UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
Ronaldo Carvalho Bastos Junior
A EVOLUO DO CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS NO
PENSAMENTO DE MARX E OS PROBLEMAS DA UNIVERSALIZAO
DOS DIREITOS
Dissertao de Mestrado
Recife
2013
Ronaldo Carvalho Bastos Junior
A EVOLUO DO CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS NO PENSAMENTO
DE MARX E OS PROBLEMAS DA UNIVERSALIZAO DOS DIREITOS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Direito da Faculdade de Direito do
Recife / Centro de Cincias Jurdicas da
Universidade Federal de Pernambuco como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.
rea de concentrao: Filosofia e Teoria Geral do
Direito.
Linha de Pesquisa: Retrica e Pragmatismo no
Direito.
Orientador: Prof. Dr. George Browne Rego
Recife
2013
Catalogao na fonte
Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832
B327e Bastos Junior, Ronaldo Carvalho A evoluo do conceito de direitos humanos no pensamento de Marx e os problemas
da universalizao dos direitos / Ronaldo Carvalho Bastos Junior. Recife: O Autor, 2013.
260 folhas.
Orientador: George Browne Rego.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2013.
Inclui bibliografia.
1. Direitos humanos. 2. Direitos humanos - Marx, Karl - Limitaes temporais. 3.
Marx, Karl, 1818-1883 - Crtica e interpretao. 4. Marxismo. 5. Comunismo - Histria. 6.
Socialismo. 7. Direitos humanos - Filosofia marxiana. 8. Atienza Rodriguez, Manuel - Marx, Karl, - Direitos humanos - Primeira fase (1841-1842) - Segunda fase (1843-1845) -
Terceira fase (1846-1883). 9. Direito - Filosofia. 10. Filosofia alem - Poltica francesa - Economia inglesa. 11. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831 - Anlise. 12.
Feuerbach, Ludwig, 1804-1872 - Anlise. I. Rego, George Browne (Orientador). II. Ttulo.
340.112CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-025)
http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=comunismohttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=livros_pr&db=livros&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=feuerbach,|ludwig
AGRADECIMENTOS
A primeira ideia de escrever este trabalho surgiu no segundo semestre de 2011 em
uma das reunies do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito, liderado pelo Prof. Enoque
Feitosa, na Universidade Federal da Paraba. Foi reforada em mais uma reunio no incio
de 2012, ocorrida tambm naquela instituio. Nestas ocasies, como em outras, nos
reunimos para discutir variados temas ligados ao marxismo, notadamente a relao de Marx
com os direitos humanos, que a minha linha de pesquisa no referido Grupo. Eu e os
demais colegas de pesquisa estvamos incomodados com a interpretao que o Prof.
Manuel Atienza fazia da questo, mas nunca tnhamos pensado em escrever nada a
respeito, a no ser pequenos trabalhos abordando tangencialmente o tema, como o que
apresentei no II Encontro PROCAD O Judicirio e o Discurso dos Direitos Humanos,
ocorrido em novembro de 2011, em Recife. Apenas depois de muita reflexo, e incentivado
pelo j citado Prof. Enoque Feitosa e tambm o Prof. Romero Venncio, resolvi encarar
esta empreitada.
Porm, um trabalho desta natureza no possvel realizar sozinho. Alm das
leituras privadas e da minha (curta) experincia no estudo do marxismo, que no passa de 7
ou 8 anos de investigao sistemtica, pude contar com a ajuda marcante de pesquisadores
que j estavam na estrada h muito mais tempo do que eu. So a estes que dirijo a
presente nota de agradecimentos.
Agradeo, inicialmente, ao Prof. Enoque Feitosa, Coordenador do Programa de Ps-
Graduao em Cincias Jurdicas da Universidade Federal da Paraba, por ter aberto as
portas (desde 2009) do seu Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito, e, como decorrncia,
ter-me dado oportunidade de desenvolver variados trabalhos naquela instituio. No seu
Grupo destacam-se as discusses interdisciplinares e o tratamento igualitrio de
pesquisadores de diferentes geraes e graduaes. Isso importante para que os mais
jovens como eu aprendam mais rapidamente a lidar com os desafios da pesquisa acadmica,
e, ainda, impede que a autoridade dos argumentos sucumba diante dos argumentos de
autoridade.
Agradeo, tambm, ao Prof. Antonio Salamanca Serrano, da Universidad de
Otavalo, no Equador, por estar divulgando o meu livro (O conceito do direito em Marx, Ed.
Sergio Antonio Fabris, 2012) em sua instituio. Como se no bastasse tamanho incentivo a
um jovem pesquisador, agradeo por ter lido este trabalho anteriormente defesa e, a
despeito das nossas (poucas) divergncias tericas, ter me enviado crticas valiosas.
Do ponto de vista institucional, agradeo especialmente ao Prof. George Browne
Rego, meu orientador, por ter aceitado a orientao do meu projeto desde o incio e por ter
reservado valiosas horas dos seus dias, em seu escritrio, na Universidade e nas reunies do
seu Grupo de Pesquisa, para esclarecer os meus questionamentos. Sua experincia e
conhecimento foram fundamentais para o desenvolvimento desta Dissertao.
Agradeo tambm Faculdade de Direito do Recife e Universidade Federal de
Pernambuco, por terem proporcionado a estrutura acadmica necessria para o
desenvolvimento das minhas pesquisas. Em particular, agradeo ao Professor Torquato
Castro Jr., pelas discusses e pelas oportunidades acadmicas concedidas na UFPE.
Aos colegas de ps-graduao, sou grato diretamente ao amigo desde os tempos de
graduao, Jos Loureno Torres Neto (mestrado), e aos novos colegas Plnio Pacheco
(mestrado), Bruno Emanuel Tavares (doutorado) e Leonardo Almeida (doutorado), da
UFPE, e Marcos Lima Filho (doutorado), da UFPB, que foram meus principais
interlocutores.
Por fim, em ordem cronolgica mas no de importncia, agradeo Elisama (amiga,
conselheira e, por coincidncia, esposa) e Camila (fraterna, apaixonante e, por
coincidncia, filha): eu no poderia ter feito o que fiz do jeito que fiz sem os conselhos da
primeira e sem a compreenso da segunda.
Conta uma velha piada da antiga Repblica Democrtica Alem que um trabalhador
alemo consegue um emprego na Sibria; sabendo que todas as suas correspondncias
sero lidas pelos censores, ele diz para os amigos: Vamos combinar um cdigo: se vocs
receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela verdadeira; se a tinta for vermelha,
falsa. Depois de um ms, os amigos receberam a mesma carta, escrita em azul: Tudo
uma maravilha por aqui: as lojas esto abastecidas, a comida abundante, os apartamentos
so amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, h mulheres lindas prontas
para um romance a nica coisa que no temos tinta vermelha. Essa situao no a
mesma que vivemos at hoje? Temos toda a liberdade que desejamos, a nica coisa que nos
falta a tinta vermelha: ns nos sentimos livres porque nos falta a linguagem para
articular a nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa que, hoje,
todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual guerra ao terror,
democracia e liberdade, direitos humanos etc. etc. so termos falsos, que mistificam
nossa percepo da situao, em vez de permitirem que pensemos nela. A tarefa, hoje, dar
tinta vermelha aos manifestantes.
(IEK, Slavoj. Occupy Wall Street, ou O silncio violento de um novo comeo. O
ano em que sonhamos perigosamente. Trad. Rogrio Bettoni. So Paulo: Boitempo,
2012, p. 95).
RESUMO
BASTOS JUNIOR, Ronaldo Carvalho. A evoluo do conceito de direitos humanos no
pensamento de Marx e o problema da universalizao dos direitos. 2013. 259 f.
Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Direito, Centro de Cincias
Jurdicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2013.
O trabalho tem por objetivo saber se possvel defender a universalizao dos direitos
humanos a partir do pensamento de Marx. Isso porque, aps a derrocada dos pases que
compunham o bloco socialista do Leste Europeu, o papel dos socialistas passou a ser o de
lutar pela ampliao cada vez maior dos direitos humanos. O problema que tal posio
contrria ao pensamento de Marx. O seu pensamento possui trs fases. Na primeira fase
(1841-1842), Marx defendeu os direitos humanos do liberalismo, porque acreditava que
eles eram inerentes aos seres humanos, e, por isso, universais. Na segunda fase (1843-
1845), seu pensamento se inverte radicalmente e ele passou a criticar os direitos humanos.
Como eles surgiram aps uma revoluo burguesa, eles no eram universais, mas
particulares: representavam os interesses do indivduo burgus e, portanto, eram
contramajoritrios. Na terceira fase (1846-1883), Marx ampliou a crtica precedente e
estabeleceu as bases da tese da extino do direito: o seu principal argumento era que
como no comunismo no existiriam mais classes, no haveria necessidade de um
instrumento o direito que era o responsvel pela manuteno de uma sociedade
classista. Por isso, Marx abandonou os direitos humanos. Considerando a evoluo da sua
abordagem, a nossa tese que um paradoxo defender a universalizao dos direitos
humanos a partir de um pensador que desejava justamente o contrrio a sua extino.
Palavras-chave: Marxismo; Direitos Humanos; Histria das Ideias Jurdicas.
ABSTRACT
BASTOS JUNIOR, Ronaldo Carvalho. The evolution of Human Rights concept in
Marxs thought and the problem of universalization of the rights. 2013. 259 f.
Dossertation (Masters Degree of Law). Programa de Ps-Graduao em Direito, Centro de
Cincias Jurdicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2013.
