UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
ANTONIO NONATO SANTOS OLIVEIRA
PARTICIPAÇÃO DE TERCEIROS NA ALFORRIA:
ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM BARRA, BAHIA, 1827 A 1888.
Salvador
2017
ANTONIO NONATO SANTOS OLIVEIRA
PARTICIPAÇÃO DE TERCEIROS NA ALFORRIA:
ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM BARRA, BAHIA, 1827 A 1888.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia,
como pré-requisito para obtenção do grau de Mestre
em História Social.
Orientadora: Profa. Doutora Gabriela dos Reis
Sampaio
Salvador
2017
Oliveira, Antonio Nonato Santos
O48p Participação de terceiros na alforria: escravidão e liberdade em Barra,
Bahia, 1827 a 1888 – 2017.
Orientadora: Profª. Drª Gabriela dos Reis Sampaio
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2017.
1. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. 2. Alforria – Escravidão - Barra 3. Brasil – História –
República | Sampaio, Gabriela dos Reis || Título.
CDD 326.981
AGRADECIMENTOS
A pesquisa não poderia ser realizada sem a participação de pessoas importantes.
Inicialmente meus comprimentos aos alunos e professores do curso noturno de história
da Universidade Federal da Bahia, em especial os da primeira turma, aguerridos, todos
nós aprendemos como lidar com um curso recém-criado, com as tensões inerentes e a
resistência dos que querem transformar a universidade em um nicho de poucos
privilegiados. Agradeço aos integrantes da Linha de Pesquisa Escravidão e Invenção da
Liberdade, nas pessoas de João José Reis, Wlamyra Albuquerque, Nicolau Pares, Elciene
Azevedo, Iacy Maia, Carlos Silva Junior, Candido Domingos.
Agradecimento especial à Prof. Gabriela Sampaio, minha orientadora, suas
intervenções me ensinaram as nuances da pesquisa e do mundo acadêmico. À Fátima
Pires e Kátia Lorena que tiveram importante participação nos rumos desta pesquisa.
Algumas pessoas em Barra do Rio Grande foram fundamentais para este trabalho.
Agradeço à tabeliã Fátima do Fórum de Barra por guardar, conservar e disponibilizar os
livros de notas de tabelião e documentos históricos, bem como a infraestrutura necessária
para processá-los. A Gildásio do cartório cível pela compreensão e paciência em abrir
disponibilizar os arquivos e o seu ambiente de trabalho. Ao senhor Sócrates Nascimento,
por fornecer informações, mapas, e estímulos importantes para consecução desse
trabalho. Ao padre Antônio por permitir acesso aos livros de batismo e disponibilizar seu
local de trabalho na paróquia para que eu pudesse fotografá-los e ao Frei Beto por me
acompanhar no arquivo “morto” da diocese. A todos que me ajudaram nesse percurso, a
minha gratidão e a consciência de que foram extremamente importantes para o resultado
do trabalho.
RESUMO
OLIVEIRA, Antonio Nonato Santos. Participação de terceiros na alforria: escravidão e
liberdade em Barra, Bahia, 1827 a 1888, 133f. 2017. Dissertação (Mestrado). Faculdade
de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
A presente dissertação discute a participação de terceiros na alforria, a partir de Barra do
Rio Grande, localizada no oeste da Bahia, no período de 1827 a 1888. Trata-se de um
estudo de história social da escravidão, elaborado a partir de ampla pesquisa documental,
utilizando como fontes principais ações de liberdade e cartas de alforrias registradas em
livro de notas de tabelião. Os capítulos têm como fio condutor as experiências de três
escravas: Raimunda, Maria e Lucinda. A partir de suas histórias, foi possível abordar
aspectos relevantes sobre a escravidão e a liberdade e, especialmente, a intervenção de
terceiros na alforria. A questão principal do trabalho foi compreender os motivos pelos
quais outras pessoas interferiram na relação senhor-escravo. São discutidos também
aspectos gerais da escravidão e da liberdade naquela região.
Palavras-chave: Escravidão, alforria, Barra do Rio Grande, sertão, Oeste da Bahia.
ABSTRACT
This thesis discusses the manumission of slaves in Barra do Rio Grande, a city in western
Bahia, from 1827 to 1888. It focuses on the participation, during the manumission
process, of some people that were neither slaves nor masters. The study, following the
steps of the social history of slavery, was elaborated based on the research of different
documents, mostly freedom actions (ações de liberdade) and letters of manumission
registered in the notary's book of the city of Barra. The chapters are guided by the
experiences of three slaves: Raimunda, Maria and Lucinda. Their stories allowed us to
address relevant aspects of slavery and freedom and especially the intervention of other
people in manumission. The work discusses the reasons why other people interfered in
the slave/master relationship, and also tries to understand general aspects of slavery and
freedom in that region.
Keywords: Slavery, manumission, Barra do Rio Grande, backwoods, west of Bahia.
LISTA DE SIGLAS
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
FB – Fórum de Barra
LNT1 – Livro de notas do primeiro tabelião
LNT2 – Livro de notas do segundo tabelião
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Síntese do desdobramento histórico da divisão municipal.
Quadro 2 – Procuradores e locais de atuação na venda de escravos a partir de 1875.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – População de Barra em 1826
Tabela 2 – População de Barra em 1872.
Tabela 3 – Bens existentes quando do falecimento de Ana Maria da Conceição
Tabela 4 – Bens existentes quando do falecimento de Antônio da Silva Ribeiro
SUMÁRIO
1 Introdução 10 2 Raimunda e a liberalidade de terceiros na alforria 26 2.1 Raimunda e seu mundo 27 2.2 Liberalidade de terceiros 40 3 Maria e sua prole – participação da família na alforria 56 3.1 Joaquina: venda ou alforria e reescravização? 59 3.1.1 Conflito entre Guerreiros e Militões 61 3.1.2 Tráfico interprovincial 62 3.1.2.1 Perfil dos procuradores 66 3.1.3 Precariedade da liberdade 72 3.2 Rita, primeira filha de Joaquina - em busca do eldorado 74 3.2.1 Escravos e libertos influenciando na alforria 76 3.2.2 Senhores com família escrava na alforria 80 3.3 Maria, terceira filha de Joaquina – a guerreira 81 3.4 O processo judicial 83 3.4.1 A primeira instância 84 3.4.1.1 – Testemunhas parciais: libertos e pobres 84 3.4.2 No Tribunal da Relação 90 4 Lucinda – participação de juízes na alforria 92 4.1 Lucinda – alforria condicional e reescravização 97 4.1.1 Lucinda 97 4.1.2 O núcleo familiar senhorial 101 4.1.3 Libelo cível 104 4.3 Panorama da época 1836 117 4.4 Juízes e alforrias 118
5 Considerações finais 124 Referências 126
10
1 INTRODUÇÃO
Três mulheres. Três sertanejas. Raimunda, Maria e Lucinda. Todas jovens: 25, 30
e 18 anos, respectivamente. As três ligadas, cada uma a seu tempo, por embates
relacionados à alforria no sertão baiano oitocentista. Essas são as pessoas centrais desta
dissertação. Raimunda vivia sobre si em Barra do Rio Grande, sertão do São Francisco,
oeste da Bahia, nas últimas décadas da escravidão. Circulava na região com a conivência
de sua senhora, até que esta faleceu, dando a oportunidade para Raimunda se livrar do
cativeiro. Aproveitando-se da legislação abolicionista, ingressou na justiça. Alegou
abandono por parte da escravista, que sustentava a si mesma e que sua senhora não vinha
cumprindo com as obrigações de mantê-la e de tê-la em seu jugo. Perdeu a causa.
Contudo, Raimunda conseguiu o dinheiro para indenizar sua alforria com uma cotação
feita por algumas pessoas de Barra e pode, com isso, continuar sua batalha judicial até
sua liberdade. Seu caso foi parar no Tribunal da Corte, Rio de Janeiro e rendeu uma
publicação na Gazeta Jurídica, uma revista técnica que publicava casos especiais no
âmbito jurídico.
Já a escravizada Maria ingressou com ação na Justiça contra o seu poderoso senhor
alegando que sua mãe foi alforriada e que, portanto, toda sua família a partir da mãe,
estava em cativeiro ilegal. Sua experiência nos deu oportunidade de conhecer o drama de
três gerações escravizadas, além de nuances históricas na região como guerras entre
famílias, reescrazivação e tráfico interprovincial, como será visto no capitulo 2.
A terceira personagem, Lucinda, era liberta. Foi alforriada, mas teve a alforria
questionada na justiça pelo herdeiro de uma dívida do pai. Os diversos juízes que atuaram
no caso e os autos dos processos possibilitaram vislumbrar o funcionamento da justiça
numa cidade do sertão baiano oitocentista.
O que mais elas tinham em comum, além de terem sido escravizadas, no sertão do
São Francisco? O fato de terceiros interferirem na relação senhor-escravo, nas situações
relacionadas à alforria em que elas estiveram envolvidas. Raimunda conseguiu dinheiro
com uma cotação entre pessoas da região, Maria utilizou da situação familiar como
fundamento para alegação de cativeiro ilegal sua e de sua família, e Lucinda sentiu o
aparato estatal no questionamento da sua alforria.
11
O que teria motivado a intervenção de terceiros na alforria de Raimunda? O que
impulsionou Maria a procurar a justiça para tentar livrar a si e família do cativeiro? Que
mecanismos possibilitaram o questionamento da liberdade de Lucinda? A pesquisa
procura responder a estas perguntas. Com o foco voltado nas pessoas dos escravizados,
busca entender especialmente as três escravas, como também os indivíduos livres, libertos
e escravos que as cercaram.
A presente dissertação tem por objetivo discutir a participação de terceiros na
alforria a partir de Barra do Rio Grande, Bahia, no período de 1827 a 1888. O recorte
temporal se justifica por se tratar de uma mudança na dinâmica na estrutura administrativa
com a qual Barra do Rio Grande passou a integrar a Província da Bahia. Após pertencer
à província de Pernambuco, foi dela retirada em 1824 em função de uma punição
decorrente da Confederação do Equador.
