UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA
LIDIA CUNHA COSTA MONTEIRO
ADEUS MARAVILHA FAVELA: OLHARES E PERCEPÇÕES SOBRE A
MARAVILHA URBANIZADA
FORTALEZA – CEARÁ
2017
AGRADECIMENTOS
Aos moradores da Maravilha, sobretudo aos meus interlocutores, por terem
possibilitado a realização desta pesquisa.
Ao meu professor, orientador e amigo Geovani Jacó por toda sua dedicação e
ensinamentos.
Aos membros desta banca pela gentileza da participação e oportunização de momentos
de aprendizagem.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES que me
possibilitou, por meio da bolsa de estudos, dedicar-me ao desenvolvimento desta pesquisa.
Aos professores, coordenadores e funcionários do Mestrado Acadêmico em Sociologia
que me apoiaram e contribuíram para minha formação acadêmica e pessoal.
Aos meus pais, irmãos, familiares, amigos e ao meu namorado pela paciência, carinho
e atenção doada na minha caminhada da pesquisa.
Um agradecimento especial a todos que de alguma forma, direta ou indiretamente,
contribuíram com o processo de construção e feitura deste trabalho.
RESUMO
Este estudo tem por objetivo investigar o Projeto de urbanização da favela Maravilha, com a construção do Conjunto Habitacional da Maravilha, localidade situada no Bairro de Fátima, na zona Centro Sul da cidade de Fortaleza, Ceará, que se efetivou com a remoção dos seus moradores das áreas locais de risco, sem, no entanto, haver deslocamento de seus moradores para outras áreas da Cidade. Procura compreender como os moradores percebem as mudanças da “Maravilha favelizada” para a “Maravilha urbanizada”, demonstrando que a urbanização influenciou os olhares e compreensões sobre os modos de morar e construir, com impactos nas interações cotidianas dos seus moradores. Aborda a ideia de direito à cidade a partir do levantamento histórico das políticas de habitação em Fortaleza e dos discursos travados pelos moradores sobre “urbanização”, bem como dos da administração pública, representada pela HABITAFOR, responsável pela execução dos projetos. Analisa a lógica institucional desses projetos e como as experiências vividas por moradores e agentes externos, especificamente na Maravilha, se constituem e como dialoga com os discursos e percepções dos moradores. Busca compreender em que medida o projeto institucional de urbanização é assimilado, incorporado e ou rebatido pelos moradores da Maravilha urbanizada em seu cotidiano ordinário. A pesquisa foi realizada com fundamento na abordagem qualitativa de pesquisa, procedimentos de inspiração etnográfica, com a contextualização da história da Maravilha favela a partir do resgate da memória dos seus moradores, do que a mídia já retratou, bem como de documentos institucionais. Também foi explorada a feitura de contrapontos e discursos comparativos, entre a Maravilha favela e a Maravilha Urbanizada, considerando o que os moradores relataram sobre o tempo da vida na “favela” com as discursividades pós urbanização. Todo este processo foi mediado por lutas, conflitos, pactuações sob vasto campo de construção discursiva como elemento inerente ao jogo.
Palavras – chaves: Cidade e urbanização; favela; políticas habitacionais.
ABSTRACT
This study aims to investigate the urbanization project of the favela Maravilha, with the construction of the Housing Complex of Maravilha, located in the neighborhood of Fatima, in the South Center area of the city of Fortaleza, Ceará, which took effect with the removal of its residents of the local areas of risk, without, however, having their residents move to other areas of the City. It seeks to understand how the residents perceive the changes from the "favelized Maravilha" to the "urbanized Maravilha", demonstrating that urbanization has influenced the views and understandings about the ways of living and building, impacting the daily interactions of its residents. It addresses the idea of the right to the city, based on a historical survey of housing policies in Fortaleza and the speeches held by the residents about "urbanization", as well as those of the public administration, represented by HABITAFOR, responsible for the execution of the housing projects. It analyzes the institutional logic of these projects and how the experiences lived by residents and external agents, specifically in Maravilha, constitute and how dialogues with the residents' discourses and perceptions. It seeks to understand the extent to which the institutional design of urbanization is assimilated, incorporated and / or rebutted by the residents of Maravilha urbanized in their ordinary daily life. The research was carried out based on the qualitative approach of research, procedures of ethnographic inspiration, with the contextualization of the history of the Maravilha favela from the recover of the memory of its residents, what the media has already portrayed, as well as institutional documents. It was also explored the making of counterpoints and comparative discourses, between the Maravilha favela and the urbanized Maravilha, considering what the residents reported on the time of life in the favela with the discourses after urbanization. This whole process was mediated by struggles, conflicts, and agreements under a vast field of discursive construction as an inherent element of the game.
Keywords: city and urbanization; favela; housing policies.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Mapa de Fortaleza com identificação das favelas.....................................................9
Figura 2 – Mapa com áreas de risco de Fortaleza.....................................................................10
Figura 3 – Mapa da localização da Maravilha em 2006...........................................................12
Figura 4 – Imagem da Maravilha antes da Urbanização...........................................................13
Figura 5 – Imagem da “rua da frente”, “setor II” ou “área nobre” da Maravilha.....................14
Figura 6 – Senhora cozinhando na rua.....................................................................................14
Figura 7 – Área denominada por Surrão...................................................................................15
Figura 8 – Vista da comunidade Maravilha pós urbanização...................................................18
Figura 9 – Grupo realizado com moradores da Maravilha.......................................................38
Figura 10 – Grupo realizado com moradores da Maravilha.....................................................38
Figura 11 – Mapa da localização da Maravilha após a urbanização.......................................100
Figura 12 – Grades nas janelas e portas dos moradores..........................................................112
Figura 13 – Porta de residência habitacional..........................................................................116
Figura 14 – Porta de residência habitacional..........................................................................116
Figura 15 – Porta de residência habitacional..........................................................................117
Figura 16 – Portas de residências habitacionais......................................................................118
Figura 17 – Imagem de reforma realizada por morador em unidade habitacional.................121
Figura 18 – Imagem de reforma realizada por morador em unidade habitacional.................121
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................8
2. CAPÍTULO 1: INCURSÕES AO CAMPO..............................................................24
2.1 E agora, sem crachá?...............................................................................................24
2.2 Escolhas metodológicas: traçando caminhos..........................................................35
2.3 O lugar dos interlocutores: um pouco de cada um (principais interlocutores desta
caminhada)..............................................................................................................43
3. CAPÍTULO 2: A CIDADE EM CONSTRUÇÃO: COMPREENDENDO
POLÍTICAS, COSTURANDO CONCEITOS.........................................................53
3.1 O oásis, a cidade......................................................................................................53
3.2 Compreendendo “o habitar” em Fortaleza: favelização da cidade.........................58
3.3 Políticas públicas de habitação...............................................................................68
3.4 Os conjuntos habitacionais em Fortaleza: a Habitafor na Maravilha.....................79
4. CAPÍTULO 3: A MARAVILHA DOS MORADORES...........................................90
4.1 A Maravilha urbanizada: narrativas sobre a experiência de urbanização de uma
comunidade favelizada............................................................................................90
4.2 O cotidiano na Maravilha de hoje.........................................................................102
4.2.1 O público e o privado................................................................................102
4.2.2 Violência, estigmas e lutas classificatórias internas..................................108
4.2.3 Usos e contra-usos.....................................................................................115
4.3 Minha casa, minha vida?.......................................................................................123
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................127
REFERÊNCIAS........................................................................................................131
8
1) INTRODUÇÃO
O meu primeiro “embarque” à “favela” Maravilha, na cidade de Fortaleza, foi a bordo
do Projeto Raiz de Cidadania1 e teve o antigo Centro de Cidadania Presidente Médici – ao lado
da sede da Polícia Federal –, na Avenida Borges de Melo, como ponto de partida. Até então,
aquela favela ou comunidade que se localizava “ali atrás do Piamarta2” não fazia parte do meu
imaginário, só tinha uma idéia simplista de que aquele lugar era reduto de pessoas pobres,
concentração de sujeitos marginalizados. Percepção construída a partir de uma leitura
socialmente estruturada pela grande mídia, que insiste em homonegeizar e apresentar a periferia
pobre, a favela, como lugar do medo e da escassez. Esse poder classificatório exercido pela
mídia passa por uma corroboração social que legitima a construção de imaginários que figuram
nosso cotidiano. A citar a ideia de homogeneização dos territórios, quando se entende que
determinado espaço é o destino certo da pobreza diante de outros destinos certos de classes
mais abastadas. Quando se homogeneiza, se perde as capilaridades de um lugar, suas várias
formas de ser vivido, de ser reinventado. Perdem-se as distintas histórias de vida de quem ali
reside. Perde-se a cidade vista como um caleidoscópio, que a cada momento apresenta
combinações variadas e interessantes, que se sucedem, que mudam.
A Maravilha encontra-se imersa em um contexto de uma grande metrópole do País. De
acordo com o censo de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Fortaleza
conta com uma população de 2.609.716 habitantes, sendo a quinta capital do Brasil em número
populacional. Soma-se a essa população a baixa taxa de pessoas com ocupação – apenas 35,4%
- e o alto índice de concentração de renda. A concentração e a exclusão de direitos são, inclusive,
marcas históricas da constituição de Fortaleza. A Cidade “forte” se ergue a partir do
esquadrinhamento de áreas nobres e isolamento ou expulsão dos “inaceitáveis” para as margens
e lugares da Cidade, desprezados pelas elites. Isolamento este que não é representado apenas
pelo encarceramento ou aprisionamento em si (a exemplo dos flagelados, dos leprosos, dos
loucos), mas igualmente pelo descaso, pelo não investimento em políticas públicas interessadas
1Projeto ligado à Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI) - esta vinculada à Prefeitura Municipal de Fortaleza - no qual atuei como estagiária de Serviço Social de abril de 2006 a novembro de 2007. Tal Projeto tinha como proposta a inserção comunitária em duas comunidades que apresentavam baixos índices de desenvolvimento humano numa região compreendida entre o Parreão e o Bairro de Fátima. A comunidade conhecida como Aldaci Barbosa, ou apenas Boba, e a comunidade Maravilha. Minha interação com a Maravilha se fez mais presente que na outra comunidade por mantermos um grupo de adolescentes no local. Ainda, pelas visitas domiciliares serem muito mais intensas nesta por ser considerada a mais pauperizada e necessitada, de acordo com a missão institucional do Projeto, de maior investimento em projetos de assistência social. 2Centro Educacional da Juventude Padre João Piamarta, fundado em 1972 com a filosofia de educar profissionalizando.
9
nas devidas questões sociais que tanto se entremostram neste processo urbano. Um descaso que,
da mesma forma, faz-se presente na preocupação exarcebada com a manutenção da ordem e da
estética urbana, “deixando-se como secundário o problema insolúvel da pobreza”, conforme
afirma Jucá (2003, p.50). Neste movimento de isolamento, ou de distinção social, os espaços
assumem suas valorizações de acordo com a presença de seu “público”. Silva (1992) demonstra,
por exemplo, a assimetria dos investimentos estruturais alocadose, bairros de áreas nobres da
Cidade, onde reside a burguesia da Cidade, em detrimento aos bairros onde residem as classes
populares. Outros bairros de elite são apontados pelo autor no que se refere, particularmente,
à década de 1990, como o Meireles, o Papicu, a Praia de Iracema e o Bairro de Fátima, onde se
verificam grandes investimentos públicos e privados na qualificação dos espaços urbanos.
Diferentemente do panorama majoritário das áreas de periferia de Fortaleza, nas quais
se localizam uma grande quantidade de favelas – ou oficialmente denominadas de aglomerados
subnormais3- , a favela Maravilha encontra-se em uma área considerada “nobre”. Em pleno
Bairro de Fátima, a favela faz parte de uma exceção histórica entre a delimitação do habitável
e não habitável aos pobres da Cidade. O Bairro de Fátima está inserido em uma região central
e mercadologicamente valorizada em Fortaleza. Abaixo, nas figuras 1 e 2, mapas que
representam a realidade da pulverização de favelas na Capital em um cenário de margeamento
dessa e prevalência em áreas consideradas de risco4.
Figura 1
Figura 1 - Mapa de Fortaleza de 2006 com identificação das favelas em vermelho. Em
3 De acordo com a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é um conjunto constituído por unidades habitacionais – barracos e/ou casas - ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terrenos de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Em sua maioria, escassas de serviços públicos essenciais. 4
10
destaque, o nome de algumas favelas que passaram por intervenções do poder público à época. Fonte: Borges (2012).