This work focuses in knowing if it is possible to defend the idea of Human Rights
universalization out of Marxs thought. This because, after the socialist block countries
overthrow in East Europe, the paper of the socialist ones, according to part of Marxist
tradition, started to be that of fighting for magnifying even more Human Rights. The
problem is that such position is contrary to Marxs thought. His thought has three phases. In
the first phase (1841-1842), Marx defended liberal Human Rights, believing that they were
inherent to human beings, than, universals. In the second phase (1843-1845), Marxs
thought radically inverts and criticizes Human Rights. As they had appeared after a burgess
revolution, they were not, hence, universal, but particular: representing bourgeois
individual interests, therefore, contramajority. In his third phase (1846-1883), Marx
extended the precedent critic and established the bases of the extinguishing of law thesis:
which main argument was that as in the communism would not exist more classes, would
not have necessity of an instrument law that, in Marxs opinion, was responsible for the
maintenance of a classist society. Thus, Marx abandons Human Rights. Considering
Marxs evolution about the theme, the thesis is that: it is a paradox to defend the Human
Rights universalization out of a thinker who exactly desired the opposite its extinction.
Keywords: Marxism; Human Rights; History of the Legal Ideas.
INTRODUO
CAPTULO I OS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO OBJETO DE PESQUISA:
ENTRE A ANLISE MARXIANA E UMA POSSVEL ANLISE MARXISTA
1.1 Os direitos humanos enquanto objeto de Marx: as primeiras declaraes de direitos ... 20
1.2 As trs fontes do marxismo e as trs posturas de Marx em relao aos direitos humanos:
para uma teoria da correspondncia ..................................................................................... 27
1.3 A pragmtica do conhecimento como estratgia metodolgica utilizada para interpretar
a relao de Marx com os direitos humanos......................................................................... 32
CAPTULO II O MARX IDEALISTA E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS:
A IDEIA DE DIREITOS INATOS COMO HERANA DO IDEALISMO ALEMO
2.1 O idealismo alemo e a liberdade enquanto contedo da racionalidade ........................ 40
2.2 O Epicuro de Marx e a descoberta da liberdade humana ............................................... 48
2.3 Da liberdade humana liberdade de imprensa ............................................................... 54
2.4 A liberdade como fundamento do Estado racional: a crtica marxiana Escola Histrica
do Direito .............................................................................................................................. 60
2.5 Marx e os problemas materiais: a liberdade tolhida pela lei dos furtos de lenha ........... 65
CAPTULO III O MARX REALISTA E A CRTICA AOS DIREITOS
HUMANOS: DO ROMPIMENTO COM HEGEL APROXIMAO COM A
POLTICA FRANCESA
3.1 Do Marx hegeliano crtica ao idealismo de Hegel ....................................................... 78
3.2 A crtica religio como pressuposto da crtica aos direitos humanos .......................... 82
3.3 A religio como problema poltico ou a poltica de um monoplio religioso: sobre a
dialtica da questo judaica .................................................................................................. 86
3.4 Emancipao poltica e direitos humanos: duas esferas insuficientes para libertar o
homem .................................................................................................................................. 89
3.5 As crticas de Atienza sobre a abordagem dos direitos humanos em A questo judaica:
consideraes crticas ........................................................................................................... 95
3.6 Da alienao autodeterminao humana: a relao da crtica dos direitos humanos
com a crtica da economia poltica ..................................................................................... 103
3.7 Os direitos humanos e a iluso comunitria ................................................................. 109
3.8 As teses de Feuerbach: os problemas do materialismo terico e a necessidade de
ultrapass-lo ........................................................................................................................ 114
CAPTULO IV O MARX CTICO E O ABANDONO DOS DIREITOS
HUMANOS: O MATERIALISMO HISTRICO E A NECESSIDADE DE
SUPERAO DA SOCIEDADE BURGUESA
4.1 Os direitos humanos como ideologia: do materialismo histrico historicidade do
direito .................................................................................................................................. 118
4.2 A revoluo comunista e a superao da ordem burguesa: os direitos humanos como
direitos burgueses ............................................................................................................... 126
4.2.1 As teses de Atienza sobre o papel dos direitos humanos no Manifesto: consideraes
crticas ................................................................................................................................. 129
4.3 A problemtica do sufrgio universal: sobre a incapacidade dos direitos humanos
promoverem mudanas sociais radicais ............................................................................. 142
4.4 Os direitos humanos como legislao simblica .......................................................... 151
CAPTULO V OS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA CAPITALISTA
5.1 O Marx economista e a descoberta da realidade por trs da iluso: a anlise dos
direitos humanos no interior da totalidade social ............................................................... 158
5.1.1 A metfora da base e da superestrutura: a preponderncia da economia e a limitao
dos direitos humanos .......................................................................................................... 168
5.2 O capital e a ideia de que o direito consiste numa troca de equivalentes ..................... 172
5.3 A Comuna de Paris e o primeiro autogoverno proletrio: a subordinao dos direitos
humanos revoluo social ................................................................................................ 180
5.4 A Crtica ao programa de Gotha e o problema da extino do Estado ....................... 190
5.5. A Crtica ao programa de Gotha e o problema da extino do direito....................... 198
CAPTULO VI UMA ANLISE MARXISTA DA IDEIA DE
UNIVERSALIZAO DOS DIREITOS HUMANOS: SOBRE OS PROBLEMAS
EPISTEMOLGICO E POLTICO DESTA PRETENSO
6.1 Os direitos humanos como superestrutura: sobre a impossibilidade de mudana radical
da sociedade quando a estrutura permanece intacta ........................................................... 207
6.2 O problema em torno da defesa da universalizao dos direitos humanos a partir de
Marx ................................................................................................................................... 215
6.3 A conexo entre a universalizao dos direitos humanos e o imperialismo das potncias
hegemnicas ....................................................................................................................... 222
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 235
REFERNCIAS ............................................................................................................... 241
12
INTRODUO
possvel partir de Marx para defender a universalizao dos direitos humanos?
O objetivo desta Dissertao responder esta pergunta e uma pergunta deste tipo
feita num momento em que o marxismo est em baixa, tanto na academia quanto na
poltica. No sculo XXI parece no haver mais interesse pela revoluo, violenta ou no,
pois esta cheira a passado, alm do que o Estado Democrtico est a e, ao que parece,
muitos o adoram. Neste contexto de apatia generalizada, a luta em torno da efetivao dos
direitos humanos se tornou o ltimo reduto dos socialistas modernos, cuja funo
segundo parte da esquerda se reduziu a ampliar tais direitos cada vez mais1. O problema
1 Esta a opinio de grande parte da esquerda, ainda que no em sua totalidade. De sada, preciso citar
Gorbachev que, quando ocupava o cargo de Secretrio-Geral do Partido Comunista Sovitico, em 1988,
defendeu que a democracia no pode existir e se desenvolver sem a lei, pois ela se destina a proteger a
sociedade dos abusos de poder e garantir os direitos e liberdades dos cidados, seus sindicatos e unidades de
trabalho. Foi por essa razo continua o ex-dirigente sovitico que tomamos uma posio firme nesse
sentido. Sabemos por experincia prpria o que acontece quando h desvios. GORBACHEV, Michail.
Perestroika: novas ideias para o meu pas e o mundo. Trad. J. Alexandre. So Paulo: Ed. Best Seller, s/d, pp.
119-120. Foi nesse mesmo ano de 1988 que, como informa Hunt, foi criado pela primeira vez um
departamento de direitos humanos numa escola sovitica. E acrescenta: desde o incio da dcada de 1970,
os partidos comunistas [...] substituram a ditadura do proletariado nas suas plataformas oficiais pelo avano
da democracia e endossaram explicitamente os direitos humanos. HUNT, Lynn. A inveno dos direitos
humanos: uma histria. Trad. Rosaura Eichenberg. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 209. Da
mesma opinio Douzinas, que defende que o ps-marxismo assumiu o desafio dos direitos humanos, at
porque os direitos humanos foram ampliados em contedo e abrangncia e se tornaram a principal expresso
de rebelio e protesto contra a poltica dominante e as foras sociais e de fortalecimento dos despossudos.
DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. Trad. Luzia Arajo. So Leopoldo, 2009, pp. 179-180.
Dentre os marxistas, Mszros defende que no h contradio alguma entre o marxismo e os direitos
humanos, pois, segundo ele, enquanto estivermos onde estamos, e enquanto o livre desenvolvimento das
individualidades estiver to distante de ns como est, a realizao dos direitos humanos e permanece uma
questo de alta relevncia para todos os socialistas. Cf. MSZROS, Istvn. Marxismo e direitos humanos.
Filosofia, ideologia e cincia social: ensaios de negao e afirmao. So Paulo: Boitempo, 2008, pp. 168.
No mesmo sentido, REIS, Rossana Rocha; VENTURA, Deisy. Direitos humanos: um estorvo para as
esquerdas? Le Monde Diplomatique Brasil, ano 6, n. 66, janeiro 2013, pp. 28-29, para quem no momento
em que os valores de mercado avanam sobre todos os governos, este [isto , a defesa dos direitos humanos]
talvez seja, ainda que temporariamente, nosso projeto maior. J Atienza autor que esta Dissertao se
contrape sugere que na fase madura de Marx ele teria dado cada vez mais valor aos direitos humanos.
ATIENZA, Manuel. Marx e los derechos humanos. Madrid: Editorial Mesquita, 1983, p. 20. Atienza,
inclusive, em obra escrita em parceria com Juan Ruiz Maneiro, escreve o seguinte: Esta direo do
pensamento que propugna a necessria conexo do socialismo com o desenvolvimento e aprofundamento dos
direitos humanos do liberalismo, hoje francamente dominante no pensamento marxista; ao menos, no
pensamento dos pases ocidentais avanados. ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Marxismo y
filosofa del derecho. Ciudad de Mxico: Distribuiciones Fontamara, 1993, p. 32. No plano nacional,
podemos mencionar Carlos Nelson Coutinho, que sustentava que a democracia de massas que os socialistas
brasileiros se propem construir conserva e eleva a nvel superior as conquistas puramente liberais. Cf.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. So Paulo: Livraria Editora Cincias
13
que ao mesmo tempo em que os direitos humanos constituem a nova plataforma poltica
dos socialistas, estes no querem abandonar Marx, e, assim, para satisfazer os seus
interesses direitos humanos e filosofia marxiana passam a atribuir a Marx posies que
no eram as dele.