A interferência de outros sujeitos na relação senhor-escravo é de extrema
importância para entender a sociedade escravista, especialmente o escravo e seus
relacionamentos. Em relação a alforria e liberdade alguns autores indicam a importância
das diversas redes de relações construídas pelos escravos. Para Marcus J. M. Carvalho “o
caminho para a liberdade, portanto, muitas vezes começava exatamente aí: na construção
de uma rede de ralações pessoais as quais o cativo ‘pertencesse’”. A liberdade dependia
também da “tessitura de redes de solidariedade”, dos “laços de solidariedade”, e até dos
“elos afetivos”.1 Manolo Florentino vai mais longe, generaliza ao afirmar que a carta de
liberdade é o “resultado último da ação da rede de relações sociais que envolviam os
escravos entre si, a família cativa, escravos e senhores, forros, homens livres pobres e
instituições como irmandades, lojas maçônicas, caixas de pecúlio, clubes profissionais –
enlaçados por meio do mercado”. Florentino lança este argumento contrapondo a noção
da carta como uma conquista escrava por excelência, defendida por Mary Karasch.2
Tentando entender quem eram os curadores que ajuizaram ações nos tribunais e
os motivos pelos quais os escravos tiveram acesso a eles, Keila Grinberg conclui que “o
1 Marcus J. M. Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850, Editora
Universitária, UFPE, 1998, p. 219, 237, 238. 2 Manolo Florentino, "De escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro Imperial." Revista USP 58, 2003: 104-
115, p. 114. Manolo Florentino dialoga com a obra de Mary C. Karasch, A vida dos escravos no Rio de
Janeiro, 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
12
acesso à estrutura jurídica e ao judiciário dependia, e muito, das relações pessoais que o
escravo mantivesse com homens livres e poderosos do local”, que o escravo precisaria ter
relações pessoais bem consolidadas com pessoas de posse ou de algum poder na
sociedade.3
Para o observador do presente, doze décadas distantes do seu término, a
escravidão foi indubitavelmente cruel, desumana. Todavia, o que os contemporâneos do
escravismo pensavam sobre o cativeiro e como eles agiam? Como senhores e escravos,
livres e libertos encaravam a escravidão? Não são questionamentos fáceis de serem
respondidos. O que pude perceber ao longo de dois anos debruçado sobre os livros de
notas de tabelião, ações de liberdade e escravidão, correspondências de juízes e
documentos diversos é que a escravidão ao seu tempo era encarada pela sociedade com
resiliência, um mal necessário. Obviamente, era uma situação que ninguém queria para
si. Os escravos tentavam se desvencilhar a todo custo daquela condição. Pagavam valores
altíssimos, quando podiam, para se livrar do cativeiro. Todavia, isso não os impedia de
passar para outro lado como escravistas quando podiam e a situação permitia.4
Certamente, muitos deles, se tivessem mais oportunidades sociais e financeiras, poderiam
se tornar senhores de escravos sem o menor constrangimento e com a aprovação e aplauso
dos pares.
Por que isso acontecia? A resposta é que a escravidão era uma instituição
legitimada por todos, senhores, escravos, livres, libertos e em especial pelo Estado.5
Mesmo sabedores da sua crueldade, havia uma resignação social em relação ao sistema,
e que somente foi quebrada com o avanço do cenário abolicionista ao longo do século
XIX e com a pressão de diversos setores da sociedade, inclusive dos próprios escravos,
por meio de revoltas, pressões e mesmo de batalhas jurídicas. Isso fica bastante claro
quando analisamos o comportamento das pessoas físicas e jurídicas que interferiram na
alforria. O curador da escrava Raimunda lutou aguerridamente para conseguir sua
3 Keila Grinberg, Liberata: a lei da ambiguidade, as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de
Janeiro no século XIX, Rio de Janeiro: Centro Pesquisa Edelstein, 2008, p.38, 39. 4 Sobre escravos proprietários de outros escravos ver João José Reis, “De escravo a rico liberto: a trajetória
do africano Manoel Joaquim Ricardo na Bahia oitocentista”, Revista de História, Brasil, n. 174, p. 15-68,
jan-jun, 2016. Disponível em: . Acesso em:
17/02/2017. p. 35 a 38. 5 Sobre legitimação e legitimidade da escravidão ver Orlando Patterson, Escravidão e morte social: um estudo comparativo, São Paulo: Edusp, 2008, p. 65, 66
http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/108145
13
liberdade e conseguiu, como veremos no capítulo 1. Contudo, foi ele mesmo quem, no
ano seguinte, deu munição mortal para fazer com que a escrava Maria e sua prole não
conseguissem a liberdade em primeira instância, conforme analisado no capitulo 2. Este
mesmo curador recebia escravos como retribuição pelo seu serviço. O escravista que
alforriou a escrava Maria era um traficante de escravos que atuou ativamente no comércio
interprovincial. Seu filho, também atuante neste comércio, fez de tudo para libertar a
escrava Maria e sua família do cativeiro, como detalharemos no capitulo 2.
Comportamento incoerente? Para um olhar distante, a resposta poderia ser sim. Porém,
dentro do contexto em que ele estava inserido, era um comportamento aceitável. Em
suma, “o passado é outro mundo”.6 É preciso analisar com muita atenção as relações de
poder, como as que ocorriam entre senhores e escravos, para que se possa tentar
compreender o que de fato se passava no contexto escravista, com todas as suas sutilezas
– como a existência de um traficante-libertador.
Eugene Genovese analisou a importância da relação senhor-escravo na sociedade
escravista. O autor mostrou que a existência da escravidão cria uma sociedade sui generis,
na qual os valores têm forte influência das relações que ocorreram entre senhor-escravo.
Os escravos influenciavam os senhores, assim como os senhores influenciavam os
escravos. Uns ganhavam características do outro, envolvidos em uma relação paternalista,
originando do intercurso uma sociedade original, e distinta da sociedade sem a mácula da
escravidão7. João José Reis ensina, discutindo o contexto da revolta dos Malês, que
“qualquer análise terá que levar em conta o fato de que as relações senhor-escravo
constituíam a matriz estruturante da sociedade e da economia baiana”. Contudo, múltiplas
relações estavam presentes na sociedade, a despeito de todas elas serem influenciadas
pela relação senhor-escravo. Outros extratos existiam e exerciam importantes funções
sociais, econômicas, culturais e políticas. 8
A historiografia da escravidão, a partir dos anos 80 do século XX, se preocupou
em demonstrar as ações dos próprios escravos no sistema escravista. Eram ações de
6 Expressão de Sidney Chalhoub no prefácio do livro de Gabriela dos Reis Sampaio, Nas trincheiras da
cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial, Unicamp, 2001. 7 Eugene Genovese, A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988. p. 13, 14, 23. Sobre paternalismo ver E.P. Thompson, “Patrícios e plebeus”, in Costumes em comum:
estudos sobre cultura popular tradicional, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 8 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Males em 1835, São Paulo,
Companhia das Letras, 2003. p. 20.
14
resistência ou acomodação, estratégias de espaços de autonomia, conforme explica
Maria Helena de P. T. Machado.9 Hoje não se tem dúvidas de que os escravizados não
foram sujeitos inertes, atônitos, sem capacidade de ações políticas. Revoltaram-se,
subverteram a legislação, conseguiram ser proprietários, constituíram famílias, fugindo à
escravidão completa que lhes tentaram impor e à desumanização que a legislação
costumeira ou escrita assegurava. Em termos de alforria, a formação de pecúlio, as ações
judiciais, a compra da manumissão já são bem conhecidas, não constituindo novidade
para a historiografia da escravidão a participação ativa dos escravizados nesses processos.
Por isso, é necessário esclarecer que esta abordagem da participação de terceiros não tem
o intuito de demostrar que os escravos não tiveram participação ativa nos processos de
alforria ou que não foram agentes ativos no desmonte da escravidão. A nova historiografia
vem desfazendo, de forma irrefutável, qualquer dúvida que se tenha a este respeito.10
Contudo, a participação de terceiros na manumissão necessita de um tratamento
específico.
A participação de terceiros na alforria tem sido abordada como assunto secundário
nos estudos sobre alforrias. Penso que a aproximação da lupa sobre esta forma de alforria
pode revelar aspectos sobre a sociedade escravista que uma análise quantitativa pode
dissimular. Os estudos sobre alforria são numerosos e têm abordagens diversas. Iniciaram
com uma abordagem marcadamente voltada para os padrões de alforria11, indo à vertente
que analisa, além dos padrões, aspectos específicos sobre a manumissão como: influência
9 Maria Helena Pereira Toledo Machado. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a
História Social da escravidão”, Revista Brasileira de História, São Paulo, AMPUH/Marco Zero, v. 8, nº 16
(1988). P. 144 10 Ver dentre outros João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito, São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. Robert Slenes, Na senzala, uma flor, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 11 Kátia de Queiroz Mattoso, “A propósito de cartas de alforria, Bahia 1779-1850”, Anais de História, nº 4
(1972); Idem, “Notas sobre as tendências e padrões dos preços das alforrias na Bahia. 1819-1888”, in João
José Reis (org.) Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo:
Brasiliense, 1988. Stuart Schwartz, “Alforria na Bahia, 1684-1745”, in Escravos, roceiros e rebeldes.
Bauru, SP, Edusc, 2001. Peter L. Eisenberg. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil
– séc. XVIII e XIX, Campinas, Editora da Unicamp, 1989.
15
da etnia,12 relação senhor escravo,13 relação com o tráfico interprovincial,14 alforria como
dádiva,15 formas de obtenção e significados da liberdade.16
As ações de liberdade têm sido abordadas sob diferentes aspectos, entre outros,
desde visões e sentidos da liberdade pelos próprios escravos, passando por análises da
Lei 2.040, de 18 de setembro de 1871 e nuances do processo judicial das ações de
liberdade e escravidão, bem como, resistência escrava por meio da justiça.17
A intenção de discorrer sobre a participação de terceiros na alforria é evidenciar
as conexões, ligações e relações da sociedade como um todo com o escravo e a com a
escravidão. Perceber que o escravo não estava sozinho na situação com seu senhor. Que
os escravos se relacionavam, faziam parceiros, aliados, fosse com escravos, libertos ou
livres.