Figura 2
Figura 2 – Mapa que destaca as áreas de risco de Fortaleza. O mapa contribui como parâmetro de análise para observamos a concentração de favelas em tais áreas, essas que estão destacadas na figura anterior. Fonte:http://www.uece.br/basededados/images/phocagallery/habitacao/thumbs/phoca_thumb_l_Areas%20de%20risco%20em%20Fortaleza%20-%202008.png
Anterior à minha entrada na discussão do campo e proposições investigativas, gostaria
de situar a minha referência ao uso dos termos ora favela, ora comunidade. O termo favela é
usualmente incorporado pela discursividade da sociedade em geral, ao referir-se às áreas de
aglomerados subnormais; por vezes, tamb é utilizado pelos próprios moradores quando querem
se referir à forma como são tratados pelos “de fora, ou quando assumem o discurso da escassez
e da “necessidade de uma vida melhor”, a exemplo da fala de uma moradora antiga do lugar,
que relata: “aqui é favela Maravilha, é assim que todo mundo conhece, se dizem isso é porque
é”. Outra moradora, também mais antiga no lugar, residente de um território considerado “mais
favela”, reforça que “somos da favela porque vivemos num lugar muito sujo”. Tais falas,
lançadas num período anterior à urbanização do lugar, se somam a outras que também procuram
a qualificação do território, quando preciso for, com o uso do termo comunidade. Termo que se
faz presente com a intenção muito maior de destituir o lugar de estigmas e suas agruras
provocadas pela nominação favela do que para ressaltar algum laço de solidariedade ou idéia
11
de coesão. Comunidade e favela se intercruzam como num balé, numa dança que imprime o
passo adequado no momento certo, assim, o termo se faz adequado ao momento que lhe
convém. De acordo com Wacquant (2010, p. 15), “o termo ‘favela’, embora pretenda descrever
uma situação socialmente homogênea, esconde fortes diferenças quanto ao papel dos territórios
pobres na economia e na sociedade das grandes cidades brasileiras”.
A minha escolha de utilizar os dois termos, favela e comunidade, advém da lógica desse
discurso fluído dos moradores. Entendo que para os moradores tais denominações não se fazem
sob a preocupação de se atribuir natureza física e organizacional, ao contrário do poder público.
Este último preocupa-se em estabelecer definições de acordo com normas técnicas e em razão
de uma “ordem pública”.
Freire (2008), ao estudar o programa favela-bairro no Rio de Janeiro dialoga com as
delimitações do poder público por meio de leis e normas, a exemplo o seu Plano Diretor, que
define, com clareza, o uso e ocupação do território e a classificação das áreas na cidade. Nesta
perspectiva, o termo favela term sido utilizado para denominar espaços que se caracterizam
pela “precariedade”, “irregularidade” e “desconformidade”, o que no Plano Diretor de
Fortaleza, por exemplo, aparece sob o uso de “áreas irregulares” e “assentamento de grupos
sociais vulneráveis”. Estas definições são pontuadas por Maricato (2003), sob o olhar urbanista,
como aglomerados subnormais.Ainda de acordo com o Plano Diretor do Rio de Janeiro, de
1992, também destacado em Freire (2008, p.100), “os bairros correspondem à porção do
território que reúne pessoas que utilizam os mesmos equipamentos comunitários, dentro de
limites reconhecidos pela mesma denominação”. Se por um lado o olhar da administração
pública está voltado para classificações a partir de características ocupacionais do solo e suas
legalidades e ilegalidades, por outro, para os que ali habitam, essa classificação se transmuta
em sentidos e localização sociais de seus sujeitos, Em síntese, estar na favela incorpora uma
moralidade negativa que pode ser mais bem diluída ao se utilizar comunidade.
Este empenho inicial de demarcar os usos dos termos favela, comunidade, bairro é
importante para que o leitor compreenda o que cerca, no texto, a escrita destas categorias. A
favela Maravilha foi a que primeiro me instigou a querer conhecê-la. A favela demarcada pelos
jornais e até por profissionais do Projeto no qual acabara de chegar para estagiar. A favela,
antes de tudo, me apresentou alguns moradores, quase como num espiríto de preparação. A
equipe do projeto me dizia “olha, essa é moradora, líder comunitária da Maravilha, aquela
favela ali no trilho, você ainda vai conhecer”. A favela foi-me apresentada. E a mesma favela
parecia-me pesar aos ouvidos quando então decidi dialogar com os moradores e conhecer a
comunidade.
12
A comunidade Maravilha parecia agradar mais, no entanto, não negava a favela. Assim,
desse jeito, fui tecendo minhas andanças até a favela/comunidade Maravilha. Nome este que
também despertou-me curiosidade. Afinal, por que Maravilha? Os moradores mais antigos
guardam essa história. Em entrevistas realizadas e conversas informais, os mais idosos sempre
fizeram questão de elucidar essa dúvida, “ah, minha filha, aqui era uma Maravilha mesmo”.
Interessante perceber um reportar ao passado “maravilhoso”, detalhe que me acompanha e será
melhor trabalhado neste estudo por meio do aprofundamento de uma história de um passado,
muitas vezes, idealizado. A busca pela origem do nome trouxe-me relatos que narravam um
passado de maravilhas, onde crianças brincavam alegremente nas ruas, pessoas se encontravam
e partilhavam mais a vida, mesmo diante de inúmeras adversidades, como a falta de energia e
água encanada. Este aspecto me pareceu instigante e muito sincero do ponto de vista do
discurso, e que será mais bem explorado no segundo capítulo deste trabalho. Este universo até
aqui descrito marca o início da minha trajetória na Maravilha.
Lembro bem que a primeira caminhada até chegar à favela pareceu-me longa, talvez a
dureza do sol escaldante de uma Fortaleza de quase meio dia tenha contribuído para os passos
se tornarem intermináveis.. A entrada se deu pelos becos de um lado da favela que, segundo os
outros “navegantes” mais experientes, desembocaria numa “ala mais aberta” que abrigava uma
linha férrea. Percebi, num primeiro contato, que as condições de moradia não eram tão
homogêneas como pensava. E que naquela comunidade existiam distintas histórias de ocupação
e territorialização do espaço. As figuras abaixo trazem uma identificação mais detalhada da
localização da Maravilha:
Figura 3
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Figura 4
Figuras 3 e 4 – Identificam a localização da Maravilha em 2006 quando já havia se iniciado o Projeto de Urbanização com a construção do Complexo Esportivo e remoção de 144 famílias que viviam nas proximidades do riacho Tauape (Canal). Fonte: Borges (2012).
As diferenças entre a estrutura das moradias me chamou atenção, havia casas amplas,
com portas e portões mais imponentes, pinturas novas e garagens com seus devidos veículos
(conforme identifica a figura 5). Outras, menores, cujo esquadrinhamento, como sucita Rolnik
(1985), não se permitia sequer segregar “os usos e contatos”. Ou melhor, o único cômodo era
ao mesmo tempo sala, quarto e cozinha, permitindo que a rua fosse ainda extensão do lar (como
pode se verificar na figura 6), cenário que vai de encontro ao traçado por Rolnik em “lar, doce
lar”: “A história do confinamento da família na intimidade do lar liga-se à história da morte do
espaço da rua como território de trocas cotidianas, espaço de socialização. As ruas se redefinem
em vias de passagem de pedestres e veículos, a casa se volta para dentro de si” (1985, p.02).
Encontrei ruas que se faziam cozinhas ao me deparar com fogareiros e mulheres no preparo do
almoço, ruas que se transmutavam em salas – cansei de ser recebida por moradores “ao pé do
portão” -, ruas como área de serviço, com incontáveis varais formando um mar de roupas a
secar.
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Figura 5
Figura 5 - Rua da Frente, setor II, parte considerada “nobre” da Maravilha.Fonte: Pesquisa direta da autora
Figura 6 Figura 6 – Senhora cozinhando: a casa se mistura à rua. Fonte: HABITAFOR 2005.
Havia, também, moradias que mais se assemelhavam a um abrigo provisório. Eram
casas de taipa ou feitas de papelão, plástico e outros tipos de materiais reciclados, os ditos
barracos (com se observa na figura 7). Esses moradores que se localizavam em uma área
próxima ao canal do Tauape, mais vulneráveis às enchentes e a área de risco, constituíam um
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território denominado, internamente, por Surrão5. A distinção entre uma área considerada nobre
– onde, sobretudo, as casas apresentavam-se como construções mais novas, detentoras de
esgotamento sanitário e água encanada – e o Surrão era, no que tange à minha experiência,
emblemática dos mecanismos de operação dos sistemas classificatórios locais. Sob esta
perspectiva é que muito moradores, ainda como ilustração, afirmavam ser o Surrão “a parte
mais favela da favela Maravilha”. Do mesmo modo, outras formas de “construir” a Maravilha
discursiva e, por conseguinte, concretamente me interessavam: minha atenção era também
dirigida às “táticas” (CERTEAU, 1994) costuradas pelos sujeitos para relacionar-se com as
instituições que atuavam no lugar e apresentar-se para a cidade de Fortaleza em um plano mais
geral, ora utilizando-se do signo da favela ora reivindicando o de comunidade.
Figura 7
Figura 7 – Área denomida por Surrão, constituída por casas ou barracos construídos a partir de materiais recicláveis. Imagem que mostra a realidade deste território da Maravilha antes da urbanização. Fonte: Borges 2012.
Assim, comecei a compreender que a Maravilha se apresentava por distintos recortes,
estilos de ocupação de socialização, diferentes formas de viver e de morar, e que, para mim, um
“campo” de pesquisa se concebia. O campo de pesquisa, definido por Agier (2015), se revela
5 Localidade situada às margens do canal do Tauape, estruturada a partir de um sem-número de barracos de papelão e madeira, constantemente ameaçados durante as épocas chuvosas.
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“como a terra que se afofa, que se tritura, que se sente, que se trabalha”. Como afirma o autor,
por mais intelectual que pareça, a relação do antropólogo com seu campo tem algo de
camponês, do artesão. E foi assim que adentrei nesse campo, por meio de uma porta aberta pelo
meu fazer profissional que me permitiu afofá-lo, cuidadosamente, e percorrê-lo em busca de
entender a vida em uma comunidade favelizada de Fortaleza.
Confesso que a experiência foi trabalhosa, mas também bastante prazerosa. Durante o
processo de pesquisa, o cadastramento6 das famílias já estava em fase final e algumas delas,
moradoras do Surrão, se encontravam de mudança para o primeiro conjunto habitacional
construído, o Planalto Universo, de acordo com a Prefeitura, e, para os moradores, “Carandiru”.
Este conjunto foi o que ficou mais afastado do território inicial da Maravilha, localizando-se
nas proximidades da Avenida Borges de Melo, próximo à outra conhecida comunidade
denominada Aldaci Barbosa, ou a “Boba”, como é chamada pelos locais. Ainda como estagiária,
tive a oportunidade de visitar as primeiras famílias em seu novo lar, no Carandiru. Saí com o
pensamento de encontrá-las vibrantes, talvez até eufóricas com uma mudança daquela
dimensão, afinal eram moradores do Surrão, da área mais precarizada da favela, da zona
“surrada”, a mais sofrida com as enchentes nos períodos de chuvas. Porém, não encontrei
exatamente o que esperava, as pessoas não pareciam tão “imensamente” felizes assim. Por que
as pessoas não pareciam mais entusiasmadas? Será que esperavam mais das moradias? Será
que seus desejos não foram contemplados com a mudança? Como as pessoas se sentiam com
uma nova vizinhança? O espírito de comunidade fora preservado? Estava difícil reestabelecer
novas significações naquele ambiente? Afinal, o que significava aquela identificação com um
presídio, o Carandiru? Como será também para os que ficarão na Maravilha e os que irão para
o outro lado da BR 116? Assim, incipientemente, começou a ser gerado meu projeto de pesquisa
para o Mestrado em Sociologia do PPGS da UECE.
Os questionamentos começam a assumir contornos de uma investigação, perguntas que,
naquele momento, “abandonam” a Maravilha favela e começam a desenhar um olhar para as
mudanças e novas configurações de uma “favela urbanizada”. Afinal, o que significava para os
moradores aquela tal urbanização? Será para o poder público os mesmos significados e
interesses que para os moradores a reconfiguração daquele local? De que forma a construção
de conjuntos habitacionais podem imprimir um processo contrário e construto de
6 Esse cadastramento refere-se ao momento em que a Prefeitura por meio da Fundação do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR, realizou um trabalho de contabilizar as unidades habitacionais e seus moradores. Os imóveis foram marcados com números que indicavam a localização de cada casa, a quantidade de famílias ali presentes, se aquelas possuíam algum comércio no local para, então, definir a futura moradia daquelas pessoas e se teriam direito a uma unidade comercial no conjunto habitacional que se ergueria.