Para resolver tal aporia, porm, preciso tomar algumas cautelas. Em primeiro
lugar, deve-se analisar o que Marx disse, e no o que ele queria dizer. Isso porque, embora
seja possvel imaginar o que Marx pensava sobre determinado assunto, apesar de nunca t-
lo abordado, este exerccio tem um espao bem delimitado: resume-se imaginao. E, em
segundo lugar, embora seja possvel que a aplicao dos textos marxianos
contemporaneidade seja feita contra o que Marx escreveu, neste caso h um problema
metodolgico: o desprezo pelos dados de pesquisa.
Toda abordagem possvel, o que no quer dizer que todas sejam viveis. preciso
evitar tanto a adivinhao quanto o falseamento, razo pela qual a anlise do pensamento
de Marx no pode ser feita desconsiderando o que ele disse, sob pena da interpretao ser
arbitrria.
Para lidar com esta ordem de problemas, seria mais prudente ao intrprete
problematizar o autor pesquisado, e, assim, afirmar, por exemplo, que Marx errou aqui
e/ou se omitiu ali; que como homem do seu tempo no poderia ter enxergado mais do que
lhe era possvel; que certo argumento precisaria ser adaptado para ter validade no mundo
atual; ou at que no concorda com determinada categoria marxiana. Coisa muito diferente
querer ser porta-voz de um cadver ou afirmar que ele disse o que no est escrito.
Agora, independentemente da adivinhao e da falsificao, que devem ser evitadas,
existem dados que tornam a obra de Marx e a sua abordagem dos direitos humanos ainda
mais problemtica. Primeiro, porque a sua obra, diferentemente da de outros autores, no
est inteiramente publicada. Segundo, porque Marx se manifestou em textos de natureza
diversa (jornais, cartas, panfletos e livros), fato que poderia provocar questionamentos
sobre a existncia ou no de hierarquia entre eles. E terceiro e aqui no uma dificuldade
Humanas, 1980, p. 34. No plano normativo, at pases que possuem simpatia explcita com a doutrina
marxista so dessa opinio. Veja, a propsito, o art. 350 da Constituio da Venezuela, que diz que El pueblo
de la Venezuela [...] desconocer cualquier rgimen, legislacin o autoridad que contrarie los valores,
princpios y garantias democrticos o menoscabe los derechos humanos. Cf. VENEZUELA. Constituicin
de la repblica bolivariana de la Venezuela. Disponvel em: . Acesso em: 12 abr. 2013.
http://www.cgr.gob.ve/contenido%20.php?Cod=048http://www.cgr.gob.ve/contenido%20.php?Cod=048
14
gerada por Marx, mas pelo objeto desta Dissertao , porque, como Marx foi um escritor
prolfico, poderia ser questionada a extenso temporal desta pesquisa.
Os dois primeiros problemas, entretanto, no podem ser resolvidos. Isto porque, em
relao ao primeiro, um trabalho filosfico deve ser baseado nas obras que so conhecidas
pelo pblico, pois as desconhecidas no podem ser objeto de pesquisa alguma. J o segundo
problema fruto da prpria vida de Marx; a nica forma de se livrar dele seria pesquisar
outro autor, coisa que aqui no pretendemos fazer. Tal problemtica se que isso chega a
ser uma se d porque Marx no se restringiu s tarefas de um filsofo comum. Muito
alm destas, ele desempenhou atividades polticas e revolucionrias, e para atingir a maior
quantidade de leitores no lhe era possvel se manifestar apenas em livros. Assim, qualquer
ortodoxia poderia vir a ser prejudicial se a inteno interpretar algum to peculiar, razo
pela qual no hierarquizamos nem desprezamos qualquer fonte marxiana.
Mas o terceiro problema no pode ser atribudo nem aos outros nem ao prprio
Marx, como j foi adiantado. Ele de nossa inteira responsabilidade e certamente no
faltar alguma razo queles que criticarem a proposta elstica desta Dissertao. De fato,
uma empresa dificultosa pesquisar cerca de 40 anos de literatura, principalmente se for
considerada a complexidade dos escritos de Marx. Para dar conta disso, duas estratgias
foram tomadas: em primeiro lugar, apenas incidentalmente sero utilizados textos de
Engels notadamente aqueles em que ele foi co-autor de Marx e de outros marxistas,
embora aqui no seja desconsiderada a importncia do primeiro na formao da teoria de
Marx2 nem o papel dos ltimos na adaptao do seu pensamento modernidade; em
segundo lugar, foi restringido ao mximo o objeto de pesquisa, que diz respeito ao conceito
de direitos humanos. Nesse sentido, s explicaremos os aspectos da obra de Marx quando
eles forem conectados com o nosso objeto central ou quando tais aspectos forem
2 Engels, na primeira nota de rodap do captulo quatro de um texto famoso, publicado aps a morte de Marx,
esclarece o seu papel na teoria marxista: Que tive certa participao independente na fundamentao e
sobretudo na elaborao da teoria, antes e durante os quarenta anos de minha colaborao com Marx, coisa
que eu mesmo no posso negar. A parte mais considervel das ideias diretrizes principais, particularmente no
terreno econmico e histrico, e especialmente sua formulao ntida e definitiva, cabem, porm, a Marx. A
contribuio que eu trouxe com exceo, quando muito, de assuntos especializados Marx tambm teria
podido traz-la, mesmo sem mim. Em compensao, eu jamais teria feito o que Marx conseguiu fazer. Marx
tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e mais rapidamente que todos ns outros. Marx era um
gnio; ns outros, no mximo, homens de talento. Sem ele a teoria estaria hoje muito longe de ser o que . Por
isso, ela tem, legitimamente, seu nome. ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clssica
alem. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos, v. 1. So Paulo: Edies Sociais, 1977, p. 103.
15
imprescindveis para a contextualizao da abordagem, isto , quando a ausncia de uma
explicao prvia das categorias filosficas trabalhadas por Marx inviabilize o
entendimento dos direitos humanos na sua obra.
Esta segunda estratgia, entretanto, reduz o problema, mas no o extingue, pois a
relao de Marx com os direitos humanos est longe de ser simples. que o entendimento
de Marx sobre qual seria o papel dos direitos humanos na sociedade foi evoluindo (e se
modificando) com o tempo, de modo que no fim da sua vida a sua concepo de direitos
humanos era oposta que ele possua no incio da carreira. Esta a razo porque o texto
com o qual o examinador ir se deparar contm muitas citaes literais. uma forma que
elegemos para demonstrar da maneira mais objetiva possvel a evoluo do conceito de
direitos humanos na obra de Marx. Como nos oporemos s interpretaes de outros autores,
especialmente a de Manuel Atienza, entendemos que as parfrases no so suficientes para
provar a correo da nossa abordagem. Assim, para no cairmos numa disputa intelectual
que no pudesse ser comprovada sentimos a necessidade de mostrar ao examinador os
textos originais para que ele tire as suas prprias concluses.
Para Atienza, a relao de Marx com os direitos humanos se divide em trs
perodos. Na primeira fase, depois de um perodo de defesa dos direitos humanos do
liberalismo (at 1843) que Atienza, diferentemente desta Dissertao, no considera
como fase , o jovem Marx teria mantido uma atitude crtica e hostil aos direitos
humanos. Na segunda fase, que iria de O manifesto do partido comunista (1848) at O
dezoito brumrio de Luis Bonaparte (1852), a postura de Marx teria sido ambgua: por um
lado, ele teria conferido grande importncia prtica conquista de certos direitos humanos
por parte do proletariado, e, por outro lado, teria reduzido-os categoria de meios, e no de
fins. Por fim, na terceira fase (a partir de 1853), ainda que no tivesse desaparecido a
ambiguidade referida, Marx teria dado cada vez mais valor aos direitos humanos. Nesta
fase, inclusive, ele teria abandonado a tese da extino do Estado e do direito,
substituindo-a pelo carter subordinado da superestrutura jurdico-poltica estrutura
econmica3.
No concordamos com esta interpretao, razo pela qual proporemos outra,
exposta, sinteticamente, em trs teses.
3 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos, op. cit., pp. 19-20.
16
Primeira tese. A relao de Marx com os direitos humanos no foi uniforme:
durante a sua carreira Marx modificou pelo menos duas vezes o seu entendimento acerca da
natureza e da funo que os direitos humanos desempenhavam na sociedade do sculo XIX.
Na primeira fase, que vai de 1841 at 1842 e objeto do captulo II, Marx
considerava que os direitos humanos eram inerentes ao prprio fato da humanidade; onde
existissem homens, deveria haver direitos humanos. Nesta poca, ele estava influenciado
pelo idealismo alemo e vivia como jornalista na ditadura prussiana. Assim, de um lado, na
qualidade de herdeiro do esplio de Hegel, Marx acreditava que o direito poderia ser um
instrumento de emancipao e o papel do jurista seria defender esta emancipao
proporcionada pelo direito, mais especificamente, pelos direitos humanos; e de outro lado,
agora na qualidade de jornalista, ele necessitava do reconhecimento da liberdade de
imprensa para exercer o seu ofcio. Por isso, seja como hegeliano, seja como jornalista,
Marx no poderia deixar de defender os direitos humanos.
Na segunda fase, que vai de 1843 at 1845 e objeto do captulo III, Marx mudou
de opinio pela primeira vez e passou a considerar os direitos humanos no como algo
natural, autoevidente, inerente constituio humana, mas sim como o resultado de uma
srie de conquistas histricas oriundas das Revolues Francesa e Americana. Em 1843,
Marx j morava em Paris, local onde foram inventados os direitos humanos. Assim, ao
estudar detidamente a histria francesa e viver o cotidiano da sua poltica, ele chegou
concluso de que os direitos humanos nunca poderiam ser universais; na verdade, eles eram
mais um dos instrumentos que legitimavam os interesses de uma sociedade concreta, real e
determinada: a sociedade burguesa. Os direitos humanos, neste sentido, teriam por objeto
no todos os indivduos (o que cairia por terra a sua pretenso abstrata e universalista), mas
exclusivamente o indivduo burgus. Assim, pelo fato dos direitos humanos funcionarem
em prejuzo do princpio majoritrio, Marx passou a critic-los.
