UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Direito
Ariane Shermam Morais Vieira
OS LIMITES À DELEGAÇÃO DO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA
ESTATAL: análise sobre a possibilidade de atuação dos particulares.
Belo Horizonte
2016
Ariane Shermam Morais Vieira
OS LIMITES À DELEGAÇÃO DO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA ESTATAL:
ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO DOS PARTICULARES.
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em Direito.
Área de Concentração: Direito e Justiça.
Linha de Pesquisa: Poder, Cidadania e
Desenvolvimento no Estado Democrático de
Direito.
Projeto Coletivo: Perspectivas do Estado de
Direito Contemporâneo e estratégias de ação
do Estado na promoção dos objetivos
constitucionais.
Área de Estudo: Direito e Administração
Pública.
Orientadora: Professora doutora Cristiana
Maria Fortini Pinto e Silva - UFMG.
Belo Horizonte
2016
Vieira, Ariane Shermam Morais
V658l Os limites à delegação do exercício do poder de polícia estatal:
análise sobre a possibilidade de atuação dos particulares / Ariane
Shermam Morais Vieira. - 2016.
Orientadora: Cristiana Maria Fortini Pinto e Silva
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Direito.
1. Direito administrativo - Teses 2. Poder de polícia 3.
Poder disciplinar 4. Serviço público I.Título CDU(1976) 342.9(81)
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Juliana Moreira Pinto CRB 6/1178
Dissertação intitulada “Os Limites à Delegação do Exercício do Poder de Polícia
Estatal: análise sobre a possibilidade de atuação dos particulares”, de autoria da mestranda
Ariane Shermam Morais Vieira, defendida e aprovada em_____________________________
pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________________________
Professora doutora Cristiana Maria Fortini Pinto e Silva (Orientadora) - UFMG
_______________________________________________________________
Professor doutor Florivaldo Dutra de Araújo - UFMG
_______________________________________________________________
Professor doutor Edimur Ferreira de Faria - PUCMINAS
_______________________________________________________________
Professor doutor Luiz Carlos Figueira de Melo - UFU
AGRADECIMENTOS
O privilégio de concluir mais essa jornada não teria sido possível sem a presença de
pessoas importantes em minha caminhada.
Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, professora Cristiana Fortini -
exemplo de dedicação e incomparável competência -, que fez despertar em mim o gosto pelo
Direito Administrativo, ainda na graduação. A sua paixão pelo Direito e pela docência são
inspirações em minha vida.
Ao professor Florivaldo Dutra de Araújo, mestre com quem tive o privilégio de
conviver e aprender ao longo da minha trajetória no mestrado.
Ao professor Luciano Ferraz, que, além das valorosas lições acadêmicas, me
oportunizou, junto da professora Cristiana Fortini e do professor Florivaldo, o contato com a
docência durante o mestrado, fonte de desafios e também de alegrias.
A todos os professores da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, os quais
cumprimento em nome da Professora Maria Tereza Fonseca Dias, que, de modo mais ou
menos direto, contribuíram para a minha formação.
Aos meus colegas de pós-graduação, com os quais tive a oportunidade de estreitar
laços que vão além da Academia, pelas valorosas trocas que contribuíram para meu
aperfeiçoamento acadêmico e crescimento pessoal, em especial, à Mariana Bueno, à Maria
Letícia Resende, ao Murilo Melo Vale, à Bruna Colombarolli, ao Federico Nunes e ao Thiago
Riccio.
Aos meus alunos, que me fazem recordar, a todo tempo, que não há um dia como o
outro na docência; é sempre possível aprender, fazer melhor, encantar-se.
Aos meus amigos e colegas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
Aos meus amigos de longa data, pelo suporte e compreensão em todos os momentos
de ausência.
Ao Humberto e à Rosana, que me acolheram e incentivaram desde os primeiros passos
acadêmicos e profissionais. O apoio de vocês foi decisivo para eu chegar até aqui.
À minha família, meu sustentáculo, pelo inestimável apoio.
A Deus, sem o qual essa caminhada não teria sido possível.
RESUMO
O Direito Administrativo vem passando por intensas transformações nas últimas
décadas, em especial, a partir da segunda metade do século XX. No Brasil, observa-se que
tais transformações, capitaneadas pela entrada em vigor da Constituição da República de
1988, tem tornado o Estado mais permeável à participação dos cidadãos na consecução dos
interesses públicos. Por outro lado, elas têm revelado uma busca cada vez mais intensa do
Estado por parcerias, em sentido amplo, com esses mesmos cidadãos, de modo a promover a
consecução dos interesses da coletividade. Soma-se a isso a tendência de releitura do regime
jurídico-administrativo, e, consequentemente, do próprio desempenho da função
administrativa, de modo a afastá-lo de uma concepção autoritária, verticalizada. Nesse
contexto é que tem despontado, tanto da doutrina quanto da jurisprudência brasileiras, a
discussão sobre a possibilidade de o Estado delegar a particulares o exercício de atos jurídicos
expressivos do poder de polícia. Trata-se de atividade estatal que, em síntese, busca ajustar o
exercício da liberdade e da propriedade dos cidadãos aos interesses da coletividade.
Atualmente, o entendimento majoritário, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, é o de
que atos jurídicos expressivos do poder de polícia são indelegáveis a particulares. Contra a
delegação é arrolada, entre outros argumentos, a impossibilidade de atribuir a particulares a
incumbência de desempenhar típicos poderes públicos uns sobre os outros, sob o risco de
violação à igualdade. Por outro lado, têm surgido entendimentos que defendem a parcial
delegabilidade do poder de polícia, enquanto outros, em menor proporção, argumentam no
sentido da delegabilidade mais ampla dessa atividade estatal. Nesse contexto, este trabalho
busca avaliar se a delegação do poder de polícia encontra respaldo na Constituição da
República de 1988, bem como verificar os limites e condicionamentos a tal delegação. Assim,
admite-se como possível a delegação de determinados atos jurídicos expressivos do poder de
polícia, desde que tal transferência não implique a manifestação de amplos poderes de decisão
ou o exercício de coação por particulares uns sobre os outros.
Palavras-chave: Constituição da República de 1988. Poder de polícia. Delegação de atos
jurídicos. Regime jurídico-administrativo.
ABSTRACT
Administrative Law has been going through several intense transformations in the last
couple of decades, especially during the second half of the XX century. In Brazil, it has been
observed that these transformations, which came into effect with the Constitution of 1988,
have allowed the State to be more open to the participation of citizens with the attainment of
public interest. On the other hand, they have revealed an intense search from the State for
partnerships, in a broad sense, with these same citizens, so that to promote procurement of
collective interest, adding to this the tendency of the reinterpretation of the administrative
legal system, and consequently, the performance of administrative functions, so to distance it
from an authoritative conception. This context has given, to the doctrine as well as to the
Brazilian jurisprudence, the discussions about the possibility of the State to delegate to the
private sector the exercise of judicial acts of police power. This pertains to State owned
activities that, summarized, seek to adjust the exercise of liberty and citizen owned property
to the interest of all. Currently, the major understanding, not only in doctrine but also in
jurisprudence, is that the legal acts of police power are non-delegable to the private sector.
Attributed to this non-delegability is, among other arguments, the impossibility to attribute to
the private sector the task of performing certain public powers over one another, for the risk
of violating equality. On the other hand, understandings that defend a partial delegation of
police power have arisen, while others, in smaller proportions, argue in favor of a wider
delegation of this State activity. In this context, this paper will seek to evaluate if the
delegation of police power finds support in the Constitution of 1988, as well as to verify the
limits and conditions of this delegation. This way, one can verify that the delegation of
determined judicial acts concerning the police power is possible, as long as this transfer does
not bring the manifestation of ample decision powers or the coercion of private citizens upon
one another.
Key words: Constitution of 1988. Police Power. Delegation of judicial acts. Administrative
Legal System.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
art. - artigo
arts. - artigos
ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade
AI - Agravo de Instrumento
ARE - Recurso Extraordinário com Agravo
BHTRANS - Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
CR ∕88 - Constituição da República Federativa do Brasil de1988
CTB - Código de Trânsito Brasileiro
CTN - Código Tributário Nacional
EC - Emenda Constitucional
RESP - Recurso Especial
SBDI-II - Subseção II Especializada em Dissídios Individuais
SDI-1 - Seção de Dissídios Individuais I
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
TJMG - Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TRT - Tribunal Regional do Trabalho
TST - Tribunal Superior do Trabalho
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12
2. O CONCEITO DE PODER DE POLÍCIA. .............................................................. 18
2.1. As críticas doutrinárias à expressão e ao conceito de poder de polícia. .......... 24
3. PODER DE POLÍCIA: ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO
E SUAS CARACTERÍSTICAS. ............................................................................................ 34
3.1. Antiguidade. .......................................................................................................... 34
3.2. Idade Média: época feudal. ................................................................................. 35
3.3. Estado Polícia (ou Estado de Polícia). ................................................................ 36
3.4. Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito. ..................................... 37
4. CARACTERÍSTICAS HISTORICAMENTE ATRIBUÍDAS PELA DOUTRINA
AO PODER DE POLÍCIA..................................................................................................... 41
4.1. Poder de polícia como atividade negativa. ......................................................... 41
4.2. Poder de polícia como “poder discricionário”. .................................................. 44
4.3. Poder de polícia como atividade autoexecutória: executoriedade e
coatividade. .......................................................................................................................... 49
4.4. Poder de polícia como atividade preventiva. ..................................................... 55
4.5. Notas adicionais sobre os traços característicos do poder de polícia. ............. 58
4.6. Poder de polícia como atividade privativa de autoridade pública e o
significado da noção de “atividades exclusivas de Estado”. ............................................ 60
4.6.1. Sobre o conceito de autoridade pública. ............................................................. 68
5. OS ATOS POR MEIO DOS QUAIS SE MANIFESTA O PODER DE POLÍCIA.
73
5.1. As estratégias ou modos de manifestação do poder de polícia e sua distinção
em relação aos atos de polícia especificamente considerados. ........................................ 73
5.1.1. Os atos jurídicos por meio dos quais se expressa a estratégia de “regulação”. .. 77
5.1.2. “Fiscalização” como estratégia de polícia e os atos jurídicos por meio dos quais
se expressa. ........................................................................................................................ 79
5.1.3. “Sanção” como estratégia de polícia e os atos jurídicos por meio dos quais se
manifesta. .......................................................................................................................... 81
6. PODER DE POLÍCIA E AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA BRASILEIRA. ..................................................................................................... 84
6.1. As transformações da administração pública brasileira: considerações sobre
a transição ao modelo de administração gerencial. ......................................................... 84
6.2. A reforma da Administração Pública e o fenômeno da globalização. ............. 92
6.3. Reforma administrativa brasileira: pressupostos e obstáculos da transição da
administração pública burocrática para a administração gerencial. ............................ 94
6.4. Administração pública e o princípio da eficiência: o contexto brasileiro. ...... 97
6.4.1. Princípio da eficiência e a transferência de tarefas públicas a particulares: notas
sobre as vantagens alegadas e as críticas. ....................................................................... 103
7. SOBRE A POSSIBILIDADE E OS LIMITES DO EXERCÍCIO, POR
PARTICULARES, DE ATOS JURÍDICOS EXPRESSIVOS DO PODER DE POLÍCIA.
106
7.1. Delegação do poder de polícia, relação entre Estado e sociedade e tendências
atuais da administração pública. ..................................................................................... 106
7.2. Os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do exercício, por
particulares, de atos jurídicos expressivos do poder de polícia. ................................... 114
7.2.1. O conteúdo jurídico do termo delegação. ......................................................... 115
7.3. Fundamentos teóricos da corrente doutrinária e jurisprudencial que nega a
possibilidade de delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a
particulares ........................................................................................................................ 121
7.4. Fundamentos teóricos da corrente doutrinária e jurisprudencial que admite a
possibilidade de delegação parcial do poder de polícia. ................................................ 130
7.5. Fundamentos teóricos da defesa doutrinária à ampla delegação do poder de
polícia. 135
7.6. Análise das correntes acerca da indelegabilidade/ delegabilidade do poder de
polícia. 138
7.6.1. Poder de polícia, executoriedade e coerção. ..................................................... 139
7.6.2. Poder de polícia e regime jurídico institucional incidente sobre os servidores
que o desempenham. ....................................................................................................... 142
7.6.3. Regime jurídico da atividade de polícia e seu exercício por empresas estatais.
147
7.6.4. Poder de polícia e atuação empresarial dos particulares. ................................. 154
8. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 161
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 167
12
1. INTRODUÇÃO
A reflexão sobre as etapas mais recentes de desenvolvimento do Estado permite a
conclusão de que, como acertadamente aponta Pedro Gonçalves (2008, p. 13),
“transformação” é a palavra mais adequada para caracterizar a época em que atualmente se
vive.
De fato, ainda que não seja possível tratar de mudança de paradigma ou de profundas
alterações dos fundamentos sobre os quais se assenta o Estado, não se pode ignorar a
existência de significativas transformações da intensidade e das modalidades de intervenção
pública no meio social, bem como das soluções institucionais adotadas para concretização
dessa intervenção1.
Em meio às mencionadas transformações, ganham relevo no Brasil, tanto na doutrina
quanto na jurisprudência, as discussões sobre a possibilidade e os limites da delegação do
exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia estatal a particulares2. Tais
discussões estão inseridas em contexto de ascensão de uma “nova administração pública”,
inserida em um Estado que se estrutura ao “refluxo da imperatividade” e em consonância com
a “tendência reequilibradora da afirmação imemorial da coerção” (Moreira Neto, 2001 p.
40)3, e deitam raízes em múltiplas e complexas causas, como a propalada crise do Estado de
Bem Estar Social (e, relacionada a ela, a crise da forma de administrar do Estado fundada no
modelo burocrático weberiano), a globalização e a crescente complexidade da sociedade,
acompanhada do aumento do protagonismo dos atores sociais.
Os fatores causais anteriormente mencionados contribuem para a retração do Estado e
ensejam o surgimento e o fortalecimento de manifestações de maior protagonismo da
sociedade, com maior interseção entre a esfera pública e a esfera privada4, mesmo em setores
1 Tratando-se especificamente da ordem jurídico-constitucional brasileira, não se ignoram as
profundas alterações na concepção de Estado produzidas pela Constituição da República de 1988.
Logo, quando se fala em não alteração de paradigmas ou dos fundamentos sobre os quais se assenta o
Estado, o enfoque recai sobre a atualidade, ao período pós-Constituição de 88.
2 A expressão “particular” é empregada neste trabalho para designar as pessoas naturais e jurídicas
que não integram o aparelho estatal.
3 Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o fenômeno da redefinição do papel do Estado diante
da ascensão do protagonismo da sociedade dá-se sob a égide dos seguintes princípios: subsidiariedade,
coordenação, privatização, publicização e consensualidade, todos contribuindo para “O refluxo da
imperatividade e a tendência reequilibradora da afirmação imemorial da coerção” (MOREIRA NETO,
2001, p. 40).
4 Cita-se, nesse sentido, Luiz Carlos Figueira de Melo e Altamirando Pereira da Rocha (2007, p. 263),
que, após tratarem das alterações do perfil do Estado desde o século XIX, afirmam que, no século
13
de atuação tradicionalmente considerados públicos e estatais, por supostamente dizerem
respeito à própria razão de existir do Estado, como é o caso do poder de polícia.
Pode-se dizer, nesse contexto, que, a despeito de se tratar de tema em voga, não há
consenso na doutrina e na jurisprudência brasileira a respeito da possibilidade e dos limites da
transferência do exercício do poder de polícia a particulares.
Antes de prosseguir, ressalta-se que o critério para seleção das decisões judiciais
citadas ao longo deste trabalho, como representativas das diversas correntes acerca da
delegação, foi a recorrência da evocação de determinados argumentos, traduzidos em chaves
de pesquisa na Internet, a favor e contra o traslado, conforme explicitados pelos estudiosos.
São eles, partindo de quem nega a delegação, a impossibilidade do traslado de poderes
públicos de autoridade, coercitivos, a particulares; de outro turno, na perspectiva de quem
admite a delegação, mesmo que parcialmente, a defesa de que é possível transferir
determinadas atribuições relativas ao exercício do poder de polícia sem redundar na violação
à ordem normativa, na quebra do monopólio de coerção pelo Estado ou no desrespeito à
exigência de legitimação política5 que algumas dessas atribuições demandam. Iniciou-se,
assim, a análise das decisões do STF e STJ, Tribunais Superiores que, em razão de sua
competência material, já enfrentaram a questão da possibilidade de pessoas sujeitas a regime
privado6, ainda que parcialmente, exercerem poder de polícia por delegação, e que são
recorrentemente citadas pelos autores que abordam o tema da delegabilidade e de seus limites.
Assim, observa-se que a doutrina majoritária, representada, entre outros
administrativistas, por Celso Antônio Bandeira de Mello (2014) e Maria Sylvia Zanella Di
Pietro (2011), defende a indelegabilidade de atos jurídicos expressivos do poder de polícia,
por exteriorizarem autoridade pública, insuscetível de traslado a particulares. Esse é também o
entendimento majoritário na jurisprudência. Nesse cenário, colhem-se decisões do STF que já
se posicionaram no sentido da impossibilidade de pessoas submetidas a regime jurídico de
direito privado, ainda que de modo parcial, exercerem poder de polícia.
Essa corrente não nega, em situações excepcionais, como, por exemplo, no caso dos
poderes outorgados aos comandantes de navios, bem como na hipótese de atos materiais
XXI, o processo de formação da vontade administrativa não pode mais embasar-se no modelo de
Estado Social, identificado pelo exercício de direitos subjetivos, de natureza protetiva, pelos
indivíduos em face do Estado. Para os autores, na atual fase evolutiva do Estado, que denominam de
“Estado Neoliberal”, surge a figura do “indivíduo cidadão”, parceiro do Estado e participante do
processo de formação da vontade administrativa. Assim resumem: “No Estado Liberal a administração
era autoritária, no Estado Social protetora, agora no Estado Neoliberal é parceira”.
5 Aqui, trata-se precipuamente das competências que envolvem o exercício da função legiferante.
6 Não necessariamente particulares, no sentido tratado neste trabalho. A esse respeito, as
considerações do Capítulo 7.
14
acessórios, anteriores ou posteriores a atos jurídicos de polícia (Bandeira de Mello, 2014, p.
857-859) ou de atos técnicos instrumentais (Dallari, 2006, p. 12), a licitude da transferência a
particulares.
A seu turno, verifica-se que tem ganhado destaque corrente doutrinária defendida,
entre outros autores, por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001), e jurisprudencial,
representada, entre outras decisões, pelo entendimento firmado pelo STJ em sede do Resp.
817.534 MG, que admite a delegabilidade parcial do poder de polícia a particulares7. Melhor
dizendo: essa corrente entende que certos atos jurídicos expressivos do poder de polícia
podem ser delegados a pessoas regidas pelo direito privado ou, de modo geral, que certas
competências estatais relativas ao desempenho do poder de polícia podem ser transferidas às
citadas entidades. Segundo essa corrente, há reservas à delegação: a transferência não deve
implicar a relativização do monopólio da coerção pelo Estado ou o traslado a particulares de
funções cujo exercício demande legitimidade política8. No sentido da delegação parcial,
citam-se outros estudiosos, como Rafael Wallbach Schwind (2014) e Aline Lícia Klein
(2014).
A decisão do STJ no Resp. 817.534 MG (“caso BHTRANS”) corrobora o
entendimento da relativização da indelegabilidade do poder de polícia, admitindo a
transferência a particulares9 das funções de consentimento e fiscalização, mas não das funções
de legislação e sancionatória.
Por fim, na perspectiva da redefinição e da transformação do papel da Administração
Pública no atual contexto juspolítico, em um cenário de releitura do regime jurídico-
administrativo, corrente minoritária, ainda essencialmente doutrinária, representada,
notadamente, por Flávio Henrique Unes Pereira (2013), admite a ampla delegabilidade do
poder de polícia10. A principal razão para essa defesa está no fato de que o regime jurídico dos
atos de autoridade independeria da natureza jurídica, pública ou privada, da pessoa que o
exerce, estando ligado, isso sim, à natureza da atividade desenvolvida.
7 Ou, para dizer de outro modo, trata-se da relativização da delegabilidade do poder de polícia.
8 A expressão legitimidade política está sendo usada para evocar as competências que envolvem o
exercício da função legiferante.
9 No Acórdão do Resp. 817.534, o STJ analisa especificamente a possibilidade de a BHTRANS,
formalmente sociedade de economia mista, exercer a polícia de trânsito. Como se vê, não se trata
propriamente de particular, mas de pessoa estatal pertencente à Administração Indireta. No entanto, ao
longo do Acórdão o STJ emprega o termo “particulares” para tratar das competências delegáveis
relativas ao poder de polícia.
10 Ampla, porém não total, conforme explicitado no Capítulo 7 deste trabalho.
15
Assim, diante de breve relato sobre o impasse doutrinário e jurisprudencial quanto à
possibilidade e os limites da delegação do poder de polícia a particulares e considerando a
relevância e atualidade do tema, evidencia-se a importância da pesquisa realizada.
Este trabalho se estrutura, portanto, em torno de duas questões: é possível que o
Estado delegue a particulares o exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia no
ordenamento jurídico pátrio? Em caso de resposta afirmativa a esta questão, pergunta-se:
quais os limites ao exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia por particulares
na ordem jurídico-constitucional brasileira?
A partir das duas perguntas, esta dissertação foi estruturada da seguinte forma: após a
Introdução, o Capítulo 2 destina-se à análise do conceito de poder de polícia, aqui entendido
como atividade estatal limitadora da liberdade e da propriedade dos cidadãos11 em prol dos
interesses da coletividade. No Capítulo 2 também é analisada a crítica doutrinária, nacional e
estrangeira, à expressão e ao conteúdo do termo poder de polícia, que, entre as principais
ressalvas erigidas, evocaria faceta autoritária do Estado, que não se coadunaria com a ordem
democrática.
O Capítulo 3 é dedicado ao estudo da evolução histórica da noção de poder de polícia,
desde a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma) até o advento do Estado Democrático de
Direito.
O Capítulo 4 é voltado ao exame crítico das características historicamente arroladas
pela doutrina pátria como próprias do poder de polícia, quais sejam: atividade negativa,
discricionária, autoexecutória e preventiva. Além disso, a porção final do capítulo é dedicada
à investigação de outros traços característicos do poder de polícia, atribuídos pela doutrina
nacional. Especificamente, busca-se investigar a lição de que o poder de polícia constitui
atividade privativa de autoridade pública e que, nesse sentido, pertenceria ao rol das
denominadas atividades exclusivas de Estado, as quais seriam insuscetíveis de traslado a
particulares.
O Capítulo 5 tem como objeto os atos jurídicos por meio dos quais se manifesta o
poder de polícia, dentro da perspectiva de que eles são editados no desempenho de
determinadas estratégias estatais, conforme lição de Thiago Marrara (2014), todas vinculadas
à tutela dos interesses primários pelo Estado e demandantes de legitimação democrática.
11 Não se ignora que as pessoas jurídicas também sejam destinatárias do poder de polícia, uma vez
que elas também exercem liberdade e propriedade. No entanto, dá-se destaque às pessoas naturais,
conforme considerações ao longo deste trabalho.
16
Essas estratégias representam o aspecto macro da atividade de polícia, traduzindo-se nos
campos da regulação, da fiscalização e da sanção.
O Capítulo 6 visa apresentar os pressupostos juspolíticos para a discussão da
possibilidade de delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares.
Foram enfocadas as transformações pelas quais a Administração Pública brasileira vem
passando, com maior intensidade, há quase cinco décadas, desde a edição do Decreto Lei nº
200∕1967, e que culminaram na tentativa de implementação, não de todo bem-sucedida, do
modelo gerencial de administração nos anos 1990.
Por fim, o Capítulo 7 dedica-se ao exame das correntes doutrinárias e jurisprudenciais
a respeito da possibilidade da delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a
particulares. Tais correntes podem ser sumarizadas em três principais posições: negação da
possibilidade de delegação12, admissão da delegabilidade parcial do poder de polícia e
aceitação da ampla, mas não total, delegabilidade do poder de polícia.
Destaca-se, por outro lado, que a pesquisa realizada pertence à vertente jurídico-
dogmática, que “Desenvolve investigações com vistas à compreensão das relações normativas
nos vários campos do Direito e com avaliação de estruturas internas ao ordenamento jurídico”
(GUSTIN; DIAS, 2010, p. 21).
Nesse sentido, a pesquisa seguiu o tipo jurídico compreensivo, de forma a examinar o
poder de polícia em seus diversos aspectos, e o tipo jurídico-prospectivo, em especial, por
propor limites e parâmetros para a delegação dos atos jurídicos expressivos do poder de
polícia a particulares.
Ademais, buscou-se realizar pesquisa do tipo pluridisciplinar, com a articulação
teórico-doutrinária entre diversos ramos de investigação científica. Assim, foram importantes,
principalmente, os aportes da Teoria do Estado, do Direito Constitucional e do Direito
Administrativo. Foram importantes, ainda, as contribuições da Ciência Política, em especial,
de autores que possuem como objeto de estudo as transformações pelas quais passa o Estado e
a administração pública, estudos esses que influenciam diretamente a compreensão sobre os
novos arranjos institucionais adotados para propiciar a maior interseção entre a inciativa
privada e a esfera estatal, reverberando na temática, tratada neste trabalho, da possibilidade e
dos limites da transferência do exercício do poder de polícia a particulares. Nesse sentido,
12 A corrente que nega a possibilidade de delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia
admite situações excepcionais em que tal transferência pode ocorrer. Sobre o assunto, remete-se ao
Capítulo 7 deste trabalho.
17
Célia Lessa Kerstenetzky (2012), Paulo Roberto de Mendonça Motta (2013), e Flávio da
Cunha Rezende (2009).
Além disso, afirma-se que se trata de pesquisa teórica, de modo que a defesa da
possibilidade de o Estado transferir o exercício do poder de polícia a particulares partiu do
exame da Constituição de República de 1988 e de textos doutrinários relacionados ao tema.
18
2. O CONCEITO DE PODER DE POLÍCIA.
De acordo com a doutrina administrativista tradicional, representada no Brasil, entre
outros estudiosos, por Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 840), o conceito de poder
de polícia pode ser tomado em duas acepções: uma ampla, outra estrita. Em sentido amplo,
poder de polícia consiste na atividade estatal que condiciona a liberdade e a propriedade,
ajustando-as aos interesses coletivos. Nesta acepção, poder de polícia engloba tanto atos
legislativos quanto atos administrativos. Trata-se, de acordo com Bandeira de Mello, do
“complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e
da propriedade dos cidadãos” (2014, p. 840). Daí a razão pela qual o citado autor entende,
com fundamento em doutrina estrangeira, em especial a do italiano Renato Alessi, que poder
de polícia não constitui limitação ao direito de propriedade ou ao direito de liberdade, pois
integra o perfil do próprio direito. Trata-se, nesse sentido, e com mais acurácia, de limitação à
propriedade e à liberdade13 (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 836).
Observa-se que, na acepção acima, o conceito de poder de polícia engloba a noção
estadunidense de police power. De fato, conforme registra de Caio Tácito (1952, p. 5) a
doutrina e a jurisprudência dos Estados Unidos empregam a expressão police power para
designar o exercício da função legislativa, provocando o deslocamento dos estudos dessa
atividade estatal, em grande parte, do Direito Administrativo para o Direito Constitucional.
Conforme noticia Tácito (1952, p. 5), a expressão police power foi utilizada pela
primeira vez em 1827, pelo juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, no
julgamento do caso Brown x Maryland. Neste caso discutiu-se, em síntese, a extensão do
poder estatal na regulação do comércio sem violar a liberdade e a propriedade dos cidadãos.
Assim, tendo como origem os poderes residuais constitucionalmente atribuídos aos Estados, o
termo police power passou a corresponder, em sentido lato, à competência legislativa estadual
para regular direitos privados em benefício dos interesses coletivos. Ademais, a extensão
material dessa regulação ultrapassava os tradicionais campos da segurança, salubridade e
13 Alexandre Santos Aragão (2014, p.11), tratando especificamente das limitações administrativas à
liberdade e à propriedade, não as considera substancialmente distintas da noção de poder de polícia. O
autor afirma: “Apenas a liberdade pode ser absoluta; o direito à liberdade, por ser um direito, por ter se
juridicizado, já é, por definição, relativo e limitado. Em outras palavras, todo direito é
ontologicamente limitado, pois, ao contrário, não seria direito, mas manifestação fática do arbítrio
pessoal. As limitações à liberdade, portanto, é que definem o próprio âmbito do direito [...]”. Essa a
razão pela qual as limitações administrativas à liberdade e à propriedade, por delinearem o próprio
perfil do direito (não o restringem, portanto), não são indenizáveis, como regra.
19
moralidade, alcançando todas as iniciativas visando à conveniência pública ou a prosperidade
geral (TÁCITO, 1952, p. 5).
Deve-se ressaltar, entretanto, que a peculiar noção de police power no direito público
estadunidense não exclui a atuação administrativa. De acordo Caio Tácito:
Paralelamente [...] se assinala, também, na ação propriamente administrativa,
a faculdade de regular, dirigir e coordenar as atividades individuais, de
acordo com o interesse público. Entre as formas de poder administrativo
(administrative powers) se colocam as várias modalidades do poder de
polícia, no sentido atribuído à expressão pelo Direito Administrativo. Seja
pelo poder regulamentar (rule-making power) como pela faculdade de
ordenar ou executar (direct ou summary powers) não são estranhos à
doutrina americana os processos de ação da polícia administrativa.
(TÁCITO, 1952, p. 8)14.
Nesse ponto, portanto, é que, retornando à realidade brasileira, se evoca o sentido
estrito de poder de polícia, que consiste nas intervenções gerais e abstratas, como as que são
veiculadas por meio de regulamentos, ou concretas e específicas (a exemplo das autorizações
e licenças), e que visam obstar ao desenvolvimento de condutas dos particulares contrastantes
com os interesses da coletividade (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p.840). No sentido
estrito, o poder de polícia comumente recebe dos administrativistas a denominação de
“polícia administrativa” e é conceituado na doutrina como:
[...] a atividade administrativa, exercitada sob previsão legal, com
fundamento numa supremacia geral da Administração, e que tem por objeto
ou reconhecer os confins dos direitos, através de um processo, meramente
interpretativo, quando derivada de uma competência vinculada, ou delinear
os contornos dos direitos, assegurados no sistema normativo, quando
resultante de uma competência discricionária, a fim de adequá-los aos
demais valores albergados no mesmo sistema, impondo aos administrados
uma obrigação de não fazer" (BEZNOS, 1979, p. 76).
Conforme esclarece Moreira Neto (2014, p. 538), a polícia atua em quatro grandes
áreas de interesse público – visualizadas de modo esquemático apenas para fins didáticos,
tendo em vista o “complexo entrelaçamento” que, por vezes, torna difícil a tarefa de apartá-
las: a segurança, a salubridade, o decoro e a estética. A polícia de segurança visa à
manutenção da ordem social, em referência às pessoas, bens e instituições sociais em geral, e
também da ordem jurídica, no que respeita ao Estado e às instituições juspolíticas
14 Sobre o desempenho do police power, na perspectiva do controle judicial das condutas dos
administradores, cf. Fritz Morstein Marx (1942).
20
(MOREIRA NETO, 2014, p. 539). O poder de polícia concernente à salubridade diz respeito
à “defesa sanitária” das pessoas em setores diversos como o ecológico, o farmacêutico e o
higiênico. A atividade de polícia relativa ao decoro visaria à prevenção e à repressão dos
variados comportamentos “antiéticos e indecorosos, atentatórios aos costumes da sociedade e
a valores gregários fundamentais” (MOREIRA NETO, 2014, p.539), atuando por meio da
fiscalização, da emissão de atos de consentimento e da imposição de sanções incidentes sobre,
por exemplo, espetáculos públicos, reuniões em logradouros públicos e atividade publicitária.
Por fim, a polícia de estética tem como finalidade a garantia e concretização de valores como
“harmonia e beleza” (MOREIRA NETO, 2014, p. 540). Daí porque se concebe a existência
da estética urbanística, da estética paisagística e da estética publicitária, entre outras.
Além das quatro grandes áreas ou campos de expressão do poder de polícia, há
específicos setores de atuação da polícia administrativa, cujo perfil é delineado em lei
“segundo vários critérios legais, ditados pela política e pelas peculiares conveniências da
organização administrativa do Estado” (MOREIRA NETO, 2014, p. 540). A título de
exemplo, cabe mencionar a polícia de trânsito, a polícia do comércio e da indústria (voltada,
precipuamente, ao resguardo da confiabilidade e à garantia do consumidor) e a polícia das
profissões, por meio da qual se visa preservar a segurança e a confiabilidade pública atinentes
ao adequado desempenho das profissões liberais e técnico-científicas, atividades inseridas no
campo da autonomia privada, mas sujeitas a condicionamento estatal15.
Por outro lado, é Beznos (1979, p. 66) quem expõe o importante papel do poder de
polícia enquanto mecanismo de garantia da sobrevivência do sistema jurídico, que se opõe à
natural tendência de desintegração da ordem. É a necessidade de garantir a sobrevivência do
sistema jurídico que constituiria fundamento para as limitações impostas à conduta humana16.
No mesmo sentido, Caio Tácito (1952, p. 2-3), para quem o poder de polícia é, antes de tudo,
um instrumento de defesa social, que se dilata na medida em que se exacerbam as lesões
efetivas ou potenciais à ordem pública ou à ordem jurídica.
Observa-se, de início, a caracterização do poder de polícia como atividade estatal e
não como poder ou faculdade inerente do Estado.
15 Na ordem jurídico-constitucional brasileira, cabe à União legislar privativamente sobre as
condições para o exercício de profissões (são as profissões regulamentadas, como a dos advogados,
médicos, engenheiros, arquitetos, psicólogos, entre outros). São os termos do art. 22, inciso XVI, da
CR, in verbis: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...] XVI - organização do
sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões; [...]”.
16 “A atividade de polícia é essencial à manutenção do sistema normativo, tal como ele é, no sentido
em que concretiza a ação abstrata da lei, de desenhar os direitos” (BEZNOS, 1979, p. 78).
21
Registra-se, entretanto, conforme explicitado abaixo, autores na doutrina pátria que
caracterizam poder de polícia como prerrogativa ou faculdade de que dispõe a Administração
Pública, compondo a categoria dos poderes administrativos, ao lado do “poder hierárquico”,
do “poder disciplinar”, do “poder regulamentar”, do “poder discricionário” e do “poder
vinculado” 17. Há, ainda, os autores que qualificam o poder de polícia simultaneamente como
prerrogativa e atividade estatal, de acordo com explanação a seguir.
Inicialmente, cumpre aclarar o conteúdo jurídico atribuído à palavra poder neste
trabalho, que é o da possibilidade de um centro de imputação normativa interferir
unilateralmente na esfera jurídica de outro, impondo-lhe obrigações ou criando direitos
(OLIVEIRA, 2005, p. 24).
Na perspectiva de qualificar a atividade de polícia como prerrogativa ou faculdade
estatal está Hely Lopes Meirelles (1998, p. 76), segundo o qual poder de polícia é faculdade
de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e o gozo de bens,
atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.
Na linha de qualificar o poder de polícia simultaneamente como atividade e
prerrogativa está José dos Santos Carvalho Filho, para quem “Em sentido estrito, o poder de
polícia se configura como atividade administrativa, que consubstancia, como vimos,
verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração consistente no poder de
restringir e condicionar a liberdade e a propriedade” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 70). No
entanto, o mesmo autor, ao formular o conceito de poder de polícia, expressa: “De nossa
parte, entendemos se possa conceituar o poder de polícia como a prerrogativa de direito
público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da
liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade“ (CARVALHO FILHO,
2011, p. 70).
Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 131), a seu turno, rejeita que o poder de
polícia possa ser compreendido como uma faculdade inerente à Administração Pública, ou,
dito de outro modo, como um tipo especial de poder do Estado, próprio ou exclusivo da
Administração Pública18: na visão do autor (MOREIRA NETO, 2001, p. 133), trata-se de
função estatal a ser exercida em obediência à ordem jurídica. De fato, de acordo com Moreira
17 Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles (1976, p. 2).
18 Assim, “[...] ao se considerar o poder de polícia não como uma faculdade mas uma atividade,
recoloca-se o instituto em seu devido lugar no Estado Democrático de Direito, no qual as liberdades e
os direitos fundamentais devem ser considerados como a regra e a competência para limitá-los e
condicioná-los, uma exceção, e se desloca do Executivo para o Legislativo a única e legítima
titularidade” (MOREIRA NETO, 2001, p. 133)
22
Neto (2014, p. 532), o emprego do poder estatal para restringir e condicionar liberdades e
direitos individuais é exceção à afirmação e à garantia desses mesmos direitos e liberdades, de
modo que tais limitações apenas podem ser exercidas sob estrita reserva legal, em
consonância com o disposto no inciso II do art. 5º da CR∕88.
Em semelhante perspectiva, Juarez Freitas (2012, p. 326) argumenta que no Estado
Constitucional, o poder existe para os direitos fundamentais e não contrário19. O poder de
polícia (ou a polícia administrativa, da qual o autor trata especificamente) não constitui mera
faculdade estatal. Trata-se, acima de tudo, de dever do Estado (no caso, Estado-
Administração) a ser exercido perante os cidadãos20. Com efeito,
No Estado Democrático, o exercício do poder vincula e responsabiliza,
porque nele os direitos fundamentais não são singelas expressões de
contrapartidas dos direitos atribuídos ao Poder Público: configuram
autênticos direitos fundadores do Estado. (FREITAS, 2012, p. 326).
Nesse contexto é que Freitas (2012, p. 328) defende que a intervenção estatal de
polícia se torna obrigatória sempre que estiverem presentes os pressupostos de atuação
indispensável à coexistência ordenada das liberdades. Não há para o Estado, portanto,
liberdade de atuação ou “faculdade puramente discricionária” (FREITAS, 2012, p. 328). Há,
isto sim, “competência ou dever de arcar com as responsabilidades inerentes a uma
competência [...]” (FREITAS, 2012, p. 329)21.
É importante, neste ponto, reportar a Celso Antônio Bandeira de Mello, cujas lições a
respeito dos poderes ostentados pela Administração Pública merecem transcrição:
A justificação dos poderes, juridicamente regulados, que assistem à
Administração Pública reside na qualidade dos interesses que lhe incumbe
prover. Bem por isso, a utilização de suas prerrogativas só é legítima quando
manobrada para a realização de interesses públicos e na medida em que estes
sejam necessários para satisfazê-los. [...] No Estado de Direito, já se vê,
nenhum desses poderes é incondicionado. Nem mesmo se poderia dizer que
existam sempre. Com efeito, o caráter instrumental das prerrogativas da
Administração desde logo lhes desenha teoricamente o perfil. Sejam quais
19 Tal entendimento ressalta a centralidade dos direitos fundamentais no Estado Democrático de
Direito e, ao mesmo tempo, revela que eventuais limitações e condicionamentos ao exercício das
liberdades e propriedades devem se cingir às balizas colocadas pela ordem jurídica.
20 Trata-se de dever do Estado que, de acordo com as considerações tecidas ao longo deste trabalho,
pode ser realizado por ele próprio ou por terceiros, ao menos no que tange a determinadas atribuições.
21 Nesse âmbito Freitas (2012, p. 332) atribui ao termo poder de polícia o significado de exercício
motivado de uma competência, e não mera faculdade, que consiste em regular, restringir ou limitar, de
modo legal e legítimo, o exercício dos direitos fundamentais de propriedade e de liberdade, sem render
ensejo à indenização, por não impor dano injusto.
23
forem os meios jurídicos especiais que ataviam o desempenho da função
administrativa, nenhum existe como favor concedido à própria
Administração. Em verdade, são favores concedidos aos interesses públicos:
à função desempenhada e não ao sujeito que a desempenha. Eis por que
unicamente persistem quando relacionados com a proteção deles.
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 422)
Neste trabalho, em consonância com Bandeira de Mello (2014), Moreira Neto (2001) e
Freitas (2012), entende-se que poder de polícia é atividade estatal destinada a delinear o
exercício da liberdade e da propriedade de modo a ajustá-las aos interesses da coletividade, e
que se expressa por meio do desempenho de deveres-poderes do Estado. Trata-se de
entendimento consentâneo com o perfil democrático de Administração Pública delineado na
ordem constitucional brasileira, e que não se coaduna com a ideia de poderes senão como
instrumentos necessários à realização dos fins da coletividade. Deve-se salientar, neste ponto,
que a cidadania (CR∕88, art. 1º, II) e a dignidade da pessoa humana (CR∕88, art. 1º, inciso III)
são fundamentos do Estado Democrático de Direito no Brasil e, assim, condicionam toda e
qualquer conduta estatal. Por outro lado, ressalta-se que qualificar o poder de polícia como
atividade revela a natureza instrumental das prerrogativas exercidas pela Administração em
sua concretização.
Na ordem jurídica brasileira consta definição legal do poder de polícia, para fins
tributários, mais especificamente no que tange à incidência das taxas, espécie de tributo que
tem, como um dos possíveis fatos geradores, o exercício do poder de polícia pelo Estado. É o
que consta do CTN, Lei nº 5.172/1966, art. 78, in verbis:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública
que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a
prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público
concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da
produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes
de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao
respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada
pelo Ato Complementar nº 31, de 1966)
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia
quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável,
com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha
como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
A partir do conceito legal, observa-se a alusão à participação do Poder Legislativo na
disciplina das atribuições públicas relativas ao poder de polícia, ao mesmo tempo em que este
é caracterizado como atividade da administração. De fato, previu-se o exercício do poder do
24
polícia pela Administração Pública, com o atrelamento de sua regularidade à observância da
lei aplicável.
Cumpre salientar, por outro lado, que a razão primordial da noção de polícia é a
necessidade de que as atividades e propriedades dos cidadãos sejam conformadas ao interesse
público, de modo que este não reste obstaculizado por interesses egoísticos dos particulares
não compatíveis com o bem comum.
Nesse sentido, ressalta-se, de acordo com Bandeira de Mello (2014, p. 841), que os
poderes expressos pelo Estado por meio da atividade de polícia, e, mais especificamente, da
polícia administrativa, resultam da qualidade da Administração Pública de executora das leis.
Para conformar as atividades e propriedades dos cidadãos, a Administração Pública é
instrumentalizada com poderes e, em razão destes, exerce autoridade sobre todos os cidadãos
que, indistintamente, estejam sob o império dessas leis.
Assim é que o poder de polícia teria como fundamento a denominada “supremacia
geral”, que nada mais é do que a supremacia das leis em geral concretizada por meio de atos
da Administração Pública (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 841). A análise do poder de
polícia neste trabalho cinge-se, nessa esteira, às situações em que a Administração limita, com
fundamento direto na ordem positiva, o exercício das liberdades e da propriedade,
genericamente consideradas.
2.1. As críticas doutrinárias à expressão e ao conceito de poder de polícia.
Feitas as considerações anteriores, passa-se ao exame das críticas formuladas por
alguns estudiosos ao conceito de poder de polícia.
Com efeito, a expressão poder de polícia, conquanto corrente e já consolidada nos
estudos doutrinários, na jurisprudência e na legislação pátria, não deixa de ser alvo de críticas
de estudiosos, por uma série de razões, abaixo explicitadas.
Em síntese, ainda que não exclusivamente, critica-se a suposta inadequação do
conceito de poder de polícia em face aos ditames do Estado Democrático de Direito.
Nas linhas seguintes, buscar-se-á expor os principais argumentos contrários à
subsistência da expressão e do próprio conteúdo jurídico do que se concebe por poder de
polícia, bem como examinar se as críticas procedem, e, assim, se é realmente necessário
abandonar o tradicional termo, substituindo-o.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 839) entende que a expressão poder de
polícia constitui “designativo manifestamente infeliz”, uma vez que abrange, sob uma mesma
25
rubrica, “coisas radicalmente distintas, submetidas a regime de inconciliável diversidade: leis
e atos administrativos; isto é, disposições superiores e providências subalternas”
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 839). Na base de tal entendimento está a evocação, pelo
autor, do conceito amplo de poder de polícia, que engloba tanto as leis que dimensionam os
direitos de liberdade e de propriedade quanto os atos administrativos que concretizam tais
normas gerais e abstratas.
Na concepção de Bandeira de Mello (2014, p. 839), resulta da congregação de leis e
atos administrativos sob uma mesma expressão o equívoco reconhecimento, à Administração
Pública, de poderes inconcebíveis em um Estado de Direito: ressalta-se que a Administração
deve atuar sempre em conformidade com o Direito. Além disso, os poderes que a
Administração ostenta são essencialmente instrumentais, voltados à consecução do interesse
público e devem ser exercidos sempre com fundamento e nos limites estabelecidos na ordem
jurídica; não há, portanto, poder intrínseco da Administração.
Por outro lado, Bandeira de Mello (2014, p. 839) destaca que a expressão poder de
polícia evoca período histórico anterior ao Estado de Direito, o denominado Estado de Polícia
(ou Estado Absolutista), no qual se reconheciam ao príncipe ilimitados poderes de
intervenção na esfera jurídica dos particulares e, mais do que isso, coadunava-se com a
existência de natural titularidade de poderes em prol da Administração. Segundo Bandeira de
Mello, essa a razão pela qual não raro se reconhecem prerrogativas ao Poder Executivo,
mesmo sem supedâneo na ordem jurídica, por se tratar de manifestação de um abstrato poder
de polícia.
No entanto, apesar de reconhecer a inconveniência de tal noção, com as ressalvas
acima expostas, Bandeira de Mello (2014, p. 840) alerta para seu uso corrente na realidade
brasileira, razão pela qual não a ignora e, pelo contrário, continua utilizando-a em seus
estudos, apartando, de um lado, o conceito de poder de polícia (que engloba leis e atos
administrativos) do de polícia administrativa, que envolve apenas comportamentos
administrativos. Observa-se que tal distinção serve para afastar o equívoco de englobar sob
uma só expressão realidades diferentes (leis e atos administrativos), ao mesmo tempo em que
mitiga as chances de atribuição, à Administração Pública, de poderes mais extensos do que
aqueles que lhe são reconhecidos em um Estado Democrático de Direito.
Por sua vez, Agustín Gordillo (2009, p. 205), logo no início do capítulo que dedica ao
poder de polícia, destaca que os direitos individuais são a base do sistema democrático de
governo e, assim, o exame do regime jurídico-administrativo não poderia partir das limitações
26
a tais direitos. O intento do autor é trazer o respeito aos direitos individuais à centralidade das
discussões sobre o poder de polícia, como se verá adiante.
Salienta-se que o conceito de poder de polícia que o autor utiliza como base para a
realização de sua crítica é o ajustado ao Estado liberal, qual seja: “[...] a faculdade de impor
limitações e restrições aos direitos individuais, com a finalidade de resguardar somente a
segurança, a salubridade e a moralidade públicas contra os ataques e perigos que pudessem
acercá-la” (GORDILLO, 2009, p.210)22. Em consonância com o entendimento de Gordillo,
destacam-se do conceito as seguintes características: as limitações aos direitos individuais só
se justificam para salvaguardar segurança, salubridade e moralidade; a intervenção estatal só é
legítima para evitar ataques ou danos à comunidade, ou seja, a ação estatal é negativa, no
sentido de que visa evitar danos ao interesse da coletividade23.
Por outro lado, Gordillo (2009, p. 211-215) ressalta que em meio à transição entre os
modelos de Estado e, mais propriamente, no âmbito do recrudescimento dos fenômenos da
privatização e da desregulação, típicos das décadas finais do século XX, os bens jurídicos que
o Estado protege por meio de restrições e limitações aos direitos individuais se multiplicaram
e passaram abranger áreas tão apartadas quanto a tranquilidade e a “confiança pública”24, a
economia e a estética públicas.
Assim, o autor (GORDILLO, 2009, p. 214) conclui que o conceito liberal de poder de
polícia não mais se sustenta diante da ampliação dos fins do Estado. Com efeito, à
multiplicação dos fins legitimadores da ação do Estado corresponderia a ampliação do que se
concebe por poder de polícia. Não mais caberia, portanto, a defesa de que poder de polícia se
limita a assegurar segurança, salubridade e moralidade: essa a razão pela qual, na atualidade,
segundo o autor, o poder de polícia visa proteger a ordem pública, o bem comum ou a boa
ordem da comunidade, expressões bem mais genéricas do que as que nomeiam os três bens
jurídicos anteriormente citados e que buscam encampar as diversificadas frentes de atuação
do Estado contemporâneo (GORDILLO, 2009, p. 214).
Em suma:
22 Tradução livre do espanhol: “[...] la facultad de imponer limitaciones y restricciones a los derechos
individuales, con la finalidade de salvarguadar solamente la seguridad, salubridad y moralidad
públicas contra los ataques y peligros que pudieran acecharla. ”
23 Em síntese, conforme será explicitado no Capítulo 4 deste trabalho, a concepção do poder de
polícia no Estado Liberal é congruente com a posição mais retraída desse Estado.
24 Exemplo seria o controle de pesos e medidas e a proteção do consumidor contra propaganda
enganosa.
27
[...] não só se abandona aquela limitação aos fins que o Estado e seu poder
de polícia podem perseguir: chega o momento de abandonar também a
suposta distinção entre a atividade estatal de “prevenir perigos e danos
contra o bem comum” – que seria a poder de polícia – e de “promover o bem
comum”, que não seria parte da atuação do poder de polícia e que, inclusive,
na concepção liberal clássica, tampouco seria função do Estado. Quando se
adverte hoje em dia que promover o bem comum mediante ações positivas é
também função estatal, chega-se, então, o momento de ressaltar que ambas
as atividades – prevenção de danos e promoção do bem-estar – são tão
inseparáveis que constituem faces distintas de uma mesma moeda, de tal
modo que parecer impossível fazer uma coisa sem fazer ao mesmo tempo a
outra. (GORDILLO, 2009, p 215)25.
Duas são as conclusões que Gordillo (2009, p. 216-217) extrai após o diagnóstico
transcrito: 1) não é possível sustentar, na atualidade, que as limitações aos direitos individuais
se restringem à necessidade de proteção da segurança, da salubridade e da moralidade; as
funções estatais visam, hoje, à concretização do bem-estar social (objetivo bem mais
genérico, diga-se de passagem); 2) a ampliação das funções do Estado resultou na perda das
características tradicionalmente atribuídas ao poder de polícia: não existiria, na atualidade,
uma noção autônoma e suficiente de poder de polícia, já que essa função está amplamente
distribuída no largo espectro das atividades estatais26.
Essencialmente, Gordillo defende que não mais se pode falar que a uma parte dos
órgãos estatais ou dos fins perseguidos pelo Estado corresponda atividade individualizável e
com características discerníveis e que receba o nome de poder de polícia. Poder de polícia, na
visão do autor, se confunde, hoje, com a totalidade do poder estatal; não corresponderia a essa
atividade regime jurídico específico (GORDILLO, 2009, p. 217).
Mais do que isso: a expressão poder de polícia evocaria tradições autoritárias
especialmente presentes ao longo do século XX, que assistiu à desmesurada expansão do
poder do Estado em detrimento dos direitos e garantias individuais, em especial, liberdade e
25 Tradução livre o espanhol: “[...] no sólo se abandona aquella limitación en los fines que el Estado y
su “poder de policía” pueden perseguir: Llega el momento de abandonar también la supuesta
distinción entre la actividad estatal de “prevenir peligros y daños contra el bien común” – que sería la
función policial – y “promover el bien común”, que no sería parte de la acción del “poder de policía” y
que incluso, en la concepción liberal clássica, no sería tampoco función del Estado. Cuando se advierte
que hoy em día que promover el bien común mediante acciones positivas es también uma función
estatal, llega entonces el momento de señalar que ambas as actividades – prevención de daños y
promoción del bienestar – son tan inseparables como para constituir dos caras de una miesma moneda,
a tal punto que parece imposible hacer una cosa sin hacer al mismo tempo la outra”.
26 O poder de polícia já não se restringiria a meras proibições, alcançando também a imposição de
obrigações positivas (ex.: instalar silenciadores nos escapamentos dos veículos, expor ao público lista
de preços, construir cercas), e não estaria reservado ao Poder Executivo, englobando os Poderes
Legislativo e Judiciário.
28
dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, além de não possuir embasamento no
ordenamento jurídico positivo, a noção de poder de polícia seria politicamente repudiável. 27
Logo, Gordillo refuta a existência de uma “cláusula geral de polícia”, com fundamento
na qual seriam concretizadas restrições aos direitos individuais dos cidadãos, em favor da
afirmação desses mesmos direitos como premissas dos ordenamentos constitucional-
democráticos, submetidos a regramentos internacionais de direitos humanos.
Desde já se salienta que a crítica feita por Gordillo tem como uma de suas principais
repercussões a importante negação ao emprego de critérios autoritários para embasar condutas
administrativas, à margem da lei, e que infrinjam os direitos dos cidadãos em nome de um
abstrato poder de polícia.
De outro turno, deve-se salientar que, apesar de negar a subsistência da noção de poder
de polícia, o autor não ignora o emprego da “coação estatal” sobre os indivíduos para a
proteção de certos “postulados do bem comum” (GORDILLO, 2009, p. 229): as restrições aos
direitos individuais continuam a existir; entretanto, em cada caso de atuação estatal em
detrimento dos indivíduos deve-se buscar fundamentação específica no ordenamento positivo
para que essa atuação e essa coação sejam jurídicas; não basta a evocação de um genérico e
abstrato poder de polícia para sustentar a atuação do Estado.
Em sentido consonante com o de Gordillo, Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 11)
considera a noção de poder de polícia “terrivelmente problemática”, entre outras razões, pelo
seu suposto caráter autoritário. Assim como o autor argentino, Sundfeld (2003, p. 11)
visualiza no conceito de poder de polícia uma autorização genérica à Administração para o
exercício de poderes não previstos em lei, fundados em uma suposta competência para zelar
pela boa ordem da coisa pública28. O problema, para o autor, está justamente no fato de que
tal concepção não se coadunaria com o princípio da juridicidade, ao qual a Administração está
adstrita.
Assim é que Sundfeld (2003, p. 12) entende ser impossível fugir da carga semântica
negativa evocada pela expressão poder de polícia. “Ela demanda tantos esclarecimentos que
não se compreende porque deixa-la sobreviver” (SUNDFELD, 2003, p. 12). Por outro lado, o
27 O seguinte trecho traduz o pensamento exposto: “Sustentar essa noção [de poder de polícia] é negar
a finalidade mesmo do Direito Administrativo: é, em definitivo, preferir o poder e não a liberdade; a
autoridade e não os direitos [...] é o problema de todo o Direito Administrativo tradicional”.
(GORDILLO, 2009, p. 225).
