhense que desvela, entre eles a prostituição que surgiu e se ampliou,
incentivada por material pornográfico que é encontrado com fartura e diversidade
estonteante, espalhadoe à venda em bancas de revista, em lojas
eumshoppingCenter.
O enfoque no enredo prioriza a área ao lado da Catedral Metropolitana,
próxima da sede da Prefeitura Municipal e do Palácio dos Leões, (à época do
lançamento da edição, sede do governo estadual) assim como áreas adjacentes e
cartões postais da cidade como pontos de venda e referências locais para os
consumidores de material pornográfico e mercadores do sexo. Este alerta queJosué
Montello registrou em sua obra, publicada em 1989, não trouxe qualquer efeito
prático,até porque está assegurada, constitucionalmente, a livre circulação deste
material.
E deixando cair os braços ao comprido do corpo, para ir até a janela sobre a Avenida Maranhense, e logo voltar, noutro impulso da ira: - O senhor, há de me dizer, com toda razão: - E que autoridade tem você, Venâncio Sezefredo, para toda essa revolta, se é seu aquele sobrado da Rua do Giz, perto do Quartel da Polícia, onde estão as derradeiras raparigas de São Luís? – Pois fique sabendo que comprei aquele sobrado para tirá-las de lá. Foi o Padre Mohama que não deixou. Gritou comigo: - Não, senhor. Deixe as moças onde estão. – E não me arrepende de ter deixado. São recatadas, Dom Mota. A porta do sobrado vive fechada durante o dia. Só de noite abre. E assim mesmo uma frestinha, para se saber que está aberta. Também nas janelas da rua é o mesmo recado. Sim, senhor: o mesmo recado. Fazem o que fazem, mas, lá dentro, e como meio de vida – sem se exibirem. E as senhoras virtuosas? E as grandes damas? E as mulheres honestas? Já não vou mais ao Largo do Carmo. Nem à calçada do Hotel Central. Por quê? Para não me ferver o sangue. E novamente patético, sacudindo os braços exaltados: - Estou sobrando nesse planeta, Dom Mota. Deus já me devia ter chamado. E olhe que vive até hoje nesta Sodoma, neste mundo de pernas para o ar, unicamente para cercar de cuidados a minha única neta. De repente, este escândalo. Sobre meu nome. Sobre minha cabeça. Enlouqueci na explosão de minha revolta, reconheço. . (MONTELLO. 1989:43 a 46).
Convém chamar a atenção para o início do fragmento em queo autor
destaca outro momento histórico e pouco difundido da cultura local. Toda a cidade
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conhece a Avenida Maranhense, nomeada popularmente como Avenida Pedro II, há
décadas. Esta antiga nomeação decorreria de outro período de modernidade, sob a
batuta do ex-governador Benedito Leite, que, no início do século XX, introduziu
amplas avenidas, arborização pública e deu a prédios coloniais o aspecto majestoso
que ostentam muitos órgãos públicos neles sediados.
Escolas e repartições foram instaladas em alguns imóveis seculares,
enquanto outros de dimensões gigantescas foram construídos, trazendo às crianças,
adolescentes, servidores e usuários, conforto e bem estar. Praças receberam
arborização verdejante e luxuriosa, destacando-se a presença de belíssimos
exemplares de palmeiras, tudo fartamente documentado em um álbum fotográfico,
especialmente encomendado pelo Governador do Estado, Benedito Leite, que
contratou o famoso fotógrafo Gaudêncio Cunha para documentar as inovações
urbanísticas,álbum que foiexibido na Feira Internacional do Rio de Janeiro, entre
comidas típicas e produtos maranhenses, álbum muito bem classificado pelos
organizadores do evento, tendo recebido menção honrosa no evento, concedida por
uma comissão presidida pelo famoso escritor maranhense Arthur Azevedo.
Ilustração17: Exemplo das ações de bem-estar do Gov. Benedito Leite
Fonte: Upaon-Açu. São Luis 400 anos. (202:29)
Ao contrário dos ventos da modernidade que sopravam e sobre que
Venâncio, desgostoso, relatava a Dom Mota,as ações de Benedito Leite trouxeram
bem estar social ao povo maranhense.
E Dom Mota, que ainda segurava a xícara: - Compreendo sua revolta, meu bom amigo. E sei que vem por aí a cólera de Deus. Vem. Como não havia de vir? Levantou-se, pôs a xícara na borda da mesa. E de volta:
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- O mundo mudou muito nos últimos 20 anos. Muito. Mudou demais. Estou alarmado. Não sei onde vamos parar, meu bom amigo. Como se a voz mansa do arcebispo tivesse tido o dom de revigorar-lhe a ira, Venâncio Sezefredo ergueu o dorso, endireitou a cabeça: - Não sabe onde vamos parar, Dom Mota? É fácil saber: na perdição completa, absoluta!Há coisas que nos contam, como ocorridas aqui, e que me deixavam em dúvida. Não, não podia ser. Agora, com esse caso de minha neta, acredito em tudo. Tudo. De ímpeto, voltou a levantar-se; - É verdade, Dom Mota, que houve aí um rapaz idiota, filho de um grandão daqui, que deflorou a filha de Celestino no campanário da Igreja de São João? Dom Mota afastou as mãos espalmadas, num gesto de resignação depressiva, sem afirmar ou negar. E o Venâncio Sezefredo, curvando-se para a frente e baixando a voz: - E também é verdade esse caso do padre que morreu de enfarte num motel da Maioba, nos braços de uma rapariga? Meu Deus, que horror. Que horror. E pôs-se a andar de um lado para outro, entre as janelas da rua e a porta sobre o patamar da escada, à maneira de um tigre na jaula, indo e vindo, enquanto o arcebispo, calmo, de cabeça inclinada, se limitava a segui-lo com o olhar. (MONTELLO, 1989: 43-46).
Mais tarde, após a saída de Venâncio, é ele, o arcebispo, quem convoca
o Padre Mohanaà sua sala de trabalho no Palácio Episcopal e o envia como emissor
do Arcebispado a silenciar os veículos de comunicação sobre o flagrante com
Magda, tarefajá prevista quandosurgiu o chamado: de natureza difícil, posto que
implicava em censura ao trabalho jornalístico, razão por que exigiu um articulador à
altura e da elite eclesiástica. Além do Jornal Pequeno,apenas um outro jornal
publicou, no dia seguinte, a repercussão do fato, sem que voltassem a tratar do
assunto. O árduo trabalhofora plenamente concretizado.
Alguns capítulos depois, encontrar-se-á o desfecho da tarefa, com o
Padre Mohana relatando ao Arcebispo sobre o cumprimento da missão, mais uma
oportunidade de enaltecer o caráter de Ribamar Bógea que só registrou o flash
constrangedor de Magda, publicou e, na forma da legislação que rege o trabalho da
imprensa, guardou os originais consigo no Jornal Pequeno, Não extraiu cópia para
circulação, não vendeu as fotos para outros jornais, não as cedeu para ninguém,
nem mesmo as entregou para a Igreja: guardou consigo após documentar o fato, um
fantástico furo jornalístico. Agiu tão somente como jornalista, demonstrando respeito
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ao público do seu jornal, mantendo-o informado sobre os acontecimentos locais,
coerente com os princípios que o norteavam: cumpriu “dever de ofício”.
7 AS PROPOSTAS E A ANUNCIAÇÃO DO FUTURO
Só a interferência clerical impediu que Magda, única e querida neta de
Venâncio, fosse atirada aos cães. Por tê-la criado sob rígidos princípios, Venâncio
se refugia em silêncio impiedoso durante longos meses, após o flagrante fotográfico.
Mutismo que não cedeu nem quando Magda lhe explicou o porquê da sua nudez
sobre a moto: uma oferta irrecusável que um colega rico do seu namorado propôs
dar a este, de uma só vez. O dinheiro justo e necessário a fim de que Jerônimo, o
seu namoradocompositor e cantor de talento,se deslocasse ao eixoRio-São
Paulosem pedir a ninguém - nem mesmo ao avô Venâncio -, sem se humilharesem
passar dificuldades, para batalhar pela gravação de seus própriosdiscos.
A proposta continha uma exigência imoral: a nudez de Magda ali, na hora,
nas condições em que ocorreu e ela resolveu dar ao namorado sua prova de amor.
