Universidade Federal do Paraná
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes
Departamento de História
Armazém Santa Ana (1934-2008) Um Patrimônio Curitibano
Curitiba 2008
Jane Campello Padilha
Armazém Santa Ana (1934-2008) Um Patrimônio Curitibano
Monografia apresentada como requisito parcial à conclusão do Curso de História e Bacharelado em História. Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos.
CURITIBA 2008
Dedico este trabalho a Pedro Szpak e a seus distintos pais Paulo Szpak e esposa Júlia Zileonka Szpak (in memórian). Graças a eles, bem como toda família Szpak, temos hoje, um motivo de orgulho a mais, para toda a sociedade curitibana: o Armazém Santa Ana.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente a Deus, por ter permitido que eu chegasse até aqui.
Ao meu orientador professor Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos, que mesmo a
despeito de tudo, acreditou em minhas possibilidades me incentivando sempre a
prosseguir, bem como aos demais professores que auxiliaram em minha formação
acadêmica junto a UFPR. Nisso se inclui Serginho, amigo de todas as horas.
Agradeço aos meus pais Pedro Osmar e Maria (in memórian) pela vida, por tudo que
fizeram por mim e amor igualmente dispensado.
Aos meus filhos Letícia, Cristiano e nora Vanessa, por disponibilizar incondicionalmente
seus conhecimentos gerais, de informática e carinho materno, não importando o horário
ou cansaço físico. A eles minha eterna gratidão e que Deus os abençoe sempre.
Ao casal de amigos Hélio e Adelir Carbonnar, proprietários da “Malharia Alvorada”, na
qual trabalhei, por terem me apoiado incondicionalmente, nessa minha caminhada,
sobretudo por longa amizade e confiança que sempre me dispensaram, dando-me a
chance de chegar, efetivamente, a Universidade Federal do Paraná.
Aos funcionários e amigos da Malharia Alvorada por todo o apoio, carinho e incentivo,
que nunca me faltou.
As amigas e porque não dizer, irmãs? Filomena, Vera Lúcia, Giovanna e Iara. Todas,
numa admirável corrente de amizade e amor ao próximo, no caso direcionado à minha
pessoa, foram fundamentais não só em minha formação e vida acadêmica, mas,
sobretudo na particular, me amparando em todas as horas, mesmo naquelas em que
eu perdia a confiança em mim mesma.
A todas minhas irmãs e mano Jonas, junto aos cunhados Francisco, Mauri, Celso e
Maria, pela dedicação e calor familiar, um dos pilares que sustentam minha vida.
Aos meus sobrinhos Fabiano, Francisco Júnior, Mauri Júnior, Lúcio, Karina Cristina, e
Marcelo.Também aos amigos Joelson, Arnaldo e Miguel, meu agradecimento pela
ajuda e apoio sempre que solicitados.
À família Lopes, que considero extensão da minha própria, por conta de tamanha
solidariedade e carinho que me tem dispensado esses anos todos. Nisso, incluo o pré-
vestibular “Em Ação”, que junto à amizade me proporcionou conhecimentos, sem os
quais não teria chegado a UFPR.
Finalmente tenho muito a agradecer a família Szpak, proprietários do Armazém, Bar e
restaurante Santa Ana, bem como toda sua equipe. Por terem me acolhido com tanta
delicadeza, respeito e consideração.
“Os animais se repastam; O homem come; somente o
homem de espírito sabe comer.”
(BRILLAT-SAVARIN)
SUMÁRIO
1. Introdução.............................................................................................................2
2. Capítulo I – Década de 30, Curitiba: imigrantes, comércio e urbanização
comércio e urbanização............................................................................................26
2.1 ALIMENTO – IMIGRANTES E A POLÍTICA DE
ABASTECIMENTO.........................................................................................26
2.2 SURGIMENTO DO COMÉRCIO DE SECOS E MOLHADOS; URBANIZAÇÃO
EM CURITIBA................................................................................................30
3. CAPÍTULO II – ARMAZÉM SANTA ANA – UMA HISTÓRIA DE SUCESSO.......33
3.1 IMIGRAÇÃO POLONESA E UCRANIANA NO BRASIL.................................33
3.2 O COMEÇO DE TUDO...................................................................................35
4. CONCLUSÃO.......................................................................................................50
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................52
FONTES ORAIS.......................................................................................................56
ANEXO I – ROTEIRO DE ENTREVISTAS..............................................................59
2
1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho procuramos demonstrar que o ramo da gastronomia é um filão
inesgotável em termos acadêmicos, de estudo e de desenvolvimento em pesquisa. A
história prova e a biologia fundamenta que sem alimento não existe homem, muito
menos fatos que comprovem sua existência, incluindo-se aí todas as formas de vida
existentes no planeta.
Reforçando essa tese, vamos a partir do aforismo de Brillat-Savarin1.“O Universo
nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta”, o que representa entender
na prática como isso se aplica como um todo na instituição que é o centro de nosso
estudo científico, o Armazém Santa Ana. Pretende-se inserir o presente trabalho na
História e Cultura da Alimentação, temática esta desenvolvida no Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná, tendo como objetivo principal ampliar
horizontes relativos a esse ramo do saber. Ressalta-se também em termos de
pesquisa a contribuição para o tema que vem ganhando adeptos devido a sua
importância, originalidade e caráter interdisciplinar.
Os motivos que justificam esse trabalho começaram a surgir com as aulas
ministradas pelo professor Carlos Antunes em disciplina isolada de Tópicos
Especiais de História e Cultura da Alimentação. Em dado momento percebeu-se
que, esta era uma disciplina que se mostrava muito interessante e produtiva,
demonstrando como a mesa e a cozinha são microscopias da sociedade. Devo
também considerar o meu fascínio pelo tema que envolve aspectos pessoais, uma
vez que meus pais durante anos foram proprietários de um estabelecimento
comercial de secos e molhados – o “Armazém Campello”, e eu própria, depois de
casada, durante certo período, para ampliar o orçamento doméstico, trabalhei no
ramo da alimentação.
A sugestão de estudo sobre este estabelecimento foi feita pelo professor Carlos
Antunes, talvez pelo fato de ser o último armazém de secos e molhados ainda em
funcionamento na cidade de Curitiba, e, portanto, um patrimônio cultural. Diante
1 BRILLAT-SAVARIN, Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. São Paulo. Cia. das Letras, 1995. p. 15
3
disso tem-se como motivo geral da monografia revelar a identidade do
estabelecimento e seguindo pela História da Alimentação e sua reconhecida
relevância, atualmente tanto nos meios culturais quanto intelectuais. A opção por se
querer conhecer a identidade cultural e gastronômica do Armazém Santa Ana deve
trazer benefício para a sociedade curitibana, pois se estará colocando em evidência
um espaço de História e Cultura. Dessa forma, abraçou-se este tema para
desenvolvê-lo neste trabalho de conclusão de curso.
A partir do momento em que o homem aprendeu a cozinhar seu próprio alimento,
estava se diferenciando de todos os outros animais ao mesmo tempo em que de
forma instintiva se dava conta, de sua autonomia e capacidade de socialização. Com
isso estava dando seus primeiros passos no viver em sociedade. “O uso do fogo há
pelo menos meio milhão de anos trouxe um novo elemento constituidor da produção
social do alimento”2 Isso contribuiu para que nesta busca por alimentos, seu cultivo e
preparação associados a rituais e costumes e o prazer à mesa, mesmo na época de
modo primitivo, demonstram que o comer não estava relacionado somente ao saciar
a fome; representava sobretudo um feito social e cultural.
É importante lembrar que se trata de um estabelecimento comercial que é, ao
mesmo tempo, um dos restaurantes mais requisitados, com um dos botecos mais
badalados das noites curitibanas, além de ser um dos pontos turísticos referenciais
no ramo da gastronomia, tombados como patrimônio público desde 1995. Para a
realização do mesmo buscou-se o resgate histórico de uma instituição tradicional, no
comércio curitibano há 74 anos, situada no Bairro Uberaba, em Curitiba. O Armazém
Santa Ana, considerado um dos restaurantes mais requisitados dessa cidade, um
dos últimos representantes originais de Secos e Molhados ainda em funcionamento,
e suas estratégias para continuar num mercado em completa ebulição através dos
tempos. Assim, diante das transformações do cotidiano da cidade, o Santa Ana é no
HAPPY HOUR das noites curitibanas um dos botecos preferidos. O lugar que nos
séculos XVIII e XIX era ponto de descanso de tropeiros “hoje, é ponto de parada de
2 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da Alimentação. História: questões & debates. Curitiba, ano 22, n°42, jan/jun. 2005.p.14.
4
um público que busca uma boa cerveja na companhia de amigos.3Sua cozinha
eclética e tradicional ao mesmo tempo atrai a cada dia um público maior e
diversificado. Isso implica que o Santa Ana “faz parte do roteiro turístico e
gastronômico da capital”4por conta de sua conotação de referencial e cartão de
visitas não só da comunidade do bairro Uberaba, mas também da grande Curitiba.
Um ponto a ser considerado nesta pesquisa é a caracterização do seu contexto e
espaço. Para tanto foi imprescindível destacar que Curitiba no período analisado
sofreu grandes transformações nos aspectos demográficos, urbanísticos e sociais.
A inserção dos imigrantes de diversas etnias na sociedade influenciou a cultura
local em seus hábitos e costumes, imprimindo também um novo ritmo de
crescimento a cidade e, principalmente no que se refere ao surgimento de um
comércio diversificado de armazéns de secos e molhados.
O bairro Uberaba, situado ao leste de Curitiba tem história de urbanização
recente. Na década de 1930 começam a chegar os primeiros habitantes ao bairro,
trazendo consigo um forte perfil comercial. Nesse cenário propício devido à rota de
tropeiros surge o Armazém Santa Ana.
No presente estudo deu-se ênfase ao universo de memória gustativa, por conta
da datação deste estabelecimento que de forma atuante e efetiva desde 1934 vem
resistindo e guarda a tradição. Pretende-se verificar, principalmente, quais seriam as
razões fundamentais do Santa Ana ter permanecido como um espaço de
sociabilidade e de gastronomia ao longo desse tempo, dentro do mercado e das
famílias curitibanas, frente às mudanças impostas pela modernidade. Criando
identidades e preservando suas tradições, o estabelecimento vem garantindo sua
clientela, tanto a tradicionais quanto as que se seguem, de geração em
geração.Inovando dia a dia o local e o atendimento, a demanda de produtos e
serviços prestados à comunidade traz retorno garantido, além de cimentar sua
liderança.
3 STAVISK, Norberto. Pelos Bares do Paraná. A vida é a arte do encontro – o Bar é o lugar. Curitiba: Palavra Viva, 2004. p. 125. 4 COLUNA DO GRECA. Disponível em: www.rafaelgreca.org.br/imprensa coll 40206htm. Acessado em 20/05/2008.
5
Apontamos as razões existentes para que ele tenha se tornado uma referência e
patrimônio do bairro Uberaba e por extensão de Curitiba, segundo opinião da
imprensa e maioria dos entrevistados tal aspecto é interessante, partindo do
princípio que o papel do imigrante em nosso país, em especial em Curitiba, segundo
as obras do professor Carlos Antunes, foi fundamental para a sobrevivência dos
hábitos, costumes e relações sociais, mostrando que o ato de migrar foi decisivo
para a retomada de um padrão de vida comunitário, funcionando como mediador
nas relações do indivíduo para com o meio social. A tradição da história da
imigração aponta que a relação entre o passado e o presente é permanente. O dia-
a-dia do imigrante promoveu muitas transformações, pois, através da preservação
da história é que a memória da comunidade é garantida. Dessa forma entende-se
que, mesmo com o avanço da modernidade, o fato de cada etnia procurar manter
suas tradições, principalmente as de ordem culinária é que seus descendentes
conservam, reforça sua herança cultural. Este fato foi de capital importância na
formação do povo paranaense.
A política geradora da vinda dos imigrantes em nossa região foi voltada
claramente para a produção de gêneros alimentícios e para a ampliação da política
de abastecimento. Com características diferenciadas, explicadas na obra do
historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos, intitulada “História da Alimentação
no Paraná”, que em consonância com idéias da professora Maria Yeda Linhares,
enfatizam a importância das pesquisas efetivas na área de consumo interno. Nesse
sentido para Santos5 é preciso assinalar que “cada centro urbano tem suas
estruturas particulares de consumo e de consumidores, determinada pelas
condições que a caracterizam. A história do abastecimento é, pois, uma história que
se regionaliza, que foge do nacional, que se particulariza, embora suas coordenadas
estejam presas às determinantes do sistema maior”.
Com a economia de subsistência teve início a produção de excedentes para
comercializar e a vinda de imigrantes foi fundamental para esse processo. No século
XVII se destacam os tropeiros. “Aventureiros que buscavam gado selvagem do Rio
5SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.p. 11.
6
Grande do Sul para São Paulo. Os campos de Curitiba, por estarem no meio do
caminho entre os dois estados, eram um dos pontos de parada preferidos”.6 Por
volta de 1934, o Santa Ana começou a fazer parte da vida desses homens que
ajudaram a desenvolver o comércio curitibano.
Nesse sentido, com a contribuição particular de todos os povos que emigraram
para nosso estado foi se configurando em sociedade uma mescla de cultura,
idiomas, tradições e hábitos que se destacaram principalmente na gastronomia.
Tratamos ainda no decorrer da pesquisa decifrar essa força simbólica presente
no cardápio da instituição e razão relevante de seu sucesso gastronômico junto aos
clientes. Desta forma, parte-se de sugestões como: as presenças de clientes que,
embora nunca tenham morado no bairro se tornaram clientes tradicionais e mesmo
outros que já mudaram do bairro permanecem fiéis? Por que outros tantos têm
notícias do sucesso do armazém mesmo fora de nosso território? Ou ainda, qual a
força do turismo nesse contexto gastronômico, social, cultural e de memória coletiva
do bairro Uberaba, na esfera global do Armazém Santa Ana e de como o armazém
se tornou patrimônio cultural de Curitiba?
O recorte espacial pesquisado é o da grande Curitiba, principalmente o bairro
Uberaba onde se encontra localizado nosso objeto de estudo. O recorte temporal se
situa entre os anos 1934-2008. Na medida do espaço e tempo pesquisado, as
transformações devem ser comparadas e avaliadas, que revelam a história do Santa
Ana. Desta forma com a presente monografia entendemos estar oferecendo
contribuição para o estudo de História e Cultura da Alimentação.
Em relação ao exposto na pesquisa buscou-se entender como o Armazém Santa
Ana localizado no bairro Uberaba, conseguiu manter-se como um estabelecimento
comercial no ramo de secos e molhados sempre no mesmo local, quando outros
estabelecimentos similares fecharam suas portas.