28 Sundfeld (2003, p. 12-13) embora reconheça, em consonância com Gordillo (2009), que “poder de
polícia” constitui expressão reconhecidamente perigosa e que deve ser abandonada, discorda do autor
argentino na medida em que entende que a atividade administrativa tradicionalmente conhecida como
“poder de polícia” deve receber (outra) denominação, compondo uma “noção aglutinadora” distinta da
noção de serviço público.
29
autor destaca que a multiplicação das funções e frentes de atuação do Estado29, que, hoje, se
distribuem em campos tão diversos quanto numerosos, a exemplo da proteção aos
consumidores, à saúde, ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, todas constitucionalmente
asseguradas, torna temerário que se admita, com fundamento no poder de polícia, injunções
sobre a liberdade e a propriedade sem embasamento legal30. Até porque a Constituição afasta
qualquer conduta da Administração fundada em abstrato poder de intervenção sobre a esfera
privada dos cidadãos, ao prever genericamente o princípio da legalidade (CR∕88, arts. 5º, II e
art. 37, caput, por exemplo), e quando, nos diversos campos de atuação citados neste
parágrafo, expressamente condiciona a ação do Estado ao respeito a lei específica.
Entretanto, a solução não consistiria na mera alteração do “rótulo” poder de polícia;
não bastaria, por exemplo, substituir a expressão poder de polícia por limitações
administrativas à liberdade e à propriedade (SUNDFELD, 2003, p. 13) se o conteúdo e o
sentido de tais intervenções do Estado sobre a esfera juridicamente protegida dos cidadãos
permanecem os mesmos31.
Com efeito, na perspectiva de Sundfeld (2003, p. 14), a noção clássica de poder de
polícia está intimamente ligada a um Estado mínimo, voltado, precipuamente, à imposição de
limites negativos à liberdade e à propriedade. No entanto, observa o autor, na atualidade,
como resultado da incorporação dos ideais do Estado Social, verifica-se a intensificação da
interferência estatal na esfera privada, com o fim de implementar projetos tão amplos e
diversificados quanto o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a redução das
desigualdades, a proteção ao meio ambiente e a preservação do patrimônio histórico e
29 Algo que já havia sido apontado na crítica de Gordillo (2009).
30 O embasamento legal a que o autor faz referência deve ser entendido neste trabalho como
fundamento jurídico.
31 Alexandre Santos Aragão (2014, p. 10) denomina limitação administrativa todo condicionamento
ou redução do âmbito do exercício de liberdades e propriedades realizado pela Administração Pública
com supedâneo em lei ou na Constituição, ponderando-as com outros valores constitucionais sem
atingir o núcleo essencial de tais liberdades e propriedades. O autor registra a intensa divergência
doutrinária acerca da relação entre limitações administrativas e o poder de polícia, em especial no que
toca à coincidência ou não dos conceitos e das respectivas abrangências, a respeito da qual podem ser
visualizados, na doutrina pátria, os entendimentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2011), Celso
Antônio Bandeira de Mello (2014) e José dos Santos Carvalho Filho (2011). Para Aragão (2014, p. 12)
poder de polícia e limitações administrativas representam aspectos distintos do mesmo fenômeno: a
ponderação de direitos e valores constitucionais realizada pelo Poder Executivo, “[...] razão pela qual
poderiam perfeitamente ser equiparados” (ARAGÃO, 2014, p. 11). O que os distingue, no que toca à
ponderação de direitos e valores constitucionais, seria o fato de as limitações dizerem respeito aos
aspectos mais gerais e constitucionais, enquanto o poder de polícia se relaciona aos aspectos mais
operacionais e administrativos. Aqui se visualiza, portanto, a aproximação com a distinção, feita por
Celso Antônio Bandeira de Mello (2014), entre poder de polícia, aspecto mais geral, relacionado ao
condicionamento da liberdade e da propriedade pelo Legislativo, e polícia administrativa, ligada às
incumbências da Administração.
30
cultural. Diante da ampliação dos campos de atuação, o Estado passa a impor também deveres
positivos aos cidadãos, como o de dar cumprimento ao princípio da função social da
propriedade (ex.: dar aproveitamento adequado à propriedade imóvel urbana ou rural), que
não se amoldariam à concepção tradicional do poder de polícia e, assim, demandam a
teorização do novo perfil de atuação estatal sobre a liberdade e a propriedade dos particulares.
Assim, no entendimento de Sundfeld (2003, p. 17), o perfil tradicional do poder de
polícia não se coadunaria com a diversidade de frentes de atuação do Estado no seu atual
estágio de desenvolvimento e, portanto, deve ser eliminado da ordem jurídica pelas seguintes
razões: 1) remete ao poder de autonomamente regular as atividades privadas, de que a
Administração dispunha antes do advento do Estado de Direito e que, hoje, é incumbência do
legislador; 2) está ligado ao modelo de Estado liberal clássico, que só concebia imposição de
deveres de abstenção aos cidadãos, sendo que, na atualidade, a Constituição e as leis
autorizam outros gêneros de imposição; 3) faz supor a existência de poder discricionário
implícito para ingerir na vida privada, como se existisse uma cláusula genérica que
autorizasse a Administração a exigir condutas dos cidadãos mesmo à falta de fundamento
legal para tanto.
Nesse contexto, Sundfeld (2003, p. 16) propõe a noção de “administração
ordenadora”, que substituiria a de poder de polícia.
De início, destaca-se que a expressão administração ordenadora não é nova no Direito
Administrativo, tendo sido utilizada pela doutrina alemã32 para superar os inconvenientes da
noção de poder de polícia (SUNDFELD, 2003, p. 16).
A administração ordenadora congregaria a atividade estatal de regulação do setor
privado, ou seja, a ingerência do Estado sobre a esfera juridicamente protegida dos
particulares33, com o emprego do poder de autoridade (SUNDFELD, 2003, p. 16-17)34. Seu
32 Por todos, conferir Hartmut Maurer (2012).
33 Envolve, portanto, a disciplina da aquisição, do exercício e do sacrifício de direitos privados.
34 Ao lado da administração ordenadora, Sundfeld (2003, p. 16) concebe dois outros grandes setores
de atuação estatal: administração de gestão e administração fomentadora. De modo genérico, pode-se
dizer que à administração de gestão (“função de gerir determinadas atividades”) corresponde a noção
de serviços públicos, ou seja, a oferta de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos
cidadãos. Além dos serviços públicos, o Sundfeld (2003, p. 16) inclui na noção de administração de
gestão o estabelecimento e a manutenção de relação com Estados estrangeiros, a emissão de moeda, a
exploração de setores monopolizados e a exploração de atividades econômicas pelo estado. Trata-se,
portanto, de atuações que pressupõem a realização de gestão pelo Estado. A administração
fomentadora, por sua vez, consistiria na função de induzir, por meio de estímulos e incentivos, os
particulares a adotarem determinados comportamentos. Trata-se de setor de atuação do Estado que
prescinde de instrumentos cogentes para obter dos particulares os comportamentos desejados.
Concretiza-se por meio da oferta de financiamentos e incentivos fiscais, por exemplo (SUNDFELD,
2003, p. 16).
31
conceito é o de parcela da função administrativa desenvolvida com o uso do poder de
autoridade, com o objetivo de disciplinar, nos termos e nos fins da lei, as condutas dos
particulares no campo da atividade que lhes é próprio, qual seja: o campo privado
(SUNDFELD, 2003, p. 20).
Como já se disse, conforme lição de Sundfeld, a substituição da noção de poder de
polícia pela de administração ordenadora não constituiria mera alteração de rótulo,
representando, isto sim, verdadeira “substituição metodológica” na ciência do Direito
Administrativo (SUNDFELD, 2003, p. 17)35. O foco se alteraria, portanto: em vez de
sustentar a existência de um genérico poder de limitar a liberdade e a propriedade dos
cidadãos, passa-se a ressaltar a natureza infralegal da função estatal de condicionamento das
atividades e propriedades privadas. Em síntese, a Administração está inarredavelmente
adstrita à obediência aos condicionamentos da ordem jurídica, em especial, quando se trata de
ingerência sobre a vida privada dos cidadãos.
Cabe ressaltar que a administração ordenadora se revela por meio de várias técnicas de
intervenção estatal na esfera privada dos cidadãos, sobre as quais não se tratará nesta
oportunidade em razão do escopo delimitado do trabalho.
Já à guisa de conclusão e com fundamento na exposição das críticas ao conceito de
poder de polícia, observa-se que as posições contrárias à noção partem de uma concepção do
poder de polícia própria do Estado Liberal. Com efeito: nota-se que os autores concebem a
evolução do Estado e a diversificação de suas frentes de atuação ao mesmo tempo em que
entendem que a expressão poder de polícia permanece essencialmente com os mesmos
35 Nesse sentido, Sundfeld explicita que "[...] administração ordenadora surge como a projeção, para o
Direito Administrativo, de uma problemática de teoria geral do direito público, assim enunciada: em
que medida e sob que regime pode o Estado interferir na aquisição, exercício e extinção dos direitos da
vida privada? A análise aqui é, em primeiro lugar, dos limites da atividade legislativa (ex.: o princípio
da mínima intervenção estatal impede a instituição, pela lei, de certos condicionamentos aos direitos
dos particulares). Em segundo, dos limites constitucionais da atividade administrativa (ex.: no sistema
brasileiro, os sacrifícios derivam apenas de ato judicial). Portanto, administração ordenadora é a
projeção de conceito jurídico multidisciplinar, envolvendo o Direito Constitucional, o direito
processual e o Direito Administrativo. A ideia de administração ordenadora resulta da necessidade de
o jurista conhecer casuisticamente as atividades governamentais e mostrar como, em relação a cada
uma delas, devem incidir os princípios gerais do Direito Administrativo. Usando a terminologia
consagrada pelos cultores da informática: ela é mero aplicativo, desenvolvido com os recursos do
sistema operacional ciência jurídico-administrativo, fora do qual não pode funcionar. Não é uma parte
do Direito Administrativo; é todo ele aplicado a um conjunto de atividades estatais” (SUNDFELD,
2003, p. 18).
32
caracteres que ostentava nos estágios iniciais do desenvolvimento do Estado de Direito
(Liberal)36.
Não se pode coadunar com tal posição: à evolução do Estado corresponde a
modificação do perfil do poder de polícia, ainda que se reconheça que a transição de um
modelo de Estado a outro não provocou ruptura abruta no perfil do poder de polícia, que
invariavelmente conservou algumas das características próprias de suas manifestações
passadas.
Nesse contexto, vale recorrer à lição de Alexandre Santos Aragão (2014, p. 11), o
qual, diante das críticas formuladas ao poder de polícia, assevera que se tal atividade estatal
só pudesse ter a conotação expressa no Estado Absolutista, certamente deveria ser abolida. No
entanto, na visão do autor, a necessidade que o poder de polícia expressa, qual seja, a de
adequação das liberdades individuais ao bem-estar da coletividade, sempre estará presente em
qualquer grupo social, razão pela qual conclui que “[...] este poder continua a existir, sujeito,
porém, aos ditames do Estado Democrático de direito”. (ARAGÃO, 2014, p. 11).
Por outro lado, entende-se que a evidente inadequação da expressão não redunda na
necessidade de extirpá-la, especialmente quando se leva em conta que se trata de termo já
consagrado na doutrina, na jurisprudência e mesmo em textos normativos, a exemplo da
própria Constituição da República e do Código Tributário Nacional. Para além da questão
terminológica há que reconhecer que a configuração normativa e a manifestação do poder de
polícia estão inteiramente adstritas ao respeito aos direitos e garantias fundamentais e, além
disso, tratando-se do exercício de função administrativa, a Administração deve obediência ao
princípio da legalidade, que nada mais quer dizer, em nossa ordem jurídico-constitucional,
que observância ao Direito como um todo37.
36 Em sentido consonante, registra-se o entendimento de Odete Medauar (2008, p. 333), para quem:
“Parece que o ponto nuclear no entendimento de quem prega essa eliminação [da expressão poder de
polícia e de seu conteúdo] é a preocupação com um poder de polícia indeterminado, independente de
fundamentação legal, baseado num suposto dever geral dos indivíduos de respeitar a ordem ou
baseado num ‘domínio eminente’ do Estado. Essa louvável preocupação perde consistência ante a
realidade presente de mais solidez na concepção de Estado de direito, ante o princípio da legalidade
regendo a Administração e ante a maior valoração dos direitos fundamentais”.
37 A esse respeito, Cristiana Fortini et al. (2012). Ao tratar dos arts. 2º e 53 da Lei nº 9.784/1999, que
estipula normas gerais sobre processo administrativo na Administração Federal, a autora assevera que
o princípio da legalidade é o princípio fundamental da Administração Pública, mediante o qual são
resguardados os direitos e garantias dos cidadãos e das pessoas jurídicas, funcionando como
instrumento de controle do poder estatal (FORTINI et al., 2012, p. 42). Ademais, na correta visão da
autora, a expressão “legalidade” não se reduz à lei em sentido formal, já que o princípio da legalidade
impõe ao administrador público não apenas a observância da legalidade estrita, como também o
atendimento à principiologia que compõe o arcabouço jurídico do Direito Administrativo (FORTINI et
al., 2012, p. 44). Assim, “Numa visão mais moderna da legalidade, não se pode resumir a atuação da
33
Em síntese, apesar das posições antagônicas à expressão e ao conceito do poder de
polícia, entende-se pela sua manutenção. Sem abandonar o viés crítico, deve-se atentar para a
necessidade de compreender e adequar o perfil normativo do poder de polícia à luz dos
ditames e preceitos do Estado Democrático de Direito, que, nunca é demais ressaltar, está
pautado, na ordem jurídico-constitucional brasileira, no respeito aos direitos e garantias dos
cidadãos, individual ou coletivamente considerados.
Administração Pública a um atendimento míope e limitadamente formal da norma escrita. Legal é a
conduta cujo fundamento é extraído do ordenamento jurídico” (FORTINI et al., 2012, p. 176). Um dos
fundamentos para tal entendimento estaria no incremento da atuação normativa da Administração
Pública, em tese mais ágil que o Poder Legislativo para atender às múltiplas demandas de uma
sociedade cada vez mais plural, o que teria interferido na antes sacralizada posição da lei na ordem
normativa (FORTINI et al., 2012, p. 44). Em síntese: “O princípio da juridicidade descreve de forma
mais atual o compromisso que a atividade administrativa tem com o Direito” (FORTINI et al., 2012,
p. 44).
34
3. PODER DE POLÍCIA: ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO E
SUAS CARACTERÍSTICAS.
Neste capítulo busca-se traçar a origem histórica do conceito jurídico de poder de
polícia – em síntese, atividade estatal limitadora da liberdade e da propriedade, de modo a
ajustar seu exercício aos interesses da coletividade - com o fim de compreender o instituto
sobre o qual versa o presente trabalho.
As considerações a seguir foram realizadas com base no estudo de doutrinadores
pátrios que se debruçaram sobre o tema, notadamente, Clovis Beznos (1979) e Onofre Alves
Batista Júnior (2001).
Inicia-se, portanto, com a busca pela origem e pelos contornos da noção do poder de
polícia na Antiguidade Clássica, passando, em seguida, à Idade Média, ao denominado Estado
de Polícia, ao Estado Liberal, chegando à atual configuração dessa atividade estatal no Estado
Democrático de Direito.
Ressalta-se, por outro lado, que, ao analisar a evolução do conceito de poder de polícia
nos diferentes períodos históricos, não se olvida que a passagem de um a outro modelo de
Estado não ocorreu de modo abrupto. Ainda hoje se percebem presentes características
originais.
É o que segue.
3.1. Antiguidade.
Conforme registra Clovis Beznos (1979, p. 1), o termo polícia se origina da palavra
grega politeia, no latim, politia. Na Antiguidade Grega, o termo identificava o conjunto das
atividades estatais, compreendendo o governo, na acepção mais ampla de administração
estatal. Em suma, o termo polícia designava todas as atividades da polis.
Partindo do entendimento do autor (BEZNOS, 1979, p. 2), alerta-se que não é possível
falar em um conceito jurídico de poder de polícia, em moldes semelhantes ao atual, na
Antiguidade Clássica (pelo menos na Grécia Antiga), uma vez que, nesse momento, não se
considerava o indivíduo como valor autônomo, como ente distinto da coletividade. A polícia,
então, dizia respeito às necessidades da coletividade como um todo único e indivisível.
Sequer era concebida a noção de liberdade individual. Nesse sentido, inexistindo a noção de
35
liberdade individual, não cabe falar na necessidade de harmonizá-la com os interesses da
coletividade, papel cumprido pela atividade estatal de polícia38.
Em Roma, conquanto inicialmente também não se pudesse falar na existência da
atividade estatal de polícia em moldes semelhantes ao hoje corrente, a divisão do direito,
antes uno, em jus privatus e jus publicus deu origem à concepção de esferas juridicamente
protegidas distintas: uma relacionada ao Estado e outra relativa aos particulares (BEZNOS,
1979, p. 6). Assim, observa-se que o crescimento e a expansão do Império Romano e a cisão
entre direito público e direito privado foram fatores determinantes para o surgimento dos
direitos individuais, o que provocou a necessidade de adequação de seu exercício aos
interesses da coletividade39.
De fato, a criação de regulações privadas romanas pode ser observada com especial
ênfase no direito de propriedade, cujo exercício foi submetido a uma série de restrições, ora
ditadas em nome do interesse público, ora do interesse privado. Tais restrições, diga-se de
passagem, perpassaram todo o desenvolvimento histórico de Roma, de modo que é possível
defender, em consonância com Beznos (1979, p. 7-9), que a noção de poder de polícia já era
visualizável no Império Romano.
Ou seja, o reconhecimento de direitos individuais e, consequentemente, a necessidade
de equilibrá-los, de harmonizá-los ao interesse coletivo, ao bem comum, sustentam a defesa
da existência, já na Roma Antiga, da noção de poder de polícia.
3.2. Idade Média: época feudal.
Nesse particular momento histórico, a peculiaridade dos aspectos econômicos,
políticos e jurídicos, os dois primeiros, em especial, marcados pela fragmentação, pelo
fracionamento, pela localidade do poder político, enseja o surgimento do denominado jus
policei ou jus politiae. Este se referia à boa ordem da sociedade civil e aos meios empregados
38 Abarcando, também, a noção de propriedade, Clóvis Beznos explica que: “O homem grego nada
conhecia que fosse independente da própria cidade, seu próprio corpo pertencia ao Estado, e era
voltado à sua defesa. [...] Os bens dos habitantes da Cidade-Estado estavam sempre à disposição da
Polis, e se a cidade necessitasse de dinheiro, podia ordenar às mulheres lhe entregassem suas jóias, aos
credores que abrissem mão de seus créditos, aos possuidores de oliveiras que cedessem, gratuitamente,
o azeite fabricado” (BEZNOS, 1979, p. 3). E conclui: “[...] na Grécia não era necessário o equilíbrio
da relação indivíduo e bem comum, porque tal relação materialmente não existia: o indivíduo era parte
ordinária da Polis, que compreendia todos os bens comuns” (BEZNOS, 1979, p. 5). No entendimento
do autor (BEZNOS, 1979, p. 5), a razão para tal concepção da relação indivíduo-Estado estribava-se,
precipuamente, no pensamento filosófico grego, que se orientava nas seguintes direções: 1) ideia de
preponderância do geral sobre o particular; 2) ideia de igualdade, 3) ideia de desprezo pela riqueza.
39 Nesse sentido, cf. Beznos (1979, p. 10).
36
para alcançá-la. Ressalta-se, em conformidade com Beznos (1979, p. 13-14), que, na época, o
termo não supunha qualquer obrigação recíproca do príncipe para com o povo e, desse modo,
não encontrava qualquer limitação ou condição ao seu exercício. Ademais, o poder de polícia,
a cargo do príncipe, necessário à boa ordem da sociedade civil, se opunha à boa ordem moral
e religiosa, esta pertencente à esfera de competência da autoridade eclesiástica.
3.3. Estado Polícia (ou Estado de Polícia).
Ainda enfocando o período histórico identificado como Idade Média, Beznos (1979, p.
14) registra que no século XIV, na França, utilizou-se o termo polícia para designar os fins do
Estado e a atividade estatal.
Em sentido semelhante, Batista Júnior (2001, p. 29-30) noticia que, onde hoje se
encontra a Alemanha, nos fins do século XV, o jus politiae compreendia todas as atividades
do Estado, bem como os poderes de que dispunha o príncipe para ingerir na vida privada dos
cidadãos, com o fim de alcançar a segurança e o bem-estar coletivos.
Nesse contexto é que se fala na existência de um Estado Polícia ou Estado de Polícia
ou, ainda, Estado Absolutista, onde todos os assuntos concernentes ao poder de polícia eram
solucionados pelo príncipe, cujas decisões não admitiam apelação para qualquer instância
jurisdicional.
Típico desse período histórico é o exercício ilimitado de poderes pelo soberano, sem
qualquer limite legal ou condicionamento de outra natureza40. Não se concebiam, portanto,
direitos exercitáveis em face do Estado.
Por sua vez, a fundamentação para tais poderes ilimitados encontra explicação em
fatores de natureza distinta: inicialmente, os poderes do soberano encontraram embasamento
religioso; o rei era considerado um representante de Deus na terra, cabendo-lhe governar e
decidir sobre o destino individual dos homens (BEZNOS, 1979, p. 15). Posteriormente, passa-
se a atribuir a tais poderes um fundamento racionalista, em consonância com os ideais
iluministas, o que reverberou no denominado despotismo esclarecido. Entendia-se que a
vontade do príncipe tendia sempre à realização da felicidade dos súditos, razão pela qual
aquele dispunha de plena liberdade de meios para alcançar a consecução do interesse público,
o fim primordial41.
40 De acordo com Batista Júnior (2001, p. 34), os poderes do príncipe não se sustentavam em
qualquer definição normativa prévia e eram manifestados segundo uma avaliação casuística do que
deveria ser considerado interesse público.
41 Nesse sentido, Batista Júnior (2001, p. 31).
37
Por outro lado, destaca-se, no que toca à abrangência do conceito, que, já no século
XV, apartou-se do poder de polícia tudo o que dizia respeito às relações internacionais42.
Posteriormente, no século XVIII, foram excluídas do conceito a justiça43 e as finanças.
Nesse momento histórico, portanto, o poder de polícia dizia respeito à totalidade da
atividade administrativa interna, excluídas as finanças, e consistia na faculdade de o Estado
regulamentar tudo o que se encontrasse em seus limites, sem qualquer exceção (BEZNOS,
1979, p. 15), empregando a coação para obter o cumprimento de suas leis, em caso de
descumprimento.
3.4. Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito.
Com o advento do Estado de Direito, fica ultrapassada a ideia de que o príncipe não se
sujeita às leis; surge, portanto, o princípio da legalidade. A lei constitui, assim, limite à
atuação administrativa (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 34).
Como decorrência direta dos ideais do Liberalismo, passa-se a privilegiar a liberdade,
voltando-se a preocupação à atribuição de direitos aos indivíduos e, mais do que isso, passa-se
a considerar que toda interferência estatal possui caráter excepcional44.
De acordo com Batista Júnior (2001, p. 35), nesse período, o poder absoluto do
soberano se retrai diante do domínio dos direitos individuais, quando do surgimento de uma
sociedade pretensamente livre e igualitária. O regime que surge nesse contexto é
caracterizado, basicamente, pela garantia dos direitos individuais inalienáveis e intangíveis.
Cumpre salientar, ainda com Batista Júnior (2001, p. 36) que o Estado Liberal estava
calcado na ideia de liberdade, tendo como fim a limitação do poder político, tanto no que diz
respeito à separação de poderes (ou divisão de funções do Estado) quanto no que tange à
redução de suas funções perante a sociedade. Ademais, o realce às liberdades individuais (em
especial, nos campos contratual e da propriedade privada) liga-se ao fato de esse Estado ter
incorporado e servir de meio à implementação dos valores burgueses.
42 É o que registra Beznos (1979, p. 15).
43 Quanto à dicotomia polícia e justiça, própria dos Estados Absolutos, garantia-se, no que tange à
primeira, a autoridade incontestável do soberano, confundido com a figura do próprio Estado, perante
seus súditos. Não se concebia a possibilidade de revisão judicial da atuação do soberano, uma vez que
the king can do no wrong. O direito decorria do próprio soberano, a quem cabia tutelá-lo, não se
admitindo o erro do rei. Nesse sentido, cf. Batista Júnior (2001, p. 30).
44 Esse é também o cenário de defesa do jusnaturalismo. Nesse sentido, Beznos (1979, p. 16) afirma
que: “Marca-se o Estado liberal pela valorização do homem, no sentido de que o mesmo é concebido
como detentor de direitos naturais emanados de uma ordem providencial, isto é, desejada por Deus,
para felicidade dos homens”.
38
Essa é a razão pela qual, nesse momento histórico, o poder de polícia restringiu-se à
manutenção da ordem pública, da liberdade, da propriedade e da segurança individual. À
autoridade passou a caber precipuamente um papel negativo de evitar perturbação à ordem e
de garantir a fruição dos direitos individuais. Basicamente, o poder de polícia converteu-se
em meio de contenção de excessos do individualismo (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 35).
Posteriormente, a transição do Estado Liberal para o Estado Social implica nova
configuração do poder de polícia.
Em meio a guerras, crises econômicas e avanços tecnológicos sem precedentes, a
partir da virada no século XIX para o século XX, o Estado passa a ser cada vez mais
demandado a realizar prestações positivas. Somam-se a esse cenário as importantes
conquistas das classes proletárias e, de modo geral, das camadas menos abastadas e mais
vulneráveis da sociedade, que passam a exercer o direito ao voto e ser contempladas com
proteção contra o desemprego, doenças, idade avançada e a favor da maternidade. Marca-se,
nesse contexto, a transição do Estado mínimo ao Estado-Providência ou Estado de bem-estar
social.
Logo, se no âmbito do Estado Liberal o poder de polícia restringia-se a evitar danos à
ordem pública, no Estado Social o poder de polícia torna-se meio de o Estado proteger os
economicamente mais fracos em face aos excessos do capitalismo. Portanto:
[...] a atividade administrativa deixa de ser a pura salvaguarda do existente,
ou seja, a sociedade deixa de ser vista como reflexo de uma ordem natural e
que por isso deve ser apenas preservada, e passa a se mostrar como uma
atividade interventora, que toma a iniciativa e age (administração ativa)
visando a criação de algo novo. (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 38).
Se por um lado, o advento do Estado Social representa um avanço em relação ao
Estado Liberal, na medida em que retira o Estado de uma posição retraída no que toca à
promoção dos direitos dos cidadãos, individual ou coletivamente considerados, por outro, o
incremento da atividade e da burocracia estatal, que se fez necessário à implementação desse
novo modelo de Estado, mas tornou-se excessivo, acabou por colocar em cheque os objetivos
que justificaram seu advento.
A partir desse momento, a preocupação passa a centrar-se em como tornar o Estado
eficiente, eficaz e efetivo. Como sintetiza Batista Júnior:
[...] o que se busca agora é um modelo de Estado que assegure a liberdade,
que garanta a igualdade material e a segurança social, somando-se, ainda, a
39
isto, o dever de solidariedade e de participação, cobrando da Administração,
acima de tudo, eficiência, eficácia e efetividade – liberdade. Igualdade
material, fraternidade, participação, efetividade seriam, assim, as novas
máximas para o novo milênio. (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 42)
A crise do Estado Social reverberou no traslado, cada vez mais intenso, de funções
estatais à iniciativa privada, especialmente no que toca à prestação de serviços públicos. Em
relação ao poder de polícia, faceta agressiva de atuação do Estado, percebe-se o incremento
das condicionantes legais, bem como da fiscalização e do acompanhamento de seu
desempenho, tanto pelo Estado quanto pela sociedade.
O poder de polícia, nesse novo contexto do Estado Democrático de Direito, não se
limita à garantia da ordem e da segurança públicas, voltando-se, também, à implementação da
ordem econômica e social. Assim é que Batista Júnior (2001, p. 45) registra a expansão do
poder de polícia em dois sentidos: 1) no primeiro, a poder de polícia passa a abranger áreas
dantes fora de seu alcance, como as relações de emprego, mercados de produtos de primeira
necessidade, como medicamentos e alimentos, e exercício de profissões; 2) no segundo, o
exercício do poder de polícia passa a englobar a imposição de obrigações de fazer aos
cidadãos, especialmente no que tange ao cumprimento do princípio constitucional da função
social da propriedade imobiliária, rural e urbana, como se observa, na ordem jurídica
brasileira, nos arts. 182, 183 e 186 da Constituição da República de 198845.
45 Os dispositivos da CR∕88 preveem, in verbis: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais
de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. §
2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão
feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º É facultado ao Poder Público municipal,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do
proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II -
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação
com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o
valor real da indenização e os juros legais. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até
duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-
a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º Esse direito não será
reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por
usucapião. [...] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
40
Observa-se que as transições entre os modelos de Estado provocaram substanciais
alterações no perfil normativo dessa atividade estatal. Por outro lado, verifica-se que as
transformações do poder de polícia não foram marcadas por rupturas drásticas, de modo que o
delineamento normativo dessa função estatal, na passagem de um modelo a outro,
invariavelmente conservou algumas das características do modelo anterior.
Pode-se afirmar que a natureza limitadora do poder de polícia em relação à esfera de
liberdade e à propriedade individual se manteve, desde o momento em que se passou a
conceber os contornos dessa atividade estatal, já na Roma Antiga. Por outro lado, a extensão
dos poderes limitadores da liberdade e da propriedade sofreu constrições ao longo da
evolução histórica, tendo chegado ao seu ápice no Estado Absolutista ou Estado de Polícia,
quando sequer se admitiam restrições ao poder do príncipe em relação aos seus súditos. O que
se destaca nesse caminhar histórico do conceito jurídico de poder de polícia é sua
transmutação de atividade que essencialmente se revelava na exigência de abstenções aos
indivíduos para englobar a exigência de condutas positivas dos cidadãos, como na hipótese do
cumprimento da função social da propriedade, assunto que será novamente abordado no
Capítulo 4 deste trabalho. Esse incremento no escopo da atividade estatal de polícia
acompanha a própria evolução do Estado, em especial, a transição do Estado Liberal ao
Estado Social e deste ao Estado Democrático de Direito, no qual se observa notável expansão
das funções estatais de modo a satisfazer as múltiplas e diversas demandas de uma sociedade
que se mostra cada vez mais plural.
preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
41
4. CARACTERÍSTICAS HISTORICAMENTE ATRIBUÍDAS PELA DOUTRINA AO
PODER DE POLÍCIA.
Algumas características foram historicamente atribuídas pela doutrina pátria ao poder
de polícia. Desde já é necessário destacar que, neste Capítulo, não se trata de poder de polícia
em sentido amplo, enquanto atividade estatal de limitação da liberdade e da propriedade em
prol do interesse coletivo, desempenhada tanto por Poder Legislativo quanto pelo Poder
Executivo.
As características historicamente atribuídas ao poder de polícia serão visualizadas,
portanto, quando do desempenho da denominada polícia administrativa.
Nessa perspectiva, de acordo com a lição de Beznos (1979), quatro foram as
características atribuídas à polícia administrativa: trata-se de atividade negativa;
discricionária; auto executória e preventiva. É com fundamento nas características erigidas
pelo autor que serão tecidas considerações sobre a configuração normativa da atividade estatal
(administrativa) de polícia.
4.1. Poder de polícia como atividade negativa.
Entender poder de polícia como atividade negativa significa, na tradicional lição da
doutrina, compreender tal atividade estatal como impeditiva de perturbações aos valores
albergados no sistema normativo, a exemplo da segurança, da moralidade e da salubridade
públicas46. Mais do que isso: o caráter negativo do poder de polícia resultaria de sua
comparação, pelos estudiosos, com a atividade de prestação de serviços públicos47, que
consiste, em síntese, de acordo com Beznos (1979, p. 18), na oferta de comodidade ou na
construção de utilidade fruível pelos cidadãos. Com efeito, enquanto ao prestar serviços
públicos o Estado geraria resultados positivos aos cidadãos, fornecendo-lhes utilidades e
46 É o que informa Beznos (1979, p. 18).
47 Serviço público é, no entendimento de Bandeira de Mello (2014, p. 689): “[...] toda atividade de
oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas
fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e
presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público - portanto,
consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos
interesses definidos como públicos no sistema normativo”.
42
comodidades, na realização do poder de polícia sobressairia a faceta “negativa”, limitadora,
restritiva da atuação dos particulares.
Bandeira de Mello (2014, p. 847-848), no mesmo sentido, esclarece que a
caracterização do poder de polícia como poder negativo resultaria de sua preordenação a
evitar danos provenientes da ação dos particulares. Ao contrário da prestação de serviços
públicos, que visaria a resultados positivos consistentes na oferta de comodidade ou utilidade
aos cidadãos, o poder de polícia teria como objetivo precípuo evitar prejuízo ao interesse
público. No entanto, o autor refuta essa visão, taxando-a de “excessivamente simplista”
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 848), segundo argumentos a seguir explanados.
Pode-se afirmar que a visão do poder de polícia como um poder negativo relaciona-se
ao advento do Estado Liberal de Direito e às então tímidas atribuições estatais, em contexto de
reconhecimento de direitos subjetivos titularizados pelos cidadãos face ao Estado. Conforme
registra Caio Tácito:
Com a implantação do liberalismo e a subordinação do Estado ao princípio
da supremacia da lei possibilita-se a consagração de direitos públicos
subjetivos, reconhecidos e resguardados pela ordem jurídica. O
individualismo político se caracteriza, essencialmente, pela garantia de
direitos individuais inalienáveis e intangíveis, emanados da comunhão
social. A revolução liberal, cristalizada nos princípios da Declaração de
Independência americana e na Declaração de Direitos do Homem, é um
episódio da revolta do cidadão contra o Poder, [...]. Nesse quadro de
renovação social o Estado se coloca, unicamente. como um poder de
equilíbrio, prevenindo e corrigindo os entrechoques individuais, segundo a
fórmula francesa, logo internacionalizada no movimento racionalista do
século XIX, de que "a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não é
nocivo aos demais". À autoridade cabia somente um papel negativo, de
evitar a perturbação da ordem e assegurar o livre exercício das liberdades
públicas. (TÁCITO, 1952, p. 2)
De acordo com o que foi explanado no Capítulo 3 deste trabalho, o qual trata da
evolução histórica do conceito jurídico de poder de polícia, a transição do Estado Liberal para
o Estado Social provocou a assunção, pelo Estado, de cada vez mais incumbências, incluindo
aquelas concernentes a prestações positivas demandadas pela sociedade. Nesse movimento, o
perfil do poder de polícia também se alterou, ampliando-se do ponto de vista de seu objeto.
Nesse sentido, Caio Tácito:
À medida, porém, que se acentua, no interior da sociedade, a desigualdade
entre os indivíduos, especialmente pelo abuso do poder econômico, a ação
repressiva do Estado evolui no sentido do crescente intervencionismo: o
princípio da autoridade se torna dinâmico, agindo, em função do interêsse
43
público, para restringir e condicionar o exercício de direitos e liberdades por
indivíduos, grupos ou classes. O poder de polícia, que é o principal
instrumento do Estado no processo de disciplina e continência dos interêsses
individuais, reproduz, na evolução de seu conceito, essa linha ascencional de
intervenção dos poderes públicos. De simples meio de manutenção da ordem
pública êle se expande ao domínio econômico e social, subordinando ao
contrôle e à ação coercitiva do Estado uma larga porção da iniciativa
privada. (TÁCITO, 1952, p. 2)
É nessa seara de modificação e expansão das atividades estatais que Beznos (1979, p.
18) e Bandeira de Mello (2014, p. 848) concordam que caracterizar o poder de polícia como
poder negativo ou positivo depende apenas do ângulo de enfoque da questão. Com efeito,
evitar danos ao interesse público por meio do exercício do poder de polícia também constitui,
da perspectiva do Estado e dos cidadãos inseridos na coletividade, algo positivo.
Nesse cenário, Bandeira de Mello (2014, p. 848) explicita que a faceta negativa do
poder de polícia manifesta-se menos na sua preordenação a evitar danos aos interesses da
coletividade e mais na circunstância de que se trata de atividade que exige, como regra,
abstenções (ou dever de tolerar) dos particulares48. A utilidade coletiva, nesse caso, seria
obtida por via indireta, enquanto que, na prestação de serviços públicos, a obtenção de
utilidade seria direta, fruto de atuação positiva.
Todavia, o poder de polícia também pode gerar obrigações de fazer. Tal ocorre, em
especial, quando do condicionamento da propriedade imobiliária a fim de obter o
cumprimento do princípio constitucional da função social da propriedade (CR∕88, art. 5º,
inciso XXIII, entre outros dispositivos da Constituição)49. Com efeito, nesse âmbito, tratando-
se de exercício do poder de polícia, a ordem normativa impõe diversos deveres ao proprietário
de imóvel a fim de que ele cumpra o princípio da função social da propriedade, entre eles, no
que toca especificamente à propriedade urbana, o de parcelamento ou edificação compulsórios
(CR∕88, art. 182, §4º, inciso I)50. Porém, como dito anteriormente, a prescrição de condutas
positivas no exercício do poder de polícia é exceção, normalmente essa atividade estatal se
expressa na imposição de deveres de não fazer ou de tolerar aos cidadãos.
48 Exemplos de imposição de dever de não fazer é o de não trafegar nas vias públicas em velocidade
acima da permitida pela ordem normativa (no caso, o fundamento é a previsão do art. 218 da Lei nº
9.503∕1995, ou Código de Trânsito brasileiro), bem como o de não emitir ruídos, a partir de
determinado horário, acima dos limites fixados pelo Estado.
49 Nesse sentido, Bandeira de Mello (2014, p. 849).
50 Essa é, no entendimento de Batista Júnior (2001, p. 116), uma imposição de fazer de essência
restritiva.
44
É assim, portanto, que se deve entender o poder de polícia enquanto atividade
negativa: trata-se de atividade estatal essencialmente restritiva, que, na generalidade das
vezes, se manifesta na imposição de deveres de abstenção ou de tolerar aos cidadãos.
4.2. Poder de polícia como “poder discricionário”.
Outra característica apontada do poder de polícia é a discricionariedade, ou seja, o
poder de polícia seria um “poder discricionário” do Estado.
Denomina-se poder discricionário a faculdade concedida à Administração para
apreciar o “valor dos motivos” e determinar o objeto do ato administrativo, quando não o
estabeleça a regra legislativa51. Esse poder seria limitado externamente pelos “elementos do
ato administrativo” competência, forma e pela existência material dos motivos. Os limites
internos, por sua vez, diriam respeito à observância da finalidade legal. Nesse contexto é que
Caio Tácito concebe o poder de polícia como uma das (supostas) faculdades discricionárias
do Estado, visando à proteção da ordem, da paz e do bem-estar sociais (TÁCITO, 1952,
p.8)52.
Nesse cenário é que, após analisar as posições de teóricos brasileiros e estrangeiros
sobre o tema, Clóvis Beznos (1979, p. 32-33) chega à conclusão de que, a respeito do
hipotético caráter discricionário do poder de polícia, formam-se três correntes de
entendimento: a primeira delas visualiza na atividade de polícia uma faculdade discricionária,
inerente à própria natureza jurídica da atividade; a segunda corrente entende que a polícia
administrativa se expressa por meio de atos ora provenientes do exercício de competência
discricionária, ora decorrente de competência vinculada, a depender da regulação legal
incidente; uma terceira corrente entende que, não só a atividade de polícia é discricionária em
razão de sua natureza jurídica, mas também que, em certas situações, seria possível que a
Administração desempenhasse tal incumbência independentemente de previsão legal.
Em breve explanação sobre o tema, Bandeira de Mello (2014, p. 854-855) entende
que, de fato, ao tratar do poder de polícia em sentido amplo, isto é, enquanto atividade
51 Nesse sentido, Caio Tácito (1952, p. 9). O autor (TÁCITO, 1952, p. 8-9) frisa, ainda, que o “poder
discricionário” não se confunde com arbítrio irresponsável, já que a “capacidade de autodeterminação”
do administrador seria exercida apenas no que tange a determinados elementos do ato administrativo,
conforme explicitado acima, em um sistema de “liberdade vigiada”.
52 No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles (1998, p. 78) classifica o poder de polícia administrativa
como poder discricionário, no exercício do qual o Estado realiza restrições individuais em favor da
coletividade.
45
desempenhada tanto pelo Poder Legislativo quanto pelo Poder Executivo, é válido falar em
discricionariedade, em especial no que toca à edição das leis condicionadoras da propriedade
e da liberdade dos particulares em prol do interesse coletivo. Em outras palavras: poder de
polícia é discricionário quando se enfoca o desempenho da atividade de polícia pelo Poder
Legislativo, que possui liberdade para disciplinar a liberdade e a propriedade, por óbvio,
respeitando os condicionamentos da ordem jurídico-constitucional.
Cabe salientar, por outro lado, que, em observância ao princípio da indisponibilidade
do interesse público, decorrente da supremacia deste53, é vedado ao Poder Público ignorar
situações que reclamem o exercício do poder de polícia. Além disso, ressalta-se que a
Administração Pública não é titular de poder inerente e discricionário; os poderes que ostenta
são instrumentais, necessariamente voltados à consecução do interesse público, do qual é
guardiã54. Nesse sentido, “Há [...] atos em que a Administração Pública pode manifestar
53 Afirmar a existência e a validade do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse
privado como fundamento para a atuação da Administração não significa coadunar com um modelo
autoritário de administração pública e muito menos mitigar o papel central que os direitos e garantias
individuais exercem na ordem jurídico-constitucional brasileira. À Administração cabe zelar pelos
interesses da coletividade, do qual é guardiã, daí a posição de precedência desses interesses, que se faz
acompanhar das prerrogativas especiais, e instrumentais, titularizadas pela Administração, necessárias
que são à consecução do interesse público. Por outro lado, nega-se que a permanente conflitualidade
entre interesse público e interesse privado seja pressuposto do princípio da supremacia, já que a
garantia do primeiro protege o segundo, que o compõe, sem que se possa olvidar, por outro lado, que à
Administração também caiba o respeito e a promoção dos direitos individuais dos cidadãos. Por fim,
eventual aplicação arbitrária do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado
não infirma a validade desse princípio na ordem jurídico-constitucional pátria, uma vez que a
concretização indevida da norma em um caso concreto não constitui fundamento bastante para
invalidar o princípio que constitui a base da atribuição de poderes e da incidência de constrições
especiais sobre o exercício da função administrativa. Registra-se autores na doutrina pátria que erigem
o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento para o
poder de polícia. Nesse sentido, entre outros, José dos Santos Carvalho Filho (2011) e Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (2011). Há, por outro lado, parte da doutrina que questiona a subsistência desse
princípio na ordem jurídico do Estado Democrático de Direito, devido a sua suposta faceta autoritária,
violadora da dignidade da pessoa humana. Cita-se, nesse sentido, Humberto Ávila (2007) e Daniel
Sarmento (2012). Nessa perspectiva crítica, o princípio da supremacia sequer estaria revestido da
natureza de norma principiológica – adotando-se a distinção entre regra e princípio de Alexy (2008),
por exemplo, segundo o qual princípios são “mandamentos de otimização” - , já que pressuporia a
prevalência do interesse público em toda e qualquer situação de conflito com o interesse privado.
Diante dessa refutação ao princípio, verificam-se, ainda, autores que reiteram a importância da
supremacia na ordem jurídico-administrativa, com os mais variados argumentos, entre os quais se
destaca o de que a supremacia não presume permanente conflito entre interesse público e interesse
privado. Antes o contrário: o respeito e a promoção dos direitos dos cidadãos, individual ou
coletivamente considerados, é também incumbência do Estado. Sobre o tema, conferir Daniel Wunder
Hachem (2011), Alice Gonzalez Borges (2011) e Emerson Gabardo (2009).
54 Destaca-se o entendimento do Professor Edimur Ferreira de Faria (2004, p. 2-3), segundo o qual o
“poder discricionário” conferido ao administrador público pela ordem jurídica deve ser concebido por
seu destinatário como “a arte de escolher o melhor para a sociedade nos limites da ordem jurídica”,
tendo em vista a multiplicidade de elementos a serem levados em consideração no caso concreto.
46
competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente
vinculada. Poder discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação
administrativa é coisa que não existe” (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 854)55.
Com esse entendimento, Bandeira de Mello cita as autorizações como atos típicos da
polícia administrativa expedidos no uso de competência exercitável discricionariamente. Cabe
recordar que, para o autor, autorização é ato administrativo unilateral por meio do qual a
Administração, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, possuindo, em
regra, caráter precário (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 854). Exemplo é a autorização
para porte de armas de fogo.
Por outro lado, as licenças, também atos típicos de polícia administrativa, seriam atos
vinculados (ou melhor: atos decorrentes do desempenho de competência vinculada). Daí o
conceito de licença: ato vinculado por meio do qual a Administração faculta a alguém o
exercício de atividade, uma vez que o interessado demonstre o preenchimento de requisitos
legais exigidos para tanto (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 854). O exemplo clássico é o
da licença para edificar, outorgada àqueles que preencham os requisitos dispostos nas normas
legais condicionantes dessa específica atividade.
A partir das considerações expostas, o administrativista (BANDEIRA DE MELLO,
2014, p. 855) conclui que a polícia administrativa se expressa ora por meio de atos
decorrentes do exercício de competência discricionária, ora por meio de atos vinculados,
razão pela qual não é possível reconhecer plena discricionariedade, nem plena vinculação, no
desempenho dessa atividade estatal56.
Assim, o agente público, mesmo que no exercício da discricionariedade, deve buscar a consecução da
finalidade contida na norma jurídica. Daí porque “A opção tomada pelo agente público fora dos limites
preestabelecidos não reflete a expressão da discricionariedade, mas da arbitrariedade”.
55 Em sentido semelhante, Batista Júnior (2001, p. 100) afirma que discricionariedade e vinculação
são “dois ingredientes de qualquer decisão administrativa”, que os manifesta em proporções variáveis.
Assim, não há ato inteiramente vinculado, nem ato inteiramente discricionário. Vinculação e
discricionariedade se manifestam, cada uma, em relação a determinados aspectos dos atos
administrativos. Alguns desses aspectos seriam necessariamente vinculados, como a competência e o
fim que tais atos visam concretizar. Desse modo, “só faz sentido indagar a medida da
discricionariedade dos atos” (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 100).
56 Vitor Rhein Schirato (2014, p. 40) admite que o poder de polícia pode ser discricionário ou
vinculado, porém nega que tais características possam ser apartadas com fundamento na espécie de ato
emanado pela Administração: autorização ou licença. Com efeito, para o autor o critério de
diferenciação em exame tem amparo apenas na doutrina (SCHIRATO, 2014, p. 41) e não encontra
respaldo na legislação. Esta, conforme exemplos que cita – p. ex. o §1º do art. 131 da Lei nº
9.472∕1997, segundo o qual a autorização de serviço de telecomunicações é ato administrativo
vinculado por meio do qual se faculta a exploração, em regime privado, de serviços de
telecomunicações – emprega as expressões autorização e licença para designar, indistintamente, “atos
vinculados” e “atos discricionários”. Assim: “[...] verifica-se que não há uma fórmula genérica que
47
Antes de prosseguir na investigação sobre a hipotética natureza discricionária do poder
de polícia, necessário explicitar o supedâneo teórico com base no qual as formulações deste
tópico estão fundadas. Os conceitos de vinculação e discricionariedade aos quais se faz
referência neste trabalho são aqueles expostos por Florivaldo Dutra de Araújo (1992),
consonantes com o perfil democrático de Administração delineado pela Constituição da
República de 1988. Mais do que isso, as formulações que seguem retiram a vinculação e a
discricionariedade da órbita do poder para trazê-los à esfera da competência administrativa.
Araújo (1992, p. 67) assevera que o que a doutrina consagrou como “ato vinculado”
diz respeito às situações em que a lei em sentido amplo descreve minuciosamente os
pressupostos necessários à emissão do ato administrativo, bem como seu conteúdo, tendo em
vista a ocorrência da prevista hipótese legal. Nessas situações, inexiste para o administrador
público margem de liberdade de atuação. Também na visão tradicional, “ato discricionário”
seria aquele editado nas hipóteses em que a lei deixa o administrador público um vazio a ser
preenchido com seu juízo pessoal.
Entretanto, considera-se que só haveria “ato vinculado” quando a lei qualificasse como
vinculada a apreciação de todos os pressupostos e elementos do ato administrativo (Araújo,
1992, p. 68). Nessa hipótese, a atuação do administrador público se aproximaria a de um mero
aplicador mecânico da lei, sem consideração à margem de interpretação e de qualificação
jurídica dos fatos ensejadores da conduta do administrador público que existe, ainda que, em
determinados casos, seja diminuta57. Assim, Florivaldo Dutra de Araújo entende que “A
seja capaz de definir se um ato pertinente ao poder de polícia tem caráter vinculado ou discricionário.
Pode haver casos em que as autorizações sejam verdadeiramente discricionárias, assim como pode
haver casos em que elas sejam vinculadas, desde que esta última seja a hipótese considerada mais
apropriada pelo legislador. O mesmo ocorre com as licenças” (Schirato, 2014, p. 43). A crítica merece
observações: discricionariedade e vinculação caracterizam mais propriamente a competência
expressada pela Administração e não os atos especificamente considerados, os quais podem
manifestar-se, a depender da disciplina legal incidente, como frutos de maior ou menor vinculação∕
discricionariedade (Bandeira de Mello, 2010, p. 58-61); por outro lado, a variação do emprego dos
termos autorização e licença na legislação, no que toca especificamente ao exercício do poder de
polícia, realça a lição de que o nome é apenas o signo adotado fixar pontos de referibilidade de normas
ou efeitos de direito (Bandeira de Mello, 2014, p. 382). Logo, “Se a lei não demarca previamente o
plexo de normas assim isoladas debaixo de um termo unitário; os doutrinadores o fazem” (Bandeira de
Mello, 2014, p. 382). Nessa perspectiva, independentemente de a legislação prever situações de
emprego indistinto dos termos “autorização” e “licença”, observa-se que a doutrina pátria, pode-se
dizer que em uníssono, reconhece a autorização como ato decorrente de exercício de competência
discricionária e a licença como resultante de maior vinculação.
57 Como exemplo de vinculação estrita, ou seja, de hipótese em que a ordem jurídica disciplina a
atividade do administrador público de modo tão minucioso a ponto de não lhe restar, uma vez
implementadas as condições para emissão do ato administrativo, modo de ação diverso do previsto em
lei, está a da aposentadoria compulsória do servidor público. Assim: “Observe-se que [...] em casos
similares a previsão legal do comportamento do administrador é de tal maneira que, uma vez
48
vinculação caracterizará dado aspecto do ato administrativo, sempre que a norma de direito
positivo regulá-lo de modo a transparecer que, na consideração axiológica do direito e das
circunstâncias em que este se faz aplicável, deve o administrador, ao aplicar essa norma, fazê-
lo da melhor maneira possível” (ARAÚJO, 1992, p. 73-74). Em razão do conceito transcrito é
que se considera a existência não de ato ou poder vinculado, mas sim de aspectos vinculados
dos atos administrativos.
Por sua vez, o conceito de discricionariedade mais consentâneo com o Estado
Democrático de Direito e, consequentemente, mais adequado ao princípio da juridicidade é:
[...] discrição caracterizará dado aspecto do ato administrativo sempre que a
norma de direito positivo regulá-lo de modo a transparecer que, na
apreciação do direito e das circunstâncias em que esta se faz aplicável, está o
administrador diante de um número determinado ou indeterminado de
opções que se caracterizam como indiferentes jurídicos, pelo que a
consideração axiológica da melhor alternativa se fará por meio de outros
critérios que não de direito. (ARAÚJO, 1992, p. 86-87)58.
Quanto ao conceito de discricionariedade acima explicitado, dois pontos devem ser
destacados: primeiro, discricionariedade é margem de liberdade conferida ao administrador
público pela lei; segundo, no exercício de discricionariedade, o administrador está diante de
indiferentes jurídicos, o que significa dizer que a lei prevê número determinado ou
indeterminado de opções, ou seja, de cursos de ação a serem tomados pelo administrador59 -
certificado o implemento da idade do servidor, só lhe resta emitir o ato administrativo, aposentando-o.
A motivação do ato, por isso, cingir-se-á à invocação do preceito de lei, pois do simples confronto
deste com a situação fática em que se encontra o servidor ter-se-á a fundamentação de todos os
pressupostos e elementos do ato administrativo”. (ARAÚJO, 1992, p. 68)
58 Juarez Freitas (2012, p. 314) explicita que a discricionariedade administrativa pode ser cognitiva,
quando situada no plano das condições de incidência da norma, ligando-se às hipóteses em que há
abertura para determinação do conteúdo das “noções jurídicas indeterminadas” (ou conceitos jurídicos
indeterminados). Quanto a essa acepção de discricionariedade, o autor faz o alerta de que não se
identificam interpretação com discrição ou integração, o que remete à discussão sobre se tais conceitos
jurídicos indeterminados ensejam, ou não, discricionariedade administrativa. De outro turno, na visão
de Freitas, a discricionariedade pode também decorrer da faculdade outorgada pelo legislador ao
administrador público no plano da escolha das consequências ou dos resultados, entre várias opções
lícitas. Nesse último sentido verifica-se que, em determinadas situações, o legislador disciplina
minuciosamente a conduta da Administração Pública, em outras, confere margem de liberdade para
essa atuação. Essa liberdade decorreria do reconhecimento, pelo legislador, de que não seria adequado
prever antecipadamente todas as circunstâncias em que a Administração deve atuar, nem mesmo
dispor sobre as soluções que se fizerem necessárias, diante da multiplicidade dos possíveis casos
concretos. De qualquer forma, só há discricionariedade na lei: ou seja, a margem de liberdade
conferida ao administrador público possui fundamento em lei e só pode ser exercida dentro dos
confins desta.
59 Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 439-440), a tão só existência de norma ensejadora
de liberdade ao administrador não é suficiente para concluir que haja discricionariedade na prática de
49
cujos critérios de escolha, destaque-se, não possuem caráter jurídico, mas sim outra natureza,
ética ou técnica, por exemplo - , sendo que qualquer decisão adotada dentro dos limites legais
será juridicamente válida60.
Assim é que se conclui que não é da natureza do poder de polícia ser discricionário61.
A margem de liberdade outorgada ao administrador público para desempenho dessa atividade,
quando presente, decorre do reconhecimento de que esse agente público está mais bem
posicionado para avaliação das situações concretas e também da circunstância de que é
impossível prever em lei toda a multiplicidade de situações fáticas que ensejarão a atuação de
polícia.
Pode-se afirmar, portanto, com fundamento em todas as considerações tecidas
anteriormente, que não é próprio do poder de polícia ser discricionário. A discricionariedade
se manifestará, em maior ou menor medida, em relação a determinados aspectos dos atos de
polícia, se e quando prevista pela ordem jurídica e sempre nos limites desta.
4.3. Poder de polícia como atividade autoexecutória: executoriedade e
coatividade.