A participação do Estado não pode ser ignorada. Estudos recentes voltaram a
refletir sobre a presença do Estado no fenômeno da escravidão.18 Creio que motivados,
especialmente, pela presença do Estado legislando sobre assuntos delicados ligados aos
afrodescendentes e indígenas na atualidade, como as ações afirmativas. O Estado foi um
dos terceiros que interferiram na relação senhor-escravo. Considero o Estado nesse estudo
como o ente público representado em suas ações concretas por meio dos seus agentes
públicos no âmbito parlamentar, no cotidiano da administração pública, na conduta
12 Mieko Nishida, “As alforrias e o papel da etnia na escravidão urbana: Salvador, Brasil, 1808-1888”, Estudos econômicos, vol. 23, nº 2 (1993). 13 Ligia Bellini, “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de Alforria”, in João José
Reis (org.) Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil, (São Paulo: Brasiliense,
1988), Kátia Lorena Novaes Almeida, Alforrias em Rio de Contas, Bahia, Século XIX, Salvador, EDUFBA,
2012. 14 Maria de Fátima Novaes Pires, Fios da vida: Tráfico Interprovincial e Alforrias nos Sertoins de Sima,
1860-1920, São Paulo:Annablume Editora, 2009. 15 Márcio de Sousa Soares, A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos
Campos de Goitacases, c.1750- c.1830, Rio de Janeiro, Apicuri, 2009. 16 Daniele Santos de Souza, “Nos caminhos do cativeiro, na esquina como a liberdade: alforrias, resistência
e trajetórias individuais na Bahia setecentista”, in Gabriela dos Reis Sampaio, Lisa Earl Castilho, Wlamyra
Albuquerque (org), Barganhas e querelas da escravidão: tráfico, alforria e liberdade, século XVIII & XIX,
Salvador, EDUFBA, 2014. pp. 103 a 136. 17Respectivamente: Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1990. Keila Grinberg, Liberata, a lei da
ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX, Rio de Janeiro,
Relume-Dumará, 1994. Ricardo Tadeu Caíres Silva, “Os escravos vão à justiça: a resistência escrava
através das ações de liberdade, Bahia, século XIX”, (Dissertação de Mestrado, UFBA), 2000. 18 Sidney Chalhoub, A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, São Paulo,
Companhia das Letras, 2012. Tâmis Peixoto Parron, “A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-
1865”, (Dissertação de Mestrado, USP, 2009).
16
judiciária19 e as repercussões destas ações, tentando perceber o grau de ingerência destes
sujeitos nos assuntos escravistas e nas relações de terceiros com a escravidão. As
discussões feitas por Sidney Chalhoub evidenciam as medidas adotadas pelo Estado no
âmbito legislativo, no cotidiano da administração pública, na conduta do judiciário para,
por exemplo, ante a Lei de 07 de novembro de 1831, “manter gente escravizada ao arrepio
da lei”. Neste sentido, Chalhoub demonstra como os agentes do governo e aqueles que
deveriam zelar para o cumprimento da lei faziam vistas grossas à entrada ilegal e
desenfreada de africanos, burlando a “lei pra inglês ver”, em vigor por pressões da
Inglaterra, que se convertera de grande potência escravista para antiescravista por
pressões internas e/ou outros interesses econômicos. Somente em 1850 é que uma lei do
austero e conservador Eusébio de Queiroz foi efetiva em abolir o tráfico de africanos para
o Brasil. 20 Com a Lei de 28 de setembro de 1871, o Estado finalmente normatizou de
forma mais incisiva contra o sistema escravista. Todavia, o Estado agia contra a
escravidão, mas olhando para o direito senhorial e esquecendo o dos libertos. Enquanto
cuidava da extinção lenta e gradual da escravidão, sem prejuízo para os escravistas, a
situação do egresso da escravidão era silenciada, assim como já acontecia com a situação
dos libertos há mais tempo. Os recortes, ajustes, supressões quando da tramitação da Lei
de 1871 na Câmara e no Senado dizem muito sobre como os interesses senhoriais estavam
sendo defendidos, como veremos no decorrer do capítulo 1 deste trabalho.
A estratégia utilizada foi a de seguir trajetórias de pessoas para entender contextos.
Neste sentido, me inspirei em trabalhos como o de João José Reis, que abordou liberdade,
tráfico e candomblé na Bahia acompanhando os passos de Domingos Sodré21. Ou o de
Gabriela Sampaio que, na mesma linha, a partir da experiência de Juca Rosa, buscou
entender o universo cultural e religioso compartilhado por libertos, livres e escravos na
Corte imperial22. Ou, ainda, na obra de Luiz Mott, quando discutiu religiosidade e
tratamento a escravos e libertos por meio da vida de Rosa Egipcíaca, que também seguiu
19 Conforme a conceituação em Chalhoub, A força da escravidão, p. 30 20 Chalhoub, A força da escravidão, p. 30. 21 João José Reis, Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia
do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 22 Gabriela dos Reis Sampaio, Juca Rosa: Um pai-de-santo na Corte imperial, Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2009.
17
este percurso23. Nesse sentido, seguindo a metodologia consagrada pela História Social
com fortes influências da micro-história italiana, foco no indivíduo buscando não perder
de vista a complexidade das relações que o ligam a uma sociedade determinada, conforme
ensina Carlo Ginzburg, um dos pioneiros no uso deste método.24 O desafio neste trabalho
é tentar refletir a partir da trajetória de uma pessoa escravizada, já que poucas fontes
permitem tal abordagem.
Como disse anteriormente este estudo é feito a partir de Barra do Rio Grande,
localizada na margem esquerda do rio São Francisco, região em que a historiografia tem
dado pouca atenção, especialmente no que se refere os estudos relativos ao escravismo.
Em relação ao Oeste da Bahia, pouco foi produzido, mesmo sobre assuntos históricos
diferentes da escravidão25.
Barra do Rio Grande é resultante do avanço da pecuária pelo sertão da Bahia no
século XVII. Segundo versão mais aceita, a povoação colonizadora da região se deu pela
intervenção da família d’Ávila da Casa da Torre de Tatuapara, então chefiada pelo 2ª
Francisco Dias d’Ávila Pereira que mandou estabelecer uma fazenda de gado onde o rio
Grande desaguava no rio São Francisco, denominando-a de Barra do Rio Grande.
Erivaldo Fagundes Neves, com base principalmente nos registros de terras, conclui que a
expansão da família d’Ávila alcançou a margem esquerda do Rio São Francisco até Barra
do Rio Grande. A partir do Rio Grande até Carinhanha, a colonização se deu por “várias
famílias portuguesas, baianas e pernambucanas de origem indígena, africana e europeia”.
Esta conclusão contraria o que vinha repetido até então pela historiografia que advogava
a ocupação de toda a margem esquerda do São Francisco pela família d’Ávila da Casa da
Torre de Tatuapara.26
23 Luiz Roberto Barros Mott, Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana No Brasil, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1993. 24, Carlo Ginzburg, Enrico Castelnuevo e Carlo Poni. “O nome e o como: mercado historiográfico e troca
desigual.” In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel-Bertrand Brasil, 1989, p. 173. 25 Ver discussão sobre a historiografia do oeste da Bahia em Erivaldo Fagundes Neves, “Propriedade, posse
e exploração da terra: domínio fundiário na Região Oeste da Bahia, século XIX”, in Clovis Caribé e Raquel
Vale (Orgs), Oeste da Bahia, Feira de Santana: UEFS Editora, 2012. p. 33 26 Neves, “Propriedade, posse e exploração da terra”, pp. 37, 56, 94. Neves revela que a versão da
colonização de toda a margem esquerda do São Francisco pela família d’Ávila da Casa da Torre de
Tatuapara foi formada incialmente pela informação do cronista colonial André João Antonil, em Cultura e
opulência no Brasil, sem a devida comprovação empírica e desde então foi incorporada a historiografia
pela “simples transcrição a cada novo estudo”.
18
Barra é um dos mais antigos povoados do sertão baiano ao lado de Pambu, Rodelas
e Matias Cardoso conforme informado por Marcio Roberto Alves dos Santos27. Em livro
datado de 1893, Francisco Vicente e Jose Carlos revelam que Barra “teve sua origem de
um arraial de índios mansos que D. João de Lancastro mandou erigir nos últimos anos do
século XVII para fazer face às invasões que os selvagens Acaroazes e Mocoazes faziam
constantemente nos estabelecimentos pecuários da população civilizada”.28
Etnocentrismos à parte, a informação é reveladora da presença indígena na região e da
tensão que foi a ocupação. A escravidão esteve presente desde o seu início do
povoamento. A sociedade barrense no século XIX caracterizava-se por ser heterogênea,
hierarquizada, escravista, como boa parte das sociedades oitocentistas.
Os escravos desempenhavam principalmente os trabalhos na lavoura, contudo,
esta não era o carro chefe da economia da região. As atividades comerciais e a pecuária
formavam sua base econômica. Por estar localizada na confluência de rios importantes da
Região (Rio São Francisco, Rio Grande, Rio Preto, Rio Corrente e seus afluentes) a sua
vocação para o comércio emergiu desde cedo. Ao analisar o potencial econômico da
região, Caio Prado Junior chama atenção para a tendência de caráter comercial das regiões
que se tornam “pontos de contato e de trânsito de certa importância”. 29 Podemos ter uma
ideia do comércio da cidade, pela observação de Francisco Vicente Viana e José Carlos
no livro de 1893, Memórias sobre o Estado da Bahia:
Seu comércio é bastante animado, as feiras são quase que cotidianas.