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(des)estigmatização ou fim da marginalidade? Assim, por meio também da análise de uma
politica pública, a política de habitação, interessei-me em desfiar uma pesquisa. Olhar para a
política de habitação é também uma forma de compreender como o poder público entende as
necessidades de moradia da população e como esta conversa com o poder público. Partindo do
estudo da política, a intenção é perceber como os moradores dialogam com os planos e projetos
urbanísticos da Prefeitura. De que maneira a habitação se inscreve como elemento constitutivo
da cidadania? Que cidadania é essa pleiteada pelos moradores sob a bandeira de melhores
condições de moradia?
Segundo ainda Agier (2015), foi a partir desse contato, anteriormente descrito que meu
campo passou a ser afofado, sentido e triturado para agora ser trabalhado e, mais uma vez,
afofado, sentido e triturado já que tais ações estarão sempre presentes e são próprias do campo.
Um campo que é construído cotidianamente e se revela em cada fala, em cada observação, em
cada aproximação e imersão. Um campo que não se pretende traduzir, mas sim interpretar. E
que mesmo as mais densas e amplas das interpretações não são capazes de esgotar a fonte de
compreensões e questionamentos quanto ao campo em análise. É preciso corroborar com tal
fato, esta pesquisa intenta responder algumas questões e aproximar-se de uma realidade que
muito tem a ser explorada e não se encerra por aqui.
Debruçar-se sobre as dinâmicas vividas na Maravilha a partir do seu processo particular
de urbanização é também mergulhar no movimento de compreensão da cidade, do que a teoria
toma por urbano, no universo da regulação e normatização do Estado com o advento das
políticas públicas, dentre elas, aqui, a centralidade na política de habitação. A urbanização da
Maravilha conta muito sobre a história de uma população específica, a dos moradores da
Maravilha. História que sustenta particularidades, detalhes e nuances vividas e sentidas de
forma única por estes sujeitos, mas que se soma a uma prática recorrente e que se estabelece de
forma relacional (AGIER, 2011) com a prática de urbanização das grandes cidades.
A cidade de Agier, não é, pois, uma abstração teórica, generalizadora, não surge de modelos predefinidos, é sim uma cidade relacional e situacional que parte dos lugares e dos citadinos que caso a caso produzem movimentos e dinâmicas socioculturais específicas e originais. É a cidade em processo, a cidade viva e imprevisível de todos nós que aqui está em foco, a cidade que engloba as muitas e variadas cidades… (AGIER, 2011, p. 20)
A Maravilha pós urbanização, movimento e processo que será tratado nesta pesquisa, se
faz, então, meu lugar de partida para compreender as mudanças sociais de tal processo na vida
dos moradores a partir da fala dos próprios. Para situar com maior clareza a Maravilha
“urbanizada” (figura 8), foi importante e necessário pontuar o contexto da urbanização em que
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a comunidade se encontra após as construções dos conjuntos habitacionais e remoção dos
moradores das áreas consideradas de risco. Atualmente, a configuração da Maravilha, de acordo
com dados da HABITAFOR7 e pesquisa realizada por Borges (2012), distingue-se bastante dos
antigos traçados da comunidade. Com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento –
PAC, a partir de 2007, o Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade Maravilha e seu
entorno começa a se materializar. O processo de urbanização do território que previa a
recuperação do canal do Tauape, também previa a construção de 606 unidades habitacionais.
Figura 8
Figura 8 – Vista da comunidade Maravilha pós urbanização (conjunto habitacional Maravilha) Fonte: http://www.edconconstrucoes.com.br/maravilha.htm
O projeto concretizou-se em distintas etapas. O primeiro conjunto a ser construído foi o
Conjunto Habitacional Planalto Universo, anteriormente citado, localizado nas proximidades
da Avenida Borges de Melo, para onde foram transferidas 144 famílias. Este conjunto fora
ampliado para receber mais famílias da Maravilha, pois já abrigava famílias oriundas da Lagoa
do Opaia8. Em etapas posteriores, mais dois conjuntos habitacionais foram contruídos: o
Conjunto Habitacional Nossa Senhora de Fátima, próximo ao Hospital da UNIMED, no Bairro
São João do Tauape, para onde foram cerca de 200 famílas e, por fim, o Conjunto Habitacional
7Contextualizando melhor a Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR, vale destacar como o site da Prefeitura de Fortaleza a define, “como um órgão da Prefeitura de Fortaleza, voltado para o direito à moradia para as pessoas mais carentes e para a redução do déficit habitacional”. A Fundação é assim responsável pela operacionalização das políticas habitacionais em Fortaleza, como produção de moradias, regularização fundiária, requalificação de áreas degradadas e saneamento ambiental. 8 Comunidade localizada no bairro Vila União em Fortaleza, considerada área de risco e que também vivenciou a urbanização com a remoção de moradores da localidade
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Maravilha, localizado na própria comunidade Maravilha, destinado a 264 famílias. O Nossa
Senhora de Fátima localiza-se bem próximo ao Conjunto Habitacional Maravilha, sendo estes
separados pela BR 116. A grande diferença entre os Conjuntos é que o primeiro fôra erguido
em área alvo de especulação imobiliária, lugar privilegiado da Cidade, rodeado de casas e
condomínios de classe média. Já o segundo continua no mesmo local da “antiga favela”, em
uma área mais afastada do canal e perto da base área de Fortaleza. Ainda nessa mesma área,
encontra-se um complexo esportivo para a prática de esportes como futebol, vôlei e corrida,
além de também abrigar atividades de lazer dos moradores.
Recordo-me de caminhar por entre os becos do “período favela” e as pessoas relatarem
sobre seus anseios de que a reforma não tardasse. Naquele momento, até tive certa dificuldade
em realizar algumas entrevistas porque as pessoas acreditavam, piamente, se tratar de uma
“agente” da HABITAFOR. Nessa crença, tinha, por vezes, meu gravador tranformado em canal
de reivindicações e reclamações à Prefeitura. Precisava insistir muito na idéia de minha
objetividade com a pesquisa e desvinculação total com a Prefeitura. Na verdade, não tinha
sequer conhecimento mais aprofundado a respeito dos trâmites do projeto de urbanização do
lugar. Muito do que eu sabia do Projeto era fruto de informações dos próprios moradores. O
foco da pesquisa era tratar das condições de moradia e organização da vida local na urbes
favelizada, no entanto, meus interlocutores9 sempre adentravam no universo da reforma, no
processo já iniciado de cadastramento, no histórico de decepções anteriores e boatos quanto a
entrega das casas que rondavam seus cotidianos. Essa minha reportação àquela época faz-se da
importância de se pensar duas importantes questões. A primeira, quanto à compreensão da
processualidade do projeto de urbanização. Atentar para o vivido antes da reforma de fato
acontecer, pois as experiências de luta para permanecer no território, as estratégias e astúcias
envolvidas durante o cadastramento, as angústias vivenciadas com as promessas não cumpridas
são componentes ricos para entender as atuais significações e compreensões dos moradores
acerca da moradia atual. A outra questão, também fundamental, é a de aprender com o que foi
vivido em campo, naquele momento. Nesta pesquisa, a preocupação com a objetividade
científica e a manutenção de uma curiosidade aguçada – mesmo que o campo, a princípio, não
pareça tão desconhecido assim – estão sempre presentes. Como escreve Velho (1978), o desafio
de estar em campo é um desafio de liberta-se de preconceitos. Ele continua, ao mergulhar
antropologicamente sob o desbravamento de Copacabana, a refletir sobre o campo, trazendo à
9 Comumente adotado, em pesquisas que envolvem a História Oral, o sigilo dos nomes dos interlocutores será mantido no decorrer de todo este trabalho, afim – inclusive – de permitir um maior desprendimento das falas. Portanto, utilizarei somente nomes fictícios
20
tona a diferença de se tratar de um campo do qual fazemos parte ou que está bem próximo de
nós para a situação de um antropólogo do leste europeu que chega a uma tribo africana, por
exemplo. Para mim, o distanciamento será mais facilmente atendido que no caso do autor,
morador de Copacabana, contudo, em meio a tantos outros desafios de distanciamento já
experimentados, como a tentativa – em alguns casos sem êxito – de não “atuar
profissionalmente”, ser a assistente social do lugar. Por vezes, já fui “convidada” a discutir
sobre diagnósticos e melhor condução de tratamentos de saúde. Por estar quase sempre
acompanhada da agente comunitária de saúde ao entrar no campo, esse desafio do
distanciamento aparece de forma ainda mais difícil, pois moradores me lêem como também
trabalhadora da saúde do território.
Foi por meio da “saúde” – com o apoio de agentes comunitários de saúde – que consegui
retornar à Maravilha. A comunidade agora esquadrinhada por conjuntos habitacionais é o meu
novo universo de pesquisa. Pude acompanhar, antes de ver de perto, o decurso de entrega dos
apartamentos ou unidades habitacionais, como se refere a Prefeitura, pela mídia, mais
precisamente, por meio das reportagens em jornais locais na internet. As notícias mostram a
entrega das chaves, sem contudo explorar a simbologia contida neste ato, enfatizam o “fim do
sofrimento com as áreas de risco”, recorrem à denominação de “habitações populares”,
destacam o “sonho da casa própria”, sinalizam para a preservação dos “laços sociais e
econômicos da comunidade”, apresentam a estrutura dos apartamentos com 42 m², “que podem
abrigar até 5 moradores”, tratam do montante investido na obra, que gira em torno de R$ 33
milhões, enfim, retratam de maneira um tanto simplista informações sobre o processo de
urbanização que data de 2009. Mas o que há investido de simbologias e representações em torno
destas informações? O que significou para os moradores a chave da casa própria? Existia
mesmo o “sonho” da casa própria? E esse sonho fora de fato concretizado? Os apartamentos
diminutos comportaram e satisfizeram os anseios dos moradores por uma “moradia digna”? O
que significou essa preservação dos laços sociais e econômicos? De que forma isso aconteceu?
Essas e outras foram questões pensadas e movidas ao longo do processo de investigação que
foi materializada em três capítulos que compõem a estrutura desta dissertação.
No primeiro capítulo, relato minha entrada na Maravilha, mais precisamente nesse
espaço onde se situou o começo de tudo, a origem da comunidade. Contudo, contei e contarei
com a participação, na pesquisa, de moradores também do Conjunto Nossa Senhora de Fátima
e do Planalto Universo. Nessa parte inicial, narro minhas experiências de aproximação com o
campo, bem como o processo de articulação com apoiadores e interlocutores da pesquisa. Por
se tratar de um capítulo metodológico, explicito o porquê das minhas escolhas metodológicas
21
e como o aporte etnográfico pôde contribuir com meus objetivos. A intenção foi de fazer uma
descrição densa sobre o movimento de pensar o campo a partir da condição necessária de
estranhamento. Assim, falo da maturação das perguntas de partida, dos desafios para entrar na
Maravilha tão desconhecida atualmente para mim, da aproximação e importância de se criar
vínculos com os interlecutores, do empreendimento de técnicas como as entrevistas e a oficina
realizada com os moradores, do processo de ouvir e observar e retornar para escrever tão próprio
e salutar da antropologia.
No primeiro capítulo, disserto sobre o espaço de contextualização da pesquisa e a
configuração de escolhas metodológicas que caracterizaram e deram o tom deste estudo, que
traz a importância da caminhada investigativa para o interior da análise, como etapa
“estruturada e estruturante” da pesquisa. A metodologia entendida não só como ferramenta de
feitura do trabalho, mas como concretamente definidora dos rumos de uma investigação. Ou
melhor, a metodologia mais do que o emprego de métodos e técnicas de pesquisa, compreendida
como percurso indispensável para, nas palavras de Paiva e Freitas (2015), não se chegar a um
produto absoluto, mas apresentar uma leitura a partir de escolhas que tomam as falas dos
interlocutores como formas de interpretar, explicar e dar sentido à vida social.