Terceira e relevante característica atribuída ao poder de polícia é a executoriedade (ou,
para alguns, autoexecutoriedade). Tal característica indica que a Administração Pública (pois
aqui se trata da polícia administrativa) pode implementar suas decisões independentemente de
prévia manifestação autorizativa do Poder Judiciário. Aos particulares cabe obedecê-las. É o
determinado ato. Explica-se: quando a lei se vale de conceitos vagos ou fluidos para disciplinar
determinadas situações (por exemplo, ordem pública, boa-fé, urgência), observa-se que tais conceitos
possuem núcleo significativo certo, em que inquestionavelmente se aplicarão - a chamada “zona de
certeza positiva” -, além desta, há, também, a denominada “zona de certeza negativa”, no âmbito da
qual é patente a inaplicabilidade do conceito. Fala-se em existência de liberdade, portanto, quando se
enfoca a “zona circundante”, seara dos casos duvidosos, em que proliferam as incertezas acerca do
cabimento, ou não, do conceito em dada circunstância; aqui é possível a coexistência de mais de uma
opinião razoável acerca da aplicabilidade ou inaplicabilidade do conceito. Cita-se também, Sérgio
Guerra (2005, p. 12), que defende a existência de discricionariedade na integração dos conceitos
jurídicos indeterminados. Destaca-se que a defesa ou a refutação de que aos conceitos jurídicos
indeterminados geram discricionariedade repercute diretamente sobre o âmbito de sindicabilidade
jurisdicional de tais noções (e, consequentemente, sobre a amplitude do que se pode considerar como
mérito administrativo), daí a relevância do debate, que não encontra compreensão uníssona na
doutrina. Em razão disso, remete-se na doutrina pátria, aos estudos desenvolvidos sobre o tema por
Flávio Henrique Unes Pereira (2008) e Eros Grau (1988). Na doutrina estrangeira, conf. Enterría e
Fernández (1991) e António Francisco de Sousa (1994).
60 Sobre a concepção de indiferentes jurídicos e de sua relação com o controle dos atos
administrativos, cf. Araújo (1992) e Enterría e Fernandez (1991).
61 Também nesse sentido, entre outros, Beznos (1979, p. 36).
50
que ocorre, por exemplo, na interdição de estabelecimento comercial, previamente notificado,
que armazene alimentos em desconformidade com as normas sanitárias.
Em conformidade com o entendimento de Nina Laporte Bonfim e Carolina Barros
Fidalgo, pode-se dizer que a executoriedade é um pressuposto de bom desempenho da função
administrativa, pois “não poderia a Administração bem desempenhar suas funções se, a todo
momento, encontrando natural resistência do particular, tivesse que recorrer ao Judiciário para
remover oposição individual à atuação pública” (BONFIM; FIDALGO, 2012, p. 270). Como
bem salientam Bonfim e Fidalgo (2012, p. 280), a princípio, a executoriedade pode se
manifestar em relação a qualquer espécie de obrigação (dar, fazer, não fazer). Por outro lado,
atos simplesmente declaratórios ou de certificação, ou mesmo os que aumentam o patrimônio
jurídico dos cidadãos, não se revestem de força executória.
A executoriedade configura, portanto, um plus em relação ao atributo da exigibilidade.
Mediante a exigibilidade a Administração se vale de meios indiretos para obter o
cumprimento de seus comandos imperativos62 - utiliza-se da indução, portanto, como a
aplicação de multa. A executoriedade, por sua vez, pressupõe a possibilidade de uso da
coação material, de execução do ato, independentemente de a Administração Pública recorrer
ao Judiciário (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 423-424). Nesse sentido é que se observa
que a coação administrativa se manifesta com especial destaque no exercício do poder de
polícia.
Assim, cabe retomar as lições de Eduardo García de Enterría e de Tomás-Ramón
Fernández para fazer um alerta: a coação administrativa decorre de competência legal, a qual
confere poderes mais ou menos extensos à Administração, porém sempre limitados
(ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1991, p. 699-700). É essa competência que limita o uso
legítimo da coação, restringindo sua manifestação a dois âmbitos: execução forçada de atos
administrativos não cumpridos e reação imediata a determinadas situações urgentes contrárias
à ordem jurídica (ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1991, p. 700). Os meios de concreção são os
mais variados: mandado compulsório sobre o patrimônio, multa coercitiva e,
excepcionalmente, compulsão sobre pessoas.
Registra-se, por outro lado, na linha de Bandeira de Mello (2014, p. 425) que
executoriedade não é propriamente atributo do ato administrativo de polícia, mas sim da
62 Conforme registram Bonfim e Fildalgo (2012, p. 271), na doutrina francesa a exigibilidade
consistiria no privilège du préalable, que se coloca como momento anterior da executoriedade, ou
privilège d’action d’office.
51
pretensão jurídica da Administração Pública consubstanciada na necessidade de dar
cumprimento ao interesse público63.
Nesse sentido é que Bandeira de Mello (2014, p. 426) conclui que exigibilidade e
executoriedade são comuns (mas não exclusivas) aos atos administrativos64, ao contrário do
direito privado. Assim, exigibilidade seria a regra, enquanto a executoriedade só teria lugar
nas seguintes hipóteses65: 1) quando expressamente prevista em lei; 2) quando constituir
63 Os atributos da exigibilidade e da executoriedade não estariam presentes nas relações de direito
privado. Ou seja: como regra, é defeso aos particulares imporem unilateralmente, uns sobre os outros,
o cumprimento de obrigações juridicamente exigíveis, sem recorrer ao Judiciário, e, mais do que isso,
é vedado que eles se utilizem de meios materiais, diretos, para compelir à efetivação de tais comandos.
Nas palavras de Bandeira de Mello: “[...] observe-se que tanto a exigibilidade como a executoriedade
têm como característica central o fato de se imporem sem necessidade de a Administração ir a juízo. É
este traço que diferencia a situação do ato administrativo em relação ao ato do particular, pois este
necessita de uma sentença que torne exigível sua pretensão perante outro sujeito. Uma vez proferida a
sentença, caso a parte condenada não a obedeça, o particular necessita de uma execução judicial. Ou
seja: nas relações privadas, a sentença é que funciona como título exigível e a ordem judicial de
execução é que funciona como título executório, enquanto no Direito Administrativo o próprio ato do
Poder Público já dispõe do atributo de exigibilidade e do atributo da executoriedade que lhe é, embora
não sempre, conferido pelo sistema legal”. (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 425).
Excepcionalmente, a ordem jurídica admite a exigibilidade e a executoriedade nas relações entre
particulares. Trata-se de situações incomuns, de cunho emergencial, em que a ordem jurídica faculta
aos particulares o exercício de prerrogativas que, como regra, só são exercitáveis pelo Poder Público.
Como exemplo de exigibilidade nas relações de direito privado, cita-se a possibilidade de o hoteleiro
empenhar a bagagem de hóspede que não lhe pague a hospedagem (trata-se de meio indireto de obter o
cumprimento da obrigação do hóspede de pagar pela estadia), a teor do disposto no inciso I art. 1.467
do Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406∕2002, que prevê: “Art. 1.467. São credores pignoratícios,
independentemente de convenção: I - os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre
as bagagens, móveis, jóias ou dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo nas
respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem feito; [...]”. Como
hipótese exemplificadora da executoriedade no direito privado, cita-se a possibilidade de retomada
imediata da posse de bem imóvel após esbulho, de acordo com o §1º do art. 1.210 do Código Civil,
que dispõe, in verbis: “Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação,
restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1o
O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto
que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção,
ou restituição da posse. [...]”.
64 Colhe-se interessante posicionamento em Araújo (1992, p. 49-50), para quem não existe o atributo
da exigibilidade, uma vez que os exemplos normalmente arrolados deste atributo constituiriam formas
indiretas de execução ou simples requisitos previstos em lei para a execução de certos atos. Por sua
vez, na visão do autor, a executoriedade está presente no Direito Administrativo, ainda que nem
sempre a Administração possa prescindir da intervenção do Poder Judiciário. Para o autor (ARAÚJO,
1992, p. 49), em consonância com já citado entendimento de Bandeira de Mello (2014), haverá
execução administrativa em duas hipóteses: quando a lei previr expressamente ou quando
indispensável ao cumprimento das finalidades públicas em situações de urgência.
65 No mesmo sentido, Bonfim e Fidalgo (2012, p. 274), para quem nem todos os atos exigíveis são
executórios, porém, a executoriedade decorre sempre de exigibilidade prévia. Ademais, a
executoriedade, consubstanciada na atuação física da Administração sobre os particulares, deve ser
interpretada de modo restritivo e encarada como modo excepcional de desempenho da função
administrativa face à premência que o regime constitucional do Estado Democrático de Direito
52
condição indispensável à eficaz garantia do interesse público confiado pela lei à
Administração Pública, ou seja, caso a executoriedade não seja exercitada, haverá grave
comprometimento do interesse que incumbe à Administração assegurar66. Tal ocorre quando a
medida é urgente e não há outra via jurídica de igual eficácia à disposição da Administração
para atingir o fim tutelado pelo Direito, sendo impossível, sob pena de frustração deste,
aguardar a normal tramitação de medida judicial para obter a tutela pretendida. Nesses casos,
a autorização para a executoriedade estaria implícita no sistema legal, pois é em decorrência
deste que a Administração deve assegurar a proteção ao bem jurídico colocado em risco. É o
caso, por exemplo, da pronta interdição de estabelecimento que viole as normas sanitárias ou
o embargo de obra nociva à população, pelo risco de desabamento (BONFIM; FIDALGO,
2012, p. 299). Nesse contexto, a defesa da executoriedade, mesmo diante da ausência de
norma expressa a autorizá-la, encontraria respaldo na “doutrina dos poderes implícitos da
Administração” (BONFIM; FIDALGO, p. 302), com esteio nas lições de Enterría e Fernández
concede aos direitos e garantias fundamentais. Trata-se de competência, e não de privilégio, outorgado
à Administração (BONFIM; FIDALGO, p. 278).
66 Quando se trata de executoriedade manifestada em razão de expressa previsão normativa, conforme
destacam Bonfim e Fidalgo (2012, p.283), o legislador já realizou a “pré-ponderação”, pautada na
razoabilidade, dos valores envolvidos e optou pela indispensabilidade da executoriedade para a eficaz
garantia do bem jurídico colocado sob tutela da ordem normativa, sob pena de revelar-se inútil
qualquer medida protetiva posterior. De acordo com Bonfim e Fidalgo (2012), na esfera ambiental as
medidas autoexecutórias por expressa previsão normativa são corriqueiras, como os casos de
apreensão de produtos utilizados no cometimento da infração de caça ilegal (art. 33 da Lei nº
5.197∕1967) e da imposição, “por sua própria força e autoridade”, da obrigação da reposição de águas
públicas, e também seu leito e margem, quando ocupadas por particulares, Estados ou municípios, nos
termos do art. 58 do Decreto nº 24.643∕1934, que estatui o Código de Águas. As autoras também citam
como campo especialmente relevante para manifestação da executoriedade dos atos administrativos
aquele relativo à polícia sanitária, destinada à preservação da saúde pública, e que abrange, entre
outras modalidades, o combate e epidemias e a adoção de medidas destinadas a destruir focos de
infecção e agentes transmissores de doenças. Esses campos de atuação estatal foram destacados em
razão da evidente e muitas vezes inevitável possibilidade de ensejarem confronto entre o dever do
Estado de zelar pela saúde e promovê-la (a teor, entre outros, dos arts. 23, 24 e 196 da CR∕88) e as
garantias constitucionais à inviolabilidade de domicílio (CR∕88, art. 5º, inciso XI), à propriedade
(CR∕88, art. 5º, inciso XXII) e à liberdade e intimidade dos indivíduos (CR∕88, art. 5º, inciso X).
Conquanto este não seja o objeto específico de investigação neste trabalho, cabe noticiar que o
provável confronto entre polícia sanitária, de um lado, e, de outro, direitos e garantias constitucionais
relativos à liberdade e a propriedade foi recrudescido com a edição da Medida Provisória nº 712, de 29
de janeiro de 2016, que, entre outras medidas destinadas à prevenção e combate ao mosquito
transmissor do Vírus da Dengue, do Vírus Chikungunya e do Zika Vírus autoriza que as autoridades
competentes adentrem forçadamente imóveis públicos ou particulares abandonados ou nos quais esteja
ausente a pessoa responsável por permitir o acesso ao agente público. Entende-se que nessas situações
não é evidente, a princípio, o perigo iminente a doutrina erige – nesse sentido, Bonfim e Fidalgo
(2012, p. 291) - como supedâneo para a penetração compulsória da autoridade administrativa em
domicílio particular, independentemente de recurso às vias judiciais, em atenção ao inciso XI do art. 5º
da Constituição: “Art. 5º [...] XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
53
(1991). Aqui, a competência administrativa para os poderes de execução dos atos de polícia
decorreria implicitamente da mesma norma que determina a proteção da ordem pública, não
se vislumbrando violação ao princípio da legalidade em razão da ausência de previsão
normativa expressa (BONFIM; FIDALGO, p. 301)67.
Batista Júnior (2001, p. 105), por sua vez, assevera que, no Direito Brasileiro, para que
a Administração Pública possa se valer da executoriedade é imprescindível que a lei a autorize
expressamente. Essa afirmação é feita com esteio nos dispositivos constitucionais que
consagram o princípio da legalidade (CR∕88, art. 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), a ampla defesa e o contraditório
nos processos judiciais e administrativos, obrigando a Administração seguir estritamente o
procedimento legal (CR∕88, art. 5º, inciso LV) e a inafastabilidade da jurisdição (CR∕88, art.
5º, inciso XXXV).
Nesse sentido, a necessidade de expressa autorização legal para exercício da
executoriedade se faria presente mesmo quando a Administração estivesse diante de medida
urgente, já que o imperativo de atuar com prontidão, de modo a afastar risco iminente ao
interesse público, não possuiria força para possibilitar atuação ilegal ou arbitrária da
Administração Pública. (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 105-106)68.
Observa-se, neste ponto, que Batista Júnior diverge de entendimento consagrado por
administrativistas pátrios, como Celso Antônio Bandeira de Mello. Ao contrário deste último,
Batista Júnior não admite que a executoriedade das medidas de polícia possa se fazer presente
diante da ausência de expressa previsão legal. Em contrapartida, os autores convergem na
medida em que Batista Júnior (2001, p. 113), assim como Bandeira de Mello (2014), conclui
que a executoriedade não é característica intrínseca do poder de polícia.
Neste trabalho, filia-se à corrente doutrinária que entende que o atributo da
executoriedade não é intrínseco dos atos expressivos do poder de polícia, ainda que nesse
campo de atividades da Administração sua manifestação seja corriqueira. Para que a
67 Para Enterría e Fernández, a doutrina dos poderes implícitos diz respeito às potestades que podem
ser inferidas por interpretação das normas mais do que sobre seu texto expresso. Não se trataria, a
princípio, de interpretação extensiva ou analógica da legalidade como atributiva de poderes à
Administração, mas “simplesmente de fazer coerente o sistema legal, o qual deve supor-se que
responde a uma ordem de razão e não a uma casuística cega” (ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1991, p.
384).
68 Batista Júnior (2001, p. 113) destaca que no Direito Administrativo brasileiro não há cláusula geral
de polícia expressa em letra de lei, muito menos o reconhecimento, pelo legislador pátrio, de um
estado de necessidade genérico que autorizaria a pronta atuação da Administração Pública diante de
risco iminente ao interesse público, independentemente de pronunciamento do Poder Judiciário.
Assim, a executoriedade não seria inerente ao poder de polícia.
54
executoriedade esteja presente é necessário, como regra, previsão normativa a seu respeito.
Excepcionalmente, admitem-se manifestações de executoriedade sem fundamento em
previsão normativa expressa, nas situações urgentes nas quais seja inviável a adoção de
conduta diversa pela Administração, sob o risco de perecimento do interesse público69. Difícil
(e mesmo inviável, do ponto de vista da técnica legislativa) conceber que toda atuação
administrativa executória encontre supedâneo em norma expressa; considerando,
especialmente, a multiplicidade e a complexidade das situações da vida, que não são
acompanhadas pelo legislador. Esse entendimento não conflita com o princípio da legalidade,
mormente quando este é compreendido em seu sentido lato, ou seja, como sujeição da
Administração ao Direito como um todo, e não apenas à lei em sentido formal. É
imprescindível, assim, que a atuação administrativa se manifeste com esteio no princípio da
proporcionalidade, que, em sentido genérico70, significa a adequação entre a restrição imposta
ao particular pela Administração e o benefício advindo para a coletividade em decorrência de
tal restrição. Essencialmente, na seara da executoriedade, a observância da proporcionalidade
revela que a Administração não poderá se valer de meios mais ou menos enérgicos do que o
necessário para promover as finalidades legais (BONFIM; FIDALGO, 2012, p. 305).
Cumpre destacar, neste ponto, as lições de Juarez Freitas (2012, p. 326-327), para
quem as intervenções estatais sobre a liberdade e a propriedade, incluindo as de natureza
regulatória, só são justificáveis se observarem os princípios norteadores das relações de
administração. Logo, não é suficiente o respeito à legalidade em sentido limitado se restar
configurada desproporcionalidade na conduta do Estado. Com efeito, os atos expressivos do
69 Deve-se levar em consideração o sentido amplo da legalidade, consubstanciado na juridicidade.
Esta exige conduta administrativa lastreada no Direito.
70 Sobre o conteúdo e natureza jurídica da proporcionalidade – e ∕ou da razoabilidade -, já que
doutrina e a jurisprudência pátrias costumam tratá-las ora como sinônimos, variando apenas em
amplitude, ora como normas com conteúdo autônomo, cf., na doutrina brasileira, Virgílio Afonso da
Silva (2002), Humberto Ávila (1999), Bandeira de Mello (2014), Eros Roberto Grau (2005) e a
dissertação de mestrado de Bruna Rodrigues Colombarolli (2010). Cita-se, como entendimento
ilustrativo da divergência, o de Virgílio Afonso da Silva (2002, p. 12), para quem a proporcionalidade
é uma regra, e não um princípio (no âmbito da teoria pós-positivista, que distingue entre as regras e
princípios, enquanto espécies de normas), e se traduz nas sub-regras da adequação, da necessidade e da
proporcionalidade em sentido estrito, que se relacionam de modo subsidiário e nessa ordem (AFONSO
DA SILVA, 2002, p. 12) e querem dizer, respectivamente: utilidade da medida empregada para
alcançar ou, pelo, menos fomentar o objetivo pretendido (AFONSO DA SILVA, 2002, p. 14-15); a
medida útil empregada para realizar determinado objetivo deve ser a menos restritiva ao direito
fundamental (AFONSO DA SILVA, 2002, p. 16-17); 3) sopesamento entre a medida (restritiva) útil e
necessária empregada para realizar determinado objetivo e a relevância da realização do direito
fundamental que com este colide (AFONSO DA SILVA, 2002, p. 19). A razoabilidade configura,
nessa perspectiva, uma mera análise de compatibilidade entre meios e fins cujo conteúdo corresponde
ao da primeira das três sub-regras da proporcionalidade: o da exigência de adequação (AFONSO DA
SILVA, 2002, p. 11).
55
poder de polícia devem ser examinados à luz da proporcionalidade, de modo a concretizar o
preceito de que “os meios só são juridicamente adequados se se prestarem a realizar o fim
almejado (adequação meio-fim), mas ao mesmo tempo, devem ser adequados, necessários e
razoáveis” (FREITAS, 2012, p. 330)71.
Quer-se ressaltar, com as considerações realizadas até este ponto, que a necessidade de
previsão normativa para desempenhar funções executórias, como regra, e a necessidade de
observância da adequação entre meios e fins, sentido genericamente conferido à
proporcionalidade, obrigam não só à Administração como também aos particulares que
eventualmente venham a executar atos jurídicos expressivos do poder de polícia, uma vez que
o regime jurídico incidente sobre uns e outros no desempenho de típicas potestades públicas é
o mesmo. Quanto aos particulares, a previsão e minucioso delineamento da atividade
executória constitui condição para o trespasse da incumbência de realizar o poder de polícia,
conforme será tratado no Capítulo 7 deste trabalho. A executoriedade, nesse caso, se limitará
aos atos de fiscalização de polícia; não se admite que particulares possam sancionar uns aos
outros no desempenho do poder de polícia.
4.4. Poder de polícia como atividade preventiva.
De acordo com Clóvis Beznos (1979, p. 40) o caráter preventivo do poder de polícia
costuma ser assinalado pela doutrina em contraposição à polícia judiciária, detentora de
qualidade repressiva.
É o que defende, por exemplo, Caio Tácito (1952, p. 10), ao afirmar que o poder de
polícia é essencialmente preventivo, sendo necessário distingui-lo da atividade preliminar à
repressão penal também exercida pelas autoridades policiais (já que tanto a polícia
administrativa quanto a polícia judiciária podem incumbir a um mesmo órgão
governamental). Nessa perspectiva, à polícia judiciária, de caráter repressivo, caberia a
71 Em sentido consonante, Karlin Olbertz (2014, p. 52) assevera que “Reconhecer o papel da
proporcionalidade no exercício do poder de polícia implica admitir que as medidas de polícia devem
ser aquelas que apresentam menor repercussão negativa entre as medidas reputadas igualmente
idôneas. Significa dizer, em primeiro lugar, que a medida de polícia deve ser avaliada em função de
determinados elementos, tais como o valor fundamental do bem jurídico protegido, as consequências
em face dos destinatários do ato, a onerosidade, os interesses coletivos, os interesses individuais dos
sujeitos atingidos direta e indiretamente. Somente dessa forma é que será viável estimar a repercussão
negativa da medida. Mas também significa dizer que a medida de polícia deve ser congruente com as
circunstâncias verificadas e os fins a serem atingidos. Nesse sentido, a proporcionalidade impõe que se
ultrapasse a simples concatenação do raciocínio, para que seja possível adequar aos valores do sistema
jurídico a solução buscada pelo intérprete”.
56
atribuição de apurar responsabilidades e encaminhar à Justiça os autores de infração penal. À
polícia administrativa, de finalidade mais preventiva, incumbiria a manutenção da segurança,
da ordem e da tranquilidade públicas, como forma de resguardar o meio social de ofensas
potenciais.
Com base nos critérios erigidos para apartar polícia administrativa e polícia judiciária,
Beznos (1979, p. 43) afirma que o fato de a polícia administrativa atuar preponderantemente
de maneira preventiva não é traço suficiente para caracterizar a atividade. E isso porque a
polícia administrativa atuaria também repressivamente, característica observável, por
exemplo, na dissolução de passeata tumultuosa ou na apreensão de alimentos deteriorados
colocados à venda para consumo. Assim, “[...] quando a polícia administrativa intervém, após
atividade considerada danosa já ter se iniciado, a sua atuação é não só preventiva no sentido
de evitar a continuidade do dano, mas também, repressiva no sentido de interrompê-lo”
(BEZNOS, 1979, p. 43-44). É nesse contexto que Celso Antônio Bandeira de Mello (2014,
852) afirma, considerando as hipóteses aventadas (dissolução de passeata e a apreensão de
produtos impróprios para consumo postos à venda), entre outras, que a atuação administrativa
é marcada pela repressão a uma atuação antissocial; só se poderia considerá-la preventiva de
modo relativo, ou seja, em relação aos futuros danos, diversos, que adviriam da persistência
do comportamento reprimido.
Ademais, segundo Bandeira de Mello (2014, p. 853), o que efetivamente aparta a
polícia administrativa da polícia judiciária é o fato de a primeira se predispor unicamente a
impedir ou paralisar atividades antissociais enquanto a segunda se destina à responsabilização
dos violadores da ordem jurídica. Assim chega à conclusão de que: “A importância da
distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária está em que a segunda rege-se na
conformidade da legislação processual e a primeira pelas normas administrativas”
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 853).
Assim, com fundamento no entendimento de Bandeira de Mello, Beznos (1979, p. 45)
conclui que a prevenção, nos termos expostos, não é traço característico da polícia
administrativa e não constitui critério para diferenciar essa atividade estatal da polícia
judiciária.
Entende-se neste trabalho que, efetivamente, o caráter preventivo não constitui critério
adequado para caracterizar a polícia administrativa, muito menos para apartá-la da polícia
judiciária. Com efeito, às hipóteses expressamente arroladas pelos administrativistas citados
como caracterizadoras de atuações repressivas da polícia administrativa podem ser
adicionadas inúmeras outras encontradas nos campos de polícia ambiental, “de costumes”, de
57
trânsito, “de posturas”, em que o viés que sobressai é o de repressão às condutas atentatórias
aos interesses da coletividade72.
Há que observar, por outro lado, que a denominada polícia judiciária pode ser
convocada para coibir infrações administrativas (por exemplo, aquelas relacionadas a posturas
urbanas), enquanto agentes da polícia administrativa podem atuar em face de condutas
tipificadas como crimes, a exemplo dos crimes ambientais e tributários73.
Nesse sentido, à guisa de conclusão, vale retomar a lição de Themístocles Brandão
Cavalcanti (1964, p. 10-11), segundo a qual a distinção geralmente aceita entre polícia de
segurança (ou judiciária, para os fins aqui tratados) e polícia administrativa merece críticas, já
que uma dada manifestação de poder de polícia pode revestir-se ou de caráter administrativo
ou de caráter puramente policial, sendo que a diferenciação interessa mais à natureza da
medida expressada pela autoridade pública do que propriamente à esfera de ação dentro da
qual essa autoridade exerce suas atribuições74.
72 A título de exemplo, cita-se o Decreto nº 5.893, de 16 de março de 1988, que regulamenta a Lei nº
4.253, de 04 de dezembro de 1985, do Município de Belo Horizonte, que, no âmbito da proteção e
preservação do meio-ambiente, condiciona a poda, o transplante ou a supressão de espécimes arbóreos
e demais formas de vegetação em áreas de domínio público ou privado à emissão de autorização pelo
Poder Público, nos termos de seu art. 61. A infração a esse preceptivo sujeita o infrator às penalidades
de advertência, multa e cassação de alvarás e licenças concedidas (art. 97). No mesmo sentido, o
Decreto nº 14.060, de 06 de agosto de 2010, que regulamenta a Lei nº 8.616∕2003, também do
Município de Belo Horizonte, condiciona, entre outras, as operações de construção, conservação,
manutenção e uso da propriedade pública ou privada, quando afetem o interesse público, ao prévio
licenciamento perante o Poder Público. Nesse âmbito é que, por exemplo, a utilização de mesas e
cadeiras sobre os passeios ou afastamentos frontais das propriedades após os horários admitidos sujeita
o infrator às penalidades de multa, apreensão e cassação da licença para colocação do mobiliário
urbano e do Alvará de Localização e Funcionamento do estabelecimento (art. 53, §3º).
73 No que toca às infrações penais tributárias, e de sua relação com a atuação de agentes da
Administração, cita-se aquelas tipificadas na Lei nº 8.137∕1900, que define os crimes contra a ordem
tributária, econômica e contra as relações de consumo, e em seu art. 1º prevê: “Art. 1° Constitui crime
contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório,
mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação
de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota
fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV
- elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a
venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com
a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de
atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas
em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da
exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.” No que tange à atuação de agentes de
Administração visando à responsabilização penal e administrativa em razão de condutas lesivas ao
meio ambiente, cf., por todas, a Lei nº 9.605∕1998, que dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
74 Esse entendimento é corroborado por recente decisão do STF nos autos do RE nº 658.570∕MG, no
qual foi discutida a possibilidade de a Guarda Municipal de Belo Horizonte, órgão estatal criado para o
58
4.5. Notas adicionais sobre os traços característicos do poder de polícia.
Três são os traços característicos da atividade estatal de polícia, de acordo com a lição
de Ruy Cirne Lima (1982, p. 107-108): 1) Trata-se de atividade exercida privativamente por
autoridade pública; 2). Constitui atividade imposta coercitivamente pela Administração; 3).
Abrange a generalidade das atividades e propriedades75 .
exercício das atribuições de proteção dos bens, serviços e instalações municipais, nos termos do art.
144, §º, da Constituição do Estado de Minas Gerais, atuar na fiscalização, no controle e na orientação
do trânsito e do tráfego (essencialmente, no exercício da polícia de trânsito), por determinação do
Prefeito. No voto do Relator para o Acórdão, Ministro Luís Roberto Barroso, colhe-se o entendimento
(p. 33) de que a fiscalização e a imposição de sanções de trânsito revelam meramente o exercício do
poder de polícia e o fato de essa atividade ser exercida de modo ostensivo nas ruas decorre da própria
difusão da atividade fiscalizada – o trânsito – sem que se possa dizer que a atividade estatal, no caso,
se transmuta em atuação típica de segurança pública. Assim, o policiamento ostensivo, típico da
segurança pública e que a Constituição reservou às polícias refere-se ao combate às infrações à ordem
pública, amplamente consideradas, em especial, as de natureza criminal. Não há que confundi-lo,
portanto, com a atuação, ainda que ostensiva, mas tematicamente limitada, da fiscalização nas normas
de trânsito, com a imposição de sanções administrativas. Logo, “Não se pode associar poder de
polícia, cuja competência é fixada legalmente a partir dos parâmetros constitucionais incidentes em
cada caso, com a instituição da polícia, à qual a Constituição atribuiu, com exclusividade, a promoção
da segurança pública”. Basicamente, as atividades relativas ao poder de polícia, distintas que são
daquelas concernentes à segurança pública, podem ser exercidas por diferentes órgãos e entes estatais
(p. 34). Nessa linha de entendimento, o Acórdão foi assim ementado, inclusive com a fixação de tese
em sede de repercussão geral: “DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
PODER DE POLÍCIA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO. GUARDA MUNICIPAL.
CONSTITUCIONALIDADE. 1.Poder de polícia não se confunde com segurança pública. O exercício
do primeiro não é prerrogativa exclusiva das entidades policiais, a quem a Constituição outorgou, com
exclusividade, no art. 144, apenas as funções de promoção da segurança pública. 2. A fiscalização do
trânsito, com aplicação das sanções administrativas legalmente previstas, embora possa se dar
ostensivamente, constitui mero exercício de poder de polícia, não havendo, portanto, óbice ao seu
exercício por entidades não policiais. 3. O Código de Trânsito Brasileiro, observando os parâmetros
constitucionais, estabeleceu a competência comum dos entes da federação para o exercício da
fiscalização de trânsito. 4. Dentro de sua esfera de atuação, delimitada pelo CTB, os Municípios
podem determinar que o poder de polícia que lhe compete seja exercido pela guarda municipal. 5. O
art. 144, §8º, da CF, não impede que a guarda municipal exerça funções adicionais à de proteção dos
bens, serviços e instalações do Município. Até mesmo instituições policiais podem cumular funções
típicas de segurança pública com exercício de poder de polícia. Entendimento que não foi alterado
pelo advento da EC nº 82/2014. 6. Desprovimento do recurso extraordinário e fixação, em repercussão
geral, da seguinte tese: é constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de
polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas”.
75 Reconhece-se que as características arroladas para o poder de polícia variam de acordo com o
enfoque adotado para o estudo dessa atividade estatal. De qualquer modo, independentemente da
maior ou menor diversidade dos traços, há pontos comuns a serem ressaltados. Como exemplo dessa
assertiva, destaca-se o entendimento de Medauar (2008, p. 334-335), para quem, o poder de polícia
possui como características nucleares: 1) é atividade preponderantemente administrativa,
reconhecendo-se que as limitações ao exercício de direitos tem fundamento legal, e que se expressa na
apreciação de casos concretos, na fiscalização e na imposição de sanções; 2) é atividade subordinada à
ordem jurídica, ou seja, regida pelo ordenamento vigente e, nesse sentido, sujeita a controle
jurisdicional; 3) acarreta limitação direta aos direitos reconhecidos aos particulares; 4) limita
atividades sob responsabilidade dos particulares, distinguindo-se, neste aspecto, dos serviços públicos;
59
As duas últimas características citadas – poder de polícia como atividade coercitiva e
incidente sobre a generalidade das atividades e propriedades - já foram abordadas nos
Capítulos 2 e 4. Sobre elas cabem apenas algumas observações.
Conforme considerações anteriores, a doutrina costuma entender que a coação se
manifesta com especial relevância na atividade de polícia, o que, por sua vez, deriva da
compreensão de que essa atividade estatal é autoexecutória (ou executória). No entanto,
conforme se sustentou, a executoriedade não é atributo próprio dos atos de polícia, estando
presente, regra geral, apenas quando expressamente prevista na ordem normativa. Desse
modo, a defesa de que o poder de polícia constitui atividade imposta coercitivamente pela
Administração desconsidera que essa atividade estatal pode se manifestar de modos outros
que não por meio do emprego de coação, como se observa, por exemplo, na emissão de atos
de consentimento, como licenças e autorizações, os quais aumentam o patrimônio jurídico dos
destinatários e não se revestem de força executória.
Por outro lado, entender que o poder de polícia abrange a generalidade das atividades
e propriedades tem a ver o próprio fundamento dessa atividade estatal, qual seja, a noção de
supremacia geral. Trata-se, como já se explanou, da supremacia das leis em geral concretizada
em atos da Administração e significa que, no desempenho da atividade de polícia, a
Administração exerce apenas os poderes que lhe são diretamente conferidos pela ordem
jurídica.
Nesse sentido, busca-se, a partir de agora, analisar com maior detalhamento o primeiro
dos traços indicados, qual seja: a noção de que o poder de polícia somente pode ser exercido
por autoridade pública.
Ressalta-se, de início, que admitir como verdadeira tal característica inviabiliza a
transferência do exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares, ou
seja, a quem não é autoridade pública. Assim, a compreensão do que significa “autoridade
pública” fornece subsídios para a análise da corrente que nega que particulares possam
receber a incumbência de praticar atos jurídicos de polícia.
5) acarreta disparidade entre o conteúdo abstrato do direito e a possibilidade de seu exercício concreto;
6) opera por meio de prescrições, constituindo, portanto, a ”face autoridade“ da Administração
Pública, 7) engloba o controle da observância das prescrições e a imposição de sanções aos cidadãos
em caso de descumprimento.
60
4.6. Poder de polícia como atividade privativa de autoridade pública e o
significado da noção de “atividades exclusivas de Estado”.
Bandeira de Mello (2014, p. 858) explicita ser inviável a atribuição, a particulares, de
poder de decisão acerca da ocorrência, ou não, de violação à norma jurídica, bem como da
incumbência de expedir sanções (administrativas).
O entendimento de Bandeira de Mello fornece os primeiros subsídios para o exame de
quais seriam as incumbências típicas de autoridade pública, abrangendo o exercício de poder
de polícia: poder de decisão quanto à ocorrência ou não de fato danoso à ordem jurídica e
poder de penalizar o infrator da ordem normativa.
Além da lição do autor, afirma-se que entender que poder de polícia apenas pode ser
exercido por autoridade pública, em razão da natureza da atividade desempenhada, seria o
mesmo que entender que tal atividade estatal integra a categoria de “atividade exclusiva do
Estado”, segundo parte dos autores colacionados abaixo. Pergunta-se, portanto: quais são
essas atividades exclusivas de Estado, insuscetíveis de traslado a particulares?
É o que se busca compreender a seguir.
Cláudio Dias Lima Filho explana que a expressão “atividades exclusivas de Estado”
passou a constar da Constituição brasileira de 1988 a partir da promulgação da Emenda
Constitucional nº 19∕1998, conhecida por ter veiculado a “Reforma da Administração
Pública”. Para o autor, às atividades exclusivas de Estado mencionadas na Constituição
correspondem as denominadas “atividades inerentes de Estado” de que trata a Lei nº
6.185∕1974, cujo art. 2º prevê, in verbis:
Art. 2º Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem
correspondência no setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança
Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos
Federais e Contribuições Previdenciárias, Procurador da Fazenda Nacional,
Controle Interno, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos
deveres, direitos e obrigações sejam os definidos em Estatuto próprio, na
forma do art. 109 da Constituição Federal.
Como explicita o autor, a Lei nº 6.185∕1974 constitui o marco da cisão conceitual entre
as “carreiras estatais próprias” e as “carreiras estatais impróprias”, as primeiras compostas por
servidores titulares de cargos públicos providos por meio de concurso público, de acordo com
a disciplina da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº
1∕1969; a segunda categoria integrada por servidores sujeitos ao regime trabalhista.
61
Conquanto, de acordo com o entendimento de Cláudio Lima Dias Filho, a Lei nº 6.185∕1974
careça atualmente de eficácia, já que, embora não revogada expressamente, contem
dispositivos conflitantes com a ordem constitucional vigente76, razão pela qual não teria sido
recepcionada, pode-se dizer que esse marco legislativo constitui relevante parâmetro para
compreensão do núcleo conceitual subjacente à noção de atividades estatais exclusivas e,
portanto, indelegáveis.
Reportando-se especificamente à disciplina da Constituição de 1988, Cláudio Lima
Dias Filho assevera:
Essa expressão [atividade exclusiva de Estado] não detém uniformidade
conceitual. A Constituição, no entanto, fornece uma diretriz sólida para a sua
conceituação: a caracterização da “exclusividade” estatal não decorrerá de
um critério orgânico [...] mas sim de um critério que se pode denominar de
funcional: as atribuições do cargo ocupado é que serão levadas em
consideração para a definição das atividades exclusivas de Estado, tendo
como cerne, em decorrência disso, o servidor que ocupe esse posto e não o
órgão em que há desempenho do seu trabalho77.
Di Pietro (2014, p. 158), por sua vez, recorda que a Constituição da República, em seu
art. 247, trata de modo diferenciado da estabilidade do servidor público que, em decorrência
das atribuições de seu cargo, desempenha atividades exclusivas do Estado78. Tal proteção
76 Notadamente, os dispositivos que estabelecem a duplicidade de regimes jurídicos para os servidores
do Estado, o que contraria o disposto no art. 39 da CR∕88, nos termos da decisão liminar proferida pelo
STF em sede da ADI 2135∕ DF. O art. 39 da CR prevê: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para
os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas”.
77 A respeito da definição das atividades exclusivas de Estado, pode-se recorrer, ainda, ao disposto no
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, documento produzido na década de 90 do século
XX no âmbito da Administração Federal, mais especificamente, pelo Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado – MARE, com a finalidade de guiar a implementação, no Brasil, dos
preceitos e diretrizes do gerencialismo na Administração Pública. Nesse documento, encontra-se o
seguinte significado para a expressão “atividades exclusivas de Estado”: “ATIVIDADES
EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços
em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como
exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o
serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a
compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica,
o serviço de emissão de passaportes, etc”. (Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p.
41).
78 O dispositivo constitucional prevê, in verbis: “Art. 247. As leis previstas no inciso III do § 1º do
art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo
servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva
atividades exclusivas de Estado. Parágrafo único. Na hipótese de insuficiência de desempenho, a perda
do cargo somente ocorrerá mediante processo administrativo em que lhe sejam assegurados o
contraditório e a ampla defesa”. A seu turno, os arts. 41, §1º, inciso III, e 169, ambos da CR, dispõem,
respectivamente: “Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados
62
demanda disciplina em normas infraconstitucionais79 (Di Pietro, 2014, p. 159). Ressalta-se
que essa é uma proteção aos servidores, mas também, e antes de tudo, ao interesse público
consubstanciado nas atividades por eles desempenhadas, essenciais à própria existência do
Estado.
Cumpre ressaltar, por outro lado, em consonância com Di Pietro (2014), que a
identificação das atividades exclusivas de Estado é relevante não apenas para fins de
estabilidade do servidor público, conforme prevista no art. 247 da CR/88, como também para
delinear os limites da colaboração privada, especialmente nos dias atuais, em que ganha
relevo o fenômeno da privatização, “com o objetivo de ‘diminuir o tamanho do Estado’ ou,
melhor dizendo, diminuir seu aparelhamento administrativo, transferindo para a iniciativa
para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. § 1º O servidor público estável só
perderá o cargo: [...] III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de
lei complementar, assegurada ampla defesa. [...]Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos
em lei complementar. [...] § 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo,
durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios adotarão as seguintes providências: I - redução em pelo menos vinte por cento das
despesas com cargos em comissão e funções de confiança; II - exoneração dos servidores não estáveis.
§ 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o
cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá
perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade
funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. § 5º O servidor que perder
o cargo na forma do parágrafo anterior fará jus a indenização correspondente a um mês de
remuneração por ano de serviço. § 6º O cargo objeto da redução prevista nos parágrafos anteriores será
considerado extinto, vedada a criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou
assemelhadas pelo prazo de quatro anos. § 7º Lei federal disporá sobre as normas gerais a serem
obedecidas na efetivação do disposto no § 4º”.
79 Nesse sentido, a Lei nº 9.801/1999, ao disciplinar a hipótese de perda de cargo em virtude de
excesso de despesa, estabelece que a exoneração de servidor com fulcro no §4º do art. 169 da
Constituição da República - dispositivo que prevê a fixação de critérios diferenciados para perda do
cargo pelos servidores que exercem atividades exclusivas do Estado - será precedida de ato motivado
do Chefes do Poder Executivo de cada um dos entes político-administrativos. Por sua vez, o art. 3º
dessa Lei estabelece condições mais difíceis de serem preenchidas pelo administrador público para a
exoneração dos servidores que exerçam atividades exclusivas do Estado. Por um lado, os critérios
diferenciados visam proteger os servidores que desempenham atividades exclusivas de Estado, devido
à essencialidade destas. Por outro, nota-se que a Lei em comento não define quais são essas atividades,
cabendo aos Chefes do Poder Executivo, ao exercerem tal prerrogativa, identificarem tais servidores
com fundamento em parâmetros fornecidos pela ordem jurídica, em especial, pela Constituição da
República. Sobre essa hipótese de perda de cargo público por servidor estável, Freitas (2009, p. 198)
entende que “traduz desligamento sem conteúdo punitivo (dado que inexiste caráter sancionatório),
oriundo do enxugamento de despesas. Revela-se logicamente inviável para os ocupantes de cargos
essenciais ao funcionamento do Estado. O constituinte não pode ter pretendido que, em nome da
austeridade fiscal, o Estado se destrua”. Destaque-se que, nessa interpretação, o autor sobreleva a
essencialidade das atividades desempenhadas por determinados servidores públicos, necessárias à
manutenção do funcionamento da máquina administrativa. No entanto, ao entender que a exoneração
desses servidores para corte de despesas seria “logicamente inviável” vai de encontro a expressa
previsão constitucional para que tais cortes ocorram.
63
privada o exercício de atribuições antes desempenhadas pelo Estado” (DI PIETRO, 2014, p.
160).
Com efeito, a busca pela identificação das denominadas atividades exclusivas de
Estado é crucial no atual contexto da Administração Pública brasileira, que recorre, de modo
cada vez mais intenso, às parceiras, em sentido amplo, com particulares, independentemente
da natureza do vínculo firmado e do instrumento adotado para concretizá-las.
Entende-se que os condicionamentos à colaboração privada podem provir da adequada
compreensão das atividades exclusivas do Estado, cujo delineamento permitiria a cisão entre
o que pode ser desempenhado por particular, devidamente habilitado pelo Poder Público, e o
que pode ser executado somente por servidores estatais legalmente investidos80.
Maria Tereza Fonseca Dias (2013, p. 1), tratando especificamente das atividades
relativas à Administração Tributária, afirma que estas estão inseridas em categoria maior de
atividades estatais, alocadas no campo das “atividades exclusivas de estado”, concernentes ao
exercício do “poder de império” do Estado81. No caso da Administração Tributária, o caráter
de atividade exclusiva de Estado derivaria de expressa previsão constitucional,
especificamente, do inciso XXII do art. 37 da CR∕88, incluído pela Emenda Constitucional nº
42/2003, que prevê, in verbis:
Art. 37 [...]
XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado,
exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários
para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive
com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da
lei ou convênio.
Destaca-se que o dispositivo transcrito não utiliza o termo “atividade exclusiva”, mas
“atividade essencial ao funcionamento do Estado”. De acordo com Cláudio Dias Lima Filho,
o termo “exclusivo” evoca restrição a algo ou a alguém, com a exclusão dos demais. O que se
80 Cuida-se, aqui, tanto dos servidores ocupantes de cargo público efetivo quanto dos empregados
públicos. A discussão sobre se o regime jurídico funcional influencia a possibilidade de um servidor
exercer o poder de polícia será abordada no capítulo 7 deste trabalho.
81 No caso da Administração, o “poder de império” se revela na prerrogativa de constituir os
particulares unilateralmente em obrigações e de compeli-los a cumprir as obrigações impostas,
utilizando-se de meios de coercitivos, se necessário. Flávio Amaral Garcia (2009, p. 20), em sentido
consonante com o de Dias (2013), afirma que o principal limite norteador da delegação de atividades
administrativas é o “poder de império estatal”. As atividades estatais que envolvem “atos de império e
de autoridade”, a exemplo das atividades de segurança, fiscalização, regulação e poder de polícia,
“típicas de Estado”, não poderiam ser delegadas a particulares, os quais não estariam investidos das
prerrogativas públicas necessárias à satisfação dos interesses públicos tutelados pela ordem jurídica.
64
quer realçar com o emprego desses termos é que, apesar de a Constituição não utilizar a
expressão “atividade exclusiva”, é exatamente esse o sentido evocado82quando se aborda a
Administração Tributária. Mais do que isso: as atividades concernentes a esse campo de
atuação do Poder Público não podem ser executadas fora do âmbito estatal. Esse, entretanto,
não é o regime aplicável a todas as atividades reputadas exclusivas de Estado, pois tal
constrição dependerá, precipuamente, da normatização constitucional incidente, bem como da
disciplina em normas infraconstitucionais.
Assim, no que toca especificamente às atividades relativas à Administração Tributária,
Maria Tereza Fonseca Dias (2013, p. 4-5) conclui pela sua indelegabilidade, por
inconstitucional, já que tal setor de atuação do Poder Público caracteriza-se pela natureza
coercitiva e impositiva das obrigações impostas, englobando o exercício do poder de polícia83.
Ressalta-se ainda que, além da Constituição da República e da já citada Lei nº
9.801/1999 (ver comentários na nota de rodapé nº 79), outros diplomas normativos fazem
menção às atividades exclusivas de Estado, sem defini-las, contudo84. É o caso da Lei nº
11.079/2004, que dispõe sobre os contratos (concessão administrativa e concessão
82 Nesse sentido, Maria Tereza Fonseca Dias: “O conceito jurídico indeterminado ‘atividade essencial
da Administração Tributária’ oriundo da Constituição da República, servindo como diretriz ao
legislador deve ser esmiuçado pela ordem jurídica infraconstitucional. [...] No caso em análise, não há
que falar em distinção de natureza entre atividades ‘essenciais’, ‘típicas’ e ‘atividades-fim’ da
Administração Tributária [...]” (DIAS, 2013, p. 2).
83 A conclusão de Dias é corroborada pela vedação contida no caput do art. 7º do CTN, que prevê a
indelegabilidade da competência tributária, nos seguintes termos: “Art. 7º A competência tributária é
indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis,
serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de
direito público a outra, nos termos do § 3º do artigo 18 da Constituição”.
84 Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 248/1998, originário da
Mensagem nº 1.308/1998, apresentada pelo Poder Executivo, que regulamenta o disposto no inciso III
do § 1º do art. 41 e no art. 247, da CR, para dispor sobre a perda de cargo público por insuficiência de
desempenho do servidor público estável O art. 15 do Projeto, inserido no Capítulo intitulado “Da
Dispensa do Servidor em Atividade Exclusiva de Estado”, originariamente previa como carreiras que
desenvolvem “atividade exclusiva de Estado”, no âmbito do Poder Executivo da União, as seguintes:
Advogado da União, Procurador da Fazenda Nacional, Assistente Jurídico da Advocacia-Geral da
União, Procurador e Advogado dos órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União, Defensor Público
da União, Policial Federal, Policial Rodoviário Federal, Policial Ferroviário, carreiras cujos cargos
sejam privativos de brasileiros natos (Diário da Câmara dos Deputados, Ano LIV, nº 011, 1999,
p.224). Ainda de acordo com o art.15, em seu parágrafo único, no âmbito do Poder Executivo dos
Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, desenvolvem atividades exclusivas de Estado os
servidores integrantes de carreiras cujos cargos tenham “funções equivalentes e similares” às inerentes
às carreiras mencionadas no caput do artigo. Emendas do Senado Federal ampliaram
significativamente o rol de carreiras integradas por servidores que desenvolvem atividades típicas de
Estado (Diário da Câmara dos Deputados, Ano LIV, nº 135, 1999, p. 84-131), o que, de um lado,
constitui reflexo da ausência de uma maior definição sobre quais são essas atividades e, de outro, deixa
transparecer os interesses políticos subjacentes à inclusão de uma ou outra carreira no rol de atividades
típicas, em razão das garantias especiais que as cercam, a começar pela estabilidade qualificada.
65
patrocinada) de parceria público-privada. Nesta Lei, o inciso III do art. 4º fixa diretrizes para a
contratação de parceria público-privada, entre as quais se destaca a “indelegabilidade das
funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades
exclusivas do Estado“. Ou seja, de acordo com a Lei Nacional de Parcerias Público-Privadas,
é inviável que o Estado transfira a particulares a incumbência de desempenhar as funções de
regulação, jurisdicional, bem como o exercício do poder de polícia, em razão de tais
atividades serem, nos termos da Lei, exclusivas de Estado. A Lei não define, portanto, o que
se pode considerar como atividade exclusiva de Estado, mas, por meio do rol exemplificativo
anteriormente transcrito, deixa transparecer que tais atividades, conquanto diferentes em sua
natureza, devem ser executadas pelos entes e órgãos do aparato estatal.
Nesse contexto de indefinição legal quanto ao conceito de atividade exclusiva de
Estado é que Di Pietro (2014, p. 162) expõe:
Normalmente, são consideradas atividades exclusivas de Estado a defesa do
país contra o inimigo externo, a segurança interna, a polícia, a intervenção, a
justiça, a atividade jurídica do Estado, a regulação. Trata-se de atividades
que, por sua própria natureza, são típicas do Estado, por envolverem o
exercício de autoridade, de prerrogativas de poder público, de repressão, de
regime jurídico essencialmente publicístico, invadindo, no mais das vezes, a
esfera de direitos do cidadão.
Ademais, ao voltar suas considerações especificamente aos servidores que exercem
atividades típicas de Estado, a autora aduz:
Também não tenho dúvidas em afirmar que, embora não previstos
expressamente na Constituição, integram carreiras típicas de Estado
todos os servidores civis que atuam no exercício do poder de polícia do
Estado, nas atividades de fiscalização e repressão, adotando medidas
preventivas e repressivas, aplicando sanções, outorgando autorizações e
licenças e outros atos de polícia previstos em lei para a defesa do interesse
público. (DI PIETRO, 2014, p. 163, grifo nosso)
O entendimento transcrito corrobora a vedação legal constante da Lei de Parceiras
Público-Privadas quanto à transferência do exercício do poder de polícia a particulares.
Evidentemente que os temas são distintos, conquanto interligados - contratos de parcerias
público-privadas e carreiras típicas do Estado. Observa-se, entretanto, que o fundamento para
66
a defesa da indelegabilidade e para o desempenho do poder de polícia apenas por servidores
de carreira estatais típicas, é o mesmo: a natureza da atividade desempenhada85.
Pode-se afirmar, com base nas considerações precedentes, que o conceito “atividades
exclusivas de estado” demanda detalhamento, uma vez que não há norma constitucional ou
infraconstitucional que o defina. Os diplomas normativos citados, e a própria Constituição,
quando empregam tal expressão, o fazem de modo a permitir a inclusão, na categoria das
atividades exclusivas, de outras atividades estatais que não aquelas expressamente arroladas.
De modo geral, o sentido que se visualiza na expressão é o de atividade que apenas o Estado -
ou, em sentido mais restrito, pessoa jurídica de direito público -, pode realizar, com exclusão
de terceiros.
Observa-se, por outro lado, variação terminológica que ora trata das atividades típicas
e exclusivas como sinônimas, ora como atividades de distinta natureza. Neste trabalho
entende-se que qualificar uma atividade como típica indica que é próprio do Estado executá-
la, o que não quer dizer que apenas o Estado pode realizá-la, sentido que deflui do termo
“exclusividade”. Afirma-se, nessa linha, que o poder de polícia pode ser qualificado como
85 Sobre o tema das carreiras típicas de Estado e, paralelamente, das atividades exclusivas de Estado,
cabe trazer à colação o ensinamento de Juarez Freitas (2009, p. 179-180): o autor, ao afirmar que a
recente crise financeira internacional (iniciada no ano de 2008) deixou transparecer a carência de boa
regulação pelo Estado, o que teria aberto margem para manifestações de distorção do mercado, alerta
para a necessidade de assegurar a continuidade das políticas públicas para além da transitoriedade dos
governos. Nesse sentido: “Em nosso discurso constitucional não há exagero em asseverar que a
própria viabilidade dos deveres prestacionais, por exemplo, depende do efetivo reconhecimento da
indelegabilidade de determinadas funções estatais [...] a continuidade pós governamental, a
fiscalização isenta e o planejamento dotado de racionalidade intertemporal passam a exercer papéis
maiúsculos na efetivação do complexo de princípios e regras que regem as relações de administração
pública. Bem por isso, indispensável a valorização das Carreiras de Estado, robustecidas e
consolidadas em regime institucional que confira os devidos estímulos e as garantias compatíveis”.
(FREITAS, 2009, p. 180). Nesse contexto, Freitas assevera que apenas pessoas jurídicas de direito
público podem exercer competências privativas da Administração, uma vez que se inserem no âmbito
indelegável da utilização de poderes de soberania. (FREITAS, 2009, p. 198). Umas dessas
competências privativas da Administração seria o exercício do poder de polícia, que Freitas (2009)
aborda especificamente no que tange ao desempenho de competências tributárias (o denominado poder
de polícia fiscal). Assim, em conclusão: “[...] o caráter diferenciado das regras disciplinadoras do
exercício do ‘poder de polícia’ - e a fiscalização tributária configura somente uma das espécies -,
também implicou a peculiar condição jurídica dos servidores incumbidos de representar o Estado no
manejo dos instrumentos de intervenção reguladora na esfera de interesses particulares. Nesse sentido,
o entendimento majoritário nunca deixou de proclamar que o desempenho profícuo do ‘poder de
polícia’ reclama, em face das injunções políticas e das sedições do mundo do mercado, uma blindagem
em torno do servidor, que só garantias do cargo de carreira estatutária podem erigir”. (FREITAS,
2009, p. 192).
67
atividade típica, porém, não necessariamente exclusiva. Daí porque determinadas parcelas
dessa atividade são transferíveis a particulares, outras não86.
Por outro lado, a qualificação do poder de polícia – ou, pelo menos, de algumas
parcelas dessa função estatal - como atividade típica encontra fundamento na Constituição,
que não veda, de modo genérico, a sua delegação. Isso não impede que normas
infraconstitucionais venham proibir o exercício dessa atividade por terceiros não inseridos na
organização administrativa do Estado, como efetivamente algumas o fazem (vide a Lei de
Parcerias Público-Privadas).