Não hesitou. Despindo-se logo após a proposta ser apresentada, montou na garupa
da motocicleta que, conduzida pelo namorado, atravessou a ponte do São
Francisco, travessia captada ao fim do percurso pelas lentes implacáveis do
jornalista e proprietário do Jornal Pequeno que, convocado às pressas, só
compareceu porque lhe asseguraram, através de um telefonema, minutos antes que
o fato acontecesse, que se trataria de um evento que seria protagonizado pela neta
do famoso carola Venâncio Sezefredo. Um furo que Bogéa não perderia.
Este acontecimento, cerne da narrativa, parcialmente e com
variações,pode ser outra transcrição metaforizada do real, vez que fato similar se
repetiu inúmeras vezes ao longo de décadas, protagonizado por adolescentes, filhas
e filhos de integrantes da alta burguesia de São Luís, flagrados em “pegas” ( rachas
), tanto na ponte do São Francisco como é conhecida (o nome real é ponte José
Sarney) quanto em outras pontes e locais de São Luís. Geralmente sem fotógrafos e
sem registro policial oficial.
A ponte do São Francisco foi planejada e construída na década de 60, na
administração do então governador José Sarney, abrindo à sanha expansionista
imobiliária novos espaços da cidade, situados do outro lado da área ligada pela
ponte do São Franciscoonde,à época, só residiam muitos pescadores, catadores de
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mariscos,barqueiros com suas famílias, pessoas de condição muito humilde. Trouxe,
neste bojo desenvolvimentista, uma diversão de mau gosto mas abraçada pelos
novos-ricos.
7.1 Os pegas
Os“pegas” (também conhecidos como “rachas”)consistem em práticas
demotoristas adolescentes, não necessariamente com carteira de habilitação, sob o
possívelestímulo de drogas ou do álcool e sem escrúpulos morais quanto a
possíveis danos às vidas humanas que atravessam o caminhode seus possantes
veículos, como bólidos, irresponsavelmente os impulsionam pelas vias urbanas, no
fim da noite ou ao amanhecer.
O flash de Magda, que no enredo o jornalista Bogéa captou, também
pode ser visto alegoricamente como registro histórico, memória desta ação
censurada pelos moradores de São Luís, pelas pessoas de bom senso, conforme
constatável em inúmeros registros promovidos pela imprensa desde a época da
inauguração da ponte São Francisco (ANEXO15), inclusive e predominantemente na
crônica policial. Josué Montello, o escritor, mais uma vez se faz porta-voz da
sociedade e registra o fato. E esta prática não cessou,em pleno séculoXXI.
O elemento que parece apontar para esta perspectiva de leitura seria
justamente aescolha do jornalista captor do flagrante oportunizado por Magda, uma
vez que o editor e jornalista Ribamar Bogéa, quando vivo, era um intransigente
defensor da opinião popular, da verdade que envolvia os fatos, publicando de forma
sistemática anseios sociais e de bem-estar popular, além detoda a problemática
contrária a estesinteresses perpetradospela elite e pelos poderosos com quem não
compactuava. Dono do Jornal Pequeno,popular e de grande credibilidade em São
Luís, nãoescamoteava a verdade dos fatos. Razão suficiente para determinar sua
escolha para integrar a narrativa que delineia seus personagens tal como o foram
em vida ou como o são: alguns são íntegros e humanos, outros são apenas
humanos.
Despida sob a traseira da moto, Magda pode ser a representação de
algumas dessas jovens que, instaladas nesses veículos, desfilaram em fins da
década de 60 e nas décadas seguintes pela ponte de São Francisco, total ou
parcialmente despidas,sobre esses que cruzavam a ponte e ainda a avenida
86
seguinte, prolongando a retaque se tornava uma imensa pista contínua, para gáudio
dos companheiros burgueses de farra irresponsável.
Estes fatos forame vêm sendo amplamente denunciados e documentados
pela imprensa falada e escrita, sobretudoa partir das décadas de 70/80, quando era
praxe que membros da burguesia local, filhos de pessoas com elevado status social
e/ou financeiro, se servissem dessa ponte e de outra mais recente, com traçado
longilíneo e áreas extras que as prolongam, como pistas onde deslizavam e
deslizam seus carros possantes, alheios às vidasque ceifavam ou mutilavam, que
ceifam ou mutilam.
Durante o recente e curto mandato do governador Jackson Lago, este
sugeriu que os empresários indicassem o secretário de Indústria e Comércio,
escolha que recaiu no rico empresário Júlio Noronha. Empossado e desenvolvendo
um brilhante trabalho, que integraria o turismo do Ceará, Maranhão e Piauí, certodia
recebeu umtelefonema no meio da noite, informando-o sobre um acidente que teria
colhido um filho. Saiu para socorrê-lo e, ao chegar ao local indicado, descobriu que
era um trote. Por azar, ao retornar foi colhido por um motorista que participava de
um “pega”, conforme veiculado nós órgãos da imprensa local (ANEXOS 16 e 17).Em
decorrência do seu estado grave, foi removido para um hospital em São Paulo onde
permaneceu hospitalizado durante longos meses. O Maranhão perdeumuito com
sua ausência, pela interrupção das estratégias inovadoras que implantava e que
iriam permitir maior desenvolvimento ao setor turístico. Ao retornar, com a decisão
judicial que determinou o afastamento do Governador Jackson Lago, o empresário
não foi reconduzido ao cargo. Nem o autor do acidente foi punido.
Alheios às regras de trânsito e à lei, os transgressores não costumam
responder por estes crimes, mas as notícias divulgadas nos veículos da mídia
revelam a existência de um grupode jornalistas sintonizados com os anseios sociais
de justiça da população de São Luís que repudiam os atos destes irresponsáveis,
poiseste grupo “faz parte da sociedade e porque, à distância pelo menos, sofre
ainda seu impulso” (HALBWACHS,1990:36). Daí porquepublicam continuamente
estes acidentes e cobram providências, sem obter êxito. Mas insistem (ANEXO 18),
trazendo à população lembranças que exigem decisões do poder público. Tal atitude
encontra econo pensadore escritorHalbwachs (1990:36), segundo o qual
“seuspensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, o que
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em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de algum(indivíduo) na
sociedade.”
Assim, a ponte de São Francisco, inserida no romance, representa o
novo, posto que estabelece a ligação que determinara a renovação urbanística da
cidade e sua ampliação, oferecendo as inúmeras possibilidades de expansão e
crescimento que se consubstanciaram. Também pode ser vista como o marco da
transformação de São Luís, onde o novo se introduz como exemplo de
modernidade, revitaliza a cidade e traz consigo o desenvolvimento urbano, a
expansão imobiliária, assim como exemplos de decadência moral, da transgressão
dos valores apreciados pela população local, sempre avessa a cosmopolitismos.
7.2 Transgressões
O fragmento pode oferecer também outra leitura desse novo tempo,
relacionado a um fato que passara a acontecer naquela época na cidade de São
Luís, mencionado comumente em tom mais baixo que o habitual, tema de boato,
alimento de fofocas na década de 60 e 70. Pode ser visto aío repúdio social à
existência de prostíbulos onde mulheres novas e oriundas de outras cidades, se
encontravam à disposição dos homens bem situados social e financeiramente. Tais
fatos alimentaram comentários correntes na cidade, à boca pequena,o populacho
indicava os donos do empreendimento, citava a possível procedência dessas
infelizes mulheres e até nomeava frequentadores costumeiros.
Ainda pode ser visto, como um novo marco histórico-temporal, registro do
início do funcionamento dos motéis, cujas instalações ocorreram quase sempre nas
áreasnobres da cidade, localizadasalém da ponte e depois dela. Até então, a área
onde se localizavam os imóveis destinados à prostituição estava circunscrita à rua
28 de julho, no bairro do Desterro - hoje, área tombada -, onde se instalavam os
prostíbulos tradicionais da cidade, inclusive frequentados pelos membros da
burguesia. Contudo, foi em um motel da Maioba, localizado em área limítrofe de São
Luís, espaço rural, bem distante do centro da cidade,que faleceu o padre sobre
quem Venâncio e Dom Mota conversaram.Esterelato se ampara em acontecimentos
que o autor incorporou ao enredo da narrativa edescrevea morte de um sacerdote
no motele de outros, no campo, durante o governo Luiz Rocha e teve violenta
repercussão na cidade de São Luís e até conotações políticas.
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Instalado em área muito longe daquela onde costumeiramente se
encontram os prostíbulos locais, o motel já evidencia de per si a expansão que a
cidade experimentara, bem como o surgimento de empresas especificamente
voltadas aosexo, que absorviam mão de obra excedente, disponível na periferia da
cidade, para servir à classe mais alta, uma clientela ávida de emoções novas, capaz
de enfrentar riscos deslocando-se até locais distantes e ermos.