6 UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ. Edição especial de Gazeta do Povo. Curitiba, 310 anos. A História que nunca foi contada. – Caderno 01.Curitiba. Domingo, 30/03/2003. p. 09.
7
A trajetória do Armazém Santa Ana, sua história e da família Szpak seus
fundadores, está vinculada a uma história de preservação de valores e identidade
histórica o que faz com que o Santa Ana seja uma empresa estritamente familiar,
trazendo ao longo dos anos de atividade comercial a primazia de um atendimento
familiar e de qualidade na alimentação. Ao realizar uma pesquisa e estudos sobre
esse estabelecimento que é um verdadeiro marco em Curitiba, em tempo e em
qualidade, reconhecido como excelência gastronômica, cartão de visitas e
patrimônio cultural e gastronômico, é natural uma legítima apreensão sobre o
desenvolvimento do trabalho. Tais reflexões incitaram-me a definir o objetivo geral
desta pesquisa: identificar a relevância comercial e identidade cultural do Armazém
Santa Ana no ramo de secos e molhados.
Para alcançar este objetivo buscamos inicialmente contextualizar a História do
Paraná na década de 1930, em especial da cidade de Curitiba, e do bairro Uberaba,
endereço do nosso objeto de estudo. Considerando o surgimento de vários
estabelecimentos comerciais que se dedicavam â atividade de secos e molhados.
Identificar a trajetória do Armazém Santa Ana como identidade cultural e
gastronômica.
Desta forma, optamos por trabalhar com a memória das pessoas, resgatando
suas histórias, suas recordações. Assim, usamos como metodologia a História Oral,
onde buscamos a recuperação e a reapropriação do passado. Citamos Ecléa Bosi,
quando em sua obra “Memória e Sociedade: lembrança de velhos”, 7 a autora coloca
a memória como preservadora do passado, o passado está em nosso inconsciente e
é alimentado pelas recordações no presente. Ao evidenciarmos a memória individual
estamos fazendo seu entrelaçamento com a memória coletiva, ou seja quadros
sociais. Segundo Maurice Halbwachs 8” o pensamento contínuo retém o passado
aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a
mantém”. Assim podemos entender o Armazém Santa Ana como elo de ligação
entre o passado e o presente, o que lhe conferiu identidade própria perante as
constantes transformações do mundo moderno. E falar do Santa Ana é resgatar a
7 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembrança de velhos. São Paulo: T. A.. Queiroz, 1979. p. 16 8 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. p. 81.
8
memória de sua clientela, memórias que nos levam a evidenciar essências sejam
elas individual, coletivo ou imaginário.
Foram realizadas 25 entrevistas gravadas, abertas, sendo os entrevistados
distribuídos entre proprietários, funcionários e clientes do Armazém Santa Ana,
como aposentados, acadêmicos, enfermeiros de alto padrão, bancários, advogados,
médicos, donas de casa, entre outros, residentes ou não no bairro Uberaba, pois
alguns em determinado tempo moraram lá, bem como pessoas que nunca residiram
no local, entretanto tornaram-se assíduos freqüentadores do Santana, isso sem falar
nos turistas. A faixa etária oscilou entre 18 e 75 anos. O que possibilitou conhecer a
visão dos que acompanharam a trajetória do armazém, assim como novos clientes
que adotaram o Santa Ana como ponto de encontro de amigos,um espaço de
sociabilidade. Assim tivemos uma aproximação com o objeto de estudo e a
compreensão dos aspectos singulares e específicos de determinada realidade onde
ele se encontra como um todo, e que muito ajudaram na compreensão de seu
contexto histórico.
Paralelamente ao uso desta metodologia, utilizamos estudos em bibliografias
pertinentes aos temas estudados, via on-line, fontes impressas tais como jornais,
revista, guia de turismo, documentos históricos e obras cedidas pelo Armazém Santa
Ana de autores paranaenses falando sobre a instituição, livros de registros e
cadernos de compras mensais – freguês de caderno – que em muito contribuíram
para que nosso objeto de pesquisa se mostre tal como é. Realizou-se consulta a
historiografia paranaense, bem como a historiografia relativa à História da
Alimentação, o que nos possibilitou maior compreensão sobre nosso objeto de
estudo.
Ao trabalharmos o Armazém Santa Ana estamos resgatando as lembranças, as
histórias das pessoas, suas memórias. Caminhando, ao lado da história oral, a
História da Alimentação se apresenta como alicerce para o desenvolvimento da
presente pesquisa. Assim pudemos compreender o Santa Ana a partir de sua
caracterização dentro da gastronomia, assumindo perfis diferenciados diante da
modernidade.
9
A História da Alimentação não se limita somente ao estudo dos aspectos
biológicos, fisiológicos e clínicos. Ao localizar-se no interior da micro-história interage
com vários ângulos da cultura humana. Assim, aspectos econômicos, políticos,
sociais, psicológicos, culturais, também pertencem à História da Alimentação,
demonstrando a sua importância para a História e demais áreas do conhecimento
científico, pois “demonstra agora a sua vitalidade, pois diz muito sobre a educação, a
civilidade e a cultura dos indivíduos”.9
Ao dialogar com outras áreas do saber revela sua peculiaridade, seu caráter inter
e multidisciplinar, abrindo um leque de opções, o que lhe confere identidade própria
e possibilita ampliar novos espaços no interior das pesquisas históricas. A produção
historiográfica recente tem se mostrado bastante receptiva diante da História da
Alimentação, não só pela sua interdisciplinaridade, mas também pelo seu
envolvimento com temas mais abrangentes e temas específicos, como nota o
professor Carlos Antunes, quando afirma que,
O tema da alimentação, finalmente começa a invadir a História, impulsionando maior diálogo, mult, inter e transdisciplinar e fazendo com que as editoras invistam cada vez mais nessa área, transformando em best-sellers até mesmo simples de receitas culinárias. As pesquisas acadêmicas – muitas que redundaram em dissertações e teses de pós-graduação – que abrangem processos históricos com enfoque social, cultural, econômico, político, tecnológico, nutricional ou antropológico, e mesmo como monografias buscam recuperar os tempos da memória gustativa (...) Os sucessos editoriais nos domínios da História da Alimentação revelam duas grandes paixões do público consumidor: o gosto pela História e pela Gastronomia.
10
O tema da alimentação, contemporaneamente, tem sido objeto de pesquisa de
muitas áreas do conhecimento, ocupando espaço próprio em nossa sociedade.
A partir do momento em que o homem aprendeu a cozinhar seu próprio alimento,
estava se diferenciando de todos os outros animais ao mesmo tempo em que de
forma instintiva se dava conta, de sua autonomia e capacidade de socialização. Com
isso estava dando seus primeiros passos no viver em sociedade. “O uso do fogo há
9 SANTOS. Carlos Roberto Antunes dos. História da Alimentação. História: questões & debates. Curitiba, ano 22, n°42, jan/jun. 2005. p. 13.. 10 Santos, ibid. p. 14.
10
pelo menos meio milhão de anos trouxe um novo elemento constituidor da produção
local do alimento”11Isso contribuiu para que nesta busca por alimentos, seu cultivo e
preparação associados a rituais e costumes mais o prazer à mesa, mesmo à época
de modo primitivo,demonstrassem que o comer não estava relacionado somente ao
saciar a fome; representava sobretudo, um feito social e cultural.
Carregada de historicidade é a ligação entre o homem e alimento. Por força
dessas circunstâncias, essa ligação faz com que se inscreva o tema da Alimentação
na história dos seres humanos, ampliando os horizontes historiográficos, ao receber
em meio a isso tudo, a História e Cultura da Alimentação, ao mesmo tempo em que
lhe oferece a fundamentação necessária para seu desenvolvimento e personalidade
própria. Dessa forma se tem que, ao longo dos últimos anos a História da
Alimentação vem ocupando seu espaço na História, ultrapassando barreiras
políticas, ideológicas e culturais, buscando, enfim sua integração no complexo meio
das relações humanas.
Situando-se no interior da micro-história, a História da Alimentação abrange
inúmeros ângulos da cultura humana, não se delimitando somente aos aspectos
biológicos, clínicos e fisiológicos. Nesse sentido, os aspectos sociais, psicológicos,
econômicos e culturais também fazem parte da História da Alimentação,
evidenciando a importância do estudo da alimentação para a História, servindo como
elo de integração desta disciplina com outros ramos do saber, ao mesmo tempo em
que abre um leque de opções ao interagir com as demais áreas do conhecimento
cientifico. A História da Alimentação é produto da nova História, ainda que a
alimentação, durante determinado tempo junto a praticas alimentares,estivesse nos
domínios da Antropologia e Sociologia. Portas começaram a se abrir no ramo da
historiografia com o surgimento de “duas obras pioneiras: A fisiologia do gosto, de
Brilhat-Savarin, escrita em 1825 (...), e o trabalho do botânico polonês Adam
Maurizio, intitulado História da alimentação vegetal da pré-história aos nossos dias”12
Embora tenha nascido na década de 1980, a micro-história tem suas raízes
originadas já na década anterior, como resultado das discussões historiográficas,
entre cientistas e pesquisadores. Através dos historiadores Marc Bloch e Lucien
11 SANTOS. P. 13. 12 Ibid p.13
11
Febvre, fundadores da Escola de Annales e de respostas favoráveis às suas
pesquisas é que na década de 20, que a historia inicia nova caminhada. Ambos
combatiam a historia voltada quase que somente aos acontecimentos, sobretudo
aos de conotação política, fechando-se em si mesma de forma limitada. A nova
historia na opinião de Ronald Vainfas em uma de suas obras, a que se intitula
“Domínios da Historia”, organizada em parceria com Ciro Flamarion Cardoso,13
buscava ser problematizadora do social ao mesmo tempo em que tentava dialogar
com as demais ciências. Importante relatar que foi através de Fernand Braudel,
ícone da segunda geração da Escola de Annales , que a Historia da Alimentação
conseguiu status cientifico ou identidade própria no ramo da pesquisa histórica.
Inspirado nos textos de Lucien Febvre sobre distribuição regional das gorduras e nos fundos de cozinha, Braudel, como o maior representante da segunda geração dos Annales, trabalhou o conceito de cultura abrangendo os aspectos mais imediatos da sobrevivência humana: a comida, a habitação e o vestuário.
14
No ano de 1974, com a publicação da coletânea organizada por Jacques Lê
Gofff e Pierre Nora que se intitulava “Faire de l`Histoire”, a história se abre para novos
paradigmas, nela o artigo denominado “As Mentalidades – Uma História Ambígua”,
de Lê Goff, é visto por Vainfas como uma verdadeira declaração da Nova História, 15fundamentando seus direitos, reivindicando para a Nova História a existência
simultânea de uma infinidade de novas formas e tipos diferenciados de se fazer
história, ou seja, uma oposição à história escrita no momento que supunha-se dona
da verdade, originando com esse novo olhar, o que mais tarde teria a denominação
de micro-história. Ela que se diferencia da História das Mentalidades por ter surgido
na Itália, não se prendendo à totalidade, à contextualização sistemática. Mudanças
históricas ao serem analisadas dentro das estruturas sociais, nos mostram que
essas estruturas em sua maioria se refletem através de diferenciadas estruturas
sociais menores. “A micro-história (...), diz respeito à quase tudo o que se atém ás
13 VAINFAS, Ronaldo, História da Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion: VAINFAS, Ronaldo (ORG). Domínios da História: Ensaio de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1977. 14 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Por uma história da alimentação. História: questões & debates. Curitiba, ano 14, n. 26/27. dez. 1997. p. 13. 15 Op.cit. VAINFAS, 1977.
12
relações entre sujeito e sociedade: relações de gênero, ciclos vitais, condições de
vida, estudo de gerações (...), em movimento no tempo”. 16
O suporte para a micro-história vem da sua elaboração de forma narrativa,
que fornece embasamento necessário para que ela possa trabalhar com suas
fontes.
Portanto a micro-história é um gênero próprio de narrativa e mais um modo de se
fazer, contar a história.
Falando ainda sobre à micro-história, Vainfas cita na voz de Roger Chartier
“que seu objeto não reside nas estruturas e mecanismos que regem fora de todo
subjetivismo, as relações sociais, mas sim nas racionalidades e estratégias que
põem em funcionamento as comunidades, as famílias, os indivíduos.” 17
Foi com os historiadores Jean Paul Aron e Jean Louis Flandrin que a História
da Alimentação se inseriu no interior da micro-história. Que busca contato com
outras áreas do saber, criando relações multidisciplinares e interdisciplinares.
A relação homem/alimento inserido em determinada cultura, nos permite
trabalhar essa ligação de forma cultural, social e econômica de forma a evidenciar
que o alimento traz consigo um código simbólico que organiza a produção
econômica e as relações sociais dos mais diversos grupos. Assim, o valor
econômico de um alimento é submetido ao seu valor social. Em outras palavras, a
prática alimentar revela a classe de quem o consome. O consumo alimentar tem
funções materiais e sociais, mostrando que a natureza dos agrupamentos sociais
carrega simbolicamente o modo com a qual determinada sociedade se alimenta.
A prática alimentar de um povo revela o imaginário e traça sua história, um
trabalho monográfico que trata da elaboração de um prato - a polenta – de Giovanna
Pifar 18 é um exemplo no que se refere à simbologia de determinado alimento, e de
16 DIAS.Maria Odila Silva. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História: Trabalhos de memória. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da USP. São Paulo. N. 17, novembro 1998. p. 237-238. 17 Op. cit. VAINFAS, 1997. 18 PIFAR; Giovanna. A Polenta Como Forma de Expressão da Cultura Popular Italiana. Novembro, 85 p. Monografia (Licenciatura Plena e Bacharelada na linha de Pesquisa em História e Cultura da Alimentação). UFPR. CURITIBA, 2006.
13
como seu valor afetivo, simbólico ajuda a manter a manter e ampliar determinada
tradição culinária, que por sua vez forma a identidade cultural e tradição de
determinado povo. Esse prato trazido do Vêneto, por imigrantes italianos até hoje,
após varias gerações, traz identidade própria através dos habitantes que residem no
bairro que seus antecessores fundaram - o Santa Felicidade, onde fizeram de um
alimento de carestia e de valor simbólico para seu povo – a polenta acima
referenciada -- prato de referencia nacional e internacional na área da gastronomia
dessa etnia. Outro trabalho de pesquisa relevante que trata da memória gustativa
tendo como autora Iara Lins Nunes,19 tendo por título “O doce sabor oferecido pela
Confeitaria das Famílias” comprova a importância de se estudar os alimentos desde
sua origem e sua relevância dentro da sociedade, tendo por base a tradição.
Dessa maneira, compreende-se que as práticas alimentares refletem as
estruturas do cotidiano, configuramdo-se dessa forma, carregadas de historicidade.
Não podemos entender a formação política, ideológica, econômica e cultural-social
de uma sociedade sem a contribuição da História da Alimentação.
