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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CINCIAS DA SADE
ESCOLA DE ENFERMAGEM ANNA NERY COORDENAO GERAL DE PS-GRADUAO E PESQUISA
DOUTORADO EM ENFERMAGEM
O CUIDADO DE ENFERMEIRAS OBSTTRICAS
COM-A-MULHER-QUE-D--LUZ-NA-CASA-DE-PARTO:
uma hermenutica em Heidegger
MARCELE ZVEITER
Rio de Janeiro
Dezembro de 2011
vcx
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UFRJ
O CUIDADO DE ENFERMEIRAS OBSTTRICAS
COM-A-MULHER-QUE-D--LUZ-NA-CASA-DE-PARTO:
uma hermenutica em Heidegger
MARCELE ZVEITER
Orientadora: Ivis Emlia de Oliveira Souza
Rio de Janeiro
Dezembro de 2011
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Enfermagem. rea de Concentrao: A Enfermagem no Contexto Social Brasileiro.
Ncleo de Pesquisa de Enfermagem em
Sade da Mulher - NUPESM
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Zveiter, Marcele
O cuidado de enfermeiras obsttricas com-a-mulher-que-d--luz-na-Casa-
de-Parto: uma hermenutica em Heidegger/ Marcele Zveiter. - Rio de Janeiro: UFRJ/EEAN, 2011.
xiv, 112f. Orientadora: Dr vis Emilia de Oliveira Souza Tese (doutorado) UFRJ/ Escola de Enfermagem Anna Nery/ Programa de
Ps Graduao em Enfermagem, 2011. Referncias bibliogrficas: f.96 103.
1. Filosofia. 2. Cuidado de enfermagem. 3. Enfermagem Obsttrica. 4. Parto I. Souza, vis Emlia de Oliveira II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery, Ps-Graduao em Enfermagem. III. Ttulo
CDD: 610.73
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O CUIDADO DE ENFERMEIRAS OBSTTRICAS
COM-A-MULHER-QUE-D--LUZ-NA-CASA-DE-PARTO:
uma hermenutica em Heidegger
MARCELE ZVEITER
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Enfermagem.
APROVADO POR:
____________________________________________________ Presidente: Dr. Ivis Emlia de Oliveira Souza
Professora Titular da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ
____________________________________________________ 1. Examinadora: Dr. Jane Mrcia Progianti
Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem da UERJ
____________________________________________________ 2. Examinadora: Dr. Telma Elisa Carraro
Professora Associada do Departamento de Enfermagem da UFSC
____________________________________________________ 3. Examinadora: Dr. Sonia Mara Faria Simes
Professora Titular da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da UFF
____________________________________________________ 4. Examinadora: Dr. Maria Aparecida Vasconcelos Moura
Professora Associada da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ
_____________________________________________________ 1. Suplente: Dr. Jurema Gouvea de Sousa
Professora Adjunta da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ
____________________________________________________ 2. Suplente: Dr. Lucia Helena Garcia Penna
Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem da UERJ
Rio de Janeiro
Dezembro de 2011
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A essncia do humano o cuidado "
(Martin Heidegger)
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Dedico este trabalho s minhas filhas Amanda e Viviane.
Nenhuma palavra diz o que sinto, nenhum fato o que por elas fao,
nenhuma msica embala os abraos, nenhuma foto revela o meu amor...
Sou eu com cada uma e ns trs, no nosso mundo.
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Agradecimentos
Essas pginas representam mais que um mero costume acadmico.
Elas concretizam a possibilidade de tornar pblico o quanto fui ajudada no
caminho que percorri at aqui. So, portanto, parte das lembranas do
tempo do doutorado.
Agradeo aos meus pais, Everton e Lygia Maria, que me socorreram
no meio do caminho. No fizeram por mim, mas como sempre, foram
frente de mos dadas, cuidando de mim!
Aos meus irmos, Ana Marcia e Luiz Carlos, parceiros desde sempre,
meu muito obrigada, sem eles nem sei...
Meus agradecimentos especiais s minhas filhas, Amanda e Viviane,
que consideraram tudo que vivemos quando compreenderam minhas
ausncias. Elas, que tantas vezes falaram comigo enquanto eu s escutava o
texto, quanta pacincia! Obrigada pela vibrao a cada vitria e pela espera
paciente do primeiro ao ltimo dia do doutorado.
minha famlia, to grande quanto rara, em especial Tia Leila e
Mariana, conselheiras das horas amargas; vov Amlia e Tia Luzia, que de
l torcem por mim; e vov Lygia, que sempre me mandou estudar e agora,
de alguma maneira, sabe que no precisa mais falar, obrigada.
Ao Miguel, que foi meu primeiro ouvinte no relatrio desta pesquisa,
agradeo pelas provocaes filosficas e por afastar meus piores temores.
Sem a surpresa do nosso encontro eu no compreenderia quantas
possibilidades h no viver.
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s minhas queridas amigas e mestres Maysa Luduvice e Heloisa Lessa,
Pesquisadoras, colegas na turma de Doutorado, sou grata pelo
encorajamento, por se disponibilizarem aos meus desabafos, por
compreenderem meus sonhos e com-partilharem lies de parto, de
nascimento... de vida.
minha colega de orientao, agora minha amiga, Carmem Lcia,
sou grata pelo carinho com que me ouviu e contribuiu para que muitos
pontos da filosofia heideggeriana se firmassem.
Bernardo Carestiato, pela prontido com que atendeu ao meu
pedido de traduo para o espanhol, muito obrigada.
Meus sinceros agradecimentos aos colegas da turma de Doutorado da
Escola de Enfermagem Anna Nery, pela alegria contagiante no cotidiano
das aulas e tantas exigncias acadmicas.
Meu dia-a-dia na docncia foi compatvel com a dedicao
necessria ao doutorado, devo isto ao Professor Doutor Marcio Tadeu
Ribeiro, a quem agradeo muito pela boa vontade.
Aos meus alunos, que me ensinam todo dia, obrigada pela confiana
e amizade.
cada Professora Doutora da banca desta Tese:
Jane Mrcia Progianti, minha professora na Graduao e membro da
banca do Mestrado, pelos comentrios e sugestes to crticas e pertinentes
para esta Tese, em todas as suas etapas de avaliao; no agradeo ao
acaso ou ao destino por contar sempre com ela, reconheo o caminho!
ix
Sonia Mara Faria Simes discutiu esta investigao na sua totalidade
desde o projeto, mostrando a robustez da fenomenologia heideggeriana; sou
grata pelas indicaes das falhas e potencialidades da pesquisa que se fez
Tese.
Telma Elisa Carraro, disposta a vir de to longe para a banca, pela
gentileza de cuidadosamente tecer os comentrios que contribuem para a
forma final desta Tese, meu agradecimento.
Maria Aparecida Vasconcelos Moura, minha professora no doutorado,
pela leitura crtica e construtiva de todo material que submeti sua
apreciao, muito obrigada.
Jurema Gouvea de Sousa, a primeira pessoa que eu ouvi expor seu
percurso como pesquisadora no doutorado, meu agradecimento pelo
exemplo de perseverana.
Lucia Helena Garcia Penna, minha colega dos tempos de
Maternidade, meu reconhecimento pela contribuio dos comentrios e
sugestes em todas as etapas desta pesquisa.
Minha orientadora, Professora Doutora Ivis Emlia de Oliveira Souza,
merece neste lugar uma poesia, porm, dada minha limitao, deixo o
registro da minha gratido por ela ter acreditado que eu seria capaz
quando os fatos diziam o contrrio, e por me ajudar a compreender que
sou-possvel.
Tantos amigos faltam ainda nestas linhas, Dindinha Jamile, Aninha,
Priscilla, Rosana...
Obrigada a todos que no foram citados e esto atrs do meu nome.
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RESUMO
ZVEITER, Marcele. O CUIDADO DE ENFERMEIRAS OBSTTRICAS COM-A-MULHER-QUE-D--LUZ-NA-CASA-DE-PARTO: uma hermenutica em Heidegger. Rio de Janeiro, 2011. Tese. 112f. (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
A discusso sobre o direito de exerccio de enfermeiras na assistncia ao parto e a qualidade da ateno prestada s usurias no Rio de Janeiro foi o incio da problematizao da presente investigao. A situao estudada no presente trabalho foi o cuidado de enfermeiras obsttricas, como um caso da assistncia ao parto do Sistema nico de Sade. A questo que norteou a investigao se dirige possibilidade do desvelamento dos modos de ser das enfermeiras obsttricas que cuidam na Casa de Parto David Capistrano Filho e ao desvelamento de algumas facetas desse cuidado, mulher que d luz na Casa de Parto. O objeto de pesquisa foi delimitado como: o significado do cuidado ao ser-mulher-que-d-a-luz-na-Casa-de-Parto. Assim, com o mtodo de investigao fenomenolgico, com referencial heideggeriano de anlise, estabeleceu-se o objetivo de desvelar o sentido do cuidado de enfermeiras obsttricas mulher que d a luz na Casa de Parto. Alm de respeitar os aspectos ticos e legais que constam na Resoluo 196/96 do Conselho Nacional de Sade, esta pesquisa obteve aprovao no Parecer n 322A/2009 do Comit de tica em Pesquisa da Secretaria de Sade e Defesa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro, RJ - Brasil. No cenrio da Casa de Parto os encontros com a totalidade das enfermeiras obsttricas tiveram uma questo orientadora da entrevista. Pela anlise compreensiva dos depoimentos, procurando cientemente no ente, abriu-se uma compreenso mediana que foi suficiente para a conquista do fio condutor da hermenutica: O cuidado de enfermeiras obsttricas mulher que d luz na Casa de Parto mostrou-se como um cuidado que se desenvolve desde o pr-natal e continua no ps-parto, sendo uma construo fundada no compartilhar, que envolve a enfermeira e a mulher. , tambm, diferente do modelo hospitalar, e revelador do sentido do comportamento dos membros da equipe de enfermagem e da responsabilidade dessas enfermeiras neste cotidiano assistencial. O cuidado de enfermeiras obsttricas mulher que d luz na Casa de Parto sinaliza no cotidiano assistencial um espao de possibilidades pensadas numa proposta de humanizao do parto e nascimento nas polticas pblicas. Porm, elas ainda no esto descritas ou, mais ainda, so obscuras. Desvelou-se uma marca no cotidiano, evidenciada pela origem do cuidado e o encontro de seres [o ser-mulher-que-d--luz-na-Casa-de-Parto e o ser-enfermeiras-obsttricas-que-cuidam-na-Casa-de-Parto]. O sentido do cuidado de enfermeiras obsttricas mulher que d luz na Casa de Parto revela ento, sua origem na mulher, sendo construdo com ela, e, portanto distinto do cuidado da tradio obsttrica. Ele tem a possibilidade de tecer a identidade assistencial de enfermeiras obsttricas quando no cuidar considera quem vai dar a luz. Palavras chave: filosofia, cuidado de enfermagem, enfermagem obsttrica, parto.