Longe de olhares curiosos, torna-se um chamariz para os que podem se
deslocar até ali, como um dos novos costumes que, estranhamente, se introduzem
subrrepticiamente no cotidiano da cidade. E se expandem à tal forma que um padre
se sente seguro para ir até lá buscar o relaxamento que o corpo exige e a Igreja lhe
cerceia. Ali, acompanhado de pessoa nunca identificada, esse padre faleceu. E um
escândalo sem precedentes tomouconta da cidade.
A expansão da área urbanística que ocorreu na capital trouxe, a São Luís
e ao Estado, muitos grileiros que se especializaram em tomar terras de lavradores,
de pequenos posseiros e de pobres agricultores, residentes no interior maranhense.
Enquanto os conflitos no campo se ampliavam, cada vez mais a Igreja se envolvia
como porta-voz eficaz em favor dos camponeses espoliados. Nesta ocasião, estava
à frente dogoverno do Estado do Maranhão o então Governador Luís Rocha, um
empresário rural e fazendeiro riquíssimo, além de político poderoso, apontado como
integrante da UDR, homem destemido que, por sua vez, tornou-se porta-voz da sua
classe. A Igreja e o governador entraram em rota de colisão, ainda que estes
tivessem um relacionamento cordial até aquele momento, como se observa no
fragmento em que o arcebispo faz Venâncio adentrar em sua sala no Palácio
Episcopal onde lhe oferece um café, que havia sido presente do governador,
exemplo da ficção imitando a realidade. Mesmo sendo favorecido com o mimo, isto
não impediu o Arcebispo de exercer seu papel de liderança, chegando até a
excomungar o governador Luís Rocha. Como se Josué Montello, cobrasse o
mesmo dos poderes políticos. Justificada, entre outras personagens, sua inclusão no
enredo.(ANEXOS 19 a 40).
Denúncias sucediam denúncias, enquanto a imprensa exibia o resultado
das lutas no campo: as mortes de camponeses, de seus familiares e de seus líderes
sindicais, a expulsão destes de suas terras, os incêndios em glebas de terras de
pequenos agricultores, a grilagem, a escravidão forçada de homens, mulheres e até
crianças, graças ao trabalho ilegal e desonesto de “gatos”, tudo em flagrantes
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violações aos direitos humanos e trabalhistas do homem do campo. Acuando o
governador, a Igreja exigia providências urgentes, que não vinham. Então, a morte
do padre no motel e o assassinato de outro padre, algo até então inaudito em São
Luís, foi contabilizada pela Igreja como retaliação, e o governador responsabilizado
e excomungado de suas fileiras. (ANEXOS41, 42, 43,44 e 45).
Meses depois, ainda sob o impacto estrondoso que o caso gerou, a
exumação do cadáver do padre, reivindicada pela Igreja através da justiça,
confirmou a morte do padre no motel em decorrência de “esforço contínuo”. Foi um
choque na cidade de São Luís pois, esquecida do lado humano do ser e de suas
exigências biológicas nem sempre controláveis, a cidade pasmou porque o padre
morrera no motel. Este não fora assassinado.
7.3 A proposta imoral
Um aspecto da narrativa não deve ser desconsiderado: na trama
montelliana há o registro do flagrante com Magda e seu namorado, captado por
Bogéa, avisado do que iria acontecer com a neta de Venâncio, minutos antes de o
fato ocorrer. Ora, isto aponta não apenaspara uma proposta imoral, mas também
para uma“armadilha”e a anuênciada “vítima” já era esperada. E a vítima era neta de
um homem riquíssimo que não circulava na alta-sociedade mas a ela pertencia por
direito de nascença.
Cabe,também,outra leitura possível dos fatos, comentários corriqueiros na
boca da população localem décadas passadas, dando conta da existência de casais
queparticipavam de farras sexuais, um jogo chamado a“troca dachave”.A troca das
chaves das portas das dependências em que se encontrassem por outras similares,
assegurariaaos participantes da “brincadeira” a alternância de seus paresemleitos
ecomparceiros que nãoapenas os seuscônjuges ou acompanhantes. Enquanto os
filhos dos ricos e poderosos se exibiam com novos e possantes carros nas ruas,
seus pais se escondiam com seus pares em hotéis e motéis, cada qual com o
brinquedo favorito e divertindo-se com o que lhe causava mais prazer.
Assim, diziam, poderosos subiam social e politicamente, em decorrência
da atuação sexual de suas mulheres com outros homens, com amigos mais
poderosos ou influentes. Fenômeno previsível, como delineia Halbwachs em
Memória coletiva (1990:47), para quem “no ponto de encontro de várias correntes de
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pensamento coletivo que se cruzam em nós se produz um desses estados
complexos, onde queremos ver um acontecimento único, que não existirá a não ser
para nós.”
A propósito, o escritor e dramaturgo maranhense Arthur Azevedo cita
fatos semelhantes como prática comum adotada pelo titular do Olimpo em sua obra
Um roubo no Olimpo, exemplo que poderia ter descido do Olimpo para a Atenas. Ou
seja, “a rigor, os fatos não são novos, ficam novos. O que acontece pela ação
reveladora da linguagem”, conforme diz o crítico e ensaísta Eduardo Portela
(1974:108).
Posteriormente, em irônica consonância, verifica-se quea opção de
Magda pelo passeio noturno só recebeu aplausos da Vedete, exemplo de
degradação social na família de Venâncio, que não conseguiaver tanta coragem em
Magda evibrou muito com a agressão ao irmão carola. Todavia, seu entusiasmo não
era compartilhado por Magda, que só confidenciou o motivo peloqual montara
despida naquela motocicleta, para o passeio na moto que tanto constrangimento e
dor trouxera à sua família, apenas a duas pessoas que muito amava: à tia Bilu e ao
avô Venâncio Sezefredo. A Vedete nunca entenderia seus motivos.
O narrador, ao mencionar esta passagem no enredo, a oferta imoral, não
rebusca atrás de motivos: simplesmente apresenta o fato de forma crua. Ao
descrever o momento em que ocorre a proposta, não delineia qualquer reação de
surpresa em relação a nenhum dos envolvidos. Não há reação contrária do
namorado, o único a ser beneficiado pela nudez de Magda. Nenhuma indignação é
percebida com o desrespeito à Magda, nenhum diálogo ocorre entre esta e o
namorado. A oferta imoral é lançada, não há registro de nenhuma hesitação em
ambos,nenhum constrangimento:Magda sozinha toma adecisão na hora: despe-se
como se soubesse o que deveria fazer, o que é esperado dela, e monta na
motocicleta. O namorado acelera com ela completamente nua na garupa e
atravessa toda a extensão da ponte para ser colhida pelo flagrante constrangedor.
Em meio ànarrativa destes fatos, encontram-se personagens novas e
pertencentes à realidade de São Luisde onde são pinçadas para receberem a
homenagem merecida do autor, como as outrasjá mencionadas. E, como todas,
para exemplificar com suas ações, lições de dignidade.
Bandeira Tribuzi, Arlete Nogueira e Nauro Machado surgem, como os
anteriores, pela evocação - desta feita de Magda - lembrando-se, paulatinamente, de
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quando conheceu Jerônimo, o seu namorado. Esta lembrança os situa na casa de
uma amigacomum,em dia de sarau,onde a dona da casa pusera-se a tocar ao piano
músicas de jovens compositores maranhenses, uma após a outra, cabendo aos
presentes “declinar o nome de seus autores”(MONTELLO, 1989:163).
Os nomes dos compositores maranhenses se sucederam, vindo à baila,
no meio do alarido, às vezes unânime. Caso de Louvação de São Luis, da autoria de
Bandeira Tribuzi, hoje, hino oficial de São Luis.
Para estimular o grupo, foi vedada a participação dos poetas presentes,
mas Bandeira Tribuzi pediu o piano e avisou que tocaria a música de um amigo seu,
o que levou Magda a se aproximar. Como não fosse identificado o compositor,
Tribuzi indicou Jerônimo, presente na ocasião: “- Não, não é. O autor é o Jerônimo.
O Jagunço que ali está, quase escondido por trás da porta, e que é hoje, na música
aqui no Maranhão, o maior de todos nós.” (MONTELLO, 1989:164).