Ali afluem tanto os produtos que descem de Minas Gerais, Carinhanha,
Rio das Egoas e Urubú pelo Rio São Francisco, de Campo Largo e
Santa Rita pelos rio Grande e Preto, como os que sobem de Juazeiro,
Remanso, Chique-Chique para esses pontos, o que faz da cidade da
Barra o verdadeiro centro comercial do Rio S. Francisco. Os habitantes
são menos lavradores que criadores, pois a criação de gados é feita em
larga escala. 30
27 Marcio Roberto Alves dos Santos, Fronteiras dos Sertões Baiano – 1640 a 1750, (Tese de Doutoramento,
Universidade de São Paulo, 2010). p. 255, 256. 28 Francisco Vicente Viana e José Carlos Ferreira, Memorias sobre o estado da Bahia, Bahia: Tipografia
e encadernação do Diário da Bahia, 1893. Sobre ocupação colonizadora dos Sertões baianos ver Marcio
Roberto Alves dos Santos, Fronteiras dos Sertões Baiano – 1640 a 1750, (Tese de Doutoramento,
Universidade de São Paulo, 2010), na qual aborda ocupação territorial dos sertões não como o avanço
gradualmente positivado da civilização, mas como uma trajetória multidirecional, descontinua e irregular. 29 Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia, 6. ed., São Paulo, Brasiliense, 1961, p. 58. 30 Francisco Vicente Viana e José Carlos Ferreira, Memorias sobre o estado da Bahia, Bahia: Tipografia
e encadernação do Diário da Bahia, 1893.
19
Barra estava localizada em uma das rotas comerciais mais importantes do sertão
baiano. Maria de Fátima Novais Pires ensina que as três principais vias de comércio do
alto sertão dos séculos XVII ao XIX foram a via do rio São Francisco, a do rio Paraguaçu
e a da estrada de Juazeiro. Sobre a via do rio São Francisco, Pires destaca que
realizava um comércio ativo de carne seca e sal extraído da terra. Por
esta via, chegava-se a Januária, em Minas Gerais, região produtora de
aguardente e rapadura, a São Francisco das Chagas, atual Barra,
produtora de sal (extraído da terra) e a Carinhanha. 31
A economia de Barra era eminentemente regional. Não exportava ou importava
em quantidades significativas se comparada à efervescente economia das grandes cidades
litorâneas. A dinâmica do comércio e a produção em pequena escala de produtos
agropecuários eram suficientes para manutenção material da localidade, incluindo a
possibilidade de acúmulo de pecúlio da população escrava. Contudo, o comércio de gado
em Barra era um dos mais importantes da região. O gado vinha das fazendas próximas e
longínquas e até de outras províncias como Goiás, Piauí, em Barra era negociado e parte
do produto abastecia as regiões de Salvador e Recôncavo.32.
Documento importante sobre a economia e sociedade de Barra do início do século
XIX é um intitulado “Dados e Informações estatísticas sobre a Vila da Barra em 1826”,
de Inácio Acioli de Cerqueira e Silva, disponível no Arquivo Público Mineiro33. Aqui
cabem algumas críticas a este documento, que está indicado por Caio Prado Junior como
“interessante descrição” desta região.34 Trata-se de uma série de quesitos ao Senado pelo
Barão de Caeté, conforme o próprio documento informa, Presidente da Província de
Minas Gerais, numa época em que a Vila fora desmembrada de Pernambuco como
retaliação do Império à Confederação do Equador, e passou a pertencer a província
mineira. São questões relacionados a informações geográficas, econômicas sociais,
percebe-se a intenção de avaliar a capacidade da região, especialmente, por a cidade da
Barra ter sido indicada para ser a capital de uma potencial província, que seria resultante
31 Maria de Fátima Novais Pires, O crime na cor: escravos e forros no alto Sertão da Bahia (1830-188),
São Paulo: Annablume, 2003, p. 39. 32 Sobre o comércio de gados ver: Rodrigo Freitas Lopes, “Nos currais do matadouro público: o
abastecimento de carne verde em Salvador no século XIX (1830-1873)” – (Dissertação de mestrado -
Universidade Federal da Bahia, 2009) pp, 20 a 26. 33 Inácio Accioli de Cerqueira e Silva, “Dados e informações sobre a Vila da Barra em 1826”, Revista do
Arquivo Público Mineiro, 9 (1904), disponível em
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/rapm/brtacervo.php?cid=286, acessado em 06/09/2105 34 Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo ... p. 58, nota de rodapé 14.
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/rapm/brtacervo.php?cid=286
20
do desmembramento da Província da Bahia. O autor das respostas se opõe
terminantemente a este projeto, e a sua escrita não nega a forte tendência implícita e
explícita em descaracterizar a Vila como possível capital de uma Província. Chega o autor
a revelar de forma furiosa e deselegante, após dar algumas informações sobre o local:
Acrescemos a isto uma população heterogênea, diminuta e imoral, a
pobreza geral da Comarca, um luxo em proporção demasiada é
considerarmos a filantropia farisaica dos que suspiram pela criação de
uma Província neste Rio, sendo Capital esta Vila. Desgraçadas cabeças!
desgraçada Província, tão imaginária como a Republica de Platão.35
A despeito dos dados objetivos relevantes sobre a região, como os da Tabela 1 a
seguir, o documento contém uma série de juízos de valor sobre o local e sua população,
especialmente sobre os libertos da região. Quando perguntado sobre “qual é a espécie de
cultura em uso, e especialmente se há plantações de carás, mandiocas, e inhames, que
suprem a falta do pão ordinário”, o autor responde que a cultura principal consiste em
mandiocas, mas é “deplorável o estado da agricultura na Comarca que os principais
lavradores se veem na precisão de comprar farinha por exorbitantes preços aos
atravessadores e traficantes”36. Elogia o solo, diz que o algodão e o tabaco são de superior
qualidade e que o último se exporta algum. Revela que o arroz, feijão, milho vegetam
com muita facilidade porém, sempre há falta destes gêneros, e o pouco que aparece é com
preços exorbitantes; porém tudo é plantado em ponto pequeno, incluindo a batata, o cará,
inhames. Diz que plantam “com profusão melancias, melões, abóboras que exigem pouco
trabalho; que a cana de açúcar somente se cultiva para fabricação de aguardente”, a partir
daí solta uma pérola na avaliação da origem de tal situação:
Ora sendo tal qual como acabo de desenhar o verídico quadro da
agricultura neste Departamento ocorre à primeira ideia o desejar saber
donde provem o mal. Este tem sua principal origem na preguiça e
indolência: todos sabem que tanto mais um país oferece meios de
subsistência mais predomina ali a preguiça, a indolência e a falta de
indústria. Passando-se por esta Vila seus arrabaldes, não se divisa outro
objeto senão uma infinidade de homens ociosos sentados ou deitados,
os Hotentotes de Gafraria, de dia dormem, e de noite, cantam e bailam
e se em alguma cousa se ocupação de dia é no jogo, que as mais das
vezes acaba em desordem; reputam-se que decairão da sua dignidade se
trabalhassem a jornal e somente para remar algumas canoas se acham
prontos, pelo fato, que levam em iludir os patrões. Tendo uma camisa,
ceroulas, capote; uns sapatos, distintivo dos livres, e da preguiça, uma
35 Inácio Accioli, Dados e informações ..., p. 704 36 Inácio Accioli, Dados e informações ..., p. 703
21
faca de ponta, ou uma arma, uma canoa pequena, ou um cavalo, ei-los
já considerados na ordem dos ricos. (Grifo nosso)
Ou seja, segundo Inácio Acioli, os culpados pela situação econômica eram os
negros livres e libertos. As expressões como “Hotentotes de Gafraria”, a alusão aos
“sapatos distintivos dos livres”, já que uma das marcas do escravo estava nos pés
descalços, não deixam dúvidas quanto ao passado escravista daqueles em quem o autor
quer colocar toda a responsabilidade pelos problemas da região. Perguntado sobre a
existência de engenhos e fábricas e o andamento destes revela que “não há um único
engenho em toda a Comarca”, havendo apenas “quarenta e quatro engenhocas de moer
canas movidas por bois e servindo para alambicar aguardente e fazer algumas rapaduras”.
Revela a existência de terras adequadas à agricultura no Rio Corrente, porém diz que:
O número de escravos é pequeno, felizmente eles são os que trabalham
na lavoura e os demais livres pelo mesmo sistema de escravatura
reputam infamante o trabalho, preferindo fazer na ociosidade, a uma
útil soldada, vindo a faltar braços na agricultura, tornando-se em fardos
da sociedade os mesmos que deveriam fazer a sua opulência.37
No documento, Inácio Acioli, o mesmo autor de “Memórias históricas e política
da história da província da Bahia” , elogia o escravo e o seu trabalho como única salvação
da região. Mas a importância deste escritor vale enquanto ele é escravo. Quando se torna
livre, transforma-se no principal problema da região, fator de obstáculo ao crescimento,
segundo o Acioli. O curioso é que o autor não faz análise sobre a elite local, os
fazendeiros, políticos, o problema está no liberto.
A proporção de escravos em Barra era compatível com as grandes cidades
escravistas do século XIX, a despeito do comércio e pecuária não demandarem mão de
obra em grande quantidade, tal como a agricultura canavieira de larga escala praticada no
litoral. Enquanto a população de Capital de Província, em 1835, chegava a 65.500
habitantes; a de Rio de Contas, em 1838, era estimada em 25.000 mil; e Xique-Xique, em
1818, compunha de 3.724 habitantes, no censo local datado de 1826 foi assim computada
a população da Vila da Barra: 38
37 Inácio Acioli , Dados e informações ... p. 708 38 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p 24, Katia
Lorena, Alforrias em Rio de Contas - Bahia, Século XIX. 1. ed. Salvador: Edufba, 2012. p. e Elisangela
Ferreira Oliveira. Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão
do São Francisco, no século XIX, (Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia), 2008,, p. 87
22
Tabela 1 – População de Barra em 182639
Livres Escravos Total
Livres
Total
Escravos Brancos Pardos Pardos Pretos
Vila da Barra 124 2.271 150 410 2.395 560 Santa Rita do Rio Preto 96 1.263 88 148 1.359 236 Carinhanha e Rio das
Éguas
345 1.427 219 325 1.772 544 Mendigos 1.980 Escravos desamparados 88
Fonte: Inácio Accioli de Cerqueira e Silva, Dados e informações sobre a Vila da Barra em 1826.
Revista do Arquivo Público Mineiro, 9(1904), p. 710.
Em 1826, Santa Rita, Carinhanha e Rio das Éguas eram termos da Vila da Barra.
Ao longo do século XIX, tais localidades foram se fragmentando resultando nas ainda
poucas cidades atualmente no território. O quadro do desmembramento territorial abaixo
melhor esclarece a situação.
Quadro 1 – Síntese do desdobramento histórico da divisão municipal.