Além disso, o entendimento de que atividades típicas do Estado podem ser prestadas
por entes alheios ao aparelho estatal se aplica aos serviços públicos87, campo de atividade
estatal (típica, assim como o poder de polícia) caracterizado pela natureza prestacional.
Assim, o Estado pode prestar serviços públicos por si mesmo ou promover-lhes a prestação
por meio de entidades ou pessoas estranhas ao aparelho administrativo88, desde que tal
solução atenda ao interesse público e o traslado da incumbência de prestar serviços públicos
ocorra de acordo com as normas e por via dos instrumentos jurídicos adequados (por
exemplo, concessão e permissão, a teor do art. 175 da CR)89.
86 A identificação de quais atos expressivos do poder de polícia são delegáveis a particulares será
abordada no Capítulo 7 deste trabalho.
87 Ressalvam-se, na ordem constitucional brasileira, serviços como educação (vide art. 205, CR∕88) e
saúde (art. 197, CR∕88), que tem a titularidade e a execução compartilhada entre Estado e sociedade.
88 Alerta-se que nem sempre é possível delegar a prestação de serviços públicos. Sem aprofundar a
discussão sobre o tema, devido ao escopo deste trabalho, cita-se José dos Santos Carvalho Filho (2011,
p. 299), que classifica os serviços públicos como delegáveis e indelegáveis. A primeira categoria
(serviços delegáveis) seria composta pelos serviços que, por sua natureza, ou em razão de previsão da
ordem jurídica, comportam execução pelo Estado ou por particulares colaboradores. Os serviços
indelegáveis seriam aqueles cuja execução apenas pode ser realizada pelo Estado, diretamente.
Exemplos destes últimos serviços seriam a defesa nacional e a segurança interna.
89 Nesse sentido, Bandeira de Mello (2010, p. 285). É este autor quem destaca que nas hipóteses em
que o Estado não detém exclusividade do serviço, não cabe delegar sua prestação a terceiros, uma vez
que o desempenho da atividade prescinde do traslado da incumbência de prestá-la. Com essas
considerações, Bandeira de Mello (2010, p. 286-287) concebe três categorias de serviços públicos: 1)
os serviços de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, ou seja, serviços cujo desempenho não
pode ser delegado por concessão, permissão ou autorização, a exemplo, do serviço postal e do correio
aéreo nacional, nos termos do art. 21, inciso X, da CR; 2) serviços que o Estado tem obrigação de
prestar e obrigação de conceder: campo de serviços que o Estado é obrigado a prestar por si próprio ou
por meio de criatura sua, além de ter que oferecê-los em concessão, permissão ou autorização, a fim de
cumprir o princípio da complementaridade estre os sistemas privado, público e estatal, nos termos do
art. 223 da CR. É o caso dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, previstos no art. 21,
inciso XII, alínea a, da CR; 3) serviços que o Estado tem a obrigação de prestar, mas sem
exclusividade, categoria que engloba os serviços não exclusivos (educação, saúde, assistência e
previdência social) e aqueles cuja prestação é delegada por meio de concessão, permissão ou
autorização, a exemplo dos já citados serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, dos
serviços de telecomunicações (art. 21, XI), dos serviços de energia elétrica (art. 21, XII, b) e dos
serviços de navegação aérea e aeroespacial (art. 21, XII, c).
68
Essencialmente, portanto, a execução das atividades reputadas “típicas de Estado”,
incluindo o poder de polícia, dependerá do regime constitucional, em primeiro lugar, e
infraconstitucional incidente no caso. Com efeito, verifica-se que a defesa de que poder de
polícia é atividade indelegável, supostamente por ser exclusiva de Estado, está calcada em
normas constitucionais e legais que disciplinam específicos ramos ou manifestações dessa
atividade, como é o caso do poder de polícia fiscal e a da hipótese de vedação do desempenho
dessa atividade por particulares no âmbito dos contratos de parceria público-privada, nos
termos da Lei nº 11.079/2004. Não se visualiza na Constituição, portanto, cláusula geral
impeditiva da delegação dessa atividade.
4.6.1. Sobre o conceito de autoridade pública.
No tópico anterior, viu-se que a defesa da indelegabilidade de determinadas atividades
estatais, incluindo o poder de polícia, está ligada à natureza das atribuições expressas: não só
típicas como (em tese, no caso do poder de polícia) também exclusivas de Estado. Para essa
linha de entendimento, tais atividades apenas podem ser executadas por quem esteja investido
na condição de autoridade pública. Razão pela qual dedicam-se as linhas seguintes ao exame
do significado dessa expressão.
Dolors Canal i Ametller (2003, p. 196-197) noticia que duas são as características
geralmente concebidas para o conceito de autoridade em sentido amplo: reconhecimento
social e as ideias de superioridade e prestígio. Assim, são autoridades as pessoas ou grupos
que gozam de prestígio social, em especial, em virtude da sabedoria que se lhe reconhecem,
em razão da qual endossam ou ratificam atos de terceiros. Mais do que isso: com fundamento
na teoria política, a autora propõe a distinção entre autoridade e poder, no sentido de que, ao
contrário deste último, autoridade não se recebe, é adquirida, e, consequentemente,
socialmente reconhecida. O poder pode ser delegado; a autoridade, não. Logo, não se investe
uma pessoa ou grupo em autoridade, apenas se lhe reconhece tal autoridade (AMETLLER,
2003, p. 201-202).
Por outro lado, Ametller (2003, p. 203) reconhece que, do ponto de vista estritamente
jurídico, as características de superioridade, sabedoria e reconhecimento social são
insuficientes para caracterizar uma autoridade jurídica (pública)90. Assim:
90 Pode-se dizer, até mesmo, que são características irrelevantes para identificar uma autoridade
pública.
69
“A autoridade necessita do reconhecimento jurídico, ser reconhecida pelo
Direito, adquirindo com ele a natureza de autoridade jurídica. Somente a
partir da norma legal é que a autoridade adquire legitimidade jurídica, é
autoridade legítima e não simplesmente autoridade efetiva”. (AMETLLER,
2003, p. 203)91.
Nota-se, aqui, que a Ametller pressupõe a existência de autoridade prévia ao
reconhecimento jurídico. Essa é a razão pela qual fala em reconhecimento de autoridade pelo
Direito. Portanto, ao Direito não caberia conferir autoridade a alguém ou a um grupo, mas
reconhecer a autoridade a quem já a possui antes mesmo da legitimação jurídica. A razão para
esse entendimento está no significado da palavra autoridade, que a autora busca na raiz
etimológica romana (auctoritas). Nesse sentido, tem autoridade quem, por sua iniciativa ou
por ratificação legítima, embasa, garante, fundamenta atos de potestade, ou, em outras
palavras, de poder constituído.
Assim:
A autoridade é, junto com o poder, uma das vias de operação sobre as
condutas dos outros. Por poder se entende a possibilidade direta ou indireta
de determinar a conduta dos demais independentemente de sua vontade [...]
A autoridade, pelo contrário, condiciona a vontade alheia, isto é, induz a
seguir uma opinião ou uma conduta, mas oferece a possibilidade de não
segui-la: se relaciona, portanto, com a liberdade de escolha. [...] O poder se
caracteriza, em suma, por possuir à sua disposição meios de coação, o que
não se passa com a autoridade, que se sustenta na posse de qualidades
valiosas de ordem espiritual, intelectual ou moral. (AMETLLER, 2003, p.
204-205)92
Prosseguindo em suas considerações, Ameteller (2003, p. 200) explicita que com o
advento do Estado, a partir da institucionalização da sociedade, surge a forma moderna de
autoridade. A autoridade passa a ser atribuída ao Estado, expressando-se por meio de sua
soberania, entendida como máximo poder de império. Com esteio nos ensinamentos de Max
91 Tradução livre do espanhol “La autoridad necesita además el reconocimiente jurídico, ser
reconocida por el Derecho, adquiriendo con ello la naturaleza de autoridad jurídica. Sólo a partir de la
norma legal, la autoridad adquiere su legitimidad jurídica, es autoridad legítima y no simplemente
autoridad efectiva”.
92 Tradução livre do espanhol “La autoridad es, junto con el poder, una de las vías para operar sobre
la conducta de otros. Por poder se entiende la possibilidad directa o indirecta de determinar la
conducta de los demás sin consideraciones a su voluntad [...] La autoridad, por el contrario, condiciona
la voluntad ajena, es decir, inclina a seguir una opinión o una conducta pero ofrece la possibilidad de
no seguirla; se relaciona, pues, con la liberdad de eleción. [...] El poder se caracteriza, en suma, por
tener a su disposición medios de coacción, no así la autoridad, que se basa en la posesión de cualidades
valiosas de orden espiritual, intelectual o moral”.
70
Weber, a autora (AMETLLER, 2003, p. 207) explicita que o “Estado Moderno” 93 tem como
fundamento o surgimento e a consolidação de uma organização concreta, de índole
burocrática. Suas características definidoras são, de um lado, a especialização no
conhecimento técnico, e, de outro, sua estrutura interna objetivamente desenhada pela lei a
partir de critérios racionais: exercício de funções racionalmente distribuídas dentro de
concreto âmbito de competências, com a atribuição de deveres, mas também de poderes e
meios de coação para o exercício das funções. Desse modo: “A autoridade do Estado moderno
e de sua organização surge, portanto, da norma jurídica, do Direito em sentido estrito, que lhe
outorga a necessária racionalidade e legitimidade”. (AMETLLER, 2003, p. 207).
Mais do que isso, pressupõe-se que no Estado Moderno a autoridade nasce da ordem
jurídica, cuja soberania é universal e vincula não só os cidadãos, mas também os órgãos
superiores do poder estatal.
É dentro dessa concepção que Ametller (2003, p. 211-212) divisa dois tipos de
autoridade pública no âmbito da Administração: a primeira seria a autoridade orgânica
(também denominada formal, legal ou subjetiva). Essa autoridade se aproxima, mas não se
limita - já que também engloba os cargos políticos - do conceito de servidor público em
sentido formal: “servidor de carreira”94 submetido a regime estatutário de função pública ao
qual é atribuído um cargo dentro da organização administrativa do Estado e que exerce a
competência que o ordenamento jurídico estabelece. A superioridade desse servidor na
organização administrativa estatal confere a ele autoridade.
Há, por outro lado, a autoridade funcional (material ou objetiva). Esta decorre da
especialização técnica de determinados servidores, com fundamento na qual se lhes outorga
autoridade (AMETLLER, 2003, p. 214). A autoridade, aqui, está fundada nos conhecimentos
técnicos ou perícia e não somente na titularidade de cargo público:
Não se ostenta autoridade inerente ao cargo ocupado ou do qual é titular; é
autoridade pelo saber especializado que ostenta pelo reconhecimento social,
institucional e jurídico que se tem. É autoridade em sua acepção originária,
93 Esse é, na visão da autora, o modelo de Estado que emerge da moderna articulação público-privada
no controle da técnica e dos riscos por ela gerados, distinguindo-se do Estado Social (AMETLLER,
2003, p. 71) - na medida em que se retira do desempenho de determinadas funções, em especial, as
prestacionais, e reforça o desempenho de outras, como a supervisão, o controle e a direção - e também
do Estado Liberal de Direito (AMETLLER, 2003, p. 8).
94 No contexto tratado, a expressão “servidor de carreira” pode ser traduzida como servidor ocupante
de cargo público efetivo.
71
ou seja, por ostentar o saber especializado e as faculdades decisórias [...]
(AMETLLER, 2003, p. 217)95
Partindo das concepções da autora, é possível entender que a autoridade formal não
pode ser outorgada a terceiros não inseridos na organização administrativa estatal, pois
inerente a esta. No entanto, a autoridade material, por pressupor domínio da técnica na
consecução do interesse público, domínio este não exclusivo da Administração, poderia ser
reconhecida a particulares não inseridos na Administração Pública. No mesmo sentido estão
as considerações de Gardella (2003, p. 42), para quem as limitações técnicas da
Administração, que se vê diante de conhecimentos multifacetados e múltiplos em um contexto
de aumento dos riscos criados pelas atividades particulares, que não mais conhecem fronteiras
territoriais (especialmente no que tange às atividades ligadas ao meio ambiente natural),
somadas a fatores como a globalização e as exigências de liberalização dos mercados,
contribuem para diminuição da capacidade real de intervenção do Estado sobre a esfera
privada por meio das técnicas tradicionais de polícia – genericamente, fiscalização, sanção e
regulação – e favorecem o movimento estatal, cada vez mais intenso, em prol das parcerias
com particulares para o desenvolvimento de atividades de interesse público96.
Esse o contexto em que se desenvolvem as considerações sobre a possibilidade de o
Estado delegar a particulares o exercício de atos jurídicos expressivos de poder de polícia: de
um lado se coloca a autoridade pública, formal, que cada vez menos domina a expertise
necessária ao bom desempenho de atividades de interesse da coletividade, a qual, por sua
característica plural e diversa, demanda cada vez mais dos poderes públicos. De outro lado, a
sociedade, que possui a autoridade técnica, material, mas que não ostenta o caráter de
autoridade pública necessário ao exercício de determinadas atribuições estatais típicas,
incluindo aquelas relativas ao poder de polícia. Daí a necessidade de construção das bases
95 Tradução livre do espanhol “No se ostenta autoridad inherente al cargo que se ocupa o del que se es
titular; se es autoridad por el saber especializado que se ostenta y por el reconocimiento social,
institucional y jurídico que se tiene. Se es autoridad en su acepción originaria, es decir por ostentar el
saber especializado y las faculdades decisorias [...]”.
96 Em sentido semelhante, Pedro Gonçalves (2008, p. 15), para quem: “A conjugação da crua
realidade dos ‘défices públicos’ com a ‘ideologia imperante’, a qual vem sublinhando a ‘glorificação
da eficiência económica do sector privado’, assume, neste cenário, um relevo decisivo. Mas a ideia e a
lógica do ‘regresso ao mercado’ baseiam-se também na própria complexidade dos problemas do nosso
tempo, os quais não se deixam solucionar sem o recurso de conhecimentos e capacidades
(empresariais, científicas e tecnológicas) de que o Estado efectivamente não dispõe. Neste sentido, diz-
se, com razão, que o processo de privatização não tem sido só motivado por razões ideológicas, mas
também por decisivos factores de ordem pragmática”.
72
teóricas para o traslado de poderes públicos de autoridade a particulares, por meio da
delegação, conforme será mais bem explicitado nos capítulos seguintes.
73
5. OS ATOS POR MEIO DOS QUAIS SE MANIFESTA O PODER DE
POLÍCIA.
A atividade estatal de polícia se manifesta por meio da emissão de atos jurídicos, das
mais variadas naturezas, que criam ou modificam relações. Além dos atos jurídicos, a doutrina
concebe, no que tange ao desempenho do poder de polícia, a realização de atos materiais ou
técnicos, os quais, por si só, não produziriam efeitos jurídicos, apesar de serem regulados pelo
Direito. A realização de tais atos materiais tem como finalidade, na lição corrente da
doutrina97, concretizar a emissão dos atos jurídicos próprios do poder de polícia, ou suceder a
emissão desses atos jurídicos, de modo a prover o adequado desempenho dessa função estatal.
A investigação realizada neste trabalho está centrada na possibilidade de o Estado
transferir a particulares a execução de atos jurídicos expressivos do poder de polícia, pois,
quanto aos atos materiais, a doutrina tem defendido sem maiores divergências o cabimento de
seu desempenho por particulares. O cerne da discussão, portanto, está na viabilidade jurídica
de o Estado transferir a particulares o desempenho de atos que expressam o próprio núcleo da
atividade de polícia, no sentido de terem aptidão para afetar diretamente a esfera
juridicamente protegida dos cidadãos destinatários dos comandos estatais. Não se olvida que a
própria distinção entre atos materiais e atos jurídicos pode se mostrar muito mais
problemática nas situações concretas do que o entendimento corrente faz supor, de modo que,
em situações limítrofes, pode ser impossível apartar uma categoria de ato da outra. Entretanto,
como o foco da investigação são os atos jurídicos expressivos do poder de polícia estes serão
analisados em primeiro lugar e com mais detalhamento. O exame do regime dos atos
materiais será sempre realizado em comparação com o regime dos atos jurídicos de polícia.
5.1. As estratégias ou modos de manifestação do poder de pol ícia e sua
distinção em relação aos atos de polícia especificamente considerados.
Antes de tratar propriamente dos atos por meio dos quais se expressa o poder de
polícia, necessário realizar esclarecimento conceitual, no sentido de distinguir as estratégias
de manifestação dessa atividade estatal – que também podem receber a denominação de
97 Por todos, cf. Celso Antônio Bandeira de Mello (2014).
74
“modos de manifestação do poder de polícia” dos atos especificamente considerados, os quais
constituem meios de veiculação dessa atividade do Estado.
Esse alerta é feito por Thiago Marrara (2014, p. 569), segundo o qual, no plano
operacional, a polícia administrativa abrange três tipos de estratégias (ou modos de
manifestação), todas elas vinculadas à tutela dos interesses primários do Estado e
demandantes de legitimação democrática; são elas: 1) a prevenção, que visa orientar o
comportamento dos particulares no intuito de evitar lesões ao interesse público e, com isso,
resguardar direitos, expressando-se por meio da emissão de atos liberatórios como as licenças
e as autorizações. 2) a fiscalização, que abrange um conjunto de atividades ordenadas à
verificação do cumprimento da legislação de polícia e ao fornecimento, à Administração, de
dados necessários à prevenção e à repressão às infrações contra a ordem jurídica; 3) a
repressão, que engloba a criação e imposição de sanções aos infratores das normas de polícia.
Para Marrara, a repressão envolve, ainda, a celebração de acordos, integrativos ou
substitutivos, no exercício do poder de polícia, a exemplo dos compromissos administrativos
de cessação de infrações frequentemente empregados no âmbito do direito ambiental e do
direito da concorrência. São essas as estratégias estatais que englobam o conjunto de atos e
medidas destinados a limitar a liberdade e a propriedade em prol da realização do interesse
público.
Basicamente, portanto:
As estratégias de polícia devem ser sempre públicas e, virtude da
necessidade de se legitimá-las democraticamente. Elas são dependentes de
uma escolha do povo por meio de seus representantes, expressa em políticas
e assentada em normas legais. Reitere-se: a escolha das estratégias demanda
alta legitimação e isso exige constante presença estatal, viabilizada pela
manifestação do Legislativo. (MARRARA, 2014, p. 570)
Antes de prosseguir, e adiantando considerações que abaixo serão esclarecidas, afirma-
se que o Estado não pode delegar a particulares a incumbência de criar as estratégias de
polícia, muito menos, nesse âmbito, trespassar a capacidade de exercer amplas competências
decisórias, uma vez que, a toda evidência, falta aos particulares legitimidade democrática para
executar tais missões. No entanto, nega-se que a atuação dos particulares fique cingida apenas
à execução material da atividade de polícia. Defende-se participação mais ampla, que
abrange, até mesmo, o exercício de verdadeiros poderes de autoridades, mas sempre dentro
das estritas balizas legais editadas pelo Poder Público.
75
Retomando a distinção entre estratégias e atos de polícia específicos, estes os
verdadeiros objetos da delegação, destaca-se que para Onofre Alves Batista Júnior (2001), os
distintos modos de manifestação do poder de polícia consistem em: imposição de deveres,
consentimento de polícia, fiscalização e sanção. Em classificação parcialmente distinta, Flávio
Unes Henriques Pereira (2013) arrola como espécies de manifestação do poder de polícia
administrativa, a regulação, a fiscalização (dentro da qual está o consentimento de polícia) e a
sanção. A esses modos de manifestação corresponde o conteúdo das estratégias de polícia
arroladas por Marrara (prevenção, fiscalização e repressão), como maior ou menor
aproximação.
A seu turno, destacando o caráter procedimental do poder de polícia, Moreira Neto
(2014, p. 534) assevera que essa atividade estatal se desenvolve em quatro fases, que
denomina “ciclo de polícia”. A esse ciclo correspondem os quatro modos de atuação da
polícia administrativa: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de
polícia e a sanção de polícia98.
Observa-se que Batista Júnior, Flávio Unes e Moreira Neto estão tratando das
estratégias de polícia, ou seja, do aspecto macro dessa atividade estatal, e não sobre os atos
por meio dos quais essa atividade se manifesta, sobre os quais recai a delegação.
Vale dizer, a implementação das estratégias de polícia citadas depende da adoção de
ações concretas pelo Estado, momento em que ganham relevo os atos por meio dos quais se
manifesta o poder de polícia, os meios de ação do Estado para concretização do poder de
polícia. Assim, de acordo com Marrara (2014, p. 569-570), o poder de polícia se expressa por
98 Segundo Moreira Neto (2014, p. 535) a ordem de polícia é o preceito legal básico, que possibilita e
inicia o ciclo de atuação, servindo de referência específica de validade e que satisfaz a reserva
constitucional de que trata o inciso II do art. 5º da Constituição da República (ninguém é obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei). Verifica-se, portanto, que Moreira Neto não
admite que a ordem de polícia decorra de normas administrativas, de status infralegal. Esta é posição à
qual não se adere neste trabalho, pois se entende que o poder de polícia, mormente quando visualizado
em seu sentido amplo, engloba a emissão de atos legislativos e infralegais. Ressalta-se, ainda na visão
do autor, que a ordem de polícia se revela na imposição de restrições (comandos de não fazer) e de
condicionamentos (comandos de fazer). Às restrições correspondem os “preceitos negativos
absolutos”: veda-se aos particulares o exercício de determinadas atividades e determinados usos da
propriedade privada, por serem nocivas ao interesse público. Aos condicionamentos estão ligados os
“preceitos negativos com reserva de consentimento”, por meio dos quais são vedados, apenas a
princípios, determinadas atividades e determinados usos da propriedade privada, cabendo à
Administração avaliar casuisticamente as situações de fato e de direito, com o fim de consentir ou
negar tais usos e atividades. A anuência da Administração, nesse caso, se manifesta por meio da
emissão dos atos administrativos autorização ou licença, que decorrem da “efetiva compatibilização do
uso de certo bem ou do exercício de certa atividade com o interesse público” (MOREIRA NETO,
2014, p. 535). O final do ciclo de polícia pode ocorrer com a imposição de sanção, resultante, por
vezes, da falha da fiscalização preventiva, ou independentemente desta, e diante da constatação da
ocorrência de infração à ordem de polícia. A sanção é, assim, ato unilateral, extroverso e interventivo.
76
meio de: 1) atos normativos, legais e administrativos, que preveem as hipóteses e condições
de emissão de autorizações e licenças, tipificam infrações e sanções, cumprindo salientar que,
na ordem jurídico-constitucional brasileira, apenas as normas legais podem inovar a ordem
jurídica, criando direitos e instituindo obrigações, cabendo às normas administrativas
regulamentá-las, assegurando-lhes fiel execução99; 2) atos administrativos, que “viabilizam,
modificam, condicionam ou impedem o exercício de direitos” (MARRARA, 2014, p. 570), a
exemplo das licenças, das autorizações e das sanções, podendo ser praticados mediante atos
mecânicos, elétricos ou digitais intermediados por máquinas, como os sinais de trânsito; 3)
atos técnicos ou opinativos, abrangendo os laudos, pareceres e “outros atos informativos
necessários à seleção, à preparação e elaboração de medidas preventivas ou restritivas”
(MARRARA, 2014, p. 570), como a inspeção veicular, os pareceres econômicos sobre as
operações concorrenciais e os laudos técnicos sobre medicamentos pendentes de registro; 4)
atos materiais ou de mera execução, consubstanciados, por exemplo, na coleta de documentos,
na destruição de objetos ilícitos, na demolição de obras irregulares, e que constituem suporte à
realização da atividade jurídica de polícia; trata-se, portanto, de atos instrumentais,
preparatórios ou sucessivos, aos atos jurídicos de polícia; 5) acordos administrativos, ou
contratos sobre o exercício de poderes públicos, inseridos no movimento de concertação na
administração pública, viabilizando o exercício do poder de polícia por meio de negociação e
ajustes de obrigações recíprocas100.
Os ensinamentos destacados não divergem da lição corrente na doutrina, já
explicitada, que entende que o poder de polícia se manifesta por meio de atos normativos –
como leis, decretos, portarias e instruções – ou por meio de atos administrativos – como os de
fiscalização – ou de atos materiais que consubstanciam a aplicação da lei aos casos concretos,
conforme se observa na dissolução de passeata causadora de tumulto ou na apreensão de
mercadorias em desacordo com as normas sanitárias. Estes atos concretos e específicos são
emitidos para o cumprimento de preceitos legais e regulamentares, ainda que não se descarte a
possibilidade de a função administrativa ter como fundamento direto a própria
Constituição101. Cuida-se, por exemplo, de “injunções concretas” (BANDEIRA DE MELLO,
99 Sobre a extensão da função normativa da Administração Pública, conferir, por todos, Fabrício
Motta (2007).
100 Diante da multiplicidade de atos, jurídicos e materiais, e negócios jurídicos mencionados, este
trabalho centrará a abordagem sobre os atos jurídicos que compõem as estratégias de polícia, os quais
são objeto precípuo de análise da doutrina que já tratou do tema, de acordo com explanações infra.
101 Alexandre Santos Aragão (2014, p. 10), ao tratar da ideia de limitação administrativa à liberdade e
à propriedade, cujo conteúdo, em sua perspectiva, não diverge substancialmente do de poder de
polícia, estipula que esse é um dos principais instrumentos de harmonização dos direitos e interesses –
77
2014, p. 853) destinadas a dissolver passeata causadora de tumulto ou fechar estabelecimento
comercial que desrespeita normas sanitárias, após ser devidamente notificado. Aqui, não se
trata propriamente de atos jurídicos, mas sim de atos materiais que visam dar concreção aos
atos jurídicos de polícia.
Destaca-se que a compreensão das distintas ações por meio das quais se manifesta o
poder de polícia é de extrema importância para o exame de quais de suas medidas são
passíveis de traslado a particulares, já que nem todas elas revelam o exercício de funções
inalienáveis do Estado, conforme se verá adiante. Neste ponto, vale ressaltar, mais uma vez,
que a discussão deste trabalho está centrada da possibilidade de o Estado transferir a
particulares o exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia, em síntese, atos por
meio dos quais serão criadas ou modificadas relações. É amplamente albergado pela doutrina,
hoje, o entendimento de que a execução de atos materiais, de suporte ao exercício do poder de
polícia, pode ser transferida a particulares.
5.1.1. Os atos jurídicos por meio dos quais se expressa a estratégia de
“regulação”.
Bandeira de Mello (2014, p. 840) aduz que os atos jurídicos expressivos do poder de
polícia se revelam tanto por meio de atos gerais e abstratos quanto por meio de atos concretos
e específicos.
Em se tratando da primeira categoria, ou seja, a dos atos gerais e abstratos, o exercício
poder de polícia se manifesta por meio da edição de leis, atos inovadores da ordem jurídica,
aptos a criar direitos e obrigações, que limitam a liberdade e a propriedade.
Ainda no que toca aos atos gerais e abstratos, a polícia administrativa, parcela da
função administrativa do Estado, se manifesta por meio da edição de regulamentos
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 853), categoria genérica que abarca os atos normativos
de status infralegal, como decretos, portarias, instruções e resoluções102, abrangendo, por
individuais ou coletivos em sentido amplo -, privados e públicos potencialmente conflitantes na
sociedade. Para autor, algumas das hipóteses de limitação constam já da Constituição, o que se aplica,
por exemplo, à necessidade de autorização judicial para a quebra do sigilo de correspondência (CR,
art. 5º, inciso XII), que decorreria da Constituição independentemente de qualquer intermediação
legislativa.
102 Bandeira de Mello (2014, p. 370) denomina “regulamentos” a multiplicidade de atos normativos
infralegais destinados a assegurar a fiel execução das leis e que, no âmbito da Administração Pública
Federal, são editados com fundamento no inciso IV do art. 84 da Constituição da República. Na lição
do autor, os regulamentos cumprem duas funções principais: 1) limitar a discricionariedade
administrativa, dispondo sobre o modo de atuação da Administração perante os cidadãos, quando a lei
78
exemplo, atos que disciplinam a emissão de ruídos produzidos por estabelecimentos
comerciais em determinados períodos do dia, os quais visam, como fim genérico, assegurar a
fiel execução das normas legais. Trata-se, neste caso, de normas administrativas – e, como
tais, subordinadas às leis -, que veiculam disposições genéricas destinadas a disciplinar as
atividades e as propriedades dos cidadãos.
Salienta-se que os deveres de polícia se vinculam à legalidade (leia-se, juridicidade) e,
assim, sua imposição pode dar-se apenas por meio de norma jurídica, seja o ato normativo
geral e abstrato produzido pelo legislador ordinário, seja norma de status constitucional, da
qual, já se afirmou, o administrador público pode retirar fundamento direto para sua atuação, a
depender do contexto fático e normativo subjacente à situação concreta.
Aos atos normativos infralegais que veiculam normas de polícia caberá respeitar os
atos de hierarquia superior, garantindo-lhes a fiel execução, já que a lei não tem de fornecer, e
geralmente não fornece, critérios exaustivos de decisão para o caso concreto. No entanto, é
necessário, ao menos, uma tipificação legal mínima que ofereça subsídios à decisão do
administrador público. A outra conclusão não conduz o disposto no inciso II do art. 5º da
Constituição da República, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo
a não ser em virtude de lei.
Para Onofre Alves Batista Júnior (2001, p. 186), entre os modos de manifestação do
poder de polícia está a imposição de deveres, categoria que corresponde ao que Flávio
Henrique Unes Pereira (2013) denomina de “regulação”. Pode-se dizer que regulação consiste
na função de editar atos normativos gerais e abstratos limitadores ou condicionantes da
liberdade ou propriedade privada em prol do interesse público e que abarca a elaboração de lei
pelo legislador ordinário e a produção de atos normativos infralegais pelo administrador
(PEREIRA, 2013, p. 73). Um importante destaque feito por Pereira (2013, p. 74) diz respeito
à extensão da discricionariedade na edição de atos normativos infralegais, que, conforme
ressalta, está contida no âmbito da legalidade, já que ocorre a partir de autorização e balizas
legais. Assim, a lei confere ao administrador mais de uma opção válida e igualmente
qualificada para escolha, cabendo a ele demonstrar que sua opção está inseria na autorização
legal. Essa margem de escolha é especialmente verificável nas matérias ou situações que
não houver pormenorizado seu proceder, bem como por meio da caracterização de situações ou
comportamentos enunciados na lei mediante conceitos vagos; 2) decompor analiticamente o conteúdo
de conceitos sintéticos contidos em lei, hipótese em que exercem função exclusivamente interpretativa,
de explicitação do conteúdo da norma legal. Destaca-se, por outro lado, que tais regulamentos
constituem expressão do desempenho da função normativa da Administração Pública, sobre a qual
recomenda-se a leitura, em abordagem aprofundada e multifacetada da doutrina pátria, de Motta, F.
(2007), Grau (2000), Aragão (2002) e Guerra (2011).
79
exigem parâmetros técnicos ou cuja dinâmica própria inviabilize disciplina legal minuciosa
(PEREIRA, 2013, p. 74-75). Imagine-se, por exemplo, lei que regule a emissão de poluentes
por determinada atividade industrial em área urbana: não é recomendável nem possível que o
legislador estabeleça parâmetros fixos e exaustivos acerca da emissão desses poluentes, tendo
em vista, principalmente, as constantes alterações da técnica e das demandas do interesse
público concernentes à matéria. Assim, conforme destacado por Pereira (2013, p. 75), é
indispensável a previsão legal sobre qual órgão ou entidade é competente para expedir atos
normativos. Ademais, seja em decorrência de a matéria envolver parâmetros técnicos, seja em
razão da impossibilidade de a lei ordinária antecipar as hipóteses de incidência, diante da
natureza complexa e dinâmica da matéria regulamentada, admite-se que ato infralegal (um
regulamento, portanto) discipline os condicionamentos técnicos necessários ao cumprimento
da finalidade legal.
5.1.2. “Fiscalização” como estratégia de polícia e os atos jurídicos por
meio dos quais se expressa.
De acordo com Bandeira de Mello (2014, p. 854), a atividade de polícia também se
expressa por meio de atos de fiscalização, mediante os quais a Administração Pública protege
o interesse público de danos provenientes da ação de particulares. Trata-se de monitoramento
da conduta dos particulares de modo a verificar se elas se amoldam, ou não, aos ditames da
ordem jurídica, nos mais variados campos de atividade. A fiscalização se destina, portanto, a
verificar a consonância das condutas dos particulares, e também do exercício de suas
propriedades, face à ordem normativa vigente. Tratando especificamente da fiscalização
tributária, faceta do denominado poder de polícia fiscal, porém em considerações que se
aplicam ao desempenho do poder de polícia em geral, Batista Júnior (2001, p. 225) afirma que
a fiscalização decorrente do exercício do poder de polícia estatal tem como funções, de um
lado, prevenir infrações à ordem jurídica e, de outro, “preparar” a repressão às infrações à
legislação, já que visa constatar os atos ofensivos à ordem jurídica. É que acontece, por
exemplo, quando da instalação de radares de trânsito em vias urbanas, com o fim de
monitorar, acompanhar e coibir condutas nocivas à coletividade, perpetradas pelos motoristas,
como a direção em velocidade superior à permitida para a via.
Conforme assevera Pereira (2013, p. 76) a fiscalização é uma decorrência da
regulação, já que a competência para regular determinada matéria implica atuação
administrativa voltada à verificação e ao monitoramento das atividades reguladas. Ainda de
80
acordo com Pereira (2013, p. 77), dois pontos devem ser destacados no que tange à atividade
fiscalizadora do Estado inserida no âmbito do exercício do poder de polícia: 1) por se tratar de
atividade essencialmente condicionante ou limitadora da ação privada, é indispensável que a
fiscalização seja realizada conforme procedimentos claros e pré-definidos, em obediência ao
princípio da segurança jurídica e considerando que do monitoramento dos particulares pode
resultar a imposição de sanção; 2) a fiscalização constitui atividade de aplicação normativa
sobre fatos e atos já ocorridos – consiste na verificação da correção, ou incorreção, das
condutas daqueles que se submetem às normas de polícia administrativa -, assim, salvo
previsão legal expressa em contrário, não há espaço para exercício juízo discricionário pelo
administrador público, ou por quem lhe faça as vezes, no exercício da função de fiscalização.
Em outras palavras, a fiscalização decorre do exercício de competência vinculada pela
Administração.
Ressalta-se, ademais, que a competência para fiscalizar o cumprimento da legislação
pelos cidadãos, regra geral, é do ente político responsável pelo bem jurídico a ser protegido.
Tratando-se, por exemplo, do exercício do poder de polícia concernente a posturas urbanas,
cabe ao Município regular e executar as normas pertinentes.
Ainda no que tange à fiscalização de polícia, destaca-se faceta que alguns autores,
como Batista Júnior (2001, p. 207-208) e Moreira Neto (2014, p. 535) abordam
separadamente: o denominado “consentimento de polícia”. Deve-se recordar que o poder de
polícia é entendido como poder negativo, já que pode operar por meio da exigência de
abstenções dos cidadãos. Essas exigências, por sua vez, visam evitar as consequências
gravosas que o exercício, pelos particulares, da liberdade e da propriedade podem provocar
sobre os interesses da coletividade. Há dois cenários a explorar nesse contexto: 1) o comando
legal impõe ao particular um dever de não fazer, incumbindo à Administração a atribuição de
verificar o atendimento dos requisitos previstos em lei, de modo a habilitá-lo a realizar
determinada conduta ou investi-lo em dada posição jurídica, como se verifica na emissão, pela
Administração, da licença para edificar; 2) a lei, inicialmente, impõe ao particular um dever
de não fazer, porém, concedendo à Administração margem de liberdade para apreciar a
conveniência e a oportunidade da prática de determinado ato pelo particular, momento a partir
do qual, se a manifestação da Administração for positiva, ele se torna habilitado a realizar
conduta inicialmente vedada, como é o caso da autorização para porte de armas. Ambas as
espécies de atos administrativos, autorização e licença, são expressões do consentimento de
polícia, e, assim, decorrentes do exercício da fiscalização pela Administração. Com efeito, a
emissão desses atos resulta de prévio monitoramento dos comportamentos dos cidadãos pela
81
Administração, no âmbito do exercício de competência vinculada (licença) ou de
discricionariedade (autorização). Nesse sentido, o entendimento de Pereira (2013, p. 77), para
quem “[...] as autorizações ou licenças são manifestações também da atividade fiscalizadora,
pois decorrem da verificação do cumprimento dos condicionamentos dispostos nas normas de
polícia administrativa [...]”. Na licença, observa-se a existência de um direito do particular
pré-existente à emissão de consentimento pela Administração, sendo que essa anuência “[...]
provém da constatação de que as barreiras opostas ao exercício desse direito foram removidas.
Assim, a licença não gera direitos, apenas os declara exequíveis” (BATISTA JÚNIOR, 2001,
p. 208). Na autorização, a seu turno, não há direito pré-existente à atividade “[...] este surge ex
novo e o consentimento decorre de um juízo administrativo ‘precário’ e que pode ser revisto e
alterado” (BATISTA JÚNIOR, 2001, p. 208). A autorização, conforme se verifica, decorre do
exercício de discricionariedade pela Administração.
5.1.3. “Sanção” como estratégia de polícia e os atos jurídicos por meio dos
quais se manifesta.
A sanção de polícia decorre da constatação de violações aos deveres legalmente
previstos e é imposta unilateralmente pela Administração. Sancionar é impor a alguém
consequência jurídica desfavorável em razão do cometimento de ilícito, neste caso, ilícito
previsto pela ordem jurídico-administrativa. Como realça Pereira (2013, p. 78), a sanção
decorre do descumprimento de norma de polícia e envolve o exame de legalidade, sem
margem para avaliação de oportunidade quanto à imposição da sanção ou quanto à espécie de
sanção a ser imposta. No mesmo sentido, eventual utilização de termos fluidos, os
denominados conceitos jurídicos indeterminados (a exemplo dos termos “bem comum”,
“interesse público”, “coletividade”), na tipificação de sanções deve guardar relação de
adequação com as condutas defesas. Cabe lembrar, por oportuno, em consonância com Araújo
(1992, p. 79-80), que tais conceitos constituem “modalidade de vinculação”, uma vez que a
indeterminação subsiste enquanto a norma permanece em sua abstração e generalidade; ao ser
aplicada a um caso concreto, diante de específica situação fática, a valoração da norma
permite chegar a uma só decisão.
Por sua vez, há diversas espécies de sanções de polícia, consubstanciadas em atos
especificamente considerados, como a advertência, a multa (sanção pecuniária), a interdição
de atividades, o fechamento de estabelecimentos e o embargo de obra. Destaca-se que a
sanção resultante do descumprimento de um dever de polícia pode ser executada pela própria
82
Administração, independentemente de manifestação autorizativa do Poder Judiciário, desde
que com supedâneo em norma jurídica, o que caracteriza o atributo da executoriedade (ou
autoexecutoriedade). De qualquer modo, frisa-se, a imposição e a execução da sanção devem
sempre observar os princípios da juridicidade e da proporcionalidade, de modo que,
respectivamente, tenham sempre fundamento em lei103 e observem a relação de adequação
entre a ofensividade da infração à ordem jurídica – relacionada à monta do dano ou risco de
dano ao interesse público - e a gravidade da consequência imposta.
Destaca-se, ainda, que a imposição de sanções de polícia implica estrita observância ao
devido processo administrativo, em atenção ao previsto no inciso LV do art. 5º da
Constituição da República, segundo o qual, aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes.
Feitas as considerações sobre as estratégias ou modos de manifestação do poder de
polícia e, também, sobre atos por meio dos quais o poder de polícia se expressa, tendo em
vista a diversidade de categorizações promovidas pelos autores citados, mas visualizando
nelas mais pontos em comum do que divergências, é possível afirmar que o poder de polícia
se manifesta, no plano estratégico, por meio da produção de atos normativos pelo Poder
Público, de status constitucional, legal ou infralegal, na fiscalização ou monitoramento das
condutas dos particulares, da qual decorre a anuência que a Administração confere a
determinadas atividades e usos de propriedade, e na imposição de sanções aos infratores da
ordem jurídico-administrativa.
Nesse sentido, considerando a possibilidade de a Administração transferir a
particulares a incumbência de executar atos jurídicos expressivos do poder de polícia, afirma-
se, desde já, que, de todas os atos por meio dos quais se manifesta esse poder, apenas os atos
fiscalizatórios, incluídos, nestes, os atos de consentimento104, são transferíveis a particulares.
103 É corrente na doutrina o entendimento de que, no âmbito do Direito Administrativo, o princípio da
legalidade não incide com a mesma intensidade quando se trata da tipificação de sanções. Essa é a
lição de Batista Júnior (2001, p. 293), que, abordando especificamente o poder de polícia fiscal,
afirma: “[...] No que diz respeito ao Poder de Polícia Fiscal, já integralmente na seara do Direito
Administrativo comum, também verificamos que o Princípio de Legalidade não tem a mesma pujança,
tendendo os tipos a serem mais abertos do que os relativos às normas de incidência tributária”. Sobre o
assunto, conferir Arêdes (2013), Osório (2000) e Nieto García (2005).
104 Quanto aos atos de consentimento, entende-se que a Administração Pública poderá transferir a
incumbência de emitir licenças e, em tese, autorizações. As últimas, enquanto expressões de
competência discricionária, podem ensejar incabível margem de liberdade decisória aos particulares
delegatários. Nesse contexto, vislumbra-se, no que toca aos atos de consentimento - em especial, as
autorizações -, que, apenas nos estritos termos admitidos no permissivo da delegação e desde que
guiados por critérios técnicos, devidamente demonstrados, é que os particulares poderão exercer
83
A emissão de atos normativos– não pode ser exercida por particulares em razão da
legitimação política que exige; a imposição de sanção não pode ser executada por particulares,
pois está intrinsecamente ligada à própria razão de ser do Estado, especialmente no que toca
ao monopólio da coerção. Assim, a ordem constitucional pátria comporta apenas o traslado
dos atos fiscalizatórios. Tais argumentos serão mais bem desenvolvidos quando do exame dos
entendimentos doutrinários e jurisprudenciais relativos à possibilidade do exercício, por
particulares, dos atos jurídicos expressivos do poder de polícia, em razão de transferência do
Poder Público, no Capítulo 7 deste trabalho.
atribuições relativas ao poder de polícia. As menções à transferência de atos de consentimento neste
trabalho devem ser compreendidas nesses termos.
84
6. PODER DE POLÍCIA E AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA BRASILEIRA.
Tratar da possibilidade e dos limites à delegação de atos jurídicos expressivos do
poder de polícia a particulares demanda a análise do cenário em que se desenvolve a
discussão. Desse modo, necessário se faz evidenciar o contexto jurídico, político e econômico
em que tal debate ganhou fôlego. Assim, será abordada neste capítulo a reforma da
Administração Pública brasileira que teve como repercussões a expressa incorporação do
princípio jurídico da eficiência à ordem constitucional e também a busca cada vez mais
intensa do Estado pelas parcerias, em sentido amplo, com particulares, com o fim de
concretizar os interesses da coletividade. Ambas são motivações para a defesa da
delegabilidade do poder de polícia a particulares.
Alerta-se que qualquer consideração sobre administração pública gerencial, e, em
decorrência dela, sobre eficiência, deve ser entendida sob os seguintes pressupostos: a
Administração desenvolve função, sujeita ao Direito, não há para ela liberdade de atuação
sem supedâneo jurídico, não há poder inerente. Não se admite, assim, que, mediante a
genérica invocação da eficiência como objetivo a ser perseguido, possa desfazer-se do dever
de atender aos interesses da coletividade.
6.1. As transformações da administração pública brasileira: considerações
sobre a transição ao modelo de administração gerencial .
Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 17) assevera que a administração pública
- em sua perspectiva, gestão de interesses gerais constitucionalmente cometida às
organizações políticas -, passou por sucessivas fases evolutivas, sintetizadas em expressões
que evocam o contexto histórico e político de sua manifestação: a do absolutismo, a do
estatismo e a da democracia.
À fase do absolutismo, caracterizada pela prevalência dos interesses do rei em
detrimento dos de seus súditos, o autor dá o nome de “administração regaliana” (MOREIRA
NERO, 2001, p. 17).
À fase do estatismo, identificada pela prevalência dos interesses do Estado,
corresponderia a administração burocrática (MOREIRA NETO, 2001, p.17).
85
Por fim, à fase democrática, em que ascendem como premente os interesses da
sociedade, estaria ligada a administração gerencial.
Quanto à administração burocrática, pode-se dizer que se trata de organização
caracterizada pelo caráter centralizador de suas decisões, pela estrutura hierarquizada dos seus
cargos e pela previsão de regras implementadas no exercício de um controle direto e
intenso105. Destaca-se, nesse modelo de organização, a separação mais nítida entre o público e
o privado, com o afastamento da Administração Pública do processo político partidário, uma
vez que esta se encontra inserida em sistema de total submissão ao texto legal e à excessiva
fixação de regras visando atingir os resultados pretendidos.
Em consonância com o autor (MOREIRA NETO, 2001, p.17), afirma-se que a
transição da administração burocrática para a administração gerencial, no Brasil, está
relacionada ao processo convencionalmente denominado “reforma administrativa”,
desenvolvido em duas etapas: a primeira, constitucional, concluída com a promulgação da
Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, que, entre várias alterações promovidas
no texto da Constituição, introduziu no caput do art. 37, que inaugura o Capítulo dedicado à
Administração Pública, o princípio da eficiência, ao lado dos demais princípios reitores da
Administração: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A segunda etapa, não
concluída e caracterizada pela edição de atos normativos infraconstitucionais (leis ordinárias e
complementares, conforme previsão), visa complementar e dar plena exequibilidade aos
preceitos da reforma106.
É nesse contexto que serão analisadas as transformações da Administração brasileira,
com enfoque na busca pela implementação do modelo de administração pública gerencial,
idealizado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, documento produzido na
105 Nesse sentido, Daniela Mello Coelho (2004, p. 127).
106 Um exemplo é o previsto no §1º do art. 173 da CR, segundo o qual: “§ 1º A lei estabelecerá o
estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços,
dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I - sua função social e
formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de
1998) II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e
obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de
1998) III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios
da administração pública; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) IV - a constituição e o
funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a
responsabilidade dos administradores. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) ”. O
regulamento desta norma constitucional ainda não foi editado.
86
década de 90 pela Administração Federal e traduzido juridicamente na reforma constitucional
e nas leis que a seguiram.
Antes de prosseguir, necessário realizar duas observações: novamente, ressalta-se que
a reforma administrativa não foi finalizada, e, pode-se dizer, ainda está em curso, já que várias
das normas nela concebidas ainda não foram editadas107.
De outro turno, afirma-se que a reforma administrativa ocorreu sem que a
Administração Pública brasileira tivesse se desvencilhado de vícios característicos de modelos
de Estado já ultrapassados, o que é bem evidenciado pelos conhecidos desmandos de
autoridades públicas e pela corrupção endêmica108.
Feita essa advertência inicial, ressalta-se que apenas a partir da década de 30 do século
XX, com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público, em meio ao governo
Getúlio Vargas, se verifica atuação no sentido de implantar um serviço público organizado,
com a previsão, por exemplo, da realização de concurso público e com a fixação de critérios
para a aquisição de bens e serviços. Até então, no contexto de significativa herança histórica,
o poder público brasileiro evidenciou sérios traços de descompromisso com a coisa pública. A
partir da década de 30 do século XX, portanto, novas regras foram sendo elaboradas visando à
melhor estruturação do aparelho do Estado, que, a despeito das incipientes transformações,
ainda era caracterizado pela centralização do poder e pela tomada de decisões administrativas
em nível federal109.
107 Nesse âmbito, cabe ressaltar a lição de Bresser Pereira (2001, p. 23), segundo o qual a reforma
administrativa proveniente da Emenda Constitucional nº 19∕98, não se confunde com a Reforma
Gerencial de 1995, embora dela decorra: a alteração da Constituição, cujo destaque é a inclusão do
princípio da eficiência no rol dos princípios reitores da Administração Pública, provocou mudanças
normativas de monta, mas muitas das mudanças institucionais tiveram caráter infraconstitucional, a
exemplo da introdução na ordem normativa da figura das agências executivas e das organizações
sociais (Lei nº 9.637, de 15 de maio 1998.).
108 Nesse sentido, as acertadas considerações de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 17):
“No Brasil, essa segunda transição juspolítica, da administração burocrática para a gerencial, está
tendo seu início antes que se houvesse completado a primeira [a transição da administração regaliana
para a administração burocrática], pois as atividades e comportamentos do Estado-administrador
continuam aferrados a conceitos e princípios do patrimonialismo, do paternalismo e do
assistencialismo personalizantes e ineficientes, herdados ainda na Colônia e pouco tocados no
Império”.
109 Conforme registrado por Paulo Roberto de Mendonça Motta (2013, p. 82-83), para além da
realidade brasileira, a noção de uma Administração Pública eficiente remonta já à Europa Ocidental do
século XVIII, obviamente, não com os mesmos contornos e com o mesmo teor com o qual se concebe
a eficiência nos dias atuais. De fato, segundo noticia, na Prússia do século XVIII, em razão da
formação de uma incipiente burocracia pública, podia-se discernir preocupações de gestão centradas
no controle, nas finanças públicas e na comunicação das ordens públicas. Em sentido semelhante, o
Relatório World Development Report: The State in a Changing World (1997, p. 79), do Banco
Mundial, que noticia a modernização das administrações públicas de Estados europeus em processo de
industrialização ao longo do século XIX, como França, Prússia e Reino Unido.
87
Pode-se dizer que a grande reforma da Administração Pública brasileira ocorreu com a
edição do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a organização
administrativa da Administração Federal110. Nesse âmbito, a previsão da regência da
Administração Pública pelos princípios do planejamento, coordenação, descentralização,
delegação de competências e controle fez com que ela assumisse feição precipuamente
pragmática e vinculada aos estritos preceitos normativos. Cumpre destacar que o Decreto-Lei
nº 200/1967 previu ampla descentralização das atividades da Administração Federal, em três
principais planos: 1) distinção nítida entre os níveis de direção e execução, dentro dos quadros
da Administração Pública Federal; 2) celebração de convênios entre a Administração Federal
e as demais administrações do Estado brasileiro; 3) celebração de contratos, incluindo as
concessões, entre a Administração e a iniciativa privada.
Nesse sentido, cabe transcrever as palavras de Luiz Carlos Bresser Pereira, que
capitaneou, como Ministro de Estado, a elaboração do Plano Diretor de Reforma do Aparelho
do Estado, em 1995, o qual redundou na reforma administrativa:
Desde o início dos anos 60 formara-se a convicção de que a utilização dos
princípios rígidos da administração pública burocrática constituía-se em um
empecilho ao desenvolvimento do país. Na verdade, essa insatisfação datava
da década anterior, mas o desenvolvimento econômico acelerado que ocorria
então permitia que as soluções encontradas para contornar o problema
tivessem caráter ad hoc, como foi o caso dos grupos executivos setoriais do
governo Kubitschek. No momento, entretanto, em que a crise se
desencadeia, no início dos anos 60, a questão retorna. [...] Esta era uma
reforma pioneira, que prenunciava as reformas gerenciais que ocorreriam em
alguns países do mundo desenvolvido a partir dos anos 80, e no Brasil a
partir de 1995. Reconhecendo que as formas burocráticas rígidas constituíam
um obstáculo ao desenvolvimento quase tão grande quanto as distorções
patrimonialistas e populistas, a reforma procurou substituir a administração
pública burocrática por uma “administração para o desenvolvimento”:
distinguiu com clareza a administração direta da administração indireta,
garantiu-se às autarquias e fundações deste segundo setor, e também às
empresas estatais, uma autonomia de gestão muito maior do que possuíam
anteriormente, fortaleceu e flexibilizou o sistema do mérito, tornou menos
burocrático o sistema de compras do Estado. (BRESSER PEREIRA, 2001, p.
13 e p. 14).
Na visão de Bresser Pereira, o avanço concebido no Decreto Lei nº 200/1967 teria sido
sobrestado pela posição mais conservadora assumida pela Constituição da República de 1988,
que, supostamente, reafirmou as práticas e estruturas burocráticas111, conferindo às entidades
110 É o que destaca Daniela Mello Coelho (2004, p. 114).
111 A respeito desse “retrocesso burocrático”, cabe reproduzir na integralidade a crítica de Bresser
Pereira, que destaca, negativamente, o papel de grupos de interesse na configuração das normas sobre
88
descentralizadas tratamento normativo semelhante ao dos órgãos da Administração Direta, em
especial no que tange às licitações e contratações públicas, ao dever de realizar concurso
público para admissão de servidores e aos critérios de controle e fiscalização das atividades
públicas112.
Deve-se destacar, em que pese o alegado retrocesso, que a eficiência na administração
pública não deixou de ser buscada no período compreendido entre a promulgação da CR/88 e
a expressa positivação do princípio da eficiência no rol dos princípios reitores da
Administração Pública contido no caput do art. 37 da Constituição, via Emenda
Constitucional nº 19∕1998, o que será mais bem explicitado a seguir neste trabalho. Desde já
cabe afirmar que a promulgação da EC nº19/1998 manifesta a intenção de conferir novo perfil
à Administração Pública brasileira, ao lado de outras alterações constitucionais, como a
a administração pública da Constituição de 1988: “Os dispositivos sobre a administração pública na
Constituição de 1988 foram o resultado [...] de deliberado esforço dos grupos burocráticos que, como
constituintes eles próprios ou sob a forma de grupos de pressão, entenderam que deviam completar a
reforma de 1936. Embora muitos de seus membros estivessem comprometidos com a onda de
clientelismo que ocorreu com o advento da democracia, não hesitaram, contraditoriamente, em influir
para que a constituição adotasse princípios burocráticos clássicos. A administração pública voltava a
ser hierárquica e rígida, a distinção entre administração direta e indireta praticamente desaparecia. O
regime jurídico dos funcionários passava a ser único na União, e em cada nível da federação. As novas
orientações da administração pública, que vinham sendo implantadas no país desde 1967, foram mais
que ignoradas, destruídas, enquanto a burocracia aproveitava para estabelecer para si privilégios, como
a aposentadoria com vencimentos plenos sem qualquer relação com o tempo e o valor das
contribuições, e a estabilidade adquirida quase que automaticamente a partir do concurso público. Um
grande mérito, porém, teve a Constituição de 1988: exigiu concurso público para entrada no serviço
público, assim reduzindo substancialmente o empreguismo que tradicionalmente caracterizou o Estado
patrimonialista. O retrocesso burocrático, ocorrido em 1988 resultou da crença equivocada de que a
desconcentração e a flexibilização da administração pública que o Decreto-Lei 200 teria promovido
estavam na origem da crise do Estado, quando esta derivava, antes de mais nada da crise fiscal a que
levou a estratégia desenvolvimentista. Embora alguns abusos tenham sido cometidos em seu nome, a
reforma de 1967 havia se constituído em um avanço pioneiro da história da administração pública
brasileira. Em segundo lugar, resultou do ressentimento da velha burocracia situada nos cargos da
administração direta contra a forma pela qual seus membros haviam sido tratados no regime militar,
freqüentemente preteridos em relação aos administradores das empresas estatais. Em terceiro lugar, foi
a conseqüência da perda, pela burocracia, em conjunto com seu aliado tradicional, a burguesia
industrial, de um projeto nacional comum para o país. Esse projeto, que fora o do desenvolvimento
industrial via substituição de importações, estava esgotado, e nada viera para substituí-lo a não ser para
alguns grupos no Ministério da Fazenda e no Banco Central, a idéia correta mas apenas negativa de
que era necessário proceder o ajuste fiscal e a redução do tamanho do Estado. Ora, quando um grupo
social perde objetivos nacionais e, adicionalmente, se sente ameaçado, é natural que recorra à política
do salve-se quem puder. Em quarto lugar, decorreu do fato de que a burguesia industrial haver aderido,
sem restrições, à campanha pela desestatização que acompanhou toda a transição democrática pelo
lado da direita: esta campanha levou os constituintes a aumentar os controles burocráticos sobre as
empresas estatais, que haviam ganhado grande autonomia graças ao Decreto-Lei 200”. (BRESSER
PEREIRA, 2001, p. 19-20, Grifo nosso).