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ABSTRACT
ZVEITER, Marcele. THE CARE OF OBSTETRIC NURSE WITH-THE-WOMAN-THAT-GIVES-BIRTH-IN-HOUSE-OF-CHILDBIRTH: an hermeneutics based in Heidegger. Rio de Janeiro, 2011. Thesis. 112f. (Doctorate in Nursing) Anna Nery Nursing School, Federal University of Rio de Janeiro, 2011.
The discussion about the right to engage nurses in childbirth assistance and quality of care provided to users in Rio de Janeiro was the beginning of the problematization of this investigation. The situation of the present study was the care of obstetric nurses, as a case of childbirth assistance in the Unified Health System. The question that guided the research addresses the possibility of unveiling the ways of being of obstetrical nurses who care for the House of Childbirth David Capistrano Filho and the unveiling of some facets of this care to women who gives birth in the House of Childbirth. The object of research was defined as: the meaning of care to be woman-who-gives-birth-at-House-of-Childbirth. Thus, with the phenomenological method of investigation, with reference to Heideggerian analysis was settled the goal of unveiling the meaning of care of the obstetrical nurses to women who give birth in the House of Labor. In addition to respect the ethical and legal issues contained in Resolution 196/96 of the National Health Council, this research was approved on the document number 322A/2009 by the Ethics Committee in Research of the Secretary of Health and Civil Defense of the Municipality of Rio de Janeiro, RJ - Brazil. In the scenario of the House of Childbirth, the meetings with all the obstetrical nurses had a question that guided the interview. Thru comprehensive analysis of the testimony, looking ciently in the ente, opened up an median understanding which was enough to conquer the conductor thread of hermeneutics: The obstetrical nurses's care for women that gives birth in the House of childbirth proved to be a care that develops from the prenatal until postpartum, as a construction based on sharing, which involves the nurse and the woman. It is, also, different from models in hospitals, and revealer of the sense of behavior of members of the nursing team and of the responsibility of these nurses in the daily care. The obstetrical nurses's care for women giving birth in the House of childbirth, indicates in the assistance daily one space of thought possibilities in a humanizations proposal of the childbirth and birth in the public policies. However, they are not described or even more, are obscure. Unveiled a brand in the daily, evidenced by the origin of the care and the encounter of beings [being-woman-who-gives-birth-at-the-House-of-Childbirth-and-being-obstetrical-nurses-who-cares-at-the-House-of-Childbirth]. The sense of the obstetrical nurses's care for women giving birth in the House of Childbirth reveals so, its origin in the female, being built with her and, therefore, distinct of the traditional obstetric sense of care. It has the ability to weave the assistance identity of the obstetrical nurses, when in the caring considers who will give birth.
Keywords: philosophy, nursing care, obstetrical nursing, childbirth
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RESUMEN
ZVEITER, Marcele. CUIDADO DE ENFERMERAS OBSTETRICAS CON-A-MUJER-A-DAR-A-LUZ-EN-CASA-DE-PARTO: una hermenutica de
Heidegger. Rio de Janeiro, 2011. Tese 112f. (Doctorado en Enfermera) Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. La discusin sobre el derecho de las enfermeras de asistir al parto y calidad de la atencin prestada a los usuarios en Rio de Janeiro fue el comienzo de ls preguntas de esta investigacin. La situacin de este estudio fue la atencin de las enfermeras obsttricas, como un caso de atencin para el Sistema nico de Salud. La pregunta que oriento la investigacin se refiere a la posibilidad de descubrir los modos de ser de las enfermeras obsttricas que se preocupan por la Casa de Parto David Capistrano Filho y la presentacin de algunos aspectos del cuidado con la mujer que da a luz en la Casa de Parto. El objeto de la investigacin se define como: el significado del cuidado para la mujer-que-da-a-luz-en-casa-de-parto. Por lo tanto, el mtodo fenomenolgico de la investigacin, en relacin con el anlisis de Heidegger, se estableci el objetivo de descubrir el significado de la atencin de las enfermeras obsttricas para las mujeres que dan a luz en la Casa de Parto. Adems de respetar los aspectos ticos y legales contenidos en la Resolucin 196/96 del Consejo Nacional de Salud, esta investigacin fue aprobada en el documento nmero 322A/2009 por el Comit de tica en Investigacin del Departamento de Salud y Defensa Civil de la Municipalidad de Rio de Janeiro, RJ - Brasil. En el escenario de la Casa de Parto los encuentros con la totalidad de las enfermeras obsttricas tuvieran una cuestin orientadora de la entrevista. Para el anlisis exhaustivo de los testimonios, abri una comprensin mediana que fue suficiente para conquistar el hilo conductor de la hermenutica: el cuidado de las enfermeras obsttricas para las mujeres que dan a luz en la Casa de Parto se mostr como un cuidado que se desarrolla a partir del prenatal y que continua en el posparto, como una construccin basada en el compartir, que envuelve la enfermera y la mujer. Tambin es diferente del modelo de hospital y que revela el significado de la conducta de los miembros del equipo de enfermera y la responsabilidad de estas enfermeras en la atencin de todos los das. El cuidado de las enfermeras a las mujeres que dan a luz en el centro de atencin al parto en la Casa de Parto ensala, en el cotidiano asistencial, un espacio de posibilidades pensadas en una propuesta de humanizacin del parto y nacimiento en las polticas pblicas. Sin embargo, estas no son describidlas, ms son oscuras. Se descubri una marca en el cotidiano, evidenciada por la origen del cuidado y lo encuentro de seres (el ser-mujer-que-da-a-luz-en-la-casa-de-parto y ser-enfermeras-obstetricas-que-se-preocupan-en-la-casa-de-parto). El significado del cuidado de las enfermeras obsttricas con la mujer que da a luz en la Casa de Parto revela, la origen en la mujer, se est construyendo con Ella y por lo tanto distinto de la atencin tradicionalista de la obstetricia. l tiene la capacidad de tejer la identidad de la asistencial de las enfermeras obsttricas cuando se atiende a quien que dar a luz. Palabras clave: filosofa, la atencin de enfermera, obstetricia, parto.
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SUMRIO
Pginas
I CONSIDERAES INICIAIS
1.1. A inquietao que gerou o estudo 15
1.2. Situao problema 19
1.3. Justificativa e relevncia do estudo 21
1.4. Contribuies do estudo 29
II O SOLO DA TRADIO
2.1. Parto e Nascimento: fatos da tradio na obstetrcia 31
2.2. Na tradio da obstetrcia, a mulher e o recm-nascido como
objetos
35
2.3. Parto e Nascimento: os fundamentos do cuidado de enfermagem
obsttrica mulher e ao seu beb
39
III REFERENCIAL TERICO-FILOSFICO
3.1. A fenomenologia 42
3.2. Filosofia e mtodo em Martin Heidegger 45
3.3. Trajetria do estudo 47
3.3.1. Caminho metodolgico 47
3.3.2. O cenrio da pesquisa e a ambientao 48
3.3.3. O mtodo de investigao fenomenolgico com referencial
heideggeriano de anlise no desvelamento do quem
49
IV ANLISE COMPREENSIVA
4.1. Unidades de significao 56
4.2. Conceito do cuidado de enfermeiras obsttricas no vivido da
Casa de Parto
66
V - ANLISE INTERPRETATIVA
- A Hermenutica
68
xiv
CONSIDERAES FINAIS 91
REFERNCIAS
96
APENDICES
Apndice A Bibliografia potencial 105
Apndice B: Centros de Parto Normal Isolados registrados no
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES)
110
Apndice C: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 111
Apndice D: Parecer do Comit de tica em Pesquisa da Secretaria
Municipal de Sade e Defesa Civil CEP SMSDC-RJ
112
15
I. CONSIDERAES INICIAIS
So os obstculos com que deparamos, e que preciso
superar, que fornecem a oportunidade de nos vencermos a ns
mesmos.
(SIMONE WEIL,Opresso e liberdade)
1.1. A inquietao que gerou o estudo
O parto e o nascimento so acontecimentos que sempre me atraram.
Durante a graduao, aprendi sobre os cuidados essenciais que deveriam ser
prestados ao beb recm-nascido [RN]. Aprendi tambm, que a mulher deveria
ser cuidada no ciclo da gestao e ps-parto levando-se em considerao o
seu cotidiano no meio social. Mais tarde, no dia-a-dia do mundo da
Maternidade, como enfermeira obsttrica, muitas vezes me comovi na sala de
parto. Minha emoo permanecia na sombra, escondida pelos procedimentos
pautados em protocolos da tradio cientfica.
Com a inteno de desenvolver um bom trabalho, busquei o meu
aprimoramento dentro de um modelo tradicional de assistncia hospitalar e em
pouco tempo me tornei uma enfermeira competente, do ponto de vista da
tcnica provocadora. Eu estava sempre ocupada, fazendo coisas sem parar,
contando o tempo, medindo espaos, atenta a tudo e todos ao meu redor.
Simultaneamente, acontecia, constantemente, alguma aproximao singular
com uma ou outra mulher internada no pr-parto. Eu me detinha s vezes de
mos dadas, outras vezes conversando, ou mesmo mantendo um silncio
respeitoso, com a mulher. Observada por colegas, em muitas ocasies ouvi o
conselho de procurar outra profisso, a psicologia. Eu tinha a impresso de que
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o tempo passava por mim, enquanto eu me disponibilizava para o cuidado com
cada mulher diferente, mas simultaneamente me distanciava aceitando a
indiferena imposta por aquele cotidiano, com a pretenso de assistir todas.
Eu podia falar sobre o meu trabalho, mas estava me tornando incapaz de falar
a partir dele.
Naquele modo de trabalhar no havia espao para ser eu mesma.
Assim, fui me entristecendo e perdendo a vontade de comparecer aos
plantes. O mundo da Maternidade hospitalar, antes protetor, foi me parecendo
cada vez mais hostil e bruto. Comecei a compreender as vrias maneiras de
viver e conviver ali, com seus significados relacionados construo,
banalizao e naturalizao da violncia e da dominao (PEREIRA, 2000).
ramos todos, profissionais e clientes, personagens de uma cena com falas e
atitudes pr-definidas pelo discurso da tradio cientifica que se usava naquele
lugar. O protocolo tcnico significava um fim nele mesmo, justificava os
procedimentos. O parto e o nascimento ganhavam o sentido de meio de vida
dos profissionais. At que certa noite ao retornar para casa, depois de mais um
planto na sala de parto, decidi que no voltaria mais para a maternidade. A
deciso no se restringiu a deixar aquela Instituio, eu quis deixar a prpria
enfermagem obsttrica.