Na terceira fase, que vai de 1846 at 1875 e objeto dos captulos IV e V, Marx
aprofundou a crtica precedente. No que os direitos humanos estavam defendendo a
classe burguesa, como ele entendia na fase anterior; na verdade, os direitos humanos s
poderiam defender a classe burguesa enquanto classe dominante. Era um perodo em que
Marx j morava na Inglaterra e estudava atentamente a economia poltica, terreno onde se
davam as lutas entre as classes. Para o Marx desta poca, o direito no passava de um
17
instrumento legitimador dos interesses da classe social dominante (seja ela qual fosse) e,
portanto, defendia sempre, ainda que no exclusivamente, mas preponderantemente, o
grupo social que estivesse no poder. Assim, como no sculo XIX era a burguesia que estava
no poder, os direitos humanos s poderiam estar atrelados aos interesses desta classe, e
como o objetivo poltico de Marx era ultrapassar a sociedade burguesa, era preciso superar
o direito representativo desta sociedade os direitos humanos. Por isso, Marx os
abandonou.
preciso notar a contraposio entre a interpretao que fazemos da obra de Marx e
a que faz Manuel Atienza. Para o jurista espanhol, Marx inicia a sua carreira criticando os
direitos humanos e termina defendendo-os. Lembre-se que Atienza no considera o perodo
1841-1842 como uma fase propriamente dita. Para este trabalho, entretanto, Marx inicia
defendendo-os (1841-1842), depois que os critica (1843-1845) para, no fim, abandon-los
(1846-1875). Mas h alguma similaridade entre a nossa posio e a de Atienza, que a
concordncia de que Marx no foi uniforme na sua abordagem dos direitos humanos.
E nessa perspectiva que surgem dois problemas metodolgicos na abordagem
marxista (no de Marx) dos direitos humanos. Em primeiro lugar, preciso que o intrprete
especifique que fase de Marx se est falando, j que ele, em relao aos direitos humanos,
primeiro os defende, depois os critica e, por fim, os abandona. Nesse sentido, no possvel
falar de uma concepo marxiana dos direitos humanos sem fazer ressalvas e limitaes
temporais. Em segundo lugar, como Marx s conheceu os direitos civis e polticos, o que a
doutrina constitucionalista chama de direitos de primeira gerao (cf. seo 1.1), a sua
crtica tem que ser ligeiramente adaptada para ter validade no mundo atual. que o que
hoje se entende por direitos humanos no se resume mais aos direitos das Declaraes
Americana e Francesa, ento objeto de Marx. Assim, no se pode trabalhar com Marx
como se ele tivesse conhecido o constitucionalismo social (segunda gerao) ou os
direitos difusos e coletivos (terceira gerao) (h autores, inclusive, que chegam a falar
de uma quarta gerao, que corresponderia aos direitos democracia, informao e ao
pluralismo poltico4; j outros, dizem que tal gerao abrangeria a autodeterminao dos
povos5). A despeito da divergncia doutrinria acerca de se existe apenas a terceira ou se j
4 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26 ed. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 571.
5 LAFER, Celso. A reconstruo dos direitos humanos: um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt.
So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 131.
18
temos uma quarta gerao de direitos, o que importa relamente que esta realidade
ligeiramente distinta da vivida por Marx. Assim, o se pode fazer, caso se queira, utiliz-lo
como aporte para a construo de uma crtica independente: tributria de Marx, mas no
dele efetivamente.
Segunda tese. As trs formas como Marx lidou com os direitos humanos so fruto
da sua proximidade com a filosofia alem, com a poltica francesa e com a economia
inglesa, o que, segundo a tradio marxista, correspondem s trs fontes do marxismo. Esta
tese objeto do captulo I e ela consiste na tentativa de estabelecer uma correspondncia
entre as trs fontes do marxismo e os trs modos como Marx lidou com os direitos
humanos. Assim, no perodo em que Marx defende os direitos humanos ele estaria
influenciado pela filosofia alem; no perodo em que Marx passa a criticar tais direitos ele
estaria influenciado pela poltica francesa; por fim, no perodo em que Marx abandona os
direitos humanos ele estaria influenciado pela economia inglesa.
Ainda neste captulo, pretendemos estabelecer os pressupostos de uma anlise
pragmtica de Marx, e se opor s teorias fixistas de Althusser e de Chasin, principalmente.
O objetivo defender que, apesar de Marx apresentar, no mnimo, trs abordagens dos
direitos humanos, isso no significa que podemos cindir Marx (em jovem e velho
Marx, como quer Althusser; e em textos pr-marxianos e marxianos, como quer
Chasin), pois a sua obra e o seu conceito de direitos humanos fazem parte de uma evoluo
intelectual. Assim, se o pragmatismo defende que o conhecimento no pode ser cindido,
posto que contnuo, assim tambm ser a obra de Marx quando submetida a uma anlise
pragmtica.
Terceira tese. Considerando que a concepo de direitos humanos na obra de Marx
foi evoluindo com o tempo de direitos inatos a direitos histricos, de direitos do homem a
direitos de classe, de direitos abstratos e universais a direitos concretos e particulares , a
proposta de universalizao dos direitos humanos, ou seja, aquela que diz que o papel da
sociedade lutar pela ampliao destes direitos cada vez mais, no pode ser feita a partir de
Marx. Esta tese trabalhada no captulo VI, onde o objetivo responder pergunta inicial:
possvel partir de Marx para defender a universalizao dos direitos humanos?. A
resposta, como mencionado, negativa. Mas afora o problema epistemolgico (pois um
erro de interpretao da obra marxiana), existe um srio problema poltico decorrente do
19
pendor universalista, que o imperialismo dos direitos humanos, tambm abordado neste
ltimo captulo.
Nas consideraes finais, sero retomadas as concepes abrangidas no decorrer da
Dissertao, defendendo que (i) problemtico falar de um conceito nico de direitos
humanos em Marx, razo pela qual os intrpretes devero ter cautela metodolgica quando
abordarem a questo, (ii) a evoluo da abordagem de Marx dos direitos humanos
coerente com o seu contato com a filosofia alem, a poltica francesa e a economia inglesa
e (iii) no possvel defender a universalizao dos direitos humanos a partir de Marx,
posto que para esse autor os direitos humanos so direitos particulares e concretos,
representantes da sociedade burguesa.
20
CAPTULO I
OS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO OBJETO DE PESQUISA:
ENTRE A ANLISE MARXIANA E UMA POSSVEL ANLISE MARXISTA
Sumrio: 1.1. Os direitos humanos enquanto objeto de Marx: as primeiras
declaraes de direitos; 1.2. As trs fontes do marxismo e as trs posturas de
Marx em relao aos direitos humanos: para uma teoria da correspondncia; 1.3.
A pragmtica do conhecimento como mtodo para interpretar a relao de Marx
com os direitos humanos.
1.1. Os direitos humanos enquanto objeto de Marx: as primeiras declaraes de
direitos
Este captulo tem pretenses metodolgicas e seus objetivos so trs: primeiro,
explicar quais eram os direitos humanos objeto de Marx e mostrar que tais direitos eram
diferentes dos que existem hoje, no sculo XXI; segundo, defender uma tese de
correspondncia entre as trs fontes do marxismo e as trs posturas de Marx em relao aos
direitos humanos, tentando demonstrar a importncia do local social do intrprete na
construo da prpria teoria; e, por fim, utilizar a metodologia pragmtica para entender
melhor a relao entre Marx e os direitos humanos, e, assim, refutar a teoria da cesura
epistemolgica, de Althusser, e a da virada radical, de Chasin, que pretendem cindir o
pensamento marxiano em dois momentos distintos e inconciliveis, e no, como se
pretende aqui, tom-lo como uma srie de anlises heterogneas que vo evoluindo e se
tornando um bloco cada vez mais complexo. Essas trs linhas argumentativas so
necessrias para entender o conjunto da Dissertao, e, se formos competentes nesse
intento, o examinador poder retornar ao presente captulo quando surgirem dvidas quanto
aos pressupostos deste trabalho ou quando necessite se certificar da coerncia, ou no, da
abordagem proposta.
Nesta seo, pretendemos vencer o primeiro objetivo, isto , identificar os direitos
humanos que foram objeto de Marx. Tais direitos humanos constituem um corpo jurdico
especfico, que a doutrina convencionou chamar de direitos de primeira gerao e que
21
correspondem ao incio do movimento constitucionalista ocidental6. Tais direitos tm por
titular o indivduo e possuem duas caractersticas peculiares: por um lado, limitam e
controlam o abuso do poder estatal, e, por outro, estabelecem um rol de direitos
fundamentais que seriam os topoi regentes do Estado.
Os marcos jurdicos dessa primeira gerao de direitos so dois: a Constituio
Americana de 1787 e a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, da
Frana. A despeito de serem dois os marcos jurdicos, optamos por no abordar a
constituio americana, e esta escolha tem pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, a
Revoluo Francesa foi muito mais difundida do que a sua antecedente nas Amricas. No
que a Revoluo Americana tenha sido irrelevante, haja vista que ela fundamental na
histria dos Estados Unidos7. Porm, a Revoluo Francesa, diferentemente da americana,
no tem importncia to-somente na Frana; ela foi muito difundida pelo mundo ocidental
e a sua influncia ocasionou inmeros movimentos por independncia poltica na Amrica
Latina depois de 18088. Em segundo lugar, quando Marx se ateve explicitamente questo
dos direitos humanos, ele sempre mencionou a Declarao francesa, embora nunca tenha
desmerecido o papel dos Estados Unidos na formao do corpo poltico dos direitos
humanos. De fato, em 1844 Marx explica qual o seu objeto:
Observemos por um momento os assim chamados direitos humanos, mais
precisamente os direitos humanos sob sua forma autntica, ou seja, sob a forma
que eles assumem entre seus descobridores, entre os norte-americanos e os
franceses!9.