Estudos sobre alimentação demonstram como ela deve ocupar seu lugar na
História, no entendimento do professor Carlos Antunes,
A História da Alimentação, ocupando o seu lugar na História, busca estudar as preferências alimentares, a significação simbólica dos alimentos, as proibições dietéticas e religiosas, os hábitos culinários, a etiqueta e o comportamento à mesa e, de maneira geral, as relações que a alimentação mantém em cada sociedade com os mitos, a
cultura e as estruturas sociais, ao sabor dos processos históricos. 20
Processos esses que de uma forma ou de outras atingem a todos nós, de
modo que partindo da cultura gastronômica podemos observar as relações sociais
estabelecidas consciente ou inconscientemente entre grupos sociais que pertencem
ou não a mesma sociedade. Diferentes relações sociais demonstram as variadas
formas de sociabilidade, bem como a exclusão social. A historicidade da
19 NUNES; Iara Lins. O Doce Sabor Oferecido Pela Confeitaria das Famílias. Novembro x páginas? (Licenciatura Plena e Bacharelada na linha de Pesquisa em História e Cultura da Alimentação) UFPR. CURITIBA, 2006. 20 Op.cit. SANTOS, 2005. P. 14.
14
sensibilidade gastronômica, para Santos, existe clara distinção entre os atos de
alimentar-se e o de comer, como segue... 21
Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época.
Torna-se importante aqui termos a noção partindo dessa afirmação, que os
padrões alimentares são determinados pelas regras sociais que influenciam no ato
de se consumir certos alimentos, evidenciando sua preparação para o consumo,
onde tais padrões demonstram seu caráter simbólico. Não se deve esquecer
entretanto, que temos o livre arbítrio, com isso abre-se uma porta para mudanças de
hábitos e que qualquer sistema cultural é sempre contínuo, sujeito às constantes
transformações. Assim entende-se que existem fundamentos culturais que balizam
nossos hábitos alimentares. O significado simbólico da comida foi discutido por
Roberto DaMatta, que de maneira clara endossa o pensamento do professor Carlos
Antunes, ele que foi, um dos primeiros antropólogos a pesquisar a simbologia da
comida, fazendo distinção entre alimento e comida;
Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva. É algo universal e geral, diz respeito a todos. Comida é tudo que se come com prazer. Se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda estabelecer uma identidade, definindo por isso mesmo um grupo, classe ou pessoa.
22
A comida tem seu papel dual ao revelar o ato de alimentar-se, sobretudo para
contribuir com a fixação de identidades pessoais e grupais, simboliza a linguagem de
uma identidade social, que são elementos de grande peso quanto ao processo de
identificação. O ser humano precisa encontrar sua identidade por meio da cultura que
na ótica de Pertti J. Pelto 23
Cultura é a palavra que usamos para rotular ‘algo’ que foi acrescentado e que explica as grandes diferenças de comportamento entre os homens e os outros animais. A cultura significa, com freqüência, simplesmente a ‘herança social’ de um determinado grupo de pessoas. A herança social não é uma ‘coisa’ que seja transferida
21 Op. Cit Santos, 2005, p. 12-13. 22 DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p. 55 23 PELTO.J. Pertti. Iniciação ao estudo da antropologia. 5° Ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1979. p. 84.
15
intacta, de geração a geração. Toda geração nova remodela e modifica os sistemas de idéias, significados e regras. De modo que a tradição social jamais é fixa e imutável, em nenhuma sociedade.
Com ele concorda DaMatta,24que coloca que cultura “exprime precisamente
um estilo, um modo, um jeito de fazer coisa”. De modo que membros de
determinado grupo agem de forma diferenciada, ao partilhar um sistema simbólico
qualquer, à sua maneira própria, particular. A cultura necessita de símbolos para sua
perpetuação e para se entender o significado de um símbolo precisamos entender
também a cultura que o criou. O valor dado a determinado alimento envolve muitas
diferenças, basicamente divididas em diferentes modos de se fazer cultura. Mas os
processos naturais que ocorrem em todos os alimentos são universais, como o cru e
o cozido, que são processos que colaboram para as transformações sociais. Na
teoria do antropólogo aqui já referido, Da Matta, 25 o cru refere-se ao que está fora
de casa, onde se pode escolher o que comer, um estado de selvageria. O cozido
representa um “universo socialmente elaborado” à ocasião, as relações sociais, o
momento de celebração. Onde toda a sociedade humana define como cultura e
ideologia a que pertencem.
Ilustrando alimentos simbólicos que incluem tabus religiosos, temos que para
os hindus a carne de vaca é proibida, pois para esse povo esse animal é sagrado,
sendo um tabu a ingestão dessa carne. Para eles a vaca representa ancestral de um
espírito sagrado, ela simboliza o princípio da reencarnação. Quanto ao leite por ela
oferecido, ele é considerado um alimento precioso, que protege a vida de quem o
consome. Já para judeus e muçulmanos a carne de porco tem a conotação de
alimento proibido, uma variação da carne de vaca na Índia. Paralelo a esse fator,
para muitas pessoas a ingestão dessa carne vem associada à sujeira.
Em diferentes culturas, o consumo de carne a exemplo dos hindus, encontra-
se ligado à religião. Por outro prisma se tem a carne relacionada ao sexo, uma vez
que ela representa a “continuidade entre carne animal e carne humana. A carne
pode despertar apetite ou excitação, mas continua sendo carne”.26 No Brasil por
24 DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p. 17. 25 Op. Cit. DA MATTA, P. 52. 26 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos. Por uma história da Alimentação. História: questões & Debates. Curitiba, ano 14, n. 26/27. dez. 1997.p. 159.
16
exemplo quanto à escolha da carne a ser consumida somos ecléticos, mas, quanto
aos frutos do mar, ainda resistimos a rãs e escargot, que a muitos chega a causar
repugnância. Já na terra em que surgiram os grandes e mais conceituados
restaurantes do planeta - a França – eles são considerados pratos finos, verdadeira
iguaria.
Ainda enumerando cultura, agora associada de forma afetiva em nosso país,
elegemos como bicho de estimação, partindo do consenso geral -- o cachorro -- por
muitos considerados da “família”. Em contrapartida, para determinados grupos
orientais da China e Coréia do Sul, essa carne é muito apreciada; raças específicas
são criadas em fazendas para servir de alimento. O segundo animal na cotação
geral em termos de afetividade em nosso país o gato, porém para os chineses, não
só é fonte de carne apreciada pela maioria, como também esses animais são
utilizados na preparação de poções medicinais, misturando sua carne e pele a
temperos.
Cada grupo tem seus costumes, tabus, enfim, uma linguagem diferenciada, e
é através de sua cultura, que se atribui significados a cada gesto e ação no seu viver
em comunidade. Neste sentido, as cozinhas orientais possuem um grau de
ritualização significativo, sendo um código de símbolos partilhados pelos membros
dessa mesma cultura. Para melhor exemplificar essa idéia, temos que para a
cerimônia do chá, o chanoyuy, os orientais se vestem com trajes apropriados, usam
lenços e utensílios especiais e o procedimento segue um ritual que leva a paz e à
calma.
O sushi, outro exemplo de prato oriental, que envolve técnicas especiais em
toda sua preparação e degustação, bem como todo um ritual simbólico, traz toda
uma conotação diferenciada de cultura, como por exemplo: à mão que pega o arroz
para modular ou a rapidez de corte, torna o prato carregado de simbolismo. Outra
carne rica em significativa simbologia é a carne do Baiacu, uma espécie de peixe,
parte dela é considerada venenosa e requer todo um cuidado especial em sua
preparação. Sua carne quando pronta a ser oferecida à mesa não deve conter o
veneno que pode levar à morte; portanto, prepará-la de forma correta, significa
afastar a morte de quem vai ingeri-la, também demonstra a dualidade entre a vida
17
sempre ameaçada, que ao mesmo tempo é defendida, sendo dessa forma, um prato
bastante representativo no quesito simbologia.
Nesse sentido, procura-se entender como algumas culturas imprimem caráter
simbólico para o alimento e analisá-lo dessa forma que lhe é própria, nos ajudará a
termos condição de entender como ele se transforma em objeto ritual. Em sua obra
“De caçador a gourmet”, Ariovaldo Franco27 explica melhor essa questão,
Existe íntima relação entre alimento e crenças religiosas. Os alimentos e bebidas são adotados pelos ritos de uma religião, bem como a proibição de alguns deles, refletem a geografia e a cultura do território onde ela se originou. (...) O alimento sempre esteve associado de maneira íntima a comemorações e é, muitas veses, parte essencial de seus ritos.
Entre os egípcios, uma das antigas civilizações considerada mais religiosa,
era costume colocar no interior dos túmulos, alimentos, afim de garantir a
sobrevivência dos mortos em outras vidas. Nesse mesmo sentido os chineses
costumam depositar uma tigela de arroz cozido aos pés do morto, fazendo o mesmo
durante o Ano-Novo, quando colocam uma tigela de arroz no altar no interior de
suas casas para seus antepassados pedindo proteção. Normalmente, para essa
civilização, para cada ser humano vivente, o arroz representa a própria vida e
fertilidade.
Em Bali existe a crença da alma dos arrozais, sendo ali construídos pequenos
templos para as cerimônias religiosas. Os terraços de arrozais de Banau e Bali,
situados nas Filipinas e na Indonésia traduzem sua cultura, com rituais e costumes
perpetuados pelo arroz. O ciclo do arroz, desde seu plantio até a colheita, simboliza
o ciclo da vida, bem como sua renovação.
Outro alimento que ergueu e arruinou impérios, desde tempos remotos, não
poderia deixar de ser citado aqui -- é o Sal -- elemento simbólico nas culturas
mediterrâneas, que era usado para a conservação dos alimentos e se transformou
com o surgimento do cristianismo, em símbolo de renovação. Durante muito tempo,
na religião católica foi usado na cerimônia do batismo. 27 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 2° Ed. São Paulo:Senac. 2001.p. 26.
18
Para as culturas ameríndias, o milho representa o grão divino. Pela sua
facilidade de adaptação, alcançou grande popularidade entre os continentes. Para
essas culturas o milho não era usado como alimento dado aos animais por ser
considerado planta dos deuses. Ainda hoje os mexicanos não comercializam o
produto, pois fazê-lo, na cultura mexicana, significa “vender a si próprio”.
O alimento se inscreve em uma categoria histórica, representa trocas
alimentares, no imaginário de alguns povos, são símbolos partilhados pelos
membros de uma mesma cultura, através de formas particulares e diferenciadas,
portanto não pertence a uma cultura homogênia. Para uma melhor compreensão
dessas afirmativas, fica aqui o conceito do professor Carlos Antunes 28 a respeito do
assunto, como segue...
O costume alimentar pode revelar de uma civilização desde a sua eficiência produtiva e reprodutiva, na obtenção, conservação e transporte dos gêneros de primeira necessidade e os de luxo, até a natureza de suas representações políticas, religiosas e estéticas. Os critérios morais, a organização da vida cotidiana, o sistema de parentesco, os tabus religiosos, entre outros aspectos, podem estar relacionados com os costumes alimentares.
Relembrando mais uma vez que no bojo disso tudo, se encontra o homem, a
fazer sua história, devemos ter sempre em mente a importância dos alimentos, para
a conservação, qualidade e manutenção de nossas vidas.
Brillat-Savarin, no segundo aforismo de sua obra “A fisiologia do gosto”,
aponta para o fato de que o homem, diferentemente dos outros animais, ao se
alimentar deve fazê-lo com critério, sem possíveis exageros que possam por em
risco a saúde e paz de espírito, que tem há ver com o quesito sociabilidade, artigo
de luxo nos dias de hoje, formadora de tradições e identidades Por isso ele alerta
aos glutões dizendo que “Os animais se repastam; o homem come; somente o
homem de espírito sabe comer.” 29 Sua obra, escrita em 1825 – verdadeira certidão
do nascimento da gastronomia, embora tenha sido elaborada no século XIX, torna-
se a cada dia mais contemporânea. Sua teoria de que devemos comer devagar, e
28 SANTOS.Op.cit. p.72. 29 SAVARIN. Idem.
19
acima de tudo escolher pratos adequados à hora e lugar a ser consumido junto à
escolha da companhia de quem conosco se encontra além de salutar para o
organismo como um todo, revela o espírito de quem o consome, ou seja, sua
educação e sensibilidade á mesa. Sua tese hoje possui uma denominação: É o Slow
Food. Através de estudos relacionados a essa questão, chega-se á conclusão de
que atitudes cordatas, idéias sensatas e de acordo com as necessidades dos seres
humanos, isso no sentido geral, só trazem benefícios à sociedade. Partindo do
princípio de que seus efeitos, na prática, não só favorecem, como também
beneficiam as relações humanas. Para fundamentar cientificamente essa teoria,
temos a frase do professor Carlos Antunes,30 baseado em longos anos de estudos
no assunto que diz que “o que se come é tão importante quanto quando se come,
onde se come, como se come e com quem se come. Enfim esse é o lugar da
alimentação na História.”
Numa época em que a revalorização de pratos regionais, em função da
defesa de culinárias locais, visando o meio ambiente, preservação de culturas,
tradições e identidades – uma das bandeiras do professor Carlos Antunes --
norteadas pela modernidade que traz em sua esteira, a formação de diferentes
valores comportamentais e de costumes em nosso mundo globalizado, se faz
urgente tomada de posições e atitudes coesas em defesa desse universo de
contradições de nosso mundo contemporâneo. Cada um de nós deve dar sua
contribuição -- no caso da presente monografia, como uma forma de resguardar
tradições á mesa, preservar a memória gustativa, que dentre os fatores acima
mencionados também atinge por tabela a economia não só do estado mas do país
como um todo, lembrando que o fato de se utilizar alimentos -- produção regional -- é
fundamental no contexto acima referido no que se refere às questões ambientais,
em defesa de recursos naturais e remanejamento de diretrizes econômicas quanto à
política de consumo interno na área alimentícia visando diminuição de custos no
transporte de alimentos.
30 SANTOS. Ibd. P.13
20
Neste sentido, numa entrevista concedida pelo escritor e ambientalista
americano Bill Mckibben,31 sugestões de como fazer isso, baseado em estudos são
propostos: ele indica que podemos utilizar estratégias em defesa da natureza ao
mesmo tempo em que afirma que o modelo de crescimento econômico atual não é o
ideal quanto à demanda por alimentos que vão parar na mesa do consumidor, tanto
em família, restaurantes ou similares; este, em sua opinião, deveria ser baseado em
produção regional, ou seja, numa economia local, justificando-se isso na medida em
que essa nova tomada de atitude, segundo a reportagem, diminui o uso de
combustíveis no transporte desses alimentos, beneficiando assim o consumidor final.
Para ilustrar isso, Mckibben dá um exemplo de sucesso desta teoria aplicado na
prática: as feiras de produtores que ocorre nos Estados Unidos em substituição às
compras de frutas, hortaliças e hortigranjeiros, antes feitas em supermercados.