A seguir, Magda decide repetir, de ouvido, a música tocada por Tribuzi,
ratificando neste novo fragmento o trabalho que o próprio Mohana fazia. Fazia
Mohana na vida real e Magda, na ficção: “[...] De vista baixa, parecia procurar as
teclas, avivando a memória com notas esparsas, até que sentiu toda a peça, na sua
harmoniosa unidade, e começou a tocá-la, sempre voltada para o teclado, como se
não fosse aquela a primeira vez que a escutava [...]” (MONTELLO, 1989:164).
Jerônimo, extasiado ante a exibição de Magda, saiu de onde se
encontrava, aproximou-se e, ao findar a execução, “com os olhos molhados”, tomou
suas mãos e agradeceu. Como o tempo passou rápido, a madrugada surgia e ela,
precisando retornar ao casarão, perguntou quem poderia lhe oferecer uma carona e
foi ele, Jerônimo, quem a conduziu na moto.
As recordações afloram: “Volta a sentir, com a sua memória nítida, o
aconchego do companheiro, com os seios junto ao seu dorso, os braços a lhe
envolverem o tórax, na primeira arrancada da longa rua deserta.”(MONTELLO,
1989:165).
Durante este deslocamento, Jerônimo conta a Magda sobre a
generosidade do poeta Bandeira Tribuzi,e uma nova situação – como ocorreu todas
as vezes que o autor introduziu uma nova personagem no enredo -, trouxe uma
nova oportunidade de reflexão à sociedade. Jerônimo diz a Magda:
- Você nunca tinha ouvido a minha música?
92
- Já, mas não sabia de quem era. Ouvi uma noite, de meu sobrado, tocada por alguém que não sabia tocar, ali mesmo na Praia Grande. E ele, após uma risada: - Era eu que tocava, compondo a música. Tocava um pedaço e repetia. Tocava, e repetia. Cheguei a desistir de acabá-la. Foi o Tribuzi que se entusiasmou por ela, e não sossegou enquanto eu não a terminei. Terminei e dei a ele. (MONTELLO, 1989:164).
Nesse pequeno episódio éreverenciada a cultura maranhense,
celebrando autores vivos (Arlete Nogueira e Nauro Machado) e mortos (Bandeira
Tribuzi). Todos partilharam e partilham como poucos a vida cultural maranhense. A
romancista Arlete Machado, ex-Secretária de Cultura, é, inclusive, uma das
responsáveis pela implantação do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, point
cultural em São Luis, e local onde são ministrados cursos e oficinas que estimulam
jovens artistas, talentos promissores, como se delineará um pouco mais à frente.
Ao mencionar o gesto de Jerônimo, que deu a Bandeira Tribuzi uma
composição de sua autoria que ele completara, é trazidaà baila a questão da autoria
e dos direitos autorais. Entre artistas, corre um boato impossível de comprovar,
sobre a obrigatoriedade que pesa sobre certos músicos maranhenses de comporem
letras\músicas que seriam entregues a uma pessoa que, graças a sua situação
privilegiada, junto aos dirigentes públicos, asseguraria a veiculação das demais
peças musicais desses músicos, bem como a contratação destes profissionais
oprimidos e subjugados, em eventos públicos, com boa remuneração. Para
sobreviverem, seriam constrangidos não a manter parcerias mas pela obrigação de
produzir ajá vasta obra musical do imoral espoliador.
Algo contrário ao gesto ético e até mesmo desnecessário de Jerônimo,
posto queo poeta Bandeira Tribuzi, com o legado extenso que deixou aos seus
pósteros, não necessitava nem pessoal nem financeiramente de doações. Além
disso, a sua grandeza humana corria na frente de sua pessoa. No enredo, o autor
não acrescenta mais nada, não diz se o poeta aceitou, se recusou a doação ou
mesmo se sugeriu a dupla autoria da composição musical. Com este silêncio
eloqüente, provavelmente denuncia o silêncio cúmpliceque se encontra na realidade.
Como sobreviver é preciso, compreende-se a escritura do autor, sendo bem possível
que não tenha ocorrido omissão no enredo, mas umaoportunidade de reflexão sobre
o gesto imoral que desvela, mais uma vez, a decadência dos princípios éticos e dos
bons costumes.
93
Assim, corroborando Eduardo Portela(1974:35), constata-se em
Fundamentos da Investigação Literária que “o fazer da arte é o fazer promotor do
SER”. É possível a leitura como aqui estáproposto; aliás, como mais adianteEduardo
Portela esclarece na mesma obra(1974:60): “Inexiste signo sem significado, ou
significado sem signo. Há uma relação de reciprocidade entre ambos os
componentes dessa estrutura solidária”. A releitura do realpara estruturação de uma
forma literária é sempre possívele inúmeros escritores lançaram mãodeste artifício,
exibindo sobnova roupageme nova linguagem fatos que precisavam vir à luz. E é
ainda a Portela (1974:69) que se recorre e que afirma que “o literário não dá apenas
discurso, porque dá origem ao discurso. Não fala; faz falar. É o pré-texto
inaugurando o entre-texto”.
Não há dúvida de que a construção das personagens guarda uma estreita
relação com as questões sociais que as cercam. Há personagens que carregam
consigo as marcas dos grupos sociais a que pertencem e exibem, em consequência,
raízes, crenças e valores. No caso específico de Venâncio Sezefredo este exibe
também o que lhe falta: a consciência cristã, o espírito de humanidade.
7.4 Novos visitantes no casarão
Para irritar seu irmão, para sair da tristeza em que se encontrava e ainda
para retomar as festas da suajuventude que se distanciaram há muito, a Vedete
escreveu para outros irmãos quese encontravam longe e planejou o retornoao
casarão de todosos familiaresque levantaram vôo há muito tempo. Forneceu
orientações minuciosas para que não transparecesse a sua autoria no tenebroso
projeto, a fim de que não perdesse amordomia que desfrutava no sobrado, que, em
seu delírio, um discurso irresponsável, é de todos. Tudo o que almejava era dar vida
ao casarão, fazendo-o voltar aos velhos tempos.
Acarta encontrou receptividade junto a um sobrinho alemão, Karl, a quem
ninguém, exceto a Vedete, já conhecia, pois este nascera e vivia na Europa, sendo
constantes seus deslocamentos a Paris, onde Charles, ex-marido dela, o tratava
como a um filho. Músico, ele tocava saxofone e apareceusubitamente em São Luís,
sem dinheiro, só com o passaporte que exibiu a Venâncio Sezefredo onde este leu
o nome de uma irmã já falecida há muito tempo.
94
Com o sax, companheiro permanente, Karl infernizará todos os espaços
da cidade por onde passar, do casarão até debaixo da janela do arcebispo, com sua
música e sua agressividade. Sem nenhuma ocupação útil com que pudesse
sobreviver, sem recursos para retornar à Alemanha onde residia, incentivado pelos
delírios da Vedete, decidiu ficar ali, naquele sobrado imenso onde havia quartos de
sobra, disponíveis, como mais um bentevi no beiral.
Na sequência do encontro entre sobrinho e tio, percebe-se a ausência de
espírito cristãoe ainsensibilidade de Venâncio em relação à família, sentimentos
responsáveis pelo afastamento de todo o círculo familiar que, aos poucos, foi
deixando o antigo casarão, outrora alegre e cheio de vida,deserto e frio.
Depois da morte do antigo proprietário do casarão – opaide Venâncio,
Bilu, Vedete e Lizoca -, Venâncio adquiriu a parte dos irmãos com o dinheiro de um
prêmio da loteria espanhola etransformou o ato em cessação de vínculos familiares,
desinteressando-se por todos os irmãos. Desinteressou-se,sobretudo, após a ida de
Francisquinha para a França de onde, inicialmente, esta enviou algumas cartas,
falando do seu sucesso.
Suas cartas eram lidas por Bilu, por Venâncio e por Calu, a ex- esposa de
Venâncio, levando esta última a sonhar com algo similar em sua vida, o que
desagradousobremodo a seu marido, o qual passou a destruir de forma sistemática
toda e qualquer correspondência enviada pela irmã ou pelos demais membros da
família, o que não impediu que Calu, sua ex-esposa, viesse a traí-lo. A traição foi
descoberta pela leitura das inúmeras cartas que os amantes lhe enviaram; todos a
convidavam para que abandonasse o marido e seguisse com eles, cartas que Calu
guardou cuidadosamente entre seus pertences, fato que Venâncio tributou à
influência de Vedete.