Assim, divido a primeira parte deste trabalho em dois itens, “E agora sem crachá?” e
“Escolhas metodológicas: traçando caminhos”. No item de partida, descrevo minhas incursões
e construção de um campo de pesquisa. Relato os desafios para a aproximação com esse campo
e reflito a Maravilha como espaço problematizado e passível de uma empreitada etnográfica. A
seguir, traço minhas escolhas metodológicas para que tal pesquisa se torne possível e, ainda,
exponho como tais escolhas se processaram no campo, a formação de vínculos para realizar
entrevistas e um grupo na comunidade, as visitas às unidades habitacionais. Nesse momento,
apoio-me em alguns autores tais quais Magnani (2009), Bourdieu (2008; 2014), Silva (2015) ,
Amorim (2004), Geertz (2008), Guber (2004), Uriarte (2012), Coutinho (2005), Zaluar (1994)
e Portelli (2000) que muito contribuíram nesse processo inicial das “relações com o campo”.
Agier (2015) rafirma que “não há saber sem relações” e que “nada de conhecimento íntimo de
um tema sem conhecimento das pessoas”. Por isso, a necessidade de processar conexões de
sentido entre reflexões teóricas e conhecimentos advindos do campo, do terreno da
investigação. Entendendo, pois, o campo em sintonia com Agier (2015, p. 34), “o campo não é
uma coisa, não é um lugar, nem uma categoria social, um grupo étnico ou uma instituição; é
talvez tudo isso… mas é antes de tudo um conjunto de relações pessoais com as quais
‘aprendemos coisas’”.
22
O segundo capítulo abordará a ideia de direito à cidade a partir do levantamento
histórico das políticas de habitação e os discursos travados pelos moradores sobre a
“urbanização”, bem como os da administração pública, representada pela HABITAFOR,
responsável por tal urbanização aqui em análise. Debruço-me sobre a lógica institucional e
como as experiências vividas especificamente na Maravilha se constituem e como essa lógica
dialoga com os discursos e observações dos moradores. Busco compreender em que medida a
a urbanização é assimilada pelos moradores e manifestada em seu cotidiano e até que ponto o
projeto institucional é incorporado pelos sujeitos que vivenciaram e vivenciam uma Maravilha
urbanizada.
Os moradores da Maravilha são interlocutores que compõem o cerne desta pesquisa,
contudo o discurso institucional representado pela figura da HABITAFOR e os rebatimentos de
tais discursos estão presentes com vividez nesse cenário. Afinal, a instituição Prefeitura
Municipal de Fortaleza também é partícipe fundamental do processo de urbanização. Assim,
produz olhares, lógicas e perspectivas que fundamentam a urbanização da Maravilha. A
compreensão sobre como a HABITAFOR entende esse processo foi importante para o estudo
mais dialógico e aprofundado acerca dessa dita urbanização e dos rebatimentos sociais desta na
vida dos sujeitos.
As instituições, sejam governamentais ou não, ao elaborarem seus discursos expressos
em falas ou documentos, contribuem para a construção de uma lógica que pode ser confrontada
e debatida com a apresentada pelos moradores. Acredito que a HABITAFOR tem muito para
contar sobre a dinâmica de mudanças da Maravilha desde o planejamento da urbanização,
quando ainda era apenas uma ideia no papel. A instituição pode contribuir com a discussão
sobre o processo de mudança na estrutura urbana da comunidade, em como se deu os trabalhos
iniciais de pensar as obras, os cadastramentos, os impasses e acordos com os moradores, a
entrega das “chaves” entre outras questões. Uma dessas, aliás, surgiu do relato de moradores
durante minha incursão ao campo. Tais moradores questionaram sobre a entrega do “papel da
casa”, do explícito desejo de se sentirem “verdadeiramente” – expressão utilizada por uma
moradora – donos de suas casas, já que não possuem uma documentação que legitime tal
domínio e posse. E, ainda, outra questão que desponta do campo, sobretudo em diálogo com
homens, é o fato da inscrição da casa na HABITAFOR estar no nome da mulher. “A gente aqui
mesmo não tem é nada”, fala de um morador, em tom de ironia, ao opinar sobre a lógica da
política quando da manutenção da mulher como proprietária da unidade habitacional entregue
23
pela Prefeitura10.
No terceiro e último capítulo, a proposta é trazer a discussão do que fora apreendido em
campo. Sobre o que refletem os moradores a respeito da Maravilha de antes e de agora?
Contextualizei a história da Maravilha favela a partir do resgate da memória dos moradores,
do que a mídia já retratou, bem como de documentos institucionais. Também explorei a feitura
de contrapontos e discursos comparativos. O que os moradores relataram sobre o tempo da vida
na “favela” e, ainda, como aquele universo de moradia favelizada era construído nas mídias e
documentado por instituições sociais se apresentou de extrema valia para uma análise
pertinente ao antes e ao depois. Como no movimento de um bordado em que a agulha
delicadamente perfaz seus trajetos na busca de seu desígnio, intento o desafio de bordar a
Maravilha de agora e a de antes. Bordado que não se faz por linhas retas, nem pelo uso de uma
única cor.
A vivência aprofundada do campo permitiu que tal bordado fosse feito e refeito e nunca
totalmente finalizado. As narrativas sobre o processo de urbanização constróem histórias que
se atinam ao passado dos moradores, consistindo em comparações, negações, afirmações,
contraposições, enfim, o passado se encontra no presente que pretendo bordar. Dessa forma,
este terceiro momento do trabalho trata da apresentação do processo de urbanização da
Maravilha a partir do que foi vivido em campo. Questões como quais as mudanças marcantes
para a vida das pessoas, como experienciaram e quais foram as mediações implicadas no
processo, como conseguiram permanecer no território, quais os agenciamentos políticos para
isso acontecer, os usos e contra usos do espaço urbanizado, os elementos locais de distinção no
“refazer” dos conjuntos habitacionais ajudaram a configurar como a reurbanização do território
pesquisado influenciou os modos de morar e construir territorialidades dos moradores da
Maravilha. Estas análises foram realizadas com esteio nas contribuições conceituais
desenvolvidas por Certeau (1994), Honneth (2003) , Zaluar (1985; 2004), Agier (2011),
Bourdieu (2014), Das e Poole (2008) e Wacquant (2005).
10 Fato que será explorado e aprofundado no terceiro capítulo desta pesquisa.
24
2) CAPÍTULO I : INCURSÕES AO CAMPO
2.1 E agora, sem crachá?
O enunciado acima proposto surgiu de uma reflexão em sala de aula. Ao ser questionada
sobre minha entrada no campo de pesquisa, na comunidade Maravilha, deparei-me com uma
realidade, até então, pouco problematizada por mim: “como retornarei à Maravilha?”. Como
conseguirei acessar o território, articular interlocutores e colaboradores, enfim, como se dará
minha necessária relação com o campo ao qual me proponho “mergulhar”. Visto que em outro
momento, no período de graduação, meu acesso ao citado território aconteceu de forma quase
natural devido à minha condição de trabalhadora na área11, no Mestrado, percebi que já não
gozava das mesmas condições de outrora. E agora? Antes, por ser trabalhadora, possuía um
crachá da Prefeitura, era meu cartão de embarque, meu escudo protetor, meu passe livre ao local
e seus moradores. Afinal, eu era aquela moça do Projeto, “ninguém mexeria comigo”, eu tinha
isso em mente e seguia em frente. Entrava na favela de crachá, mas explicando os meus
propósitos como pesquisadora. O crachá era, assim, meu álibi, meu elemento de distinção que,
na minha concepção, impunha certo respeito àquela figura diferente por ali, que transitava entre
os becos da favela em qualquer horário, acompanhada de seu gravador e sua máquina
fotográfica. Mas, novamente retorno ao questionamento inicial, e agora? Não tenho mais
crachá! Não tenho mais contato com os antigos vínculos. Como entrar em um lugar, neste
momento, completamente estranho para mim, já não possuo, nem mesmo, os mapas mentais
que um dia me guiaram, por se tratar de uma “nova” Maravilha. A comunidade atual, formada
por conjuntos habitacionais, representava, em minhas percepções, blocos e mais blocos de
moradias, nos quais não fazia idéia de como “penetrar” para além-muros, de como buscar
estabelecer novos contatos e resgatar o status de familiaridade com o lugar de outros tempos.
Assim, iniciei minha caminhada de tensionamentos e ações à procura de estratégias que
me levassem à pesquisadora da e na Maravilha. Nesse processo, minha bagagem de
experiências como assistente social12 na Atenção Primária à Saúde fez-me refletir sobre a
11 Durante o período da minha graduação, atuei como estagiária de um Projeto Social da antiga Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI, ligada à Prefeitura Municipal de Fortaleza. O Projeto chamava-se Raízes da Cidadania e contava com uma equipe multidisciplinar para atuar junto às famílias socioeconomicamente vulneráveis, tendo como público principal crianças e adolescentes. Como estagiária de Serviço Social desenvolvia ações e práticas que me demandavam inserção comunitária. A Maravilha, naquela época não urbanizada, era uma das comunidades assistidas pelo Projeto. 12 Anterior à minha entrada no Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, fui assistente social de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, vinculado à Prefeitura Municipal
25
interessante inserção territorial dos trabalhadores da saúde, mais precisamente sobre o papel do
Agente Comunitário de Saúde – ACS nas comunidades. Esse profissional assume a
responsabilidade sanitária por uma determinada área de atução da sua Unidade de Saúde, o
famoso Posto de Saúde, e, como ferramenta de trabalho, diariamente, realiza visitas
domiciliares em seu campo de atuação, bem como, precisa ser morador daquele território em
que atua. Diante deste fato, pensei em solicitar apoio ao Posto, precisava conhecer a ACS que
pudesse me apoiar nessa empreitada.
Iniciei as tentativas de contato com a Unidade de Saúde a partir de ligações telefônicas.
Tentativas todas frustadas. Notei que tinha algo, no mínimo, estranho, pois a ligação
completava, o telefone “chamava”, mas nunca atendiam. Então, desloquei-me até a citada
Unidade e fui surpreendida por portões fechados e uma grande placa anunciando que o Posto
passava por uma reforma. Segundo informações de uma guarda municipal da creche ao lado, o
lugar estava em refoma havia dois anos. E os profissionais? Para onde foram todos? A resposta
que obtive não poderia ser mais desoladora, a guarda contou que eles estavam “espalhados em
vários lugares”. Minha busca pela ACS do território da Maravilha começaria naquele momento.
O detalhe é que tudo parecia “fora do lugar” para mim, há alguns anos não passava sequer em
frente àquele lugar. Meu mapa mental anteriormente constituído, definitivamente, já não se
aplicava àquele espaço ao qual retornava e que um dia me fora tão familiar. A princípio pensei,
seriamente, no quanto tais deslocamentos poderiam ser fáceis e tranquilos durante a pesquisa,
pois conhecia bem “as áreas”. Entretanto, essa crença dissolvia-se a cada instante em que me
aproximava e me movia por ali. Precisava admitir que mais que não ter interlocutores naquele
momento, sentia-me perdida, deslocada e, cada vez mais, necessitada de um “guia”, de uma
“bússola” que me levasse novamente a ter trânsito livre, ou quase isso, naquele território.
Posso relatar que não obtive êxito com o Posto de Saúde e, rapidamente, traçei outras
rotas e estratégias. Decidi estabelecer contato com outra instituição, o Centro de Convivência
Familiar – CCF, presente há muitos anos na comunidade. Acreditei que o CCF pudesse ser meu
então passaporte para a Maravilha, pois a instituição atendia crianças e suas famílias. Estabeleci
meu primeiro contato via facebook. Marquei horário para uma visita no intuito de explicar
minhas motivações para tal, mas, antecipadamente, informei que se tratava de uma pesquisa.
Anterior à minha ida, lembro-me de ter comentado sobre essa investida com algumas pessoas,
de Fortaleza. Na Residência, tive a oportunidade de vivenciar a Atenção Primária à Saúde e compreender, assim, o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde, também conhecidas por Postos de Saúde. Nesta experiência pude conhecer de perto e atuar conjuntamente com os profissionais que fazem a Atenção Primária: enfermeiros, médicos, técnicos de enfermagens, agentes comunitários de saúde, dentre outros. Nessa experiência, atuei com os agentes comunitários de saúde e pude entender de “dentro” a lógica dessa atuação profissional.
26
e do quanto muitos me amedontraram. Na verdade, nem precisaria desse reforço, pois a mídia
e os debates cotidianos já são mais do que suficientes para causar uma espécie de imaginário
constante do medo e dos perigos que a cidade nos oferece hoje, principalmente, ao se tratar de
regiões periféricas ou ditas favelas. Admito, estava com certa preocupação com como seria
recebida e com como deveria me apresentar. Nesse último caso, tratei de pensar em uma
vestimenta que fosse a mais discreta possível. Então, vesti uma calça jeans, um blusão (bem ao
estilo “propaganda de vereador”) e uma sapatilha. Pronto, estava vestida com minha “fantasia”
de pesquisadora. Acreditava estar adequada, a caráter, para seguir em frente.