Assim sua contribuição relativa a essa questão se resume na frase, ‘Pense
globalmente, compre localmente’, trocando em miúdos essa afirmação, sua
mensagem é a de que temos que aceitar, interagir com a globalização, mas nisso,
usar estratégias de sobrevivência tanto para nós, seres humanos, incluindo aí as
novas gerações que nos sucederão e no contexto geral a preservação do planeta.
Nesse sentido, no da preservação da raça humana, harmonia entre as
sociedades e meio-ambiente, nasceram dois grandes movimentos contemporâneos:
O Slow Food e o Terra Madre, ambos criados por Carlo Petrini. 32 O primeiro
defende a “volta da refeição lenta, saboreada com calma e baseada em alimentos
tradicionais. O segundo (...) em defesa da distribuição sustentável dos alimentos e
da preservação de espécies de animais e vegetais ameaçados.”
Brillat-Savarin embora não sendo nosso contemporâneo, tinha um olhar de
longo alcance, visando saúde, bem-estar e sobretudo sobriedade à mesa, era
adepto do comer devagar, sem pressa e com moderação. Certa ocasião
conversando com um jovem amigo lhe confessou que via em sua pessoa apenas um
defeito. Diante da insistência e certa apreensão por parte do rapaz já preocupado
31 REVISTA ÉPOCA. Seção Ciência e Tecnologia: Pense globalmente, compre localmente. São Paulo. Editora Globo.. 23/04/2007. p. 71-72. 32 AQUINO,Guilherme: REVISTA GULA. O inimigo do Fast Food. 02/2007 p. 14-15
21
em não querer decepcioná-lo respondeu – Comes depressa demais! 33 Jean-
Anthelme, ainda por conta dessa visão acurada, faz considerações a respeito da
alimentação e seu reflexo em nossa vida como um todo. Desta forma, no prefácio de
sua obra e34 por ocasião do lançamento da mesma, justificando que essa demora
fora proposital – ele a reservara para a velhice – diz que “ao considerar o prazer da
mesa (...) cedo percebi que havia muito a dizer sobre funções tão essenciais, tão
corriqueiras, e que influi de maneira tão direta sobre a saúde, a felicidade e mesmo
os negócios”.
Endossando a frase do homem por muitos considerado, o papa da
gastronomia e, levando em conta que no meio científico o tema da alimentação tem
despertado grande interesse – um dos mais coerentes, que se refere a atual
conjuntura do mundo, seria a questão da saúde, tanto ambiental quanto a nossa
dos seres humanos. Nota-se de fato que, vivendo em um mundo em que a
modernidade e os avanços tecnológicos nos atropelam, temos que nos adequar a
novos valores, mas, sem perder de vista prioridades como as descritas acima.
Nisso, nossa identidade se torna frágil, fazendo com que às vezes percamos
a noção de tempo e espaço. Para assegurar o equilíbrio individual e coletivo nesse
sistema de coisas, nada melhor do que manter o equilíbrio da sociedade de forma
harmoniosa através da sociabilidade, e aí entra mais uma vez a importância da
História e Cultura da Alimentação e sua interdisciplinaridade, pois ao reunir
indivíduos em determinados locais, nossa identidade se reforça, formando tradições
e lugares tradicionais como, Bar Palácio -- tema de Mestrado da Mariana Corção,
tamanha sua importância para a sociedade curitibana. Bar do Stuart, há mais de
cem anos fazendo a alegria da elite paranaense. A Confeitaria das Famílias,
oferecendo o seu doce sabor aos paranaenses por décadas de tradição; isso sem
contar o bairro Santa Felicidade e sua estrela principal -- a Polenta trazida pelos
imigrantes do Vêneto, Itália, que projeta a culinária a nível mundial, entre outros
trabalhos extraordinários todos sob a orientação do professor Carlos Antunes, que
vão desde conclusão de curso -- como é o presente caso -- até doutorados, todos
33 Op. Cit. P. 20. 34 BRILLAT-SAVARIN,Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. Rio de Janeiro. Companhia das Letras, 1995. p. 15.
22
imprescindíveis para enriquecer e formar a historiografia da História e Cultura da
Alimentação, na qual o nosso Armazém Santa Ana se enquadra, na condição de
tema do presente estudo.
Pesquisas dentro de nossa Universidade, a exemplo de outras de igual
renome, dão enfoque especial à produção de alimentos saudáveis e de qualidade,
sem prejuízo à natureza e ao indivíduo em si. Num momento em que há uma forte
tendência no sentido de uma homogeneidade do sabor que vem na esteira do
capitalismo surgirão os fast-foods, os Mac Donald’s, Na revista “Questões & Debates”,
o professor Carlos Antunes define essa nova forma de se alimentar como
filha das mudanças desencadeadas desde a metade do século passado até os dias de hoje. Vivemos, hoje, a MacDonaldização do mundo, prevalecendo um gosto pausterizado e homogêneo, sem graça. Diante das transformações impressas pela urbanização e pela globalização, a alimentação passou e continua passando por mudanças que afetam a qualidade dos alimentos produzidos e industrializados. Na verdade, um novo estilo de vida impõe novas expectativas de consumo, que acabam orientando as escolhas dos
alimentos. 35
Nessa direção, ele aponta mais uma vez, para a importância da História no
mundo social, econômico, ideológico, em especial no acadêmico e cientifico. Nisso
entra com muita propriedade a História da Cultura da Alimentação pelas razões
acima especificadas. Na qualidade de pioneiro na História da Alimentação no Brasil
não tem poupado esforços, no sentido de fazer com que o mundo científico dê a
devida atenção e valor a essa linha de pesquisa, em favor de uma boa alimentação
para toda sociedade. Para ele, a questão alimentar “deve se situar no centro das
atenções dos historiadores e de reflexões sobre a evolução da sociedade, pois a
História é a disciplina que oferece um suporte fundamental e projeta perspectivas”. 36
Numa recente reportagem da Gazeta do Povo37 Mônica Abdala, Doutora em
Sociologia pela Universidade Federal de Uberlândia, pesquisadora da cozinha
mineira, autora do livro “Receita de Mineiridade”, matéria que prova que ao unir a
35 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos.História da alimentação. História: questões & debates. Curitiba, ano 22, n? 42, jan/jun. 2005. p.21 36 SANTOS. Op. Cit p. 12. 37 AMPUDIA; Ricardo. Culinária regional- Quiabo com sotaque mineirinho. Gazeta do Povo. Curitiba: Quinta-feira, dia 08/05/2008.Caderno Bom Gourmet. P. 04.
23
fome com dificuldades na colônia brasileira, fez com que surgisse a famosa cozinha
mineira, que a partir de estratégias conseguiu unir a alimentação saudável e nutritiva
a partir de “receitas adaptadas dos doces e farinhas portuguesas, que chegavam
estragados à colônia,(...)”.38 A cozinha local precisava aproveitar rápido tudo o que
estivesse à mão, em tempo de carestia o jeito era encontrar estratégias para
produzir alimentos de qualidade e quantidade para a sociedade local. Um dos
tradicionais pratos vindo dessa cozinha que é referencia gastronômica internacional
nos é passada pela antropóloga Luciana Patrícia de Morais, entrevistada por
Mônica, mineira de Belo Horizonte radicada em Curitiba há cinco anos, que nos dá a
receita de frango com quiabo e angu tradicional do triângulo mineiro, receita de
família e um dos clássicos pratos regionais dos mineiros que junto a outras receitas
típicas, foram trazidas junto a sua bagagem.
Pela diversidade e mudanças de valores que atinge todos os segmentos de
nossa sociedade contemporânea caracterizada pela revolução industrial e tecnologia
de ponta e consequentemente uma maior urbanização que influencia e muito, a
história da alimentação globalmente, principalmente no que tange ao
desenvolvimento das indústrias alimentares e a ampliação dos restaurantes e praças
de alimentação para alimentar um número cada vez maior de pessoas, que por
diferentes motivos se alimentam fora de casa, se torna cada vez mais pertinente o
estudo e pesquisas nessa área, visando uma melhor compreensão quanto à
historicidade e dinâmica dos alimentos dentro da Historia e Cultura da Alimentação,
nossa linha de pesquisa.
Nesse contexto temos o fast-food, como nova forma de comensalidade, um
novo estilo de vida, oposto ao slow-food que reinvidica a volta da alimentação
saudável. Ariovaldo Franco justifica essa nova forma de se alimentar como sendo
uma das alternativas do homem frente à modernidade pautada por valores novos,
segundo sua opinião “O fast-food, satisfaz a necessidade atual de rapidez e
responde a demanda de relações impessoais decorrente da cultura urbana e de seu
ritmo”. 39 Para o professor Carlos Antunes “no Brasil os estudos e pesquisas tem
38 Idem, mesma página. 39 FRANCO. Ariovaldo. De caçador a Gourmet Uma História da Gastronomia. 2° edição. São Paulo. Senac, 2001, p. 229.
24
demonstrado que, em função do fast-food, um novo padrão de vida vem se
delineando, com prejuízos dos produtos da dieta nacional do povo.” Em seu artigo
“Comida e sociedade: Significados Sociais na História da Alimentação” o professor
Henrique Carneiro se pronuncia a respeito do assunto. Para ele,
A importância do fenômeno do fast food tem sido corretamente apontada como uma das chaves para a compreensão da natureza dos problemas sociais de nossa época. Vários analistas têm identificado uma corrosão dos hábitos alimentares familiares, como as refeições partilhadas, o que leva à substituição da alimentação em casa pelos sistemas de restaurantes ou lanchonetes. A expansão da lanchonete, especialmente de algumas cadeias construída sobre certas marcas,traz consigo um sistema alimentar específico baseado na substituição dos carboidratos complexos (cereais, amidos) por carboidratos simples (acúcares e gorduras), com conseqüências daninhas para a saúde e para a ecologia global.
40
Endossando esse conceito o professor Carlos Antunes afirma que, frente às
transformações impostas pela urbanização e pela globalização, a alimentação passa
continuamente por muitas mudanças que desvirtuam a qualidade dos alimentos
produzidos e industrializados em geral. Segundo ele “na verdade um novo estilo de
vida impõe novas expectativas de consumo, que acabam orientando a escolha dos
alimentos.”41 Hobsbawm em sua obra “A era dos Extremos” trocando isso em miúdos,
nos diz que
Nesta transição de final e inicio de milênio, há o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompiento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sócias. É o estilo jovem de vida que triunfa, estilo este que passou a ser marca mundial, isto é, a juventude praticamente deixa de ser uma etapa da vida para se constituir num estilo de vida. O jeans, o rock, o hambúrguer e a coca-cola são expressões simbólicas dessa nova cultura”
42
Em função de tudo isso, mais a autonomia dos adolescentes, que é vislumbrada
pela industria, que elabora estratégias de modo a fazer com que esse jovem
consuma cada vez mais, acontecem mudanças no padrão alimentar vigente,
atingindo a população, nem sempre de modo positivo, pois esse alimento passa a
ser menos satisfatório ao paladar e ao aporte nutritivo. Nesse sentido, pesquisas
40 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 22, n° 42. jan/jun 2005, p.75 41 Idem p.21 42 Idem, mesma página.
25
efetuadas na História e Cultura e Alimentação visam procurar soluções e apontar
caminhos no fazer e contar a História da Alimentação.
26
2. CAPÍTULO I – DÉCADA DE 30, CURITIBA: IMIGRANTES,
COMÉRCIO E URBANIZAÇÃO.
2.1 IMIGRANTES E A POLÍTICA DE ABASTECIMENTO
Reflexões contidas nesta pesquisa originam-se do tema de nosso estudo, o
Armazém Santa Ana -- localizado no Bairro Uberaba, em Curitiba, patrimônio cultural
e gastronômico, tombado desde 1995, seus proprietários, agora em sua quarta
geração, são descendentes do casal de imigrantes que aqui chegaram em 1929
vindo do leste europeu: o ucraniano Paulo Szpak e sua esposa Júlia Zileonka, esta,
descendente de poloneses. Após quatro anos de haver chegado ao Brasil em 1934,
eles inauguraram o armazém de secos e molhados com a denominação de
“Armazém Santa Ana”, que completou 74 anos de funcionamento em trinta de maio
do corrente ano. Desse modo tem-se que o local presta serviços à comunidade
sempre no mesmo endereço, com o diferencial de ter à sua frente todos esses anos,
a família fundadora, agora já em sua quarta geração.
O fenômeno da imigração ocorrido entre os séculos XIX e XX, na Europa, foi
apoiado dentro da expansão do capitalismo, junto a isso, também relacionado com
as modificações ocorridas nos sistemas econômicos, sociais e políticos europeus.
Nisso temos que os primeiros ucranianos chegaram em nossa terra lá pelos anos de
1891, em sua maioria originária do oeste da Ucrânia que neste momento se
encontrava sob o jugo do império Austro – Húngaro, em sua maioria agricultores a
procura de um lugar para abrigar, prover sua família. A professora e estudiosa do
assunto, Maria Angélica Marochi, define melhor essa situação quando assinala que
à época,
(...) boa parte do continente europeu passou por um processo de transformação. Dentro desse processo, vários fatores, agindo isoladamente ou articulado entre si, dependendo do local ou do país, criaram uma ‘Europa expulsora’, que viu entre os anos de 1850 e 1930 mais de cinqüenta milhões de pessoas partirem (...) Fatores como o forte crescimento demográfico, a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários, a concorrência desleal dos produtos agrícolas no mercado interno, o endividamento dos pequenos proprietários rurais, o aumento exagerado dos impostos, as perseguições políticas em alguns paises, a mecanização da agricultura, o avanço tecnológico das industrias e o grande desemprego provocado, principalmente,
27
pelos dois últimos fatores foram, sem dúvida, as principais razões que levaram as pessoas a partirem para a América.
43
A política geradora da vinda de imigrantes para nossa região foi voltada
claramente para a produção de gêneros alimentícios e para a ampliação de
abastecimento. Com características diferenciadas, explicadas na obra, “História da
Alimentação no Paraná” do professor Carlos Antunes, em consonância com idéias
da também professora Maria Ieda Linhares, ambos enfatizam a importância das
pesquisas efetivas na área de consumo interno porque,
Cada centro urbano tem suas estruturas particulares de consumo e de consumidores, determinada pelas condições que a caracterizam. A história do abastecimento é pois, uma história que se regionaliza, que foge do nacional, que se particulariza, embora suas grandes coordenadas estejam presas às determinantes do sistema maior.
44
Nesse contexto a história tem seu início em São José dos Pinhais, onde
imigrantes poloneses – ucranianos da família Zileonka, da qual fazia parte a
matriarca dos Szpak, Júlia Zileonka, ajudaram a fundar, juntamente com outras
etnias a Colônia Afonso Penna, em 1908.