Eu ainda no tinha conscincia de que minha escolha, por abandonar a
enfermagem obsttrica, era uma tentativa desesperada de escapar do que me
parecia ser o destino de todo profissional: tornar-se parte daquele processo de
construo de violncia e dominao citado acima. Eu acreditava que seria
mais feliz num outro mundo de trabalho. Esse passado na Maternidade mudou
inclusive a expectativa sobre meus prprios partos, no fui capaz de parir
naturalmente, me deixei submeter a duas cesarianas.
Desde aquela deciso at hoje, se passaram duas dcadas. Neste
intervalo de tempo, somaram-se graduao em psicologia, os estudos de
psicanlise, e a dissertao de mestrado na rea da Relao Objetal Precoce,
no Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz (ZVEITER, 2003). Mais que o tempo
cronolgico, mais que o conhecimento acumulado, as vivncias que se deram
depois possibilitaram minha compreenso dos fatos daquela Maternidade.
Aps o mestrado tomei outra deciso, decidi mudar radicalmente meu
caminho profissional. Resolvi abandonar o slido emprego de 14 anos, em
17
hemoterapia, e mergulhar na carreira do magistrio superior. Desta maneira,
voltei para a rea da Sade da Mulher, tornando-me professora desta disciplina
na graduao em enfermagem. Assim, se deu um dis-tanciamento daquele
cotidiano no qual eu estava imersa, no passado. Eu fui me descobrindo no
mundo da enfermagem obsttrica de um modo singular, meu. Foi com surpresa
que ouvi algumas antigas colegas enfermeiras obsttricas contarem sobre
outros modos de trabalho. Imediatamente eu quis reaprender sobre a minha
rea, ento, do modo como isso era possvel ali, busquei artigos e livros com
informaes atualizadas.
Em meio a tantas descobertas, a que mais me marcou naquele ano de
2003 foi o convite de uma colega para visitar a Casa de Parto David Capistrano
Filho. Ao caminhar pelo lugar ouvindo tudo o que acontecia l, e mais, como as
minhas colegas trabalhavam com as mulheres, todo o conhecimento
acumulado naqueles ltimos anos fez sentido imediatamente. Diante dos meus
olhos, as pginas de autores carssimos ao meu percurso de pesquisa sobre a
relao precoce entre a me e o beb iam se abrindo. Era como se eu pudesse
tocar no que antes era to abstrato e complicado de compreender.
A partir da comecei a interessar-me cada vez mais pelo trabalho
desenvolvido naquela Casa de Parto. Assim me deparei com os argumentos
contrrios ao seu funcionamento e crticas contundentes ao trabalho das
enfermeiras obsttricas de l. Inicialmente fui dominada por um estranhamento,
era impossvel enunciar o que exatamente me angustiava, eu s podia dizer
que me sentia mal diante das crticas. Ao invs de evita-las parti para uma
tentativa de compreender o que se passava. Eram inmeras publicaes que
surgiam expondo o ponto de vista das organizaes da classe mdica, com a
legislao brasileira sobre a participao das suas especialidades no parto e
nascimento e, sobretudo, questionando a competncia das enfermeiras
obsttricas para assistirem partos fora dos hospitais. O assunto ganhou as
pginas das publicaes da classe mdica1 (CREMERJ, 2005), dos jornais de
grande circulao e a internet, inclusive com notcias falsas sobre problemas
resultantes em bitos ocorridos l, na inteno de influenciar a opinio pblica
1 Dos vinte e oito nmeros disponveis na pgina virtual do Conselho Regional de Medicina do
Rio de Janeiro (CREMERJ) em outubro de 2007, nove contm artigos ou editoriais que questionam, desaprovam e anunciam mortes decorrentes de atendimentos aos partos fora de unidades hospitalares e assistidos por enfermeiras.
18
(GAMA, 2004). Os mdicos, de todas as especialidades, foram sensibilizados
pelas suas entidades de classe com argumentos arbitrrios sobre os partos2
assistidos por profissionais no-mdicos.
Tambm surgiram outras questes que deram contorno objeo sobre
as Casas de Parto como, por exemplo, o problema do espao para treinar
jovens obstetras, obstrudo devido atuao das enfermeiras obstetras (51
CBGO, 2005, p. 6). Outro item apontado pelos contrrios assistncia ao parto
fora das unidades hospitalares foi o custo na manuteno das unidades e o
baixo nmero de atendimentos (JESUS, 2007; Cmara Municipal de Vitria da
Conquista, 2007; 51 CBGO, 2005). Apesar de tantos argumentos, a
competncia e a segurana ainda permaneceram como questes centrais na
polmica, tanto na mdia voltada para o pblico leigo (DINIZ, 2005), quanto no
material que circula nas entidades dos profissionais de sade.
A inaugurao da Casa de Parto David Capistrano Filho acendeu a
discusso no Rio de Janeiro. Os questionamentos sobre o direito de exerccio
de enfermeiras na assistncia ao parto de baixa complexidade, a qualidade da
ateno prestada s usurias, chegaram ao judicirio, como o Inqurito Civil
Pblico nmero 1676/2003 do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro,
com Audincia Pblica em 04 de fevereiro de 2004 (ABEN, 2005). Apesar dos
notveis esforos, daqueles que apregoam a insuficincia de recursos
materiais e a qualificao profissional inadequada nas Casas de Parto, at o
segundo semestre de 2007, a Casa de Parto David Capistrano Filho funcionou
sem registro de bito materno ou neonatal.
Durante o tempo em que estive reunindo dados, colecionando
informaes, observando os fatos, uma afirmao me saltou aos olhos. Foi na
publicao de mais um peridico da classe mdica que o autor do editorial
afirmou categoricamente que No h trabalho cientfico no mundo que
comprove a reduo da mortalidade materna e perinatal com a adoo de
medidas que substituam o atendimento mdico numa instituio hospitalar
tradicional (CREMERJ, 2007, p. 2). Embora esta afirmao tenha sido
publicada sem nenhuma referncia bibliogrfica, ela se vale do falatrio da
2 O CREMERJ apontou como nica justificativa para a implantao das Casas de Parto:
municpios onde no h mdicos, no interior do pas 51 CBGO. Cabe o questionamento sobre o rigor, ou a flexibilizao, das regras para a garantia da boa assistncia s mulheres de cada regio do Brasil (CBGO, 2005, p. 6).
19
tradio cientfica, que reveste o que se diz a partir dela como um discurso de
autoridade. Outro significado que eu apreendi foi a reproduo do clima de
tenso e de disputa de espaos (SILVA, 2006) que se energizou com a
inaugurao das Casas de Parto, lugar de trabalho de enfermeiras obsttricas,
fora das unidades hospitalares.
Repetindo o que foi dito anteriormente, os argumentos sobre uma
suposta falta de qualidade na assistncia de enfermagem obsttrica, prestada
fora dos hospitais-maternidade, so os mais comuns nos discursos de
oposio a esta modalidade teraputica. No entanto, apesar da polmica
gerada pelos Centros de Parto Normal (CPN), especialmente as unidades
isoladas, poucos estudos foram desenvolvidos no sentido de responder aos
questionamentos sobre a assistncia desenvolvida nestes locais (KOIFFMAN,
2006). Este foi o incio de uma problematizao para a presente investigao.
1.2. Situao problema
No contexto de uma pesquisa bibliogrfica extensa (ZVEITER, 2003),
verifiquei que a base da associao do cuidado exercido por mulheres com o
cuidado de enfermagem est nas condies em que as mulheres viveram na
idade mdia europia.
Para a investigao que aqui apresento, empreendi de um levantamento
de alguns autores de enfermagem (HORTA, 1979; SILVA, 2001; TEIXEIRA,
1998; WALDOW, 2001; FIGEIREDO e CARVALHO, 1999), e compreendi que o
cuidado no recebeu um tratamento uniforme na sua interpretao. Este termo
costuma ser tomado simplesmente como uma das aes includas no dia-a-dia
de trabalho nas diferentes especialidades da sade. No entanto, a prtica
assistencial da enfermagem centrada em aes de cuidar. Para Figueiredo e
Carvalho (1999), essas aes so diretamente dependentes do corpo de quem
cuida. Alm disso, as teorias representam a enfermeira como aquela que est
sempre pronta para servir, abnegada, maternal e bastante preparada
20
cientificamente (op. cit., p. 14). Este fato traz desdobramentos no ensino e no
exerccio da profisso, como a problematizao sobre as teorias e prticas que
se dirigem exclusivamente para o cliente, compreendido como quem recebe os
cuidados prestados.
A partir da leitura das diversas publicaes presentes nas referncias
deste estudo, e da minha prpria experincia vivida como enfermeira
obsttrica, estabeleci a seguinte questo norteadora de pesquisa: Como as
enfermeiras obsttricas significam o cuidado que dirigem mulher que d luz
na Casa de Parto?
Essa questo se dirige possibilidade do desvelamento dos modos de
ser das enfermeiras obsttricas que cuidam na Casa de Parto. Outra
possibilidade o desvelamento de algumas facetas do cuidado, como relao
de cuidado enfermeira-mulher que d luz na Casa de Casa de Parto.
Ainda sem uma definio clara do objeto de pesquisa decidi construir um
projeto de investigao cientfica e procurei a Escola de Enfermagem Anna
Nery/UFRJ, onde participei das disciplinas, Mtodos Qualitativos: abordagem
de histria de vida e Fundamentos para uma Filosofia de Enfermagem. Neste
ponto da historiografia desta Tese ainda faltava o mtodo. Voltando a estudar o
marco filosfico3 da minha dissertao de mestrado (ZVEITER, 2003),
compreendi que, agora, a minha inquietao estava novamente dirigida para o
campo da fenomenologia. Porm este agora na enfermagem obsttrica, no
mundo da Casa de Parto David Capistrano Filho, com as mulheres.
Desta maneira o objeto desta pesquisa foi delimitado como: o
significado do cuidado ao ser-mulher-que-d-a-luz-na-Casa-de-Parto. Este
objeto possui carter abrangente porque suas vertentes so os modos de ser
que imprimem singularidade ao cuidado prestado pelas enfermeiras obsttricas
da Casa de Parto e recebido pelas parturientes.
Esta peculiaridade valoriza os envolvidos no parir e no nascer. A
ateno est nas suas significaes singulares, inerentes aos modos de ser
enfermeira obsttrica e ser mulher que d luz na Casa de Parto. Assim, o
3 HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo (1924). Cadernos de traduo, So Paulo:
DF/USP, n. 2, p. 8-39, 1997. _______________. Ser e tempo (1927), v.1. Petrpolis: Vozes. 2001a. 325 p. _______________. Seminrios de Zollikon (1987) (Medard Boss ed.). Petrpolis: Vozes. 2001b. 311 p.
21
cuidado ao parto foi estudado como fenmeno que exige um olhar, que
ultrapasse as concepes objetivistas da realidade dos fatos, valorizando as
significaes das vivncias e do vivido. Dito de outro modo, o parto foi tomado
como um fenmeno que se manifesta e se fundamenta nas experincias
humanas vividas.