O desafio posto, naquele instante, era o de chegar até o CCF. Seguia pela avenida Borges
de Melo e quando entrei à esquerda, em frente à Igreja da Base Área de Fortaleza, tudo estava
diferente. A linha férrea continuava no seu lugar, mas o que se via, expressando aqui minhas
primeiras impressões de cunho meramente estético, eram ruas bem definidas em contraste aos
antigos becos, movimento de alguns carros que antes não seriam possíveis ali. Havia mais muro,
mais concreto, menos cor. Atravessei o trilho de carro em busca do muro grafitado, referência
que me foi dada para encontrar a instituição, e, facilmente, o avistei. Ficava bem na esquina,
bem na entrada do local. Ao parar o carro rente à calçada do prédio, percebi que se tratava do
lugar que procurava ao ouvir o barulho das crianças. Era uma tarde, véspera de carnaval, as
crianças estavam pintadas e confeccionavam máscaras. Imediatamente, pensei que poderia até
participar daquele momento, mas não senti reciprocidade da coordenadora para tanto. Lógico,
eu acabara de chegar, era uma desconhecida para todos. E, sem demora, essa realidade me foi
incutida pela coordenadora com quem dialogava sobre minha pesquisa. Expliquei a respeito
dos meus objetivos e da necessidade de dialogar com os moradores, de estar por perto, de ir até
suas casas, quando, prontamente, ela observou: “É assim, você deve entrar com alguém
conhecido, mesmo porque com essa onda de violência de hoje, as pessoas não vão deixar uma
pessoa desconhecida entrar na sua casa”. Naquele exato momento, sem qualquer sutileza,
reconheço a minha condição de “estrangeira” ao local. Tantos medos, tantas histórias sobre o
perigo iminente da Maravilha, e me deparo que eu também faço parte dessa engrenagem, que
por ser estranha também posso representar desconfianças e perigo, por que não?
Quando a ficha de que poderia ser uma “estranha no ninho” caiu, tratei de buscar,
rapidamente, uma colaboradora que pudesse ser minha guia na Maravilha. Soube, então, que o
Posto de Saúde do território estava pronto e, finalmente, consegui localizar a Agente
Comunitária de Saúde da área. A ACS foi muito receptiva. Aliás, toda a equipe de saúde,
enfermeira, farmacêutica, técnica de enfermagem. Senti-me realizada com tamanha atenção da
ACS e pensei, inúmeras vezes, em como eu poderia contribuir com o seu trabalho também.
27
Acreditando na possibilidade de estabelecer uma relação mais equilibrada com aquela que se
propunha ser uma colaboradora da pesquisa. Como em Mauss (2000), percebo a constituição
da vida social por um constante dar e receber. A dádiva como fundamento de toda sociabilidade
e comunicação. Nesse caso, a grande dádiva a mim ofertada – pela ACS – foi, sem dúvida, sua
total receptividade à minha proposta de trabalho. A profissional se mostrou disponível a me
apoiar sempre que for preciso, estabelecendo uma ponte fundamental entre a comunidade e eu,
e, ainda, como moradora do território, disposta a contribuir com as entrevistas. Minha “contra-
dádiva” – mesmo que para o receptor esta se apresente, implicitamente, como uma obrigação –
está, ainda, sendo gestada com cautela. Em breve, lançarei a idéia de poder colaborar de alguma
forma com o grupo de idosos mantido por sua equipe de saúde na Maravilha.
O grupo de idosos fora meu primeiro momento em contato com os moradores.
Convidada pela ACS, compareci em algumas das reuniões mensais do grupo, que abordava um
tema central, a discussão e acompanhamento dos ususários da Unidade de Saúde com
hipertensão e/ou diabetes. O grupo era formado majoritariamente por mulheres, no universo de
25 participantes no primeiro dia em que estive presente, apenas 3 eram homens. Quando
cheguei, fui prontamente “convidada” a colaborar com o encontro, tirei algumas fotos do celular
da enfermeira, preparei fichas para um sorteio, e assim fui me sentindo mais integrada ao
momento. Mais à vontade com as pessoas, pude me apresentar e falar sobre minha presença ali.
Apresentei-me como estudante da UECE que estava desenvolvendo uma pesquisa sobre a
Maravilha. Revelei que conheci a comunidade “antes da reforma”, achei esse termo adequado
para usar naquela conversa, e que gostaria que eles pudessem colaborar com a minha pesquisa
sobre a Maravilha “de hoje”. Todos se mostraram receptivos, percebi que os mais idosos
demonstraram, inclusive, que seria um momento agradável para se sentirem menos sozinhos.
Tive a oportunidade de conversar melhor com duas idosas que, explicitamente, apontaram a
centralidade da solidão em suas vidas. Para uma delas, solidão acompanhada por depressão e
crises de pânico. Para outra, solidão afagada pela companhia do cachorrinho chamado “Jôli”.
Em meio a esse processo de aproximação com a comunidade, alimentando a perspectiva
de ganhar um passe, digamos, quase livre no território e poder, como propõe Magnani (2009),
construir um olhar de perto e de dentro a partir dos arranjos dos próprios atores sociais. Deste
modo, comecei a traçar “caminhos” de imersão para a feitura da pesquisa. A ACS e a Unidade
de Saúde se firmaram como pontos chaves de apoio à entrada ao campo de pesquisa e os
encontros mensais como espaços de primeiro contato para posterior visita às pessoas em suas
moradias. Visto a importância de estar com as pessoas não somente nos espaços institucionais,
entendendo, assim como o autor anteriormente citado, a relevência de se estar na “paisagem”
28
em que as práticas e experiências se desenvolvem. Paisagem que não se faz enquanto “mero
cenário, mas parte constitutiva do recorte de análise.” Segundo Magnani, é o que caracteriza o
enfoque da antropologia urbana. Cabe à etnografia captar o que ele chama de duplo movimento,
“a cidade mais do que um mero cenário onde transcorre a ação social, é o resultado das práticas,
intervenções e modificações impostas pelos mais diferentes atores em sua complexa rede de
interações, trocas e conflitos” (MAGNANI, 2009, p.132). Portanto, para buscar uma
aproximação com o que denomino por “olhar” dos moradores sobre a Maravilha urbanizada, é
importante investir em ambos os pólos da relação, sujeitos e território. Sujeitos que incluem
não somente os moradores, mas também a HABITAFOR, partícipe fundamental na construção
de teias desta (re) territorialização. E, por fim, observei, senti e percebi a nova paisagem que
se apresentou e foi por mim captada como pontapé inicial desta pesquisa. As questões
mobilizadoras foram como os moradores percebiam as mudanças da “Maravilha favelizada”
para a “Maravilha urbanizada”? Como a urbanização implantada nessa área influenciou os
olhares e compreensões desses no que diz respeito aos modos de morar e construir
territorialidades? Como estes descreviam os significados (ou percepções) e implicações sociais
após a mudança de suas moradias originais?
De acordo com Raffestin (1993), os sujeitos em suas territorializações apropriam-se do
espaço, o constroem e o reconstroem, relacionam-se com este e entre si, criam dinâmicas, táticas
e redes num movimento de produção de territorialidades. Ainda, com base em Campos apud
Corrêa (1994) e Haesbaert (2004), o território corresponde a uma relação de pertença entre
indivíduo e terra, mas não necessariamente se vincula à propriedade desta e sim à sua
apropriação. Essa apropriação está ligada ao controle efetivo sobre um dado segmento de
espaço, legitimada por instituições ou grupos. Este controle se processa no construir e
reconstruir destes espaços, por indivíduos ou grupos, que assim os ocupam e constroem suas
relações sociais, formando e disseminando suas identidades territoriais, suas territorialidades.
Assim revela-se a territorialização. Matos (2002) também destaca, de forma interessante, os
conceitos de territorialidade e territorialização.
Destaca-se a noção de territorialidade, identificando o espaço enquanto experiência individual e coletiva, onde a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias. Lugares que, além de sua existência material, são codificados num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador num trabalho de investigação sobre os múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (, p.35 e 36).
No desafio desta empreitada investigativa, tenho atentado para uma das condições
29
fundamentais da pesquisa etnográfica, na verdade ato inaugural de qualquer proposta
investigativa, o estranhamento. Magnani (2009), a partir da leitura de suas experiências
etnográficas com o “mundo dos surdos“,alerta para a necessidade de se estranhar o outro, pois
daí é que surgem os questionamentos, as dúvidas, as curiosidades e descobertas. O que o ele
denomina por “sacada” na pesquisa etnográfica, ou seja, o “insight”, parte também da
capacidade de se estranhar determinada ação ou fato social. A sacada pode acontecer em virtude
de um acontecimento o mais trivial possível, disto a importância do exercício constante de não
perder a capacidade de se maravilhar com o campo de pesquisa. Capacidade que para Magnani
(2009) apresenta-se como dificuldade objetiva a ser enfrentada já que, aos poucos, ao adentrar
no universo do outro, este se torna cada vez mais familiar ao observador. Bourdieu também
contribui com essa discussão ao tratar da “desbanalização do banal”. Ele assume, diante de suas
pesquisas, a necessidade constante do estranhamento do aparentemente banal, daquilo que
segue o curso “normal” da ordem cotidiana. Em suas palavras, “o que é problemático é aquilo
que justamente não o é” (BOURDIEU, 2014, p.224,). Cabe ao pesquisador, então, a
investigação das sutilezas, a busca pelo desnudamento do real muitas vezes, precocemente,
enquadrado como “não fenomenal”. E, para mim, por já ter pesquisado e vivenciado a
Maravilha “favela”, tornou-se ainda mais imprescindível aportar no campo com um olhar de
estranhamento, de curiosidade incessante diante de um “novo” campo que se apresentava.
Assim, o que, em um primeiro momento, pareceu-me familiar, por já ter enveredado em
um processo investigativo naquele território – hoje outro –, é estimulado pelo exercício que
advém da condição de estranheza a, justamente, ser “estranhado”. Até que o percurso do fazer
científico seja constituído em seu ciclo, qual seja, familiaridade, estranhamento e familiaridade
novamente. A concepção da aproximação com o objeto a ser pesquisado, investe-se da empatia,
da familiaridade, da observação, contudo, como empreender em um olhar distanciado,
exotópico, para se atingir a desnaturalização dos fatos, o estranhar? A exotopia, explorada por
Silva (2015) trata da construção de um lugar do pesquisador na pesquisa, um estar “fora dentro
do dentro”, se fazer presente em um lugar exterior que escape da cegueira do egocentrismo.
“Fazer uso da exotopia enquanto alavanca compreensiva é, portanto, estabelecer a distinção
entre o espectador comum e o analista” (SILVA, 2015, p.42). A busca, em outros termos, é por
uma inserção que se estabeleça, conforme elaboração de Geertz (2008), utilizando-se dos
conceitos de experiência-próxima e experiência-distante. Neste caso, importante dar atenção
para o equilíbrio entre o nem tão perto, que deixaria o analista imerso em miudezas que nem
sempre colaboram com a análise, e nem tão longe, que produza abstrações e se despreenda do
contexto do objeto analisado, da “vida cotidiana”. Amorim (2004) corrobora com a discussão
30
da necessária exotopia e acrescenta outros “movimentos” que dão curso ao caráter da
investigação etnográfica:
Quanto à ideia de identificação e de empatia com o outro, podemos dizer que é, ao contrário, o descontínuo e o intervalo, a exotopia e a dissemetria que permitem a expressão de alteridade. A ilusão de simetria, de reciprocidade, de espontaneidade na abordagem do outro corresponde ao que Segalen chama de inferno do mesmo e que poderíamos propor como impossibilidade de conhecimento do outro. Pois a compreensão, a interpretação e a explicação são, na verdade, formas de tradução e, traduzir é mostrar a descontinuidade e o intervalo (AMORIM, 2004, p.18).
O “estranhar o outro” me leva a pensar na relação pesquisador e pesquisado, no universo
particular que carrega o pesquisador e da considerada habilidade que precisa ter para se deixar
afetar por esse outro. Rosana Guber (2004), em sua “obra-manual” de antropologia, atenta para
que no processo etnográfico tenhamos uma mente ampla e para que saibamos trabalhar,
primeiramente, nós mesmos e as concepções de mundo que trazemos do lugar de onde viemos.