Nos primeiros anos do século XX, o governo paranaense bem interessado
nos ensinamentos do Instituto Agronômico resolveu criar uma colônia modelo perto
da capital. Surgiram várias ofertas, dentre elas destacaram-se duas no município de
São José dos Pinhais: Uma era de terras denominada de Fazendinha, e a outra era
a conhecida e histórica “Fazenda Águas Bellas, local onde no ano de 1690 foi
construída a Capela de Bom Jesus dos Perdões, primeiro templo católico construído
no espaço são-joseense”.45
A escolha foi balizada pela proximidade para com a capital, boas terras e pelo
grande número de capões de mato. Contando com todos esses requisitos venceu
Águas Bellas; assim sendo, pela quantia de setenta contos de réis, pagáveis em 43 MAROCHI, Maria Angélica. Imigrantes 1870 – 1950. Os europeus em São José dos Pinhais. Curitiba.Copyright, 2006. p. 19 44 SANTOS op. Cit. P. 11 45 MAROCHI. Op. Cit 150
28
prestações pelo prazo de três anos, o proprietário da Fazenda, Roberto Müller,
transferiu a escritura pública da Fazenda Águas Bellas para o Estado do Paraná. O
espaço utilizado, fazia divisa com os rios Iguaçu e Pequeno. Essa colônia,
funcionaria como um modelo dentro da política de imigração, onde a função principal
desse imigrante era a de promover a produção excedente agrícola de alimentos e
também a de criação de animais, para favorecer nisso a produção de leite e
derivados, de acordo com Angélica Marochi.46
Através de um decreto expedido pelo governo paranaense, assinado em 26
de março 1908, no artigo primeiro, destacou-se que a “Colônia modelo situada na
fazenda denominada ‘Águas Bellas’, do município de São José dos Pinhais,
denominarse-á ‘Afonso Penna’,”47 O nome dado à colônia foi um tributo ao ex-
presidente da República Afonso Penna. Hoje consta uma placa na Sociedade Clube
Aliança, nome atual da antiga “Associação Agrícola Affonso Penna”, placa essa que
homenageia seus fundadores, edificada no ano de 1958. Dentre os homenageados
figura o nome dos Zileonka, poloneses com elo de parentesco com Júlia Zileonka,
Primeira matriarca do armazém Santa Ana.
Como é natural, mudanças de diversas naturezas com o avanço da
modernidade ocorreram não só nesta colônia -- a Afonso Penna -- mas, em todas as
outras também. Dados interessantes referentes a ela nos chamam a atenção,
sobretudo porque em algum lugar no tempo tais dados se encontram relacionados
com a história do Armazém Santa Ana, o que vai ser esclarecido mais adiante.
No Final dos anos 30, em função de desentendimentos de alguns associados,
esta cooperativa foi desmembrada, nisso se tem que a “Sociedade Agrícola
Instrutiva Affonso Penna”, no dia 30 de abril de 1938, passou a chamar-se,
oficialmente”Cooperativa Agrícola Mista Iguaçu Ltda.”48 Por ocasião do centenário
da cidade de São José dos Pinhais, o jornal “ Correio do Povo”, para comemorar
esta data editou um pequeno histórico desta colônia onde se pode ter a idéia da
dimensão produtiva da colônia, no início do ano de 1953. Segundo dados
46 Marochi . p. 152 47 Ibid p. 150-151 48 Op. Cit.p. 163.
29
A Cooperativa de Lacticínios Iguaçu (...)graças ao valioso auxílio da Associação dos criadores de gado na Polônia, que remeteu à Cooperativa 16 vacas de raça vermelha, com o intuito de mais tarde exportar ao Brasil esse gado, os Afonso-Penenses já se dedicavam há vários anos na criação de vacas leiteiras, fornecendo leite a Curitiba.(...) O dia 30 de abril de 1938 (...) é a data que marcou o progresso material da Colônia Afonso Penna.(...) os primeiros anos foram muito difíceis(...) mais aos poucos tudo foi vencido e a Cooperativa progrediu de maneira satisfatória(...)
49
Na época, como Cooperativa Agrícola Mista Iguaçu Ltda, ela já possuia
fábrica em edifício próprio, com instalações modernas para a época e, higiene
adequada. De acordo com Marochi50 dos seus 72 associados no período,
mencionado, a colônia recebia mais de 2600 “litros de leite diariamente,(...) queijos e
manteiga de marca ‘Iguaçu’, vendendo-os principalmente em Curitiba e
Paranaguá.(...) mantém um armazém de secos e molhados para seus associados
(...) artigos de primeira qualidade.(...)
Note-se aí, na década de 1930, em São José, ao lado de uma economia de
subsistência, surgem os primeiros alvarás de licença concedidos pela Câmara de
Curitiba, para estabelecimentos de armazéns de secos e molhados. O Armazém
Santa Ana recebeu seu primeiro Alvará no ano de 1934,51 quando abriu suas portas
como “taverna de 2° classe”, ao comércio curitibano e ao povo paranaense.
No cenário brasileiro da economia relativo ao segmento das cooperativas
atualmente, no Paraná, contando com 234 núcleos, e mais de 451 mil associados e
gerando 925 mil postos de ocupação que envolvem mais de dois milhões de
paranaenses, conforme entrevista dada por João Paulo Koslovski, 52presidente do
Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado do Paraná (Ocepar), em nosso
estado “destacam-se o ramo agropecuário com mais de 120 mil cooperados, o de
crédito que já possui mais de 300 mil cooperados, e o ramo da saúde(...). O
presidente encerra a entrevista informando que “somente no ano de 2007, as
49MAROCHI. Idem. 50Idem 51 FENIANOS, Eduardo Emílio. Uberaba, Jardim das Américas e Guabirotuba. Presente do Passado. Curitiba. Casa da Memória. Coleção Bairros de Curitiba p.23 52 REVISTA EMPRESA & CIA. Cenário brasileiro.n° 4. maio/junho 2008. p. 22-23
30
cooperativas paranaenses movimentaram R$ 18 bilhões e exportaram mais de Us$
1 bilhão.”53
Nesse contexto, Curitiba está entre as cidades com melhores condições de
sustentabilidade global até 2020. Segundo reportagem do “Jornal Correio de
Notícias,”54ela faz parte de um grupo de dez cidades, isso a nível mundial, com o
diferencial de ser” a única cidade da América do Sul citada no estudo.”
2.2 SURGIMENTO DO COMÉRCIO DE SECOS E MOLHADOS – URBANIZAÇÃO
EM CURITIBA
A origem do comércio de Curitiba no que tange ao surgimento de armazéns de
secos e molhados remonta ao século dezenove, quando um dos primeiros armazéns
em nosso estado conforme anotou – Vieira dos Santos, foi fundado em princípios do
século XVIII “por um tal de João de Almeida em Morretes, que vivia do comércio
ribeirinho, do intercâmbio com as tropas e das plantações de cana e cereais”55, sua
presença era importante para a sociedade, tônicos digestivos, elixires, adquiridos em
boticas e farmácias, quando o produto sumia das prateleiras destas, logo iam ao
armazém mais próximo buscar. Nisso se tem que nos campos de serra acima,
oferecendo aos tropeiros seus serviços, nasceram os ancestrais dos modernos
armazéns. A denominação secos – coisa interessante – se deve a uma proibição
“datada de 1780 e lançada pela Câmara de Paranaguá contra a próspera vila de
Morretes, ‘O ouvidor proíbe o comércio de fazendas e secos nas lojas de Morretes”56
Esse ramo de comércio ajudou no desenvolvimento econômico de Curitiba, as
“vendas” como eram chamadas, comercializavam produções do próprio município ou,
ainda, produtos manufaturados que vinham de outras cidades e até de outros paises,
especialmente da Europa. Importante ressaltar que muitos desses produtos eram de
má qualidade ou totalmente impróprios para consumo no Brasil.
53 Idem p. 23 54 JORNAL CORREIO DO POVO. São José dos Pinhais, 11/11/2008 p. 05. Disponível em http://ethisfere.com/2020-global-sustainability-centers/. 55 MACEDO, Rafael Valdomiro Greca de. BOLETIM INFORMATIVO DA CASA DA MEMÓRIA. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba. p.01 56 Idem,
31
Nesse contexto surgiu o Armazém Santa Ana, no ano de 1934, inicialmente como
ponto de tropeiros, hoje um dos espaços mais disputados do bairro Uberaba e
Curitiba.
Com relação ao progresso e urbanização de Curitiba das primeiras décadas do
século XX, Curitiba apresentava
“edifícios públicos que seriam notáveis mesmo em cidades de maior importância, serviços de assistência social beneméritos, associações educativas e beneficentes ou simplesmente recreativas,tem hotéis excelentes, casas comerciais idênticas a grandes centros, teatros modernos, cinco jardins públicos dos mais belos do país e entre eles e o passeio público, duas vezes maior que
o do Rio de Janeiro. 57
A presença do imigrante com forte perfil comercial, foi o diferencial para que
nossa cidade acelerasse o processo de industrialização, urbanização e
desenvolvimento, ultrapassando dessa forma, outras capitais brasileiras. Dessa
forma a sociedade paranaense caminhou para a modernidade nas décadas que se
seguiram. A partir de 1950 a economia vivenciava progresso em função da
expansão do café na época principal produto na pauta da exportação,
posteriormente substituído pela soja, alimento responsável pela introdução de novas
tecnologias, que exigiam grandes investimentos de capital.
Como acima referido novas etnias passaram a compor o mosaico
paranaense. Assim foi entre os anos sessenta e setenta, Curitiba teve a confluência
de migrantes e imigrantes em busca de melhores condições de vida. Frente a esse
grande crescimento populacional houve a necessidade de projetos no sentido de
modernizar e dar instrumentos necessários para que a cidade os comportasse de
forma adequada. Assim técnicos que projetaram sua urbanização priorizaram a
preservação ambiental e a valorização de seus habitantes. Esse fato aumentou em
muito o número de estabelecimentos comerciais em Curitiba, principalmente na área
da alimentação. Nisso a cidade passou por mudanças na estrutura, física, cultural,
econômica e social. Na cultural ocorreu o fechamento da rua XV; na física a criação
de malhas viárias e transporte coletivo e na área econômica a criação de um pólo
industrial com a criação da Cidade Industrial de Curitiba.
57 GARCEZ, Luiz Armando. Curitiba – Evolução urbana. Curitiba. 2006 p. 60
32
Em termos de urbanidade, Curitiba não é mais uma capital provinciana, a
cidade cresceu com todos os problemas de uma cidade grande. Quem vive em
Curitiba há dez anos ou mais, nota que bairros antes inabitados hoje comportam
“condomínios e grandes prédios e em todos os segmentos – gastronomia,
moda,cultura – há opções para os mais diversos bolsos, beirando os dois milhões” 58de habitantes, a grande metrópole tem que elaborar estratégias cada vez mais
complexas para conseguir viver em harmonia com essa sociedade, como o faz o
Armazém Santa Ana, tema de nossa pesquisa.
58 REVISTA VIEV. Urbanidade -- A multiplicidade que a vida nas grandes cidades oferece.Curitiba. maio de 2008. p. 17.
33
3. CAPÍTULO II – ARMAZÉM SANTA ANA – UMA HISTÓRIA DE
SUCESSO
3.1 IMIGRAÇÃO POLONESA E UCRANIANA NO BRASIL
Pegando o contexto do fluxo imigratório das várias etnias que para nosso
país vieram, desde o descobrimento do Brasil temos que os imigrantes mudaram o
panorama étnico-social do Paraná, procurando preservar suas tradições de origem,
disseminando seus costumes por todos os recantos do estado. A culinária trazida
por eles foi muito influente. Em especial os alemães, italianos, poloneses e
ucranianos. Que ampliaram a produção de autoconsumo nas propriedades rurais
próximas de Curitiba e de outras regiões urbanas. Além do milho, feijão, arroz, os
novos moradores difundiram a criação de suínos, galinhas e outras aves. A cultura
da batata, hortaliças e legumes, segundo o professor Carlos Antunes O plantio de
árvores frutíferas e, mais tarde, a criação do gado leiteiro. Na medida em que
começaram a obter excedente, foram vender os produtos na cidade.
Embora a quase totalidade de poloneses que chegaram ao Brasil, em
especial no Paraná, tivessem origem camponesa, este povo possuía uma culinária
muito rica. Falamos um pouquinho dessa etnia pelo fato de que dona Júlia Zileonka,
esposa de Paulo Szpak, fundador de o armazém ser de origem polonesa. Na região
Sul do estado e, especialmente em Curitiba, onde essa colonização foi mais
significativa, a cozinha originária difundiu-se e hoje é bastante conhecida nas
comunidades não-polonesas. Dona Júlia Zileonka, a fundadora e responsável pelo
cardápio inicial do restaurante Santa Ana e, sendo de origem polonesa logo passou
ao publico deliciosos pratos típicos tais como: Kaspuniak (sopa de repolho azedo),
aluszki (arroz enrolado em folha de repolho), rosó (sopa para noites frias), galaetca
(geléia de mocotó), receitas essas passadas a dona Orlanda por sua sogra Julia
Szpak 59 Isso sem contar o “pierog”, pastel de requeijão e batatas cozidas que é um
dos mais apreciados. Na seqüência a cozinha tem merecido, por sua variedade e
riqueza cada vez maiores elogios. Por conta disso e a competência da direção, um
público cada vez maior e mais diversificado converge para esse lugar.
59 Entrevista dia 03/04/2007. Dona Orlanda Szpak.
34
Os ucranianos etnia aqui trabalhada, chegaram a nossa terra, lá pelos idos de
“1891, originários do Oeste da Ucrânia, que neste momento se encontrava sob o
jugo do Império Austro – Húngaro, em sua maioria agricultores, fugindo da
superpopulação agrária em sua terra”60 Até a primeira década do século 20 chegam
cerca de cinco mil famílias, em sua grande maioria estabelecida no Paraná. Alguns
vão para o Estado de São Paulo. Lá fundam a cidade de Nova Odessa, em 1906.
Nossos ucranianos, ou, os que se estabeleceram em nosso estado, em sua maioria
se concentraram no interior do Paraná, ali fundaram a cidade de Prudentópolis, em
homenagem a Prudente de Moraes, um de nossos presidentes no período de 1894-
1898, e que em 1896, através de acordos dividiu uma grande área paranaense entre
imigrantes europeus, em especial os que vinham do Leste. Nisso os ucranianos
foram privilegiados, digamos assim, pois a área que lhes coube era bem mais
significativa do que as demais. Hoje a cidade de Prudentópolis com cerca de 50 mil
habitantes perfaz a maior colônia ucraniana em nosso País, conhecida também pelo
apelido de “terra das cachoeiras”, une de forma singular a cultura do Leste Européia
por eles preservada de forma admirável, com o magnífico cenário desse pedaço de
paraíso tropical.