O objeto desta Tese anuncia uma Casa de Parto e no um Centro de
Parto Normal (CPN) isolado, embora CPN seja a denominao tcnica da
unidade de sade. Os motivos que determinaram esta opo so dois. O
primeiro repousa no fato de ser este o nome da unidade de sade onde se
desenvolveu a pesquisa. O segundo motivo est na significao geral e
mediana da palavra Casa, que traz o significado de espao familiar, ambiente
conhecido, lugar que acolhe. Portanto, ao anunciar o campo no objeto, me
remeto especificidade do mesmo.
O prximo passo na construo desta investigao foi, em consonncia
com o objeto, estabelecer como objetivo: desvelar o sentido do cuidado de
enfermeiras obsttricas mulher que d luz na Casa de Parto.
1.3. Justificativa e relevncia do estudo
Para justificar a importncia da presente pesquisa, realizei uma reviso
bibliogrfica nas seguintes temticas: ser enfermeira e ser mulher. Inicialmente,
recorri busca bibliogrfica nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Sade
(BVS) e para selecionar as bases de dados escolhi uma ou duas
representantes de cada rea. Na rea das cincias da sade em geral
selecionei o Scientific Electronic Library Online (ScieELO). Na chamada rea
especializada a escolha recaiu sobre a Base de Dados da Enfermagem
(BDENF). Entre os organismos internacionais, tanto o Acervo da Biblioteca da
Organizao Pan-Americana da Sade (PAHO), quanto o Sistema de
Informao da Biblioteca da Organizao Mundial de Sade (WHOLIS) foram
22
selecionados. Na pesquisa via descritores DeCS/MeSH, utilizei o mtodo:
todos os descritores AND. Os descritores utilizados foram: Obstetriz, Parto
Humanizado e Filosofia em Enfermagem. Na ScieELO a busca foi realizada
por palavras.
Na Biblioteca Cochrane, especifiquei as diferentes colees:
The Cochrane Library: Coleo de fontes de boa evidncia em ateno
sade, em ingls. Inclui as Revises Sistemticas da Colaborao
Cochrane, em texto completo, ensaios clnicos, estudos de avaliao
econmica em sade, informes de avaliao de tecnologias de sade e
revises sistemticas resumidas criticamente.
Biblioteca Cochrane Plus: Coleo adicional Cochrane Library,
produzida pela Rede Cochrane Ibero-Americana. Inclui as revises
sistemticas Cochrane, com textos completos traduzidos ao espanhol e
outras fontes exclusivas em espanhol: Bandolera, Gestin Clnica y
Sanitaria, Resmenes de la Fundacin Kovacs, Evidencia en Atencin
Primaria de Argentina, entre outras.
Resumos de Revises Sistemticas em Portugus: Seleo de resumos
de Revises Sistemticas Cochrane, traduzidos ao portugus, que
representa o resultado do trabalho promovido pelo Centro Cochrane do
Brasil.
O PubMed, a verso gratuta do banco de dados Medline. Neste banco
de dados, as palavras chaves usadas foram Nursing care, Obstetrical
Nursing, Humanizing Delivery e Nursing philosophy.
No Banco de Teses da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior (CAPES), do Ministrio da Educao do Brasil, inseri como
assunto de pesquisa: Obstetriz, Parto Humanizado e Filosofia em
Enfermagem.
Passo agora a descrever o percurso de refino da busca por publicaes.
Inicialmente os resultados foram: 3.921 na BVS, 47037 no PubMed e, no
Banco de teses CAPES, 720 teses e 2.410 dissertaes. Combinando os
descritores em duplas os resultados foram: 126 na BVS, 19756 no PubMed e,
no Banco de teses CAPES, 83 teses e 267 dissertaes. Combinando os
http://www.bireme.br/php/decsws.phphttp://cochrane.bvsalud.org/cochrane/user_validation.php?lib=COC&lang=pthttp://cochrane.bvsalud.org/cochrane/user_validation.php?lib=BCP&lang=pthttp://cochrane.bvsalud.org/cochrane/user_validation.php?lib=CCB&lang=pt
23
descritores em trios os resultados foram: 58 na BVS, 66 no PubMed e, no
Banco de teses CAPES, 83 teses e 267 dissertaes.
O critrio de excluso de textos para o estabelecimento da amostra para
leitura dos resumos foi: ttulo de estudo que no se aproxima da temtica o
cuidado mulher em trabalho de parto. Depois desta etapa, exclu os resumos
de estudos que no demonstram aproximao com a temtica, o cuidado
mulher em trabalho de parto.
Assim, estabeleci uma bibliografia potencial, descrita no Apndice A,
cuja maioria dos textos foi lida na ntegra. Das 36 publicaes, 8 Dissertaes
possuem apenas os resumos disponveis on line, destas 4 so de outros
estados, o que impossibilitou a leitura do material na ntegra. Trs artigos
internacionais tm apenas os resumos disponveis nas bases de dados
selecionadas e no Portal de Peridicos CAPES. Uma dissertao e um artigo
foram consultados na biblioteca fsica da Escola de Enfermagem Anna Nery, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ) e, outra dissertao, na
biblioteca central da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). A distribuio destas publicaes est descrita no quadro 1,
apresentado no Apndice A.
Na busca relatada acima, observa-se uma concentrao de publicaes
na regio Sudeste do Brasil, com 14 publicaes, ou defesas, no estado Rio de
Janeiro, especificamente na capital. O estado de So Paulo figura com 4
artigos e 1 dissertao. Quanto distribuio mundial, os artigos foram
publicados em um peridico americano e trs ingleses.
As duas revises sistemticas foram publicadas pela Biblioteca
Cochrane, tm interesses semelhantes e uma autora em comum, Ellen D.
Hodnett, da Lawrence S. Bloomberg Faculty of Nursing University of Toronto -
Canad. A Continuidad de los cuidadores para la atencin durante el
embarazo y parto (HODNETT, 2008) teve sua 1 publicao em 1996 e ltima
reviso em 1998. Apoyo continuo para las mujeres durante el parto
(HODNETT, HOFMEYR, SAKALA, 2008) teve sua primeira verso publicada
em 1995, com a mais recente reviso em 2007. Estas revises sistemticas,
somadas, configuram um universo de 15.806 mulheres e 18 estudos clnicos.
Outro dado importante que, ambas consideraram os resultados de
populaes de alta, mdia e baixa renda, em diversos pases. Os autores das
http://bloomberg.nursing.utoronto.ca/home.htm
24
duas revises sistemticas destacam o apoio contnuo, como elemento que
influencia, tanto na gestao quanto no parto e puerprio, positivamente os
resultados da assistncia. A dissertao defendida no Cear, Narrativas das
mulheres sobre o parto: compreenso das experincias e das necessidades de
cuidado (MOREIRA, 2008), baseou-se na hermenutica de Paul Ricoeur, e
tambm evidenciou a importncia do acompanhamento de uma mesma pessoa
durante todo processo de parto.
As duas Dissertaes defendidas em 2008, no Rio de Janeiro, so da
Faculdade de Enfermagem da UERJ e tm como campo de pesquisa, a Casa
de Parto David Capistrano Filho. A Vivncia do acolhimento da mulher
encaminhada da Casa de Parto David Capistrano Filho unidade de
referncia (BRANDO, 2008) teve como referencial terico a Teoria da
Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural de Madeleine Leininger. Os
resultados marcam a transferncia como fonte de choque cultural. Mais do que
isso, a pesquisa mostrou que a rotina assistencial da unidade de referncia
continua fora das diretrizes de acolhimento do Sistema nico de Sade (SUS).
A outra dissertao de mestrado, Estratgias de luta das enfermeiras
obsttricas para manter o modelo desmedicalizado na Casa de Parto David
Capistrano Filho (AZEVEDO, 2008), com referencial terico de Pierre
Bourdieu. Seus resultados evidenciam a eficincia das estratgias para a
manuteno do modelo humanizado na Casa de Parto. Outro resultado
interessante o prestgio profissional, alcanado graas ao desenvolvimento
das habilidades, que proporcionado pelo campo.
Com o mtodo Histria de Vida, Moura (2008) desenvolveu, no Piau, a
dissertao intitulada Vivncias de mulheres sobre o processo parturitivo:
contribuies para a assistncia de enfermagem. Os resultados desta
pesquisa denunciam a violncia institucional e a impossibilidade de tomar
decises, embora reconheam o perodo gravdico-puerperal como nobre da
vida da mulher.
Os trs artigos publicados no mesmo ano de 2008, foram produzidos no
Rio de Janeiro, embora um deles esteja publicado numa revista gacha. Dois
foram produzidos por pesquisadores da UERJ e outro resultado da
colaborao entre uma pesquisadora da UERJ e outra da UFRJ. Um deles
tratou do conflito cultural dos modelos e prticas que envolvem a assistncia ao
25
parto no SUS, de acordo com o referencial terico de Gramsci. Em seus
resultados a enfermagem obsttrica figura como agente de transformao da
ideologia e da hegemonia presentes nos conflitos. Outro artigo fundamentou-se
na Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural de Madeleine
Leininger, e concluiu que o cuidado desenvolvido na Casa de Parto David
Capistrano Filho baseia-se em prticas de educao em sade. O terceiro
artigo, publicado em 2008, utilizou o pensamento de Marie-Franoise Collire e
verificou que as enfermeiras obsttricas precisam renovar seu papel
profissional, individual e social.
Em 2007, as duas dissertaes foram produzidas no Mestrado em
Enfermagem da UERJ (COSTA, 2007; QUITETE, 2007) e a tese fruto do
Doutorado em Enfermagem da UFRJ (PEREIRA, 2007). Partes dos resultados
dessas pesquisas foram publicadas, na forma de artigos, em 2008. Um deles, o
artigo ingls Nurses' views of factors that help and hinder their intrapartum
care (SLEUTEL, SCHULTZ e WYBLE, 2007) mostra os sentimentos das
enfermeiras que trabalham no campo da assistncia direta ao parto. Esses
sentimentos variam desde intenso orgulho e prazer, at desiluso, insatisfao
e angstia.
A dissertao do ano de 2006, Concepes de tecnologia de cuidador
de enfermagem obsttrica: estudo sociopotico (TORRES, 2006), revelou que
as enfermeiras obsttricas tm uma concepo de inovao tecnolgica, para o
cuidado de enfermagem obsttrica.