A presença de recordações comuns entre os membros mais próximos da
família fortaleceu-as, favorecendo o surgimento destas evocações de uma
formamais rápida, enquanto o distanciamento dos seus membros impediu esta
circulação de forma coletiva, em toda abrangência. Assim, constata-se no enredo
que há fatos que foram vivenciados por poucos elementos do grupo, em estreito
convívio, razão pela qual há lembranças evocadas apenas por alguns destes
elementos, caso de Calu, a ex-esposa adúltera de Venâncio. Somente Bilu,
onipresente em todos os momentos e na vida dos que residem no casarão, sabe
acerca da traição de Calu e do enorme sofrimento causado a Venâncio.
95
Francisquinha, que vivia em Paris, longe do epicentro da questão,
recorda de Calu, soube de poucos detalhes sobre sua morte e nada mais. Já Bilu,
que sempre viveu com o irmão e acompanhou tudo de perto como observadora
privilegiada, lembra em detalhes o naufrágio do matrimônio de Venâncio com
Calu,algo que Venâncio nunca faz em toda a narrativa. Apontando a questão,
Halbwachs (1990:47), justifica: “Por mais estranho e paradoxal que isto possa
parecer, as lembranças que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não
concernem a não ser a nós, que constituem nosso bem mais exclusivo...”.
Assim, o único registro desta ocorrência conjugal resulta da preocupação
de Bilu com a possível influência de Franscisquinha no episódio envolvendo Magda,
o que se revelou um equívoco.
O desinteresse pela Europa e pelos que vivem ou viveram lá fica patente
quando surge Karl a quem nenhum dos moradores do casarão conhecia,todos
ignoravam-lhe a procedência e paternidade, apesar deKarl ser adulto e filho da irmã
do dono do casarão e de Bilu. Suprimidas da memória as lembranças, Venâncio não
recorda fatos da vida dessa irmã que lhe permitam o reconhecimento fácil do
visitante à sua frente, mesma razão pela qual ignora,também,que Karl é um rapaz
doente, que esteve internado várias vezes em sanatórios europeus para doentes
mentais e que, nesta triste condição, não dispõe de recursos que lhe garantam a
sobrevivência.
Como a Vedete e Bilu, Karl é maisum bentevi que necessita de abrigo e
pão, diferençando-se dos demais mendigos que circulam socialmente na cidade, aos
quais Venâncio ajuda através das instituições religiosas com benignidade. É um
membro da família, é um irmão em Cristo, o Cristo que Venâncio afirma amar. Mas,
assim como a Vedete em seus dias áureos em Paris se lembrou de Bilu, mas não a
buscou, esquecendo-se dos seus laços familiares, Venâncio também não quer a
proximidade dos familiares.
O momento em que Venâncio conhecerá seu sobrinho, que chega ao seu
casarão sem condições de pagar diárias em algum hotel, é descrito friamente.O
velho Venâncio é informado por Veludo – a essa altura já transformado em um
empregado doméstico da casa - que um homem está à sua procura. Como não
esperava visitas nem Veludo fez referência à palavra padre, retruca assustado:
96
E o senhor mandou entrar para dentro de minha casa, sem saber de quem se trata, um estrangeiro desconhecido, que tanto pode ser um intrujão quanto um malfeitor? [...] “Venâncio Sezefedo começou por instalar na cara prevenida os óculos de aro de metal, após receber o passaporte. Tornando a segurá-lo, examinou-o por um lado e por outro, sempre desconfiado, resvalou o olhar pela página da identidade, quase no mesmo instante em que redobrava de atenção, intrigado, ao dar com o nome de uma de suas irmãs. (MONTELLO, 1989: 218).
É com surpresa que localiza no passaporte do visitante o nome da irmã.
E, apontando-o com o dedo, ergue o olhar e pergunta:
-Que é que faz aqui a Lizoca? [...] Aqui, na minha casa, não. Vá para o hotel. Isto aqui não é pensão. Basta a maluca que está ali em cima, infernando-me a vida. (MONTELLO, 1989: 218)
A decisão tomada por Karl de hospedar-se e permanecer no casarão,
resultante das dificuldades financeiras que atravessa, esbarra na contrariedade de
Venâncio, quesó a contragosto e sob forte pressão familiar - além, é claro, da
interferência do pacificadorPadre Mohanaa quem seusfamiliares mais uma vez
recorreram– deixouque elepermanecesse ali hospedado durante quinze dias. “-
Quinze dias, no máximo! Disse, e repito: quinze dias.” (MONTELLO, 1989:220).
Decorridos os quinze dias, até mesmo Magda tenta, mais uma vez,
romper o mutismo do avô para interceder por Karl. Pede pela permanência do
saxofonista, no casarão. No último dia do prazo concedido por Venâncio para sua
permanência no casarão, Karl não demonstra nenhum sinal de que lhe obedecerá.
Reina uma angústia e todos se encontram preocupados acerca da decisão final do
dono da casa: Bilu reza, Magda espera que ele modifique sua decisão e a Vedete
amaldiçoa o irmão rico de quem todos, sem nenhum tostão, dependem.
Em desespero, sem saúde mental, é o próprio Karl quem toma a decisão
final. No quarto, tomando do saxofone, ele inicia a execução de mais uma das suas
músicas, a última que tocará ali. Então tocade uma maneiraenlouquecedoramente
pungente como parecerá aos demais logo depois. Enquanto ele toca,Venâncio
sobeos degraus da escadae vaiao mirante onde Karl se encontra, tocando seu sax,
97
para expulsá-lo do casarão. Karl o vê e, sem parar de tocar,faz-lhe um aceno para
que aguarde, como a lhe dizer que iria tocar unicamente aquela música.
Paralelamente, Karl vai recuando de costas continuamente, dirigindo-se para o lado
contrário em que se encontra, posicionando-se em direção à janela aberta,por onde
salta logo após uma rápida corrida, estatelando-se lá embaixo, sobre as pedras da
rua.Morto.
Venâncio e os moradores do casarão sofrem muito com o suicídio de
Karl, atribuído a Venâncio. Após a morte deste sobrinho, a Igrejae a família lhe
ofereceram o necessário apoio: o enterro e todas as providências correrão por conta
do poderoso homem e da solidária Igreja. Não houve comentários ou censuras
públicas poisnão houve repercussão acerca do fato. Mas Venâncio sentiu o golpe,
examinou a si e julgou-se culpado.
Decorrido algum tempo,a Vedete morre, segue-a Bilu.Um pouco antes do
falecimento de Bilu, Venâncio sofre um derrame e Magda assume, paulatinamente e
com segurança, a direção do patrimônio do avô, descobrindo, através das
meticulosas anotações em papéis, registros fiscais impecáveis, em promissórias e
registros imobiliários, o imenso patrimônio de seu avô, a riquezaque o avô Venâncio
Sezefredo amealhou porque não se permitira desnecessários luxos,o que, na sua
estreita visão, incluía a instalação doméstica de uma linha telefônica. Ele não
gastava nenhum níquelem modernismos. A gestão da neta foi contornando sua falha
de visão,introduzindoaté o útil telefone na vida do casarão.
Antes que a Vedete morresse, outra visitante chegou: uma sobrinha, a
Celuta, com uma filha especial. Ainda em Paris, onde morava, também recebera a
carta de Francisquinha, convocando os familiares para que se reunissem no velho
sobrado, de São Luis.
Admitida sem o consentimento de Venâncio ou interferência da igreja,
teve a presença detectada por ele, graças aos gritos da Vedete que, recebendo-a,
conversava com ela, chamando-a pelo nome.
Deitado no leito, cuidadosamente tratado por Magda, percebeu a
presença da visitante, lembrou do nome dela, citado em uma antiga carta que a mãe
dela, sua irmã, lhe escrevera, tendo percebido ademais o momento em que chegara
acompanhada de uma criança, com malas e bagagens que a Vedete levara escada
acima. O episódio levou-o a reconciliar-se interiormente com Deus, com a família, e
98
asdeixou permanecer, sem delongas, no sobrado, como mais dois bentevis nos
beirais.
Com o passar dos dias, a visitante revelou-se mais interessada em
passear, sem nenhuma preocupação com a condição de sua filha, Corina, portadora
de necessidades especiais. Depois de Naná e Bilu mortas é a vez de Venâncio, que
falece um pouco depois. O enterro de Naná foi documentado pela imprensa como a
morte de uma estrela.
Magda, herdeira dos bens que pertenciam ao avô e a tia Bilu, resolveu
destinar um dos sobrados, na Rua da Estrela, no Centro Histórico, a uma escola
destinada a acolher crianças portadoras de necessidades especiais.