Guber discute que o investigador nunca será um agente asséptico de observação e registro. Este
investigador, ao chegar ao campo de pesquisa, leva sua própria história cultural e teórica, sendo
sua presença sentida pelo outro. Os interlocutores, ou colaboradores, se comportam de maneira
diferente de quando estão entre si, sem a presença de “estranhos”. Tal fato é algo a se ponderar,
para que o pesquisador reflita sobre as melhores estratégias de aproximação com a realidade
pesquisada.
Comparando minha ida ao campo nesse momento com o período que fiz a pesquisa da
graduação, na “Maravilha favela”, percebi as pessoas com quem tive contato mais
familiarizadas com a ideia da entrevista e do uso do gravador. Não fui tão questionada quanto
anteriormente, mesmo que havendo ainda algumas dúvidas em relação aos meus propósitos
com tais perguntas.
A senhora é do Habitafor? (Após minha negativa) Porque a senhora quer saber tanta coisa? A senhora não é do Habitafor mesmo não? O que a senhora faz com essas perguntas? Ah, é um trabalho, né? A senhora tá fazendo um estudo, né? Eu não tenho problema em falar não, posso contar sobre a minha vida pra senhora. (SR. JOÃO, morador do conjunto habitacional Maravilha, 87 anos)
Quem é essa, é doutora nova pra nós? (A senhora questiona a ACS que me acompanha em campo) Ah, é um estudo que veio fazer aqui, eu sei como é o nome é uma mamo..., mamografia, né? Que faz quando termina o curso, né? Já várias fizeram esse estudo por aqui, muita gente tem interesse aqui na Maravilha. (Moradora do conjunto habitacional Maravilha)
Ao tratar dessa aproximação, recordo-me de “o fim e o princípio”, documentário
31
dirigido por Eduardo Coutinho (2005)13., em que o objetivo do autor é contar as histórias de
vida de moradores de uma determinada localidade rural. Para conseguir se inserir no local e
ganhar a confiança das pessoas, contou com a enorme colaboração de uma agente comunitária
da pastoral que conhecia e era bem quista por todos. Em um primeiro momento, o diretor
percebeu que Rosa, apesar de ter penetração na comunidade escolhida para o documentário,
tinha relações “distantes” com seus interlocutores, voltada mais para a esfera do trabalho. O
que não funcionou para a realização da mediação que Coutinho procurava, já que pretendia
mergulhar no universo simbólico de seus entrevistados. Por isto, Ele partiu com Rosa para a
comunidade onde ela morava.
Na comunidade onde Rosa morava, os moradores, em sua maioria, eram todos ligados
por laços de parentesco, o que possibilitou imersão na dinâmica cotidiana das famílias. Rosa,
nestas consições, enfim, recebe – inclusive nos créditos do filme – o status de mediadora. A
estratégia utilizada por Coutinho, também utilizada por mim, apoia-se na certeza de garantir o
vínculo com uma figura local representativa para a comunidade e, assim, também garantir uma
“chave” de entrada aos outros nativos. Muitas questões me povoaram como espectadora da obra
de Coutinho, e remeteram ao meu processo etnográfico, tais quais: Será que as pessoas se
disponibilizam a falar e serem filmadas por consideração a Rosa, pessoa de referência e
confiança para eles? Talvez, como bem diria Malinowski, fosse necessário uma “penetração
psicológica” para compreender e tentar encontrar respostas para estes questionamentos. Mas,
em meu percurso, posso destacar que foi uma experiência interessante perceber as pessoas se
candidatarem e mostrarem-se bem interessadas em falar sobre suas vidas. Parece um misto de
querer ajudar o outro – no caso, eu, que faço todo um discurso da solicitação de apoio deles
para minha pesquisa – e querer contar um pouco de si, no sentido de “eu tenho muito a dizer,
eu vivo aqui há muitos anos, eu fundei isso aqui”. Também tive a minha “Rosa”, a ACS Ana.
Ela permitia minha entrada e meu acesso aos interlocutores já que, como Rosa, conhecia bem
as pessoas e morava na região.
Percebo que o momento da fala do outro, da entrevista, é mais do que “ceder a palavra
aos nativos”. Como bem cita Uriarte (2012), fazer etnografia requer desenraizamento, uma
formação para ver o mundo de maneira descentrada e, ainda, um “levar a sério” a palavra do
outro, encontrar uma ordem nas coisas e depois colocar as coisas em ordem por meio de uma
escrita realista, polifônica e inter-subjetiva. Nesse contexto é que desponta a idéia do
13 Assim como recordo a obra de John Comerford (2003) que trata de uma etnografia em pequenas localidades
rurais onde todos são parentes ou muito próximos. Retomo este autor no capítulo 3 desta pesquisa.
32
dialogismo. O dialogismo, discutido por Amorim (2004), não como um método de pesquisa ou
um modelo de escrita, mas como uma proposta de análise, uma via de investigação, uma
maneira de interrogar. Encarar a concepção do dialogismo introduz categorias e termos próprios
a essa compreensão. Não falo em informantes, mas em sujeitos colaboradores, interlocutores,
em mediadores, compreendendo que na lógica dialógica o trabalho é costurado de forma
colaborativa. O outro, o nativo, o colaborador, não é somente aquele que informa, é o que
participa como co-produtor da pesquisa. O colaborador leva o pesquisador a se desenraizar, a
provocar e se sentir provocado, também elabora seus questionamentos e tem insights durante o
processo de elaboração da sua fala, como em muitos momentos em que eu me via preocupada
em seguir um roteiro de perguntas e, durante o percurso da entrevista, surgiam falas que
levantavam curiosidades e questões peculiares, o que me fazia aprofundar sobre temas antes
não pensados. Tais sutilezas me ajudaram na compreensão do perfil do interlocutor e do seu
lugar de fala. Exemplo deste exercício é a narrativa de Dona Maria, ex moradora do Surrão,
que me fez refletir de forma mais intensa a respeito das “necessidades básicas” da vida para
além da “dupla” comida e moradia. E o quanto precisei dialogar sobre a história de vida pessoal,
empreitadas na vida familiar, laços de afetividade para só assim entrar em perguntas pré
elaboradas da pesquisa.
Quando a gente se mudou eu fiquei lá do outro lado, né (refere-se a sua ida para o conjunto Nossa Senhora de Fátima, do outro lado da BR 116, a entrevista foi realizada no conjunto Maravilha). Mas aí eu vivia vindo e voltando pra cá porque muitas amigas minhas ficaram aqui. Eu fico muito tempo sozinha, eu pensava muito no começo como ia ser pra mim ficar sozinha lá daquele lado. Ainda bem que tem uma lojinha de bicicletas perto da minha casa, se não fosse essa lojinha não tinha com quem eu conversasse a tarde. Deus me livre, isso é muito triste, né? A pessoa não ter com quem conversar. Mas o natal a gente faz aqui na Maravilha. (Dona Maria, moradora do conjunto habitacional Maravilha).
É interessante elaborar estas reflexões a partir do que exatamente vivenciei no campo
ao me deparar com os desafios de lidar com esse sujeito colaborador que não me apresenta
respostas prontas, que me leva a descontruir hipóteses ou preconceitos, que confessa nunca ter
pensado sobre o que você perguntou antes, que formula ideias que naquele momento me
pareceram ininteligíveis e me fazem perceber a necessidade de maior imersão no universo do
outro, que me faz voltar para casa com um verdadeiro quebra-cabeça a ser montado com “bom-
senso e intuição psicológica”, para citar Geertz (2008), em sua antropologia interpretativa:
[…] Ao meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico se nos
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permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica. (p.22)
A escrita é, assim, reveladora do que se conseguiu vivenciar no campo. Para Amorim
(2004), não há escrita criadora sem alteridade entre autor e locutor. Para tanto, cabe-me pensar
a respeito de uma provocação que se apresenta de maneira mais interna, a busca por uma
neutralidade axiológica. Preocupação esta discutida, mais recentemente, por teóricos como
Bourdieu, mas muito presente nas análises de clássicos como Durkheim e Weber. Este último,
sobretudo, quando me faz refletir sobre o olhar não a partir do que “eu acredito”, do que “eu
sinto”. Acho interessante, ao tratar do exercício por uma ciência objetiva, a analogia contruída
por Löwy (2010) com o cômico personagem alemão Barão de Munchhausen. Löwy conta que
o personagem, em uma de suas aventuras, se vê em apuros ao adentrar no pântano com o seu
cavalo. Ao perceber que ele e o cavalo afundam cada vez mais e encontram-se em risco de
morrerem, o Barão é acometido pela “brilhante” ideia de puxar os seus próprios cabelos num
esforço extremo de salvar a si e seu cavalo, sendo feliz na sua ação. O autor compara, com esse
conto, a busca científica percorrida pelos clássicos para livrarem-se de seus preconceitos e
juízos de valor. Para se arrancar desse pântano, o cientista precisa, por ele mesmo, reconhecer
o que são seus preconceitos e o que carrega de ideologias, já que preconceitos e ideologias estão
figurados sob a ordem do implícito, do “subterrâneo”, do não identificável, ou melhor, de difícil
identificação e aceitação por parte do pesquisador.
Lembro que, inicialmente, quando cheguei à Maravilha favelizada, alimentava diversos
preconceitos – no sentido literal do termo – frutos de construções baseadas em discursos
midiáticos e senso comum. O desafio de entrar em campo disposta a se sentir livre de certas
amarras ideológicas fez com que no processo de escuta do outro, de observação da realidade,
fosse possível refletir sobre questões que estão ali presentes, e consciente da importância de
confrontá-las. Questões que se revelam no cotiano da pesquisa, a citar o dia em que cheguei na
casa de uma interlocutora bem idosa, a primeira entrevista que realizei e preparei-me para ouvir
longas narrativas de “dor e sofrimento”, afinal a senhora morou durante muitos anos em um
lugar considerado insalubre, por muitos anos “desamparado” pelo Estado. No entanto, os relatos
sofridos não vinham, tentei outras perguntas, outras maneiras de abordar o assunto, mas a
senhora queria falar sobre a “vida sofrida” em relação aos relacionamentos vivenciados e não
sobre a moradia, sobre as questões que, particularmente, estavam a me aflingir e não à senhora.
Não, minha filha, minha casa já estava velha, mas eu até gostava dela. Essa aqui é melhor porque tá nova, né, não tem perigo com chuva, mas era bom lá.
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Eu me perdia um pouco naqueles becos, mas o povo me ajudava [...] Sofrer mesmo eu sofri com o marido que bebia demais. Eu com um monte de filho tive que trabalhar porque mandei ele embora. (DONA CONCEIÇÃO moradora do conjunto habitacional Maravilha, 92 anos).
Em Weber (2006), tanto quanto em Bourdieu (2002), está o processo de reflexividade
do pesquisador, tendo em mente a perspectiva de que o conhecimento científico é autocrítico
e reflexivo. Isto é, certamente, um dos elementos que distingue a prática científica da prática
política, ideológica e religiosa. Este movimento permite que o investigador reflita sobre seus
achados, sobre suas teorizações, e possa questionar, por exemplo, acerca de questões como:
“penso sobre isso porque eu sou quem eu sou?”. E, ainda, tome consciência dos “hábitos de
pensamento” e possa desconfiar dos seus usos. A reflexividade se faz, então, esforço de
humildade e honestidade científica.
Sem dúvida, os elementos acima discutidos foram desafiadores à minha condição
investigativa e pautaram as ações de imersão no campo e o processo de retorno à escrita do
trabalho. Compreendo que para a antropologia, o grande desafio de se fazer pesquisa está na
própria natureza que configura seu objeto de análise, o outro e suas dimensões. Zaluar (1994)
ilustra bem a questão da atividade de pesquisa não ser uma mera técnica de obtenção de dados.
“Vivemos numa relação social em que ambas as partes aprenderam a se conhecer” (p.20). Nesta
citação, especificamente, ela fala da sua experiência em campo. Explora como sua imersão lhe
rendeu relações de trocas e parcerias de colaboração com sua pesquisa, mediada não só por
empatia e reciprocidade, mas, inúmeras vezes, por conflitos, por discordâncias e animosidades.