O artigo Ao interativa enfermeira-cliente na assistncia obsttrica
(RODRIGUES, SILVA e FERNANDES, 2006), tem como autoras duas
Professoras Doutoras da Universidade Federal do Cear e uma Professora
Doutora da Universidade de Fortaleza e est publicado na revista da Faculdade
de Enfermagem da UERJ. Neste artigo verificou-se que a assistncia de
enfermagem foi eficaz no atendimento das necessidades fsicas e psicossociais
das usurias. O artigo Atuao da enfermeira obsttrica na poltica pblica de
humanizao ao parto no Rio de Janeiro (PEREIRA, 2006), publicado numa
revista mineira, tem como autora uma professora da Faculdade de
Enfermagem da UERJ. O artigo foi elaborado com os resultados preliminares
da investigao que a autora estava desenvolvendo, para a sua Tese de
doutorado (PEREIRA, 2007). Neste artigo ela evidenciou a contradio entre o
26
discurso de defesa da Poltica de Humanizao e a prtica assistencial,
fortemente influenciada pelo modelo biomdico prevalente.
Os outros artigos so de reflexo terica. Fundamentos
fenomenolgicos para un cuidado compreensivo de enfermera (RIVERA e
HERRERA, 2006) est publicado numa revista catarinense, e suas autoras so
duas professoras da Universidade do Chile. O foco do artigo a correlao
entre a hermenutica compreensiva de Dilthey e a fenomenologia de
Heidegger. Em suas concluses est a enfermeira, como ser humano que tem
as mesmas caractersticas de quem ele se prope a cuidar. Spirituality at the
beginning of life (HALL, 2006) um artigo que se prope a refletir sobre a
natureza spiritual do feto. A autora aponta valores atribudos gestao, ao
nascimento e ao poder da relao espiritual que as mulheres desenvolvem com
seus fetos, como elementos a serem considerados pelas enfermeiras que delas
cuidam. Centro de parto normal e assistncia obsttrica centrada nas
necessidades da parturiente (MACHADO e PRAA, 2006) um artigo
centrado na fundamentao da proposta de substituio do termo assistncia
humanizada ao parto, por assistncia obsttrica centrada nas necessidades da
parturiente.
Em 2005, a dissertao Parto natural, normal e humanizado: a
polissemia dos termos e seus efeitos sobre a ateno ao parto (DUTRA, 2005)
mostrou que, essa polissemia tem consequncias diretas no modo como o
parto assistido. O resultado verificado so limitaes para as transformaes
almejadas pela Poltica de Humanizao. Os dois artigos ingleses,
selecionados neste ano, se reportam aos dilemas ticos do acompanhamento
de mulheres em trabalho de parto. Um deles tem seu foco no modo de
aproximao das enfermeiras com as parturientes, numa abordagem
fenomenolgica (GOLDBERG, 2005). O segundo (CARLTON, CALLISTER e
STONEMAN, 2005), trata do acompanhamento das parturientes no processo
de deciso entre a assistncia desmedicalizada e as alternativas
medicalizadas. O artigo brasileiro deste ano (CASTRO e CLAPIS, 2005)
evidencia que as enfermeiras se integram ao parto como um processo e no
como um evento.
Duas teses de 2004 foram selecionadas, ambas do Doutorado da Escola
de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Uma delas (FERNANDES, 2004) descreveu
27
o perfil assistencial da Casa de Parto da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal de Juiz de Fora e discutiu a percepo das usurias
sobre a assistncia que l receberam. A outra Tese (WOLFF, 2004) descreveu
as relaes diretas entre cuidado e humanizao da assistncia, e no-cuidado
e no humanizao desta. Figueiredo e cols. (2004) so autoras de um artigo
sobre questes relativas violncia na assistncia ao parto. Progianti e
Vargens (2004) demonstraram sua preocupao com relao s bases tericas
prprias da enfermagem obsttrica, num artigo centrado na definio das
tecnologias no invasivas de cuidado de enfermagem obsttrica. Parte da
monografia do curso de Especializao em Enfermagem Obsttrica e Neonatal
foi publicada sob a forma de artigo (SILVA e CLAPIS, 2004). Neste, os
resultados da investigao mostram que o contato precoce entre a me e o seu
beb, na sala de parto, reduz a ansiedade materna. Cabe ressaltar que,
verificou-se a interferncia do tipo de parto no vinculo inicial.
No ano de 2003, apenas a dissertao intitulada Partejar a enfermeira
e a humanizao do cuidado de enfermagem (SILVEIRA, 2003) foi
selecionada. Com base na teoria humanista de Paterson e Zderad, evidencio-
se que as enfermeiras reconheciam a necessidade de reestruturao do
servio e mudanas de atitudes profissionais. A sugesto da autora foi o
preparo das enfermeiras para o cuidado humanizado parturiente.
Na sua dissertao, Lambert (2001) indicou a valorizao, por parte das
purperas, do acompanhamento contnuo das enfermeiras durante o processo
do parto. Ao mesmo tempo, essas enfermeiras mostraram-se satisfeitas com o
valor atribudo pelas mulheres, por elas assistidas. No mesmo ano, Pereira
(2001) utilizou a dialtica marxista em sua dissertao. As concluses da
pesquisa apontam a prxis das enfermeiras como um resultado da contradio
entre a defesa da poltica de humanizao e a influncia do modelo biomdico.
Este mesmo tema voltou em outro artigo seu, cinco anos depois (PEREIRA,
2006).
O artigo intitulado Technology and family-centered perinatal care:
conflict or synergy? (GORDIN e JOHNSON, 1999) traz uma discusso
interessante acerca dos efeitos da alta tecnologia para os cuidados sade
perinatal. As autoras observam que, houve um grande salto no
desenvolvimento do aparato tecnolgico e dos cuidados centrados na famlia,
28
em paralelo, nos anos 1980 e 1990. Algumas recomendaes devem ser
destacadas do texto so elas: 1) ao cuidar importante saber que cada
paciente responde de maneira singular ao uso da tecnologia; 2) a tecnologia
deve apoiar a relao entre quem cuida e as famlias dos pacientes, mas nunca
definir esta relao.
Com a dialtica, Luduvice (1997) fez uma anlise da relao que se
estabelece entre a parturiente e a enfermeira obsttrica. Revelou-se o poder
sutil que a enfermeira exerce sobre a parturiente. Alm disso, foi possvel
analisar o quanto o padro da racionalidade cientfica moderna pode sufocar a
expresso das suas subjetividades.
Em 1996, um artigo intitulado Midwifery, birth centers, and health care
reform (ERNEST, 1996) analisou a assistncia obsttrica nos Estados Unidos.
A autora previu um futuro de colaborao entre enfermeiras-parteiras4,
mdicos, enfermeiras e centros de nascimento.
O artigo mais distante no tempo intitula-se Assistncia de enfermagem
cliente obsttrica: a busca do significado (OLIVEIRA, 1994). Nele, a autora
relata uma investigao na qual utilizou a fenomenologia para buscar a
aparncia, a essncia e o significado da prtica de enfermeiras que assistiram
mulheres no ciclo gravdico-puerperal. Os resultados da pesquisa apontam
possibilidades para repensar a prtica das enfermeiras.
Com a inteno de oferecer uma viso geral do campo de pesquisas, no
qual esta investigao se insere, apresento a seguir, um grfico. Neste, esto
representadas as pesquisas da bibliografia potencial distribudas de acordo os
seus sujeitos, bem como os textos de reflexo terica.
4 Minha traduo livre.
29
Existe uma diferena entre o total de textos da bibliografia potencial, 36,
e o total de estudos distribudo segundo seus sujeitos de pesquisa, 38. Isto
acontece porque alguns estudos tiveram mais de um tipo de sujeitos. Dos 36
estudos, 1 ouviu os mdicos, 15 se referem as enfermeiras como sujeitos, 12
consideram as usurias neste lugar, 1 colocou os gestores como sujeitos. No
conjunto de textos selecionados, 9 so de reflexo terica. A maioria dos
estudos de enfermagem e sobre a enfermagem. Ancorada nestas produes
procuro avanar, investigando o cuidado e a subjetividade no processo
parturitivo no cenrio de uma Casa de Parto, no Rio de Janeiro.
1.4. Contribuies do estudo
Em consonncia com minha prpria experincia vivida como enfermeira
obsttrica e me, apresento o relatrio de uma investigao que buscou a voz
das enfermeiras da primeira Casa de Parto do Rio de Janeiro. Creio que os
resultados desta pesquisa contribuem para a consolidao do modelo de
assistncia ao parto e nascimento presente na Casa de Parto. Alm disso, esta
pesquisa se junta aos argumentos para a ampliao do nmero de unidades,
usurias; 12
enfermeiros/as; 15
mdicos/as; 1
reflexo terica; 9
gestores; 1
Grfico 1: Distribuio da bibliografia potencial de acordo com os sujeitos das pesquisas e artigos de reflexo terica.
30
do modelo de Casa de Parto extra-hospitalar, na rede pblica e sua
implementao na rede privada.
A pesquisa aborda a opo das mulheres da regio adstrita da Casa de
Parto por um modelo de assistncia ao parto e nascimento diferente do
oferecido nos hospitais da rede pblica. Outra contribuio importante
relaciona-se com a prpria enfermagem, uma vez que esta investigao tece
com os relatos das enfermeiras obsttricas da Secretaria Municipal de Sade e
Defesa Civil as possiblidades de compreenso e interpretao para
desvelamento do fenmeno. Desta forma, no apenas a prtica assistencial
da enfermagem obsttrica carioca que est em evidncia, mas um modo de
cuidar da enfermagem obsttrica do Brasil.
A fenomenologia tem potencial para contribuir com o conhecimento, o
desenvolvimento de tcnicas produtoras e o pensamento da enfermagem
obsttrica, portanto, considero que os resultados desta pesquisa oferecem
subsdios para a Academia. Esta representa fonte de informaes para a
graduao e a ps-graduao, Lato e Stricto Sensu, em enfermagem, a partir
do Ncleo de Pesquisa em Enfermagem em Sade da Mulher (NUPESM) da
EEAN/UFRJ.
31
II. SOLO DE TRADIO
A histria da verdade do poder prprio aos discursos aceitos como verdadeiros est totalmente por ser feita.
(MICHEL FOUCAULT, Microfsica do poder.)
2.1. Parto e Nascimento: fatos da tradio na obstetrcia
Numa leitura atenta ao solo da tradio, na esteira da histria do que se
entende por qualidade no parto, possvel acompanhar o processo que levou
este evento fisiolgico, para o interior do sistema mdico de atendimento aos
processos patolgicos, que o hospital.
Apoiados em Plato, os pensadores da Igreja medieval estabeleceram a
dissociao entre o esprito e o corpo. Este passo filosfico foi fundamental
para que, a diferena entre os cuidados com o corpo e a alma fosse fundada.
Como consequncia direta, o toque das mos foi substitudo pelo discurso
(LIMA e cols., 2008).
Com a ideia de que o parto acontece em meio a muito sofrimento fsico,
e est fortemente associado a danos e riscos, estabeleceu-se seu aspecto
animalesco, monstruoso (DINIZ, 2005). Uma das bases desta ideia uma
leitura tendenciosa das escrituras bblicas que conduziram idealizao das
dores do parto como desgnio divino para expiao da culpa pelo pecado
original. Em 1484, foi publicado O Martelo das Feiticeiras5, deflagrando-se,
assim, a era da caa s bruxas que se estendeu do sculo XV ao sculo XVIII.