São Francisco das
Chagas da Barra do
Rio Grande do Sul,
1752, desmembrado
de Cabrobó
Campo
Largo¹, 1820 Angical, 1891 e desta, Barreiras, 1891
Carinhanha,
1832
Rio das Éguas², 1866, e desta Santa Maria
da Vitória, 1891, Santana dos Brejos, 1890
Santa Ria de Cássia do Rio Preto, 1840 1. Sede transferida para o arraial de Avaí do Brejo Grande, depois Avaí de Santa Cruz, depois Barão de Cotegipe,
depois Cotegipe; Campo Largo hoje corresponde a Taguá, antigo Arraial Velho da primitiva fazenda Suçuarana, do
sesmeiro José Lopes Coutinho do Bonfim.
2. Em 1880, sede transferida para Santa Maria da Vitória; em 1886, sede transferida para Rio das Éguas; em 1888, nova
transferência para Santa Maria da Vitória; em 1891, emancipação de Santa Maria da Vitória.
Fonte: Ângelo Alves Carrara, Paisagens de um grande sertão: a margem esquerda do médio-São Francisco
nos séculos XVIII a XX. Ciência e Trópico, Recife, v. 29, n.1, p. 61-124, 2001. p. 117.
O censo de 1826, a despeito dos problemas comuns a este tipo de fonte, permite
uma excelente ideia da composição da população. O documento informa que nos dados
não incluem as crianças abaixo de 10 anos. Percebe-se uma população livre
majoritariamente parda 94,8%. Os escravizados constituíam-se de 19% da população
total, sendo representada principalmente por pretos.
39 Tabela do Anexo 2, do artigo de Angelo Alves Carrara, Paisagens de um grande sertão: a margem esquerda do médio-São Francisco nos séculos XVIII a XX. Ciência e Trópico, Recife, v. 29, n.1, p. 61-124,
disponível em
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=20&ved=0CE4QFjAJOApqF
QoTCNiTkpzT4scCFcuJkAodzj8ErQ&url=http%3A%2F%2Fperiodicos.fundaj.gov.br%2FCIC%2Farticl
e%2Fdownload%2F751%2F489&usg=AFQjCNGPJUcpy9zqVRIi1RTS__KSYgTMfQ&sig2=tGnt4VDil
r0iXjTXcE47hg&bvm=bv.102022582,d.Y2I, acessado em 06/09/2015.
23
Em outro recenseamento local feito em 1862, verificou-se que a população era de
2.948 na sede e da Freguesia era de 8.171. Não são detalhadas as diferentes composições
deste número, mas é um indicativo importante do crescimento populacional em 36 anos.40
Em 1872 quando da realização do grande censo nacional, as localidades que
constavam do primeiro censo de 1824 já não mais pertenciam ao território barrense, em
função das divisões do território conforme se verifica no Quadro 1.
A mesma tabela com os dados do censo de 1872 fica da seguinte forma:
Tabela 2 – População de Barra em 1872.
Livres Escravos Total Total
Brancos Pardos Pretos Caboclos Pardos Pretos Livres Escravos
Vila da
Barra 967 8.091 2.391 76 292 342 10.891 634
Fonte: IBGE, censo de 1872.
Percebe-se, em 1872, aumento populacional, o predomínio do tipo pardo e a
decréscimo da população cativa. Os escravizados representam em 1872 menos de 6% da
população revelando os efeitos da onda abolicionista no definhamento da escravidão. O
censo de 1872 revela ainda uma população predominantemente solteira (80%), católica,
com 21 estrangeiros (menos de 0,2% da população), e 10% da população alfabetizada,
tendo a vila 2.583 casas habitadas (fogos). Em relação à composição étnica, há um
predomínio de pardos entre a população.
Em todo esse cenário, chama atenção a profundidade da penetração da escravidão
na sociedade brasileira. Uma localidade que dista da capital mais de 800 quilômetros sem
atividades econômicas importantes que pudesse demandar uma quantidade significativa
de mão de obra e, mesmo assim, com um contingente de escravizados considerável. Mas,
por hora é isso que temos a informar sobre Barra, ao longo dos capítulos mais detalhes
serão revelados.
40 APEB, Lote 5297, Correspondência da Santa Casa de Misericórdia.
24
Figura 1 – Divisão territorial e administrativa da Bahia – Situação em 1827.
Fonte: SEPLANTEC-Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. CEPLAB –Centro de
Planejamento do Estado da Bahia.
Estruturo a dissertação em três capítulos. O primeiro capítulo trata da liberalidade
de terceiros na alforria tendo como fio condutor a experiência de Raimunda, jovem
escravizada, nascida em Barra, que vivia “sobre si”, isto é, com a tolerância do senhor,
25
era autônoma, se mantinha, plantava roça de mandioca e tinha a liberdade de locomoção.
A partir desta liberdade, construiu vínculos, relacionou-se socialmente, fez amizades, foi
madrinha de filhos de pessoas livres, estabeleceu ligações que possibilitaram, quando da
morte de sua senhora, questionar sua condição de escrava na Justiça. Após longo embate,
a herdeira da falecida senhora alegou liberalidade de terceiros, para o valor que ela
conseguiu com a ajuda de uma cotização entre pessoas de Barra. A liberalidade de
terceiros era um dos pontos chave para entender a fragilidade do escravismo naquele
momento. Contudo, não só terceiros relacionados aos escravos tiveram por vezes
importância decisiva na alforria do escravizado. A família foi uma peça importantíssima
e não poderia deixar de ser abordada no presente trabalho.
No segundo capítulo, discuto a família na alforria. Alguns motivos me levaram a
abordar este assunto já tão trabalhado pela historiografia. O primeiro foi ter localizado a
experiência da família de Maria, com possiblidade de reflexão sobre três gerações de uma
mesma família escravizada. O segundo é que as cartas de alforrias registradas no livro de
notas de tabelião de Barra possibilitaram identificação de membros diversos da família
intervindo na situação de escravidão de seus familiares. O terceiro motivo é que, por sorte
de principiante, a família de Maria interagiu com pessoas importantes da história da
região, o que me possibilitou coletar dados sobre tráfico interprovincial, guerras pelo
poder da elite, reescravização. Todos estes assuntos são tratados no capítulo.
No terceiro capítulo, utilizo a trajetória da escrava Lucinda para refletir sobre a
participação estatal na alforria, por meio da Justiça, em Barra do Rio Grande nas primeiras
décadas do século XIX. O aparato estatal era um dos legitimadores da escravidão,
contando com mecanismos para possibilitar o questionamento das situações de liberdade
e escravidão para senhores e escravos. Em um Estado recém independente de Portugal, a
justiça ainda lutava para formar seus quadros. Os vários juízes que se revezaram no caso
de Lucinda eram leigos, sem formação jurídica, mesmos os juízes de direito que a lei
obrigava o bacharelado para o exercício do cargo. O capítulo evidencia que, a despeito
das dificuldades inerentes à uma comunidade do sertão muito distante dos grandes
centros, a Justiça funcionava a contento, possibilitando as resoluções dos conflitos entre
senhores, escravos, livres e libertos.
26
2 RAIMUNDA E A LIBERALIDADE DE TERCEIROS NA ALFORRIA
Em 1877, A Gazeta Jurídica: revista mensal de doutrina, jurisprudência e
legislação, do Rio de Janeiro, publicou os atos judiciais (sentenças, relatórios, embargos)
de um processo cível intitulado “Liberdade pelo Valor do Inventário-Pecúlio de Escravo-
Liberalidade de Terceiro – Exibição do Valor da Alforria”.41 O processo se refere à
Revista Cível nº 9062, oriunda de Barra do Rio Grande, Bahia, tendo como recorrente a
escrava Raimunda e recorrida a herdeira Maria Plácida de Souza. Raimunda pretendia ser
libertada pela quantia de 400 mil réis, valor pelo qual foi avaliada no inventário de Rosália
de Azevedo. Após longa peleja judicial em uma ação que se iniciou como “de abandono”,
o argumento final da sobrinha-herdeira foi que o pecúlio fora conseguido por
“liberalidade de terceiros”. De fato. O valor da alforria de Raimunda foi angariado com
recursos de Maria Josefina da França, José Ribeiro Marques, o Padre Antônio Joaquim
de Abreu e Francisco Ribeiro Marques42. Mas o que é liberalidade de terceiros? Por que
esta questão foi alvo de discussão parlamentar e judicial? Que interesses estavam em
jogo? Quais mecanismos possibilitaram que as quatro pessoas atuassem em favor de
Raimunda? São questões que tento responder neste capítulo.
A partir da trajetória da escravizada Raimunda, discuto, neste capítulo, a
liberalidade de terceiros na alforria, as tensões e interesses em torno do assunto. Pretendo
entender os motivos pelos quais outras pessoas interferiram na relação senhor-escravo,
considerada eminentemente privada, e que, relativamente à constituição do pecúlio,
sofreu uma regulação importante com a lei de 1871. A intenção é detectar mudanças e
permanências de atitudes, ao longo do século XIX, no que se refere a escravidão. Uso o
conceito de rede de relacionamentos, como desenvolvido pelo historiador Giovanni
Levi.43 Levi reduziu a escala de observação para captar o “comum extraordinário”, com
41 Biblioteca Nacional Digital, Gazeta Jurídica Volume XVI, ano V, Rio de Janeiro: Topografia
Perseverança, Jun a Set de 1877. pp. 95 a 109, disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=234788&pagfis=9964&pesq=&url=http:
//memoria.bn.br/docreader#, acessado em 01/09/2015. 42 Fórum de Barra - Livro de Notas nº 29 do Segundo Tabelião, p. 99, Procuração da escrava Raimunda,
sem classificação 43 Sobre rede de relacionamento, Giovanni Levi em sua obra “Herança imaterial” escolheu um “lugar banal
e uma história comum” como objeto de estudo. O lugar é Santena, uma pequena aldeia do Piemonte, ao
norte da Itália e a história é a do “tosco padre exorcista”, Giovan Battista Chiesa. Levi identificou que, para
além das relações econômicas, materiais o principal fator que influenciava, por exemplo, os preços, era a
rede de relações pessoais, assim como foi a rede de relações a principal herança deixada pelo pai do padre
exorcista. Giovanni Levi, A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
27
impacto considerável no entendimento de contextos mais amplos, legando-nos uma forma
de fazer história que ainda hoje inspira historiadores por todo o mundo44. Na experiência
de Raimunda, a sua rede de relações permitiu desafiar os poderes senhoriais.