A etnia ucraniana é das mais ricas, povo que também tem como uma de suas
características principais sentimento de forte religiosidade e apego à sua cultura.
Uma das provas disso é o fato de que suas missas em sua grande maioria são
rezadas em ucraniano. Se bem que isso, em grande parte deveu-se ao fato do
isolamento das pequenas propriedades ali concentradas. Com Deus sempre
presente também, na mensagem religiosa e festiva dos maravilhosos, coloridos e
finamente trabalhados ovos de Páscoa, as pessankas,61 verdadeiras obras de arte.
Que nada mais são do que ovos de galinha, mas que, para esse povo tem um
significado particular. Além da culinária, que dispensa comentários o povo ucraniano
tem também cultura marcante na dança e artesanato. No que tange à dança, a mais
tradicional é a Hopak. Eles utilizam vários instrumentos musicais, em suas
festividades, como a Bandura, instrumento de cordas típico da Ucrânia e o Cymbali
(tocado com martelinhos). Àquele muito utilizado em músicas folclóricas. Este
predomina principalmente, perto dos Montes Cárpatos. Quanto ao artesanato, no
que se refere aos trajes típicos, por exemplo, temos diferentes formas de bordado
60REVISTA TV ESCOLA. Painel histórico. Abril de 2001. p. 36. 61 Idem p.37.
35
demarcadas pelo ponto cruz, para cada região: nas partes oeste e norte usa-se
desenhos geométricos. Já na oriental da Ucrânia, predominam as frutas, cerejas ou
uvas. Há, costumam bordar rosas também!
3.2 O COMEÇO DE TUDO
No ano de 1929 chega ao Brasil o ucraniano Paulo Szpak junto a sua esposa
Julia Zileonka, inaugurando em 1934 o Armazém Santa Ana e após o falecimento do
casal seus filhos, continuam a manter a tradição na culinária, atendimento e
prestação de serviços diferenciados. Após tantos anos e dentro de uma de suas
múltiplas identidades, o local é também, no happy hour das noites curitibanas, um
dos botecos preferidos. O lugar, que antes era ponto obrigatório de descanso de
tropeiros, “hoje, é ponto de parada de um público que busca uma boa cerveja na
companhia de amigos” 62.Sua cozinha eclética e tradicional ao mesmo tempo, atrai a
cada dia um público maior e diversificado. Isso implica em afirmar que o Santa Ana
“faz parte do roteiro turístico e gastronômico da capital” 63 por conta de sua
conotação de referencial e cartão de visitas não só da comunidade uberabense, mas
também da grande Curitiba.
No desenvolvimento deste trabalho, esse fato foi confirmado por Ana Szpak,
uma das proprietárias, em uma das entrevistas concedidas, ao confidenciar que a
empresa tem convênio com agências de viagens,64 Esse dado importante, mais
adiante, no depoimento de um de seus irmãos, Sílvio e esposa Christian,65 foi se
encaixando com essa informação. Ambos contaram que por ocasião de diversas
viagens que a família tem feito, não se cansam de ter agradáveis surpresas em
saber que o armazém se torna cada vez mais conhecido. Uma vez ao chegar em
Porto de Galinhas, Pernambuco, um turista ao saber o sobrenome do casal,
perguntou: “Vocês são donos do Armazém Santa Ana?” Sendo a resposta positiva,
comentou: “Sempre que vou à Curitiba, minha rota turística inclui, obrigatoriamente,
uma visita ao Armazém Santa Ana, para saborear de seu gostoso cardápio!” Ao
viajar para a Argentina, ou outro lugar qualquer fora do Brasil, eles deparam, 62 STAVISKI, Norberto. Pelos Bares do Paraná. A vida é a Arte do Encontro- o Bar é o lugar. Curitiba. Palavra Viva. 2004. p. 125. 63 “Coluna do Grecca” 14/02/2006, acessado em 20/05/2008. 64 Entrevista do dia 11/03/2008, concedida por Ana Szpak, uma das proprietárias do Armazém Santa Ana. 65 Entrevista concedida pelo casal Sílvio e Christian Szpak. Curitiba. Dia 18/03/2008.
36
seguidamente, com pessoas a elogiar esse local, a hospitalidade da família, uma de
suas marcas registradas, junto à tradicional cozinha ucraniana e outros pratos
influenciados por outras etnias que para cá migraram, oferecem contribuição, à típica
culinária paranaense.
Dessa forma, história, turismo, gastronomia e sociabilidade, todos ancorados
por fontes manuscritas e pela história oral, se unem para contar a trajetória desde
1934 até os dias atuais, do Armazém Santa Ana. Dado o período inicial em questão
ser historicamente demarcado pela trajetória de imigrantes, aqui será contada um
pouco a dos descendentes de poloneses- ucranianos que, juntamente com a
comunidade luso-brasileira, mesmo em tempos diferentes e junto a diversas etnias
que aqui chegaram, passaram a contribuir para a melhoria do espaço de
sociabilidade da sociedade paranaense.
Nesse contexto, a história tem seu início em São José dos Pinhais, onde
imigrantes poloneses-ucranianos da família Zileonka, da qual fazia parte a matriarca
dos Szpak, Júlia Zileonka, ajudaram a fundar, em colaboração com outros europeus,
a Colônia Afonso Penna, em 1908. Essa colônia, devido à sua proximidade com a
capital, Curitiba, funcionaria como a modelo dentro da política de imigração, onde a
função principal desse imigrante era a de promover a produção excedente agrícola
de alimentos e também a de produtos derivados de leite, 66 como relata Angélica
Marochi. Através de um decreto expedido pelo governo paranaense, assinado em 26
de março de 1908, no artigo primeiro, destacou-se que a “A colônia modelo situada
na fazenda denominada ‘Águas Bellas’, do município de São José dos Pinhais,
denominar-se-á ‘Afonso Penna’”.
Em homenagem a esses imigrantes consta uma placa na Sociedade Clube
Aliança, nome atual da antiga ‘Associação Agrícola Affonso Penna’ edificada no ano
de 1958.67 Dentre os homenageados figura o nome dos Zileonka, pais de dona Júlia,
esposa de Paulo Szpak, casal fundador do Armazém Santa Ana.68 É importante
salientar que ainda segundo Marochi, quais razões principais promoveram a vinda de
imigrantes da Europa para o Brasil no transcorrer do século XIX, onde,
66 MAROCHI, Maria Angélica. Imigrantes 1870-1950. Os europeus em São José dos Pinhais. Curitiba. Copyright, 2006. p. 150-151. 67 MAROCHI. Idem. P. 162-163. 68 STAVISKI. Op. cit. P. 129.
37
(...) boa parte do continente europeu passou por um processo de transformação. Dentro desse processo, vários fatores, agindo isoladamente ou articulados entre si, dependendo do local ou do país, criaram uma “Europa expulsora”, que viu entre os anos de 1850 e 1930 mais de cinqüenta milhões de pessoas partirem (...) Fatores como o forte crescimento demográfico, a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários, a concorrência desleal dos produtos agrícolas no mercado interno, o endividamento dos pequenos proprietários rurais, o aumento exagerado dos impostos, as perseguições políticas em alguns paises, a mecanização da agricultura, o avanço tecnológico das indústrias e o grande desemprego provocado principalmente pelos dois últimos fatores foram, sem dúvida, as principais razões que levaram as pessoas a
partirem para a América. 69
A política geradora da vinda dos imigrantes em nossa região, foi voltada
claramente para os gêneros alimentícios e a política de abastecimento. Com
características diferenciadas, explicadas na obra “História da Alimentação no
Paraná”, do professor Carlos Antunes, em consonância com idéias da também
professora Maria Yeda Linhares, ambos enfatizam a importância das pesquisas
efetivas na área de consumo interno porque,
Cada centro urbano tem suas estruturas particulares de consumo e de consumidores, determinada pelas condições que a caracterizam. A história do abastecimento é, pois, uma história que se regionaliza, que foge do nacional, que se particulariza, embora suas grandes coordenadas estejam presas às determinantes do sistema maior.
70
Com a contribuição particular de todos os povos que emigraram para nosso
estado foi-se configurando em sociedade uma mescla de culturas, idiomas, tradições
e hábitos que se destacam principalmente, na arquitetura, folclore e culinária. Com
essa pluralidade de riquezas, Curitiba comporta eventos culturais diversos o Festival
de teatro de Curitiba é um deles, (FTC) 71 cuja manifestação cultural atrai
paralelamente turistas e a boemia local, ao movimentar bares e restaurantes na
cidade. Aqui se revela mais uma das identidades do Armazém Santa Ana: um dos
Botecos mais badalados das noites curitibanas, a concorrer nessa modalidade entre
os melhores de Curitiba. “Meio armazém, meio bar. De longe, a casa alaranjada
parece ser apenas mais uma parada de compras de beira de calçada, (...) nesse
ambiente, cada dia se oferece um prato”, (...), a noite deliciosos petiscos e ambiente
69 MAROCHI. Op. cit. P. 19. 70 SANTOS. Op. Cit. p.11. 71 FERNANDES, José Carlos. Um vôo sem destino a Curitiba. Gazeta do Povo. Curitiba: Domingo, dia 13/03/2003. Caderno G. p. 03.
38
familiar. Numa das indicações da Revista Veja (guia 2001 -2002), 72 se tem o local
contribuindo com infra-estrutura turística local e lazer dos curitibanos.
O Paraná como os demais estados da federação, apoiado por diversas
entidades mais ações governamentais, avança economicamente. Destaca-se o setor
turístico economicamente, ao fomentar cultura e gerar emprego. Na reportagem
acima citada, os turistas, independentemente da razão da visita, “devem estar
dispostos a consumir comida, diversão e arte,”73 .Segundo “Despertai”, conhecida
revista, “(...) a indústria do turismo - que inclui hotéis, resorts, (...) companhias
aéreas, agências de viagens e outros serviços de apoio aos que viajam --- é descrita
como ‘a principal fonte de empregos do mundo’. 74 Nesse segmento consta que a
média anual de turistas diários em Curitiba, em junho de 2003, era de 4.200
visitantes.
. A vinda de imigrantes era parte fundamental desse processo. Nesse
contexto em 1908 chega o polonês-ucraniano, etnia aqui trabalhada, por se tratar
dos proprietários do Armazém Santa Ana, objeto da presente pesquisa.
Nesse cenário e tempo históricos surge, no século XVII, a figura dos tropeiros.
“Aventureiros que buscavam gado selvagem do Rio Grande do Sul para São
Paulo.Os campos de Curitiba, por estarem no meio do caminho entre os dois
estados, eram um dos pontos de parada preferidos” (...)75. Por volta de 1934, o
“Santana” começou a fazer parte da vida desses homens que ajudaram a
desenvolver o comércio curitibano.
A empresa familiar no comércio curitibano há 74 anos, sua proximidade com
tropeiros mais o turismo, colaborou com sua inclusão no roteiro turístico obrigatório
da capital. Em junho de 2003 numa solenidade oficial contando com a presença do
Ministro do Turismo Walfrido Mares Guia, foi lançada oficialmente a “Rota dos
Tropeiros”, novo produto turístico do Paraná.76 Tem-se aí o tripé composto por
entidade comercial-patrimonial, turismo e desenvolvimento, como vetor econômico e
cultural, extensivo a essa rota como um todo. Segundo Santos, o armazém pouco
mudou; na essência, o “Santana” continua o mesmo. Um lugar de encontros “na
72 GUIA VEJA-2001-2002. Especial Curitiba. O melhor da cidade. Dia 29/08/2001. p. 72-73. 73 GAZETA DO POVO. Op. Cit. Mesma página. 74 DESPERTAI!!: Que influencia tem o turismo?São Paulo: Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. 22/08/2005. p. 03. 75 Gazeta do Povo. Idem.p.09. 76 GUIMARÃES, Marian. A hora e a vez do Paraná. Op. Cit. Quinta- feira, 12/06/2003. Caderno Turismo. P.02.
39
casa de madeira que é ponto de parada, histórias para contar no happy hour”77 de
pessoas em busca de lazer, cerveja e boa conversa nas noites curitibanas, em
substituição aos “causos” e estórias dos tropeiros, personagens que se destacaram
em nossa história. A obra “Histórias do cotidiano paranaense”, da professora Maria
Auxiliadora Schimidt, ilustra melhor essa afirmação, quando a autora conta que,
(...) Muito mais do que uma presença física, os tropeiros iam deixando fragmentos de cultura: pequenos povoados, modos de falar, costumes, sentimentos...Eles serviam de correios, prestavam primeiros socorros médicos, aceitavam encomendas e faziam as vezes de jornalistas. (...) A história do tropeirismo é a verdadeira história da colonização do Paraná em lombo de mulas. Uma colonização de mais de um século, que teve por base a existência de bons pastos nativos, da água abundante e da figura deste homem original, nômade e prático em busca de fortuna – o tropeiro.
78
Assim, obras literárias, imprensa, documentação em geral, paralela à historia oral,
serão fundamentais, para o desenvolvimento deste trabalho, tais como as receitas
de família, alvarás, certidões, fotos, entre outros.
A presença da família em tempo integral à frente do estabelecimento
contribuiu, e muito, para o sucesso da instituição. Hoje, com a variante de diferentes
clientes e o avanço da modernidade, ainda se tem aqueles que, mesmo tendo se
mudado de bairro, continuam sendo clientes fiéis do local. Um exemplo disso é o
casal Carbonnar, antigos moradores que ali retornam sempre para prover sua
“despensa”. Nas palavras da esposa, D. Adelir, essa fidelidade denota sentido
afetivo quando diz, “moramos muito tempo lá e sentimos saudades.” 79 Pelas
características gerais do armazém --- bom atendimento, culinária eclética e
tradicional com receitas passadas de mãe para filha, facilidade em se adequar às
mudanças, isso ocorre frequentemente. Nessa linha entra a história da mesa que,
segundo Santos, o interesse pelo tema faz com que,
“A gastronomia saia da cozinha e passe a ser objeto de estudo com a devida atenção ao imaginário, ao simbólico, às representações e às diversas formas de sociabilidade ativa”(...) “as cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais, (...),a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e
77 STAVISK, Norberto. Op. Cit. P. 125.Pelos Bares do Paraná, na página 125. 78 SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. Histórias do cotidiano paranaense. Curitiba.Letraviva.1996, p. 37-38. 79 Entrevista concedida a Jane Campello Padilha, pelo casal Hélio e Adelir Carbonnar. Curitiba, em 15/03/2008.
40
mudanças dos hábitos alimentares tem referencias na própria dinâmica social. (...) Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro.
80
Partindo do pressuposto de que o ato de comer, além de ser um fator
nutricional, carrega também conotação de ser um ato social, a forma pela qual a
refeição é oferecida, seu sabor e variedade,
explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História.