112 Logo, a ênfase conferida à autonomia das entidades descentralizadas, a partir do Decreto-Lei nº
200/1967, teria sido mitigada pela submissão dos aspectos técnicos e científicos às exigências legais e
políticas (COELHO, 2004, p. 115).
89
Emenda Constitucional nº 20, de 14 de dezembro de 1998, que veiculou a chamada Reforma
da Previdência (a primeira delas), com a finalidade de adaptá-la às relações advindas do
modelo de globalização crescente nos anos 80 e 90 do século XX.
Pode-se dizer que a transição do modelo de administração pública burocrática ao
gerencial está ligada à própria evolução do Estado, que, no século XVIII foi marcado pelo
confinamento da atuação estatal a um núcleo estratégico relativo às funções públicas típicas,
como defesa nacional, a diplomacia e a arrecadação de tributos. Em um segundo momento,
sobreveio o modelo de Estado de Bem-Estar Social, ou Welfare State, caracterizado pela
ampla intervenção dos domínios social e econômico e pela consequente diversificação e
ampliação das tarefas prestacionais113. O modelo de Estado que se coloca com proeminência
após o Estado Social, e em reação a este114, conquanto não haja ruptura brusca, é aquele que
continua atuando na prestação de serviços públicos e na intervenção na economia, mas, agora,
de modo marcadamente diferenciado: atua, precipuamente, na promoção da descentralização
da operação e execução dessas atividades.
Observa-se, nesse cenário, que, com a transição dos modelos de Estado de bem-estar
social para o Estado contemporâneo – o qual ainda permanece atuante na prestação de
serviços públicos e na economia, mas cada vez mais de modo indireto - o gigantismo da
máquina estatal típico do primeiro modelo começou a apresentar disfunções que revelaram a
113 Sobre o Estado de Bem-Estar Social ou Estado Providência, Chevallier (2013, p. 80) faz uma série
de observações: em primeiro lugar, o advento desse modelo de Estado teria modificado em
profundidade o equilíbrio das sociedades liberais, minando os fundamentos sobre os quais a teoria do
Direito havia se assentado até então, uma vez que a limitação do poder do Estado que estava no cerne
do liberalismo deu lugar à manifestação de um Estado investido na missão de satisfazer necessidades
as mais variadas, dos indivíduos e dos grupos. A própria noção até então preponderante de direitos e
liberdades consagrados em face do poder deu lugar à concepção de direitos∕ créditos reconhecidos aos
indivíduos e aos grupos, e que se notabilizam por sua exigibilidade em face do Estado. Assim, “o
Estado verá se levantarem as barreiras que obstaculizam o seu domínio: não há mais, na fase do Estado
providência, ‘espaço privado’ salvaguardado, ‘sociedade civil’ preservada de suas ingerências; o
Estado é levado a se intrometer nas relações sociais de toda natureza, sem deixar se deter por um
princípio de liberdade do comércio e da indústria [...]” (CHEVALLIER, 2013, p. 81).
114 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 38) as transformações marcam o ocaso do
denominado Estado monoclasse, modelo de organização política voltado à proteção e ao atendimento
das classes dominantes. Esse o modelo que teria se hipertrofiado a partir do final do século XX até a
primeira metade do século XX, de modo a atender às necessidades das massas emergentes das duas
Revoluções Industriais, às demandas políticas da “Era das Conflagrações” – em especial, as Grandes
Guerras Mundiais, nos períodos de 1914-1918 e 1939-1945 – e às pressões de crescimento do aparelho
do Estado. Os modelos de Estado característicos dessa época foram o Estado de Bem-Estar Social e o
Estado Socialista.
90
incapacidade da organização burocrática clássica de acompanhar as tendências das
administrações contemporâneas115.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a burocracia, da forma como originalmente
concebida116 e implementada, no âmbito de um Estado em franca expansão, não se amolda em
todos os termos à transição do modelo de Estado de Bem-Estar Social ao modelo de Estado
contemporâneo ou Estado Pós-Moderno. Assim é que, em contraponto, a teoria gerencial
parte da vivência da iniciativa privada, com a pretendida transposição de noções e institutos
privados para o setor público, os quais, em tese, são mais consonantes com a atual realidade
do Estado e da sociedade, mais dinâmica, menos centralizada, mais diversificada117.
Portanto, a reforma gerencial da administração pública brasileira, intentada a partir da
década de 90 do século XX, busca incorporar, na medida do possível, a ideia de mercado,
fundada nas práticas do neoliberalismo, e de eficiência, valendo-se, para tanto, dos resultados
positivos decorrentes da relação custo/benefício, associados à qualidade do serviço prestado.
Nesse cenário, as medidas concebidas pela reforma administrativa abarcaram três vieses: o
estrutural ou organizacional, o funcional e o finalístico118 (COELHO, 2004, p. 116).
115 É o que ressalta Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 39), segundo o qual, já após a
Segunda Grande Guerra Mundial, o Estado de Bem-Estar Social (ao lado do Estado Socialista)
começou a apresentar sinais de exaustão, em razão de fatores tão diversos quanto a introdução de
novas tecnologias, em especial no ramo das telecomunicações, da perda de sua capacidade produtiva
(até então fundada em um modelo fordista, de organização e otimização dos fatores de produção terra,
capital e trabalho, com estabilidade nos lucros e plena utilização de equipamentos e mão de obra) e da
acumulação de déficits crescentes. Assim, o Estado deixou de ter recursos para satisfazer a contento às
demandas da sociedade, cada vez mais diversificadas, bem como se viu impossibilitado de majorar a já
alta carga tributária incidente sobre os contribuintes. Nesse contexto, destacam-se algumas das
disfunções arroladas por Daniela Mello Coelho (2004, p. 128) a respeito do Estado em que até então
havia sido bem-sucedido o modelo burocrático de organização: exagerado apego às regras; excesso de
formalismo, autoritarismo e despersonalização do relacionamento entre Administração e cidadãos.
116 Citando Max Weber, Daniela Mello Coelho (2004, p. 122) afirma que o autor germânico
concebeu a administração sob uma ótica estruturalista, preocupando-se com sua racionalidade, mais
precisamente, com a relação ente os meios empregados e os recursos utilizados e os objetivos
alcançados pelas organizações burocráticas. Para a autora (COELHO, 2004, p. 180), o grande mérito
da teoria burocrática weberiana foi ter sido desenvolvida, enquanto abordagem científica, para o setor
público, levando em consideração as necessidades do próprio Estado em período de desgaste dos
ideais liberais e da emergência das concepções sociais-democratas.
117 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, surge da crise o Estado Pluriclasse como organização
política, o qual reflete nos Governos e Parlamentos a pluralidade da sociedade e apresenta as seguintes
características ou tendências: “Esse movimento fez despontar certos princípios, que passam a atuar
como reitores dos câmbios deflagrados: como o da subsidiariedade, em lugar da hipertrofia dos entes
centrais; o da coordenação, em lugar da exclusividade de atuação; o da privatização, quando a
execução do interesse público pudesse ser melhor realizada pelos meios privados; o da publicização,
atuando ao revés, retirando o Estado do setor privado e reforçando seus instrumentos regulatórios das
atividades delegadas, e o da consensualidade [....]” (MOREIRA NETO, 2001, p. 40)
118 A esse movimento de reforma corresponde um dos sentidos do termo governança, segundo Renate
Mayntz (2000, p. 1), para quem tem-se recorrido à expressão para designar um novo estilo de governo,
91
Em suma, o viés organizacional buscou o resgate da autonomia das entidades
descentralizadas visado pelo Decreto-Lei nº 200/1967, com a introdução, na ordem jurídica
brasileira, das figuras das agências executivas119 e das agências reguladoras120 e o
fortalecimento do modelo contratual no âmbito da Administração Pública (COELHO, 2004, p.
116).
O viés funcional, por sua vez, tem a ver com a promoção de mudanças na área de
pessoal, por meio da previsão, por exemplo, da revisão dos critérios de remuneração de
servidores da ativa e de aposentados e pensionistas e da introdução de critérios de avaliação
de desempenho fundados em metas a serem alcançadas (COELHO, 2004, p. 116-117).
Por fim, o viés finalístico liga-se à ênfase conferida à consecução de resultados, na
busca por uma administração mais eficiente e que presta serviços (aqui tomados em sentido
amplo, como atividades estatais, para englobar até mesmo o poder de polícia) de qualidade.
Fundamentalmente, “o corte finalístico volta-se para a revisão da atividade administrativa,
que, ao assumir caráter gerencial, confere ao administrador público maior autonomia
associada a efetivos critérios de fixação de responsabilidade” (COELHO, 2004, p. 117).
distinto daquele calcado sobre o controle hierárquico e caracterizado por um maior grau de cooperação
e de interação entre o Estado e os atores não estatais no interior de redes decisionais mistas entre o
público e o privado. Essencialmente. “La gobernanza, por definición, tiene que ver con la solución
colectiva de problemas, no con el dominio por el dominio en sí” (MAYNTZ, 2001, p. 5) Conforme
alerta a autora, as formas modernas de governança só podem emergir em países que apresentem
prévias condições estruturais e institucionais, notadamente: poder disperso na sociedade, mas não de
modo fragmentado ou ineficiente; autoridades públicas fortes, porém não onipotentes, e
democraticamente legitimadas, na maior medida possível, pelos diversos grupos sociais e de interesse
que compõem a coletividade; existência de sociedade civil forte, bem organizada e funcionalmente
especializada em subsistemas nos quais as organizações levam a cabo funções sociais e econômicas
importantes, nas áreas da saúde, do ensino e da produção, por exemplo. Essas são as condições para o
alcance de uma governança ideal. Os resultados efetivos nos diferentes países do globo que visam
implementá-la variam em êxito, partindo das experiências mais bem-sucedidas de países
desenvolvidos como Estados Unidos e Estados da Europa Ocidental até outras pouco exitosas,
visualizadas em alguns países africanos, asiáticos e também naqueles surgidos da dissolução da União
Soviética (MAYNTZ, 2001, p. 4).
119 Sobre as agências executivas, conf. o Decreto Federal nº 2.487, de 02 de fevereiro de 1998, que
dispõe sobre a qualificação de autarquias e fundações como Agências Executivas, estabelece critérios
e procedimentos para a elaboração, acompanhamento e avaliação dos respectivos contratos de gestão e
dos planos estratégicos de reestruturação e de desenvolvimento institucional das entidades qualificadas
e dá outras providências.
120 A criação das agências reguladoras possui como fundamento genérico o disposto no art.174 da
Constituição da República, em cujo caput lê-se o seguinte: “Como agente normativo e regulador da
atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
92
6.2. A reforma da Administração Pública e o fenômeno da globalização.
Os estudiosos costumam arrolar, como um dos fatores causais do desgaste do modelo
de Estado de Bem-Estar social e, consequentemente, da transição para o Estado
Contemporâneo, o fenômeno da globalização, expressão de origem anglo-saxã que, de acordo
com Moreira Neto (2011, p. 23), foi introduzida pela economia e pela política a partir da
década de 80 do século XX, difundindo-se a partir de então.
Trata-se de fenômeno de relevância para as ciências sociais, podendo ser apreendido
como fato e como valor (MOREIRA NETO, 2011, p. 117). Como fato, pode ser entendido,
em perspectiva histórica, como a dilatação dos horizontes de interesses das sociedades
humanas. Nesse sentido, o fenômeno tem se manifestado em períodos históricos de intensa
difusão cultural e dinamismo do poder, impulsionado pela ampliação das fronteiras políticas,
pelo desenvolvimento dos intercâmbios e pela propagação religiosa (MOREIRA NETO,
2011, p.117). Como valor, a globalização remete aos variados ângulos de entendimento que a
fazem ser considerada “ora como um bem, ora como um mal; ora como um anátema, ora
como uma esperança para um mundo melhor” (MOREIRA NETO, 2011, p. 118).
O que faz da globalização uma novidade, nos dias atuais, é sua profundidade,
amplitude, e diversificação, bem como sua inegável ligação à Revolução das Comunicações,
deflagrada no século XX e em andamento, inaugurando o que se denomina por Era Pós-
Moderna121. Nesse sentido e já em uma perspectiva de relacionar globalização ao desempenho
da função administrativa, Moreira Neto:
Os desdobramentos sociais desse fenômeno são complexos e vertiginosos: as
populações passam, sucessivamente, a ter amplo acesso ao conhecimento, a
tomar consciência de seus interesses, a reivindicar participação e, cada vez
mais, a se organizar e a exigir eficiência no atendimento de suas
necessidades. Fácil identificar, portanto, nesta sequência causal, a íntima
conotação da globalização com a administração dos interesses públicos,
pelos Estados ou além deles e, por isso mesmo, com a democracia, tomada
muito mais em seu sentido material, enquanto realização de valores
convivenciais, que, apenas, em seu tradicional sentido formal, como mera
técnica de sufrágio popular. (MOREIRA NETO, 2011, p. 118)
121 Em sentido consonante, Renate Mayntz (2000, p. 6) relata dois sentidos para a expressão
globalização, ambos profundamente conectados: o primeiro relativo à expansão da comunicação,
fenômeno concernente tanto ao transporte quanto ao intercâmbio de informações e à mobilidade
crescente de populações humanas, muito ligada aos fenômenos migratórios, gerando a formação de
grupos sociais independentemente de fixação geográfica; em segundo lugar, tem a ver com o
surgimento de mercados globais de capitais, em consequência da liberalização e da desregulação,
ambas promovidas pelos governos, e também da crescente facilidade de comunicação.
93
Logo, como reflexo das transformações do Estado, e, concomitantemente, da
Administração Pública, destaca-se que o modelo burocrático weberiano, caracterizado pela
impessoalidade, pela padronização, pelo controle de procedimentos legais preestabelecidos e
pelo domínio da racionalidade legal, se adaptava às formas estruturais e organizacionais
presentes no Estado do Bem-Estar Social, uma vez que enfatizavam a participação direta do
Estado na produção de bens e serviços para a coletividade, o que redundava no aumento do
contingente de pessoal no âmbito das organizações. No entanto, a intervenção direta do
Estado na prestação de serviços públicos e na produção de bens não foi acompanhada no
desenvolvimento da gestão do setor público122, cenário que, além das disfunções já citadas
neste trabalho, produziu baixa eficácia e baixa efetividade na prestação de serviços públicos,
elevação de custos e aumento do endividamento público, em especial, a partir da década de 80
do século XX123.
Nesse mesmo período, surgem no setor privado, em meio ao processo de globalização,
novas tendências de organização do trabalho, pautadas na eficiência e na flexibilidade de
regime, a exemplo da terceirização e das parcerias entre empresas, que dão ênfase à
competitividade. Essas tendências passam a ser incorporadas pela Administração Pública, no
âmbito da reforma gerencial.
Salienta-se, por oportuno, que a reforma da Administração Pública não possui como
única causa a crise do modelo burocrático de organização, estando ligada, também, à já
mencionada escassez de recursos financeiros, ao surgimento de novas regras para pautar a
economia de mercado, em meio ao processo de globalização, bem como aos problemas
gerados pela pouca participação dos cidadãos na tomada de decisões pela Administração
Pública, que gerou déficit de legitimação democrática, a ser combatido.
Também deve ser destacado que a reforma gerencial da Administração não pretendeu
negar in totum os princípios do modelo burocrático weberiano, preservando as noções de
impessoalidade, profissionalismo do quadro de pessoal, legalidade e moralidade. A grande
diferença liga-se ao fato de que “a administração gerencial fornece formas flexíveis de gestão,
122 Nesse sentido, Daniela Mello Coelho (2004, p. 143).
123 Célia Lessa Kerstenetsky (2012, p. 453-459), com base em dados estatísticos, problematiza a tese
de ocorrência de crise do Estado de Bem-Estar Social, a qual teria contribuído para o movimento de
redução do tamanho do próprio Estado. Ao contrário, conforme demonstra, os gastos sociais dos
Estados só aumentaram nas últimas décadas, a partir dos anos 80, mesmo em cenário de redução do
Produto Interno Bruto – PIB. Nesse sentido, menos do que uma crise, o período contemporâneo deve
ser enxergado como uma nova fase do Welfare State, em que a responsabilidade pública foi reduzida
enquanto provisão direta, mas aumentou nas formas de regulação e financiamento.
94
elastece o campo decisório do administrador na execução de tarefas relacionadas aos aspectos
materiais, financeiros e humanos e utiliza-se do controle a posteriori, deslocando-se da ênfase
dos meios para os fins” (COELHO, 2004, p. 131).
Nesse âmbito, já caminhando para uma conclusão parcial, utiliza-se o entendimento de
Flávio da Cunha Rezende (2009, p. 345), o qual aponta que um dos desafios centrais das
sociedades contemporâneas é o de produzir sistemas hierárquicos de autoridade compatíveis
com a expansão das liberdades, competição política e da demanda crescente por delegação de
poderes. Observa-se, nesse sentido, que nos diferentes países em que foram realizadas, as
reformas gerenciais apresentaram como questão básica a necessidade de produção e de
consolidação de novas matrizes institucionais orientadas pelos princípios da descentralização,
accountability (responsabilidade), inclusão social e eficiência fiscal. Partiu-se, portanto, da
premissa de que as instituições e, consequentemente, os desenhos institucionais, são
relevantes para a produção de incentivos para a criação de novas burocracias estatais,
construídas sobre as bases da flexibilidade gerencial, da descentralização e da autonomia e
pautadas em parâmetros como eficiência e efetividade124.
6.3. Reforma administrativa brasileira: pressupostos e obstáculos da
transição da administração pública burocrática para a administração
gerencial.
Conforme explana Bresser Pereira (2001, p. 23), o Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado, de 1995, documento que introduziu os princípios e diretrizes da reforma
gerencial da administração pública brasileira, teve como inspiração as experiências então
recentes dos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico – OCDE, organização internacional, em especial, o Reino Unido, onde era
implantada a “segunda grande reforma burocrática da história do capitalismo: [...] a reforma
gerencial do final deste século” (século XX) (BRESSER PEREIRA, 2001, p. 23). Nesse
124 A perspectiva institucionalista, ou seja, aquela que dá premência à elaboração pelos Estados de
regras que consolidem a lógica dos modelos contemporâneos de governança, está presente no
Relatório do Banco Mundial World Development Report: The State in a Changing World (1997, p.
80), que, no capítulo intitulado Building Institutions for a Capable Public Sector, estrutura suas
recomendações a partir de três eixos de modernização: 1) forte capacidade de os governos centrais
formularem e coordenarem a implementação de políticas públicas, que pressupõe a capacidade de
materializar metas em prioridades estratégicas e requer a tomada de decisões bem motivadas e
sindicáveis; 2) sistemas de delegação eficientes e efetivos, fundados sobre equilíbrio entre
flexibilidade e accountability; 3) quadro de pessoal apto e motivado; a partir de políticas de
recrutamento baseadas em mérito e nas promoções, salários adequados e do incentivo ao compromisso
com a estrutura.
95
Estado é que surgiu a disciplina do new public manegement, com esteio em ideias neoliberais,
e voltado à reforma e à implantação de novas práticas administrativas fundadas na “inserção
do espírito e dos mecanismos de mercado no governo” (MOTTA, P.R.M., 2013, p. 84), com
destacado enfoque sobre a competição, a descentralização e a privatização, com maior poder
para os gestores dos serviços de interesse da coletividade e, por outro lado, com a visão dos
cidadãos como clientes e usuários de serviços públicos, em vez de meros recipientes das ações
do Estado. Basicamente, “O NPM [new public manegement] viria apresentar uma abordagem
gerencial distinta, tendo focos no cliente, no gestor, no resultado e no desempenho” (MOTTA,
P.R.M., 2013, p. 84).
Em consonância com Maria Tereza Fonseca Dias (2003, p. 200-202), observa-se que a
reforma administrativa gerencial brasileira revela como novidade o fato de integrar
movimento de caráter transnacional, observado em países ocidentais com sistemas jurídicos
significativamente diversos- mas que, ainda assim, propuseram modelos de reforma
semelhantes -, como Estados Unidos, Portugal, Itália e Argentina, derivado de fatores como a
globalização, tratada no tópico anterior, e a formação de blocos econômicos (especialmente
relevante durante os anos 90)125.
125 Com esteio nas lições de Daniela Mello Coelho (2004, p. 151-154), pode-se afirmar que os
princípios basilares da reforma gerencial da administração pública, adotados em todos os países que
incorporaram o gerenciamento como moderna técnica de operacionalização do setor público, em
oposição ao tradicional modelo burocrático, são: 1) desburocratização: que consiste na exclusão de
técnicas e procedimentos incompatíveis com o modelo de gestão mais flexível, de modo a enfatizar o
papel de negociador do Estado, em detrimento do perfil de produtor, interventor e protecionista; 2)
descentralização, entendida em três aspectos, interno (de cima para baixo no âmbito da própria
estrutura administrativa), externo (de dentro para fora da estrutura administrativa) e entre os níveis de
governo, com o fortalecimento do poder local: o primeiro aspecto está relacionado à desconcentração
administrativa, relativa ao deslocamento do poder de decisão mediante delegação de competências e
responsabilidades, sob o primado do princípio hierárquico; o segundo aspecto liga-se descentralização
administrativa, em que se estabelece relação entre o poder público e uma entidade estranha à estrutura
organizacional, que possui personalidade jurídica própria e autonomia na gestão de suas atividades, e
também à descentralização por colaboração, concernente à delegação de serviços mediante a
celebração de contratos de concessão e permissão e também à celebração de outras espécies de ajustes,
alcançando tanto a iniciativa privada empresarial quanto as entidades sem fins lucrativos; o terceiro
aspecto tem a ver com a descentralização política, típico dos Estados federados, nos quais se garante às
esferas de governo autonomia de poderes, entre os quais o de criar seu próprio direito, por meio de seu
corpo Legislativo; 3) transparência, que expressa o caráter democrático do modelo gerencial, impondo
condutas claras e postas ao conhecimento dos cidadãos, visando à legitimação da atuação estatal; 4)
responsabilidade (accountability), relativa à fixação de relações de responsabilidade entre os
envolvidos no novo modelo gerencial, tais como administradores públicos e servidores; Administração
Pública e seus contratados; Administração Pública e cidadãos; 5) ética, que diz respeito à adoção de
regras e princípios que visam dar concretude à moralidade na Administração Pública, tendo em vista
que a flexibilização do modo de administrar pode, em tese, conduzir à adoção de comportamentos que
favoreçam os interesses privados em detrimento dos interesses da coletividade; 6) profissionalismo,
concernente à qualificação do pessoal que realiza a função pública, com ênfase no mérito e em
critérios objetivos de avaliação permanente de desempenho; 7) competitividade, que tem como
96
Verifica-se, por outro lado, que a incorporação dos valores do new public manegement
encontrou obstáculos ou facilitadores a depender das culturas dos países em que se fez
presente. Assim, as práticas de maior sucesso provieram de países que já haviam assimilado o
pragmatismo gerencial, a baixa imposição de normas burocráticas e a maior democracia na
gestão126. Entretanto, países com burocracia extensa, com acentuado legalismo e formalismo
enfrentaram dificuldades na implementação desses valores127. É o caso do Brasil.
O país, na onda do movimento transnacional de reforma da administração pública, que
perpassou diversos estados ocidentais, buscou incorporar à sua administração práticas,
princípios e diretrizes que produziriam maior eficiência, dinamicidade e efetividade na gestão
da coisa pública. No entanto, falhas estruturais de longo tempo observáveis, como o apego
histórico a métodos autoritários, à hierarquia rígida e, mais do que isso, a persistência da
relutância política a mudanças profundas no modo de gerir o Estado, mitigaram as
repercussões originalmente concebidas pela reforma128. Não se olvida que houve avanços: a
própria incorporação expressa do princípio da eficiência no rol constitucional de princípios
reitores da administração pública trouxe novas perspectivas a respeito do desempenho e do
controle da atividade administrativa; não basta atuar com supedâneo e em conformidade com
a ordem jurídica, o agir estatal deve ser otimizado, considerando os caracteres fáticos e
objetivo a quebra de monopólios estatais, mediante, por exemplo, privatização e terceirização de
serviços, visando a obtenção de maior qualidade do serviço prestado por entidades estranhas ao
aparato organizacional administrativo,8) enfoque no cidadão, que, enquanto indivíduo, passa a ser
visto como um consumidor de serviços públicos e, além disso, com ênfase na condição de cidadão,
passa a ser considerado agente de formação e transformação das políticas públicas voltadas para a
otimização desses mesmos serviços.
126 Nesse sentido, Paulo Roberto de Mendonça Motta (2013, p. 86).
127 Em sentido semelhante, Rezende (2009, p. 352), que observa maiores taxas de êxito nas reformas
empreendidas em países como Estados Unidos, Austrália, Inglaterra e Nova Zelândia, considerados
“líderes” do movimento gerencialista, e onde, de modo geral, o sucesso das reformas dependeu, em
grande parte, do forte apoio político à sua implementação, em especial, nos anos 80 e 90 do século
XX. Ainda de acordo com Rezende (2009, p. 353-354), na América Latina, de modo geral, e
especificamente no Brasil, as preocupações com a construção de novos modelos institucionais,
politicamente menos atrativa e mais custosa, cedeu espaço à premência do ajuste fiscal, que se tornou
prioritário e, assim, comprometeu a efetividade da reforma gerencial proposta nos anos 90. De fato,
angariar apoio para o ajuste fiscal mostrou-se menos comprometedor do ponto de vista político do que
promover efetiva alteração dos modelos institucionais, já que conseguir cooperação para a redução dos
gastos públicos conserva intacto o conjunto de práticas institucionais que, efetivamente, propiciam os
habituais problemas de performance.
128 Rezende (2009, p. 355) aponta que, na experiência brasileira - ainda que não exclusivamente nela,
pois as considerações são estendidas aos demais países em desenvolvimento -, a descentralização de
competências no âmbito da reforma gerencial acabou por produzir mais controles burocráticos, por
mais paradoxal que isso possa parecer. Essa seria uma consequência da frágil tradição do controle até
então em vigor no país, que, em um contexto de considerável permeabilidade entre a política e a
administração, acabou por gerar efeitos colaterais nefastos, como corrupção, clientelismo e
malversação de recursos públicos.
97
jurídicos subjacentes. Entretanto, a reforma, ainda não finalizada, encontra obstáculos à sua
plena efetivação em arraigados comportamentos nocivos dos administradores públicos e, de
modo geral, dos formuladores de políticas públicas, de acordo com exposição supra.
6.4. Administração pública e o princípio da eficiência : o contexto
brasileiro.
Especificamente no que toca ao princípio da eficiência, mote da reforma gerencial,
cabem algumas considerações. Em primeiro lugar, adverte-se que eficiência privada e
eficiência pública não se confundem. Não se nega que a ideia de eficiência tenha origem
privada, porém não se pode ignorar as diversas exigências garantísticas, ou aquelas
provenientes de critérios axiológicos de legitimação, que norteiam a atividade da
Administração, a qual, muitas vezes, fica submetida a controles distintos (e mais restritivos)
do que aqueles baseados em critérios puramente eficientísticos, típicos do setor privado129.
Por outro lado, afirma-se que a eficiência, no Direito, atua em dois principais
horizontes, conforme registra Batista Júnior (2012, p. 214): de um lado, liga-se à atuação dos
agentes públicos, de modo que desempenhem da melhor forma possível suas incumbências,
em busca dos melhores resultados; a outro turno, relaciona-se ao modo de organizar,
estruturar e disciplinar a Administração Pública, de modo a obter os melhores resultados na
prestação dos serviços estatais.
Ressalta-se que a própria apreensão do significado do princípio constitucional da
eficiência administrativa é difícil, pois acompanha a multiplicidade das modernas tarefas
desempenhadas pela Administração. Assim, segundo explana Onofre Alves Batista Júnior
(2012, p. 173), o grau de eficiência exigido da Administração varia de acordo com a atividade
desempenhada, além de se alterar ao longo do tempo, em função do contexto político
subjacente, dos recursos tecnológicos disponíveis e das aspirações sociais. Essencialmente,
portanto, o princípio da eficiência se manifesta em um conceito jurídico indeterminado,
porém, seu comando é determinável: tal princípio expressa mandamento constitucional de
maximizar a persecução do bem comum e, para tanto, demanda, em razão de seu caráter
plurissignificativo, a síntese equilibrada dos interesses públicos e a otimização da relação
129 É que entende Batista Júnior (2012), o qual esclarece que eficiência remonta a uma ideia
utilitarista extraída das ciências econômicas – e desenvolvida, também, na ciência da administração,
em especial, no âmbito da teoria das organizações (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 92) -, a partir da
racionalização de meios e fins. No setor público essa ideia se orienta no sentido da maximização do
desempenho da Administração, tomando como referência a lógica empresarial.
98
entre meio e fim, observando-se os vários aspectos que compõem a ideia nuclear de
eficiência130.
Antes de tratar desses aspectos, cumpre resgatar o trajeto da positivação do princípio
da eficiência na ordem jurídico-administrativa brasileira. Segundo Batista Júnior (2012, p.
110), o dever de eficiência foi consagrado no Direito Positivo brasileiro pela Reforma
Administrativa levada a cabo pelo Decreto Federal nº 200/1967, já citado, que sujeita a
atividade do Poder Executivo ao controle de resultados131, reforçando o sistema de mérito132,
130 Registre-se que para Bandeira de Mello (2014, p. 125) a eficiência, que seria decorrente do
princípio da boa administração (principio de buona amministrazione ou principio di buon andamento)
tratado pela doutrina e consagrado na ordem jurídica italiana, nada mais é do que uma faceta do
princípio da legalidade, uma vez que “jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação
daquele que é o dever administrativo por excelência” (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 125).
131 Vide, a respeito, o disposto no art. 14 do Decreto Lei nº 200/1967: “Art. 14. O trabalho
administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de contrôles que se
evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco”.
132 Nesse sentido, os arts. 94 a 96 do Decreto Lei nº 200/1967: “Art. 94. O Poder Executivo
promoverá a revisão da legislação e das normas regulamentares relativas ao pessoal do Serviço
Público Civil, com o objetivo de ajustá-las aos seguintes princípios: I - Valorização e dignificação da
função pública e ao servidor público. II - Aumento da produtividade. III - Profissionalização e
aperfeiçoamento do servidor público; fortalecimento do Sistema do Mérito para ingresso na função
pública, acesso a função superior e escolha do ocupante de funções de direção e assessoramento. IV -
Conduta funcional pautada por normas éticas cuja infração incompatibilize o servidor para a função.V
- Constituição de quadros dirigentes, mediante formação e aperfeiçoamento de administradores
capacitados a garantir a qualidade, produtividade e continuidade da ação governamental, em
consonância com critérios éticos especialmente estabelecidos.VI - Retribuição baseada na
classificação das funções a desempenhar, levando-se em conta o nível educacional exigido pelos
deveres e responsabilidade do cargo, a experiência que o exercício dêste requer, a satisfação de outros
requisitos que se reputarem essenciais ao seu desempenho e às condições do mercado de trabalho. VII
- Organização dos quadros funcionais, levando-se em conta os interêsses de recrutamento nacional
para certas funções e a necessidade de relacionar ao mercado de trabalho local ou regional o
recrutamento, a seleção e a remuneração das demais funções. VIII - Concessão de maior autonomia
aos dirigentes e chefes na administração de pessoal, visando a fortalecer a autoridade do comando, em
seus diferentes graus, e a dar-lhes efetiva responsabilidade pela supervisão e rendimento dos serviços
sob sua jurisdição. IX - Fixação da quantidade de servidores, de acôrdo com as reais necessidades de
funcionamento de cada órgão, efetivamente comprovadas e avaliadas na oportunidade da elaboração
do orçamento-programa, e estreita observância dos quantitativos que forem considerados adequados
pelo Poder Executivo no que se refere aos dispêndios de pessoal. Aprovação das lotações segundo
critérios objetivos que relacionam a quantidade de servidores às atribuições e ao volume de trabalho
do órgão. X - Eliminação ou reabsorção do pessoal ocioso, mediante aproveitamento dos servidores
excedentes, ou reaproveitamento aos desajustados em funções compatíveis com as suas comprovadas
qualificações e aptidões vocacionais, impedindo-se novas admissões, enquanto houver servidores
disponíveis para a função. XI - Instituição, pelo Poder Executivo, de reconhecimento do mérito aos
servidores que contribuam com sugestões, planos e projetos não elaborados em decorrência do
exercício de suas funções e dos quais possam resultar aumento de produtividade e redução dos custos
operacionais da administração. XII - Estabelecimento de mecanismos adequados à apresentação por
parte dos servidores, nos vários níveis organizacionais, de suas reclamações e reivindicações, bem
como à rápida apreciação, pelos órgãos administrativos competentes, dos assuntos nelas contidos. XIII
- Estímulo ao associativismo dos servidores para fins sociais e culturais. Parágrafo único. O Poder
Executivo encaminhará ao Congresso Nacional mensagens que consubstanciem a revisão de que trata
99
e prevê a possibilidade de demissão de servidor público estável considerado ineficiente do
desempenho de suas atribuições ou desidioso no cumprimento de seus deveres133. Ademais, o
art. 26, inciso III, desse Decreto-Lei expressamente previu como objetivo a ser assegurado por
meio da supervisão ministerial (tutela exercida pelos órgãos da Administração Direta sobre os
entes da Administração Indireta a ele vinculados) a eficiência administrativa, entre outros
arrolados no dispositivo134.
Ainda de acordo Batista Júnior (2012, p. 113), com a promulgação da Constituição da
República de 1988, a doutrina e a jurisprudência debateram, ainda de que de modo incipiente,
a incorporação do princípio da eficiência, mesmo que implicitamente, à ordem constitucional.
Ressalta-se, em meio a essa polêmica, que o art. 70, caput, da Constituição já previa
originariamente que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade,
legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, seria exercida
pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de
cada Poder. Do mesmo modo, o art. 74 da Constituição, também prevê a manutenção, pelos
êste artigo. Art. 95. O Poder Executivo promoverá as medidas necessárias à verificação da
produtividade do pessoal a ser empregado em quaisquer atividades da Administração Direta ou de
autarquia, visando a colocá-lo em níveis de competição com a atividade privada ou a evitar custos
injustificáveis de operação, podendo, por via de decreto executivo ou medidas administrativas, adotar
as soluções adequadas, inclusive a eliminação de exigências de pessoal superiores às indicadas pelos
critérios de produtividade e rentabilidade. Art. 96. Nos têrmos da legislação trabalhista, poderão ser
contratados especialistas para atender às exigências de trabalho técnico em institutos, órgãos de
pesquisa e outras entidades especializadas da Administração Direta ou autarquia, segundo critérios
que, para êsse fim, serão estabelecidos em regulamento”.
133 Vide, nesse sentido, o disposto no art, 100 do Decreto Lei nº 200/1967: “Art. 100. Instaurar-se-á
processo administrativo para a demissão ou dispensa de servidor efetivo ou estável, comprovadamente
ineficiente no desempenho dos encargos que lhe competem ou desidioso no cumprimento de seus
deveres”.
134 “Art. 26. No que se refere à Administração Indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar,
essencialmente: I - A realização dos objetivos fixados nos atos de constituição da entidade. II - A
harmonia com a política e a programação do Govêrno no setor de atuação da entidade. III - A
eficiência administrativa. IV - A autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade.
Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes medidas, além de outras
estabelecidas em regulamento: a) indicação ou nomeação pelo Ministro ou, se fôr o caso, eleição dos
dirigentes da entidade, conforme sua natureza jurídica; b) designação, pelo Ministro dos representantes
do Govêrno Federal nas Assembléias Gerais e órgãos de administração ou contrôle da entidade; c)
recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que permitam ao
Ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da
programação financeira aprovados pelo Govêrno; d) aprovação anual da proposta de orçamento-
programa e da programação financeira da entidade, no caso de autarquia; e) aprovação de contas,
relatórios e balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembléias e órgãos
de administração ou contrôle; f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação
econômica, das despesas de pessoal e de administração; g) fixação de critérios para gastos de
publicidade, divulgação e relações públicas; h) realização de auditoria e avaliação periódica de
rendimento e produtividade; i) intervenção, por motivo de interêsse público”.
100
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, de sistema de controle interno, com, entre outras
finalidades, comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da
gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal,
bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado135.
Esse debate teve fim com a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/1998, que
expressamente incluiu o princípio da eficiência ao lado dos demais princípios reitores da
Administração (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade), no caput do art. 37.
Retoma-se, portanto, a noção de que a eficiência foi a ideia síntese invocada pela reforma
administrativa, que culminou com a promulgação da Emenda 19, mas antes disso constava já
como ideal do Plano Diretor de Reforma do Estado, elaborado em 1995.
Por outro lado, quando se fala em eficiência deve-se ter em mente que se cuida de
princípio que comporta diversos aspectos ou vieses, resultado da plurissignificação inerente à
noção, todos convergindo para o objetivo de atuação otimizada da Administração (BATISTA
JÚNIOR, 2012, p. 174). Assim, de acordo com Batista Júnior (2012, p. 176), as duas
principais facetas são a eficácia e a eficiência stricto sensu¸ que, por sua vez, se desdobram
em vários aspectos. São eles, em linhas gerais: 1) Eficácia: ideia que se liga aos resultados
que a Administração Pública deve atender, ou, melhor dizendo, às finalidades a serem
perseguidas pela Administração, que, no Estado Democrático de Direito, estão
inarredavelmente relacionadas aos objetivos fundamentais da República Federativa (art. 3º,
CR∕88), nomeadamente, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BATISTA JÚNIOR, 2012,
p. 179); 2) Universalidade dos Resultados: que diz respeito ao fato de que a atuação
administrativa tem como destinatária a pessoa humana, usuária dos serviços ofertados pelo
Estado, que deve ser contemplada de forma ampla, sem atenção exclusiva a grupos
determinados ou às maiorias circunstanciais, mas atendendo a toda a coletividade, mormente
em um Estado de desiderato social como o brasileiro. A universalidade dos resultados, nesse
sentido, é uma faceta do aspecto da eficácia (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 181); 3) Eficiência
stricto sensu: relacionada à necessidade de proporcionar relação otimizada entre os fins
135 Nesses termos, o art. 74, inciso II, da CR: “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário
manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: [...]II - comprovar a
legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e
patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos
públicos por entidades de direito privado”.
101
almejados pela Administração, de modo a satisfazer no maior nível possível as demandas da
coletividade, e os fatores e tecnologias disponíveis, considerando os recursos relativamente
escassos de que dispõe a Administração Pública (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 182) ; 4)
Produtividade: faceta da eficiência stricto sensu, ligada à ideia de rendimento, ou seja, de
relação positiva entre os recursos aplicados e o produto final obtido ou entre o custo e os
benefícios resultantes (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 183) ; 5) Economicidade: outra faceta da
eficiência stricto sensu, de caráter essencialmente econômico, expressando-se na otimização
da articulação dos meios financeiros (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 186) ; 6) Qualidade:
também faceta da eficiência stricto sensu, está associada à necessidade de otimização do
resultado da atuação administrativa face aos usuários dos serviços estatais ofertados
(BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 193). Nesta faceta, fica enfatizada a necessidade de avaliação
da eficiência administrativa, da otimização dos resultados, do ponto de vista da pessoa
humana, potencial usuária dos serviços disponibilizados, que devem ofertar, por exemplo,
melhores resultados e atendimento igualitário (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 194) ; 7)
Celeridade e presteza: facetas da eficiência stricto sensu, demandam, essencialmente, atuação
administrativa com rapidez e agilidade, especialmente no que toca a prestação dos serviços
estatais (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 196) ; 8) Continuidade na prestação dos serviços
públicos: ainda faceta da eficiência stricto sensu¸ significa que os resultados da atuação
administrativa consubstanciada na prestação de serviços públicos devem ser contínuos,
ininterruptos. Logo, não basta um bom resultado episódico, pois a eficiência exige que o bem
comum seja buscado de forma permanente e contínua (BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 198-
199), 9) Desburocratização: noção atinente tanto à estrutura administrativa quanto à
procedimento administrativo. No primeiro caso, exige o afastamento de estruturas
desnecessariamente complexas, que impliquem, por exemplo, atribuição em duplicidade de
competências ou o afastamento entre Administração Pública e cidadãos. Essencialmente, a
desburocratização, nesse aspecto, reclama o abandono das exageradas estruturas meio,
impondo a concentração dos esforços administrativos nas atividades-fim, voltados ao
atendimento das necessidades públicas. No segundo aspecto, tem a ver com o abandono de
procedimentos administrativos demasiadamente longos e lentos, que tornem difícil a obtenção
de decisões céleres. Também a desburocratização constitui aspecto da eficiência stricto sensu
(BATISTA JÚNIOR, 2012, p. 200-201)136.
136 A visualização dos aspectos, e respectivos conteúdos, do princípio da eficiência remete à lição de
Juarez Freitas (2012, p. 312), que concebe a eficiência como um componente do “direito fundamental
à boa administração”, compreendido como o direito fundamental à administração pública eficiente e
102
Visualizados os distintos aspectos do princípio da eficiência, salienta-se que a tutela de
uma ou apenas algumas de suas facetas não atende ao desiderato constitucional. Explica-se. O
cumprimento do princípio da eficiência administrativa não é alcançado apenas com a
satisfação de um ou de alguns de seus aspectos e facetas137: não basta, por exemplo, que em
uma dada situação concreta a Administração atue com celeridade e presteza, mas em completa
desconexão com o dever de produzir resultados afinados com as demandas da coletividade
(ou seja, sem buscar a eficácia em sua atuação). É necessário, portanto, a coordenação e
concatenação entre os diversos modos de manifestação desse princípio138.
Por outro lado, ainda que, de modo geral, se verifique resistência da jurisprudência
brasileira ao controle principiológico da Administração Pública, em razão de uma suposta
invasão do mérito administrativo, campo legal de exercício de liberdade de escolha pelo
administrador público, conforme registra Onofre Alves Batista Júnior (2012, p. 117)139, e
considerando o viés de alguns estudiosos de considerar o princípio da eficiência como mera
faceta do princípio da legalidade, conforme já explicitado, não se pode negar sua força
normativa autônoma, a orientar a ação otimizada da Administração, decorrente já da sua
positivação expressa como princípio diferenciado dos demais que norteiam a atuação
administrativa, nos termos do caput do art. 37 da CR∕88.
eficaz, que cumpre seus deveres com proporcionalidade, transparência, motivação, imparcialidade e
respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e
comissivas. De acordo com Freitas (2012, p. 313) integram o conceito de direito à boa administração
uma série de direitos, tutelados em bloco, cujo standard mínimo é composto pelos seguintes: 1) direito
à administração pública transparente, que implica dar concretude à publicidade, a não ser nos casos em
que o sigilo for justificável; 2) direito à administração pública dialógica, que remete às garantias do
contraditório e da ampla defesa e, de modo mais amplo, ao dever de observar o devido processo legal,
com especial ênfase à motivação “consistente e proporcional”; 3) direito à administração pública
imparcial, que seria “aquela que não pratica discriminação negativa de qualquer natureza”; 4) direito à
administração pública proba; 5) direito à administração pública que respeita a “legalidade temperada”,
ou seja, a administração não afeita apenas à legalidade estrita; e, por fim, 6) direito à administração
pública eficiente e eficaz, “[...] econômica e teleologicamente responsável, redutora dos conflitos
intertemporais que só fazem aumentar os custos de transação”.
137 Nesse sentido, cf. Onofre Alves Batista Júnior (2012, p. 175-176).
138 Na mesma linha de entendimento, Juarez Freitas (2012, p. 313), que, ao tratar das escolhas
administrativas face ao dever de realizar o direito fundamental à boa administração, assevera que as
primeiras serão legítimas se, e apenas se, forem sistematicamente eficazes, motivadas, proporcionais,
transparentes, imparciais, respeitadoras da participação social, da moralidade e da plena
responsabilidade por ações e omissões causadoras de danos juridicamente injustos.
139 Sobre o tema do controle jurisdicional da atuação administrativa decorrente de competência
discricionária, cf. Miguel Seabra Fagundes (2010) e Juarez Freitas (2013).
103
6.4.1. Princípio da eficiência e a transferência de tarefas públicas a
particulares: notas sobre as vantagens alegadas e as críticas.
Na perspectiva do desempenho da função administrativa, e, especificamente no que
toca à delegação do poder de polícia, cabe destacar a lição de Catherine M. Donnelly (2007, p.
77-84), a qual assevera que o principal objetivo da delegação de poderes públicos a agentes
privados é o de melhorar o funcionamento do governo por meio do aumento de sua eficiência
e efetividade. No entendimento da autora, efetividade tem a ver com a extensão com que os
objetivos fixados são atingidos; eficiência, por sua vez, está ligada à relação ótima entre
custos e benefícios, ou relação custo-eficácia. Nesse sentido, várias razões explicariam o
traslado (do exercício) de poderes públicos a particulares, como a redução da carga de
trabalho estatal e a preservação dos recursos públicos140, com incremento na qualidade dos
serviços públicos prestados, em contexto em que o Estado é demandado a atuar nas mais
diferentes áreas; a utilização da expertise privada na consecução de atividades de interesse
público; a flexibilidade de regime na execução dessas atividades (especificamente no que toca
a regime de trabalho) e a despolitização de certas atividades estatais, com ganho em
flexibilidade na execução das incumbências governamentais. Fácil perceber, assim, a
proximidade dos argumentos expostos com os preceitos da reforma gerencial intentada no
Brasil, cabendo destacar que Donnelly faz estudo comparado dos sistemas jurídicos
subjacentes à delegação nos Estados Unidos, na Inglaterra e na União Europeia.
A caminho de uma conclusão parcial pode-se afirmar que é notável e inteiramente
justificado que, no Brasil, as discussões acerca da possibilidade da delegação do exercício do
poder de polícia a entes distintos do poder central, e com personalidade jurídica de direito
privado, só tenham ganhado folego a partir da década de 90 do século XX, momento em que,
em meio a transformações políticas, econômicas e sociais em escala global, com o
recrudescimento do fenômeno da globalização, passa-se a ter como mote a redução do
tamanho do Estado, sua reestruturação em consonância com as demandas múltiplas e
cambiantes de uma sociedade diversa e sua atuação guiada pelo princípio da eficiência.
Com efeito, a relação entre a execução do poder de polícia por particulares e a
eficiência administrativa, diz respeito ao fato de que, se o Estado deve buscar a consecução do
interesse público de modo otimizado – neste caso, dando concretude à finalidade de limitar a
140 Preservação dos limitados recursos públicos por meio do emprego de recursos e de expertise
privados na realização de atividades estatais. Nesse sentido, Donnelly (2007, p. 78).
104
liberdade e a propriedade em prol dos interesses coletivos – dentro de um contexto de
escassez de recursos para fazer frente às múltiplas e diversas demandas sociais, de limitações
ao crescimento da máquina administrativa e, ainda, de aproximação e de complementariedade
entre esfera privada e esfera pública, conforme será mais bem desenvolvido no próximo
capítulo, natural que recorra a particulares ou mesmo a entes descentralizados de
personalidade jurídica de direito privado para executar tal incumbência141.
Necessário, ainda, que, para além da transferência de incumbências públicas a
particulares142, instaure-se processo de concreta participação da sociedade na formulação das
políticas públicas concernentes às respectivas atividades, com o fim de legitimar as ações
141 Deve-se ressaltar que esse movimento de traslado de incumbências estatais a particulares no
âmbito da reforma administrativa calcada no gerencialismo não é imune a críticas. Ao lado das
considerações sobre a incorporação, na burocracia brasileira, dos preceitos do gerencialismo, que,
como se viu, não se deu de modo integral ou com a efetividade que se pretendia, devido aos entraves
internos à sua implementação, cabe a elaboração de outras. A transferência da execução de atribuições
públicas a particulares com o objetivo de reduzir a carga de trabalho estatal pode simplesmente
mascarar o descompromisso dos agentes estatais com uma atuação pautada na boa performance. O
traslado de incumbências públicas a particulares pode servir apenas para substituir o monopólio estatal
sobre determinadas atividades por um “monopólio privado”, sem que, a longo prazo, a finalidade de
preservar recursos públicos se torne efetiva, por falta de competitividade. A maior flexibilidade do
regime de execução das atividades delegadas, especialmente no que toca ao regime de trabalho, pode
comprometer a qualidade destas, dentro de um cenário de busca por corte de custos. Agentes públicos
podem ter a mesma expertise que particulares na execução de determinadas tarefas estatais, sendo que,
não raro, exigências político-normativas se sobreporão às questões técnicas, o que faz com que os
representantes eleitos e, especificamente, os administradores públicos, tenham maiores condições de
decisão do que os particulares delegatários na situação concreta. A despolitização de determinas
incumbências estatais pode comprometer a democracia e o controle, com prejuízo à transparência.
Além disso, a delegação a particulares pode deslocar do Estado a necessidade e as consequências de
tomar decisões políticas consideradas difíceis, por impopulares. Nesse sentido, Donnelly (2007, p. 79-
82), ao expor os riscos gerenciais e políticos da delegação. Observa-se que a autora faz suas
considerações voltada aos sistemas jurídicos estadunidense, inglês e comum europeu. Porém, entende-
se que tais ressalvas se aplicam, com as devidas adaptações, à realidade brasileira.
142 Não se pode deixar de notar, em tom crítico, a relação entre o movimento global de redução do
tamanho de Estado e de seu recolhimento a tarefas nucleares à transição que o sociólogo Zygmunt
Bauman (2001) chama de passagem da modernidade pesada, “a modernidade obcecada pelo volume,
uma modernidade do tipo ‘quanto maior, melhor’, ‘tamanho é poder, volume é sucesso’” (BAUMAN,
2001, p. 144) à modernidade leve ou líquida, caracterizada pela descorporificação do trabalho e pela
concomitante leveza do capital, que flui desimpedidamente. Essa é hoje, segundo Bauman, a principal
base de dominação, a nova técnica do poder, que se manifesta, no âmbito gerencial, essencialmente
por meio da estratégia de redução de tamanho (downsizing). Em síntese: “É a mistura de estratégias de
fusão e redução de tamanho que oferece ao capital e ao poder financeiro o espaço para se mover
rapidamente, tornando a amplitude de sua viagem cada vez mais global, ao mesmo tempo em que
priva o trabalho de seu poder de barganha e ruído, imobilizando-o [...]” (BAUMAN, 2011, p. 155).
Nessa perspectiva, o Estado, fragilizado, e os indivíduos, pouco engajados, pouco ou nada podem
fazer para conter o avanço do poder global.
105
administrativas desenvolvidas143, bem como de real144 e efetivo controle da execução dessas
atribuições.
143 Remete-se, neste ponto, a Habermas (1994; 1996) sobre a relação entre público e privado e o
papel da ação comunicativa na legitimação do direito, na perspectiva da teoria discursiva.
144 Em consonância com Maria Tereza Fonseca Dias (2003, p. 251) - ao tratar especificamente da
parte do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado que propõe a constituição de nova relação
entre o Estado, o mercado e a sociedade por meio da institucionalização do Programa de Publicização,
mediante criação das Organizações Sociais -, afirma-se que a ênfase no papel econômico e executivo
de tais entidades, em detrimento de aspectos como o controle social da atividade da Administração
Pública e da formulação de políticas públicas representa aspecto deficitário da reforma. De fato, nesse
ponto específico, a reforma ficou restrita ao recolhimento do Estado de determinados setores
econômicos e prestacionais, de modo que o alargamento do conceito do que é público tem se dado tão
somente para justificar a transferência de atividades estatais apara a iniciativa privada, sem a inserção
da sociedade civil nesse processo. Nesse sentido, Dias (2003, p. 252). Destaca-se, neste ponto, que
Dias trata apenas das relações entre Estado e sociedade no âmbito da prestação de serviços não
exclusivos por entidades sem fins lucrativos, mas as observações são inteiramente cabíveis no que
tange à transferência da execução de atividades estatais típicas a particulares, entre as quais se inclui o
poder de polícia, especialmente quando se visualiza o terceiro objetivo para atividades dessa natureza
contido no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995, p. 46), in verbis: “Fortalecer
práticas de adoção de mecanismos que privilegiem a participação popular tanto na formulação quanto
na avaliação de políticas públicas, viabilizando o controle social das mesmas”.
106
7. SOBRE A POSSIBILIDADE E OS LIMITES DO EXERCÍCIO, POR
PARTICULARES, DE ATOS JURÍDICOS EXPRESSIVOS DO PODER DE
POLÍCIA.
A discussão sobre a possibilidade e os limites da delegação do exercício de atos
jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares está inarredavelmente relacionada às
transformações pelas quais passa o Estado, e com ele, o desempenho da função
administrativa. Entre as várias tendências que podem ser visualizadas na seara das
transformações a que se fez referência, deve ser destacado o recurso cada vez intenso do
Estado às parcerias, em sentido amplo, com particulares, com o fim de desenvolver atividades
de interesse da coletividade. Assim, antes de tratar especificamente dos principais
entendimentos sobre a possibilidade e a extensão da delegação do poder de polícia a
particulares, necessário abordar e compreender os pressupostos dessa discussão.
7.1. Delegação do poder de polícia, relação entre Estado e sociedade e
tendências atuais da administração pública.
Entre as tendências atuais do Direito Administrativo brasileiro, Maria Sylvia Zanella
Di Pietro destaca o fortalecimento da democracia participativa (DI PIETRO, 2011, p. 30), a
aplicação do princípio da subsidiariedade (DI PIETRO, 2011, p. 35-36) e a tentativa de fuga
do Direito Administrativo (DI PIETRO, 2011, p. 38-39). Conforme a autora (DI PIETRO,
2011, p. 27) ressalta, as principais inovações no âmbito do Direito Administrativo foram
introduzidas após o advento da Constituição da República de 1988 – o que pode ser
compreendido como resultado do movimento de constitucionalização desse ramo do direito: a
partir desse marco histórico e jurídico é que foram adotados os princípios do Estado
Democrático de Direito, bem como foram incorporadas novas concepções acerca do
desempenho da função administrativa, sob inspiração do neoliberalismo e do movimento da
globalização, que redundaram na denominada “Reforma da Administração Pública”, inserida
no âmbito da “Reforma do Estado”, sobre a qual se tratou no capítulo anterior.