2.1 Raimunda e seu mundo
Raimunda nasceu, “pouco mais ou menos”, em 1848, de ventre escravizado, na
sociedade escravista do Século XIX, na Vila da Barra do Rio Grande.45 Ainda criança foi
sendo, aos poucos, talhada para a vida em servidão. A historiadora Kátia Queirós Mattoso,
ao estudar a criança escravizada, chama atenção para o uso da concepção de criança para
sujeitos de épocas distintas, alertando para o risco do anacronismo ao observador incauto.
Contudo, revela que havia uma idade a partir da qual o filho da escravizada deixava de
ser uma “criança negra ou mestiça irresponsável para tornar-se uma força de trabalho para
os seus donos”. Se dos 3 aos 8 anos era o período de iniciação aos comportamentos sociais
no seu relacionamento com senhores e escravos, era dos 7 para 8 anos que o escravizado
entrava no mundo dos adultos, na qualidade de aprendiz. 46 Já Maria Lúcia Barros Mott
encurta para “5 a 6 anos” a idade em que o escravizado “aparece desempenhando alguma
atividade como descascar mandioca, descaroçar algodão, etc”.47 A Lei 2.040 de 1871, no
§ 1º do artigo 1º, obrigou os senhores a cuidar da criança filha do ventre livre da escrava
até a idade de oito anos completos.
Não obstante, ao menos para Rosália de Azevedo, escravista a quem Raimunda
servia, a iniciação profissional do cativo tendia ser com uma idade maior. Raimunda
começou a aprendizagem do ofício de costureira aos 11 anos. No registro de matrícula de
escravos de 1872, o irmão de Raimunda, Severino, então com 12 anos de idade, é o único
44 Sobre o conceito de experiência histórica ver Edward Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser, Rio de Janeiro, Zahar, 1981. pp. 180 a 201. 45 Arquivo Público do Estado da Bahia, daqui por diante APEB, Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de
liberdade da escrava Raimunda. p. 1, 2 e 16 46 Kátia Queirós Mattoso, “O filho da escrava: em torno da Lei do Ventre Livre”, Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 8 nº 19, p. 37-55, mar/ago 1988. Sobre a criança escrava ver também Maria Cristina
Luz Pinheiro, “O trabalho de crianças escravas na cidade de Salvador 1850-1888”, Afro-Ásia, 32, p. 159-
183, 2005. 47 Maria Lúcia Barros Mott. “Criança escrava na literatura de viagem”, Cadernos de Pesquisa, Fundação
Carlos Chagas, nº 31, p. 57 a 68, 1979.
28
dos três escravos relacionados que aparece sem profissão. Raimunda consta como
costureira aos 20 anos e seu irmão Conrado, de 25 anos, é apresentado como lavrador.48
Aos 11 anos, Raimunda foi enviada à Maria Josefina da França, vizinha de Rosália
de Azevedo e tia de Antônio Irineu da França, que iria ser curador da Raimunda em sua
ação de liberdade. A mudança para a casa da Maria Josefina teve como finalidade o
aprendizado do ofício de costureira, a mesma profissão que consta na matrícula em 1872.
Raimunda aproveitou esta estadia para algo mais que a aprendizagem do ofício.
Soube, com suas habilidades de relacionamento, “cativar” a amizade de Maria Josefina a
ponto desta constituir seu porto seguro em suas maiores demandas. O seu sobrinho foi o
curador que conduziu com habilidade a causa de Raimunda na Justiça, conforme antes
dito. Além disso, quando necessitou de dinheiro para sua alforria, foi Maria Josefina uma
das pessoas que contribuíram com o valor necessário para sua manumissão.
Raimunda foi empregada no ganho. Vivia, desta forma, com relativa liberdade de
movimento, trabalhando longe do controle senhorial. A senhora de Raimunda não a
tratava como exigido para o senhor de escravos da região.49 A deixava “muito solta”.
Situação que não agradava os sobrinhos da sua senhora, o Capitão José Rufino de Souza
Azevedo e Maria Plácida de Souza. Em 1866, o Capitão José Rufino tentou vendê-la.
Levou-a até a uma localidade chamada Cabeça do Surubim, pertencente a Fazenda
Utinga, termo de Xique-Xique. Contudo, Raimunda fugiu e “procurou a casa de Dona
Teodósia Maria de Almeida, na mesma fazenda referida”. Segundo as palavras do
curador, a senhora aprovou a atitude de Raimunda e “dali em diante nem sua senhora, e
nenhum dos seus sobrinhos se importaram mais com a suplicante que continuou até esta
data, viver sobre si, como até é muito público e notório”.50 Quando Raimunda se viu
diante de uma situação que não lhe agradava, fugiu e tomou abrigo na casa de uma pessoa
do seu relacionamento, certamente facilitado pela vida no ganho.
As constantes fugas de Raimunda revelam uma personalidade irrequieta, não
acomodada. Talvez a situação de “viver sobre si” explique tais fugas. Em 1871, Raimunda
48 APEB, Seção de Arquivo Colonial – Ação de liberdade – Matricula de escravos de Rosália de Souza. 49 Sobre paternalismo e senhores que não se enquadravam no comportamento senhorial típico ver: Douglas
Cole Libby, “Repensando o conceito do paternalismo escravista nas Américas”, in Eduardo França Paiva
e Isnara Pereira Ivo (Org.), Escravidão, mestiçagens e histórias compradas, São Paulo: Annablume: Belo
Horizonte: PPGH-UFMA, Vitória da Conquista: Edunesb, 2008. (Coleção Olhares). p. 27 a 39. 50 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. p. 2 e 3.
29
foi alugada ao Tenente Joaquim José de Silva Paz. “Prestando-lhe todo o serviço,
inclusive até o de carregar materiais para uma casa, que estava construindo”. Não contente
com a situação, Raimunda começou a trabalhar mal a ponto de obrigar o Tenente a
desfazer o contrato, “não podendo suportá-la pelo seu mau procedimento”. O sobrinho da
senhora de Raimunda, o Capitão José Rufino, tentou castigá-la, mas foi impedido pela
senhora Rosália. Percebe-se claramente a estratégia de Raimunda para contrapor a uma
conjuntura a ela insuportável. O estatuto jurídico atribuído a Raimunda pouco importava
para ela naquela situação. Estava desconfortável com o trabalho e sabia que se não
correspondesse à expectativa do cliente da senhora, este romperia o contrato. Foi isso que
aconteceu. 51
Raimunda sobrevivia com meios próprios e “vivia sobre si”. Antonio Pereira de
Castro, advogado de Maria Plácida de Souza, a herdeira, a certa altura do processo,
argumentou que “o fato de ter, a autora, uma roça de mandioca na Sambaíba nada prova
em seu favor, porque isso sucedia com ciência, e consentimento de sua senhora”. Tal
declaração nos revela que longe do olhar senhorial, Raimunda tratou de conseguir meios
para subsistência, e com um dos produtos mais consumidos na Região, a mandioca.
Certamente Raimunda tinha a intenção de vender o produto do seu trabalho na agitada
feira de Barra. O advogado continua o argumento dando uma declaração reveladora das
relações escravistas. Diz que a “permissão para ela procurar serviço que lhe convinha, era
unicamente por afeição que lhe tinha em razão de tê-la criado, que além de natural, é alias
muito comum entre senhores que, como a tia da Ré, não tinha filhos”.52
Raimunda fugiu também quando foi ‘depositada’ resultado da ação de liberdade
que moveu ela contra a herdeira, Maria Plácida de Souza, logo que sua senhora faleceu.
Raimunda alegava abandono senhorial e exigia a liberdade com base no parágrafo quarto
do artigo sexto da Lei 2.040 de 28/09/1971, a chamada Lei do Ventre Livre. O depósito
51 A experiência de Raimunda é semelhante à de outras mulheres escravizadas se recusaram a seguir as
regras do sistema escravista. Como a trajetória de Maria José que fugiu de Pernambuco e foi parar com sua
família em Xique-Xique (Elisangela Ferreira Oliveira, “Os laços de uma família: da escravidão à liberdade
nos sertões do São Francisco”, Afro-Ásia, Salvador, v. 32, p. 185-218, 2005). Outra situação interessante é
a de escrava Caetana que foi designada para casar com outro escravo e se recusou, gerando um processo
eclesiástico que foi utilizado por Sandra Lauderdale Graham no excelente livro Caetana diz não: história
de mulheres da sociedade escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 2005; ABEP, Seção Colonial. Lote
47/1659/8Ação de liberdade da escrava Raimunda, fl. 51. 52 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fl. 14 e 15.
30
era um procedimento previsto no ordenamento jurídico. O escravizado ficava sob
custódia de alguém até o trânsito em julgamento do processo. Tal procedimento visava
impedir retaliações à sua pessoa em função de sua contenda na Justiça, preservar sua
integridade e minimizar os riscos de pressão sobre o demandante. Algo aconteceu entre
Raimunda e o primeiro depositário. Talvez um abuso. Uma exigência que ela não estava
disposta a atender. O fato é que Raimunda, não contente com a situação, fugiu. Tal fato
foi levado ao conhecimento da Justiça. O depositante, Joaquim Roriz Porto apresentou
um requerimento ao Juiz do caso informando a conduta de Raimunda e se desobrigando,
a partir de então, do depósito da escravizada:
Ao Juiz Municipal
08/06/1874
Diz Joaquim Roriz Porto, depositário da escrava Raimunda, que tendo
dado motivos dela saltar o muro da casa de minha residência, assim
mais por ter praticado desobediência, por isso requeiro a Vossa
Excelência nomear outro depositário da dita Escrava, com a qual desde
já não me responsabilizo, em vista do que alegado tenho.
Assina: Joaquim Roriz Porto.53
O que eu consegui identificar sobre Joaquim Roriz Porto é que ele foi integrante
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Cabe aqui um olhar sobre esta irmandade.