81
O ato de alimentar-se dentro de certo espaço de sociabilidade é fator de
agregação e fixamento de identidades pessoais e grupais; Pesquisas definem
formas diversas de cultura e diversidade nas formas de apresentação e simbologia
dos alimentos. Para o antropólogo Roberto da Matta, a palavra cultura “exprime
precisamente um estilo, um modo, um jeito de fazer a coisa”.82 Assim sendo,
entende-se que nós seres humanos buscamos nossa identificação através da
cultura, sendo ela específica a cada grupo em particular que em determinado
momento partilha um sistema simbólico cultural.
Destaca-se no Dossiê da História da Alimentação, organizado pelo Professor
Carlos Roberto Antunes dos Santos, na parte que se refere à memória gustativa, a
importância da contribuição de Fernand Braudel junto a escola de Annales, dando
uma fisionomia definitiva por meio da cultura material a esse campo de pesquisa
histórica.”Braudel, como o maior representante da segunda geração dos Annales,
trabalhou o conceito de cultura material abrangendo os aspectos mais imediatos da
sobrevivência humana: a comida, a habitação e o vestuário”.83 No que se refere à
alimentação e práticas, no artigo temos que “hábitos e práticas alimentares de
grupos sociais, práticas estas distantes ou recentes, podem vir a constituírem-se em
tradições culinárias (...), reafirmada pela memória gustativa”.84 O sujeito começa a
adquirir uma identidade a partir da vivência em grupo junto a essa memória, que
passa a ser coletiva.
80 SANTOS. Idem p. 12. 81 SANTOS. Idem, p. 13. 82 DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil ser Brasil? Rio de Janeiro. Rocco, 1984.p. 17. 83 SANTOS 2005. Op. Cit, p. 13. 84 SANTOS. Idem, p. 15.
41
Maurice Halbwachs, ao falar da memória coletiva, estuda essa memória como
quadros sociais, onde as funções que a memória exerce de fortalecer a coesão
social através de laços de afetos, faz com que se formem comunidades
denominadas afetivas, assim a lembrança é fio condutor desta relação sujeito-grupo.
Memória coletiva e memória individual, segundo conceitos de Halbwachs,
entre essas memórias existem correntes ou caminhos por onde segue o pensamento
de um grupo. Elas se sustentam porque .encontra, nas muitas mentes que compõem
esse grupo o substrato necessário de que necessita. Por isso, os muitos grupos
reconhecem suas similaridades e diferenças. Partindo de diversas constatações
entre eles, de modo que esse conjunto de fatores são justamente os caminhos e as
correntes da memória coletiva. O indivíduo não participa exclusivamente de nenhum
grupo, mas, paralelo a isso, se encontra necessariamente influenciado por um ou
mais deles, como Jean Duvgnaud sintetiza no prefácio: ”A rememoração pessoal
situa-se na encruzilhada das malhas de solidariedade múltiplas dentro das quais
estamos engajados”85 ou seja, não há memória individual em sua opinião, isolada da
memória coletiva.
O imigrante ucraniano-polonês, como os demais nessa condição, chegando
no Brasil, vivenciou situações de adaptação. Parte desse processo está ligada ao
resgate e preservação de suas memórias e tradições que para Hobsbawm
Entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
86
Ainda para Halsbwachs, a memória coletiva se forma a partir da memória
individual, compartilhando o seu passado, suas lembranças, gerando a memória da
comunidade. Para ele “a lembrança é uma imagem engajada em outras imagens”87
assim a memória coletiva fornece ao grupo o sentimento de identidade. Dessa
forma, a lembrança só ocorre quando existe o grupo. As lembranças representam
um passado que, ao ser contado, sofre influência do presente, faz com que a
memória esteja sendo reconstruída no espaço atual. Note-se aí a responsabilidade
85 HALBACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Centauro. 2009, p. 14. 86 HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.p.9. 87 HALSBWACHS. Op.Cit. p. 78.
42
do Armazém Santa Ana em preservar a memória coletiva do bairro atrelada a sua
própria por conta de décadas, em verdade quase oito, pois, a 30/05 do ano corrente,
completou 74 anos. Sua cozinha tradicional, o clássico barreado, único prato típico
do Paraná, oferecido aos sábados, faz parte da memória gustativa e afetiva dos
paranaenses, também de turistas. Nesse ponto a responsabilidade estende-se a
nós, enquanto pesquisadores da História da Alimentação.
Assim sendo, trabalhando a memória gustativa no Armazém Santa Ana
constatamos que o barreado, einsbein, pierog, broas e queijos caseiros, embutidos e
defumados em geral, por seu sabor e qualidade, contam com seu público fiel.
Cervejas caseiras, vinhos e a conhecida cachaça, têm nesse lugar várias opções de
escolha. Sem contar o escondidinho de carne seca, mais um prato cobiçado, que
acaba de ganhar o título de segundo melhor petisco de Curitiba no concurso
Bohemia,88 em seu segundo ano de apresentação em território nacional. Neste
concurso, Edna, uma das funcionárias do Armazém, foi escolhida como o “melhor
garçom da cidade.” Lá, junto a essas iguarias continuam a venda de enxadas,
penicos esmaltados e vassouras de piaçaba, hoje por muitos considerados objetos
bizarros. César Lobo em uma de suas obras, evidencia a pluralidade de mercadorias
do Santana e a origem do barreado, um dos pratos mais procurados pelos clientes
como segue...
Nesse armazém, na periferia da cidade, você pode comprar qualquer coisa: sombreros, lingüiças, ou uma enxada. Mas o bom mesmo é sentar na varanda e comer o melhor barreado da cidade, que só a Ana, uma polaca-húngara, sabe fazer. Ana contou que o barreado surgiu da esperteza das mulheres que, com inveja dos homens que se divertiam durante o carnaval enquanto elas cozinhavam, resolveram se divertir com eles. Deixavam a comida embaixo da terra e quando voltavam da folia, era só desenterrar que o barreado estava pronto.
89
Junto a tudo isso, o armazém não só continua com o barreado, receitas
ucranianas tradicionais de família junto à de outras etnias que para cá vieram, como
também se renova frente à modernidade. Isso faz parte de uma de suas estratégias
para permanecer atuante no mercado, como assinala Norberto Stavisk ,“com a
terceira geração à frente dos negócios, os filhos Ana e Fábio acompanham o sinal
88 GAZETA DO POVO. Onde se tem “Boteco Bohemia 2008. Sucesso no ano passado,a eleição mais gostosa de Curitiba está de volta. “Curitiba. 13/03/2008. Caderno G.p. 02-03. 89 CESAR LOBO. Cidades Ilustradas. Curitiba: Copyright. 2004, p. 12.
43
dos tempos, deixando de lado as ferragens, destinando a varanda para ponto de
encontro de amigos. Junto aos secos e molhados (...) cerveja caseiras e afins”. 90
Nesse contexto temos a globalização que segundo o livro de resumos do I
COLÓQUIO E CULTURA DA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO que demonstra a
influência do processo de globalização na cozinha típica (...), aponta para a reflexão
conceitual sobre a mobilidade de fronteiras das identidades e seus usos do ponto de
vista patrimonial’. 91
Neste sentido, no artigo “Tradição e inovação nas culinárias --- tópicos para
reflexão” são tratados a dinâmica da tradição culinária e seu conflito com novas
formas de se alimentar na modernidade, bem como na preservação de produtos que
contêm a identidade e traços de determinada cultura. Nesse âmbito, em especial na
culinária regional que é o caso do Santa Ana, ao mesmo tempo em que refletem a
posição do “pensar a relação turismo e alimentação, permite-se analisar uma das
mais interessantes dinâmicas de utilização do patrimônio gastronômico na
atualidade “(...) 92, que é o da perpetuação e salvaguarda da memória coletiva de
lugares considerados como patrimônios imateriais.
O Armazém Santa Ana, uma empresa eminentemente familiar com receitas
passadas de geração em geração é um desses locais --- por quase oitenta anos,
tem garantido no seu ramo, o da alimentação, a memória no bairro Uberaba e
Curitiba. Cabe aqui a consideração final das autoras quanto à importância dessa
culinária inserida no universo do turístico onde,
Nesta complexa relação que se dá entre o turismo e patrimônio gastronômico (...), pretende-se propor aqui duas reflexões: a primeira, caracterizando a atividade turística como estratégia de valorização e a divulgação do patrimônio gastronômico, o que também permite gerar possibilidades reais de desenvolvimento sócio-econômico (...). A segunda reflexão, bem mais polêmica, consiste em observar com cautela algumas distorções da utilização do patrimônio gastronômico dentro do contexto turístico: o reforço de estereótipos e ainda os processos de “invenção da tradição” voltados para o turismo, no qual verifica-se o surgimento de iguarias já talhadas para comporem a oferta turística de um município buscando desenvolvimento.
93
90 STAVISKI, Norberto: URBAN, Raul Guilherme. Pelos Bares do Paraná. Curitiba: Palavra Viva. 2004, p. 125. 91 MORAIS Luciana Patrícia de, GIMENES, Maria Henriqueta Sperandio Garcia. Tradição e inovação nas culinárias regionais-tópicos para reflexão. IN: COLÓQUIO DE HISTÓRIA E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO. Iº, 2007, Curitiba. Caderno de Resumos pág. 22. 92 Op. Cit Resumos, p. 22 93 Idem Resumos. p. 23.
44
Ilustrando com clareza a relevância da culinária para a sociedade, Brillat-
Savarin, em sua obra clássica “A fisiologia do gosto”, mostra a força da gastronomia
como elemento aglutinador, sua importância no viver em comunidade, para ele,
A gastronomia é um dos principais vínculos da sociedade; é ela que amplia gradualmente aquele espírito de convivência que reúne a cada dia as diversas condições, funde-as num único todo, anima a conversação e suaviza os ângulos da desigualdade convencional. Também é ela que motiva os esforços que todo anfitrião deve fazer para acolher bem seus convidados (...),.
94
No que se refere à atuação do Armazém Santa Ana existe o consenso geral
de que, de fato, ele reúne todos os elementos citados por SAVARIN no que se refere
ao poder da gastronomia em sociedade e a sociabilidade por ela gerada. A
consagração de Edna como a melhor garçonete de Curitiba é uma das provas disso.
Uma resposta, já que a moça é orientada pelos Szpak --- não tirando em nada seu
mérito pessoal --- à hospitalidade oferecida pela cidade de Curitiba a todas as etnias
que para cá migraram, fundindo culturas que se apoiaram mutuamente. Tudo isso
proporcionou um brilho especial ao Armazém Santa Ana desde seu início de vida
ativa, sua culinária por conta dessa troca de culturas ficou mais rica. A professora
Altiva Balhana define essas trocas ao explicar que “Ninguém assimila sem ser
transformado, por outro lado, a assimilação não exige necessariamente a
substituição de todos os traços culturais originalmente adquiridos.” 95 Assim se
configura uma situação em que os imigrantes, junto a fé, trabalho,religião e culinária,
procuraram manter o elo com suas origens, estabelecendo as relações e trocas
culturais que foram fazendo-se necessárias para a sua sobrevivência.
A contínua inovação do Santana não se restringe à cozinha, ela perpassa
todos os ambientes do armazém no sentido de acompanhar novos tempos, isso sem
perder suas características principais. O lugar onde se localiza, Uberaba, mesmo
anexado à metrópole curitibana, ainda conserva, muito da antiga face simples do
bairro que surgiu no século XVIII, onde a maior riqueza era a agricultura familiar e de
subsistência. Sobre isso, temos a visão de Stavisk
“quem gosta de deixar para trás o rebuliço urbano é só seguir pela avenida (...) que leva ao Sudeste da cidade, margeando ainda pequenas propriedades agrícolas e bucólicas paisagens com muito
94 BRILHAT-SAVARIN, Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. Rio de Janeiro: Rocco. 1984, pp. 143-144. 95 BALHANA, Altiva Pilatt. Um Mazzolino de Fiori. Curitiba: Imprensa Oficial, v. 1, 2002. p. 267.
45
verde, mas que, aos poucos dão lugar ao progresso e à especulação
imobiliária”96
Todos esses fatores somados ao esforço conjunto da família conduziram ao
tombamento do estabelecimento como patrimônio histórico. O estilo arquitetônico é
uma rica e autêntica mostra da arquitetura ucraniana européia; a culinária, um
patrimônio gustativo imaterial, pertencente a memória coletiva curitibana.
Consagrado como um espaço privilegiado, o armazém, bar e restaurante Santa Ana
torna-se um espaço cada dia mais valorizado.
Nessa linha de pensamento voltamos ao livro de resumos, página 21, onde se
afirma que (...)“O patrimônio de uma cultura e seus monumentos dão concretude ao
discurso acerca desta cultura, à identidade.” (...)97 Assim, se tentará desvendar a
identidade e história desse estabelecimento comercial, agora acrescido da
conotação de boteco da moda, pois se tornou uma excelente opção para o Happy
Hour das noites curitibanas, com direito a MPB ao vivo.
Dessa forma, o Armazém Santa Ana deixa antever um grande potencial como
tema de nossa pesquisa, tanto em termos de bem patrimonial cultural e
gastronômico, como elemento aglutinador de desenvolvimento geral da região onde
se encontra, um dos últimos redutos de secos e molhados de Curitiba, referência de
tempos passados, que mantém a moda antiga, “freguês de caderno”.98 Nazaret
Moureaux em sua obra “coisas de Curitiba”, na parte relativa a Bares e
Restaurantes, conta que ”O tempo foi passando, o armazém foi crescendo (...), o
Armazém Santa Ana é um dos restaurantes mais requisitados da cidade
freqüentados pelos que amam a boa cozinha e os ambientes descontraídos e cheios
de poesia.” 99
Note-se aí a importância de se estudar as origens dos alimentos, sua
preparação, a proporcionar qualidade e saúde à população. Em meio a isso se
encontram relações humanas, sociabilidade a partir do encontro de culturas. No que
tange à gastronomia, na medida em que se alargam as possibilidades de trocas
culturais, isso se reflete em maiores possibilidades de escolha por ocasião de
refeições, feitas em restaurantes ou mesmo em casa. O professor Carlos Antunes,
96 STAVSKI, Op. Cit,p. 126. 97 Op. Cit Resumos p.21. 98 OP. CIT Coluna do GRECA. Via ON-LINE. 20/05/08. 99 MOREAUX, NAZARETH. Coisas de Curitiba 2 . Curitiba. Núcleo de Artes SYLVIO MOREAUX. 2007.