Sua experiência, que também se passa em uma comunidade urbana, o conjunto Cidade de Deus
no Rio de Janeiro, traz relatos sobre suas estrátegias e problemáticas para adentrar em seu
campo. A autora fala de seus medos iniciais no período da década de 1980, que ainda se
encontram bem atuais:
Desconhecemos o que lá se passa, embora nossa fértil imaginação o faça, desde logo, um antro de banditismo, violência, sujeira, imoralidade, prosmicuidade, etc. Duplamente excluídos por serem “outros” e por serem “incultos” e “perigosos”, os pobres urbanos vivem, neste olhar etnocêntrico e homogeneizador, o avesso da civilização. (IDEM, 1994, p.12)
Com a leitura em Zaluar, aprendi e revigorei em mim o valor do sentido de conhecer “a
fundo”, lançar-se à aproximação do movimento de investigação, para além dos mapeamentos
instantâneos – com os quais estamos tão acostumadas a nos deparar nas Instituições – que, como
afirmou ainda Zaluar (1994), muitas vezes estão imersos numa lógica da definição, de
rotulações objetivas e concretas, como uma verdadeira “matemática social”. Mapeamentos
35
estes que, pouco provavelmente, estarão envolvidos com o rigor metodológico requerido por
uma pesquisa, onde, ao contrário, números e traçados traduzem superficialmente determinada
“realidade social”. Contudo, assim como o trabalho de campo – idas acompanhadas por
estratégias que mais à frente serão discutidas – os mapeamentos e documentos institucionais,
no meu caso, os de origem da HABITAFOR, também aportaram como elementos de suma
importância para esta pesquisa, na verdade, constituiu-se como outro campo de análise. Os
documentos públicos foram tratados, assim, como material empírico, que despertaram a
capacidade do investigador de questionar, confrontar e interpretar o que está posto.
2.2 Escolhas metodológicas: traçando caminhos
A princípio, no período de imersão no campo, pegava-me pensando, com frequência,
sobre tudo que vi, tudo que escutei, pessoas – e suas hitórias – que encontrei, e sentia que me
propor a uma etnografia era quase uma “manifestação” da minha proposta de estudo. Explico
melhor, não conseguia pensar em outro método possível para minha investigação, para o meu
“ser pesquisadora”. Para mim, a necessidade de fazer um mergulho mais profundo e prolongado
se fazia quase como única opção plausível ao andamento da minha pesquisa. Como captar
sentimentos, percepções, sentidos que o processo de urbanização aqui investigada trazia às
pessoas se não por meio de um olhar etnográfico? A etnografia apresentou-se, assim, muito
mais do que uma técnica, mais uma via de possibilidade real para adentrar em um universo
outro que busquei compreender. Utilizando-me do pensamento de Magnani (2002) em
corroboração a esse sentimento, o método etnográfico é antes de tudo um modo de acercamento
e apreensão do que um conjunto de procedimentos.
Nesse ponto do texto, senti ser imprescindível trabalhar meu entendimento sobre o
como e o por quê da utilização do método etnográfico a partir das próprias experiências em
campo. Considerando que tanto quanto a contribuição deste método para produzir os achados
da pesquisa está a relevência desta caminhada para se chegar a tais achados, proporcionados,
justamente, pela escolha etnográfica. Esta escolha se justifica pela “solicitação” do objeto, pois
este dialoga com o próprio pesquisador, solicita-o, chama-o e o provoca um determinado
direcionamento. Precisava desenraizar-me e ter a clareza de que meus objetivos me pedem
intensidade ao lidar com os aspectos subjetivos aflorados no campo, com as pessoas, com o
movimento do território.
Interessante referir-me a território porque, ao entrar na nova Maravilha, percebi que
estar ali, caminhando por entre os conjuntos, transmitiu-me uma sensação de estar atenta a tudo
36
e a todos ao meu redor. Senti que a paisagem também dialogava comigo e a todo instante me
apontava o quanto ela mudou. O trilho que dividia a comunidade desde sempre ainda está lá
presente, por exemplo, mas também ganha outros ares já que não será mais apenas espaço para
trens de carga, será agora para o Veículo Leve sobre Trilhos – VLT14. Mas até o trilho não é
mais o mesmo? Será que algo permanece e simboliza a Maravilha de antes? Ou melhor, a
Maravilha “antiga”, como muitos moradores se referem.
Assim, retomando meu objetivo principal, me propús a investigar o“processo de
urbanização da favela Maravilha”, conforme projeto de iniciativa do poder público municipal.
Ou seja, procurei compreender como os moradores perceberam as mudanças da “Maravilha
favelizada” para a “Maravilha urbanizada”, como essa urbanização influenciou seus olhares e
compreensões no que diz respeito aos modos de morar e construir territorialidades, bem como
estes descrevem os significados e implicações sociais após a mudança de moradia, por exemplo.
Portanto, nesse intento, venho traçar minhas estratégias para a feitura desta pesquisa, tendo por
base alguns objetivos específicos, tais quais: Investigar como os moradores descrevem suas
percepções e implicações sociais após a mudança de moradia, observar se o processo de
urbanização da Maravilha impregna a vida dos moradores de sentidos não estigmatizantes,
compreender as percepções sobre o processo de urbanização e as práticas concretizadas na
“Maravilha urbanizada” por parte dos moradores e da HABITAFOR.
Com o “triunfo” da entrada no campo – relatada no primeiro ponto deste capítulo –,
pude, finalmente, começar a traçar estratégias para a realização desta pesquisa. Minha entrada,
acompanhada por uma ACS, sobretudo no grupo de idosos hipertensos e diabéticos, me deu a
possibilidade de articular, de forma mais independente, as visitas e entrevistas individuais. No
grupo, pude me apresentar e marcar os encontros com os moradores. Estes que guardam consigo
as experiências de ter vivido em um território favelizado, que vivenciaram o movimento de
mudança para um território urbanizado e que, hoje, habitam este território. Foi com o acesso a
este perfil de moradores ,que pude compreender de fato, o que se objetivava nesta investigação,
principalmente ao considerar ainda, a diversidade de gênero e de idade das pessoas
entrevistadas. Os olhares em torno das questões, com certeza, receberam diferentes contornos
ao se comparar jovens e idosos, homens e mulheres. Foi o que pude ouvir e observar quando
da formação de um grupo para discutir coletivamente e de forma lúdica sobre questões aqui
14 O VLT é um transporte público que visa substituir os antigos trens mais pesados, investindo em maior eficiência no transporte de passageiros dentro das cidades ou até mesmo em translados mais distantes como da zona urbana para a rural. No caso da Maravilha, o VLT será usado para o transporte de passageiros na linha férrea que antes se destinava aos trens de carga.
37
propostas. Adotei como procedimento de coleta inicial de dados a realização de oficina15 com
a participação de moradores, entre homens, mulheres de diferentes idades e tempo de moradia
na comunidade, soando, ao todo 9 participantes. A oficina foi executada contemplando
atividades lúdicas como forma de fazer emergir, dos participantes, suas experiências,
percepções, imagens e memórias do lugar.
Este grupo só fora concretizado porque tive uma importante mediação das ACS locais
Ângela e Ana, que agiu no sentido de articular os participantes para a oficiana. Maria comprou
minha proposta e ajudou-me a distribuir os convites para o grupo na comunidade.
Ingenuamente, fui à Unidade de Saúde com uma semana de antecedência para convocar Maria
à entrega dos convites, quando fui alertada por ela: “Lidia, as pessoas vão esquecer, esses
convites a gente só faz um dia antes, é assim que acontece quando fazemos nosso grupo de
hipertensos”. Logicamente, dei total crédito à experiência nativa da ACS. Fui, então, no dia
anterior ao encontro, até a Maravilha, pedi que ela me levasse às pessoas, senhoras, que já
conhecia e participavam do grupo da Unidade, mas que também pudéssemos convidar pessoas
mais jovens e homens. Nessa caminhada, fui apresentada ao senhor João, que pareceu conhecer
muito sobre o lugar e, principalmente, pareceu-me ser uma pessoa que gostava de narrar seus
causos. Esta fluidez nas narrativas muito me interessava. Agendei, amos, assim, uma entrevista,
pois em virtude de um problema de locomoção, o senhor não poderia se deslocar até o lugar de
realização do grupo, na Associação de Moradores da Maravilha.
Do total de 15 convites confeccionados em papel, conseguimos distribuir cerca de 12.
Fiz os convites em papel acreditando que a maior formalização deste tivesse um caráter mais
apelativo para que as pessoas de fato comparecessem. Mas, avalio que a visita às pessoas em
suas residências, as explicações sobre o objetivo do grupo faladas pessoalmente, o efeito de
estar acompanhada da ACS Ângela, referência para eles, com certeza tenha surtido uma
motivação muito maior para que se fizessem presente no grupo. Tive todo o cuidado de dizer
que aquele trabalho nada tinha em relação ao Posto de Saúde. E, ainda, assim, um morador
apareceu no grupo munido de seu cartão de vacina, à espera do doutor. Este fato, entretanto,
não o tornou menos participativo. Este morador foi um dos três homens presentes no grupo,
como mostram as figuras 9 e 10.
15 O planejamento da oficina permitia que os participantes pudessem se apresentar ao dizer seus nomes, idade e atividade laboral, que estes desenhassem como viam a Maravilha de antigamente e depois a Maravilha de hoje, e, por fim, que pudéssemos discutir à luz dos desenhos.
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Figura 9
Figura 10
Figuras 9 e 10 – Grupo realizado com moradores da Maravilha na Associação Comunitária. Fonte: Pesquisa direta da autora
As pessoas que vieram para a oficina foi da própria comunidade Maravilha, refirindo-
me ao território que fora inicialmente urbanizado. Entretanto, do outro lado da BR 116, há
conjuntos habitacionais com pessoas que foram deslocadas desta Maravilha primeira, espaço
denominado de Conjunto Nossa Senhora de Fátima. Uma moradora “do outro lado”, com a qual
já tinha certo vínculo, por já tê-la entrevistado, também compareceu. Dessa forma, pude contar
com a presença de 9 pessoas, adesão que considero bem positiva diante dos 12 chamamentos
realizados, sendo 6 mulheres e 3 homens. A faixa etária variou de 34 a 81anos de idade, sendo
que apenas 2 pessoas se encontravam nessa faixa dos 30 anos. A ACS Ângela já havia me
alertado que mesmo os adolescentes estando de férias, seria difícil mobilizá-los, alegando que
eles “dormem o dia todo” ou “só querem saber de internet e celular”.
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O grupo estava marcado para acontecer às 8 horas, mas começou às 8 h e 30 min. Em
termos de atividade laboral, duas eram trabalhadoras do lar não remuneradas, quatro eram
aposentados por contribuição, uma é caixa de supermercado e estava de férias, um trabalha em
um lava-jato e faz bicos como pedreiro, e uma é Agente Comunitária de Saúde, a ACS Ângela.
Penso que ter noção sobre características como idade e trabalho já me faz adentrar, mesmo que
timidamente, no universo do outro, as peculiaridades nas narrativas também perpassam por tais
características. Saber de onde vem a fala é tentar compreender o universo particular do outro, é
aproximar-se de sua bagagem cultural e perceber a existência da alteridade como constituitiva
da produção de conhecimento. Apropriando-me de uma fundamentação de Guber (2004), é
incontornável refletir que não há apenas busca por dados em uma intenção etnográfica, desde a
perspectiva interpretativa, o trabalho de campo não se apresenta como um monte de dados, e
sim como uma experiência na qual a antropologia organiza seu conhecimento. Guber afirma
que ao se deparar cara a cara com o papel do outro, se ganha uma sensação de entendimento do
outro, o trabalho de campo se associa à imersão subjetiva, pela qual o investigador intenta
penetrar o ponto de vista nativo por meio da empatia.
Tal intento apresentou-se de forma positiva com a realização do grupo. Observei que ao
chegarem ao espaço marcado antes de iniciarmos os trabalhos em grupo, as conversas giravam
em torno da violência local, política e saúde. Esta última, devido à idade avançada de alguns,
as queixas, sobretudo, por conta de dores físicas se tornam mais frequentes e centrais na vida
destas pessoas. A presença da ACS, até mesmo no momento de fazermos os convites, também
é aproveitada por alguns para uma breve escuta de suas mazelas, tendo em vista que Maria
representa o Posto de Saúde e o acesso aos demais profissionais de saúde. Já o assunto da
política se fez pauta por ser, de fato, tema com presença cativa em quase todas as rodas de
conversa atuais. Nesse caso, tratava-se de discussões em torno da política nacional, retorno ou
não da presidenta afastada Dilma Roussef, e das figuras locais que se canditariam ao cargo de
vereador. A ênfase na descrença de que essas figuras lutariam por causas locais se mostrava
bem estabelecida e exemplificada pela fala de um morador: “é sempre assim, quando chega
nessa época de campanha prometem tudo, mas vai ver se fizeram alguma coisa antes... não dá
pra acreditar mais”. Por último, os relatos sobre violência local me chamaram mais atenção.