Ela nos ajuda a compreender um pouco mais sobre as relações escravistas em Barra e que
pode nos ajudar a entender os motivos pelos quais Joaquim foi nomeado depositário de
Raimunda. Antes é necessário dizer que a comunidade barrense era reunida em torno das
irmandades, como ocorria na maioria das localidades brasileiras. No século XIX havia
pelo menos quatro irmandades em Barra, segundo registros no Livro de Notas de
Tabeliães: a Irmandade do Santíssimo Sacramento, Irmandade da Boa Morte, a
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.
Vejamos sobre esta última.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário era bem antiga e perdurou por longo
período. Foi fundada em 1769, juntamente com a Irmandade do Santíssimo Sacramento,
pelo Padre Manoel Rodrigues de Almeida, sendo extinta em 191754. Homens de cor
53 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fl. 36. 54 Heitor Araújo, “História da Diocese da Barra”, Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia,
Salvador, 1950, p. 613
31
participavam da irmandade, como Jeronimo Viana, filho de liberta Maria, que em seu
testamento revela que era membro da confraria.55
O Livro de Atas desta Irmandade nos revela que escravos, livres e coronéis
reversavam em cargos da mesa administrativa. Em 1850, Maria escrava do Padre José
Gregório foi eleita juíza. As escravas Joana, do Ajudante Manuel Cabral, Joana do
Coronel Ambrósio e o escravo Valter, de D. Maria Cândida foram eleitos para o cargo de
Irmãos de Mesa. O mesmo cargo, em 1853, foi ocupado pelo Coronel Ambrósio Machado
Wanderley.
Os cargos da mesa da Irmandade do Rosário eram rei, rainha, rainha perpétua, juiz
de mesa, provedor, escrivão, tesoureiro, procurador, irmãos de mesa, mordomos. Os
cargos de rainha perpétua, irmãos de mesa e mordomos sempre contavam com a presença
de escravos ao lado de pessoas livres. Ter um cargo na mesa numa irmandade sem dúvidas
era sinônimo de prestígio para seu ocupante. Rendia-lhe visibilidade e precedência sobre
os demais, pelo menos nas funções da irmanadas afetas a seu cargo. Não obstante, havia
uma hierarquia entre os cargos e para alguns deles os escravos não ascendiam. Entre 1850
a 1862 não localizei escravos ocupando função de provedor, escrivão e tesoureiro,
procurador. 56
A Irmandade do Rosário tinha outros objetivos que não o religioso ou se envolvia
em atividades econômicas para atingir seus objetivos institucionais. Por meio do Decreto
495, de 15 de Julho de 1848 o Imperador a autorizou a “possuir a Fazenda de criação de
gados denominada Imbuzeiro”.57 A irmandade também detinha títulos da dívida pública
e emitia procuração para pessoas físicas ou empresas resgatar os juros destes títulos na
capital da província.58 Em 22/09/1880, chegou a ter cerca de 7 contos e 740 mil réis em
títulos da dívida pública. Além disso, concedia empréstimos para empresários locais.59
55 Fórum da Barra. Livro nº 25 do Segundo Tabelião, fl. 35. Testamento em notas. 56 Livro de Eleições da Irmandade de N. Senhora do Rosário, Arquivo Morto da Diocese de Barra, fl. 31 a
32. Não classificado. 57 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1848, Página 3 Vol. pt I, Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-495-15-julho-1848-559960-
publicacaooriginal-82469-pl.html, acessado em 21/05/2015 58 Fórum de Barra, Livro de Notas de Tabelião e Coleções das Leis do Brasil. Imprensa Nacional. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional 59 Fórum de Barra, Livro de Notas nº 33 do Segundo Tabelião fl. 81. Procuração da Irmandade. Não
classificado; Fórum de Barra, Livro de Notas nº 22, do Segundo Tabelião fl. 120. Escritura de débito,
obrigação e fiança.
32
O fator econômico parece que foi o motivo da presença de pessoas pertencentes a
elite barrense na Irmandade Nossa Senhora do Rosário. Em 24/04/1840, a Irmandade
concedeu empréstimo ao Coronel Ambrósio Machado Wanderley. O mesmo coronel que
revezaria no cargo de “Irmão de Mesa” com alguns escravizados. O empréstimo no valor
de um conto e duzentos mil réis e foi registrado no livro de notas nos seguintes termos:
Empréstimo de débito obrigação, fiança e hipoteca que faz o Tenente
Coronel Ambrósio Machado Wanderley a Irmandade Nossa Senhora
Do Rosário desta Vila pela quantia de um conto e duzentos mil réis
provenientes de gados comprados da mesma Irmandade oferecendo por
fiadores o Sargento Mor da Vila Antônio Martins Santiago e
Martiniano Francisco de Azevedo.60
Talvez Raimunda não esperasse o tratamento que recebera do depositário Joaquim
Roriz Porto, que também era participante da Irmandade Nossa Senhora do Rosário,
irmandade barrense na qual escravos participavam da mesa administrativa em cargos
como rainha perpétua, irmão de mesa e mordomo. Mesmo tendo uma pendência judicial
por resolver, Raimunda não hesitou em tomar uma atitude que poderia prejudicar a lide.
Perdido por um, perdido por mil. Não se deixou abater, fugiu do depositário.61
O Juiz Municipal em Exercício, Tenente Vicente Ribeiro do Vale, diante deste
fato, determinou que Raimunda fosse enviada a um depósito público em 09/06/1874. No
dia seguinte, ao saber que Raimunda fora recolhida à cadeia da cidade, o seu curador,
Antonio Irineu da França, apresentou o Major Filinto Elísio da Costa para ser depositário,
o que foi acatado pelo Juiz do feito. De ponto, o Major Filinto apresentou-se ao tabelião
para assinar o termo de depósito, assumindo a responsabilidade de “dar conta” de
Raimunda em juízo “em todo tempo que lhe for exigida, ou ultimar-se a questão de
liberdade proposta pela mesma em juízo, salvo perca a devida. ” Tudo indica que o major
permaneceu com a condição de depositário até o final da lide, sem maiores
intercorrências.62
Raimunda construiu, voluntária ou involuntariamente, uma rede de
relacionamento e utilizou dela em sua defesa, quando necessitou. O fato de viver com
liberdade de locomoção facilitou conhecer pessoas, estreitar relacionamentos. Quando
60 Fórum de Barra - Livro de Notas nº 22 do Segundo Tabelião, p. 120, sem classificação 61 Livro de Eleições da Irmandade de N. Senhora do Rosário, Arquivo Morto da Diocese de Barra, fl. 31 a
32. Não classificado. 62 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fl. 36 a 38v.
33
precisou de testemunha contou com seu compadre Francisco Moraes Sarmento, 31 anos,
casado, natural de Sambaíba, lavrador. Era compadre de Raimunda “por ter carregado à
pia batismal uma de suas filhas”63. Não era estranho que uma escrava batizasse filhos de
livres. Não havia proibição e era uma prática rara, mas possível em Barra. O compadre
de Raimunda informou em juízo mais alguns aspectos da vida de Raimunda. Que desde
o seu casamento ela o “acompanhou para Sambaíba, por dois meses, e dali para o Brejo
da Japira, onde esteve por quinze dias, e dali foi para a casa da Senhora Caetana”. Não
era estranho que uma escrava batizasse filhos de livres.
Não havia proibição e era uma prática rara, mas possível em Barra. Poucos
escravos foram escolhidos como padrinhos e madrinhas, e um número menor ainda de
escravos como padrinhos ou madrinhas de pessoas livres. Dos 2.830 registros de batismos
de 1823 a 1840, lidos e catalogados até então, localizei 75 (setenta e cinco) registros nos
quais escravos foram padrinhos/madrinhas, destes 11 (onze) os afilhados eram pessoas
livres. Ou seja, o número de escravos que batizaram pessoas livres corresponde a
aproximadamente 0,39% do total de batismos e a 15% do total de escravos que foram
madrinhas ou padrinhos. Esses números indicam limites e possibilidades de escravizados
naquela comunidade.
Várias testemunhas foram ouvidas na ação de liberdade, contra e a favor de
Raimunda. Algumas delas deram mais detalhes sobre a vida da escravizada. Antônio
Joaquim da Rocha, sob provocação do curador, narrou que no dia seguinte ao falecimento
de D. Rosália, pela manhã, “foi público e notório que o Capitão José Rufino de Souza
Azevedo a amarrou e a trancou em um quarto de sua mãe Ana Rita de Azevedo, com o
fim e receio da escrava procurar proteção pela sua liberdade, em função do abandono a
que se achava, saindo do quarto apenas para ser depositada”. Esse episódio exposto por
Antônio Joaquim da Rocha nos diz da violência, real ou potencial, a que eram submetidos
os escravos em situações que resolvessem afrontar o poder senhorial. Já vimos que este
mesmo Capitão José Rufino, sobrinho de Rosália, tentou castigar Raimunda quando esta
fez corpo mole no aluguel ao Tenente Joaquim José da Silva Paz. Na situação narrada por
Antônio Joaquim, a própria mãe de Raimunda foi usada como isca para atraí-la ao
sobrinho da falecida senhora Rosália. Joana, a mãe de Raimunda, a esta altura estava
63 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fl. 22.
34
escravizada sob jugo do dito Capitão José Rufino, foi mandada por este para “chamar a
Raimunda para botar uma água”, ao chegar à casa, Raimunda foi submetida à violência
narrada na tentativa de impedi-la de questionar na justiça sua condição de escrava.
Contudo, a ação do Capitão restou inócua, pois a ação foi intentada e Raimunda saiu da
situação de sequestro para ser depositada.64
Após a decisão judicial que negou a pretensão da alforria por abandono, Raimunda
e seu curador adotaram outra estratégia. Conseguiram por meio de doações o valor pelo
qual ela foi avaliada no inventário, 400 mil réis e reivindicou sua liberdade pelo
pagamento do valor avaliado, já que a legislação permitida este artifício. Contudo, a
sobrinha herdeira não contente com a proposta, alegou que Raimunda teria que apresentar
o valor à vista, ou seja, quando da abertura do inventário conforme previa o parágrafo
segundo do artigo noventa do decreto nº 5.135, de 13/11/1872, que regulamentava a Lei
do Ventre Livre. Além disso, argumentou que os 400 mil réis foram conseguidos por
Raimunda mediante liberalidade de terceiros, o que era vedado por lei. Liberalidade de
terceiros? Vejamos do que se trata e o que estava em jogo com este argumento.