Alm dos j citados marcos jurdicos existem marcos filosficos. Estes so
oriundos da tradio iluminista, mais especificamente de um grupo de filsofos conhecidos
como os contratualistas. Em linhas gerais, eles defendiam que os direitos humanos eram
naturais (inerentes aos seres humanos), iguais (os mesmos para todo mundo) e universais
(aplicveis por toda parte)10
. No que toca propriamente Declarao Francesa, duas
6 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, op. cit., p. 563.
7 Nesse sentido, DRIVER, Stephanie Schwartz. A declarao de independncia dos Estados Unidos. Trad.
Mariluce Pessoa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 7. 8 HOBSBAWM, Eric J. A era das revolues: Europa 1789-1848. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e
Marcos Panchel. 19 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 85. 9 MARX, Karl. Sobre a questo judaica. Trad. Nlio Schneider. So Paulo: Boitempo, 2010, p. 47.
10 HUNT, Lynn. A inveno dos direitos humanos: uma histria. Trad. Rosaura Eichenberg. So Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 19.
22
teorias se destacavam: a de Rousseau e a de Locke11
. Estes autores so representativos da
ideologia do perodo anterior revoluo tricolor e suas ideias podem ser identificadas em
muitas passagens da Declarao.
A grande questo que preocupava os contratualistas era a legitimidade do governo
civil num momento em que, de um lado, no se pensava mais a poltica em termos
teolgicos, e, de outro, no era possvel identificar a lei na vontade do rei12
. Ento, eles se
perguntavam: o que legitimava a passagem do estado de natureza, onde a liberdade era
total, para o estado civil, onde a liberdade tinha limitaes? Para eles, a resposta era
simples: haveria uma espcie de contrato social entre os sditos e o soberano, onde aqueles
deveriam abdicar de parte da liberdade anterior em troca da segurana do grupo e escolher
qual o soberano iria represent-los13
. Em Do contrato social, Rousseau advoga uma tese
desse tipo. Para ele, o estado civil deveria achar uma forma de sociedade que defenda e
proteja com toda a fora comum a pessoa e os bens de cada scio, e pela qual, unindo-se
cada um a todos, no obedea todavia seno a si mesmo e fique to livre como antes14
.
Mas ainda persiste a indagao: quem legitima essa forma de sociedade?
Rousseau diz que a vontade geral uma diretiva suprema, constituinte do contrato
social, segundo a qual o corpo poltico seria formado por cada membro, como parte
indivisvel do todo15
. S a vontade geral poderia dirigir as foras do Estado segundo os fins
da sua instituio. Mas, ao contrrio do que possa parecer, a vontade geral no se trata de
uma mera soma aritmtica de interesses particulares, na verdade ela seria formada pelos
11
importante registrar que outros tericos tambm foram importantes, embora nossa pesquisa tenha
chegado concluso de que estes dois assumiram os papeis mais decisivos. Nesse sentido, basta mencionar
Montesquieu, que foi o principal artfice da teoria da separao dos poderes, modelo reconhecido pelo artigo
16 da Declarao francesa. Cf. MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Trad. Jean Melville. So Paulo:
Martin Claret, 2005, pp. 165-175 (Livro XI, cap. VI). 12
RUBY, Christian. Introduo filosofia poltica. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. So Paulo: Ed.
Unesp, 1998, p. 77. 13
A tese do contrato social est presente nos contratualistas mais destacados. Por todos, cf. ROUSSEAU,
Jean-Jaques. Do contrato social. Trad. Pietro Nassetti. So Paulo: Martin Claret, 2005, p. 31 (cap. VI);
HOBBES, Thomas. Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Trad. Joo Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 103 (cap. XVII);
MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Trad. Jean Melville. So Paulo: Martin Claret, 2005, p. 21 (cap. 1,
III); LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. So Paulo: Martin Claret, 2011,
p. 61 ( 87); BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti
Contessa. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 41 (cap. I). 14
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social. Trad. Pietro Nassetti. So Paulo: Martin Claret, 2005, p. 31. 15
Idem, p. 32.
23
pontos comuns das vontades individuais16
. Assim, embora seja possvel a existncia de
interesses particulares remanescentes que separem os homens, a fundao da sociedade s
poderia ser concretizada pela harmonia dos interesses17
. A vontade geral, pois, seria o
resultado da identificao de certos interesses comuns e quem detivesse o poder apenas
representaria esta vontade. por isso que a soberania, para Rousseau, nunca poderia ser
alienada: seria como alienar a vontade geral, ato que careceria de legitimidade18
. O mximo
que se poderia fazer era transmitir o poder, e no a vontade.
Veja que o argumento no nem teolgico nem monrquico, isto , a legitimidade
no mais buscada nem na autoridade da Igreja nem na figura do rei. Isto porque os
contratualistas professavam ideais predominantemente democrticos. Mesmo assim,
embora haja uma evoluo com a recusa de argumentos de autoridade, seja de ordem
religiosa ou monrquica, podemos dizer que os argumentos de Rousseau no deixam de ser
problemticos, pois muito difcil identificar as clusulas desse contrato, o contedo
desta vontade geral e, principalmente, quem so esses indivduos19
; e no convence a
posio de Durkheim que defende que no importa que o contrato social no tenha sido
realmente feito, pois a sua consecuo admitida tacitamente20
. Quem admite tacitamente?
Esta seria uma pergunta crucial a ser feita e os contratualistas certamente a fizeram. Para
eles era a razo que dava credibilidade ao contrato social e foi ela a responsvel pela
sada dos homens do estado de natureza para o estado civil. A razo no admitia que os
homens vivessem matando uns aos outros, arriscando a sua liberdade, e mais, a prpria
16
H comumente grande diferena entre a vontade de todos e a vontade geral; esta s fita o interesse
comum; aquela s v o interesse, e no mais do que uma soma de vontades particulares; porm quando tira
dessas vontades as mais e as menos, que mutuamente se destroem, resta por soma das diferenas a vontade
geral. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social, op. cit., p. 41. 17
Idem, p. 39. 18
Idem, p. 39. 19
Marx, em texto de 1859, j questionava as bases desta teorizao: Como os indivduos produzem em
sociedade, a produo de indivduos socialmente determinada, , naturalmente, o ponto de partida. O caador
ou pescador particular e isolado, pelo qual comeam Smith e Ricardo, pertence s triviais imaginaes do
sculo 18. So robinsonadas que no expressam, de nenhum modo, como se afigura aos historiadores da
civilizao, uma simples reao contra um refinamento excessivo e o retorno a uma vida primitiva mal
compreendida. Do mesmo modo, O contrato social, de Rousseau, que relaciona e liga indivduos
independentes por natureza, tampouco repousa sobre semelhante naturalismo. Essa a aparncia, e a
aparncia esttica somente, das pequenas e grandes robinsonadas. MARX, Karl. Introduo. Contribuio
crtica da economia poltica. Trad. Florestan Fernandes. So Paulo: Expresso Popular, 2008, pp. 237-238. 20
DURKHEIM, mile. O contrato social e a constituio do corpo poltico. Trad. Raquel Seixas de
Almeida Prado. QUIRINO, Clia Galvo; SADEK, Maria Tereza. O pensamento poltico clssico:
Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 416.
24
sobrevivncia da espcie. Assim, o estado civil seria uma espcie de salvao racional
dos homens21
.
Porm, como adverte Rousseau, embora o homem tenha nascido livre, por todo o
mundo moderno ele se encontra agrilhoado22
. No se quer aqui discutir o problema da
liberdade inicial, isto , se ela seria um dado emprico ou meramente conceitual23
. O
importante saber que foi amparado nesta passagem que o artigo primeiro da Declarao
afirmou que Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos24
. A influncia
de Rousseau notria e sob a perspectiva dessa filosofia que os outros artigos da
Declarao podem ser entendidos. Por exemplo, o segundo artigo, que estabelece que O
objetivo de toda associao poltica a preservao dos direitos naturais e imprescritveis
do homem25
, a consagrao jurdica da tese de Rousseau, segundo a qual o governo civil
seria uma forma de garantir a liberdade dos homens, dantes ameaada pelo estado de
guerra. J o terceiro artigo, quando diz que Nenhum corpo e nenhum indivduo pode
exercer uma autoridade que no emane expressamente da nao26
, estabelece que a
autoridade poltica deve ser buscada no conjunto de vontades do povo, e no mais em
elementos estranhos vontade popular. Por fim, o artigo sexto diz que A lei expresso
da vontade geral27
.
Mas no foi s em Rousseau que a Declarao se amparou para formular os seus
termos. John Locke outro terico importantssimo para entender os direitos humanos
desta poca e, principalmente, a razo da maior oposio de Marx aos seus postulados.
que Locke o maior terico da propriedade privada encontrado neste perodo. Para ele, a
propriedade privada era um direito natural e inviolvel, e o ltimo artigo da Declarao
21
Nesse sentido, RUBY, Christian. Introduo filosofia poltica, op. cit., p. 67. 22
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social, op. cit., p. 23. 23
Como argumenta Celso Lafer, ns no nascemos iguais: ns nos tornamos iguais como membros de uma
coletividade, em virtude de uma deciso conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade no um
dado ele no physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo comunidade poltica. Ela um
construdo, elaborado convencionalmente pela ao conjunta dos homens atravs da organizao da
comunidade poltica. LAFER, Celso. A reconstruo dos direitos humanos, op. cit., p. 150. 24
No original: Les hommes naissent et demeurent libres et gaux em droits. FRANCE. Dclaration des
droits de lhomme et du citoyen. Disponvel em: . Acesso em: 19 set. 2012. 25
No original: Le but de toute association polique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles
de lHomme. FRANCE. Dclaration des droits de lhomme et du citoyen, op. cit. 26
No original: Nul corps, nul individu ne peut exercer dautorit qui nem mane expressment. In:
FRANCE. Dclaration des droits de lhomme et du citoyen, op. cit. 27
No original: La Loi est lexpression de la vonlont gnrale. FRANCE. Dclaration des droits de
lhomme et du citoyen, op. cit.
http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asphttp://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp
25
no desconsiderou isso, com a diferena de que disse ser ela um direito inviolvel e
sagrado28
.