Este manual dos inquisidores da Igreja Catlica classificou as parteiras como
praticantes da mais alta forma de bruxaria (MITFORD6 apud. CAPTULO,
1998).
5 No original: Malleus Maleficarum, traduzido do latim para o ingls como The Hammer of
Witches. Traduo livre minha, do ingls para o portugus.
6 MITFORD, J. The American Way of Birth. New York: Penguin, 1992.
zxczxc
32
Todas as artimanhas atribudas s bruxas, sortilgios, encantamentos, adivinhaes, prticas de seduo, voos noturnos, desembocam no ato carnal da juno de corpos e sexos ou na gerao conseguinte. (ZORDAN, 2005, p. 333)
A condenao morte na fogueira das bruxas teve como um dos seus
possveis objetivos a busca e a extino das mulheres que possuam um
conjunto de saberes sobre a vida e a morte. interessante observar que, neste
mesmo perodo, houve um crescimento do nmero de mdicos treinados pelas
Universidades controladas pela Igreja. Os homens, assim treinados para a
prtica da medicina, testemunhavam nos tribunais da Inquisio. Esses
tribunais condenaram morte na fogueira mais de 24 mil parteiras acusadas de
bruxaria (ROOKS7 apud. CAPITULO, 1998). Enquanto o saber acadmico se
desenvolvia sob os cuidados eclesisticos, a magia das bruxas era descrita no
contexto das inumerveis tarefas da rotina domstica, especialmente no
resultado da experincia vivenciada no ato de cozinhar (ZORDAN, 2005).
Essas mulheres eram parteiras capazes de aliviar as dores do parto e, por este
motivo mereceram os suplcios determinados para todos os que se voltam
contra os desgnios divinos (CARMANN, 2005). O medo da acusao de
bruxaria levou a prtica das parteiras s sombras. Essas mulheres passaram a
trabalhar escondidas do poder institucionalizado, o que pode ser apontado
como uma das causas do retardo no desenvolvimento desta prtica como
profisso (ROOKS apud. CAPITULO, 1998). Conclui-se que um dos resultados
desse processo sistemtico de perseguio e condenao das parteiras foi o
desaparecimento de documentos, textos ou relatos de experincia. Essa
ausncia de registros condenou o exerccio dos cuidados prestados s
mulheres e a seus bebs por outras mulheres, excluso do campo das
cincias da sade, em seu nascedouro.
Continuando o percurso histrico do atendimento ao parto, encontra-se
em 1588, no incio do perodo Industrial europeu, a inveno mdica de um
instrumento para a interveno no parto: o frceps. Apesar de algumas
parteiras utilizarem colheres como facilitadoras do parto, foi a criao do
frceps que marcou a entrada dos cirurgies barbeiros na prtica do parto
7 ROOKS, J. Midwifery and Childbirth in America. Philadelphia: Temple University Press, 1997.
33
(MITFORD apud. CAPITULO, 1998). Mesmo tendo se iniciado no sculo XVI,
foi nos sculos XVIII e XIX que a atividade mdica, no campo do parto, se
legitimou. Para isso, o discurso de exaltao da maternidade somou-se ao
frceps, como smbolo no processo de aceitao da obstetrcia mdica como
uma disciplina tcnica cientfica (LIMA e cols., 2008). Alm de ganharem o
status de uma classe superior de membros do Royal College of Physicians, os
cirurgies barbeiros garantiam, com o uso privativo do novo instrumento de
parto, uma intermediao entre seus corpos e os corpos femininos (MITFORD
apud. CAPITULO, 1998). Desta forma, consolida-se em definitivo a ideia de
que o parto uma situao crtica, perigosa (LIMA e cols., 2008).
Algumas iniciativas ilustram o modo como, durante o sculo XIX, o
discurso da racionalidade mdico-cientfica foi penetrando na intimidade dos
lares: 1) oferecendo ajuda como em 1816, quando um mdico ingls, John B.
Davis, organizou um grupo de visitadores para ir s casas e entregar folhetos
com algumas orientaes sobre cuidados importantes para as crianas8; 2)
usando tticas de seduo como na Frana, onde, em 1854, o prefeito de
uma cidade ofereceu uma premiao para as mes que conseguissem manter
a vida do filho por um ano (ROSEN, 1994, p. 272).
No sculo XIX, o parto ocorria nos aposentos do casal, na presena do
mdico no caso de uma famlia rica , ou com a ajuda de uma parteira por
tradio, pudor, ou economia. Parir num hospital era um sinal de que a me
no tinha recursos ou de que teria sido abandonada pelo pai da criana
(PERROT, 1993).
Nos anos 40 do sculo XIX, um mdico obstetra escocs aplicou
anestesia inalatria em uma mulher durante o parto. Esta tcnica de alvio da
dor foi rapidamente difundida, de forma que em 1853 a Rainha Victoria da
Inglaterra recebeu clorofrmio durante o parto de seu oitavo beb. Este
obstetra, James Young Simpson, escreveu naquela poca que os efeitos da
anestesia sobre o tero e os msculos abdominais da parturiente, bem como
sobre o beb ainda no era preciso (CARMANN, 2005).
8 Em 1817, Davis publicou o livro Uma Investigao Rpida sobre Algumas das Principais
Causas de Mortalidade de Crianas, com a Inteno de Ajudar a Melhorar o Estado da Gerao Crescente quanto a Sade, Moralidade e Felicidade (ROSEN, 1994, p. 272).
34
A epidemiologia nascia com o desenvolvimento da estatstica e
possibilitava a constatao de que, alm dos numerosos acidentes de parto,
que resultavam no falecimento da me e/ou do beb, o crescimento da
populao em determinados Estados europeus estava em franco declnio9
(ROSEN, 1994, p. 271). Este conjunto de acontecimentos sociais acabou por
estabelecer uma mudana radical no modo como as pessoas pensavam acerca
do nascimento. Ocorreu, ento, uma lenta tomada de conscincia sobre o
beb10 e uma profunda transformao do nascimento, domnio do que era
privado, em natalidade, assunto de Estado (PERROT, 1993).
Assim, o parto e o cuidado ao RN, foram tomados como situaes de
risco para a sade da mulher e da criana, onde os recursos mdicos eram
indispensveis por conferirem margem de segurana ao evento. As
competncias tidas como naturalmente femininas, tornaram-se parte do campo
do saber mdico. Fica nas entrelinhas da histria da enfermagem o fato de que
o cuidado exercido por mulheres foi englobado por uma profisso, mas
permaneceu sombra da teraputica. De um ponto de vista feminista, pode-se
dizer que a racionalidade de uma medicina acadmica, exercida inicialmente
apenas por homens, encontrou os meios para suplantar os conhecimentos
transmitidos de modo tradicional pelas parteiras, descrevendo-os como
primitivos (DIAS, 1993).
Na aurora do sculo XX, o hospital surgiu como alternativa solidria da
cincia a este evento tpico da condio feminina (DINIZ, 2005). No ambiente
hospitalar que comeava a receber parturientes, foram institudas algumas
experincias como sedao completa e uso de alucingenos associado a
instrumentos, para minimizar os efeitos danosos do parto. O que ocorreu, no
entanto, foi que todo o aparato tcnico e farmacolgico empregado no reduziu
9 Em 1870, a Frana foi derrotada pelo exrcito da Prssia. Nesta ocasio, alguns estudiosos
franceses encontraram no controle de natalidade uma possvel explicao para a derrota: os soldados do exrcito francs no eram fortes nem astutos o suficiente, por serem oriundos de famlias de baixo nvel econmico e intelectual. Enquanto essas famlias, pobres e ignorantes, procriavam muito, as famlias burguesas praticavam a anticoncepo, na inteno de se dedicarem s viagens e prazeres urbanos, o que no seria um projeto patritico de vida (MIRANDA, 1996).
10 No sculo XIX, os franceses comearam a usar a palavra inglesa baby para designar a
criana de poucos meses, o que nos sculos XVI e XVII designava a criana em idade escolar. A partir de ento baby foi transformado para o francs bb que passou ao modo definitivo de designar as crianas bem pequenas (ARIS, 1981 [1973], p. 45).
35
os problemas, ao contrrio, tornou as taxas de morbimortalidade materna e
perinatal muito mais altas. Hoje, mais de um sculo e meio depois, os possveis
efeitos da anestesia sobre o processo de parto e o neonato continuam
preocupando anestesiologistas, mdicos obstetras e pacientes (CARMANN,
2005). Dito de outro modo, a qualidade das intervenes farmacolgicas para o
alvio da dor do parto, est em discusso tanto no campo das publicaes
cientficas (TORRES, 2006; SALEM, 2007; THEW e PAECH, 2008), quanto
naquelas dirigidas ao pblico em geral (A pior dor do mundo? Esquea, 2008;
BELLO, 2008).
Na segunda metade do sculo XX, o atendimento ao parto j contava
com novas tecnologias, compreendidas como mais seguras, na lgica mdico-
hospitalar. Assim, o processo parturitivo passou por uma progressiva
acelerao, atravs do uso rotineiro das solues venosas com ocitocina e
cesariana eletiva (PEREIRA e MOURA, 2008). Sob os auspcios da cirurgia, a
anestesia tomou o lugar central no cenrio de intervenes mediadas pelo uso
de medicamentos, espraiando-se por diversos pases. Mesmo sem qualquer
evidncia cientfica consistente (DINIZ, 2005, p. 629), o parto atendido nos
hospitais passou a ser compreendido como mais seguro. Neste mesmo perodo
outras modalidades de assistncia no-mdicas, bem como o atendimento ao
parto fora dos hospitais, passaram ilegalidade.