Ficção e realidade novamente convergem: algo similar aconteceu, em 06
de novembro de 1979, em São Luis. Naquele dia, com a emissão daLei n° 4.102,foi
criado o Centro de Artes e Comunicações Visuais, objetivando o ensino de técnicas
de artes visuais. Inicialmente instalado na Rua do Sol, n° 230, local com espaço
reduzido, só permitia o funcionamento de poucos cursos, um dos quais de arte
infantil.Em 1981, passou a chamar-se Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, em
homenagem ao poeta e jornalista maranhense que falecera no Rio de Janeiro, em
18 de agosto de 1979, profissional já vislumbrado em um dos artigos de Neiva
Moreira, que mencionou os relevantes serviços prestados por ele ao Maranhão.
Em 1984, o Centro de Criatividade Odylo Costa, filho se
fixou,definitivamente,onde se encontra até hoje, instalado na Rampa do Comércio nº
52, na Praia Grande, em imóvel cuja construção data de 1900, em área tombada,
cuja restauração foi determinada pelo governador Epitácio Cafeteira e concluída em
1988, abrigando anfiteatro, cinema, teatro, galerias, biblioteca e as oficinas de artes
plástica, espaços que homenageiam vultos da cultura maranhense, caso de Alcione
Nazaré, Ferreira Gullar e Ambrósio Amorim, cujos nomes foram atribuídos ao teatro,
biblioteca e galeria, respectivamente.
Este cuidado com o despertar das habilidades artísticas do ser humano
levou também à instalação do hoje denominado Centro de Educação Especial
Helena Antipoffdestinado à educação de crianças portadoras de necessidades
especiais, que se instalou em São Luís, nessa época.
8A NARRATIVA MONTELLIANA: A VISÃO LÚCIDA
99
Conforme já ficou evidenciado nos fragmentos do texto em exame, Um
beiral para os bentevis é uma narrativa descontínua, com um número elevado de
ações onde alguns dos fatos narrados tem funções secundárias. Foi estruturada
como uma macrofábula na qual ocorrem encaixes onde acontece a inclusão de
histórias, uma no interior da outra, constatando-se também a alternância das
histórias: enquanto uma é interrompida a outra é retomada. A interrompida
prosseguirá em uma nova pausa.
Normalmente a ação é impulsionada pelos acontecimentos que cercam
as personagens mais importantes – Bilu, Vedete e Magda– que, premidas pelas
circunstâncias que atravessam, começam a rememorar. As rupturas que se
estabelecem durante estas revelações são vitais, pois alimentam o interesse do
leitor: há cenas que precedem ou anunciam fatos, sem que haja qualquerrelação
com os demais elementos do enredo até então desvelado. A continuidade destes
relatos acompanha o desvelamentodas lembranças e só ocorrem nestesinstantes.
Observa-se, com este retardamento das ações, que se desfaz o tempo cronológico
dos fatos narrados e a ordem de sucessão no enredo.
Articulados sob a forma de diálogos entre as personagens surgem
lembranças que afloram em momentos de isolamento e solidão (Vedete e Bilu), em
momentos de crise, quando vem à tona o enfoque de problemas sociais
(urbanização, patrimônio histórico, saneamento epolíticas públicas, por exemplo) e
há várias outras questões, mas nenhuma delas é discutida. Há problemas de todos
os matizes: há preconceito contra a mulher que perdeu a virgindade e em relação à
vida de artista, registra-se a evolução da prostituição, com imagens de vários
discursos que decompõem a cidade como se ela fosse um labirinto.
Embora centrado em um velho casarão, o narrador percorre os espaços e
segue Magda na multidão, na grande avenida, na travessa, na rua larga e na praça
onde os problemas são captados; transformam-se estas visões em acontecimentos,
desvelados em ocasiões propícias, dentro do casarão com beirais. Assim o leitor
descobre a faina laboriosa, ética e persistente do Padre Mohana, quando a família
se reúne para o desjejum. Passeando pela área tombada da Praia Grande constata,
junto com Magda e Vedete, a decadência do local e a ausência de políticas públicas
que valorizem o patrimônio histórico existente na área. Enfim, o leitor encontra
diversos episódios que nada mais são que reflexos da realidade maranhense,
especialmente de São Luís, como representações dessa realidade.
100
Ao ler o texto de Josué Montello, percebe-se o que Burke apontou como
papel que cabe à Literatura,papel também entrevisto por Roland Barthes emO
prazer da literaturae que foi ressaltado porJacques Delors e seus pares no Relatório
da UNESCO para os novos rumos da educação neste novo milênio (Delors et al.
1987), publicado no Brasil sob o título de Educação - um tesouro a descobrir:o autor
apresenta uma trama que expressa sua necessidade de sensibilizar o olhar do leitor
e de alertá-lo sobre a ascensão do individualismo, criando imagens para estabelecer
a relação entre os fatos cotidianos e os grandes acontecimentos da vida humana.
Como o fez Bertolt Brecht e outros durante a ascensão do nazismo.
Sem que assim queira, o leitor derrama seu olhar e se detém em
reflexões sobre a realidade maranhense, buscando migalhas na lembrança onde
velhas informações estão depositadas no recôndito da memória, associando notícias
de jornais, informações que circulam socialmente, além de somar tudo isto às
observações sobre a realidade que o circunda. Os episódios lidos, os que a estes se
associam, suscitam atitudes críticas. O homem, sobretudo o maranhense que ali se
delineia,está mergulhadoem submissão, esmagado pela sua história. Assim constata
a crítica que Josué Montello, o autor do texto, elaborou: as imagens impregnadas da
realidade e do cotidiano da cidade de São Luís.
A Vedete, por exemplo, com seus desejos vãos, com suas maquinações
silenciosas, com seus discursos sobre um passado que se findou sem perspectivas
de retorno, é um exemplo dos políticos que se utilizam de retóricas vazias com
finalidade distorcida, o que se constata no expressivo aumento do número de
estupros, de assassinatos, na insensibilidade em relação ao patrimônio histórico, ao
meio ambiente e na insegurança pública por onde se esvaem os recursos que
poderiam ter um fim mais transparente. Onde estão as políticas públicas?
O autor traz ao leitor uma riqueza de informações suplementares sobre a
cultura maranhense e este desvela não sóhábitos tradicionais dos moradores de
São Luís, bem como um patrimônio histórico em processo de decadência,
preconceitos e atitudes que precisam ser modificados. Usuários que despejam
dejetos de seus penicos em sanitários ou latrinas, cristas de cacos de garrafas que
sãocolocadas pelos donos de imóveis sobre seus muros para proteger residências,
rede armada próximaàs janelas, vela queimando aos pés de um santo por devoção
ao mesmo, chinelos sob as redes; mulheres, crianças e adolescentes à janela,
sobretudo à tarde ou quando o calor está mais forte; o leitor entrevê,da janela da
101
casa, uma nesga do mar, vê sucessivos leques desenhadosno assoalho da casa,
formados pela projeção do sol que atravessa o vidro das persianas e a fé do devoto
no santo de sua devoção.São informações sobre a cultura maranhense, como se o
autor desejasse recuperar alguma coisa, talvez registrar para não esquecer e isto se
espalhapor todo o texto.
Percebem-se, como recursos utilizados pelo autor, instantâneos da
cidade e de antigos acontecimentos, talvez para suscitar reflexões, escavando
significados para recuperar as ruínas da memória.
Ao evocar pessoas vivas, nota-se uma cidade em mutação onde o velho
está sendo demolido para abrir espaço ao novo, ainda que caibam inquietantes
questionamentos sobre a regressão dos costumes que o leitor constata, diariamente,
através das notícias de jornais (Ver os anexos ondea autora colecionou um elevado
número de reportagens,publicadas no Jornal Pequeno e em O Imparcialatravés dos
anos). O novo se insinua, trazido pela ausência de reflexão, pela inexistência de
espaços onde o intercâmbio, a formação contínua e onde o debate fortaleçam,
esclareçam e enriqueçam uma educação de qualidade que não é oferecida à
população. Não há respeito à memória, à cultura nem aos valores constituídos e
acolhidos até agora como significativos, por este motivo talvez os exemplos
pinçados e exibidos por Josué Montello, envolvendo as personagens do mundo real,
levem o leitor a se lembrar destes caminhos: ética, perseverança, valorização da
memória e da riqueza cultural maranhense.
A cidade, após o desenvolvimento que a percorreu, demonstra que sofreu
o mesmo impacto já presenciado em outros locais, como no caso das cidades de
Londres e Paris, como denuncia Walter Benjamin (1989). Toda a narrativa é
percorrida pelo sentimento de dissolução, de fragmentação e perda. Ocorreu a
fragmentação da família, a dissolução dos valores e sentimentos que uniam seus
membros, o que culmina na atomização da sociedade. Estes elementos contidos na
narrativa, são percebidos porque o autor emprega uma linguagem clara, sem
opacidade, como se conversasse com seu leitor.