O fortalecimento da democracia participativa está ligado à previsão de direitos,
garantias e instrumentos relativos à participação dos cidadãos no controle e na gestão das
107
atividades da Administração Pública145, como é o caso do direito à informação (CR∕88, art. 5º,
XXXIII) e da previsão da gestão democrática da saúde e do ensino (respectivamente, CR∕88,
art. 198, III e art. 206, VI) (DI PIETRO, 2011, p. 30).
A segunda tendência, concernente à aplicação do princípio da subsidiariedade, diz
respeito à retração do Estado e, concomitantemente, ao maior protagonismo dos atores
privados na condução de seus interesses. De fato, conforme explana Di Pietro (2011, p. 35) o
princípio da subsidiariedade surgiu no fim do século XIX e início do século XX, ou seja,
antes mesmo da concepção de Estado Democrático de Direito, tendo encontrado acolhida na
Doutrina Social da Igreja Católica, especialmente por meio das Encíclicas Rerum Novarum,
de Leão XIII (1891), Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI (1931), Mater et Magistra, de João
XXIII (1961) e Centesimus Annus, de João Paulo II (1991).
Segundo Emerson Gabardo (2009, p. 216) a construção dogmática atual do princípio
da subsidiariedade deriva tanto dos ensinamentos da doutrina social da Igreja quanto das
concepções do liberalismo político e econômico. Na verdade, ambas estariam imbricadas,
tanto que o autor denomina a doutrina social da Igreja Católica de “uma teoria liberal
enfraquecida” (GABARDO, 2009, p. 216). No Brasil, o princípio da subsidiariedade teria
sido incorporado pela Constituição de 1967 (art.170) (GABARDO, 2009, p. 225) e pela
Constituição de 1988, que teriam abrigado a noção de que o Estado deve se abster de
desempenhar atividades econômicas, atuando apenas em caso de deficiência da iniciativa
privada. A base constitucional do princípio da subsidiariedade, na atual ordem normativa
brasileira, estaria, segundo a doutrina, no art. 173 da Constituição, que prevê que o Estado só
está autorizado a explorar atividade econômica por razões de segurança nacional ou relevante
interesse coletivo (GABARDO, 2009, p. 226).
Conforme se depreende das considerações acima, o princípio da subsidiariedade se
assenta em duas premissas: de um lado, o reconhecimento de que “a iniciativa privada, seja
através dos indivíduos, seja através das associações, tem primazia sobre a iniciativa estatal”
145 Nesse contexto é que Almiro do Couto e Silva (1997, p. 64-65) destaca a ascensão da
administração concertada ou consensual (a soft administratiton) em que, no âmbito das relações entre
Estado e indivíduos voltadas à realização de fins de interesse público, busca-se a tomada de decisões
administrativas por meios consensuais. Nesse sentido, em vez de emitir, desde logo, o ato
administrativo, agindo unilateralmente, a Administração Pública procura ou atrai particulares para o
debate e a resolução de questões de interesse comum, a serem assentadas por meio de acordo. Com
efeito, os contratos substitutivos ou alternativos aos atos administrativos são espécie contratual
expressamente albergada pela Lei de Processo Administrativo Alemã, além de também receberem
tratamento na ordem normativa italiana, conforme registra Couto e Silva. Vale dizer que se trata de
instrumento de especial relevância no âmbito do direito urbanístico (emissão de licenças urbanísticas),
do direito ambiental e do direito econômico. Sobre este tema, conferir, entre estudiosos estrangeiros e
nacionais, Kirkby (2011), Batista Júnior (2007), Riccio (2015).
108
(DI PIETRO, 2011, p. 35); de outro, a abstenção do Estado, que não deve desempenhar
atividades que os particulares têm condições de realizar por sua própria inciativa e com seus
próprios recursos.
Conforme ressalta Floriano de Azevedo Marques Neto (2006, p. 10), o supedâneo
filosófico ao princípio da subsidiariedade é a suposição de que as instituições sociais
prescindem do Estado para resolver grande parte dos problemas advindos do convívio social.
Nessa perspectiva, a intervenção estatal destinada a dirimir os conflitos e solucionar as
questões não resolvidas pelo corpo social é vista como excepcional, residual, e só se faz
presente diante de eventual hipossuficiência dos particulares, tomados individualmente ou
organizados em entes intermédios. Assim, “[...] o manejo da autoridade estatal só se põe
aceitável, porquanto necessária, na medida em que uma finalidade de interesse geral [...] não
seja alcançável autonomamente pelas instituições sociais” (MARQUES NETO, 2006, p. 11).
Vê-se que o princípio implica limitação à intervenção estatal sobre as atividades
particulares146, incumbindo ao Estado, precipuamente, as tarefas de fomentar, coordenar e
fiscalizar os empreendimentos particulares, atuação notadamente mais retraída e cuja
finalidade seria possibilitar à iniciativa privada o sucesso na condução de seus
empreendimentos. Justamente por isso, as duas principais consequências da incorporação do
princípio da subsidiariedade à ordem constitucional brasileira seriam, em primeiro lugar, as
privatizações147, para que as atividades assumidas pelo Estado sejam devolvidas à iniciativa
privada148 e, em segundo, a ampliação da atividade fomento, nas áreas econômica e social,
com o consequentemente fortalecimento do terceiro setor, composto por entidades privadas
que desempenham atividades de interesse público, muitas vez por meio da celebração das
146 É o que defende José Alfredo de Oliveira Baracho (1995, p. 34), para quem, o princípio da
subsidiariedade se aplica a numerosos domínios, como o Direito Econômico e o Direito
Administrativo, e, apesar de sugerir uma função de suplência (que engloba as ideias de
complementariedade e suplementariedade entre as esferas pública e privada), também pode ser
interpretado no sentido da contenção ou restrição da intervenção do Estado.
147 Marques Neto (2006, p. 12) aduz que a ordem constitucional pátria elegeu a liberdade de inciativa
à condição de princípio vetorial, o que, automaticamente, cingiria a intervenção estatal sobre a
economia à subsidiariedade: a atuação estatal sobre o domínio econômico deve ser residual, ainda que
tal característica não a torne desnecessária ou dispensável, já que a intervenção sobre o domínio
econômico é imperativa nas situações em que a atuação dos atores privados coloca em risco valores
coletivos, como o respeito ao meio ambiente, ou se mostra insuficiente para atingir uma finalidade de
interesse geral.
148 Para Di Pietro (2012, p. 19), a relação entre privatização (ou, em sentido amplo, o movimento de
redução do tamanho do Estado) e o já abordado princípio da subsidiariedade existe na medida em que
a subsidiariedade delimita a atuação do Estado em relação à sociedade, evidentemente, restringindo o
primeiro em relação à última. É nesse âmbito que o Estado recorre cada vez mais a parcerias com
particulares, entendidas essas como todas as formas de sociedade que são organizadas entre os setores
público e privado, para a consecução de fins de interesse público.
109
mais variadas espécies de negócios jurídicos com o Estado, a exemplo dos contratos de gestão
e dos termos de parceria149.
Gabardo (2009, p. 212-213), por sua vez, assevera que para a teoria do Estado e para o
direito público subsidiariedade possui significados distintos, assumindo um sentido orgânico
(ou vertical), quando implica a descentralização de competências dos maiores aos menores
núcleos de capacidade, estes mais próximos da questão a ser tratada (o poder local possui
premência sobre o poder central, portanto); e também um sentido funcional (ou horizontal),
hipótese em que se refere ao protagonismo do indivíduo e da sociedade na consecução das
atividades que lhe são necessárias, relegando aos organismos institucionais público-estatais
competência de caráter suplementar.
Entende-se, portanto, pela validade do princípio da subsidiariedade na ordem jurídico-
constitucional brasileira, sendo possível reconhecê-lo como um dos fundamentos para o
traslado cada vez mais intenso de incumbências estatais a particulares.
Por fim, outra tendência umbilicalmente relacionada às considerações tecidas até este
momento é a da “tentativa de fuga do Direito Administrativo” ou “fuga para o direito
privado”, que nada mais seria que a “privatização do regime jurídico” a que se submete a
Administração, de modo a escapar das constrições constitucionais e legais mais incisivas que
recaem sobre a atividade pública, como os deveres de licitar150 e realizar concurso público151,
como regra, de prestar contas152 e de realizar contabilidade de acordo com princípios e regras
próprias153. Vale, desde já, destacar o alerta de Di Pietro (2011, p. 38), para quem essa
tendência “não tem como concretizar-se com a extensão que se possa pretender, tendo em
149 Sobre a relação entre Estado e terceiro setor, conf. Maria Tereza Fonseca Dias (2008).
150 Nos termos do art. 37, inciso XXI, da CR: “Art. 37 [...]XXI - ressalvados os casos especificados
na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de
licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que
estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei,
o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia
do cumprimento das obrigações”.
151 De acordo com o inciso II do art. 37 da CR: “Art. 37 [...] II - a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo
com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as
nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.
152 Vide, nesse sentido, o disposto no art. 70 da CR: “Art. 70. A fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta,
quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas,
será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno
de cada Poder. Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais
a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.
153 A esse respeito, remete-se à Seção II (Dos Orçamentos) do Capítulo II (Das Finanças Públicas) do
Título VI (Da Tributação e do Orçamento) da CR∕88, que compreende os arts. 165 a 169.
110
vista que o direito privado, quando utilizado pela Administração Pública, é sempre derrogado
por normas de direito público, muitas delas com fundamento constitucional”.
De fato, Maria João Estorninho (1999, p. 17) concebe como fuga para o direito
privado as situações em que a Administração Pública adota formas de organização e∕ ou
formas de atuação jurídico-privadas com a finalidade de escapar à incidência do regime de
direito público ao qual normalmente está sujeita, como se verifica, por exemplo, na difusão e
abundante utilização da técnica contratual para desempenho de tarefas públicas. Como alerta
Estorninho (1999, p. 68), a fuga que incialmente era “quase inocente” tornou-se uma fuga
“consciente e perversa”, de modo que passam a ser identificáveis “objetivos velados e sub-
reptícios” (ESTORNINHO, 1999, p. 67) consubstanciados na busca por escapar das
vinculações jurídico-públicas às quais a Administração originalmente estaria sujeita, tais
como as competências, as formas de organização e de atuação, os controles incidentes e a
responsabilidade. Assim,
[...] quando o Direito Administrativo não espelhava o Estado de Direito e
não possuía verdadeiras formas jurisdicionais de protecção, a utilização do
Direito Privado pela Administração Pública era favorável ao cidadão; hoje,
pelo contrário existe esse perigo de a Administração, através de uma “fuga
para o Direito Privado”, se libertar das suas vinculações jurídico-públicas.
(ESTORNINHO, 1999, p. 68)
Ou seja, há o risco de, sob o pretexto de viabilizar e promover as parcerias em meio às
intensas transformações da administração pública e também da sociedade, o Estado buscar se
libertar das constrições típicas do regime jurídico-administrativo, de modo inconstitucional.
Neste trabalho, conquanto se admita a possibilidade do traslado de certos atos
jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares, dá-se ênfase, desde já, ao regime
jurídico que guiará o desempenho dessa função por terceiro não inserido na Administração
Pública Direta ou Indireta: trata-se do regime jurídico público, com todas as constrições e
prerrogativas que lhe são inerentes. Mais do que isso, não se reconhece que o particular possa
exercer amplos poderes de decisão concernentes à atividade delegada, conforme será mais
bem explicitado em tópico infra. Assim, nesse caso, não há que falar em fuga do Direito
Administrativo, ou, dito de outro modo, fuga para o direito privado.
De outro giro, pode-se dizer que a ideia fortemente ligada à subsidiariedade e à fuga
para o direito privado é a de privatização em sentido amplo, que abrange todas as medidas
111
adotadas com o fim de diminuir o tamanho do Estado154 e que compreende, entre as mais
importantes consequências, os movimentos de desmonopolização da atividade econômica; a
busca por formas privadas de gestão, como as concessões tradicionais de serviços públicos e,
mais recentemente, as parcerias público-privadas; e a venda de ações de empresas estatais ao
setor privado, a desestatização (DI PIETRO, 2012, p. 6).
Salienta-se, em perspectiva diversa, mas relacionada ao tema da privatização, a
dicotomia Estado∕ sociedade155, que, por sua vez, está imbricada à distinção entre direito
público e direito privado. Esta, conforme sustenta Bobbio (2007, p. 13-15), é tão preeminente,
tão constante na história e de força inclusiva tão expressiva que se chegou a denominá-la
“categoria a priori do pensamento jurídico”. É Florivaldo Dutra de Araújo (2011, p. 143)
quem registra os principais critérios de distinção entre os polos dessa summa divisio: a teoria
dos interesses, a teoria do sujeito da relação, a teoria da coordenação∕ subordinação e a teoria
da imputação.
Em síntese, conforme relata Araújo (2011, p. 143), a teoria dos interesses (ou teoria da
utilidade ou do interesse protegido), com origem no Direito Romano, identifica o direito
público como aquele que se refere ao estado (interesses públicos) enquanto o direito privado
diz respeito à utilidade dos particulares (interesses privados). Alvo de críticas, como a que
nega a possibilidade de recondução do interesse tutelado pelas normas jurídicas
exclusivamente ao estado ou ao particular, ou, ainda, em uma segunda fase de
desenvolvimento dessa teoria, que se possa identificar a preponderância do interesse público
154 Em sentido estrito, privatização significa a perda da titularidade estatal sobre suas empresas, ou,
em outros termos, a transferência patrimonial das empresas estatais à iniciativa privada (DI PIETRO,
2012, p. 8). Adicionalmente, Gardella (2003, p. 62) aduz que privatização em sentido estrito implica a
perda da competência exclusiva do Estado de gerir serviços públicos, que, com o movimento de
traslado aos particulares, deixam de ser considerados públicos (o status jurídico de serviço público, em
especial, a incidência predominante do regime jurídico-administrativo, deixa de valer).
Essencialmente, a privatização afeta a intervenção direta da Administração sobre a economia e a
prestação de serviços públicos.
155 O dualismo Estado/Sociedade Civil é, de acordo com Boaventura Santos (1990), o mais
importante do pensamento ocidental moderno. Enquanto a sociedade civil é concebida como o
domínio próprio da vida econômica e das relações sociais espontâneas orientadas pelos interesses
privados e particularísticos, o Estado é entendido como uma realidade construída, uma criação
artificial. Sobre o significado de sociedade civil e Estado, vale destacar as lições Bobbio (2007), que
faz as seguintes advertências: 1) as acepções de ambos os termos são múltiplas e estão umbilicalmente
ligadas, de modo que definir o que se entende por sociedade civil implica, ao mesmo tempo, delimitar
o significado e a extensão do termo “Estado”; (BOBBIO, 2007, p. 33) 2) o termo sociedade civil pode
ser negativamente delimitado como a esfera de relações sociais não reguladas pelo Estado, entendido
este, de forma restritiva (em uma perspectiva weberiana), como o conjunto dos aparatos que em um
sistema social organizado exercem poder coativo; (BOBBIO, 2007, p. 33) 3) Considerando os
respectivos movimentos de expansão e retração ao longo da história recente, Estado e sociedade atuam
como dois momentos necessários, apartados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes, do
sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna (BOBBIO, 2007, p. 52).
112
ou do interesse privado em dadas situações156, passou-se, posteriormente, à defesa da teoria
do sujeito da relação jurídica (ARAÚJO, 2011, p. 144). Neste caso, o direito público
englobaria as relações em que compareça como sujeito pelo menos uma entidade pública; o
direito privado, por sua vez, abrangeria relações cujos sujeitos são apenas os particulares. A
aplicabilidade dessa teoria foi comprometida na medida em que se percebeu que há relações
jurídicas em que, apesar da presença do Estado, os traços característicos e a normatização
incidente não se distinguem daqueles relativos às relações jurídicos em que comparecem
apenas os particulares (uma relação contratual regida pelo direito civil, por exemplo, como
um contrato de locação de imóvel). Daí é que se passou a afirmar que seriam de direito
público as relações em que o estado e demais entidades públicas comparecessem como
potestade pública, ou seja, no exercício da soberania, em posição de superioridade face aos
particulares.
Ainda em consonância com Araújo (2011, p. 144), essa “segunda fase” da teoria do
sujeito acabou por confundi-la com a teoria da subordinação, que prega como fator diferencial
entre direito público e direito privado a presença do “poder de império” - e, portanto, do
desnivelamento entre os participantes da relação -, presente no primeiro ramo e ausente no
segundo, este caracterizado pelos vínculos de coordenação. Esta teoria, “filha dileta do
liberalismo clássico” (ARAÚJO, 2011, p. 145), apresentaria grave problema metodológico,
para além da dificuldade de distinguir, em certas situações, se há regência do direito público
ou do direito privado157: ela parte da pressuposição de que determinadas relações são de
direito público, enquanto outras são de direito privado. Assim, a teoria está à mercê da busca
por um argumento que a fundamente. Essa noção se alterou, entretanto, com a mudança da
própria concepção de Estado, que passa de uma posição retraída, restrita às funções de defesa
externa e de policiamento interno, à extensão de sua atuação aos mais diversos campos da
vida coletiva (prestando serviços públicos, explorando atividade econômica), com a
consequente alteração de sua relação com a sociedade – que, a seu turno, deixa de ser vista
como o campo por excelência do exercício da “autonomia da vontade” por indivíduos
formalmente iguais perante as leis-, mais pautada por vínculos de coordenação. Por fim, a
156 Exemplo dado por Araújo (2011, p. 144) é o das normas de direito penal no que toca às relações
jurídicas (direito material) ou que digam respeito à ação privada como requisito da persecução penal
(direito processual).
157 Novamente em Araújo (2011, p. 145): as relações entre estados soberanos, por exemplo,
caracterizadas por vínculos de coordenação em razão da soberania, são de direito público ou de direito
privado? Do mesmo modo, as relações concernentes ao exercício do poder familiar (anteriormente,
“pátrio poder”), tendo em vista o desnivelamento das posições jurídicas de pais e filhos, são de direito
público ou de direito privado?
113
teoria da imputação, mais recente, que, em linhas gerais, distingue entre direito público e
direito privado em função da presença do estado e do interesse público em uma dada relação
jurídica: a presença desses caracteres atrairia o primeiro regime (de direito público),
caracterizado pela subordinação, consequentemente repelindo o segundo.
Assim a divisão entre direito público e direito privado, profundamente interligada à
divisão entre Estado e sociedade, cada vez mais tênue, leva à conclusão, com Araújo, de que:
É necessário [...] atentar para os condicionamentos históricos das diversas
teorias que embasam a distinção entre direito público e o direito privado,
para o caráter não absoluto dessa diferenciação e, ainda, para os limites com
que se defrontam quaisquer teorias destinadas à estabelecê-la. Assim, pode
evitar-se o perigo de conceber que em todas as relações jurídicas de direito
público deva o estado apresentar-se subordinando terceiros à sua vontade, ou
que somente assim se estaria resguardando o interesse público. (ARAÚJO,
2011, p. 150)
Observa-se, nesse cenário, profundas transformações da intensidade e das modalidades
de intervenção pública no espaço social, bem como das soluções institucionais adotadas para
a consecução do interesse público158. Nesse contexto de reconfiguração do papel e das
funções do Estado ganha relevo a contribuição dos particulares para o desempenho da função
pública, dentro de um contexto de retração do Estado.
Deve-se ressaltar, ainda, que a transferência, pelo Estado, da execução de tarefas
públicas a particulares não é expediente novo e remonta já aos momentos iniciais de
desenvolvimento do Direito Administrativo. A prestação de serviços públicos por
particulares, devidamente habilitados pelo Estado, para citar apenas um exemplo, tem sido
largamente utilizada desde o século XIX. O que diferencia a participação privada na execução
de tarefas públicas nos dias atuais, em relação às atribuições tradicionalmente transferidas a
particulares ao longo da história do Direito Administrativo, é a própria natureza das tarefas
para cuja execução tais particulares têm sido convocados: se antes a participação dos
particulares se restringia à gestão e exploração de serviços públicos e de outas atividades
158 Nesse sentido, cf. Gonçalves (2008, p. 13). O autor (GONÇALVES, 2008, p. 14-15) destaca que o
Estado tem se valido de duas estratégias para obter a cooperação de particulares na consecução do
interesse público: de um lado, utiliza-se da “privatização de responsabilidades públicas” e, de outro, da
“ativação de responsabilidades privadas”. Nesse âmbito, marcado por ideologia que prega as virtudes
do mercado e o dever de eficiência e que, ao mesmo tempo, revela a complexidade dos problemas
modernos, que exigem domínio de conhecimentos e capacidades (empresariais, científicas,
tecnológicas) “de que o Estado efectivamente não dispõe”, processa-se o reforço da responsabilidade
dos atores privados na realização do interesse público. Observa-se, simultaneamente, o
recrudescimento da privatização e, com ela, a delegação das funções administrativas e de poderes
públicos a particulares.
114
públicas “de natureza essencialmente técnica e empresarial” (GONÇALVES, 2008, p. 16),
hoje, no contexto de transformações a que se vem fazendo referência, ela se espraia até a
execução de tarefas nucleares do Estado, englobando desde a gestão de prisões até tarefas
concernentes à manutenção da ordem e da tranquilidade públicas159.
Com esteio nas considerações formuladas até o presente momento é que se passa a
apresentar e examinar os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da
possibilidade e dos limites do exercício, por particulares, de atos jurídicos expressivos do
poder de polícia, por delegação do Estado.
7.2. Os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do exercício,
por particulares, de atos jurídicos expressivos do poder de polícia.
Desde já é preciso fazer uma advertência: quando se trata do exame da possibilidade e
dos limites à delegação do poder de polícia a particulares é necessário apartar as estratégias de
polícia (ou modos de manifestação do poder de polícia) – que são, em síntese, regulação,
fiscalização e sanção – dos meios que viabilizam ou concretizam tais estratégias, com
destaque para os atos jurídicos, objetos específicos de investigação neste trabalho, conforme
as considerações tecidas no Capítulo 5. Como bem ressalta Thiago Marrara (2014, p. 570), a
delegação, em regra, não recai sobre a estratégia ou modo de manifestação do poder de
polícia, que envolve um conjunto de atos e medidas de natureza diversa, mas sim sobre os
atos especificamente considerados, que ora deflagram efeitos jurídicos, ora efeitos
estritamente materiais.
De fato, as estratégias de polícia demandam legitimação democrática, já que ligadas à
condução e implementação das políticas estatais, que invariavelmente serão discutidas no
Poder Legislativo, e, assim, estão condicionadas às escolhas do povo, por meio de seus
representantes ou através de mecanismos que viabilizam a democracia direta. Não se delega a
estratégia, portanto, mas sim determinados atos, conforme assevera Marrara (2014, p.571):
“as atividades de polícia não são transferidas em bloco a particulares. Defender ou não a
delegação de maneira genérica parece questionável. A experiência brasileira revela a
transferência de atos específicos, sobretudo os de natureza fiscalizatória, técnica e material”.
159 É o que ressalta Gonçalves (2008, p. 16). Como sintetiza o autor (GONÇALVES, 2008, p. 17):
“[...] o aspecto verdadeiramente inovador das actuais formas de contracting out do Estado reside no
espetacular alargamento do universo de funções delegáveis e na percepção da surpreendente
delegabilidade de certas missões públicas”.
115
7.2.1. O conteúdo jurídico do termo delegação.
Até o presente momento, este trabalho apresentou as transformações pelas quais passa
o Estado (e, com ele, a Administração Pública), o qual se utiliza cada vez mais intensamente
das parceiras com figuras alheias ao aparelho administrativo para promover a consecução do
interesse público. Deu-se enfoque, também, aos pressupostos que sustentam o traslado da
incumbência de executar atos jurídicos de polícia a particulares. À transferência da missão de
exercer atos jurídicos de polícia deu-se a denominação “delegação”. Entretanto, como se verá
a seguir, o emprego do termo na doutrina não é uníssono, razão pela qual cabe esclarecer o
seu conteúdo jurídico.
Com efeito, Flávio Henrique Unes Pereira (2013, p. 85-86), com fundamento nas
lições de Pedro Gonçalves (2008), denomina “delegação” a transferência do exercício de
poderes públicos pertencentes a uma entidade pública, que conserva a titularidade destes,
apesar da transferência. Nesse sentido, a delegação independeria da relação jurídica vertical
estabelecida entre Estado e delegatário - estando desvinculada, portanto, da existência de
relação hierárquica entre ambos - e mesmo da prestação de serviços públicos, em sentido
estrito, mediante a celebração de contratos de concessão ou permissão160.
Partindo dessa premissa, a delegação pode provir de lei, de ato administrativo ou de
contrato administrativo. Nas duas últimas hipóteses (ato e contrato), a transferência
necessariamente terá fundamento em autorização legal, uma vez que a Administração está
adstrita à observância do princípio da juridicidade161.
A respeito da necessidade de autorização legal para delegar atos jurídicos expressivos
de poder de polícia, é necessário ressalvar que a doutrina pátria debate, sem chegar a
entendimento unívoco, sobre sua imprescindibilidade ou não, quando se trata de delegar a
particulares o exercício de outra atividade típica de Estado, qual seja: o serviço público.
A origem do debate está no fato de que a Lei nº 8.987∕1995, que contém normas gerais
sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos em regulamentação do art. 175
160 No mesmo sentido de Flávio Unes, ou seja, o de entender o termo “delegação” de modo amplo,
está Catherine M. Donnelly (2007, p. 3), que, na perspectiva da análise comparativa da delegação do
poder estatal a entidades privadas em três sistemas jurídicos (estadunidense, inglês e comunitário
europeu), afirma que delegar significa nada mais do que a transferir autoridade, independentemente da
existência de relação hierárquica entre o delegante e o delegatário. Além disso, Donnelly (2007, p. 4)
registra que as três principais técnicas de delegação que emergiram nos Estados Unidos, na União
Europeia e na Inglaterra são a lei, o contrato e a outorga (grant, no original em inglês)
161 Entende-se que a lei legitima, em tese, o traslado, pois se pressupõe que ela reflete os ditames da
Constituição da República.
116
da Constituição, em nenhum momento menciona a necessidade de lei autorizadora para
delegar.
Embora a Lei nº 8.987/1995 não trate da necessidade de lei autorizadora para a
concessão de serviços públicos, a Lei nº 9.074/1995, que também disciplina as concessões, o
faz. Nos termos do caput do art. 2º da Lei nº 9.074∕1995:
Art. 2o É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios executarem obras e serviços públicos por meio de concessão
e permissão de serviço público, sem lei que lhes autorize e fixe os
termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento básico e
limpeza urbana e nos já referidos na Constituição Federal, nas Constituições
Estaduais e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios, observado,
em qualquer caso, os termos da Lei no 8.987, de 1995. (Grifo nosso)
Tratando da concessão comum de serviços públicos, Celso Antônio Bandeira de Mello
(2014, p. 731) assevera que a delegação do serviço público depende de lei autorizadora, uma
vez que não poderia o Poder Executivo, por simples decisão sua, transferir a terceiro a
atribuição de executar atividade tida como peculiar de Estado. E isso porque a incumbência
de prestar esses serviços é estatal, pelo menos em princípio. Por outro lado, o autor destaca a
necessária submissão da atividade administrativa ao princípio da legalidade, concluindo que
“[...] cumpre que a lei fundamente o ato administrativo da concessão, outorgando ao
Executivo competência para adoção desta técnica de prestação de serviço” (BANDEIRA DE
MELLO, 2014, p. 732).
No mesmo sentido, Marçal Justen Filho (2004, p. 14) defende que o regime jurídico
constitucional impõe o reconhecimento de que a delegação via concessão não constitui “mero
ato administrativo”. Assim, a decisão de atribuir a terceiro a prestação de serviço público via
concessão não se insere exclusivamente na competência administrativa do Estado: a
concessão pressupõe uma autorização legislativa. Basicamente, “[...] o ‘poder concedente’
não se constitui na Administração Pública. Toda a comunidade é convocada a manifestar-se
[...] A concessão é uma decisão adotada por órgãos administrativos, mas a partir da
deliberação de toda a sociedade”. (JUSTEN FILHO, 2004, p. 14).
Essa não é, entretanto, visão compartilhada por todos os estudiosos. Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (2012, p. 73), ao analisar a Lei nº 9.074∕1995, que, no caput do seu art. 2º,
veda, como regra geral, que os entes político-administrativos deleguem serviços públicos sem
lei autorizativa prévia, entende que exigir tal autorização para a concessão configura atentado
ao princípio da separação de poderes. Segundo a autora, a exigência dessa autorização implica
117
ingerência indevida do Poder Legislativo sobre o desempenho de atribuições tipicamente
administrativas. Tal interferência do Poder Legislativo sobre o exercício de atribuições do
Poder Executivo, por constituir ato de controle prévio, apenas seria cabível nas hipóteses
expressamente previstas na Constituição - em especial, nos arts. 49, 51 e 52, que tratam dos
atos a serem autorizados pelo Congresso Nacional, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal.
Esta corrente encontra guarida em decisões do STF, ao qual se remete em razão de
exercer o controle concentrado de constitucionalidade. Pesquisa no sítio eletrônico do
Tribunal com as chaves “autorização” “legislativa” “concessão” “serviços” “públicos” retorna
decisões como a do Agravo de Instrumento 755.058 MG162, de relatoria do Ministro Gilmar
Mendes. O Ministro, reportando-se a decisões anteriores do STF sobre o assunto, afirma que a
Corte assentou o entendimento de que a exigência de prévia autorização legislativa para a
celebração de contratos de serviços públicos viola o art. 2º da CR∕88, exatamente o dispositivo
que prevê a separação de poderes, ao estatuir que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são
Poderes independentes e harmônicos entre si163.
No julgamento da ADI 462 BA164, decisão citada no Acórdão do AI 755.058, o relator,
Ministro Moreira Alves, aduz que vincular a concessão de serviços públicos à prévia
autorização legislativa transforma tal autorização em um pressuposto de validade do contrato
administrativo (ressalva-se o fato de o Ministro tratar a concessão como ato). Nesse sentido, a
autorização configuraria uma forma indevida de participação do Legislativo no desempenho
de função administrativa, já que não encontraria supedâneo da ordem constitucional,
considerando que ao Legislativo caberia precipuamente o exercício da fiscalização “a
posteriori” do “exercício da direção da administração que cabe ao Poder Executivo”.
162 Trata-se de agravo interposto pela Câmara Municipal de Ubá contra decisão que inadmitiu recurso
extraordinário interposto em face de acórdão do TJMG que entendeu pela inconstitucionalidade da
previsão, na Lei Orgânica do Município, da necessidade de prévia autorização legislativa para delegar
serviços públicos via concessão e permissão.
163 Fabrício Motta (2007, p. 57) destaca que a doutrina mais recente vem tratando a separação de
poderes em duas acepções: uma primeira, clássica, denominada “dimensão negativa”, serve aos
tradicionais objetivos de dividir, controlar e limitar o poder; a segunda, “dimensão positiva”, visa
consagrar um esquema de distribuição de competências, funções e responsabilidades, de modo a obter
um poder constitucionalizado, ordenado e organizado de modo que suas decisões sejam
funcionalmente eficazes e materialmente justas.
164 A ADI 462 foi proposta pelo Governador do Estado da Bahia em desfavor da Assembleia
Legislativa do mesmo estado. Foi impugnado, entre outras regras da Constituição estadual, o
dispositivo que previu a necessidade de prévia autorização legislativa para conceder serviços públicos.
118
Ainda nessa toada, o julgamento da ADI 676 RJ165, de relatoria do Ministro Carlos
Velloso, também citado no Acórdão do AI 755.058.
Em meio a esse debate, são numerosos os atos normativos dos diversos entes político-
administrativos que vinculam a concessão de serviços públicos à prévia autorização
legislativa. Apenas a título de exemplo, cita-se o disposto no art. 67, §4º, da Lei Orgânica do
Município de Belo Horizonte, que prevê:
Art. 67 - A lei disporá sobre a organização, o funcionamento, a fiscalização e
a segurança dos serviços públicos de interesse local, prestados mediante
delegação, incumbindo aos que os executarem sua permanente atualização e
adequação às necessidades dos usuários. [...] § 4º - A concessão só será
feita com autorização legislativa e mediante contrato, observada a
legislação referente à licitação e contratação. (Grifo nosso)
Com essas considerações, observa-se que parte dos estudiosos e da jurisprudência do
STF se posiciona no sentido de negar a necessidade de edição de lei autorizativa para delegar
serviços públicos, ao argumento principal de que tal autorização viola o princípio
constitucional da separação dos poderes, pois configura ingerência indevida do Poder
Legislativo sobre o Poder Executivo.
Ressalta-se, por outro lado, que o serviço público, enquanto uma das espécies de
atividades desempenhadas no exercício da função administrativa, não é objeto de estudo
específico neste trabalho e todas as menções feitas a sua delegação, neste tópico, servem ao
propósito de realçar, em contraponto, o regime da delegação do poder de polícia.
Explica-se. Assim como não traz cláusula genérica que impeça a delegação do
exercício do poder de polícia, a Constituição não possui dispositivo semelhante ao seu art.
175 no que tange especificamente ao seu desempenho por particulares. Desse modo, cabe
questionar: diante da ausência de disciplina constitucional expressa sobre o tema, é necessária
a existência de autorização legislativa prévia para delegar o poder de polícia? Se a resposta a
essa pergunta varia ao sabor dos entendimentos quando se trata de serviços públicos, o
mesmo não pode acontecer com o poder de polícia, em especial quando se considera o objeto
sobre o qual recai essa atividade estatal: liberdade e propriedade dos cidadãos.
165 A ADI 676 foi proposta pelo Governador do Rio de Janeiro em face da Assembleia Legislativa do
mesmo estado. Foi impugnado o dispositivo da Constituição estadual que previu a necessidade de
aprovação legislativa dos contratos, convênios, convenções coletivas e acordos celebrados pelo Poder
Executivo, além de outro dispositivo que sujeitava à deliberação do Legislativo atos dos Secretários
estaduais. Em votação unânime, o STF julgou a ação procedente para declarar a inconstitucionalidade
dos dispositivos impugnados, por afronta ao art. 2º da CR∕88 (que consagra o “princípio da
independência e harmonia dos poderes”, nos termos do Acórdão).
119
Defende-se aqui a necessidade de prévia autorização legislativa para delegar o
exercício do poder de polícia, atividade típica de Estado, assim como ocorre com os serviços
públicos. Vale lembrar, neste ponto, que a delegação pode ser feita diretamente pela própria
lei.
A outra conclusão não se pode chegar.
No que tange à defesa de que a lei autorizativa da delegação viola o princípio da
separação de poderes, cumpre destacar, com Fabrício Motta (2007, p. 57), que a compreensão
da separação de poderes passou por significativas mudanças em meio ao novo
constitucionalismo, que está calcado, entre outras características, no primado dos direitos
fundamentais. Assim, não se pode considerar que tal princípio constitua um fim em si mesmo,
sendo imprescindível o confronto de suas concepções originais com o ordenamento jurídico
de cada Estado: ele não mais pode prevalecer como um valor dogmático ou receita universal.
A seu turno, a existência de lei prévia, desde que consonante com a Constituição,
legitima democraticamente a delegação. Cumpre trazer à lume, neste ponto, as palavras de
Jacques Chevallier:
O Estado de Direito implica que a liberdade de decisão dos órgãos do Estado
é, em todos os níveis, enquadrada pela existência de normas jurídicas, cujo
respeito é garantido pela intervenção de um juiz; ele pressupõe que os eleitos
já não mais dispõem de uma autoridade não compartilhada, mas que o seu
poder é, por essência, limitado. (CHEVALLIER, 2013, p. 112)
A democracia, aqui, está menos ligada ao sistema representativo e muito mais próxima
do respeito ao pluralismo, à participação mais direta dos cidadãos nas escolhas coletivas e à
garantia dos direitos e liberdades, conforme ressalta Chevallier (2013, p. 116).
É imprescindível, portanto, que os cidadãos participem, por meio do Poder
Legislativo, da decisão sobre a delegação do poder de polícia, especialmente porque se trata
de atividade sensível do ponto de vista dos objetos sobre os quais incide: liberdade e
propriedade166.
166 Em perspectiva semelhante, Flávio Unes, segundo o qual: “A execução do poder de polícia
administrativa por particulares pressupõe [...] legitimidade democrática, sobretudo porque se está
diante de atribuição estatal que, essencialmente, cuida de fixar liberdade privada e, portanto, requer o
substrato democrático para se legitimar. [...] A característica essencialmente dialógica do processo
legislativo permitirá expor o potencial risco da delegação do exercício da atividade de polícia
administrativa [...] A exigência de lei, conferindo a qualidade de agente delegado para o exercício de
função pública afasta a afronta ao princípio da isonomia, pois não se trata de simples imposição de
obrigações entre particulares, mas, sim, de delegação de função pública, imprescindivelmente
dependente de lei” (PEREIRA, 2013, p. 138-140).
120
Citam-se, nesse cenário, como exemplos de delegação legal, as hipóteses dos poderes
exercidos por comandantes de embarcações e algumas situações de reconhecimento de
poderes de polícia a proprietários de estabelecimentos comerciais167.
Delegação por ato seria aquela relativa ao trespasse de típicos poderes públicos aos
titulares de serviços notariais168.
A seu turno, delegação contratual é aquela concernente ao trespasse de poderes
públicos, incluindo aqueles relativos ao poder de polícia, por meio de negócios jurídicos
celebrados entre Estado e particulares. Nesta categoria estão incluídos os contratos de
concessão e os de permissão169.
Portanto, o conceito de delegação aqui adotado é o de transferência de poderes
públicos, incluindo os relativos ao poder de polícia, independentemente do meio de trespasse
e desvinculado de relação hierárquica entre delegante e delegatário. Cuida-se de termo mais
adequado para examinar o traslado, a particulares, do exercício de típicos poderes públicos170.
167 No estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 13.541/2009, conhecida como Lei Antifumo, proíbe o
consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos e de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do
tabaco, em ambientes de uso coletivo, sejam eles públicos ou privados. Essa Lei prevê que os
responsáveis pelos recintos nela mencionados deverão advertir eventuais infratores sobre a proibição.
A Lei também autoriza a adoção, por tais responsáveis, de medidas visando à retirada dos eventuais
infratores dos estabelecimentos, com a possibilidade de requisição de auxílio às forças policiais. No
mesmo sentido, a Lei nº 5.517/2009, do estado do Rio de Janeiro, que veicula proibição semelhante à
da Lei paulista e prevê que os proprietários dos estabelecimentos e veículos de transporte coletivo,
públicos ou privados, deverão fiscalizar e proteger tais recintos, de modo que neles não seja praticada
a infração prevista. Também neste caso está prevista a possibilidade de requisição de auxílio às forças
policiais, na hipótese de resistência à cessação da conduta proibida.
168 Atividade que não recebeu tratamento específico neste trabalho, por fugir ao escopo delimitado,
uma vez que se discute na doutrina e jurisprudência seu enquadramento entre as modalidades
tradicionais de atuação estatal – serviço público, fomento, poder de polícia, intervenção. Nesse
sentido, cf. Pereira (2013).
169 Há quem negue natureza contratual à permissão, mesmo diante de previsão constitucional (art.
175) e legal, neste caso, expressa (Lei nº 8.987∕1995, art. 40), nesse sentido. Nessa perspectiva, cf., por
todos, Celso Antônio Bandeira de Mello (2014). A permissão seria, assim, uma espécie de ato
administrativo. Sobre a natureza jurídica da permissão, remete-se, na doutrina brasileira, aos estudos
de Cármen Lucia Antunes Rocha (1996) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2012). Acerca da noção
que se pode denominar contemporânea, mais abrangente, de contrato administrativo cf. Gustavo
Alexandre Magalhães (2012)
170 Em posição marcadamente diferenciada, Dolors Canal i Ametller (2003, p. 299-302) entende que
os tradicionais mecanismos administrativos que visam instrumentalizar as relações de colaboração
entre Administração Pública e particulares são inadequados para qualificar o traslado, a agentes
privados, de poderes de autoridade pública. Assim, a autorização administrativa, figura clássica de
polícia administrativa, é instrumento próprio para remover limites e obstáculos previamente
estabelecidos pelo Estado, mas não para ceder a particulares o exercício de típicas funções públicas – a
autora trata especificamente das funções de controle, inspeção e certificação -, em relação às quais
esses agentes privados não possuem qualquer direito subjetivo. Do mesmo modo, a concessão,
“clásica modalidad contractual de gestión indirecta de servicios públicos y [...] una forma de
colaboración de los particulares com la actuación pública” (AMETLLER, 2003, p. 300) é meio
inviável para instrumentalizar o traslado de poderes públicos a particulares. Neste caso, a conclusão de
121
7.3. Fundamentos teóricos da corrente doutrinária e jurisprudencial que
nega a possibilidade de delegação de atos jurídicos expressivos do
poder de polícia a particulares
O exame das lições dos principais administrativistas brasileiros, com obras lançadas a
partir da década de 90 do século XX, período em que se concretizou no Brasil o movimento
de reforma da Administração, guiado pelo princípio da eficiência, revela que a porção
majoritária dos estudiosos nega a possibilidade de delegação de atos jurídicos expressivos do
poder de polícia.
Cita-se incialmente Bandeira de Mello (2014, p. 857) que nega a possibilidade de
delegação, salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses bastante específicas previstas na
ordem normativa. Esse é o caso dos poderes reconhecidos aos comandantes de embarcação,
por expressão previsão da Lei nº 9.537∕ 1997171.
Para Bandeira de Mello (2014, p. 857), a restrição à delegação de atos jurídicos de
polícia a particulares está fundada no entendimento de que não é possível, a princípio,
atribuir-lhes o encargo de praticar atos que implicam o exercício de misteres tipicamente
públicos quando em causa a liberdade e a propriedade, uma vez que tal atribuição ofenderia o
equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando supremacia de uns sobre os outros.
Em sentido semelhante, Di Pietro (2011, p. 122-123) destaca que o poder de polícia
constitui atividade típica de Estado e, assim, apenas por este pode ser exercida. E isso porque
o poder de polícia envolve o exercício de prerrogativas próprias do poder público, em
especial, a repressão. Ademais, em sua perspectiva (DI PIETRO, 2011, p. 123) os atributos da
autoexecutoriedade (que, conforme já se sustentou neste trabalho, pode estar presente ou não,
a depender, como regra, de previsão normativa específica) e da coercibilidade (que engloba o
Ametller se baseou em expressa previsão da (à época em vigor, hoje revogada) Ley de Contratos de
las Administraciones Públicas – LCAP espanhola, que, em seu art. 155.1, admitia a prestação indireta,
mediante contrato, de serviços de titularidade da Administração, desde que tivessem conteúdo
econômico e fossem suscetíveis de exploração por empresários particulares, porém vedava a
prestação, mediante gestão indireta, de serviços que implicassem o exercício de “autoridade inerente
aos poderes públicos”. Hoje, o art. 301.1 do Real Decreto Legislativo 3∕2011, que aprova o texto
consolidado da Ley de Contratos del Sector Público, proíbe que os contratos de serviços tenham como
objeto atividades que impliquem exercício da “autoridade inerente aos poderes públicos”. É vedação
do tipo que não se encontra na Constituição brasileira.
171 A Lei nº 9.537∕ 1997 dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição
nacional e, entre seus dispositivos, prevê que todas as pessoas a bordo estão submetidas à autoridade
do comandante (art. 9º) e que este pode ordenar o desembarque (art. 9º, inciso II) ou mesmo a
detenção de pessoas (art. 9º, inciso III). Fala-se em existência de poder de polícia, nesse caso por se
tratar de atividade, expressamente reconhecida pelo Estado, destinada a restringir a liberdade em prol
do interesse da coletividade consubstanciado, entre outros fins, na realização de uma viagem segura.
122
emprego de meios diretos de coação) só podem ser atribuídos a quem esteja legalmente
investido em cargo público, “cercados de garantias que protegem o exercício das funções
públicas típicas do Estado” (DI PIETRO, 2011, p. 123)172.
Depreende-se dos entendimentos transcritos que o poder de polícia apenas pode ser
exercido por quem ostente o status de autoridade pública, pois se trata de atividade pública
típica que envolve a ingerência unilateral, imperativa, do Estado sobre a esfera juridicamente
protegida dos indivíduos, podendo redundar, até mesmo, no emprego de coação. Em síntese, o
poder de polícia, por dizer respeito ao monopólio da coerção pelo Estado173, não poderia ser
outorgado a particulares, já que não se pode admitir que eles exerçam uns sobre os outros
atribuições em tese concernentes à própria razão de existir do Estado.
É nesse contexto que Marrara (2014, p. 573-574) destaca os principais argumentos
erigidos pela doutrina contra a delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a
particulares: 1) a polícia envolve seara de atividades típicas e exclusivas de Estado,
abrangendo autoridade e poderes de restrição da liberdade e da propriedade, e se distingue de
outras atividades estatais que, por não possuírem caráter predominantemente restritivo,
sujeitam-se à execução indireta, como é o caso dos serviços públicos; 2) a execução de atos
de polícia por entidades privadas com fins lucrativos, sejam elas estatais ou particulares,
contraria o interesse público na medida em que enseja risco de manipulação da ação restritiva,
em especial, a sancionatória, com intuito de aumentar o lucro; 3) o regime privado de trabalho
(“celetista”) é incompatível com o exercício do poder de polícia, uma vez que não garante aos
trabalhadores autonomia necessária para aplicar a lei de modo impessoal, pois estariam
sujeitos a maiores pressões por parte do empregador; 4) há violação ao princípio da igualdade,
já que os particulares incumbidos de executar o poder de polícia estariam em posição
privilegiada em relação ao restante dos membros do corpo social, daí que o poder de polícia
somente pode ser exercido por um “corpo neutro”, o Estado, que atua em respeito à
impessoalidade em relação a todos; 5) o exercício da atividade de polícia por particulares não
172 Na mesma linha, apenas para citar um outro autor que defende a indelegabilidade, Álvaro
Lazzarini (1994, p. 6), que compreende o poder de polícia como um poder administrativo
correspondente ao conjunto de atribuições da Administração enquanto poder público que visam ao
controle dos direitos e liberdades das pessoas, inspirado dos ideais do bem comum. Justamente por ser
um poder administrativo - ou, nas palavras do autor, “um poder instrumental da Administração
Pública, para que ela possa realizar os seus fins” (LAZZARINI, 1994, p. 14) -, o poder de polícia,
enquanto poder público, seria indelegável a qualquer ente privado, pessoa natural ou jurídica, no caso
desta, mesmo quando pertencente à Administração Indireta.
173 Não se trata, nesse contexto, do excepcional emprego da força entre particulares admitido pela
ordem jurídica, como os casos da prisão em flagrante efetuada por particular ou da legítima defesa,
mas sim do hipotético traslado de genuínos poderes públicos a particulares
123
é necessariamente mais eficiente do que a atuação do Estado, uma vez que tal entendimento
possui natureza extrajurídica e depende de demonstração empírica caso a caso; 6) não há
fundamento constitucional para a delegação do exercício do poder de polícia a particulares, ao
contrário do que se verifica com os serviços públicos, cuja execução por pessoas privadas
encontra respaldo, entre outros dispositivos, no art. 175 da Constituição da República.
José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 73), a seu turno, apresenta entendimento
parcialmente dissonante do de Bandeira de Mello (2014) e Di Pietro (2011), distinguindo
entre os denominados “poder de polícia originário” e “poder de polícia delegado”. O primeiro
é exercido pelas pessoas políticas da Federação, a quem cabe editar leis limitadoras da
liberdade e da propriedade e, também, o poder de “minudenciar as restrições”: tal poder
engloba tanto as leis quanto os atos administrativos provenientes dessas pessoas. “Poder de
polícia delegado”, a seu turno, é aquele executado pelas pessoas administrativas vinculadas ao
Estado, com personalidade jurídica de direito público ou de direito privado: sua
Administração Indireta, portanto. A essas pessoas, no entendimento de Carvalho Filho, pode
ser delegado, sempre mediante lei (em sentido formal), o exercício do poder de polícia
(CARVALHO FILHO, 2011, p. 73). Nessa perspectiva, inexistiria qualquer vedação
constitucional a que as pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração
Indireta exerçam o poder de polícia, desde que restrito à sua modalidade fiscalizatória
(CARVALHO FILHO, 2011, p. 74). A tais pessoas não caberia, portanto, a criação de normas
de polícia (ou “regulação de polícia”), mas apenas a função de execução dessas normas
(CARVALHO FILHO, 2011, p. 74). Nesse caso, Carvalho Filho estipula, como condições
para que a pessoa privada da Administração execute o poder de polícia: 1º) a não exploração
de atividade econômica; tais pessoas apenas podem prestar serviços públicos; 2º) exercício do
poder de polícia como algo acessório à prestação de serviços públicos, e não em razão de sua
“essência institucional” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 75).
Já em consonância com Di Pietro e Bandeira de Mello, Carvalho Filho defende que o
poder de polícia não poder ser transferido a pessoas desprovidas de “vinculação oficial com
os entes públicos” – com o que quer dizer que não se pode delegar poder de polícia a quem
não integre a Administração Pública – já que “[...] por maior que seja a parceria que tenham
com estes [o Estado], jamais serão dotados da potestade (ius imperii) necessária ao
desenvolvimento da atividade de polícia” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 75)174.
174 Em sentido consonante, Marrara (2014, p. 579) que afirma que as competências normativas,
legislativas e administrativas, concernentes ao poder de polícia são indelegáveis a particulares, por sua
natureza e em razão de mandamento legal, uma vez que dependem de legitimação democrática.
124
Como já se disse, o entendimento da doutrina majoritária é o de que não se pode
delegar o exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia. O mesmo impedimento
não se aplica, de modo geral, aos atos materiais, de suporte à execução do poder de polícia.
Esses atos podem ser praticados por particulares, em virtude de delegação ou de mero
contrato de prestação de serviços à Administração (por exemplo, um contrato de terceirização
de serviços de vigilância celebrado entre Estado e empresa privada).
Pretendendo delinear o perfil da atividade técnica ou material da Administração, em
contraposição à atividade jurídica stricto sensu, García e Fernández (1991, p. 730) refutam
que a primeira categoria corresponda a indiferentes jurídicos, no sentido de que careceria de
relevância ou interesse para o Direito. Assim, consideram que a atividade material ou técnica
normalmente diz respeito ao exercício de um direito ou de alguma liberdade ou potestade
abrigada pelo Direito. Se não for assim, é porque corresponde a um ilícito, contra o qual a
ordem jurídica reagirá. Nesse sentido, de modo a distinguir entre atividade jurídica a e
atividade técnico-material da Administração, os autores concebem os seguintes critérios: 1) a
atividade jurídica é sempre imputável à Administração, o que não acontece com a atividade
material, diretamente imputável a quem a exerce, pessoa física, embora se reconheça a
participação da Administração, que ordena sua execução (GARCÍA; ENTERRÍA, 1991, p.
731-732); 2) a atividade jurídica se expressa em declarações que produzem efeitos jurídicos,
alterando as situações jurídicas existentes, atributo que falta à atividade material ou técnica,
embora, com isso, não se queira dizer que essa última categoria de atividade não seja regulada
pelo Direito175.
Tratando-se de competência executória, aparta os atos jurídicos concretos de polícia dos atos
materiais: os primeiros, por envolverem o exercício de autoridade que afeta a liberdade e a
propriedade dos indivíduos, não podem ser delegados, sob o risco de violação à igualdade que deve
reger as relações entre os membros do corpo social e também à indisponibilidade do interesse público;
os atos materiais, a seu turno, podem ser delegados, devido à sua natureza instrumental, de suporte, à
realização da atividade de polícia. Neste ponto, Marrara (2014, p. 579) adverte que, se a emissão do
ato executório for de competência exclusiva do Estado, como ocorre com determinados atos
opinativos de cunho técnico, como laudos e pareceres que sustentam a emissão de decisões
administrativas, ainda que estes possuam natureza instrumental, não será possível delegar seu
exercício a particulares.
175 Bandeira de Mello (2014, p. 857) admite que a atividade material relativa, por exemplo, à
fiscalização do cumprimento de normas de trânsito mediante o uso equipamentos fotossensores seja
delegada a empresa privada contratada pelo Poder Público. Isso em razão da natureza da atividade e de
suas características: “[...] objetiva, precisa por excelência, e desde que retentora de dados para controle
governamental e dos interessados, nada importa que os equipamentos pertençam ou sejam geridos pelo
Poder Público ou que pertençam e sejam geridos por particulares, aos quais tenha sido delegada ou
com os quais tenha sido meramente contratada. É que as constatações efetuadas por tal meio
caracterizam-se pela impessoalidade (daí porque não interfere o tema sujeito, da pessoa) e asseguram,
além de exatidão, uma igualdade completa no tratamento dos administrados, o que não seria possível
125
Como apropriadamente aponta Fernando Vernalha Guimarães (2011, p. 414), é
possível supor (na verdade, verifica-se, de fato) a existência de diferença qualitativa entre o
exercício decisório, que seria exclusivo da Administração Pública, no que toca à realização do
poder de polícia – tanto no “âmbito abstrato-normativo”, mas, ainda, quanto às decisões
concretas e específicas” – e a mera execução, por particulares, de atividades materiais
preparatórios e sucessivas à atividade decisória de polícia. Basicamente, portanto, não se
transferiria aos particulares a autoridade decisória, mas apenas os meios que a
instrumentalizam. Assim:
Uma coisa é decidir acerca do conteúdo jurídico e político da manifestação
da polícia administrativa – competência reservada indelegavelmente à
Administração; outra é promover a mera execução, preparatória ou
sucessiva, acerca do que foi (ou será) deliberado pela autoridade pública.
(GUIMARÃES, 2011, p. 414).
Deve-se fazer a ressalva de que na atualidade, devido à complexidade e diversidade
das tarefas assumidas tanto pelo Poder Público quanto pela iniciativa privada, em certas
situações torna-se infrutífera a tarefa de apartar a atividade decisória da atividade meramente
executória, o que dificulta a delimitação, para fins de incidência de regime jurídico, da ação
de decidir em relação à ação de executar materialmente o que foi decidido. Nessas hipóteses,
a solução virá da análise casuística dos arranjos negociais firmados entre Administração
obter com o concurso da intervenção humana”. (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 858). Em relação
aos atos materiais que sucedem o exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia, Bandeira
de Mello (2014, p. 858) adverte que eles podem interferir apenas com a propriedade dos particulares,
nunca com sua liberdade. É a hipótese, por exemplo, de contratação de empresa privada, pelo Poder
Público, para execução da demolição de obras irregulares, desde que desocupadas, caso o proprietário
do imóvel, devidamente notificado, tenha recalcitrado em obedecer à ordem do Poder Público.