2.2. Na tradio da obstetrcia, a mulher e o recm-nascido como
objetos
O caminho histrico das sociedades cientficas ocidentais foi
progressivamente supervalorizando a tecnologia sobre a natureza, o que inclui
os entendimentos sobre a sade. A partir da segunda metade do sculo XX a
lgica da patologia absorveu o fenmeno fisiolgico do parto no hospital e o
modelo hospitalar passou a dominar o campo do parto. Instaurou-se uma
tradio de cuidados obsttricos hospitalares, legitimados por protocolos, com
muitas intervenes durante o pr-parto e o parto, a despeito das evidncias
36
cientficas que apontam seus efeitos danosos (PEREIRA e MOURA, 2008). A
consequncia deste fato a srie de rotinas a que as mulheres passaram a
serem submetidas, a chamada cascata de procedimentos (MOLD e STEIN11
apud. DINIZ, 2005), que se inicia na internao e acaba por demandar um
esforo extra ao que intrnseco do fenmeno fisiolgico. No Brasil, alm da
infuso de ocitocina endovenosa, amniotomia, posio supina e imobilizao
na mesa de parto, existem a rotina da episiotomia, e at mesmo a extrao dos
bebs com frceps nas primparas (DINIZ, 2005).
interessante observar que, fora dos hospitais do SUS, grande parte
das clientes dos servios privados so poupadas. A estas mulheres
concedida, ou sugerida, a possibilidade da cesariana, como modo de evitar o
sofrimento do parto. Diversos autores (BELIZN, BARROS e ALEXANDER,
199912; POTTER e cols., 200113; BARROS, VAUGHAN, VICTORA, HUTTLY,
199114 apud. SILVEIRA e SANTOS, 2004) concordam que na atualidade, a
cesariana tem sido aceita com uma maneira natural de dar luz. Alm disso,
esta cirurgia assumiu o semblante de um procedimento mdico seguro, e
confortvel para a me. O significado atual da cesariana o de cuidado de
melhor qualidade, tanto para os profissionais de sade, quanto para as
mulheres e a sociedade (op. cit., p. 231). Os motivos para a indicao da
cesariana, na rede privada, so conhecidos como fatores no mdicos e so
mais frequentes na assistncia s clientes de nvel social elevado (SILVEIRA e
SANTOS, 2004). Alm da influncia do que o mdico considere por
conveniente sobre o que possa ser da preferncia da mulher, existe a
impresso de que toda situao cirrgica estar sempre sob total controle do
profissional. Sob este ltimo aspecto possvel refletir sobre a noo de
qualidade na lgica do atendimento mdico-hospitalar ao parto. A indicao de
cesarianas, na rede privada mostra-se fortemente vinculada ao que seria uma
medida preventiva de problemas mdico-legais pelo que possa ocorrer no parto
11
MOLD, J. & STEIN, HF. The cascade effect in the clinical care of patients. New England Journal of Medicine. v. 314, n. 8. p. 512-14. 1986. 12
BELIZN JM, ALTHABE F, BARROS FC, ALEXANDER S. Rates and implications of caesarean sections in Latin America: ecological study. BMJ 1999; 319: 1397-402. 13
POTTER JE, BERQU E, PERPTUO IHO, LEAL OF, HOPKINS K, SOUZA MR, et al. Unwanted caesarean sections among public and private patients in Brazil: prospective study. BMJ 2001; 323:1155-8. 14
BARROS FC, VAUGHAN JP, VICTORA CG, HUTTLY SRA. Epidemic of caesarean sections in Brazil. Lancet 1991; 338:167-9.
37
(op. cit.). Aqui o parto seguro aquele em que o mdico tem o maior controle
sobre cada elemento do processo. Esta situao confere uma suposta garantia
de bons resultados, tanto para o mdico, quanto para a mulher. Outro dado
importante, verificado entre as mulheres que so atendidas com cesarianas,
a possibilidade daquelas de maior nvel cultural negociarem sua escolha por
um parto sem dor e supostamente sem riscos (FABRI e cols., 2002). Do
mesmo modo, as mulheres de nvel scio econmico mais baixo tendem a
adotar o padro de comportamento das de nvel mais alto, acarretando uma
elevao das taxas de cesarianas entre elas tambm (SILVEIRA e SANTOS, 2004).
As intervenes tpicas do atendimento hospitalar ao parto aumentam as
indicaes de cesarianas, como consequncia das distcias produzidas pela
interferncia no processo fisiolgico do parto e nascimento. As cesarianas
promovem maior incidncia de separao precoce entre a me e seu beb e
dificultam a instalao da amamentao precoce. Observa-se uma elevao no
nmero de prematuros, elevao dos custos hospitalares por internao
materna e neonatal e alto risco para ocorrncia de outras complicaes na
sade nos recm-nascidos e suas mes. Alm disso, as mulheres submetidas
a cesarianas esto mais sujeitas a problemas nas gestaes posteriores
(BRASIL, 2007). O uso de tecnologias mdico-hospitalares nos partos conduziu
o campo do atendimento a este fenmeno fisiolgico uma situao paradoxal,
uma vez que provoca um aumento da morbimortalidade materna e neonatal
(DINIZ, 2005).
Apesar de estarem em consonncia com os fundamentos tericos das
cincias da sade e serem o campo de pesquisa que gera os resultados de
muitas publicaes cientficas, as prticas hospitalares atuais refletem os
problemas da formao tecnicista voltada para uma rpida reproduo de
conhecimento. Os profissionais de sade, em geral, carecem de uma formao
bsica que fornea subsdios para o entendimento das questes sociopolticas
envolvidas nos problemas de sade da populao. Sem esta base, os
profissionais adotam a tendncia de negar a responsabilidade social de
multiplicar educao em sade. As aes passam a ser cada vez mais
pontuais. Tambm se pode observar uma rejeio ao envolvimento em
atividades que demandem um reconhecimento do direito de cidadania na
populao assistida. Os aspectos conceituais e metodolgicos que funcionam
38
como pano de fundo para a atividade profissional em sade tambm no
ganham relevncia nos cursos de graduao em geral, o que cria srios
entraves para o envolvimento em atividades de pesquisa aliadas prtica
clnica. Este conjunto de problemas resulta na negligncia de vrios itens das
recomendaes da WHO (1996). Citam-se, como exemplo, algumas
observaes acerca da participao efetiva da me imediatamente aps o
nascimento, na proteo trmica do beb e na amamentao precoce, que
acabam no sendo seguidas, por no serem reconhecidas como importantes.
As recomendaes voltadas para os aspectos psquicos no se baseiam em
dados numricos, portanto, no fazem parte do conjunto de informaes que
os profissionais se habituaram a ler e considerar. A formao tecnicista acaba
criando a tendncia para escolher mtodos artificiais e mensurveis.
Para Diniz (2005, p. 629), o movimento conhecido como humanizao
do parto15 existe em outros pases, alm do Brasil, e tem como meta a
qualidade da interao entre os cuidadores e a mulher em trabalho de parto e a
des-incorporao (ibidem) de tecnologias que provoquem danos. No Brasil, as
aes do Governo para a melhoria da ateno obsttrica se intensificam a
partir de 1998. Precisamente, a limitao do nmero de cesarianas a serem
pagas pelo SUS e a instituio do parto normal assistido pela enfermeira
obsttrica foram muito importantes (PEREIRA e MOURA, 2008). A partir de
2000, a Poltica de Humanizao do Parto e Nascimento incluiu aspectos
relacionados a mudanas na cultura hospitalar, centralizao da assistncia
nas necessidades das usurias e suas famlias, modificaes na estrutura
fsica das unidades e, sobretudo, na atuao profissional (DIAS e
DOMINGUES, 2005). Alm disso, a autonomia da mulher, no processo e seus
direitos como cidad, passou a ser entendida como base do cuidado sade
da mulher e criana, no ciclo gravdico-puerperal. Especificamente no Rio de
Janeiro, desde a dcada de 1990, esta poltica est atrelada estratgia da
categorizao do atendimento ao parto, onde as enfermeiras obsttricas
atendem aos partos classificados como baixo-risco. Este fato movimentou o
terreno slido das prticas e rotinas hospitalares, provocando forte conflito de
competncias entre as categorias mdica e de enfermagem (op. cit.).
15
Grifos da autora do artigo.
39
Nas entrelinhas desta discusso, possvel ler com a fenomenologia os
aspectos das experincias vividas no campo do parto e nascimento, so eles a
temporalidade e o relacionamento. A assistncia prestada mulher numa Casa
de Parto pode ser estudada como um fenmeno que precisa de outro olhar,
que ultrapasse as concepes objetivistas. Entendo que, para esta pesquisa, o
conceito de humanizao do parto est conectado ao que possa ser entendido
como qualidade e competncia no atendimento ao mesmo. Dito de outro modo,
a humanizao do parto como um fenmeno subjetivo que se expressa e se
fundamenta nas experincias vividas pelas pessoas.
2.3. Parto e Nascimento: os fundamentos do cuidado de
enfermagem obsttrica mulher e ao seu beb
Na teoria do cuidado transpessoal de Watson (1988), o cuidado
denominado um evento, ele ocorre num ponto do tempo e do espao e, nele, o
que a enfermeira e o paciente experimentam e percebem, na presena um do
outro, possibilita a presena espiritual deles. Nesta teoria, o cuidado
favoreceria uma unio plena, onde os campos de ambos estariam sendo
compartilhados, numa ideia de intersubjetividade.
Figueiredo e Carvalho (1999) identificaram nas teorias de enfermagem
uma tendncia: geralmente o cuidado pensado a partir do que ocorre com o
paciente/cliente, desconsiderando o que ocorre em quem cuida. Na teorizao
desenvolvida por elas, o cuidado discutido a partir do corpo da enfermeira.
Numa profisso onde o cuidado ocupa uma posio central nas teorias,
importante refletir sobre o cuidado de enfermagem em geral, mas tambm
sobre cada situao de cuidado em particular. A partir da filosofia
heideggeriana compreende-se que o cuidado no algo que possa ser tomado
como exclusividade de nenhuma profisso. O cuidado est ligado natureza
humana. (HEIDEGGER, 2001a [1997]).
40
Coloca-se aqui uma questo interessante, que j foi por mim estudada
(ZVEITER, 2003). A partir do cuidado exercido profissionalmente, podem ser
facilitadas as vias para que o cuidado que j est presente na me possa se
manifestar. No local onde ocorre o parto, na maioria das vezes, cuida-se do
recm-nascido seguindo todo o protocolo da tradio cientfica, que descreve o
beb a ser cuidado. Neste mesmo local, cuida-se da me, tambm descrita
rigorosamente pela mesma racionalidade. Porm, existe algo mais no agora
deste cuidado, embora ele tenha como cenrio um protocolo tcnico, possa ser
desenvolvido de modo impessoal e em momentos diferentes, talvez, com a
mesma eficcia teraputica. Isso me faz pensar que ele seja um cuidado do
cuidado (op cit.). Trata-se especificamente da situao vivida no atendimento
ao parto e nascimento, no cuidado de enfermagem obsttrica. Uma atividade
profissional pr-ocupada em cuidar para que o cuidado materno possa se
manifestar. O cuidado de enfermagem poderia, sob este ponto de vista,
funcionar como um facilitador para o cuidado, da me para com o beb. Mais
ainda, tomando conscincia da me, no modo heideggeriano, as enfermeiras
obsttricas podem ser as representantes desta via de facilitao do cuidado
materno.
A relao entre ser e ente na atividade profissional se manifesta no ser
algo (HEIDEGGER, 1997 [1924]). O ser-a tende a no se manifestar
na atividade cotidiana. O profissional pode ser entendido como um ser humano
entificado. Quero dizer com isso que, na atividade diria, aquele ser humano
est enquadrado no discurso da sua profisso. Enquanto trabalha, ele existe
de modo inautntico. O cuidado, aqui, tem nas palavras de Heidegger (2001a
[1927], p. 257), uma tendncia ntica. Ou seja, o cuidado que se executa
profissionalmente pode ser descrito e prescrito, ele cabe no discurso das
prticas de sade.