Friedrich Schiller, em A educação estética do homem, clama pelo
enobrecimento dos sentimentos e a perfeição ética da vontade, demonstrando que
já se fez muito pela ilustração dos sentimentos. Desta forma, encontra-se uma
justificativa para os encaixes realizados, momentos em que são introduzidos
personagens consagrados na vida cultural maranhense, paradescerrar as ações que
102
desenvolvem ou desenvolveram em benefício da sociedade, com isto estimulando a
prática de ações dignas pois, como o poeta Schiller escreveu, agora é o momento
de enobrecer sentimentos e buscar a perfeição ética. E talvezJosué,um grande leitor
de clássicos, exercite outro enunciado do poeta (2010:11) segundo o qual “verdades
filosóficas têm de ser encontradas em uma forma, e aplicadas e difundidas em
outra”.
Deste modo, acredita-se que Josué Montello pode ter seguido este
caminho, um caminho novo sobre fórmulas já pensadas mas usando recursos como
a memória, os sonhos, experiências de vida, vivências pessoais e a história de uma
forma inovadora, criativa, bem estimulante.
Alguns dos fatos reais que estão encaixados no enredo são socialmente
conhecidos, enquanto outros foram escamoteados à visão social, por não serem
éticos mas reflexos de egoísmo, de individualismo, de personalismos descabidos
mas presentes na vida do homem contemporâneo. Os primeiros são trazidos
claramente ao leitor até porque toda comunidade tem tipos que nela brotam,
influenciam e são por época e lugar influenciados. Os últimos, com antagonismos
visíveis, também educam: O contraditório encoraja as pessoas ao exercício da
cidadania. Fatos, diz Renato Cordeiro Gomes (1994:17), citando Walter Benjamin,
“nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam
aquilo que recompensa a escavação.”
Foi por tudo isto que se tomaram como marcos temporais, a fim de
delimitar sobre o que o autor derramou sua observação e que pode ter sido alvo de
sua crítica, tanto a ponte do São Francisco (1969)quanto a morte do padre em um
motel na Maioba(1986), ambos fatosmarcantes na vida de São Luís. No entanto,
convém que se registre que identificar fatos temporais na obra romanescanão é
surpreendente, mas surpreende encontrar em Um beiral para os bentevis,
comoMendilov (1972:3)menciona emO tempo e o romance, “uma visão da vida não
como coisas-transformadas mas como coisas-transformando-se”, conforme se
constata ao se perceber o texto montelliano e confrontá-lo com as reportagens e as
manchetes de jornais (v.anexos). Os fatospercebidos e a análise destes provam
que a crítica social efetuada por Josué Montello é pertinente:
a) todos os jornais locais vêm evidenciando o crescimento galopante de
imóveis da área tombada que são destruídos para acolher interesses
dos proprietários que os transformam em estacionamentos públicos,
103
independentemente dos alertas constantes do IPHAN, órgão
fiscalizador.
b) cresce o número de violência sexual notadamente contra a mulher, a
criança e os adolescentes;
c) amplia-se a violência urbana e rural, percebidaem furtos, acidentes
com vítimas fatais, assaltos, estupros, violação de direitos humanos e
o espancamento de mulheres e crianças, bem como o abandono de
idosos;
d) a corrupção galopante, incessantemente denunciada pelos órgãos da
mídia e o Ministério Público e órgãos públicos federais, impede a
execução de planejamento e a utilização adequada de recursos
públicos que deveriam ampliar o rol de benefícios à sociedade;
e) a educação deveria, realmente, trazer benefícios aos jovens promover
seu crescimento humano,encaminhando-os ao exercício de atividades
profissionais, sem nenhuma necessidade de que se desloquem para
outras cidades, buscando a concretização de seus sonhos.
Ao selecionar os fragmentos que seriam examinados, como foi feito, ficam
claros os indícios citados por Bergson(2006:2 e 3) de que “a memória está aí,
empurrando algo desse passado para dentro do presente”. E como o passado se
presentifica, no mesmo texto acrescenta: “Nossa atenção se fixa neles porque a
interessa muito mais...”
Ao tecer o enredo como uma fiandeira moderna, Josué Montello evoca
Bergson ( 2005:19 ) que registrou: “Seria o mesmo que dizer que toda a verdade já
é virtualmente conhecida, que seu modelo está depositado nos mapas
administrativos da cidade e que este é um puzzle em que o objeto é reconstituir,
com peças que a sociedade nos fornece, o desenho que ela não quer nos mostrar.”
As mudanças que acontecem no seio da sociedade estão preparando o
homem para narrativas novas.Transcender os convencionalismos em relação à
forma é uma experimentação em que Josué Montello (Ver anexos 46 e 47) se jogou
de forma renovadora: o autor não abriu mão do simbólico, essência do literário, nem
do que é perene e próprio da literatura - o dizer, o se expressar.
104
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Um beiral para os bentevis, Josué Montello incorpora ao enredo a
repercussão de acontecimentos marcantes na vida maranhense, entremeando
ficção e realidade, sem abrir mão da história, de um passado recente e aquela que
vivenciava no momento da elaboração dessa obra.
São recuperados fatos verídicos, inconfundivelmente retirados do real,
que se mesclam para formar, como disse no delineamento da tese, um puzzle cujo
objetivo é reconstruir um desenho que a sociedade não quer revelar. Acolheu-se o
pensamento de Renato Cordeiro, de Walter Benjamin, de Halbwachs, de Flora
Sussekinds, dentre outros. Foram refeitos caminhos, inspirados nos passos dos
mestres da Écolle dês Annales, que ensinaram como se deve proceder para
perceber outros significados e novos sentidos, geralmente “sob as palavras”, para
discursos proferidos, sob o alertada recomendação de Jeanne-Marie Gagnebin.
Para adquirir sua feição particular, o romance apresenta um estilo próprio
cuja linguagem abriga um “sistema de línguas”, conforme delineia Bakhtin, que se
integra à narrativa, para lhe oferecer uma visão síngular. A linguagem recolhe o
universo com que foi composto: maneirismos, jargões profissionais, fala das
gerações, das idades, há linguagem de certos dias e mesmo de certas horas, como
os estudos bakhtinianos constataram em outros romances, mais populares e mais
famosos. E, como é perceptível, encontra-se o discurso do narrador, das
personagens e, também, do autor, o que demonstra a riqueza do plurilinguismo que
ali se constata.
É possível distinguir, claramente, os enunciados informativos da
composição ficcional, fragmentos que evidenciam a preocupação do autor com a
formação moral do seu leitor e desmancham-se quaisquer convicções acerca da
escritura montelliana como algo breve, sem os cuidados que uma obra deve
comportar, no mínimo, acrescentando algo ao espírito do leitor. Seu texto é fruto de
uma consciência esclarecida tentando expressar-se de forma clara, simples, mas
com substância humanamente enriquecedora.
Nenhum dos temas que explora, desvelando-os gradativamente, ao olhar
curioso do leitor, pode se eximir de tocar em fios dialógicos, de hoje e de ontem ou
105
de ontem e hoje. Os artigos de Neiva Moreira, as manchetes dos jornais de hoje que
são editados e circulam em São Luís mostram a pertinência das críticas aos erros da
política, que reincide nesses erros, na discriminação às minorias e favorece as
exclusões. Os enunciados morais brotam dos diálogos que os prolongam e cuja
ressonância impede que se veja de onde partem, talvez para demonstrar que a
sociedade, como um todo, comunga com eles.
Não há dúvida de que há um propósito lúcido na narrativa de Josué
Montello nem há qualquer dúvida acerca de sua natureza: é de caráter ético em prol
de uma sociedade mais justa. Na obra, Um beiral para os bentevis, Josué Montello
apresenta-se como um intelectual engajado, ciente das transformações devidas à
terra maranhense.
Um beiral para os bentevis, conforme já se disse, contém dezessete
capítulos. Percorrendo-se suas páginas, percebe-se que a narrativa foi construída
com elementos ficcionais assim como outros extraídos da realidade maranhense.
Neste caso, foram selecionadas figuras relevantes do mundo religioso, social e
cultural, personagens que integraram,em São Luís,cargos e funções, oportunidades
em que desenvolveram significativos esforços em prol dos excluídos, dos menos
favorecidos.Reforçaram suas ações com interesse genuíno pelos desassistidos, pela
projeção da cultura, até mesmo aplicando recursos financeiros pessoais.