Para Locke, era o trabalho de determinado homem, que modificava certa
propriedade pertencente anteriormente comunidade, que conferia a ele a propriedade da
coisa29
. Isto porque Deus teria dado o mundo em comum a todos os homens e era obrigao
dos homens domin-lo para garantir a sobrevivncia da espcie. Assim, a ordem de Deus
para dominar concedeu autoridade para a apropriao, e, por conseguinte, a condio da
vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente introduziu a
propriedade privada30
. Portanto, a propriedade privada seria decorrente da prpria criao
do mundo, e, nesse sentido, um direito natural, inerente condio humana. E moda dos
direitos naturais desta poca, tambm a legitimidade da propriedade privada no era posta
prova, e a razo era a sua autoevidncia. Segundo Locke, vemos como o trabalho pode
dar aos homens direitos diferentes sobre vrias partes dela para uso particular, no cabendo
nisso qualquer dvida de direito nem lugar para discusso31
.
Assim, como os homens no poderiam sobreviver sem proteger a propriedade
privada, e como eles eram incapazes de, isoladamente, protegerem os seus bens, tais
indivduos abdicaram de parte dos seus direitos naturais com vistas sobrevivncia do
grupo32
. Este o contrato social de matriz lockeana e a sua constituio implica em que o
maior objetivo da sociedade poltica (oriunda do pacto social) a preservao da
propriedade privada33
.
No cabe aqui criticar Locke por uma noo que s apareceria tempos depois com a
economia poltica inglesa, que diferenciava trabalho assalariado de trabalho
capitalista34
, distino esta que Locke nem de perto percebeu. que o fato de algum
modificar uma propriedade com o seu trabalho no o faz, necessariamente, dono dela,
principalmente no modo de produo capitalista. Se assim fosse, os burgueses deveriam ser
28
No original: La proprit tant um droit inviolable et sacr.... FRANCE. Dclaration des droits de
lhomme et du citoyen, op. cit. 29
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. So Paulo: Martin Claret, 2011, p.
31. 30
Idem, p. 34. 31
Idem, p. 37. 32
Idem, p. 61. 33
Idem, p. 84. 34
Cf. DAVID, Ricardo. Princpios de economia poltica e tributao. So Paulo: Nova Cultural, 1996, p.
23 e ss.
26
os despossudos da sociedade do sculo XIX, pois quem trabalhava nela eram os
trabalhadores, no os burgueses.
Mas no devemos nos ater a esta crtica. O que importa que a obra de Locke, e
nisso ela se afasta da abordagem rousseauniana, era muito individualista, o que acabou por
refletir na prpria Declarao francesa. De fato, a Declarao francesa foi muito mais
individualista do que a americana, e talvez tenha sido por isso que Marx preferiu critic-la.
A razo para tal individualismo est atrelada ao prprio momento histrico vivido pela
Frana, que em certa medida era diferente do vivido pelos Estados Unidos. A Frana era
conduzida por um governo opressor em sua prpria ptria, j os Estados Unidos eram uma
colnia distante da Inglaterra, o que permitia certa autonomia. E mais, depois da Guerra dos
Sete Anos, as posses internacionais da Inglaterra aumentaram consideravelmente e os
Estados Unidos passaram do posto de principal colnia para mais uma dentre as inmeras
colnias inglesas35
. Em razo disso, os constituintes americanos ajustaram os direitos do
indivduo ao bem comum da sociedade, enquanto que os constituintes franceses, por
necessitarem de opor resistncia ao Antigo Regime, pretenderam afirmar quase que
exclusivamente os direitos dos indivduos36
.
Pois bem. So esses direitos humanos liberais, que exigem uma absteno do Estado
de intervir na vida dos indivduos, que foram objeto de Marx. Por isso, como se defender
ao final (cap. VI), no possvel analisar o mundo moderno aproveitando-se da crtica
marxiana sem realizar um mnimo de adaptao, posto que hoje os direitos humanos
constituem-se num objeto muito mais amplo do que os do sculo XIX. No queremos dizer
com isso que Marx no serve para entendermos o mundo de hoje. Longe disso. O nosso
argumento que como a realidade dos direitos humanos outra, preciso fazer (caso se
queira) uma crtica marxista, embora no totalmente marxiana, isto , tributria de Marx,
embora no dele efetivamente37
.
35
DRIVER, Stephanie Schwartz. A declarao de independncia dos Estados Unidos, op. cit., pp. 9-10. 36
Nesse sentido, BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 104. 37
A tradio marxista faz distino entre os termos marxiano e marxista. O primeiro se refere produo
terica de Marx (no mximo de Engels) e o ltimo diz respeito queles que interpretam a obra de Marx e
Engels. Desse modo, possvel entender o subttulo deste captulo: a anlise marxiana dos direitos humanos
aquela realizada por Marx, j uma possvel anlise marxista a interpretao que fazemos nesta
Dissertao sobre a anlise marxiana.
27
1.2. As trs fontes do marxismo e as trs posturas de Marx em relao aos direitos
humanos: para uma teoria da correspondncia
A teoria das trs fontes do marxismo conhecida na tradio marxista. Lnin38
defende que o que entendemos por marxismo uma continuao da filosofia alem, da
poltica francesa e da economia inglesa. J Kautski39
entende que no se trata de
continuao, mas de uma fuso ou sntese. Como no sabemos se o conceito que Kautski
utiliza aquele hegeliano, onde a sntese seria formada pela superao (Aufhebung) dos
conceitos anteriores, ou se, por outro lado, mera justaposio dos conceitos, no temos
condies de dizer se pertinente a crtica de Chasin no que refere ao que ele chama de
mito do amlgama originrio40
. Se Kautski tiver utilizado o termo baseado em Hegel, no
h sentido algum na crtica do filsofo brasileiro, pois Marx teria lidado de maneira original
com estas tradies. Se, por outro lado, no for no sentido hegeliano, a sim a abordagem de
Chasin tem pertinncia.
O problema que apesar de Kautski falar que estas tradies perderam o seu
aspecto unilateral aps a interveno de Marx, como o seu texto no suficientemente
argumentado, depois de anos estudando-o ainda no conseguimos concluir se esta sntese
tem o sentido de Hegel ou se Kautski utilizou uma palavra solta sem um significado
necessariamente tcnico. A nossa hiptese que Kautski utilizou sim o termo no sentido
hegeliano, e afirmamos isso com base no ethos do autor, que no se tratava,
definitivamente, de um desqualificado. Nesta perspectiva, quando ele fala de sntese ele no
se refere somente justaposio de tradies, mas sim ao fato de Marx ter lidado
criticamente com elas. nesse sentido que optamos pela teoria de Kautski como
instrumento apto para defender uma correspondncia entre as trs fontes do marxismo e as
trs posturas de Marx em relao aos direitos humanos. Assim, a tese que a relao de
Marx com os direitos humanos evolui na medida em que ele entra em contato com estas
trs tradies: a filosofia alem, a poltica francesa e a economia inglesa.
38
LENIN, Vladimir. As trs fontes e as trs partes constitutivas do marxismo. In: As trs fontes. So Paulo:
Expresso Popular, 2006. 39
KAUTSKI, Karl. As trs fontes do marxismo. Trad. Carlos Roberto Loureno. So Paulo: Centauro,
2002. 40
CHASIN, J. Marx: estatuto ontolgico e resoluo metodolgica. So Paulo: Boitempo, 2009, p. 29.
28
Na primeira fase (1841-1842), quando Marx defende que os direitos humanos eram
inatos, naturais e universais ele estaria influenciado pela filosofia alem, mais precisamente
pelo idealismo alemo, movimento intelectual que se inicia com Fichte e tem em Hegel o
seu pice, como veremos em breve (seo 2.1). Esta seria a primeira fonte do marxismo e a
primeira forma como Marx encara os direitos humanos. interessante notar que durante
este perodo Marx mora na Alemanha e a Alemanha desta poca era uma nao
profundamente intelectualista. Tal caracterstica compensava o seu atraso econmico e
poltico. O atraso econmico se dava em razo do seu afastamento do oceano atlntico, que
era a grande rota comercial da poca; j o poltico se dava porque a Alemanha estava
dividida em vrios estados e, por isso, no possua um poder forte e central como as outras
naes. Um fato condicionava o outro: como a Alemanha no tinha desenvolvimento
econmico, a pouco numerosa pequena-burguesia no conseguia se desenvolver, pois no
tinha apoio estatal; e o fracionamento em pequenos estados dificultava unio desta classe
em torno da exigncia de polticas de classe comuns.
Segundo Kautski41
, era em razo da deficincia alem nos campos econmico e
poltico que o pensamento era a ocupao mais elevada dos grandes alemes, a ideia era-
lhes apresentada como dona do mundo, a revoluo do pensamento como meio de
revolucionar o mundo. Assim, quanto mais a realidade era exgua e miservel, mais o
pensamento procurava elevar-se acima dela, ultrapassar os seus limites e alcanar todo o
infinito.
Na segunda fase (1843-1845), Marx passa de defensor a crtico dos direitos
humanos. que ele, ao estudar a histria da Revoluo Francesa e vivenciar o cotidiano da
sua poltica, percebeu que os direitos humanos no eram inatos, mas histricos. Eles eram
conquistas da burguesia francesa, e no algo vinculado natureza humana. certo que
Feuerbach foi muito importante para Marx descobrir este fato, porm demonstraremos que
foi s com o estudo da poltica francesa que Marx chegou a essa concepo dos direitos
humanos.
importante registrar que nesse perodo Marx j morava na Frana. A economia
gaulesa era mais atrasada que a da Inglaterra, apesar de ser mais avanada que a da
Alemanha. Como a instruo ainda era precria, uma das formas de consegui-la era se
41
KAUTSKY, Karl. As trs fontes do marxismo, op. cit., p. 36.