46
em recente entrevista ao jornal Gazeta do Povo, na qualidade de cientista pioneiro
no Brasil na área de pesquisa da História da Alimentação, faz considerações a
respeito da culinária paranaense, sua formação a partir da contribuição de diferentes
povos, “tem lugar para todos” afirma. Disse também, que “a comida sempre nos traz
uma história e, assim, o faz a paranaense”,100 Tendo em vista a contribuição de
imigrantes, a culinária regional é rica e diversificada. O resgate de receitas
tradicionais, como nos relata o professor Antunes, 101 sua relevância em função da
saúde, faz com que se comente que a melhor comida era a da vovó. Em seu
entendimento, valorizar a memória da cozinha paranaense foi o que “impulsionou a
criação de pratos típicos e grandes festas gastronômicas nas cidades do Norte e
Sudoeste (...) há um interesse crescente pela cultura do estado”, afirma.102
Fundamentando as palavras do professor, encontramos outra reportagem, também
da Gazeta do Povo, sobre o 2° Kozia Festyvalh, festa ucraniana, folclórica e
gastronômica da cidade de Prudentópolis, que marcou os 97 anos da emancipação
política e administrativa dessa cidade, fundada pelo ex-presidente Prudente de
Morais ao qual lhe deve o nome. A cidade possui o maior número de imigrantes
ucranianos do país. Segundo o jornal, a festa é “um passeio ao mesmo tempo
instrutivo e que pode reunir toda a família (...)”, 103 Saliente-se aí, a presença do
turismo ao favorecer junto ao lazer relações familiares e sociais, a partir desses
eventos.
O restaurante agregado ao estabelecimento é um desses lugares em que a
sociabilidade se faz presente num contexto afetivo familiar, contribuindo assim com
dois movimentos diretamente ligados com a arte de comer e a saúde ---Terra Madre
e Slow Food, o segundo se opõe ao Fast Food. Em síntese esses movimentos
iniciais, sugerem critério geral, a ser seguido visando principalmente a saúde da
população, em seu sentido mais amplo. Aquele congrega lavradores, camponeses,
pequenos produtores e artesãos, tudo isso em defesa da natureza e alimentação
saudável e natural em consonância com os movimentos ecológicos --- questão
primordial para a sobrevivência de qualquer tipo de vida em nosso planeta. Este é
100 CARAZZAI, Estelita Hass. Culinária do Leite Quente.GAZETA DO POVO. Curitiba. 13/03/2008. Bom Gourmet. p. 08. 101 Idem. Bom gourmet. 102.Idem. Bom Gourmet. 103 GUIMARÃES, Marian. Tudo pronto para o KOZIÀ FESTYVALH. GAZETA DO POVO. Curitiba. Quinta-feira. 14/08/2003. Caderno Turismo. P.03 Bom gourmet.
47
um movimento a favor da uma refeição saboreada com calma e baseada em
alimentos tradicionais, o terceiro movimento, o da refeição rápida, recorrente
atualmente em função da vida moderna, gera prejuízos à saúde, quando
consumidos sem critério. Visando a uma vida saudável, foi criado por Carlo Petrini o
Slow Food, explicado em entrevista para a revista Gula em fevereiro de 2005, 104
inserido esse movimento, no contexto da globalização.
O valor da culinária regional dentro do meio social, sua influencia na saúde
lazer e sociabilidade, parece ganhar força atualmente, Prudentópolis, onde se
realiza o Kozyalh Festval, será o primeiro município a ser contemplado “pelo projeto
piloto, de Turismo Aventura e Eco turismo, que engloba ações em áreas estratégicas
e estudos turísticos, normatização da atividade turística, capacitação de recursos
humanos, educação ambiental e marketing 105
Neste sentido como patrimônio cultural, gastronômico e turístico o Armazém
Santa Ana continua abrilhantando festas e eventos de várias naturezas.
Esses dados reforçam a importância da gastronomia no segmento turístico,
na definição da professora Lourdes Fellini Sartor ,
A gastronomia, para o turismo, é como se fosse o retrato do próprio povo que se oferece.’A cozinha de um povo é o único testemunho exato de sua civilização’ (Marcel Rouff), a definição alemã afirma que ‘o homem é o que come’. De fato, a cozinha representa o profundo sentido de ser e a forma de cultura e desenvolvimento não econômico, mas de civilização de um povo. Assim estabelece-se um contato direto com a comunidade. A mesa possibilita recolher o sabor local, estabelece a compreensão das gentes e orienta contatos sociais. É um elemento catalizador capaz de levar o viajante a percorrer muitos quilômetros para chegar aos quitutes que a mesa pode propiciar.
106
O turista viaja para certo local com determinado “intuitos”; dentre eles se
destaca o fator alimentação. Segundo Sartor, se fossem feitos estudos mais
acurados sobre o assunto a comida com certeza teria importância capital nos
destinos turísticos, segundo pesquisas apontadas em sua obra,
A comida seria a motivação de grande parte dos viajantes. A viagem pode não ocorrer especificamente em função dos quitutes, mas
104 AQUINO, Guilherme.REVISTA GULA. O inimigo do Fast Food. 02/2005, p. 14. 105 Op. Cit. Caderno Turismo. 106 SARTOR, Lourdes Fellini. Introdução ao Turismo.Caxias do Sul. Universidade de Caxias do Sul; Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1977.p. 64.
48
significa a atração propulsora, a razão inserida no contexto da seleção do local, na opção por este ou aquele, enfim, a forma decisiva na seleção do roteiro. Raramente, numa viagem de turismo, a comida cumpre apenas a simples função da alimentação. É também e essencialmente satisfação.
107
Reforçando o quesito satisfação, os irmãos Sílvio e Ana Szpak, proprietários
do armazém Santa Ana, têm duplo motivo para tal. Sua culinária nunca foi tão
festejada. Junto a isso, frequentemente encontram pessoas, em geral turistas que,
embora venham de longe, já ouviram sobre o Armazém e não passam por Curitiba
sem antes se deliciar com sua cozinha, ao mesmo tempo em que admiram o velho e
centenário casarão de arquitetura européia. Quando a família o adquiriu, tinha pelo
menos uns cinqüenta anos de fundação. Seu avô Paulo Szpak, conseguiu o primeiro
alvará como taverna de segunda classe pelo cartório competente da época, em
1934.
Ainda com relação a nossa culinária diversificada por conta de trocas
culturais, afirma-se que “no Brasil a gastronomia apresenta aspectos muito
interessantes e com tipificação e identidade muito próprias. As influências étnicas
que formam a população do país muito contribuíram para a diversificação da
culinária”.108 Esse fator contribui para que a massa flutuante de turistas que
enriquecem o país a cada ano aumente. Não se deve esquecer, entretanto, que o
turista, por ter várias opções ao mesmo tempo, necessita de atendimento
diferenciado. Ainda na visão de Sartor, o turista ao chegar ao local escolhido espera
“comer as especialidades locais e regionais, adequadamente aperfeiçoadas e
apresentadas”. 109 Tudo isso ele encontra no Santa Ana.
O Paraná sendo um dos estados brasileiros mais ricos etnicamente, vive “(...)
numa diversidade que parece desfilar como amostragem do mundo. Dizer que o
Paraná é ‘terra de todas as gentes, mais que chavão, é uma verdade estampada
nas ruas’110 não só o eventual turista, mas todos que para lá convergem encontram,
junto ao atendimento personalizado e carinhoso, mais do que um ambiente familiar.
Segundo Venturelli, 111 “todo esse caudal de experiências de mundo e de línguas
desaguou num panorama sócio-cultural marcante”. Nisso, a família Szpak, deixa
107 SARTOR, Op. Cit p. 64. 108 SARTOR loc.cit p.64. 109 SARTOR, Idem. Mesma página. 110 VENTURELLI, Paulo. Paraná: Terra de encontros. Fotos de Orlando de Azevedo. Florianópolis: Editora Mares do Sul, 1998.p.11 111 VENTURELLI, Idem.
49
marcas na história de Curitiba ao longo de sua trajetória, contribuindo para
enriquecer cada vez mais a cultura paranaense. Na condição de imigrantes nesse
estado chegaram, fizeram e fazem tudo para contribuir com a sociedade.
Alcançaram 74 anos de atividades completadas em maio de 2008, esbanjando força
e vitalidade.
50
4. Conclusão
O presente trabalho teve como objetivo pesquisar um lugar que é o cartão de
visitas do bairro Uberaba e Curitiba – o Armazém Santa Ana. Também um dos
botecos da moda que retém junto ao bairro a força turística a fomentar
desenvolvimento e turismo da região e Curitiba, e que tem em sua culinária eclética,
tradicional, uma das bases de seu sucesso. O bairro onde se encontra nosso objeto
de estudo, o armazém referido acima, é o Uberaba, maior em extensão e um dos
mais tradicionais de Curitiba. A entidade, filiada a Abrasel, “Associação de Bares e
Restaurantes de Curitiba”, também tendo convênio com a agência de turismo
Cipatur, correspondeu às expectativas gerais da pesquisa.
Esta linha cientifica se configura também, um filão em termos de estudo. A
intenção de desenvolver um trabalho neste tema teve origem a partir das aulas
ministradas pelo professor Carlos Antunes na Universidade Federal do Paraná, que
por sua vez é coordenador da linha de pesquisa de História e Cultura da
Alimentação. Essa linha de pesquisa devido a sua importância para a manutenção
da vida, tem despertado profundo interesse do mundo científico em geral, dessa
forma se espera colaborar tanto com o mundo científico, bem como junto a isso
veicular esse lugar que mantém a memória coletiva e gustativa desse local e por
extensão de Curitiba, pois ele é um dos locais em que a sociabilidade se propaga,
especialmente através do “boteco” Santa Ana, uma nova faceta do local que faz a
alegria e diversão dos curitibanos em seu happy hour.
A meta especifica do trabalho era procurar entender de que forma o local
conseguiu manter-se no ramo de secos e molhados onde outros estabelecimentos
fecharam suas portas. O objetivo geral era conhecer a identidade global da
instituição, que no decorrer da pesquisa foram identificados esses fatores, através
da metodologia aplicada que foi a da história oral, que tem como método de
trabalho, procurar respostas no presente para elucidar o passado, se mostrou
realmente eficaz e elucidativa em favor do conhecimento. Permitindo se desvendar o
segredo do armazém, guiado pela família de imigrantes Szpak, em 1929 e que
quatro anos depois, desde 1934 inauguraram o talvez, último legítimo representante
51
de armazém de secos e molhados de Curitiba, ainda na ativa ao longo de 74 anos,
fechados em 30 de maio do corrente ano.
Tudo começou quando ele, o imigrante ucraniano Paulo Szpak e sua esposa,
Júlia Zileonka, descendente de poloneses vindos do leste europeu no ano de 1929,
resolveram adotar o Brasil como seu novo lar, a exemplo de outras etnias que para
cá vieram, a procurar um lugar para se estabelecer, criar seus filhos já que expulsos
da sua, em sua grande maioria.
A vida do casal, em seu início não foi fácil, mas com garra, força de trabalho,
fé e determinação, conseguiram seu intento.
O lugar, antes parada de tropeiro, acabou virando um dos lugares da moda.
Hoje o bar restaurante e patrimônio arquitetônico tombado continua cheio de
vitalidade, agora tendo em sua direção a terceira geração representada por Fábio e
Ana, sem deixar de lado o apoio de toda a família, quanto à tomada de decisões, um
dos segredos de sucesso da família Szpak. Isso, paralelo ao fato de que ao longo
desse tempo, ele passou a criar novas identidades e preservar suas tradições. Com
isso garantiu efetivamente, lugar cativo no comércio e coração dos curitibanos e
turistas em geral que vem de longe para conhecer, se apaixonar e a partir daí, se
tornar um cliente cativo e cativado por esse lugar onde a gente se sente em casa
mesmo estando fora dela.
Para finalizar, quanto as expectativas de respostas efetivas, nesta pesquisa
chegou-se à conclusão de que, o sucesso do Armazém Santa Ana se deve,
principalmente à construção de sua identidade própria, forjada no decorrer de 74
anos de vida ativa. Esta viabilizada através de estratégias de sobrevivência de
mercado diferenciadas tais como: ampliação do espaço físico, ótimas mercadorias,
quadro de funcionários e direção eficaz. Nisso, a presença da família em tempo
integral no local. Sua entrada efetiva no setor turístico com o tombamento do prédio
e culinária, proporcionou ao armazém Santa Ana, a conotação merecida de cartão
de visitas, patrimônio cultural e gastronômico do bairro Uberaba e Curitiba.
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Pagoni, Silvana - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha. Curitiba,
6 jun. 2008.
Borges, Márcia K. Naito - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 3 jun. 2008.
Araújo, Andréia Ag. Brustolin- Entrevista concedida a Jane Campello
Padilha. Curitiba, 6 jun. 2008.
Molinari, Andréia - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha. Curitiba,
1 jun. 2008.
Serafin, Cristiane - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 16 jun. 2008.
Tramontin, Vilmmar - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Franco, Glenio - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha. Curitiba,
28 jun. 2008.
Bauer, Guilherme Diego - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 30 jun. 2008.
Michelle - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha. Curitiba, 6 jun.
2008.
Seich, Gustavo Nattmann - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 21 jun. 2008.
58
Dissenha, José Oneris - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 22 jun. 2008.
Prizon, Rosana Enês Chaves - Entrevista concedida a Jane Campello
Padilha. Curitiba, 22 jun. 2008.
Holtimann, Pedro Paulo - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Melech, Terezinha Aparecida Gomes - Entrevista concedida a Jane
Campello Padilha. Curitiba, 7 jun. 2008.
Cunha, Franciele Peters - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 mar. 2008.
Montuwski, Marcos - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Silva, Josinéia Rita da - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Dias, Regiane de Castro - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 10 mar. 2008.
Alves, Rivaldo de Castro - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Alves, Nivaldo de Castro - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha.
Curitiba, 6 jun. 2008.
Lanfer, Almiçar - Entrevista concedida a Jane Campello Padilha. Curitiba, 2
jun. 2008.
59
ANEXOS:
FIGURA 01 – O Armazém Santa Ana na página 124 da obra de Norberto Stavisk
“Pelos Bares do Paraná”
60
FIGURA 02 -- Casal de fundadores Senhor Paulo Szpak e esposa Júlia Zileonka
Szpak, na mesma obra na página 129.
61
FIGURA 03 – Na mesma obra, mesma página da figura anterior, só que ampliada,
mostrando a família Szpak, junto a sua segunda geração.
62
Figura 04 – Ilustração de César Lobo – homenagem ao Armazém Santa Ana, a
figura mostra também o armazém em outro espaço de tempo, bem como parte de
seu cardápio.
63
FIGURA 05 – Essa figura mostra o senhor Pedro Szpak no armazém. Ela se
encontra na página 45 da obra “Culinária paranaense” do jornalista Eduardo
Sganzela em conjunto elaborada com o chef Jan Strasburger.
64
FIGURA 06 – O armazém de novo. Só que agora na obra de Nazareth Moureaux de
nome “Coisas de Curitiba 2”. A página não tem número.
65
FIGURA 07 – Figura em homenagem aos 70 anos do armazém. Em jornal do dia 31
de maio de 2004.
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