Em 1876, após idas e vindas, num processo que tramitou de Barra até a Corte no
Rio de Janeiro, passando pela Tribunal da Relação na capital da Província da Bahia,
Raimunda finalmente foi alforriada por arbitramento em sentença passado no Juízo de
Órfãos, da Cidade de Barra em 22 de novembro. Sabemos disso por uma procuração
registrada em livro de notas de tabelião expedida pela herdeira e ré no processo Maria
Plácida de Souza a Francisco Martins Alves e à empresa Morais e Companhia com o fim
de representá-la na Cidade da Bahia, para “receber na Tesouraria Geral da Fazenda a
quantia de 500 mil réis pertencente a outorgante como legítima proprietária que foi da
escrava Raimunda, alforriada por arbitramento por sentença passada no Juízo de Órfãos,
desta cidade em 22/11/1876”.65 Dito isto, voltemos o olhar para mais uma importante
pessoa que atuou na ação de Raimunda no intuído de descobrir suas motivações: o
curador.
64 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fls. 52, 65 65 Fórum de Barra, Livro de Nota nº 27, do Primeiro Tabelião, fl. 24v
35
2.1.1 O curador
Antonio Irineu de França foi o curador de Raimunda na ação de liberdade. Era
uma das pessoas que faziam parte da rede de relações da escravizada. Estava longe de ser
um abolicionista ou defensor da liberdade. O que o motivou a aceitar o encargo de curador
foi sua experiência no trato jurídico em matéria de escravidão e, principalmente, suas
relações anteriores com Raimunda. Certamente, seu senso de oportunismo também ali se
fez presente. Num momento em que o questionamento sobre a escravidão estava na ordem
do dia, a chance de ficar em evidência em um caso como este era grande. Sabia que se a
decisão final fosse favorável a Raimunda, sua atuação enquanto profissional do direito
ficaria valorizada localmente e, se a decisão fosse desfavorável a Raimunda, com o
recurso obrigatório ao Tribunal da Relação, seu nome se projetaria na Capital da
Província, o que poderia facilitar seus pleitos.
Antonio Irineu da França já tivera experiência no trato dos tribunais com a
escravidão. Ele já atuara em pelo menos um caso envolvendo a liberdade de escravizados.
Em 1863, nove anos antes de atuar no caso de Raimunda, ele foi o procurador que recorreu
ao Tribunal da Relação contra a sentença do Juiz Municipal de Xique-Xique, que
condenava a escravidão os familiares de Maria José. Maria José escravizada que fugiu
com sua a família (oito filhos: seis mulheres e dois homens) do domínio senhorial em
Pernambuco, passando todo pelo sertão da Bahia, incluindo Barra, vindo a fazerem
morada em Xique-Xique. Passados cerca de treze anos da fuga, um herdeiro consegue
localizar os fugitivos e reivindica a “propriedade” fugida. Isso gerou uma luta nos
tribunais pela manutenção da liberdade que duraria mais de trinta anos. Esta situação de
família escrava unida em fuga é algo que desafia a fuga mais típica, quase sempre uma
decisão mais individual que coletiva, por facilitar o deslocamento e o anonimato. 66
Esta ausência de qualquer tipo de apreço pela liberdade ou de qualquer “ideologia
libertária” também é percebida nos argumentos utilizados por Irineu na defesa de
Raimunda. Nenhum deles questiona a escravidão como um todo, restringindo-se a
evidenciar a situação de Raimunda em particular.
66 Elisangela Oliveira Ferreira, Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do
espaço no sertão do São Francisco, no século XIX, (Tese de Doutorado, UFBA, 2008), p. 369 e 370.
36
Irineu tinha boas relações com os poderosos locais e recebia muito bem pelos seus
serviços, incluindo pagamento com escravos. Em 15/05/1879, a Baronesa de Santa Luzia
doou para ele três escravos: André de 37 anos, africano, “quebrado”, defeituoso, pé
quebrado, matriculado em 15/02/1972 em Santa Luzia do Sabará/Minas Gerais; Antonio,
37 anos, “idiota”; e Maria 50 anos, crioula, sem defeito. Maria Alexandrina de Almeida
Viana, a Baronesa de Santa Luzia, afilhada do Imperador D. Pedro I, mudou da cidade de
Santa Luzia/Minas Gerais para Barra do Rio Grande, para ficar em companhia do Irmão,
Ten Cel. José Joaquim D’Almeida,67 após ser acometida por uma doença que a deixou
incapacitada. O registro da doação é feita na Casa do Antonio Irineu e consta a informação
que é o local “onde mora a Baronesa de Santa Luzia”. A justificativa para a doação é “em
compensação dos bons serviços”. A Baronesa, a esta altura, 1879, estava bem enferma e
já não conseguia se expressar senão por uma curiosa intermediária. A escrava Sofia
prestava “relevantes serviços de intérprete” à rica Baronesa. O motivo de morar na casa
de Antonio Irineu França era sem dúvida a doença incapacitante, já que, financeiramente,
a Baronesa era bem resolvida: sustentava-se, dentre outros meios, pelo rendimento dos
vários escravos e com juros de Títulos da Dívida Pública que mantinha depositados na
Tesouraria na Capital da Província. Os relevantes serviços prestados por Irineu renderam-
lhe dois escravos relativamente incapacitados e uma escrava com idade avançada. 68
O escrivão registrou a cena inusitada da confecção do testamento da baronesa de
Santa Luzia, em 07/10/1878:
“em casa de moradia da Baronesa de Santa Luzia na Rua Direita do
Rosário, onde eu tabelião a chamado da dita Baronesa vim sendo ele
Baronesa de Santa Luzia presente e de mim conhecida de que dou fé, e
estando ela em perfeito juízo segundo meu entender, sofrendo apenas
de sua saúde o mal (ilegível) de uma paralisia que lhe tomou o lado
direito, digo lado direito dificultando-lhe a fala e impedindo-a de
escrever e perante as testemunhas adiante nominadas, por ela Baronesa
de Santa Luzia diante de todos me foi dito por intermédio de escravinha
de nome Sofia, única que bem a compreendia, que ia repetindo suas
palavras e ela confirmando em afirmativo, que de sua própria livre
vontade fazia este testamento na forma seguinte: (grifo meu)
Por ironia do destino, a baronesa ficou dependente da escrava. No testamento,
Sofia foi lembrada. Após se declarar católica apostólica romana, dizer sua filiação,
67 Um dos testamentos transcritos no Livro de Notas nº 30, fl. 83v, do Primeiro Tabelião narra a saga da
viagem que fez de Santa Luzia, Minas Gerais, até a companhia do seu irmão em Barra-Bahia. 68 Fórum de Barra, Livro Notas nº 26, do Primeiro Tabelião, p. 65.
37
matrimônios e filhos, libertar alguns escravos em testamento, deixar outros escravos para
sobrinhos, a Baronesa nomeou Antonio Irineu da França, seu segundo testamenteiro,
sendo o segundo Doutor Frederico Augusto de Almeida. Para cada um deixou a quantia
de 500 mil réis. Fez doação ao Hospital de Caridade a quantia de 200 mil réis. Incumbiu
os testamenteiros de cuidar do seu funeral e celebrar missas. Os bens restantes seriam
herdados pelas sobrinha e afilhada Ana Alexandrina de Almeida, mulher do seu sobrinho
Doutor Frederico A. de Almeida com exclusão da terça que liga a sua Irmã e afilhada
Teodosia Maria de Almeida Wanderley com a condição de libertar sua “escravinha de
nome Sofia, a qual tem lhe prestado os melhores serviços como sua interprete”.
O testamento, registrado no ano de 1865 em livro de Notas de Tabelião de Antonio
Irineu da França, revelou detalhes de sua vida, especialmente o reconhecimento de uma
filha, Maria Francisca de Oliveira França, tida com Maria Conrado d’Oliveira.69
A exposição inicial que faz no processo revela a modéstia de Antônio Irineu ante
os atos e estratégias inteligentes e possíveis desenvolvidas por este ao longo do processo.
Ele iniciou o documento expondo o que se segue:
Sinto-me bastante fraco e baldo70 dos conhecimentos que tornam-se-me
necessários para bem poder desempenhar a missão da causa para a qual
foi nomeado curador, sendo pois presentemente a causa da liberdade
muito garantida pelas disposições da Lei de 28 de setembro e seu
Regulamento, acontece que o seu processo torna-se dificultoso para um
leigo como eu, que nem ao menos sou dotado de uma inteligência
natural, e portanto não posso ter inteira consciência, se tenho andado
acertando nos passos que tenho dado em favor de minha curatelada, e
quando seja encontra-o alguma falta sobre o que tenho promovido, será
esta unicamente filha da minha ignorância, e contra o mais sincero
desejo, que meu coração nutre em favor da liberdade de minha
curatela.71
Ao contrário do que a modéstia de suas palavras mostra, Irineu estabeleceu
estratégias inteligentes e bem-sucedidas nas diversas situações difíceis em que Raimunda
foi envolvida. Além das testemunhas ouvidas em juízo, anexou à defesa de Raimunda
dezoito cartas de moradores locais, todas avalizando a situação de abandono da
escravizada. Entre elas, a do proprietário da loja em que D. Rosália costumava fazer suas
compras, bem como a do proprietário da fazenda na qual Raimunda trabalhava. Quando
69 Fórum de Barra, Livro de Notas do Primeiro Tabelião nº 22 fl. 172. Não classificado 70 Desprovido, isento, privado. 71 APEB. Seção Colonial. Lote 47/1659/8. Ação de liberdade da escrava Raimunda. fl. 45
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percebeu que o Juiz de Barra estava comprometido com os poderes locais, entrou com
uma ação em Xique-Xique. Esta era uma vila próxima a Barra, mas com uma tradição
antiga de rivalidade entre seus moradores, o que pode ter levado Irineu a procurar a Justiça
daquela cidade. A justiça de Xique-Xique já era bem conhecida de Irineu pois, como
vimos anteriormente, ele tivera oportunidade de atuar
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