Bandeira de Mello (2014, p. 858-859) ainda cita, ao tratar das atividades delegáveis na seara do
desempenho do poder de polícia, a hipótese de emissão de “ato jurídico de polícia inteiramente
vinculado”, por meio de máquina que sirva de veículo de formação e transmissão de decisão do
próprio Poder Público, ainda que o equipamento pertença a empresa privada contratada. Nessa
situação, não haveria sequer delegação, pois o bem privado constituiria veículo de expressão do Poder
Público, sujeito, portanto, à “relação de administração”. Esse é o caso de parquímetros que expedem
autos de infração e de equipamentos de triagem utilizados em aeroportos para detecção de objetos
ilícitos ou simplesmente proibidos. Carvalho Filho (2011, p. 75) também não identifica nessas
situações a ocorrência de delegação a pessoa privada, já que o Estado não promove o traslado do
exercício do poder de polícia, mas apenas atribui a particular a incumbência de operacionalizar
equipamento que serve de meio para a veiculação de atos de polícia, limitando-se os particulares à
mera “constatação de fatos”, sem o poder de decidir quanto à ocorrência, ou não, de afronta à ordem
jurídica.
126
Pública e particulares, de modo a analisar, em cada caso concreto, o nível de interferência
privada no desempenho das ações de polícia176.
Cumpre ressaltar, por outro lado, que o STF já entendeu que pessoas jurídicas de
direito privado, ou, de modo amplo, pessoas sujeitas em alguma medida a regime jurídico de
direito privado, não podem exercer o poder de polícia, em consonância com a posição
majoritária da doutrina. Duas das principais decisões da Corte Constitucional sobre o assunto
evidenciam tal entendimento. Ressalta-se que ambas as decisões a seguir tratadas foram
proferidas a partir da década de 90 do século XX, ou seja, estão inseridas no contexto de
implementação da Reforma da Administração Pública brasileira. Como já se disse, utilizou-se
como critério geral de seleção das decisões a recorrência da invocação de seus argumentos
por estudiosos que defendem a indelegabilidade de atos jurídicos expressivos do poder de
polícia a pessoas jurídicas de direito privado, de modo geral, e, especificamente, a
particulares, de acordo com o que foi explicitado neste tópico. Trata-se de precedentes sobre o
tema.
De fato, na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI Nº 2310177, de relatoria do
Ministro Marco Aurélio Mello, foi analisada a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº
9.986, de 18 de julho de 2000, que previram que as agências reguladoras teriam suas relações
de trabalho regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT178. Em sede de Medida
176 Nesse sentido, cf. Guimarães (2011, p. 414-415).
177 A ADI Nº 2310 foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores em desfavor do Presidente da
República (à época, Fernando Henrique Cardoso) e do Congresso Nacional. Em síntese, o Requerente
arguiu a impossibilidade de existência de regime de emprego público nas agências reguladoras, uma
vez que o exercício da função de fiscalização, em tese inerente ao Estado e desempenhada por tais
agências, pressuporia prerrogativas não compatíveis com o regime trabalhista.
178 Lei nº 9.986/200, artigos 1º; 2º, e parágrafo único; 12, caput e §1º, 13 e parágrafo único, 15; 24,
caput e inciso I; 27; 30 e 33, que, em sua redação original, dispunham: “Art. 1o As Agências
Reguladoras terão suas relações de trabalho regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada
pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e legislação trabalhista correlata, em regime de
emprego público. Art. 2o Ficam criados, para exercício exclusivo nas Agências Reguladoras, os
empregos públicos de nível superior de Regulador, de Analista de Suporte à Regulação, os empregos
de nível médio de Técnico em Regulação e de Técnico de Suporte à Regulação, os cargos efetivos de
nível superior de Procurador, os Cargos Comissionados de Direção – CD, de Gerência Executiva –
CGE, de Assessoria – CA e de Assistência – CAS, e os Cargos Comissionados Técnicos – CCT,
constantes do Anexo I. Parágrafo único. É vedado aos empregados, aos requisitados, aos ocupantes de
cargos comissionados e aos dirigentes das Agências Reguladoras o exercício de outra atividade
profissional, inclusive gestão operacional de empresa, ou direção político-partidária, excetuados os
casos admitidos em lei. [...] Art. 12. A investidura nos empregos públicos do Quadro de Pessoal
Efetivo das Agências dar-se-á por meio de concurso público de provas ou de provas e títulos,
conforme disposto em regulamento próprio de cada Agência, com aprovação e autorização pela
instância de deliberação máxima da organização. 1o O concurso público poderá ser realizado para
provimento efetivo de pessoal em classes distintas de um mesmo emprego público, conforme
disponibilidade orçamentária e de vagas. Art. 13. Os Cargos Comissionados Técnicos são de ocupação
127
Cautelar, o Ministro Relator deferiu liminar para suspender a eficácia dos dispositivos
impugnados, com fundamento em, essencialmente, dois argumentos: 1) as agências
reguladoras, espécie de autarquia (pessoas jurídicas de direito público, portanto), atuam no
exercício do poder de polícia, fiscalizando, cada qual em sua área, a prestação de serviços
públicos delegados à iniciativa privada; 2) poder de polícia é uma das atividades exclusivas
do Estado, na qual o poder de fiscalização estatal se revela com “envergadura ímpar” e, assim,
seu desempenho não comporta a flexibilidade própria do regime de emprego público, daí
porque apenas servidores ocupantes de cargos públicos, cercados de maiores garantias, como
a estabilidade, e menos sujeitos a pressões, podem executá-lo. Posteriormente, a ação foi
julgada prejudicada, em razão da perda do objeto, uma vez que os dispositivos impugnados da
Lei nº 9.986∕2000 foram revogados pela Lei nº 10.871, de 2004.
privativa de servidores e empregados do Quadro de Pessoal Efetivo, do Quadro de Pessoal Específico
e do Quadro de Pessoal em Extinção de que trata o art. 19 e de requisitados de outros órgãos e
entidades da Administração Pública. Parágrafo único. Ao ocupante de Cargo Comissionado Técnico
será pago um valor acrescido ao salário ou vencimento, conforme tabela constante do Anexo II. [...]
Art. 15. Regulamento próprio de cada Agência disporá sobre as atribuições específicas, a estruturação,
a classificação e o respectivo salário dos empregos públicos de que trata o art. 2o, respeitados os
limites remuneratórios definidos no Anexo III. [...] Art. 24. Cabe às Agências, no âmbito de suas
competências. I – administrar os empregos públicos e os cargos comissionados de que trata esta Lei; e
[...] Art. 27. As Agências que vierem a absorver, no Quadro de Pessoal em Extinção de que trata o art.
19 desta Lei, empregados que sejam participantes de entidades fechadas de previdência privada
poderão atuar como suas patrocinadoras na condição de sucessoras de entidades às quais esses
empregados estavam vinculados, observada a exigência de paridade entre a contribuição da
patrocinadora e a contribuição do participante, de acordo com os arts. 5o e 6o da Emenda
Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998. Parágrafo único. O conjunto de empregados de que
trata o caput constituirá massa fechada. [...] Art. 30. Fica criado, no âmbito exclusivo da ANATEL,
dentro do limite de cargos fixados no Anexo I, o Quadro Especial em Extinção, no regime da
Consolidação das Leis do Trabalho, com a finalidade de absorver empregados da Telecomunicações
Brasileiras S.A. - TELEBRÁS, que se encontrarem cedidos àquela Agência na data da publicação
desta Lei. § 1o Os empregados da TELEBRÁS cedidos ao Ministério das Comunicações, na data da
publicação desta Lei, poderão integrar o Quadro Especial em Extinção. § 2o As tabelas salariais a
serem aplicadas aos empregados do Quadro Especial em Extinção de que trata o caput são as
estabelecidas nos Anexos IV e V. § 3o Os valores remuneratórios percebidos pelos empregados que
integrarem o Quadro Especial em Extinção, de que trata o caput, não sofrerão alteração, devendo ser
mantido o desenvolvimento na carreira conforme previsão no Plano de Cargos e Salários em que
estiver enquadrado. § 4o A diferença da remuneração a maior será considerada vantagem pessoal
nominalmente identificada. § 5o A absorção de empregados estabelecida no caput será feita mediante
sucessão trabalhista, não caracterizando rescisão contratual. § 6o A absorção do pessoal no Quadro
Especial em Extinção dar-se-á mediante manifestação formal de aceitação por parte do empregado, no
prazo máximo de quarenta e cinco dias da publicação desta Lei. [...] Art. 33. Os Procuradores
Autárquicos regidos pela Lei no 8.112, de 1990, poderão ser redistribuídos para as Agências, sem
integrar o Quadro de Pessoal Específico, desde que respeitado o número de empregos públicos de
Procurador correspondentes fixado no Anexo I”.
128
A seu turno, na ADI Nº 1.717179, de relatoria do Ministro Sidney Sanchez, foi
examinada a constitucionalidade do art. 58180 da Lei º 9.649, de 27 de maio de 1998, que
previu a possibilidade do exercício dos serviços de fiscalização de profissões regulamentadas
em caráter privado, por delegação do poder público, admitiu a personalidade jurídica de
direito privado para os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, previu a
aplicação do regime jurídico trabalhista às relações de trabalho entre os conselhos e seus
empregados e dispôs sobre a competência desses conselhos para fixar, cobrar e executar
contribuições anuais a serem pagas pelas pessoas físicas ou jurídicas, bem como para cobrar
preços de serviços e multas. O principal argumento erigido para o deferimento da liminar e,
posteriormente, para o julgamento de procedência do pedido, no sentido de afirmar a
inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, foi o de que o poder de polícia constitui
atividade típica do Estado, assim como os poderes de tributar e punir, sendo que a delegação
viola os arts. 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição da
República. Neste último julgado, destaca-se desde já a pouco evidente pertinência entre o
conteúdo dos dispositivos constitucionais que teriam sido violados pelo art. 58 da Lei nº
9.649∕1998, supramencionados, e a questão da possibilidade de delegação do poder de polícia
179 A ADI Nº 1.717 foi proposta em litisconsórcio pelo Partido Comunista do Brasil, pelo Partido dos
Trabalhadores e pelo Partido Democrático Trabalhista em face do Presidente da República. Os
requerentes arguiram a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 9.649∕1998. Em síntese,
visaram combater a (suposta) inconstitucionalidade da delegação de poder público para a realização,
em caráter privado, de serviços de fiscalização de profissões regulamentadas.
180 Na redação original: “Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão
exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa. § 1o
A organização, a estrutura e o funcionamento dos conselhos de fiscalização de profissões
regulamentadas serão disciplinados mediante decisão do plenário do conselho federal da respectiva
profissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos
regionais.§ 2o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotados de personalidade
jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo
funcional ou hierárquico. § 3o Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões
regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição,
transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta.§ 4o Os
conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são autorizados a fixar, cobrar e executar as
contribuições anuais devidas por pessoas físicas e jurídicas, bem como preços de serviços e multas,
que constituirão receitas próprias, considerando-se título executivo extrajudicial a certidão relativa aos
créditos decorrentes. § 5o O controle das atividades financeiras e administrativas dos conselhos de
fiscalização de profissões regulamentadas será realizado pelos seus órgãos internos, devendo os
conselhos regionais prestar contas, anualmente, ao conselho federal da respectiva profissão, e estes aos
conselhos regionais. § 6o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, por constituírem
serviço público, gozam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços. § 7o
Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas promoverão, até 30 de junho de 1998, a
adaptação de seus estatutos e regimentos ao estabelecido neste artigo.§ 8o Compete à Justiça Federal a
apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas,
quando no exercício dos serviços a eles delegados, conforme disposto no caput. § 9o O disposto neste
artigo não se aplica à entidade de que trata a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994”.
129
a particulares. Com efeito, colhe-se no voto do Ministro Maurício Corrêa em sede da Medida
Cautelar a seguinte ponderação: “Concluo que, aparentemente, a lei não trata de matéria que
deva ser examinada como em conflito com a Constituição, senão as remanescentes questões
da delegação legislativa (art. 58, caput) e da extensão da imunidade (idem, §6º) [...]”. Nesse
mesmo voto, o Ministro argumenta que os conselhos poderiam, sim, assumir personalidade
jurídica de direito privado e desempenhar a polícia de profissões por delegação do Poder
Público, pois se trataria de “questão que depende única e exclusivamente da vontade do
legislador” e da configuração que este confere ao seu regime jurídico. De qualquer modo, esse
voto foi vencido no julgamento da liminar.
Destaca-se que nas decisões previamente citadas, em especial, na ADI 2310, o STF
não tratou especificamente da delegabilidade do poder de polícia a particulares, porém, entre
os argumentos erigidos se destaca o de que o poder de polícia é atividade típica de Estado, e,
portanto, não trespassável. Esse é o mesmo “argumento-síntese” empregado pelos estudiosos,
citados neste trabalho, que negam a possibilidade de delegação do poder de polícia a
particulares. Dele, observa-se, derivam os demais óbices levantados contra o traslado do
poder de polícia, notadamente, a (suposta) incompatibilidade entre o regime jurídico de
direito privado, ao qual os particulares estão sujeitos, e o regime jurídico público -
especialmente constritor e, ao mesmo tempo, que confere prerrogativas especiais -
característico do poder de polícia.
Observa-se, nesse cenário, que nos julgamentos acima citados que não há maior
discussão quanto às razões pelas quais o poder de polícia é indelegável a pessoas jurídicas de
direito privado, cingindo-se os argumentos, precipuamente, à evocação da natureza de função
típica do Estado e, portanto, não transferível, sob o risco de comprometimento do interesse
público181.
181 No sentido de diferenciar atos jurídicos expressivos do poder de polícia (que seriam indelegáveis)
e atos materiais de suporte ao desempenho dessa atividade estatal (passíveis de trespasse), colhe-se a
seguinte decisão do Tribunal de Justiça de Sergipe, assim ementada: “Apelação Cível. Ação
Anulatória. Multa de Trânsito. Contrato de prestação de serviços com empresa privada. Utilização de
equipamento fotossensor. Atos materiais preparatórios ao efetivo exercício do poder de polícia.
Constitucionalidade. Não caracterização de delegação do poder de polícia. Alegação de desrespeito à
Resolução nº 079/98 do CONTRAN. Ausência de sinalização adequada. Ônus da Prova que compete
ao Autor. Ato Administrativo. Presunção de legalidade. I - São válidos os contratos destinados à
operacionalização, manutenção e elaboração de arquivos de imagens de veículos automotores
celebrados entre o Poder Público Municipal e Empresas privadas. Tais atos não são considerados
delegação de poder de polícia, mas preparatórios a ele. II - A prova da inexistência de placa de
sinalização indicando o limite de velocidade no local da autuação incumbe ao infrator que se opõe
contra ato administrativo que detém presunção de legalidade. Ademais, trata-se de ato constitutivo de
direito, cujo ônus da prova é daquele que o alega. Recurso provido. Decisão por unanimidade.
(APELAÇÃO CÍVEL Nº 2003207860, 3ª VARA CíVEL, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe,
130
7.4. Fundamentos teóricos da corrente doutrinária e jurisprudencial que
admite a possibilidade de delegação parcial do poder de polícia.
A seu turno, no contexto das transformações pelas quais vem passando o Estado e,
consequentemente, o desempenho da função administrativa, sobre as quais já se tratou, a
defesa da delegabilidade do poder de polícia vem ganhando adeptos. Em especial a partir da
primeira década do século XXI, alguns autores vêm sustentando a delegabilidade de atos
jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares, com maior ou menor amplitude, e já
encontram corroboração no STJ.
Nesse sentido, tratar-se-á, primeiro, dos autores e da jurisprudência que admitem a
delegabilidade parcial do poder de polícia, ou seja, que sustentam a possibilidade de
determinadas facetas desse poder serem trespassadas a particulares. Em seguida, será
abordado entendimento mais recente, ainda essencialmente doutrinário, que defende a ampla
delegabilidade do poder de polícia, seja a particulares, seja às pessoas privadas que compõem
a Administração Indireta.
Com efeito, na seara da defesa da delegabilidade parcial do poder de polícia, cita-se
Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001, p. 133), que, ao desdobrar o poder de polícia em
quatro fases (ordem de polícia, consentimento de polícia, fiscalização de polícia e sanção de
polícia) – fases essas que compõem o denominado ciclo de polícia -, admite a delegação legal
da “normatividade secundária discricionária (regulática) de polícia” (MOREIRA NETO,
2001, p. 133), das atividades de consentimento e de fiscalização de polícia - atividades
compatíveis com o Estado Democrático, no qual se reconhece a origem popular do poder
político - mas não da sanção de polícia, por considerá-la atividade administrativa indelegável,
por configurar reserva coercitiva do Estado.
DESA. CLARA LEITE DE REZENDE, RELATOR, Julgado em 22/06/2004) ”. Parte da
argumentação tecida no Acórdão gira em torno das seguintes premissas: “Como decorrência de tais
contratos [de prestação de serviços celebrado entre Poder Público e particulares para execução de
determinados atos relativos à polícia de trânsito], cumpre a essas empresas a realização de atos
materiais preparatórios tendentes à efetivação do exercício do Poder de Polícia atribuído ao Município
de Aracaju, que se destinam à manutenção, operacionalização e elaboração de arquivos de imagens de
veículos que ultrapassem a velocidade máxima permitida no perímetro urbano. Portanto, inexiste, in
casu, concessão ou delegação do exercício do poder de polícia, não devendo tais atribuições ser
confundidas com o pleno exercício da competência administrativa”. E continua: “Nos simples
contratos de prestação de serviço o prestador do serviço é simples executor material para o poder
público contratante. Daí que não lhe são transferidos poderes públicos. Persiste sempre o Poder
Público como sujeito diretamente relacionado com os usuários e, de conseguinte, como responsável
direto pelos serviços”. Verifica-se, portanto, que essa decisão expressa o entendimento majoritário
quanto à possibilidade e os limites da delegação do poder de polícia a particulares.
131
Em sentido semelhante, Aline Lícia Klein (2014, p. 428), na conclusão de sua tese de
doutorado, refuta a enunciação de princípio geral de indelegabilidade do poder de polícia e
prega a necessidade de análise, caso a caso, dos limites e possibilidades da delegação em
relação a atividades específicas. Nesse sentido, a autora defende ser
[...] possível a delegação de atividades de polícia que não impliquem o uso
da coerção ou manifestação de amplo poder decisório. O particular não pode
fazer uso da força nem ser autorizado a tomar decisões de natureza político-
estratégica ou que impliquem ampla margem de liberdade para determinar os
critérios do desempenho da atividade de polícia administrativa no caso
concreto (KLEIN, 2014, p. 430).
A autora concebe a possibilidade de delegação do poder normativo concernente aos
atos normativos derivados, que possuem como fundamento de validade as leis e dependem de
expressa delegação, a qual delimitará seu âmbito de expressão; da atividade fiscalizatória, que
envolve a emissão de atos materiais e jurídicos e pode implicar o exercício de poderes
públicos, mas não da atividade punitiva, uma vez que o desempenho desta pressupõe o
exercício da soberania estatal, possui caráter repressivo e implica imediata restrição a direitos,
não sendo passível, portanto, de trespasse a particulares (KLEIN, 2014, p. 430-432)182.
182 Cita-se, também nesse sentido, Rafael Wallbach Schwind (2014, p. 140), que, sem admitir o
traslado a particulares de “atividades intrinsecamente estatais”, uma vez que a Administração não
poderia abdicar genericamente do poder que a sociedade lhe atribui para exercer a imperatividade e a
capacidade de coação, afirma que o poder de polícia não envolve necessariamente o emprego da
coerção (SCHWIND, 2014, p. 154). Além disso, ressaltando o aspecto procedimental do poder de
polícia, assevera: “Uma coisa é decidir o conteúdo jurídico e político relacionado com o poder de
polícia. Outra, bem diferente, é a promoção daquilo que é deliberado pela autoridade pública
competente. O procedimento de polícia envolve atividades decisórias e executivas. As primeiras não
podem ser exercidas por particulares; as segundas podem. Ressalve-se que uma atividade
essencialmente executiva pode até envolver a tomada de determinadas decisões, mas esse não será um
conteúdo decisório estratégico. Terá uma faceta, por assim dizer, mais cotidiana”. (SCHWIND, 2014,
p. 140). Assim é que o autor (SCHWIND, 2014, p. 141) conclui ser incabível a proposição de critérios
“absolutos e gerais” para delimitar o que os particulares podem ou não podem exercer no
procedimento de polícia. Primeiro porque as atividades de polícia, no contexto de transformações do
Estado, apresentam crescente complexidade, o que demanda alta especialização de quem as
desenvolve, bem como o emprego de significativos recursos humanos e materiais em sua execução.
Nesse âmbito, a participação dos particulares seria benéfica na medida em que promoveria a eficiência
na realização dessa atividade estatal (SCHWIND, 2014, p. 155). Por outro lado, ressalta que as
atividades englobadas sob o designativo “poder de polícia” são multifacetadas e envolvem decisões
normativas, fiscalizações e sanções, além de lidar com bens jurídicos os mais diversos possíveis:
segurança, saúde, a função social da propriedade, entre outros (SCHWIND, 2014, p. 141). Revela-se
inviável, portanto, na perspectiva apresentada, compartimentalizar o poder de polícia em categorias
estanques, de modo a estabelecer linha de separação entre o que pode ser delegado e o que não pode.
Logo: “Como critério geral, entendemos que o que importa é que a Administração não abra mão de
poderes seus que dependam do exercício da legitimidade política. Mas a solução a respeito da margem
adequada de atuação dos particulares no exercício do poder de polícia há de ser encontrada caso a
132
Na seara dos entendimentos a favor da delegabilidade parcial do poder de polícia,
destaca-se a decisão do STJ em sede do Recurso Especial Nº 817.534. Cuida-se de recurso
interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de
Justiça local que admitiu a possibilidade de delegação de atos fiscalizatórios e sancionatórios,
concernentes à aplicação das normas do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), à Empresa de
Trânsito e Transporte de Belo Horizonte S∕A, sociedade de economia mista criada pelo
Município de Belo Horizonte183.
No Acórdão do STJ, que deu provimento ao recurso interposto pelo Ministério
Público, partiu-se da divisão da atividade de polícia em quatro grupos: a legislação, o
consentimento, a fiscalização e a sanção. De acordo com o voto do Relator Mauro Campbell
Marques, acolhido pelos seus pares da Segunda Turma do STJ, admitiu-se a delegação apenas
dos atos relativos ao consentimento e à fiscalização. A legislação e a sanção seriam
indelegáveis em razão de derivarem do poder de coerção do Poder Público. Neste ponto, a
decisão do STJ diverge parcialmente daquela proferida pelo TJMG, que havia admitido a
delegação da atividade sancionatória. Reproduzindo um dos principais argumentos contra a
ampla delegação do poder de polícia, o Relator do Acórdão afirma: “No que tange aos atos de
sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca
do lucro – aplicação de multas para aumentar a arrecadação”. A seu turno, em seu voto, o
Ministro Herman Benjamin aduz que a objeção à possibilidade de transferir a execução do
poder de polícia em face de um suposto intuito lucrativo do delegatário é inadequada, uma
vez que “é temerário afirmar que o trânsito de uma metrópole pode ser considerado atividade
econômica ou empreendimento”. A questão do intuito lucrativo será novamente abordada
neste trabalho nos tópicos que seguem.
caso, e a partir de arranjos negociais travados entre a Administração e as pessoas privadas”.
(SCHWIND, 2014, p. 141-142).
183 A ementa da decisão do TJMG proferida em sede da Apelação Cível nº 1.0024.04.394724-1/001
diz o seguinte: “ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA -
BHTRANS - PODER DE POLÍCIA - FISCALIZAR O TRÂNSITO E IMPOR SANÇÕES -
COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR - VALIDADE - MATÉRIA DE INTERESSE
LOCAL QUE PODE SER REGULAMENTADA PELA MUNICIPALIDADE. A Empresa de
Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), criada com o objetivo de gerenciar o trânsito
local, tem competência para aplicar multa aos infratores de trânsito, nos termos do art. 24, do Código
Brasileiro de Trânsito. Sendo o poder de polícia inerente à Administração Pública e recebendo o
agente de trânsito delegação da autoridade competente para agir dentro dos limites da jurisdição do
município, extrai-se que este possui o poder-dever de aplicar as multas cabíveis ao ato infracional em
concreto, sob pena de sua atuação, ao final, revelar-se inócua”. (TJMG - Apelação Cível
1.0024.04.394724-1/001, Relator (a): Des. (a) Edilson Fernandes, 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento
em 07/11/2006, publicação da súmula em 21/11/2006).
133
A BHTRANS, por sua vez, opôs Embargos de Declaração, sustentando a existência
de: “(i) omissão acerca da regra de competência, a qual imputa o processamento e o
enfrentamento da presente causa ao Supremo Tribunal Federal (incompatibilidade entre lei
local em face de lei federal); (ii) omissão acerca das regras constitucionais de balizamento da
matéria de fundo (possibilidade de sociedade de economia mista exercer a atividade de
controle de trânsito ante à inexistência de vedação constitucional no ponto); e (iii) contradição
existente entre o provimento final do acórdão (provimento integral do especial) e sua
fundamentação, na qual restou afirmada a possibilidade de a embargante exercer atos
relativos a fiscalização.
Nesse sentido, conquanto tenha refutado a presença de omissões no Acórdão, o STJ
reconheceu a existência de contradições, tendo aduzido e decidido neste ponto específico pelo
afastamento da decisão originária e provimento parcial dos Embargos de Declaração, nos
seguintes termos: “ [...] no que diz respeito ao item (iii), assiste razão à embargante.16. Tanto
no voto condutor, como no voto-vista do Min. Herman Benjamin, ficou claro que as
atividades de consentimento e fiscalização podem ser delegadas, pois compatíveis com a
personalidade privadas das sociedades de economia mista.17. Nada obstante, no recurso
especial, o pedido do Ministério Público tinha como objetivo impossibilitar que a parte
embargante exercesse atividades de policiamento e autuação de infrações, motivo pelo
qual o provimento integral do especial poderia dar a entender que os atos fiscalizatórios
não podiam ser desempenhados pela parte recorrida-embargante.18. Mas, ao contrário,
permanece o teor da fundamentação e, para sanar a contradição, é necessária a reforma
do provimento final do recurso, para lhe dar parcial provimento, permitindo os atos de
fiscalização (policiamento), mas não a imposição de sanções.19. Embargos de declaração
parcialmente acolhidos, com efeitos modificativos, para dar parcial provimento ao recurso
especial, no sentido de que permanece a vedação à imposição de sanções pela parte
embargada, facultado, no entanto, o exercício do poder de polícia no seu aspecto
fiscalizatório”. (Grifo nosso)
A decisão do STJ, ainda que signifique importante passo contra a alegação de absoluta
indelegabilidade do poder de polícia, merece críticas na medida em que confunde as
estratégias com os atos de polícia. Conforme já se sustentou neste trabalho, a avaliação quanto
à possibilidade ou não da delegação deve se dar em relação aos atos especificamente
134
considerados e não em relação às estratégias, que envolvem a concepção e a implementação
de políticas exclusivamente a cargo do Estado184.
Antes de prosseguir na análise da terceira corrente de entendimento acerca da
delegabilidade do poder de polícia, cabe realçar que o “caso BHTRANS” seguiu para análise
do Supremo Tribunal Federal, tendo sido reconhecida a repercussão geral da matéria,
conforme decisão do Ministro Luiz Fux em sede do ARE 662.186, no ano de 2012. O
Recurso estava pendente de decisão até o momento de conclusão deste trabalho185.
184 Nesse sentido, Thiago Marrara: “[...] as estratégias de polícia sob a ótica funcional não dizem
nada quanto ao seu conteúdo e efeito jurídico. Por essa razão, mesmo quando se pensa no exercício da
atividade fiscalizatória, naturalmente existem aí atos jurídicos e atos meramente materiais. Decidir o
que, como e quando fiscalizar é estratégia que compete ao Estado e não ao particular [...] Da mesma
forma, a atividade de sancionamento é complexa e igualmente envolve atos preparatórios e atos
jurídicos”. (MARRARA, 2014, p. 578).
185 Ao examinar o Agravo de Instrumento nº 2045152-81.2016.8.26.0000, interposto pela Empresa
de Trânsito e Transporte Urbano de Ribeirão Preto – TRANSERP, no qual esta se insurgiu contra
deferimento de antecipação de tutela que suspendeu os efeitos de multas de trânsito por ela lavradas, o
Tribunal de Justiça de São Paulo, mesmo reconhecendo a controvérsia sobre a matéria de fundo
(possibilidade de pessoa jurídica de direito privado exercer o poder de polícia), negou provimento ao
Recurso sob o argumento de que a decisão do órgão a quo se embasava na jurisprudência dominante,
que entende pela impossibilidade de aplicação de sanções administrativas por sociedade de economia
mista. No mesmo Acórdão, voto divergente do Desembargador Leonel Costa argumenta no sentido de
que não há vedação constitucional expressa à delegação do poder de polícia, acrescentando que a
admissão da delegação da competência fiscalizatória, desprovida da atribuição de sancionar é
“delegação esvaziada”. Por sua vez, o Acórdão nº 70049790009, Incidente de Inconstitucionalidade do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assenta o entendimento de que é possível que pessoa
jurídica de direito privado, no caso, a Empresa Pública de Transporte e Circulação – EPTC de Porto
Alegre, constituída como sociedade de economia mista, exerça a polícia de trânsito, com atribuições
fiscalizatórias e sancionatórias. Destaca-se, por outro lado, que um dos argumentos erigidos a favor do
exercício do poder de polícia pela EPTC é o fato de ela ser constituída como sociedade de economia
mista de cujo capital social participam exclusivamente pessoas jurídicas de direito público. Nesse
ponto a EPTC se diferiria da BHTRANS, segundo o Acórdão, já que Empresa de Belo Horizonte
admite participação privada em seu capital social. Em suma, nos termos do Acórdão: “a compreensão
de ser a sua personalidade jurídica de direito privado destinada, especificamente, a relações jurídicas
distintas daquela derivada do exercício do poder de polícia do trânsito, que é a sua razão essencial de
existir (art. 10, Lei Municipal nº 8.133/98), submissa esta ao regramento do direito público, permite
aceitar-se a legitimação da atuação fiscalizatória e sancionatória da EPTC”. Neste trabalho entende-se
que o arranjo institucional da pessoa jurídica de direito privado da Administração não é relevante para
fins de aferição da possibilidade de delegação do poder de polícia, já que o regime jurídico dessa
atividade incide independentemente da natureza pública ou privada de quem a desempenha. Esse
argumento será mais bem desenvolvido nos tópicos infra deste capítulo.
135
7.5. Fundamentos teóricos da defesa doutrinária à ampla delegação do
poder de polícia.
Linha de pensamento mais recente defende a ampla delegabilidade do poder de polícia
a particulares, incluindo o traslado de genuínos poderes públicos a pessoas não inseridas na
Administração Pública.
Nesse sentido, destaca-se Flávio Henrique Pereira Unes (2013, p. 165), para quem a
complementariedade entre as esferas pública e privada, no contexto de releitura da
supremacia do interesse público – que não necessariamente se opõe ao interesse privado –
teria revelado o equívoco do entendimento que enxerga a Administração como tutora
exclusiva do interesse público e a esfera privada como detentora de interesses egoísticos
incompatíveis com os interesses da coletividade.
Desse contexto, avultariam as formas de interlocução entre a esfera pública e a seara
privada, no sentido de revelar a inadequação do agir estatal centrado no unilateralismo. Mais
do que isso, com fundamento em autores como Ametller (2003, p. 277-278), Flávio Unes
(2013, p. 165-166) sustenta que o regime jurídico da atividade é que regula sua execução,
independentemente da natureza jurídica, pública ou privada, da pessoa que o executa.
Além disso, em reforço aos argumentos colocados, Flávio Unes (2013, p. 88) assevera
que há no ordenamento jurídico brasileiro diversas hipóteses de delegação de poderes
públicos, incluindo os concernentes à polícia administrativa, a particulares, como o já
mencionado caso dos comandantes de embarcações (hipótese de delegação legal) e também o
de delegação de poderes aos concessionários de serviços públicos do Estado (neste caso, a
delegação proviria de contrato) Adicionalmente, sustenta não haver vedação constitucional ao
traslado do exercício do poder de polícia a particulares, uma vez que “[...] a ausência de regra
constitucional expressa sobre a delegação do poder de polícia administrativa não pode ser
interpretada como proibição a tal delegação” (PEREIRA, 2013, p. 107), e, além disso, não
seria necessária previsão constitucional da delegação186, posição também defendida por
Gonçalves (2008, p. 948-949), tendo em vista que se trataria de mero traslado da execução e
não da titularidade da atividade estatal. Ainda a favor da delegação, entende que alguns
dispositivos constitucionais adeririam à tese da delegabilidade, como é o caso do artigo 37,
186 Porém, a previsão da delegação em lei formal, devidamente aprovada pelo Poder Legislativo em
processo dialógico, seria indispensável, já que “A execução do poder de polícia administrativa por
particulares pressupõe [...] legitimidade democrática, sobretudo porque se está diante de atribuição
estatal que, essencialmente, cuida de fixar limites à liberdade privada e, portanto, requer o substrato
democrático para se legitimar” (PEREIRA, 2013, p. 138).
136
inciso XIX187, e do artigo 241 da Constituição188, que, respectivamente, contém autorização
genérica para a criação de entidade estatal, de direito público ou privado, para execução de
qualquer uma das atividades tipicamente desenvolvidas pela Administração (poder de polícia,
serviço público, fomento e intervenção no domínio econômico) e concede fundamento à
celebração de contrato de consórcio público que possua como objetivo, entre outros fins
(conforme regulamentação da Lei nº 11.107∕2005 e do Decreto nº 6.017∕2007), o desempenho
do poder de polícia, já que a expressão “serviço público” contida em seu texto teria sido
utilizada em sentido amplo, para abarcar conjunto diversificado de atividades estatais189. No
mesmo sentido, cláusulas setoriais, como os arts. 216, §1º, e 225, caput, ambos da
Constituição expressamente admitem a atuação conjunta de particulares na execução do poder
de polícia no que toca, respectivamente, à promoção e defesa do patrimônio cultural brasileiro
e à preservação e proteção do meio ambiente190.
Talvez o argumento mais importante apresentado por Flávio Unes, por revelar
significativa dissonância em relação às duas primeiras correntes de entendimento sobre a
delegabilidade do poder de polícia, seja o que defende a constitucionalidade do exercício de
poderes de coerção por particulares, com fundamento em delegação do Estado. A
coercibilidade, entendida como qualidade de determinar a outrem certa conduta nos limites da
competência legal que disponha sobre determinada matéria é, na visão do autor, passível de
187 No art. 37, inciso XIX, da CR, com redação dada pela EC nº 19/1998, lê-se o seguinte: “Art. 37
[...]XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa
pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último
caso, definir as áreas de sua atuação”.
188 São os termos do art. 241 da CR, com redação dada pela EC nº 19/1998: “Art. 241. A União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os
convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços
públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à
continuidade dos serviços transferidos”.
189 Cita-se, entre os objetivos dos consórcios públicos que ultrapassam a noção estrita de serviço
público, e, assim, abarcariam o desempenho do poder de polícia, a promoção do uso racional dos
recursos naturais e a proteção do meio ambiente, a gestão e a proteção de patrimônio urbanístico,
paisagístico e turístico e o exercício de competências pertencentes aos entes da Federação nos termos
de autorização ou delegação, todos previstos no art. 3º do Decreto º 6.017∕2007, regulamento da Lei nº
11.107∕2005, que disciplina os consórcios públicos.
190 Os citados dispositivos preveem, in verbis: “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem:[...] § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação; Art. 225. Todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
137
ser exercida por particulares, uma vez que não implica necessariamente o uso de força física
para impor o comportamento desejado (atributo da autoexecutoriedade), além de seu
desempenho cingir-se aos ditames do regime jurídico-administrativo.
Nesse sentido:
A noção de poder extroverso ou de coerção autoriza que determinado sujeito
interfira ou atinja a esfera jurídica de outrem e, nessa medida, aproxima-se
da noção de poder político. Todavia, o que é indispensável para a
configuração do poder extroverso é a existência de uma norma jurídica
prévia, legitimada pelo poder político do Estado e em conformidade com a
Constituição, a autorizar seu exercício. Importante esclarecer que essa norma
pode autorizar determinado sujeito a intervir na esfera jurídica de outrem
sem que esteja apto a fazer uso de força física para impor determinada
conduta, ou seja, sem que, manu militari, imponha o comportamento
esperado. Isso, como se viu, é característica do poder político concedido ao
Estado. (PEREIRA, 2013, p. 120)
Cabe destacar, nesse contexto, no que toca à regulação de polícia, que Flávio Unes
assente com a transferência a particulares, ainda que tal atividade envolva o desempenho de
competência discricionária (PEREIRA, 2013, p. 149). Partindo do entendimento de que se
determinada atividade pública não pode ser amplamente controlada pelo Judiciário, em razão
da margem para manifestação do juízo discricionário, não é recomendado transferir a
particulares seu exercício, Flávio Unes assevera em contraponto que:
[...] a discricionariedade da função regulatória [...] além de balizada pela lei,
requer motivação técnica, a inibir desvios. Se ainda assim couber margem de
escolha, sendo ela acobertada pela lei, não haverá vício no fato de o agente
delegado valer-se dessa prerrogativa, pois se tratará de “indiferente jurídico”
[...] ou, [...] de decisão que adota duas ou mais soluções, todas igualmente
válidas para o Direito [...] (PEREIRA, 2013, p. 149).
Observa-se, por outro lado, ainda tendo como base o entendimento de Flávio Unes
(2013), que o problema da margem de discricionariedade para exercício de determinada
atividade de polícia, a ser transferida a particulares, não se manifesta em relação às estratégias
de fiscalização e sanção. No caso da fiscalização, o autor defende: “[...] fiscalização é
atividade de aplicação normativa em relação a fatos já ocorridos [...] não há, salvo disposição
legal expressa, espaço para juízo discricionário [...] “ (PEREIRA, 2013, p. 77). Também em
relação à sanção, aponta para sua natureza eminentemente vinculada (PEREIRA, 2013, p.
156). Nas duas situações, destaca, admitindo a possibilidade da delegação a particulares, a
necessidade de observância do devido processo administrativo, pressuposto da delegação e
138
meio hábil a garantir a ampla defesa e o contraditório (CR∕88, art. 5º, incisos LIV e LV)191 e a
viabilizar o controle, administrativo e jurisdicional, da atividade delegada (PEREIRA, 2013,
p. 153 e p. 156)192.
Feitas essas observações, ressalta-se que a revisão bibliográfica mostra que a defesa da
ampla delegabilidade não encontrou, ainda, guarida na jurisprudência. Talvez isso possa ser
atribuído a dois fatores: essa corrente é mais ampla (em termos de poderes que podem ser
atribuídos aos delegatários) do que a corrente que defende a delegabilidade parcial do poder
de polícia, esta mesma relativamente recente e que, tratando-se de construção de
jurisprudência, deve muito de sua repercussão ao julgamento do RESP 817.534 pelo STJ,
tratado acima. Por outro lado, o STF já entendeu pela impossibilidade do exercício do poder
de polícia por pessoas jurídicas sujeitas, ainda que parcialmente, a regime jurídico de direito
privado, conforme abordado em tópico anterior, o que também serve para refrear posições
mais “ousadas” a respeito da amplitude da delegação.
7.6. Análise das correntes acerca da indelegabilidade/ delegabilidade do
poder de polícia.
Apresentadas as correntes acerca da possibilidade, ou não, de delegação de atos
jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares, passa-se a examinar os principais
argumentos erigidos pelos estudiosos, e pela jurisprudência, para negar a possibilidade do
traslado do desempenho dessa atividade estatal a particulares.
Neste trabalho filia-se ao entendimento de que determinados atos jurídicos expressivos
do poder de polícia podem ser delegados a particulares, nomeadamente, os atos de
fiscalização (e, com eles, os atos expressivos de consentimento estatal concernentes à
atividade de polícia)193. Essa posição implica aceitar que determinados poderes públicos de
191 Nos termos da Constituição: “ Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”
192 Cabe citar, por oportunas, as palavras de Luiz Carlos Figueira de Melo e Altamirando Pereira da
Rocha (2007, p. 266), segundo os quais o modelo constitucional de processo administrativo se revela a
partir do disposto no inciso II do art. 2º da CR∕88. Na visão dos autores, este dispositivo, ao erigir a
cidadania como norma fundamental do Estado brasileiro, impõe como condição para o exercício do
poder estatal a efetiva participação dos cidadãos.
193 Quanto à incumbência de emitir autorizações, conforme considerações supra neste trabalho,
afirma-se que a transferência a particulares é somente em tese possível.
139
autoridade podem ser transferidos a particulares, sem coadunar, entretanto, com a
possibilidade de os particulares delegatários emitirem atos normativos de polícia ou
desempenharem funções sancionatórias, já que, nesses casos há necessidade de legitimação
democrática para atuação daquele que exerce a poder de polícia (o que torna o Estado o único
habilitado) e não se afigura possível transferir a particulares poderes que pressuponham a
quebra do monopólio estatal de coerção.
Assim, serão examinados e refutados os principais argumentos contra a delegação de
atos jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares. A seleção dos argumentos a
serem refutados está ligada à sua recorrente invocação pela doutrina e pela jurisprudência.
Desse modo, por ordem, os argumentos são: 1) o poder de polícia é atividade típica e
exclusiva do Estado e, por envolver o uso de autoridade, com restrição da liberdade e da
propriedade, não pode ser trespassada particulares; 2) há incompatibilidade entre o regime
jurídico trabalhista, em tese mais flexível, e o desempenho do poder de polícia, que somente
pode ser executado por detentores de cargos públicos submetidos a regime estatutário; 3) o
trespasse do exercício da atividade de polícia a particulares promove a violação do princípio
da igualdade, ensejando a supremacia indevida de uns sobre os outros; 4) a execução de atos
de polícia por entidades com fins lucrativos é contrária ao interesse público, uma vez há o
risco de a atividade restritiva ser manipulada com o fim de majoração do lucro.
7.6.1. Poder de polícia, executoriedade e coerção.
Quanto ao primeiro argumento, observa-se que a defesa do poder de polícia enquanto
atividade típica do Estado está invariavelmente relacionada ao argumento de que se lhe
reserva o monopólio de uso da força sobre aqueles submetidos à sua soberania. Com efeito,
Bobbio (2007, p. 77) explica que a teoria do Estado pode ser considerada parte da teoria
política e esta, por sua vez, integra a teoria do poder, mais ampla. Nesses termos é que o autor
aduz que a teoria realista do poder (que descreve e distingue o poder político como ele é, e
não como deveria ser, em relação às demais formas de poder) foi construída sobre o conceito
de soberania ou summa potestas, graças aos juristas medievais (BOBBIO, 2007, p. 80). De
fato, a disputa de poder entre Estado e Igreja na Idade Medieval exigiu a delimitação das
respectivas esferas de competência e, portanto, de domínio, o que determinou os caracteres
próprios de cada qual. Assim, passa-se a atribuir ao Estado, como prerrogativa própria, a vis
140
coactiva, enquanto à Igreja passou a caber a vis directiva (BOBBIO, 2007, p. 80). Desse
modo:
Na contraposição à potestade espiritual e às suas pretensões, os defensores e
os detentores da potestade temporal tendem a atribuir ao Estado o direito e o
poder exclusivo de exercer a força física sobre um determinado território e
com respeito aos habitantes deste território. Deixando à Igreja o direito e o
poder de ensinar a verdadeira religião e os preceitos da moral, de
salvaguardar a doutrina dos erros, de dirigir as consciências para o alcance
dos bens espirituais, acima de tudo a salvação da alma. (BOBBIO, 2007,
p.80)
Mais do que isso, uma vez que a força é o meio mais resolutivo para exercer o
denominado domínio do homem sobre o homem, quem detém o uso deste meio com a
exclusão de todos os demais em determinado território exerce soberania, o poder supremo ou
summa potestas. Nesse sentido é que Max Weber (1982, p. 98) entende o Estado como “[...]
comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física
dentro de um determinado território” e Kelsen (1998, p. 25-26) defende que o Estado é um
ordenamento coercitivo: a ordem jurídica possui o monopólio da coação.
Com base nesses entendimentos refuta-se a delegabilidade do poder de polícia.
Entretanto, conforme observa Flávio Unes (2013, p 128), e de acordo com considerações já
tecidas neste trabalho, o exercício do poder de polícia não envolve necessariamente a (auto)
executoriedade. Além disso, há a acertada defesa da possibilidade de cisão entre titularidade e
execução quando se trata do manejo de poderes públicos típicos. Nesse sentido, retoma-se a
lição de Gonçalves (2008), que define poder público administrativo de autoridade como o
[...] poder abstracto – estabelecido por uma norma de direito público –
conferido a um sujeito para, por acto unilateral praticado no desempenho da
função administrativa, editar regras jurídicas, provocar a produção de efeitos
com repercussão imediata na esfera jurídica de terceiros, produzir
declarações às quais a ordem jurídica reconhece uma força especial ou ainda
empregar meios de coacção sobre pessoas ou coisas. (GONÇALVES, 2008,
p. 608)
A partir desse conceito, alguns entendimentos de Gonçalves devem ser destacados, na
medida em que estão consonantes com a posição sustentada neste trabalho: 1) a autoridade
não é inerente à Administração194, nem está presente em todos os poderes ou competências
194 Nesse sentido, o autor lusitano afirma que “[...] a circunstância de o direito privado conhecer
situações jurídicas com os mesmos contornos do poder público mostra-nos uma certa neutralidade do
141
que a lei lhe confere (GONÇALVES, 2008, p. 597-598); 2) o poder público não deriva de
uma natural posição de supremacia do Estado sobre os particulares, mas sim da prevalência
do interesse público sobre o interesse privado (GONÇALVES, 2008, p. 608); 3) se uma
entidade privada detém poderes públicos e, assim, participa do exercício do Poder Público
(que pertence ao povo) deve desempenhá-los sob o manto de uma delegação, ou “posição
jurídica derivada”, e não no exercício de um direito próprio (GONÇALVES, 2008, p. 691); 4)
a delegação pode ser legal, se resulta diretamente de um ato legislativo (como no caso dos
comandantes de embarcações e de poderes reconhecidos a proprietários de estabelecimentos
comerciais em relação à coibição do fumo em suas dependências), ou administrativa, quando
resulta de ato ou contrato administrativo (GONÇALVES, 2008, p. 688); 5) a delegação de
poderes públicos a entidade de direito privado não provoca a transmutação da natureza
jurídica dos poderes delegados, que continuam sendo públicos e, nesse sentido, não são
privatizados (GONÇALVES, 2008, p. 692); 6) O monopólio estatal do emprego legítimo da
força não se refere a específicas tarefas, mas, antes, aos seus meios de execução, entretanto, o
Estado deve estar presente em todas as funções que potencialmente exigem o recurso à força e
à coação física195; 7) na delegação o Estado não aliena seus direitos de soberania, uma vez
que não há perda da titularidade de tais poderes ou de direitos públicos, mas apenas um
traslado de exercício, há, portanto, cisão entre titularidade e exercício, de modo que “os
particulares são investidos da capacidade de exercer poderes que continuam a pertencer ao
Estado ou à entidade público delegante” (GONÇALVES, 2008, p. 949).
Em síntese: o Estado pode delegar atribuições a particulares que envolvam o exercício
de poderes públicos de autoridade, já que o regime jurídico público se aplicará
independentemente da natureza da pessoa que desempenha a função pública. Porém, não se
afigura possível a flexibilização do monopólio estatal do uso da força, por duas razões
principais, intrinsecamente relacionadas: o emprego da força representa a mais intensa
ingerência sobre a esfera juridicamente tutelada dos indivíduos e cabe ao Estado a promoção e
garantia dos direitos fundamentais, a cuja observância está inarredavelmente adstrito.
Ingerência dessa monta sobre a liberdade e a propriedade dos cidadãos só se justifica na
poder de autoridade: autorizar, certificar e aplicar sanções disciplinares não constituem realidades
exclusivas do direito público” (GONÇALVES, 2008, p. 693).
195 É o caso das funções concernentes à repressão criminal, à execução de decisões judiciais, à gestão
de prisões, à manutenção da ordem e da segurança. Estas seriam funções essenciais, genuínas ou
naturais do Estado (GONÇALVES, 2008, p. 242). Logo, “Se pode aceitar-se que a defesa das pessoas
e de seus bens não constitui tarefa pública exclusiva parece já inquestionável que a responsabilidade
de executar uma tal missão tem de ser assumida directamente pelo Estado, sempre que envolva ou
reclame o uso da força” (GONÇALVES, 2008, p. 243)
142
medida em que busque satisfazer o interesse público consubstanciado em outro direito ou
garantia fundamental. Reitera-se, neste ponto, que não se cogita do excepcional emprego da
força entre particulares albergado pela ordem jurídica, como os casos da prisão em flagrante
efetuada por particular ou da legítima defesa, mas sim do traslado de genuínos poderes
públicos a particulares.
Pertinente, ainda, trazer à baila as lições de Ametller (2003, p. 277), segundo quem o
exercício privado de funções públicas reforça, em definitivo, a atual defesa da dissolução da
correlação existente entre órgãos públicos e funções públicas e, consequentemente, entre atos
administrativos e agentes públicos: organização administrativa estatal e funções públicas são
duas realidades que não correspondem exatamente. Ademais, no atual contexto das mais
numerosas e diversas parcerias entre Estado e particulares, não há supedâneo para a defesa da
separação radical entre as esferas pública e privada, bem como entre os sistemas jurídicos que
incidem sobre uma e outra. De acordo com Ametller (2003, p. 282), em considerações que
vão ao encontro da posição adotada neste trabalho, a atividade das entidades colaboradoras (a
autora trata especificamente das entidades que exercem funções de controle, inspeção e
certificação no contexto normativo da Espanha) não se circunscreve a uma atividade
meramente material ou de suporte à atividade jurídica da Administração, mas se concretiza
especificamente em atividade jurídica - decisória em certos casos, declaratória em outros -
desempenhando atribuições sobre as quais o Estado possui titularidade.
7.6.2. Poder de polícia e regime jurídico institucional incidente sobre os
servidores que o desempenham.
Se o regime jurídico da atividade desempenhada é o que importa, e não a natureza da
pessoa que desempenha a atribuição, outro argumento em defesa da indelegabilidade do poder
de polícia mostra-se insustentável: justamente o que prega que apenas servidores detentores
de cargos públicos efetivos, devido à estabilidade da qual são beneficiários, podem executar o
poder de polícia, já que estariam cercados de maiores garantias e sujeitos a menor pressão do
que os servidores ou outros agentes públicos sujeitos a regime de trabalho privado.
Inicialmente, cumpre destacar que não se nega que, em hipóteses específicas, previstas
pelo ordenamento jurídico-constitucional, o exercício de determinadas funções estatais seja
atribuído exclusivamente a servidores públicos ocupantes de cargos e que gozam de garantias
143
especiais, como a estabilidade qualificada de que trata o art. 169 da Constituição196.
Entretanto, não se reconhece que o regime privado de trabalho, de modo geral, seja um óbice
à delegação do poder de polícia. Nesse sentido, Flávio Henrique Unes Pereira (2013).
Com efeito, para Pereira, a noção de que a natureza típica ou nuclear de certas
atividades estatais impede que servidores não detentores de cargo público ou desprovidos de
estabilidade as exerça é infirmada pelo fato de que as principais decisões políticas e
administrativas, incluindo as sancionadoras, são tomadas por agentes públicos ocupantes de
cargos de provimento em comissão, que ingressam no serviço público sem concurso e não são
estáveis (PEREIRA, 2013, p. 135). Do mesmo modo, empregados públicos, sujeitos a regime
de direito privado, e os servidores temporários197, sequer detentores de cargos, não são
estáveis e, ainda assim, podem exercer atividades que revelam a manifestação de típico poder
público. O autor cita, como exemplo da possibilidade de servidores não necessariamente
ocupantes de cargo público efetivo desempenharem atividade estatal típica, a previsão do §4º
do art. 280 do Código de Trânsito Brasileiro, que prevê a possibilidade de o agente da
autoridade de trânsito competente para lavrar auto de infração ser “servidor civil, estatutário
ou celetista” (PEREIRA, 2013, p. 135-136).
No caso dos servidores temporários, ressalta-se que as atribuições que exercem não
estão cingidas às denominadas atividades-meio da Administração, podendo, assim,
desempenhar atividades estatais permanentes e finalísticas, conforme se verifica na Lei nº
8.745∕1993, que dispõe sobre a contratação temporária de que trata o inciso IX do art. 37 da
Constituição na Administração Pública Federal198.
Em sentido semelhante ao de Pereira, Rodrigo Pagani de Souza (2014, p. 169) refuta o
argumento de que os empregados públicos estariam sujeitos a maior pressão proveniente de
perseguições e represálias por não gozarem de estabilidade, já que não seria possível, em sua
visão, dispensá-los imotivadamente199. Mais do que isso: exigir estabilidade para o exercício
196 Sobre o assunto, o Capítulo 4 deste trabalho.
197 Esses são os servidores, em sentido amplo, admitidos com fundamento no permissivo do inciso IX
do art. 37 da CR∕88, que prevê a possibilidade de contratação por tempo determinado para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público.
198 Sobre os requisitos constitucionais para a contratação temporária por excepcional interesse
público, ver Araújo (2009).
199 Vale destacar que, na Administração Pública Federal, a Lei nº 9.962/2000 fixa as específicas
hipóteses de rescisão unilateral do contrato de trabalho de prazo indeterminado pela Administração.
Nesse ponto, o regime jurídico dos empregados públicos (federais) se aproxima do regime dos
servidores públicos ocupantes de cargo público efetivo. Na jurisprudência colhe-se o entendimento do
STF, em sede do RE nº 589.998, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que entendeu pela
obrigatoriedade de motivação do ato de dispensa de empregado público de empresas estatais
prestadoras de serviços públicos. No caso, o RE foi interposto pela Empresa Brasileira de Correios e
144
do poder de polícia é desconsiderar que servidores em estágio probatório podem desempenhar
poderes públicos além de que significativo número de servidores que se encontram no topo da
hierarquia administrativa são ocupantes de cargos de provimento em comissão, não estáveis,
portanto. Em síntese, “exemplos ajudam a perceber que exigir ocupação de cargo para o
exercício do poder de polícia não é garantia de que o agente fiscalizador gozará de
estabilidade” (SOUZA, 2014, p. 169).