29
associar a uma cooperativa. Para conseguir isso, porm, era mais fcil ir para as grandes
cidades do que continuar nas aldeias. neste contexto (de xodo rural) que Paris se tornou
o centro daqueles que possuam talento (l estavam o Colgio de Frana, a Academia de
Cincias e a Sorbonne) e nesse ambiente que os cidados instrudos debatiam a
incompatibilidade entre os anseios da burguesia liberal e as necessidades dos nobres e do
clero. Atesmo e materialismo eram as ideias representativas dos intelectuais franceses e
eram elas que representavam a descrena em tudo o que lembrava a tradio monrquica e
os privilgios feudais. Assim, a poltica era a grande arte dos franceses, do mesmo modo
que a filosofia era a principal ocupao dos alemes.
Por fim, na terceira fase (1846-1883) Marx abandona os direitos humanos.
Enquanto na fase anterior Marx critica os direitos humanos por considerar que eles
representavam os interesses do homem burgus, razo pela qual ele precisava ser
modificado, agora, ao estudar mais detidamente os economistas clssicos, Marx aprofunda
a sua crtica. No que os direitos humanos estavam defendendo a classe burguesa, mas
eles s poderiam defender a burguesia enquanto classe dominante. Para o Marx desta fase,
o direito um instrumento de legitimao classista e, nesse sentido, um corpo vazio que
preenchido de acordo com os interesses da classe dominante, seja ela qual for. Por isso,
ao defender um regime poltico (o comunismo) que aboliria as classes, no haveria mais
sentido em defender o instrumento (os direitos humanos) que viabilizava a existncia de
uma sociedade classista (cf. sees 4.2 e 4.2.1). Essa a razo que explica o abandono de
Marx dos direitos humanos. E isso ele s percebeu ao entender melhor a dinmica que regia
a sociedade civil, conhecimento que ele adquiriu ao estudar a economia poltica inglesa.
bom lembrar que nesse perodo Marx j morava na Inglaterra. A Inglaterra era o
pas onde o capitalismo estava mais desenvolvido. Certamente, o principal fator era a sua
posio geogrfica, mas no era s isso. Outros fatores foram o surgimento de novas
tcnicas de fabricao e de transporte, que se desenvolveram basicamente em solo ingls42
.
Assim, na Inglaterra que os estudos da economia poltica estavam mais desenvolvidos.
Nomes como Adam Smith e David Ricardo so representativos desta tradio e com eles
que Marx ir aprender e criticar a economia burguesa.
42
Cf. SCHNERB, Robert. O sculo XIX: o apogeu da civilizao europia. Trad. J. Guinsburg. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, pp. 55-61.
30
Pois bem. Em alguns textos, Marx demonstra explicitamente a influncia destas trs
tradies na formao do seu pensamento. Umas destas ocasies o artigo publicado no
Vorwarts, em 1844: preciso reconhecer que proletariado alemo constitui o terico do
proletariado europeu, assim como o proletariado ingls seu economista poltico e o
proletariado francs seu poltico43
. Outra meno est em A ideologia alem:
A situao da Alemanha no final do sculo passado se reflete plenamente na
Crtica da razo prtica de Kant. Enquanto a burguesia francesa se alava ao
poder mediante a revoluo mais colossal que a histria conheceu e conquistava o
continente europeu, enquanto a burguesia inglesa, j politicamente emancipada,
revolucionava a indstria e subjugava politicamente a ndia e comercialmente o
resto do mundo, os impotentes burgueses alemes s conseguiam ter boa
vontade. Kant se contentou com a simples boa vontade, mesmo que ela no
desse qualquer resultado, e situou a realizao dessa boa vontade, a harmonia
entre elas e as necessidades e os impulsos dos indivduos, no alm44
(grifos no
original).
Mas, antes de finalizar esta seo, preciso realizar duas ponderaes. A primeira
que, como adverte Chasin, Marx no continuou e desenvolveu (Lnin) ou sintetizou
(Kautski) as tradies provenientes da Alemanha, Frana e Inglaterra45
. Na verdade, Marx
problematizou estes conhecimentos e criticou todos eles (como vimos, a crtica em relao
a Kautski depende do conceito de sntese adotado por este autor), o que no significa que
no tenha sofrido influncia destas tradies. Como ele prprio argumentar em 1845 ao
criticar Feuerbach, no possvel influenciar a sociedade sem ser influenciado por ela46
.
A segunda ponderao que Marx no estudou de forma uniforme a filosofia
alem, a poltica francesa e a economia inglesa. Assim, equivoca-se quem pensa que Marx
s estuda a filosofia alem quando est na Alemanha, a poltica francesa quando est na
Frana e a economia inglesa quando est na Inglaterra, e que estes conhecimentos vo
sendo substitudos uns pelos outros. Este um esquema fixista e incompatvel com uma
postura pragmtica, que a hermenutica que rege esta Dissertao (cf. seo 1.3). Como
43
MARX, Karl. Glosas crticas ao artigo O rei da Prssia e a reforma social. De um prussiano. MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classe na Alemanha. Trad. Nlio Schneider. So Paulo: Boitempo,
2010, p. 45. 44
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alem: crtica da mais recente filosofia alem em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemo em seus diferentes profetas. Trad.
Rubens Enderle, Nlio Schneider, Luciano Cavini Martorano. So Paulo: Boitempo, 2007, pp. 192-193. 45
CHASIN, J. Marx, op. cit., p. 31. 46
MARX, Karl. Ad Feuerbach. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alem, op. cit., p. 534.
31
nos mostra a sua pequena autobiografia intelectual47
, Marx, em 1842, j estudava economia
poltica. Um pouco mais frente, em 1844, ele leu o Esboo de uma crtica da economia
poltica, de Engels, e disse que esse texto era um genial esboo e tinha lhe influenciado
bastante. Segundo Mszros48
, tambm datam desta poca os seus estudos dos socialistas
franceses. Num texto de 1842 sobre os furtos de lenha, inclusive, ele havia argumentado
que a propriedade privada em si era um roubo. Esta afirmao, como hoje se sabe, no
dele, mas do socialista Prodhon49
, o que revela conhecimento de uma literatura recente.
O que acontece que, em determinados perodos, parece que ele estuda mais uma
tradio em detrimento das outras e isso acaba por influenciar o seu discurso. Assim, a
nossa tese que quando ele mora na Alemanha a sua abordagem dos direitos humanos
mais filosfica; quando ele mora na Frana, a sua abordagem mais poltica, sem deixar de
ser filosfica; e quando ele mora na Inglaterra, a sua abordagem mais econmica, sem
deixar de ser filosfica ou poltica50
.
47
Cf. MARX, Karl. Prefcio. Contribuio crtica da economia poltica. Trad. Florestan Fernandes. So
Paulo: Expresso Popular, 2008, pp. 46 e 48-49. 48
MSZAROS, Istvn. A teoria da alienao em Marx. Trad. Isa Tavares. So Paulo: Boitempo, 2006, pp.
72-73. 49
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que a propriedade. Disponvel em: . Acesso em: 20 out. 2008. 50
Alm da teoria das trs fontes, existe um outro modelo terico que procura dar conta das influncias que
Marx teria sofrido na construo da sua obra: a teoria dos quatro mestres. Costanzo Preve sustenta que
possvel interpretar o pensamento de Marx como oriundo de quatro mestres: Epicuro o teria ensinado o
materialismo da liberdade; Hegel o teria ensinado a dialtica e a historicidade; Rousseau o teria ensinado o
democratismo igualitrio; e Smith o teria ensinado a fundamentar a propriedade no trabalho. Cf. PREVE,
Costanzo. Il filo de Arianna: quindici lezioni di filosofia marxista. Milano: Vangelista, 1990. Parece-nos,
entretanto, que a teoria das trs fontes mais apta para uma hermenutica marxista, e aqui no estamos
querendo defender uma postura internacionalista da teoria de Marx, que, uma vez formada pelas trs partes
mais importantes do mundo europeu de ento Alemanha, Frana e Inglaterra , a tornaria o produto da
totalidade do pensamento europeu, como muito se defendeu no sculo XX. que Epicuro, apesar de ter sido
importantssimo na construo do pensamento de Marx, foi estudado por ele apenas para fundamentar a
filosofia alem dos jovens hegelianos, e no com o fim de estudar simplesmente o legado grego (cf. seo
2.2).
32
1.3. A pragmtica do conhecimento como estratgia metodolgica utilizada para
interpretar a relao de Marx com os direitos humanos
O terceiro detalhe metodolgico est na escolha do pragmatismo como estratgia
hermenutica utilizada para explicar a relao de Marx com os direitos humanos. Como
vimos na Introduo, trata-se de uma relao complexa. H variados motivos para isso, mas
o principal deles que a sua concepo acerca do que seria os direitos humanos no
estanque, mas evolui no decorrer da sua obra. Isso no significa, porm, que o intrprete
deve cindir Marx em tantos homens quantas forem as suas fases, e mais, escolher o que
melhor lhe convm. Marx no Wittgeinstein, cuja distino entre as concepes
abrangidas por uma fase intelectual e a outra bastante clara e, ainda, o segundo nega o
primeiro51
. Por outro lado, Marx tambm no um autor de uma nica obra. O Marx objeto
deste estudo foi um escritor to prolfico quanto contraditrio, como peculiar aos que
quiseram escrever sobre tudo e sobre todos em tempo real. Nesses casos, as contradies
so normais e esperadas. Ir contra este fato negar os limites da mente humana, que no
nasce madura, mas desenvolve-se em anos de estudo e vivncia.