O caminho histrico da enfermagem moderna resultou numa profisso
que conjuga o cuidar com a propagao da racionalidade mdica cientfica
(TEIXEIRA, 1998). O modo de tratar de outra pessoa profissionalmente
tradicionalmente um cuidado inautntico, na conceitualizao heideggeriana.
Isto no significa que no seja um trabalho bem feito, nem que se desconsidere
o outro. O paciente o objeto do discurso que descreve o procedimento. Ele
j tem um significado que foi descrito, em grande parte, pelas cincias
41
biolgicas (FIGUEIREDO e CARVALHO, 1999). No pode haver ser sem ente
e atravs do ente que se pode alcanar o ser.
No cuidado exercido tradicionalmente, as aes se dirigem para o ente
do paciente, aquele que se apresenta no recorte do tempo cronolgico de
trabalho, e no cotidiano teraputico. Para que essa tarefa seja desenvolvida
com sucesso, ela deve estar pautada em pressupostos cientficos, aqueles
mesmos que descrevem o paciente, enquanto tal.
Esta anlise conduz a reflexo para questes densas, implcitas na
noo de cuidado. O esforo terico empreendido na solidificao da
enfermagem como profisso tem ateno em quem cuidado e a ao de
cuidar toma o lugar de uma prtica, o que ilumina a dificuldade de estabelecer-
se o que seja cuidar de algum. Alguns tericos da enfermagem procuram
extrair a significao do termo cuidado para o trabalho da enfermeira
abordando o cuidado de enfermagem atravs de uma aproximao com a
fenomenologia heideggeriana (SIMES e SOUZA, 1997; MACKEY, 2005;
MONTEIRO e SOUZA, 2007).
42
III. REFERENCIAL TERICO-FILOSFICO-METODOLGICO
Mas a palavra mais importante da lngua tem uma nica letra: .
(CLARICE LISPECTOR, gua Viva).
3.1. A fenomenologia
Conforme relatei na Introduo desta tese, a experincia vivida nas
disciplinas Mtodos Qualitativos: abordagem histria de vida e Fundamentos
para uma filosofia de enfermagem, da Escola de Enfermagem Anna
Nery/UFRJ foi decisiva para o desenho desta pesquisa. A experincia vivida no
mestrado somou-se s informaes recentes e despertou em mim o desejo de
retomar as leituras sobre fenomenologia. Este termo foi criado no sculo XVIII,
pelo filsofo Lambert, como uma denominao do estudo do fenmeno tal qual
este se apresenta experincia humana (JAPIASS e MARCONDES, 2006).
Num aspecto geral, tem o significado de estudo descritivo de um conjunto de
fenmenos, tal como eles se manifestam no tempo ou no espao (LALANDE,
1999, p. 397).
Considerada por muitos, uma das principais correntes filosficas do
sculo XX, a fenomenologia ganhou notoriedade no incio do sculo com
Edmund Husserl. Para este filsofo, a fenomenologia se define como uma
volta s coisas mesmas. Dito de outro modo, um retorno ao fenmeno como
aquilo que aparece conscincia, que acontece como seu objeto intencional
(JAPIASS e MARCONDES, 2006). Neste sentido, a conscincia est sempre
orientada para alguma coisa, constituda de atos que visam algo. A esse
dispositivo bsico da conscincia Husserl (2000) chama inteno. Voltada para
o mundo, a conscincia sempre conscincia de alguma coisa.
43
Para a fenomenologia, possvel estudar as coisas sem conceitos pr-
definidos. Isto porque ao olhar as coisas como elas se apresentam, o que se
obtm a sua descrio, no a sua demonstrao. Assim, no existe o intuito
de explicar, mas refletir de maneira a tornar possvel uma viso das coisas, do
modo como elas se manifestam. Numa investigao fenomenolgica a busca
pela descrio do fenmeno, na procura do revelar do seu ncleo essencial
conscincia (TERRA e cols., 2006). O rigor da fenomenologia repousa sobre a
sua preocupao em mostrar na realidade o que . A inteno fenomenolgica
ultrapassar o que j est demonstrado, buscando o fundamento do
comportamento humano.
Os modelos cientficos constituem modos de falar sobre as coisas. Esta
sobre-fala cientfica coloca seu mtodo, onde a teoria existe alheia ao que se
fala, e isso pressupe distanciamento, imparcialidade (SCHUBACK, 1996). Isto
do que se fala o ente, que pode ser definido, resumidamente, como todas as
coisas formatadas por um discurso, seja ele social, histrico, mdico, entre
outros. H tambm um falar a partir da coisa, e para tanto preciso abrir-se e
acolher a coisa na sua existncia (op. cit.). Pode-se inferir que esta fala a partir
de aquela que se d na abertura para o ser. O ser pode ser definido como o
que h de essencial na coisa, o que pulsa nela. Como explica Emmanuel
Carneiro Leo na apresentao da 10 edio brasileira de Ser e Tempo
(HEIDEGGER, 2001a [1927]):
Pensar o sentido do ser escutar a realidade nos vrtices das realizaes, deixando-se dizer para si mesmo o que digno de ser pensado com o outro. O pensamento do ser no tempo das realizaes inseparvel das falas e das lnguas da linguagem com o respectivo silncio. E se do muitas falas. A fala da tcnica, a fala da cincia, a fala da convivncia, a fala da f, a fala da arte. Pois a fala do pensamento escutar. (op. cit., p.15)
A busca pela essncia16 do fenmeno nunca alcana seu objetivo
completamente, mas no prprio caminho da investigao que residem as
16
Essncia considerada como o que est no fundo do ser, em oposio ao que est na superfcie. A essncia se contrape existncia, por constituir a natureza de um ser em oposio ao fato de ser (LALANDE, 1999).
44
compreenses. Se essncia o oposto de aparncia17, a busca pela
manifestao da essncia est fadada ao fracasso. preciso questionar o
fenmeno, a partir de uma relao com ele. Deste modo, o fenmeno ser
sempre visto de maneira contextualizada.
Neste ponto importante esclarecer sobre o que se manifesta, o que se
pe mostra. o ente que se manifesta, indicando sua funo em referncia a
um fenmeno. A manifestao uma indicao de algo que no se apresenta.
Para Heidegger (2001a [1927], p. 59) manifestar-se um no mostrar-se.
No obstante, preciso deixar bem claro que uma manifestao s ocorre
porque tem como base alguma coisa. Portanto, se alguma coisa se manifesta
de certo modo, ela no tem uma manifestao em si mesma. Entende-se a
partir da, que o conceito de fenmeno no pode ser definido, apenas
pressuposto. Outro destaque importante a fazer : fenmenos nunca so
manifestaes, toda manifestao que depende de um fenmeno (ibid.).
Desta forma entende-se que aquele que pretende fazer uma pesquisa
fenomenolgica deve estar centrado na descrio rigorosa do fenmeno, e no
na sua demonstrao. Para isso necessrio caminhar atravs da aparncia [a
coisa], perpassar o parecer [a coisa em si] e chegar ao aparecer [a coisa em si
mesma] (HEIDEGGER, 2001a).
Numa pesquisa fenomenolgica fundamental que o pesquisador tenha
um olhar de ateno ao sujeito. O que no dito se manifesta atravs do
silncio e de outras formas de expresso e compartilhamento, como os gestos
A abertura para o dilogo, bem como o acolhimento das ideias, opinies e
sentimentos outro pr-requisito para o pesquisador, que dever ainda ser
capaz de se colocar no lugar do sujeito com a inteno de ver, sentir e pensar
da maneira mais prxima ao que o interrogado faz. Desta maneira, abre-se um
campo de possibilidades para a compreenso (SALIMENA, 2007).
17
Aparncia toda apresentao na medida em que diferente da coisa em si que lhe corresponde. Sinnimo de fenmeno. (LALANDE, 1999, p.75)
45
3.2. Filosofia e mtodo em Martin Heidegger
Numa conferncia intitulada O conceito do tempo18, pronunciada para
a sociedade de telogos de Marburgo, Heidegger19 (1997 [1924]) anunciou o
distanciamento entre o seu projeto, a filosofia e a teologia. Nesta conferncia,
Heidegger (op. cit.) indicou uma necessidade de se destacar do discurso
cientfico e estabelecer uma linha de trabalho prpria que, por sua vez, tambm
se afastava das especulaes filosficas da poca, pois estas sucumbiam
diante da cincia. Num distanciamento do tempo medido pela fsica, e na
apropriao do tempo a partir do sentido de agora, a observao heideggeriana
chegou ao ser-a . Heidegger (op. cit.) vincula definitivamente o ser e
o tempo anunciando, guisa de resumo, que tempo ser-a (op. cit., p. 37).
O ser-a a possibilidade de antecipar o passar do tempo. Como o homem
pode antecipar o tempo, ele tem o tempo. Enquanto um homem tem tempo
existem outros tempos, em outros homens. Desse modo, no h sentido no
tempo. A vida humana, na teorizao heideggeriana, passa a ser reconhecida
como o ente em seu ser-a (op. cit.).
Na concepo husserliana, fenmeno tudo aquilo que entra na
conscincia. O estar dado das coisas exibir-se (ser representadas) de tal e
tal modo em tais fenmenos. E a as coisas no existem para si mesmas e
enviam para dentro da conscincia os seus representantes (HUSSERL, 1973,
p. 32-33). O ser humano est sempre se relacionando com alguma coisa, sua
conscincia sempre conscincia do que est no mundo. O modo como se
aborda um objeto modifica a conscincia dele. Deste modo, o objeto se faz
18
A nota do tradutor avisa que a edio alem, Der Begriff der Zeit, contm em seu posfcil a informao de que o texto da conferncia foi estabelecido a partir de duas transcries de autores desconhecidos e que o manuscrito de Heidegger foi perdido. 19
Cabe aqui uma rpida incurso na biografia de Martin Heidegger. Nascido em 1889, numa pequena aldeia alem, Heidegger teve uma infncia marcada pela educao na religio catlica, tendo freqentado uma escola para a formao de sacerdotes. Em 1907, atravs da leitura de Bretano, Heidegger chegou a Edmund Husserl cujo livro Investigaes Lgicas foi seu livro de cabeceira por dois anos, deixando marcas indelveis. A partir desta obra, Heidegger tornou-se o discpulo mais aplicado e estudioso de Husserl (SAFRANSKY, 2000: 72). Cerca de dez anos depois o prprio Husserl o considerava importante colaborador no amplo projeto filosfico da fenomenologia (op. cit.). Em 1927, Heidegger registrou em Ser e Tempo: As investigaes que
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