Na mesma toada, Mendonça (2009, p. 105-106) afirma que o argumento de que o
regime de trabalho privado, por ser desprovido do atributo da estabilidade, seria incompatível
com o exercício do poder de polícia, é consequencialista, na medida em que opera segundo
um adiantamento de consequências tidas como prováveis e, posteriormente, opera conforme
uma avaliação dessas consequências e a rejeição da tese inicialmente colocada. Assim, se o
pessoal das pessoas de direito público da Administração200 for submetido a regime de trabalho
privado, isso fará com que se tornem mais frágeis face a pressões externas, situação de todo
indesejada; logo, o regime de direito privado é incompatível com o exercício de atividades
como a regulação e o poder de polícia, e o pessoal das autarquias deve se submeter a um
vínculo legal, e não contratual. Assim Mendonça conclui, em considerações que abarcam os
posicionamentos defendidos por Pereira e Souza, previamente citados, e que, por isso,
merecem transcrição:
Evidente que o raciocínio está equivocado. [...]. Há exagero num lado da
análise — que é o de pressupor que o regime estatutário confira maior
garantia ao agente público diante dos riscos de manipulação, do que a que de
fato produz — e minimização em outro: na garantia conferida pelo regime
celetista da forma como é efetivamente aplicado na administração pública (e
como se tem entendido que deva sê-lo pelos tribunais). Ao se comparar uma
versão supergarantista de regime estatutário de pessoal, de um lado, e uma
versão subgarantista de regime privado de emprego público, de outro, é claro
que a opção é em favor do primeiro. Mas as coisas não são assim. [...]
Telégrafos (ECT) contra Acórdão do TST que havia reputado como inválida a dispensa imotivada de
empregado público. O próprio TST, por meio da SDI-1, havia editado a Orientação Jurisprudencial n.
247, na qual previu a possibilidade de dispensa de empregados de empresas estatais, ainda que
admitidos por meio de concurso público, independentemente da motivação do ato de dispensa.
Conforme Informativo nº 63 do TST, este Tribunal, mais especificamente, a SBDI-II, adequando-se ao
entendimento do STF no mencionado RE nº 589.998, estipulou a obrigatoriedade da motivação para
dispensa de empregados públicos. Na situação concreta, o TST analisou o Recurso Ordinário
219.22.2012.5.09.0000, interposto pelo Banestado contra decisão do TRT da 9ª Região que
determinou a reintegração de empregado demitido imotivadamente. Diante dessas breves
considerações, pode-se dizer que a matéria ainda não foi pacificada na jurisprudência.
200 Em seu artigo, Mendonça (2009, 104-110) se refere especificamente aos argumentos erigidos pelo
STF em sede da ADI 2310, no sentido de negar que o regime de pessoal das agências reguladoras,
espécie de autarquia, pudesse ser o trabalhista, visto que tal circunstância provocaria maior exposição
dos servidores a pressões externas, situação indesejada.
145
refutamos o argumento consequencialista da instabilidade de regime de
pessoal — segundo o qual a atribuição de poder de polícia aos empregados
públicos das empresas estatais vai gerar a consequência indesejável de uma
fragilidade em seu exercício diante de pressões não republicanas — porque
empregados públicos não estão essencialmente mais (ou menos) protegidos
do que servidores, em especial diante de entendimentos doutrinários e
jurisprudenciais que vedam a demissão imotivada. O que há é, de um lado,
uma superavaliação das garantias do regime estatutário, e, de outro, uma
subavaliação das garantias do regime de emprego privado tal como aplicado
pela administração pública do século XXI. De resto, a se admitir tal
instabilidade do regime de emprego privado, haver-se-ia logicamente que
reputá-lo inconstitucional quando aplicado a praticamente todas as
atividades significativas da Administração Pública, o que também mostra o
equívoco do argumento. (MENDONÇA, 2009, p. 109-110).
Com efeito, pode-se defender que o desempenho de poderes públicos, incluindo
aqueles concernentes à atividade de polícia desempenhada pela Administração, não caminha
necessariamente junto do regime estatutário e, consequentemente, não exige a estabilidade do
servidor como pressuposto de lícita manifestação. O regime jurídico da atividade pública
realizada ditará a atuação do agente, independentemente da natureza de sua personalidade
jurídica. Ademais, sequer o regime estatutário é tão cercado de garantias que o torne imune a
qualquer ingerência externa ou a flexibilização (como no caso dos servidores ocupantes de
cargos públicos comissionados), nem o regime privado, ou, de modo geral – o regime “não
estável”- é absolutamente incompatível com o desempenho de funções públicas típicas, como
demonstra a hipótese da contratação de servidores temporários para exercer atividades
permanentes e finalísticas do Estado. Esse entendimento não conflita com as hipóteses em
que, por expressa previsão da ordem normativa, o desempenho de determinadas funções
estatais típicas seja atribuído a servidores ocupantes de cargos públicos cercados por
estabilidade qualificada; o que se defende aqui, é que essa exclusividade não seja tornada
norma geral, aplicada a toda e qualquer situação em que esteja em causa o desempenho de
poderes públicos de autoridade.
Ao lado dessas considerações, cabe aqui concluir, em conformidade com Araújo
(2011), que defende a natureza contratual da relação entre servidor e Estado,
independentemente de o regime incidente ser o trabalhista ou o estatutário, com o destaque à
significativa aproximação entre os regimes de trabalho público e privado. Nesse sentido, ao
tratar da natureza da relação jurídica entre servidor público e Estado, Araújo assevera:
“[...] a voluntariedade é característica essencial dessa relação jurídica. O
vínculo somente se forma mediante acordo de vontades entre a
administração pública e o indivíduo. Ao aceitar a nomeação e tornar-se
146
servidor, há entre ambas as partes da relação o estabelecimento dos direitos e
obrigações que compõem o vínculo criado. [...]” (ARAÚJO, 2011, p. 153)
Portanto, assim como na grande maioria dos negócios jurídicos privados da atualidade,
a relação contratual entre servidor e poder público constitui um contrato de adesão, quer se
trate de regime estatutário, quer se esteja diante do regime trabalhista” Com efeito, o próprio
fato de a Constituição ter reconhecido aos servidores públicos – ocupantes de cargos públicos
e, assim, submetidos ao regime estatutário – alguns dos direitos atribuídos aos trabalhadores
urbanos e rurais – nomeadamente, aqueles previstos nos incisos IV, VII, VIII, IX, XII, XIII,
XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX do art. 7º da Constituição da República201 –
demonstra que se pretendeu institucionalizar ou, pelo menos, reconhecer a existência de certa
proximidade entre os servidores públicos e os trabalhadores do setor privado (Araújo, 2011, p.
166). Como aponta Araújo (2011, p. 169-170), o reconhecimento dessa convergência também
é verificado em normas internacionais, a exemplo da Convenção nº 87 da Organização
Internacional do Trabalho - OIT, que dispõe sobre a liberdade sindical e a proteção do direito
de sindicalização, abarcando, também, os servidores públicos.
Ou seja, além dos argumentos inicialmente erigidos acerca a possibilidade de
trabalhadores sujeitos à incidência do regime trabalhista exercerem poder de polícia, deve-se
ressaltar que a normatização incidente sobre estes não é tão apartada assim daquela que recai
sobre os servidores públicos, de modo que a linha de separação entre regime jurídico público
201 Os dispositivos da CR em menção preveem, in verbis: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] IV - salário mínimo,
fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua
família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência
social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação
para qualquer fim; [...] VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem
remuneração variável; VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da
aposentadoria; IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; [...] XII - salário-família
pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei;(Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 20, de 1998); XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas
diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada,
mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; (vide Decreto-Lei nº 5.452, de 1943); [...] XV -
repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVI - remuneração do serviço
extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; (Vide Del 5.452, art. 59 §
1º); XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário
normal; XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e
vinte dias; XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei; XX - proteção do mercado de
trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; [...] XXII - redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; [...] XXX - proibição de
diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor
ou estado civil;
147
e regime privado é menos nítida do que fazem supor a doutrina e a jurisprudência que negam
a possibilidade de delegação do poder de polícia.
7.6.3. Regime jurídico da atividade de polícia e seu exercício por empresas
estatais.
Ainda no que toca à questão do regime jurídico incidente sobre o desempenho do
poder de polícia, deve-se destacar o posicionamento doutrinário e jurisprudencial que aceita,
com maior ou menor extensão, a possibilidade de empresas estatais exercerem o poder de
polícia. O tema foi brevemente abordado neste trabalho quando da apresentação genérica das
correntes de entendimento acerca da delegabilidade do poder de polícia. Neste momento,
cingindo a análise à ordem jurídica brasileira, objeto de exame, citam-se os autores nacionais
que entendem pela delegabilidade, como Sundfeld (1993), Carvalho Filho (2011), Souza
(2014) e Mendonça (2009). A questão a ser feita é a seguinte: se as empresas estatais, sujeitas
a regime jurídico de direito privado, ainda que parcialmente derrogado pelo regime de direito
público, podem exercer o poder de polícia, por que os particulares não poderiam executar tal
mister público, já que, em tese, trata-se de situações jurídicas assemelhadas?
Explica-se. José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 74), já citado neste trabalho,
defende que as empresas estatais podem exercer o poder de polícia (o poder de polícia
delegado) desde que tal atribuição tenha sido delegada por lei e se manifeste somente na
emissão de atos fiscalizatórios, pois fundados em restrições à liberdade preexistentes e
reveladores de função meramente executória e não inovadora da ordem jurídica. O mais
importante, talvez, seja o fato de que o autor defende que apenas as pessoas jurídicas de
direito privado da Administração Pública podem receber a incumbência de executar o poder
de polícia. Particulares, desprovidos dessa “vinculação oficial” com o Estado, não podem
receber tal incumbência, já que, por mais profundo que seja o vínculo que os liga à entidade
estatal, jamais serão dotados de potestade pública (CARVALHO FILHO, 2011, p. 75).
Destaque-se, ademais, as cautelas que, segundo o autor (CARVALHO FILHO, 2011, p. 75),
devem ser observadas na delegação: não pode haver conflito entre o interesse público e o
interesse privado no desempenho da atividade de polícia, condição esta interligada à segunda,
que é o “afastamento do setor econômico de mercado”202. Além disso, para o autor o poder de
202 Tal assertiva está fundada em uma visão que invariavelmente opõe o interesse privado, nesse caso
consubstanciado na finalidade de obtenção de lucro, ao interesse público (neste caso, expresso na
limitação à liberdade ou a propriedade em favor dos interesses da coletividade), negando a possível
148
polícia deve ser acidental em relação à atividade principal desenvolvida pelo ente, que deve
ser a prestação de serviço público.
Assim, conquanto avance em reconhecer que pessoas submetidas a regime jurídico de
direito privado podem exercer poder de polícia, Carvalho Filho entende como condições
desse exercício a vinculação orgânica∕ institucional da entidade ao Estado e a impossibilidade
de que explore atividade econômica, devido à existência de conflito entre o interesse público
e o interesse privado, o que vem sendo refutado neste trabalho. Não é a pessoa, Administração
Pública ou particular, quem deve ser focalizada para fins do desempenho da atividade de
polícia, mas sim o regime jurídico aplicável, que é o regime de direito público, com as
constrições e condicionamentos inerentes, desde que haja supedâneo em lei para a delegação.
Em sentido consonante com o de Carvalho Filho, no que tange à questão da interação
entre os interesses subjacentes à delegação, Mendonça (2009, p. 111) defende que para evitar
qualquer sombra de potencial conflito de interesses entre interesse público e capital privado, a
empresa estatal que desempenha poder de polícia deve possuir capital público somente,
jamais capital privado. Assim, apenas empresas públicas, e não sociedades de economia
mista, poderiam executar o poder de polícia, mas Mendonça (2009, p. 111) concebe duas
exceções: 1) podem ser delegatárias as sociedades de economia mista nas quais os únicos
acionistas privados sejam os membros do conselho de administração e 2) podem receber a
incumbência de executar o poder de polícia as sociedades de economia mista cuja composição
do capital seja integralmente feita por entidades pertencentes à Administração Pública, sejam
elas de direito público ou de direito privado. Inicialmente, ressalta-se, em relação à primeira
exceção, que o art. 146 da Lei nº 6.404∕1976 (“Lei das SAs”), que originalmente exigia que os
membros do conselho de administração fossem acionistas, foi modificado pela Lei nº
12.431∕2011, que deixou de trazer tal comando. No que concerne à segunda exceção, destaca-
se que Mendonça, assim como Carvalho Filho, fala de um potencial conflito entre capital
privado e interesse público, uma vez que o primeiro se associa à sociedade de economia mista
para buscar o lucro e “esse deve decorrer de atividades econômicas produtivas e não da
própria disciplina das atividades privadas [...] os deveres e limites são impostos para tornar
possível a vida em sociedade, não para enriquecer ninguém” (MENDONÇA, 2009, p. 112).
Percebe-se, portanto, a recorrência dos argumentos ligados ao arranjo institucional das
estatais e do potencial conflito de interesses entre capital privado e interesse público no
desempenho da atividade de polícia, ambos relacionados à natureza das pessoas envolvidas
consonância e mesmo complentaridade entre ambos, conforme já explanado e defendido neste
trabalho.
149
(Estado, de um lado, e particular, de outro), que pouco dizem em termos das constrições e
prerrogativas incidentes sobre o exercício dessa atividade estatal.
Os outros dois requisitos para se admitir o regular exercício do poder de polícia pelas
empresas estatais são, para Mendonça, a proibição de que as empresas públicas atuem
exclusivamente na exploração de atividade econômica em concorrência com a iniciativa
privada: necessariamente terão que prestar serviços públicos, tendo, ainda, a atividade de
polícia como suporte (exercício acidental). Isto não poderia acontecer na intervenção direta no
mercado, já que, uma vez admitido o exercício do poder de polícia por tais pessoas, “tratar-se-
ia de uma intervenção concorrencial absolutamente anti-isonômica, já que nenhuma outra
entidade privada estaria dotada de tal poder extroverso” (MENDONÇA, 2009, p. 112). O
próprio autor reconhece, por outro lado, que a explicação para o exercício do poder de polícia
apenas de modo acidental tem contornos econômicos, não jurídicos, como se observa na
seguinte passagem:
O problema não é de uma “essência finalística” das empresas públicas, algo
que não as “vocacionasse” ontologicamente ao exercício, tão somente do
poder de polícia, muito menos é caso de impossibilidade de exercício
exclusivo de polícia administrativa por ausência de disposição constitucional
(a Constituição também nada fala sobre estatais prestadoras de serviços
públicos e sua admissão é relativamente tranquila na doutrina e unânime na
jurisprudência). A questão é, estritamente, de eficiência da intervenção. Uma
empresa pública prestadora de serviços públicos pode se beneficiar
sinergicamente do exercício do poder de polícia, de modo tal que a eficiência
agregada final na prestação do serviço público compense o exercício
subótimo do poder de polícia. (MENDONÇA, 2009, p. 113)
Citam-se, nesse cenário, as considerações de Sundfeld (1993), o qual, no que toca à
edição de atos imperativos, refuta que se possa sustentar a indelegabilidade a entidades
privadas da Administração Pública pela mera circunstância de se tratar de manifestações do
poder de polícia, já que essa delegação é admitida quando da transferência da prestação de
serviços públicos e da promoção de desapropriações, por autorização da ordem normativa.
Assim:
Nada existe de peculiar nos atos oriundos da polícia administrativa que
possa ensejar a indelegabilidade. O fato de a beneficiária da transferência do
poder de polícia ser pessoa constituída no figurino de direito privado é
também irrelevante. Os particulares concessionários de serviço público
também são entes privados e nem por isso a concessão se inviabiliza. É que
não se confundem o regime da pessoa com o regime da atividade. Empresa
que executa atividade pública sujeita-se a o direito público, no que respeita a
essa atividade". (SUNDFELD, 1993, p. 102)
150
Destaca-se que as considerações do autor são feitas exclusivamente a propósito da
delegação do poder de polícia a empresas estatais, mas se amoldam à extensão dessa
delegação aos particulares, defendida neste trabalho com certos limites, tendo como
supedâneo a sustentada inexistência de correlação entre órgãos públicos e funções públicas.
Aqui, cabe trazer à consideração a questão da similitude de regimes jurídicos
incidentes sobre particulares e empresas estatais, em especial, as exploradoras de atividade
econômica. Se as empresas estatais estão sujeitas a regime jurídico de direito privado
parcialmente derrogado pelo direito público, ou seja, se seu regime jurídico, em tese,
aproxima-se mais do direito privado que do direito público, em especial, quando se trata das
empresas estatais exploradoras de atividade econômica (a teor do inciso II do §1º do art. 173
da Constituição)203, como sustentar, diante das considerações tecidas até este ponto, a
possibilidade de delegação do poder de polícia a tais empresas e não aos particulares em
geral204?
Ora, é a própria Constituição da República, em seu art. 173, a prever a aplicação, às
empresas estatais exploradoras de atividade econômica, do regime jurídico de direito privado,
vedando tratamento diferenciado em relação às pessoas da iniciativa privada (o dispositivo
trata especificamente das pessoas do Estado que atuem como agentes empresariais em
concorrência com a iniciativa privada), estando salvaguardadas as situações em que o regime
jurídico privado é expressamente derrogado pelo regime de direito público. Logo, com foco
no exercício do poder de polícia por delegação, se tais pessoas estatais de direito privado
possuem regime jurídico análogo ao das pessoas da iniciativa privada, e considerando que o
regime jurídico incidente sobre o exercício de poderes públicos aplica-se do mesmo modo
sobre qualquer pessoa que os exerça, independentemente de sua natureza jurídica, torna-se
203 É o teor do dispositivo da CR: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos
imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei§ 1º A
lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas
subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de
prestação de serviços, dispondo sobre: [...] II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas
privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”.
204 Ressalta-se que a aproximação entre o regime jurídico das empresas estatais e o regime incidente
sobre os particulares não implica completa similitude. Essas empresas, ao contrário dos particulares
em geral, estão sujeitas a normas de direito público que derrogam o regime privado, a exemplo dos
deveres de realizar concurso público para admissão de servidores e de prestar contas. Quer-se
destacar: no que tange ao desempenho do poder de polícia por delegação, não há razão para apartar, de
um lado, as empresas estatais, incluindo as exploradoras de atividade econômica e, de outro, os
particulares.
151
frágil a defesa de que essas pessoas, somente por estarem vinculadas ao Estado, podem
exercer poderes que os particulares não podem.
Por outro lado, mas ainda no que toca à proibição de que particulares desempenhem
poderes públicos quando em causa a constrição da liberdade e da propriedade, cabe destacar a
vinculação também das entidades privadas aos direitos fundamentais – teorizada sob
denominações como “eficácia horizontal dos direitos fundamentais” ou “eficácia dos direitos,
liberdades e garantias na ordem jurídica privada”, como relata Canotilho (1993, p. 569).
Trata-se da aplicação dos direitos fundamentais às relações entre indivíduos e não apenas às
relações entre estes e o Estado (esta seria a eficácia vertical) (CANOTILHO, 1993, p. 593),
sobre as qual serão tecidas breves considerações, devido à limitação de escopo do presente
trabalho. Com efeito, nesse âmbito é que se questiona, por exemplo, se uma associação
privada poderia selecionar seus membros com fundamento em critérios como capacidade
econômica ou mesmo cor ou etnia, tendo em vista, de um lado, o princípio da igualdade, que
postula que todos são iguais perante as leis, sem distinção de qualquer natureza (Constituição,
art. 5º, caput), e, de outro, a liberdade de associação, vedada a interferência estatal no
funcionamento dessas entidades (Constituição, art. 5º, incisos XVII, XVIII e XIX).
Gilmar Mendes et. al. (2014, p. 174) relata que o tema da eficácia horizontal tem sido
tratado por estudiosos e pela jurisprudência em todos os países que possuem sistemas
constitucionais nos quais o brasileiro se inspirou, notadamente, os da Europa ocidental e dos
Estados Unidos. Como acertadamente adverte (MENDES et al., 2014, p. 174), a discussão
sobre a eficácia horizontal ou “efeito externo” dos direitos fundamentais não é suscitada a
propósito dos direitos que, por seu próprio perfil, são concebidos para serem exercidos em
face de particulares, como é o caso de alguns dos direitos previstos no art. 7º da Constituição
da República, que estabelece os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, como as férias
remuneradas com ao menos 1∕3 do salário normal (art. 7º, inciso XVII) ou a proibição do
estabelecimento de diferenças salariais com base em critérios como sexo, idade ou cor (art. 7º,
inciso XXX). Também não se aplica a teoria da eficácia externa às hipóteses em que o direito
é inequivocamente concebido para ser exercido em face do Estado, a exemplo do direito dos
cidadãos que comprovarem insuficiência de recursos à assistência jurídica integral e gratuita
(Constituição, art. 5º, inciso LXXIV) (MENDES et al., 2014, p. 174). Fala-se em aplicação da
teoria da eficácia externa, portanto, às situações de dúvida quanto à aplicabilidade ou não de
determinados direitos fundamentais às relações privadas, como alguns direitos de defesa
(MENDES et al., 2014, p. 175).
152
Assim, a defesa da eficácia horizontal, de modo geral, apresenta perspectiva
diferenciada, na medida em que visa estender às relações privadas a incidência de direitos que
em sua raiz histórica foram concebidos para serem exercidos em face do Estado. Justamente
em razão disso, suscita embate com a autonomia privada. Nesse sentido:
A discussão sobe de ponto quando consideramos que o princípio da
autonomia da vontade, mesmo que não conste literalmente na Constituição,
acha no Texto Magno proteção para os seus aspectos essenciais. A Carta de
1988 assegura uma liberdade geral no caput do seu art. 5º e reconhece o
valor da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º,
III, da CF) – dignidade que não se concebe sem referência ao poder de
autodeterminação. Confirma-se o status constitucional do princípio da
autonomia do indivíduo. O debate passa a se desenrolar, então, em torno do
cotejo dos reclamos dos diferentes direitos fundamentais com as exigências
do princípio da autonomia privada. Nisso, em última análise, centra-se o
problema de resolver quando e como os direitos fundamentais obrigam os
particulares nas suas relações mútuas. (MENDES et al., 2014, p. 175)
Assim é que Mendes et al. (2014, p. 176) defende, em visão que dá premência à
autonomia privada, com supedâneo na Constituição –em especial, no inciso III do art. 1º, que
prevê a dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil -,
que os direitos fundamentais não compelem os indivíduos da mesma forma e na mesma
intensidade com que se impõem como normas às quais o Poder Público está inarredavelmente
adstrito. Logo, enquanto a Administração não pode, por exemplo, livremente nomear pessoa
para ocupar cargo público efetivo com base em juízo discricionário acerca de sua
competência profissional, um particular poderia selecionar trabalhador doméstico para
trabalhar em sua residência com base em critérios altamente subjetivos, fundados somente em
impressão visual.
Cabe ressaltar, conforme lição de Mendes et al. (2014, p. 176), que duas teorias
disputam prevalência no âmbito das considerações sobre a eficácia horizontal: a teoria da
eficácia direta ou imediata, que sustenta que os direitos fundamentais devem ser prontamente
aplicados sobre as decisões de entidades privadas que desfrutem de considerável poder social
ou em face de indivíduos que estejam, uns em relação aos outros, em situação de supremacia
de fato e de direito (MENDES et al., 2014, p. 176). Ou seja, a aplicação dos imediata dos
direitos fundamentais geraria direitos subjetivos oponíveis a entidades privadas. A teoria da
eficácia indireta, por sua vez, promoveria ingerência de menor monta sobre a autonomia
privada, na medida em que veda a incidência imediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas. A aplicação desses direitos deve cingir-se, portanto, aos “pontos de irrupção” na
153
ordem jurídico privada abertos por cláusulas gerais que se valem de conceitos
indeterminados, como ordem pública e boa-fé, ou pela interpretação de normas gerais desse
ramo do direito (MENDES et al., 2014, p. 177). Assim, seria reduzida, em relação à teoria da
eficácia direta, a ingerência do Estado sobre a esfera juridicamente tutelada dos
particulares205. No Brasil, conforme relata Mendes et al. (2014, p. 178) há supedâneo, na
jurisprudência do STF, para o reconhecimento da eficácia direta quando em causa direitos e
garantias de natureza procedimental, como o direito ao contraditório e à ampla defesa
(Constituição, art. 5º, inciso LV), relativos a punições aplicadas por entidades privadas a seus
membros, especialmente quando tal entidade cumpre papel relevante para a vida profissional
ou comercial de seu integrante206.
Independentemente das posições acerca da aplicabilidade imediata ou mediata dos
direitos fundamentais às relações privadas, e considerando as breves linhas em que se abordou
o assunto neste trabalho, cumpre ressaltar que o tema liga-se ao presente objeto de estudo na
medida em que enseja o seguinte questionamento: se se reconhece que particulares exercem
posições jurídicas que implicam prevalência de uns sobre os outros quando em causa direitos
fundamentais, asseguradas as reivindicações cabíveis - ao Poder Judiciário, em especial -, por
que não poderiam exercê-las quando formalmente incumbidos da execução de atividades
205 Canotilho (1993, p. 594-595), em defesa da superação da dicotomia entre eficácia imediata e
eficácia mediata, e em favor de soluções diferenciadas que busquem conciliar, de um lado, as normas
do direito privado, e, de outro, a eficácia conformadora dos direitos, liberdades e garantias
constitucionais sobre esse ramo do direito, registra: “Reconhece-se, desde logo, que a problemática da
chamada ‘eficácia horizontal’ se insere no âmbito da função de protecção dos direitos fundamentais,
ou seja, as normas consagradoras dos direitos, liberdades e garantias e direitos análogos constituem ou
transportam princípios de ordenação objectiva — em especial, deveres de garantia e de protecção do
Estado [...]. Esta eficácia, para ser compreendida com rigor, deve ter em consideração a
multifuncionalidade ou pluralidade de funções dos direitos fundamentais, de forma a possibilitar
soluções diferenciadas e adequadas, consoante o ‘referente’ de direito fundamental que estiver em
causa no caso concreto. Relativamente aos perigos de ‘perversão’ da ordem jurídica civil através da
‘hipertrofia de direitos’, salienta-se que a ideia da eficácia imediata em relação a entidades privadas
dos direitos fundamentais não pretende que os titulares dos direitos, colocados numa situação de
igualdade nas relações verticais com o Estado (princípio da igualdade como princípio vinculativo dos
actos dos poderes públicos), tenham, nas relações jurídicas civis, essa mesma situação de igualdade
mediante o auxílio do Estado. Por outras palavras: as entidades públicas não são ‘donas’ das relações
privadas para transformarem a ‘autonomia individual’ num concentrado de deveres harmonizatórios”.
206 Conforme relatam MENDES et al. e Daniel Sarmento (2011), o STF vem reconhecendo a
aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, como se observa nas decisões, ambas
citadas pelos autores, do RE 161.243, relatado pelo Ministro Carlos Velloso, e do RE 201.219, cujo
relator para o Acórdão foi o Ministro Gilmar Mendes, nos quais foram discutidos, respectivamente, a
incidência dos direitos fundamentais sobre as relações de trabalho, em caso de discriminação de
trabalhador em razão de sua nacionalidade, e a validade da aplicação de punição a um associado de
uma entidade sem que lhe tivesse sido oportunizado o exercício da ampla defesa. Ainda sobre o tema
da eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações privadas, na doutrina nacional, conf. Virgílio
Afonso da Silva (2005).
154
tipicamente públicas que ensejam constrição desses mesmos direitos? Reconhece-se, com
Canotilho (1993, p. 599) que a categoria dos poderes privados não é assimilável à dos poderes
públicos, no entanto, o ponto que se quer destacar é que em ambos os casos se está diante de
hipóteses de prevalência de particulares uns sobre os outros, com esteio na ordem jurídica, e a
supremacia resultante não é, em si, inválida. De qualquer forma, novamente retomando a
questão da essencialidade da consideração do regime jurídico aplicável à execução de
atividade pública típica, e não da natureza da pessoa, torna-se incabível defender que há
verdadeiro exercício de supremacia ilícita entre particulares (de um lado delegatários, de
outro, destinatários das normas), pois o regime incidente sobre o desempenho da atribuição
estatal é público e, inerentemente, irá apartar, de um lado, executores, e de outro, destinatários
das decisões.
7.6.4. Poder de polícia e atuação empresarial dos particulares.
Já caminhando para a conclusão deste capítulo, cumpre examinar o último argumento
erigido para a indelegabilidade do poder de polícia a particulares: o de que a execução de atos
de polícia por entidades com fins lucrativos é contrária ao interesse público, uma vez há o
risco de a atividade restritiva ser manipulada com o fim de majoração do lucro.
Nesse ponto, pertinentes as observações de Flávio Henrique Unes Pereira (2013, p.
124), no sentido de que a defesa da indelegabilidade parte da pré-compreensão de que seria
inviável harmonizar a atuação empresarial dos particulares com os interesses da coletividade,
“como se houvesse uma oposição inconciliável” entre interesses privados e interesse público.
Fato é que o exercício de atividades tipicamente públicas não é incompatível com a
atuação empresarial, concepção que a própria Constituição da República encampa em seu art.
175 ao admitir a prestação de serviços públicos pela iniciativa privada mediante a celebração
dos contratos de concessão e de permissão de serviços públicos.
Por outro lado, é de se ressaltar que as noções de interesse público e de interesse
privado não são necessariamente opostas, e, mais do isso, a de que o Estado não detém
monopólio do público (ou melhor dizendo, não há necessária correlação entre o público e o
estatal), o que se mostra bastante claro, por exemplo, na atuação das entidades do terceiro
setor na consecução dos interesses da coletividade.
155
Quanto à sempre alegada possiblidade de desvio de finalidade, nos debates sobre a
delegação da polícia de trânsito a entidades privadas, que levaria à instalação de uma
“indústria da multa”, conforme registra José dos Santos Carvalho Filho (2011, p.74), é
indispensável notar que tal abuso pode provir tanto de pessoas de direito público quanto de
pessoas privadas. A solução, nesse caso, decorre do eficaz e efetivo controle (e, se necessário,
punição aos desvios) incidente sobre a atuação do Estado e de eventuais particulares que
estejam no exercício o poder de polícia.
De qualquer modo, meio eficaz de evitar que a constrição da liberdade e da
propriedade se converta, em si própria, em critério de aferição do quantum da remuneração do
particular delegatário, é a previsão, quando da delegação, em especial quando esta se der por
meio de contrato, de metodologias de medição que não levem em consideração, para fins de
remuneração, o número de autuações expedidas por esse particular ou a quantidade de atos de
consentimento emitidos, por exemplo. Assim, a melhor solução para afastar eventual desvio
de finalidade será aquela construída caso a caso, ou contrato a contrato.
Para ilustrar a situação sobre a qual se trata, pode-se imaginar caso hipotético em
particular tenha recebido a incumbência de realizar fiscalização de trânsito e a remuneração a
ele atribuída esteja diretamente vinculada ao número de autuações expedidas, de modo que,
quanto mais autuações, maior a remuneração. E essa a situação que se quer impedir. Nesse
âmbito, cabe transcrever as palavras de Rafael Wallbach Schwind, para quem:
[...] a remuneração do particular deverá ser concebida de tal forma que não
crie conflitos objetivos de interesse. Ou seja, a remuneração do ente privado
não deverá ser fixada de modo a afetar a sua atuação e, consequentemente, a
decisão do Poder Público tomada com base na atividade do particular. [...]
Não se está afirmando que a remuneração do particular jamais poderá ser
vinculada à dimensão de sua atuação. O que se afirma é que conflitos
objetivos de interesse devem ser evitados. É claro que a existência de um
conflito de interesses não significa necessariamente que o particular estaria
atuando de modo irregular. Mas é importante que esse tipo de situação seja
evitada, como forma de resguardar o próprio ente privado que atua no
procedimento de polícia. (SCHWIND, 2014, p. 153)
Portanto, feitas as considerações deste capítulo, deve-se formular respostas às duas
indagações formuladas como problema neste trabalho: 1). É possível delegar a particulares o
exercício de atos jurídicos expressivos do poder de polícia no ordenamento jurídico pátrio? 2).
Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, quais os limites ao exercício de atos
jurídicos expressivos do poder de polícia por particulares no ordenamento jurídico-
constitucional brasileiro?
156
Respondendo aos questionamentos em conjunto, afirma-se que, sim, a ordem jurídico-
constitucional pátria não contém vedação genérica à delegação de atos jurídicos expressivos
do poder de polícia a particulares. Antes pelo contrário, a interpretação sistemática de
dispositivos constitucionais, como o art. 241, que prevê os consórcios públicos, e mesmo a
expressa previsão em cláusulas setoriais da atuação de particulares e Estado na execução do
poder de polícia, como é o caso dos arts. 216 e 225 da Constituição, reforçam esse
entendimento. Com isso não se quer dizer que não haja vedações pontuais, como na hipótese
de exercício do poder de polícia fiscal, atividade típica, exclusiva e indelegável do Estado,
sobre a qual incide normatização que impede o traslado de seu exercício a particulares,
conforme considerações realizadas no Capítulo 4 deste trabalho. Outra vedação explícita é da
Lei nº 11.079∕2004, Lei de Parcerias Público-Privadas, que expressamente proíbe a delegação
do poder de polícia aos contratantes∕ parceiros privados da Administração Pública.
Assim, no cenário de incremento das parcerias, em sentido amplo, entre Estado e
particulares, e, portanto, da maior imbricação entre a esfera pública e a esfera privada; e da
não recondução automática do interesse público aos órgãos e entidades estatais, hoje, público
e estatal não mais se confundem. Deve-se reconhecer aos particulares legitimidade para a
consecução dos interesses da coletividade, dentro das balizas colocadas pela ordem jurídica.
Por outro lado, deve-se levar em conta o entendimento de que o regime jurídico da atividade
estatal incidirá independentemente da natureza da personalidade jurídica da pessoa que a
executa. Tal compreensão aplica-se à prestação de serviços públicos e também à execução do
poder de polícia, podendo-se concluir pela delegabilidade do poder de polícia a particulares,
mas com limites.
Cumpre destacar, como decorrência lógica da afirmação de que o regime jurídico da
atividade pública incide independentemente da natureza jurídica, pública ou privada, de quem
a exerce, a aplicação do regime de responsabilidade do art. 37, §6º da Constituição Pública ao
particular delegatário. Com efeito, o citado dispositivo constitucional consagra na ordem
jurídica brasileira a responsabilidade civil objetiva do Estado, ou de quem lhe faça as vezes,
pelos danos que agentes seus, nessa qualidade, causem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável pelo dano em caso de dolo ou culpa207. Nesse caso, a
207 No texto da CR: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] § 6º As pessoas
jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra
o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
157
responsabilidade será ensejada, com o pagamento da indenização devida, uma vez
demonstrado o nexo causal entre a conduta estatal e o dano provocado a terceiro, dispensada a
comprovação de culpa ou dolo. Não se olvida que o texto constitucional, no caso das pessoas
jurídicas de direito privado, expressamente condiciona a incidência do regime da
responsabilidade objetiva à prestação de serviços públicos, porém, não se pode ignorar que se
tratam, ambas – poder de polícia e serviço público -, de atividades típicas de Estado, sendo
esse o cerne da responsabilização. Nesse sentido, Flávio Unes:
[...] não há, em relação ao tema da responsabilidade civil objetiva,
particularidade que justifique a não incidência do mencionado comando
constitucional em relação a danos causados a terceiros pelo exercício do
poder de polícia administrativa. Tanto o serviço público quanto o poder de
polícia são funções de titularidade do Estado e envolvem diretamente a vida
dos cidadãos [...] se o Estado ou quem o represente responde objetivamente
quando oferta comodidades aos cidadãos (serviço público), do mesmo modo
deve responder quando em causa dano em razão de atividade que limita ou
condiciona a propriedade e a liberdade privadas (poder de polícia
administrativa). (PEREIRA, 2013, p. 159).
De modo mais amplo, porém em sentido consonante com o de Flávio Unes, ao
ponderar que a cessão de funções públicas a sujeitos privados não impede que o Estado as
exerça concorrentemente e diretamente, nem que as retome a qualquer momento, Dolors
Canal i Ametller afirma:
Se na atualidade a personalidade pública ou privada das entidades que
exercem funções e poderes públicos parece ser um elemento secundário para
a aplicação, com todas as garantias, do Direito Administrativo, tampouco
parece que este elemento impeça a aplicação de um regime de
responsabilidade objetiva às entidades colaboradoras. Se em ambos os casos,
atuação direta da Administração e atuação privada, as funções exercidas são
as mesmas, assim como são idênticos seus efeitos jurídicos, os argumentos a
favor de uma distinção no regime de responsabilidade aplicável dificilmente
se sustentam. (AMETLLER, 2003, p. 326-327)208
Por sua vez, embora registre que nos sistemas jurídicos que examina (estadunidense,
inglês e comunitário europeu) os mecanismos de responsabilização legal (legal
208 No texto original em espanhol: “Si en la actualidad la personificación pública o privada de las
entidades que ejercen funciones y potestades públicas parece ser un elemento secundario para la
aplicación, com todas sus garantías, del Derecho administrativo, tampoco parece que este elemento
impida la aplicación de um regimén de responsabilidad objetiva a las Entidades colaboradoras. Si em
ambos supuestos, actuación directa de la Administración y actuación privada, las funciones ejercidas
son las mismas, así como son idénticos sus efectos jurídicos, los argumentos em favor de una
diferenciación em el regimén de responsabilidad aplicable dificilmente se sostienen”.
158
accountability) dos entes públicos não se aplicam a agentes privados, mesmo quando estes
exercem poderes estatais, Catherine M. Donnelly (2007, p. 228) afirma que os delegatários
privados, no exercício de poderes públicos, desfrutam de enorme capacidade para violar
direitos humanos e, assim, devem se submeter às mesmas restrições que os entes públicos, no
caso de estes exercerem diretamente tais poderes. Nesse sentido pondera, em consonância
com Flávio Unes e Ametller e ao encontro do posicionamento externado neste trabalho:
Dado que o poder não muda quando transferido do público para o privado, é
difícil compreender porque os controles sobre o poder devem mudar:
novamente, o controle deve depender da natureza do poder – não da
identidade de quem o exerce [...] onde os agentes privados estiverem
atuando em nome do governo e como delegatários de poder estatal, deve-se
esperar que eles cumpram com padrões de conduta mais elevados, incluindo
as obrigações de direitos humanos. (DONNELLY, 2007, p. 229-230)209.
Nesse contexto é que atos jurídicos, e não apenas os materiais, são delegáveis a
particulares pelo Estado. Do conjunto de atos jurídicos expressivos do poder de polícia
(normativos, sancionatórios, fiscalizatórios∕ de consentimento) são delegáveis apenas os atos
de fiscalização, e, com eles, os atos expressivos de consentimento, desde que a possibilidade
de traslado da execução dessa incumbência seja expressamente autorizada pela ordem
normativa. Reitera-se, no que toca aos atos de consentimento, que somente em tese a
Administração Pública poderá transferir a incumbência de emitir autorizações. Ressalvam-se
as licenças, pois expedidas no exercício de competência vinculada. As autorizações, enquanto
expressões de competência discricionária, podem ensejar incabível margem de liberdade
decisória aos particulares delegatários. Entende-se, nesse cenário, que a transferência do
exercício de atos de consentimento, em especial, as autorizações, poderá ocorrer apenas nos
estritos termos admitidos no permissivo da delegação e desde que guiada por critérios
técnicos, devidamente demonstrados. Ademais, a delegabilidade não recai sobre as
denominadas estratégias de polícia, genericamente categorizadas como regulação, fiscalização
e sanção, mas sobre atos especificamente considerados no âmbito dessas estratégias, no caso,
os de fiscalização∕ consentimento. Tal se deve ao fato de que o desenvolvimento dessas
estratégias requer atuação estatal no sentido da formulação e implementação de decisões
209 Tradução livre do original em inglês: “Given that the power does not change when transferred
from public to private, it is difficult to understand why the controls on the power should change: again,
control should depend on the nature of the power – not the identity of the power-holder [...] where
private actors are acting on behalf of government and as delegates of the governmental power, they
should be expected to comply with even higher standards of conduct, including human rights
obligations”.
159
públicas, na esfera política, concernentes à intervenção sobre a esfera juridicamente tutelada
dos particulares, conforme explicitado no Capítulo 5 deste trabalho. Isso implica ampla
margem de poder decisório quanto à conformação da liberdade e da propriedade dos
cidadãos210, insuscetível de transferência.
Nessa linha é que a delegação da incumbência de emitir atos normativos de polícia não
encontra supedâneo na ordem jurídico constitucional pátria, pois exige legitimação
democrática que particulares em si considerados não detêm; a intermediação dos Poderes
Legislativo e Executivo na produção desses atos é indispensável. A seu turno, a emissão de
atos sancionatórios também não encontra respaldo jurídico, uma vez que o trespasse dessa
atribuição aos particulares violaria o monopólio estatal de coerção. Por outro lado, admite-se
que o traslado da atribuição de emitir atos fiscalizatórios pode implicar o exercício por
particulares de poderes públicos de autoridade. Ademais, cabe lembrar que neste trabalho se
sustenta que a executoriedade não constitui atributo próprio dos atos administrativos,
incluindo aqueles expressivos do poder de polícia, dependendo de previsão normativa para
manifestar-se. Mais do que isso: nem todos os atos exigíveis são executórios. Logo, a
transferência da execução do poder de polícia não pode chegar ao ponto de permitir que
particulares empreguem meios materiais de coação uns sobre os outros, pois a ordem jurídica
pátria tem como exceção o uso da força por particulares, devido ao monopólio estatal, e
mesmo nas relações jurídicas estabelecidas estes e o Estado: só há emprego de força nas
hipóteses autorizadas pela ordem normativa. Desse modo, não cabe, aqui, o argumento de que
o regime jurídico incidente sobre os atos de sanção é o público e não o privado –pois, de
qualquer modo, a delegação importaria supremacia indevida de particulares uns sobre os
210 David M. Lawrence (1986, p. 647), caracterizando a privatização como a transferência de
responsabilidades governamentais ao setor privado, identifica alguns poderes como essencialmente
estatais, a exemplo da tributação, da “apreensão de pessoas e de propriedades” e da atividade de
regulação (ou, mais propriamente, a produção de atos normativos pelo Estado) (LAWRENCE, 1986,
p. 648). Examinando a ordem jurídica estadunidense, o autor aponta “justificações” para as delegações
a particulares, algumas das quais já foram tratadas neste trabalho, entre as quais cabe citar o regime
jurídico em tese mais flexível a que os particulares estão sujeitos, a expertise que os particulares
possuem e a redução de custos que a delegação pode proporcionar. O autor não deixa de citar, na
contramão, que o principal argumento erigido contra a delegação é a possibilidade de manejo de
poderes públicos por particulares de modo que estes reforcem seus próprios interesses “egoísticos” em
detrimento do interesse público (Lawrence, 1986, p. 659). Observa-se, em outra perspectiva, que na
base das considerações sobre a delegação está o exame do ordenamento-jurídico constitucional dos
Estados Unidos, em relação ao qual o autor assevera que não há proibição direta, em termos amplos, à
delegação de poderes públicos a particulares (Lawrence, 1986, p. 658). As limitações à delegação
proviriam, assim, de elementos como o devido processo legal e da noção de supremacia
constitucional. Pode-se dizer, nesse cenário, que o ordenamento estadunidense comporta delegação
muito maior, em termos de conteúdo, do que aquele admitido na ordem jurídica pátria.
160
outros. Assim, deve-se restringir a delegação aos atos jurídicos de fiscalização e
consentimento.
161
8. CONCLUSÃO
As considerações tecidas ao longo deste trabalho apontam para a necessidade de nova
compreensão acerca da possibilidade e dos limites da delegação do poder de polícia a
particulares. Diante das intensas transformações pelas quais passa o Estado, e, com ele, o
desempenho da função administrativa, tendo em vista, em especial, a busca cada vez mais
intensa por parcerias, em sentido amplo, com particulares, não se afigura possível a defesa
inconteste da indelegabilidade do poder de polícia. Assim, refuta-se a tese da indelegabilidade
total dessa atividade estatal e se admite a delegabilidade de determinados atos jurídicos
expressivos do poder de polícia, dentro de certas balizas colocadas pela ordem jurídico-
constitucional. Dessa maneira, podem ser sintetizadas as conclusões às quais se chegou neste
trabalho:
1. Duas foram as questões que se buscou responder: É possível delegar atos
jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares, considerando a ordem
jurídico-constitucional pátria? Em caso de resposta afirmativa à primeira
questão, quais os limites e condicionamentos da delegação?
2. Poder de polícia pode ser compreendido como atividade estatal destinada ao
ajuste do exercício da liberdade e da propriedade dos cidadãos aos interesses
da coletividade. Trata-se de atividade inarredavelmente subordinada ao
Direito. Não se concebe, na ordem jurídico-constitucional pátria, a invocação
de um poder estatal genérico voltado à ingerência sobre a esfera juridicamente
protegida dos cidadãos. No exercício do poder de polícia, em especial quando
em causa sua faceta sancionatória, por sua natureza mais agressiva, o Estado
pode atuar apenas com supedâneo no Direito, em obediência à juridicidade.
Excepcionalmente, admite-se atuação estatal sem respaldo imediato em norma
expressa, porém, frise-se, o desempenho de qualquer função estatal deve ter
sempre esteio no Direito. Em se tratando de atuação sem fundamento em
norma expressa, cuida-se da hipótese de urgência, ou, de modo amplo, da
situação concreta na qual não se vislumbra outro curso de ação viável ao
administrador público, sob o risco de perecimento do interesse da coletividade
colocado em perigo.
162
3. Observou-se que a doutrina pátria majoritária nega a possibilidade de
delegação de atos jurídicos expressivos do poder de polícia a particulares. Na
jurisprudência, colhem-se decisões do STF que sustentam a impossibilidade de
pessoas sujeitas ao direito privado, ainda que parcialmente, exercerem poder
de polícia. Um dos principais argumentos contrários à delegação é o de que tal
transferência implicaria a supremacia indevida de alguns indivíduos sobre
outros, redundando na violação do princípio da igualdade, constitucionalmente
previsto e assegurado. Essa corrente não nega, entretanto, que particulares
possam ser incumbidos da realização de atos materiais, de suporte ao
desempenho do poder de polícia. Nessa perspectiva, admite-se, ainda, a
utilização de equipamentos pertencentes a particulares no desempenho do
poder de polícia, a exemplo dos aparelhos fotossensores destinados à captação
da velocidade de veículos que transitam por vias públicas. Neste caso, há o
entendimento de que não se trataria de delegação de poder de polícia, pois os
equipamentos privados serviriam apenas como instrumentos para emissão de
decisão administrativa decorrente de competência vinculada.
4. As transformações do Estado brasileiro, na esteira de reformas de caráter
transnacional, especialmente relevantes a partir da década de 90 do século XX,
tem levado a novas compreensões sobre a função administrativa. Verifica-se
que tais transformações foram capitaneadas, entre outros fatores, pela expressa
introdução do princípio da eficiência no rol de princípios constitucionais
reitores da Administração Pública, no caput do art. 37 da CR∕88. Passa-se a
exigir do administrador público atuação otimizada face às condicionantes
fáticas e jurídicas da situação concreta. Nesse cenário é que se visualiza
tendência cada vez mais intensa da busca por parcerias, em sentido amplo,
com particulares, com o fim de propiciar a consecução do interesse público.
Assim se visualiza um Estado limitado diante das múltiplas demandas de uma
sociedade complexa, e que cada vez mais se torna permeável à participação de
particulares na gestão pública, ao mesmo tempo em que cresce a demanda
estatal pela expertise técnica desses particulares, útil para a consecução dos
interesses públicos.
5. Aferiu-se no contexto de transformações do Estado, que tem ganhado destaque
duas novas correntes de entendimento que refutam a tese indelegabilidade do
poder de polícia a particulares. Para compreendê-las, partiu-se da divisão
163
doutrinária dos modos de manifestação do poder de polícia em regulação
(normatização, em lei ou ato normativo de hierarquia inferior), fiscalização
(monitoramento) e sanção (punição). Observou-se que alguns entendimentos
doutrinários somam aos três modos de manifestação citados o consentimento,
que envolve a emissão de licença (ato administrativo editado no exercício de
competência vinculada) e de autorização (ato administrativo editado no
exercício de competência discricionária). Esses são atos por meio dos quais o
Estado habilita ou faculta a particular a realização de conduta inicialmente
vedada, incrementando, assim, seu patrimônio jurídico. Neste trabalho optou-
se por não tratar do consentimento separadamente da fiscalização, uma vez
que se entende que a outorga de licença ou de autorização decorre de prévio
monitoramento∕ verificação estatal sobre a conduta dos particulares
interessados em recebê-las, de modo a aferir sua adequação aos interesses da
coletividade.
6. A primeira dessas novas correntes é a que defende a delegabilidade parcial do
poder de polícia. Ou seja, admite a delegação de parcelas dessa atividade
estatal. Em perspectiva ampla, observa-se que essa corrente concorda com a
delegação de atos de fiscalização∕ consentimento, negando a possibilidade de
transferência de atos de regulação (ao menos os de status legal) e sanção, em
razão da legitimidade democrática que a primeira função demanda e do risco
de violação ao monopólio estatal de coerção, no caso da segunda. Esse é, em
termos gerais, o posicionamento veiculado pelo STJ na decisão do RESP
817.534, “Caso BHTRANS”, e que tem ganhado adeptos na doutrina e na
jurisprudência. Pode-se sintetizar, desse modo, que essa corrente nega que o
traslado do poder de polícia possa implicar o exercício de amplos poderes de
decisão pelo delegatário ou a quebra do monopólio estatal de coerção.
7. Observa-se que a segunda nova corrente admite a ampla delegabilidade do
poder de polícia, incluindo facetas refutadas pela corrente anterior, como
regulação e sanção. Basicamente, argumenta-se que o regime jurídico
aplicável ao poder de polícia é o regime jurídico-público, com suas
constrições, privilégios e poderes instrumentais. Assim, não haveria violação à
igualdade quando um particular exerce poder de polícia em face de outro, pois
o regime incidente nas relações entre ambos não seria o privado e sim o
público. Além disso, a delegação deve observar o devido processo legal e,
164
tratando-se dos modos de manifestação fiscalização e sanção, não deve haver
margem de liberdade de atuação para o particular delegatário, que atuará no
exercício de competência vinculada. No aspecto da regulação, a normatização
cingir-se-á aos aspectos técnicos necessários à instrumentalização do
desempenho do poder de polícia. Esta última corrente é essencialmente
doutrinária, ainda não encontrou amparo na jurisprudência.
8. Diante do exame crítico das correntes de entendimento acima sintetizadas,
entende-se que o posicionamento restritivo da doutrina e da jurisprudência
pátrias tradicionais acerca da delegabilidade do poder de polícia não encontra
respaldo na ordem jurídico-constitucional brasileira, que prevê hipóteses de
exercício de típicos poderes públicos por particulares, como, por exemplo, os
poderes desempenhados pelos comandantes de embarcação, decorrentes de
previsão legal, e também os poderes exercitados por concessionários e
permissionários de serviços públicos, de natureza contratual, mas que
encontram supedâneo em lei.
9. Para além dessas situações, observa-se que o texto constitucional prevê a
atuação de particulares ao lado do Estado no desempenho do poder de polícia
quando da promoção e defesa do patrimônio cultural brasileiro e da
preservação e proteção do meio ambiente. É o que deflui dos arts. 216, §1º, e
225, caput, da CR∕88.
10. Além desses específicos dispositivos, chegou-se à conclusão de que a
interpretação sistemática da Constituição permite defender que o poder de
polícia pode ser exercido por pessoas privadas. É o caso dos arts. 37, inciso
XIX, e 241 da Constituição, que, respectivamente, contêm autorização
genérica para a criação de entidade estatal, de direito público ou privado, para
execução de qualquer uma das atividades tipicamente desenvolvidas pela
Administração (poder de polícia, serviço público, fomento e intervenção no
domínio econômico) e concede fundamento à celebração de contrato de
consórcio público que possua como objetivo, entre outros fins (conforme
regulamentação da Lei nº 11.107∕2005 e do Decreto nº 6.017∕2007), o
desempenho do poder de polícia, já que a expressão “serviço público” contida
em seu texto (do art. 241) foi empregada em sentido amplo, uma vez que
engloba conjunto diversificado de atividades estatais.
165
11. Para fins de aferição da possibilidade de delegação do poder de polícia, partiu-
se da compreensão, de origem doutrinária, de que a delegação não recai sobre
aspecto macro do poder de polícia (designado pelos autores consultados como
“estratégias de polícia” ou “modos de manifestação do poder de polícia”),
traduzido nas atividades de regulação, fiscalização∕ consentimento e sanção.
Esse aspecto macro está intimamente ligado à definição de políticas de
atuação pelo Estado, de modo que demanda legitimidade democrática de quem
a exerce e é insuscetível de traslado a particulares. Para entender o que pode
ou não ser delegado é necessário visualizar os atos especificamente
considerados, de forma que, caso a caso, possa-se definir o que é suscetível de
transferência.
12. A delegação do poder de polícia recai sobre o exercício dessa atividade estatal
e não sobre sua titularidade, que é pública. Para delegar, é imprescindível
prévia autorização legal, de modo análogo ao que parte da doutrina e da
jurisprudência pátrias concebem como pressuposto para a delegação de
serviços públicos. Entende-se, portanto, que a decisão de transferir o exercício
do poder de polícia a particulares não é exclusivamente administrativa e deve
ser submetida ao crivo do Poder Legislativo. Apesar de serviço público e
poder de polícia serem atividades distintas, defende-se que a relevância de
ambas, umbilicalmente ligadas à realização dos direitos fundamentais,
demanda que seu desempenho fora da Administração Pública seja
democraticamente respaldado.
13. Entende-se que o regime jurídico aplicável à atividade delegada é o público,
com seus típicos poderes e constrições. O desempenho do poder de polícia,
quando delegado, continua submetido ao regime jurídico-administrativo, daí
que não se pode falar em violação da igualdade ou de exercício de supremacia
indevida de particulares uns sobre os outros, uma vez que tal ocorreria apenas
se ambos (delegatário e outro particular) estivessem sujeitos ao regime
privado, o que não é o caso.
14. Afirma-se, portanto, que determinados atos jurídicos expressivos do poder de
polícia podem ser delegados a particulares, nomeadamente, os atos de
fiscalização e de consentimento (nesta hipótese, licenças e, em tese,
autorizações). Deve-se observar, como limitadores genéricos a tal
transferência, a impossibilidade de delegar amplos poderes de decisão acerca
166
do desempenho do poder de polícia, bem como a inviabilidade de rompimento
do monopólio estatal de coerção. O exercício do poder de polícia por
particulares, se e quando admitido, cingir-se-á às estritas balizas da
juridicidade.
167
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dezembro de 2000, 10.312, de 27 de novembro de 2001, e 12.058, de 13 de outubro de 2009, e
o Decreto-Lei no 288, de 28 de fevereiro de 1967; institui o Regime Especial de Incentivos
para o Desenvolvimento de Usinas Nucleares (Renuclear); dispõe sobre medidas tributárias
relacionadas ao Plano Nacional de Banda Larga; altera a legislação relativa à isenção do
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art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a
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