No romance se entrevê a crítica social, algo inédito, nunca detectado
pelos críticos, ao descompromisso com que gestores públicos, durante décadas e de
forma omissa, ocupando cargos públicos, nada fizeram para eliminar os problemas
existentes em todos os níveis, contribuindo para elevação do número de
desassistidos.
Não basta denunciar a violação de direitos assegurados ao homem, é
preciso institucionalizar a justiça em toda a sua dimensão social, política e
econômica. Ao seu modo, Josué Montello mostra o caminho.
O enredo contempla também os que necessitam de outro tipo de bem
aventurança: os aflitos. Estes, inseridos, inclusive, no recesso familiar onde, por sua
vez, são seres estranhos e choram de aflição pela ausência de respeito, de carinho
e amor. Por isso, é um romance de denúncia, que clama por direitos, pela ética, pela
transparência.
106
A pobreza existencial ronda o texto, mas nele estão contidas as soluções,
as sugestões, com exemplo de doação oferecido pelo Arcebispo Metropolitano, pelo
Padre Mohana, pelo poeta Tribuzi e pelo casal Arlete e Nauro Machado.
Um beiral para os bentevis é um texto rico, humano e enriquecedor, é
resultado da visão lúcida de Josué Montello sobre São Luís do Maranhão, sobre a
cidade e sua gente.
107
BIBLIOGRAFIA
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113
ANEXOS
114
ANEXO 1:Reportagem publicada em 17.01.2013 em O Imparcial, no Caderno Urbano, pág. 1:” Sob risco de desapropriação”
115
ANEXO 2: Reportagem publicada em 18.05.2014 em O Imparcial, no Caderno Urbano, pág. 1: “ 7.196 denúncias de abuso sexual”
116
ANEXO 3 Reportagem publicada em 19.09.2013 em O Imparcial, no Caderno
Urbano, pág. 1: “ Limpeza no Centro Histórico”
117
ANEXO 4 Reportagem publicada em 09.06.2013 em O Imparcial, no Caderno Urbano, “ Na
mira dos vândalos”
118
ANEXO 5 Reportagem publicada em 01.05.2013 em O Imparcial, no Caderno IMPAR, pág.
2: “ Parte da História”
119
ANEXO 6 Reportagem publicada em 01.05.2013 em O Imparcial, no Caderno
IMPAR, pág.1: “ Patrimônio restaurado”
120
ANEXO 7: Manchete publicada em 04.08.2013 em O Imparcial, na 1ª página: “
Polícia Federal investiga roubo de azulejos históricos na capital”
121
ANEXO 8: Reportagem publicada em 04.08.2013 em O Imparcial, no Caderno
Urbano, pág.1: “PF investiga roubo de azulejos”
122
ANEXO 9: Reportagem publicada em 17.01.2014 em O Imparcial, no Caderno
Urbano, pág. 1: “ Ameaçados pela chuva”
123
ANEXO 10: Reportagem publicada em 19.03.2014 em O Imparcial, no Caderno
Urbano, 1ª página: “ Tarde demais: casarão está destruído”
124
ANEXO 11: Reportagem publicada em 19.08.2013, em O Imparcial, na 1ª página:
“Praia Grande receberá sinalização”
125
ANEXO 12 : Reportagem publicada em 08.08.2013, em O Imparcial, no Caderno
Negócios, pág. 5: “ Acervo arquitetônico que tem que ser preservado”
126
ANEXO 13: Reportagem publicada em 23.10.2011, em O Imparcial, no Caderno
Negócios, pág.1: “ Centro Histórico barato”
127
ANEXO 14: Matéria publicada em O Imparcial, Caderno Urbano,em 28.09.2011
página 3.
128
ANEXO 15:Matéria publicada no Jornal Pequeno, em 27.05.86, na 4ª página:”
Cavalo de pau, desastre e vítimas na ponte S.Francisco”
„
129
ANEXO 16: Manchete do Jornal Pequeno, em 16.11.2007: “Secretário Júlio Noronha
é atropelado após socorrer filho”
130
ANEXO 17: Matéria publicada no Jornal Pequeno, em 16.11.2007, na página 12: “
Secretário Júlio Noronha é atropelado após socorrer filho”
131
ANEXO 18: Matéria publicada em O Imparcial, em 26.01.2013, no Caderno Urbano,
pág. 1: “Colisão fatal na Litorânea”
132
ANEXO 19: Manchete de O Imparcial, em 21.10.2012, 1ª página: “ Maranhão, terra
natal dos escravizados”
133
ANEXO 20: Reportagem publicada em O Imparcial, em 21.10.2012, no Caderno
Urbano, pág.1: “ Maranhão da escravidão”
134
ANEXO 21: Reportagem publicada em O Imparcial, em 08.01.2013, no Caderno Urbano, pág.2: “Mais escravos no Maranhão
135
ANEXO 22: Reportagem publicada em O Imparcial, em 19.06.2013, no Caderno
Urbano, pág.3: “ O grito que vem do campo”
136
ANEXO 23: Manchete publicada em O Imparcial, em 14.07.2013, na 1ª página: “
Maranhão tem 266 áreas em situação de conflito”
137
ANEXO 24: Manchete publicada em O Imparcial, em 14.07.2013, no Caderno
Urbano, na pág.1: “ Violência no campo”
138
ANEXO 25: Reportagem publicada em O Imparcial, em 30.01.20147, na 2ª página,
do Caderno Urbano: “Famílias resistentes”.
139
ANEXO 26: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 05.05.1986, na 7ª
página: “Livro sobre violência no campo divulga número de mortes”.
140
ANEXO 27: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 09.05.1986, na 1ª
página: “Padre agredido e ameaçado”.
141
ANEXO 28: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 11.05.1986, na1ª página:
“Pistoleiros matam padre com dois tiros ”.
142
ANEXO 29: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 13.05.1986, na 1ª
página: “Parlamentares do PFL, PDS e alto funcionário do governo estão envolvido”.
143
ANEXO 30: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 13.05.1986, na1ª página:
“Sobre o assassinato do padre Jósimo”.
144
ANEXO 31: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 13.05.1986, na 1ª
página: “Candidato a deputado acusado de mandar matar o padre”.
145
ANEXO 32: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 13.05.1986, na4ª página:
“Conselho Federal da OAB manifesta-se sobre assassinato do padre Jósimo”.
146
ANEXO 33: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 14.05.1986, na 1ª
página: “Desvendada a morte do padre”.
147
ANEXO 34: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 16.05.1986, na 6ª
página: “Morte do padre”.
148
ANEXO 35: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 16.05.1986, na 6ª
página: “Padre Jósimo sabia que ia ser assassinado”.
149
ANEXO 36: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 24.06.1986, na 3ª
página: “Militante da Pastoral da pesca é morto”.
150
ANEXO 37: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 26.05.1986, na 10ª
página: “Padre Jósimo, o mártir da Reforma Agrária”.
151
ANEXO 38: Reportagens publicadas no Jornal Pequeno, em 27.05.1986, na 4ª
página: “D. Paulo teme que conflitos no campo levem o Brasil a estado bárbaro!” e
“PCB e o assassinato do Padre Jósimo”.
152
ANEXO 39: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 05.06.1986: “Luiz Rocha
é o mais novo herói da UDR”.
153
ANEXO 40: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 07.06.1986, na 3ª
página: “Íntegra da carta enviada por Luiz Rocha ao JB”.
154
ANEXO 41: Manchete publicada no Jornal Pequeno, em 23.05.1986, na 1ª página:
“Igreja excomunga Gov. Luiz Rocha”.
155
ANEXO 42: Reportagem publicada no Jornal Pequeno, em 23.05.1986, na 6ª
página: “Igreja excomunga Governador Rocha”.
156
ANEXO 43: Matériapublicada no Jornal Pequeno, em 24.05.1986, na 6ª página:
“Luiz Rocha impedido de entrar na igreja”.
157
ANEXO 44: Matéria publicada no Jornal Pequeno, em 26.05.1986, na 1ª página: “
Governador teria chamado os chefes municipais e outros políticos para assinarem
documento contra igreja”.
158
ANEXO 45: Matéria publicada no Jornal Pequeno, em 26.05.1986, na 6ª página:
“Luiz Rocha encurralado”.
159
ANEXO 46: Produção bibliográfica de Josué Montello
160
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ANEXO 47: Dados biobibliográficos de Josué Montello
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