Por isso, no estamos de acordo com a posio de Louis Althusser, que faz uma
ciso entre o jovem Marx e o velho Marx, com prevalncia epistemolgica do velho,
que era cientista, sobre o jovem, que era filsofo idealista52
. A tese de Althusser que
h uma cesura epistemolgica na obra de Marx, localizada em 1845 (mais precisamente,
em dois textos: Teses contra Feuerbach e A ideologia alem) e que separa a sua obra em
dois momentos: os escritos anteriores a 1845, pertenceriam ao jovem Marx, perodo em
que Marx teria se dedicado filosofia e ainda tentava se desprender do espectro hegeliano,
e os trabalhos posteriores a 1845 pertenceriam ao velho Marx, ou ao Marx maduro,
perodo em que ele teria se dedicado economia e teria fundado a sua cincia: o
materialismo histrico53
. Mais do que uma inverso hegeliana, o materialismo histrico
51
OLIVEIRA, Manfredo de. Reviravolta lingustico-pragmtica na filosofia contempornea. So Paulo:
Edies Loyola, 2006, p. 117. 52
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 53
Idem, pp. 23-24. preciso dizer, entretanto, que em 1969, no prefcio que Althusser escreveu para a edio
francesa de O capital, ele reconheceu que a sua tese da cesura epistemolgica tinha sido demasiado
rgida. Mas no pense que, com isso, Althusser pretendia rever as suas posies e abandonar a tese. Na
33
seria representativo do abandono de Hegel e, portanto, implicaria na construo de uma
nova filosofia, a marxiana, que seria independente e distinta54
. A posio de Chasin
semelhante, mas a data da cesura que diferente. Para o terico brasileiro, em 1843,
com a Crtica da filosofia do direito de Hegel, que Marx se torna marxista, e os textos
escritos anteriormente seriam literatura pr-marxiana55
. Assim, no h mudana
hermenutica significativa, o que h uma mudana de datas. Para um, 1845; para outro,
1843.
Para o nosso trabalho, entretanto, no importam as datas: 1843 ou 1845. Todas as
duas so propostas fixistas que no consideram que o conhecimento contnuo, e mais, que
impossvel uma construo intelectual sem pressupostos ou at mesmo contradies.
claro que nestas datas mais em 1843 e menos em 1846 Marx modifica explicitamente o
seu pensamento, mas isso no quer dizer que o que foi escrito anteriormente seja carecido
de valor, pois possvel identificar categorias filosficas nos textos de juventude que
seriam desenvolvidas apenas na maturidade. Para s ficar num exemplo, basta ver o
conceito de alienao investigado por Mszros56
.
A preocupao de Althusser, que o leva a criar esta teoria da cesura, pode ser
descrita a partir de uma inquietao no propriamente sua, uma vez que encontrada em
muitos dos marxistas do sculo XX. que algumas das obras mais importantes do jovem
Marx para usar a classificao que aqui se combate, mas que til para fins didticos ,
como os Manuscritos econmico-filosficos, s foram descobertas muito tardiamente, o
que gerou uma srie de estudos sobre tais textos. Assim, neste contexto, indaga Althusser:
Que feita da filosofia marxista? Ela tem, teoricamente, direito existncia? Se ela existe
verdade, ele a torna ainda mais radical. Para ele, nem em O capital Marx apresenta uma teoria desvencilhada
do idealismo de Hegel. Apenas na Crtica ao programa de Gotha que Marx estaria totalmente livre do
mencionado idealismo. Isso faz com que, na opinio de Althusser, apenas em 1875, data da publicao da
Crtica ao programa de Gotha, que Marx teria uma obra realmente autntica. O problema que esta
uma das ltimas obras de Marx (ele morre em 1883) e, consequentemente, caso se adote esta tese que no
adotamos nesta Dissertao; pelo contrrio, nos opomos a ela deve-se considerar que a filosofia de Marx
tem pouca coisa de autntico, o que no verdade. Cf. ALTHUSSER, Louis. Advertncia aos leitores do livro
I dO capital. MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica: livro I: o processo de circulao do
capital. Trad. Rubens Enderle. So Paulo: Boitempo, 2013, p. 53. 54
Quanto famosa inverso de Hegel, ela a expresso da tentativa de Feuerbach. Foi Feuerbach que a
introduziu e a consagrou na posteridade hegeliana. E interessante que Marx tenha formulado precisamente
contra Feuerbach na Ideologia alem a censura de ter permanecido prisioneiro da filosofia hegeliana no
momento em que pretendia t-la invertido. Idem, p. 61. 55
CHASIN, J. Marx, op. cit., p. 45. 56
MSZROS, Istvn. A teoria da alienao em Marx, op. cit..
34
de direito como definir a sua especificidade?57
. Em outros termos: seria possvel falar de
uma teoria (ou filosofia) marxiana antes da criao do materialismo histrico? (Isso porque,
para Althusser, este era um mtodo transformado em cincia). Althusser responde
negativamente. Ele argumenta que o conjunto de textos escritos pelo jovem Marx
constitui uma srie de tentativas que Marx empreendeu para se libertar do seu comeo,
entendido como um mundo ideolgico extraordinariamente pesado que o recobria e
identificado com as iluses da filosofia especulativa alem58
. Marx, ento, pela lente de
Althusser, sente-se obrigado a renunciar a projetar sobre a realidade do estrangeiro os
mitos alemes, pois deveria projetar sobre a Alemanha a luz das experincias adquiridas
no estrangeiro59
.
Todavia, ao contrrio do que prope o filsofo argelino, somos da opinio de que
no h nada mais equivocado do que separar Marx em dois homens. Assim, assumindo o
fato de que Marx um s e que as suas mudanas de concepo foram fruto da sua
evoluo intelectual, nos opomos famosa dicotomia supracitada e, por conseguinte,
ideia segundo a qual haveria uma cesura epistemolgica absoluta entre uma e outra fase,
ou, para se opor a Chasin, ideia de que haveria uma virada radical que tornaria o que foi
escrito anteriormente uma literatura pr-marxiana. Neste sentido, procurando trilhar uma
outra rota, numa tentativa de sair das tradies fixistas, pretendemos realizar uma anlise
pragmtica de Marx.
A despeito do pragmatismo no ser um pensamento unitrio, uma vez que abriga
uma pluralidade de pensadores e de abordagens, parece existir um princpio que inerente
a todos os autores que compartilham dessa tradio filosfica: a continuidade. Para o
pragmatismo, como ser visto com mais detalhes adiante, o conhecimento contnuo, no
podendo ser fracionado em fases ou etapas supostamente independentes umas das outras; os
novos conhecimentos sempre carregam algo dos anteriores e as novas categorias sempre
esto relacionadas com as categorias precedentes. A tese, portanto, que como pela
continuidade pragmtica o conhecimento no pode ser cindido, isto , apartado das suas
origens e das suas projees, no h razo teoria que aparta o jovem do velho Marx,
57
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx, op. cit., p. 22. 58
Idem, p. 71. 59
Idem, p. 70.
35
como em Althusser, ou teorizao que distingue os textos pr-marxianos dos
marxianos, como quer Chasin.
O que se quer com a filosofia pragmtica tom-la como aporte para resolver a
seguinte problematizao: pelo fato de Marx ter abandonado os direitos humanos no fim da
sua carreira, as obras de juventude, onde ele defendia os direitos humanos, no teriam mais
validade? Como consequncia, as obras juvenis (escritas at 1845) teriam importncia
somente histrica? Althusser estaria certo em fazer um corte epistemolgico entre o
jovem e o velho Marx?
Com o pragmatismo, e o seu princpio da continuidade, combatemos as inquiries
feitas acima e defendemos a ideia de que nas suas obras juvenis j estariam presentes
algumas categorias que Marx trabalharia s na maturidade, pois possvel perceber uma
evoluo no linear (posto que descontnua) entre o jovem e o velho Marx. E isso no
novidade. Mszros, em obra sobre a temtica da alienao, j havia percebido a falsidade
da oposio entre o jovem e o velho Marx, ou, como ele formulou, entre a filosofia e a
economia poltica na obra de Marx60
.
Isso se d porque, como argumenta William James, o conhecimento contnuo,
incessante, no estando sujeito a cortes abruptos. Na sua compreenso, o conhecimento
cresce por pontos, que podem ser de grande ou pequena monta, no importa; o essencial
que ele nunca cresce por inteiro, de uma vez s61
. A razo parece simples: os homens no
so entes zerados, alguma experincia de vida eles sempre tm. Portanto, a concepo
nova, em razo de no encontrar um recipiente vazio, choca-se com as velhas concepes, e
o resultado desse choque que ser o responsvel pelo surgimento da ideia nova62
que
diferente das concepes anteriores, posto que constituda pela mistura ou superao
delas.
Assim, explica-se porque a ideia nova no algo puro, inusitado, fruto de uma
abiognese; processo que comea do nada, desprovido de historicidade. A ideia nova,
como explica James, preserva o estoque mais antigo de verdades com um mnimo de
60
MSZROS, Istvn. A teoria da alienao em Marx, op. cit., p. 208. 61
JAMES, William. Quinta conferncia: pragmatismo e senso comum. Pragmatismo. Trad. Jorge Caetano da
Silva. So Paulo: Martin Claret, 2005, p. 98. 62
JAMES, William. Segunda conferncia: o que significa pragmatismo. Pragmatismo, op. cit., pp. 50-51.
36
modificao, estendendo-as o bastante para faz-las admitir a novidade, mas concebendo
tudo em caminhos to familiares quanto o caso permite ser possvel63
.
Essa condio faz parecer a olhos no treinados que nada se modificou, mas o
indivduo j outro, no totalmente diferente, mas, ainda assim, em alguma medida
diferente. Tal processo no perceptvel por razes muito simples: todo indivduo possui a
tendncia de conservao do seu modo de vida, o que inclui as suas ideias. Assim, mesmo
adotando uma ou outra ideia nova, ele ainda permanece com a maioria das antigas opinies;
na verdade, seria um caos mental se os homens modificassem todo o estoque de opinies
rotineiramente, a todo tempo.
Na verdade, a evoluo intelectual de um indivduo, no mais das vezes, s
notada quando se faz uma anlise detida do seu percurso64
. Isso porque os homens, alm de
j possurem um estoque de velhas opinies (James), tm a tendncia de conservar as
velhas ideias e os velhos preconceitos, pois desde Plato j sabemos que tudo o que novo
estranho e incmodo65
. Novas concepes so inseridas paulatinamente e o objetivo
fazer com que a maioria das ideias antigas possam se manter, na medida do possvel,
inalteradas. Remendamos e concertamos mais do que renovamos66
, diz James.
Neste contexto, a par da metodologia pragmtica, podemos defender que a evoluo
de Marx foi gradual e histrica, pois os direitos humanos na sua obra so um objeto que o
tempo vai tornando mais complexo
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