Uma senhora relatava sobre um assalto que havia sofrido dentro da comunidade enquanto os
outros, curiosos, perguntavam por detalhes sobre local preciso e características do assaltante
que chamaram de meliante. Esses relatos mereceram atenção porque não trago a violência como
categoria central de minha análise, mas esta insiste em manifestar-se em muitas narrativas. Em
entrevistas, por exemplo, o tema aparece sob opiniões que se confrontam, pois para alguns a
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Maravilha é um lugar calmo e maravilhoso para se viver e para outros, a Maravilha já foi um
lugar muito bom, mas hoje a violência que se encontra generalizada na Cidade também se
percebe na Maravilha. Interessante é que mesmo com o discurso de que a Maravilha “ainda é
um lugar muito seguro”, estas pessoas, em grande maioria, buscam proteção, colocando
cadeados e grades em suas janelas. Esse tema, a violência na Maravilha, configura uma
categoria importante que surge das explorações no campo e que será abordada no capítulo 3
desta pesquisa, tendo em vista que se faz elemento relevante também para se compreender as
mudanças da Maravilha antiga para a Maravilha atual.
Ao tratar da urbanização como fenômeno marcante de implicações sociais na vida dos
moradores da Maravilha, é relevante o resgate das memórias e narrativas quanto ao morar e
viver na Maravilha favelizada. Os discursos que adentram a lógica da comparação são
necessários e inevitáveis para contar a história e entender o olhar dispensado a uma nova
Maravilha. Este resgate será fundamentado a partir da história oral. Metodologia que implica
na feitura de um roteiro destinado a investigar as histórias passadas, o que as pessoas têm para
falar sobre a Maravilha antiga. Como tudo começou? Por que a escolha desse nome
“Maravilha”? Como era morar na Maravilha de antigamente? Interessou-me compreender as
perspectivas que os moradores traziam no momento da entrevista para compreender em que
medida esse passado carregava sofrimentos ou não; em que medida estava se dando processos
de idealização das experiências passadas, com a perspectiva de apreender as dimensões e
impactos positivos e ou negativamente sobre seus arranjos e agenciamento cotidianos
decorrentes do projeto de urbanização na comunidade.
O uso da história oral proporcionou que lembranças viessem à tona sobre
acontecimentos do passado. É a história sendo contada por quem a viveu, direta ou
indiretamente, sendo (re) interpretada e mantendo viva a memória coletiva. O ato de recordar e
oralizar sobre o que se tem conhecimento é um ato de ressignificação de si e do objeto narrado.
Com esteio nas análises desenvolvidas por Portelli (2000, p. 69), “acredito na história oral
precisamente porque ela pesquisa a memória de indivíduos como um desafio a essa memória
concentrada em mãos restritas e profissionais”. Isso implica, por exemplo, que ter acesso a
documentos que tratam da origem da Maravilha ou até mesmo a fotos que mostram como era a
Maravilha de antigamente jamais irão dar conta das intimidades, das relações, dos confrontos,
dos detalhes mais subjetivos ali presentes. O passado se faz vivo nas memórias dos mais velhos,
perceber como este passado é dito ou silenciado também faz parte da dinâmica da história
narrada.
41
As narrativas realizadas durante a imersão no campo refletem um interessante apanhado
de memórias. Estas que, a princípio, me levaram a desconstruir alguns pressupostos como a
imagem de um passado imerso, sobretudo, em sofrimentos. As entrevistas me revelaram a
narrativa de sofrimento, penúria, angústias, mas, ao mesmo tempo, revelaram saudades,
sentimento de conformação e, também, alegrias cotidianas. Durante o grupo, muito também
fora resgatado desse passado. O resgate por meio dos desenhos foi importante, inclusive, para
os moradores, como momento de pausa para sentar e refletir sobre o passado, o que nas
entrevistas, às vezes, aparece como “deixa eu pensar um pouco”, ou demanda que o
investigador aprofunde melhor as questões para conseguir mais informações. Com o desenho,
sem pressão ou tempo especificado para terminá-lo, as lembranças pareceram ter mais fluidez.
A realização da oficina com moradores, apesar de ter sido um momento rico de
interações, informações e observações, também experimentei algumas dificuldades. Numa roda
de discussão, me deparei com pessoas que falam mais e outras que não se manifestam. Houve
momentos em que precisei intermediar de forma mais enérgica para que pudesse escutar a
todos. Mas, para alguns, é difícil lidar com o expressar-se em público, mesmo que o público
seja só de conhecidos e bem restrito. Ou, ainda, acredita que o que tem para acrescentar já foi
falado antes ou não é importante. Por isso a necessidade de equilibrar grupos com entrevistas
individuais, para que ideias que não puderam ser exploradas coletivamenteassim pudessem
emergir nas entrevistas. Hélio Silva (2009), destaca a tensão existente entre observar e
participar, reter, memorizar e em seguida escrever o que se observou, se ouviu e sentiu.
Cardoso de Oliveira (1998), em O trabalho do antropólogo, reflete sobre atentar para três etapas
de apreensão dos fenômenos sociais que tanto passam irrefletidas para muitos pesquisadores e
profissionais: “o olhar, o ouvir e o escrever”. Ele destaca, deste modo, o quanto o trabalho de
campo necessita de olhar e escuta aguçados e curiosos e, desta forma, disciplinados. A pesquisa
requer que estes atos cognitivos estejam devidamente sensibilizados pela teoria, para que o
objeto de nossa investigação empírica sofra o que ainda Cardoso de Oliveira (idem) chama de
“refração”. Só aí é que o objeto começa a ser problematizado, na medida em que o modo de
visualizá-lo se altera. Em trabalho com grupos, tais faculdades citadas por Cardoso de Oliveira
precisam ser bem orientadas para um melhor aproveitamento das informações e construção de
insights. Ou seja, essa tensão do “olhar, ouvir e escrever” é um desafio ainda maior no trabalho
com grupos.
Por outro lado, somente a partir do encontro com essas pessoas no grupo pude ter maior
aproximação com moradores que até me convidaram para conhecer suas casas. A priori,
demonstrei interesse em visitar as casas de moradores que ficaram no último andar de um bloco,
42
pois já haviam me contado que grande parte dessas pessoas modificou a estrutura interna das
casas, construindo uma espécie de duplex no interior delas. Assunto que será atentamente
examinado no próximo capítulo.
Seja nos grupos, seja nas entrevistas ou nas idas para observar o campo, estava
acompanhada do meu diário de campo. Este concentra um tipo de escrita que como diria Booth,
Colomb e Williams (2008) faz parte da dimensão do “escrever para lembrar” e do “escrever
para entender”. Quando se está no campo ou ao retornar deste, o diário assume uma condição
central de espaço dos registros fulcrais. No diário, o pensamento ganha materialidade
juntamente com as observações e com tudo que os sentidos do pesquisador são capazes de
transformar em dizível. No entanto, o diário de campo não é ainda um “texto”, como bem
aborda Florence Weber (2009), ele por si só não se configura na pesquisa. Nem tudo que nele
consta é, inclusive, publicável. A autora citada trata de três dimensões que podem constar em
um diário, ou seja, este pode comportar a dimensão de diário de entrevista, diário de pesquisa
e diário íntimo. Exatamente nessas dimensões é que percebo o meu diário.
Meu diário de campo foi ferramenta fundamental para a realização desta pesquisa, já
que nele concentrei detalhes de observações, narrativas não ditas ao gravador e sentimentos
mais íntimos de percepções sobre o que não foi falado, mas pôde ser expressado de outras
formas. O diário acabou por ser, para mim, fonte indispensável do pré-textual. Muitas vezes,
recorri ao diário para me sentir novamente no campo, sugar as energias do universo ao qual
me propús a aprofundar, como em uma tentativa de retorno mais imediato àquele contexto. A
minha experiência em campo levou-me a concluir que o diário condensa aspectos objetivos de
“captura de dados”, mas também contribui subjetivamente ao demonstrar capacidade de me
por em movimento com o espírito da pesquisa. Espírito que considero de extrema relevância
em uma pesquisa de perfil mais etnográfico, ao levar-me para mobilizar esforços para dar conta
das nuances do ordinário na dinâmica do jogo da vida, conforme propõe Bourdieu (2014).
Esta tarefa de pesquisa exigiu-se muita atenção e vigilância cotidiana no campo para analisar
e problematizar, por exemplo, que a entrega de uma chave ou a troca de uma porta em um
conjunto habitacional, onde todas as casas são iguais, são atitudes que revelam mais do que o
simples ato possa parecer. Meu diário de campo possibilitou-se registrar nuances e peças de
um quebra cabeça que contribuiu para a montagem que, por meio da escrita desta dissertação,
espero ter conseguido efetivar.
43
2.3 O lugar dos interlocutores: um pouco de cada um (principais interlocutores desta
caminhada)
“Você pode me entrevistar quando quiser”. Foi, com felicidade, a frase que mais escutei
durante minhas participações ao grupo de idosos do programa Hiperdia16 da Unidade de Saúde.
Senti, de forma contundente, a disponibilidade das pessoas em contribuírem com a pesquisa.
Fiz o contato inicial no grupo, objetivando um convite para também conhecer as casas e, assim,
manter uma maior aproximação com os moradores. A estratégia deu certo. A partir daqueles
encontros fui conseguindo o contato “de uma e de outro” e o tão desejado convite para conhecer
suas casas.
Neste momento, quero traçar o perfil dos interlocutores que encontrei em minha
caminhada e tratar da contextualização do “lugar do interlocutor” na Maravilha e, assim, situá-
lo na pesquisa. Vale ressaltar que utilizarei nomes fictícios em toda a pesquisa para preservar o
sigilo das falas e fortalecer o comprometimento do interlocutor com suas narrativas. Os
interlocutores desta pesquisa são agentes sociais na comunidade. Eles atuam em um campo
social. Atuam agindo conforme as regras de um jogo, ora perdendo, ora ganhando, mas jogando
e interagindo em busca de afirmação do lugar que ocupam nessa estrutura social (BOURDIEU,
1998). Entendo esse “lugar” como posição social instigante para minha análise. Não há uma
posição única que me interesse, ao contrário, a diversidade em termos de ocupação, gênero,
faixa etária e histórias de vida em geral é o que tornou esta pesquisa rica. No entanto, o fator
moradia na comunidade, desde sua época de favelização, foi um critério central na definição
da interlocução. Interessou-me perceber as narrativas e interpretações pessoais da vivência de
um território favelizado e sua transição para um espaço submetido a um processo de
urbanização, conforme a lógica da gestão pública.
Nas minhas primeiras abordagens, entendi quando Goldenberg (2004, p. 32) ao referir-
se à metodologia qualitativa e suas diversas escolas como a fenomenologia e a etnometodologia,
retrata seus objetivos de “tentar ver o mundo através dos olhos dos atores sociais e dos sentidos
que eles atribuem aos objetos e as ações sociais que desenvolvem”. Tal afirmação me fez pensar
na importância de qualificar a pesquisa quando da escolha desses atores. E, ainda, refletir a
respeito da interação com o outro para que este se sinta interessado em revelar o que sente e
suas interpretações sobre o mundo. Mesmo sabendo que tive de lidar com “o que o indivíduo
deseja revelar, o que deseja ocultar e a imagem que quer projetar de si mesmo e de outros”
(GOLDENBERG, 2004, p.85).
16 Programa de acompanhamento de hipertensos e diabéticos, denominado assim de Hiperdia.
44
Becker (Op. Cit.), afirma que nenhuma técnica qualitativa mais aprofundada, como
biografias e histórias de vida, será capaz de apresentar o “retrato de si”, antes disso, apresenta
apenas uma versão do “retrato de si” selecionada pelo ator. O que não desacredita os achados
em campo porque faz parte do papel de análise do pesquisador o dito, o não dito, o figurado, o
enfatizado e o dramatizado. Geertz (2008) também enuncia sua atenção com as questões de
interlocução no campo, ao fazer funcionar categorias formuladas pelo psicanalista Heinz
Kohut:
Um conceito de “experiência próxima” é, mais ou menos, aquele que alguém – um paciente, um sujeito, em nosso caso um informante – usaria naturalmente e sem esforço para definir aquilo que seus semelhantes vêem, sentem, pensam, imaginam (...) Um conceito de “experiência distante” é aquele que especialistas de qualquer tipo – um analista, um pesquisador, um etnógrafo, ou até um padre ou um ideologista – utilizam para levar a cabo seus objetivos científicos, filosóficos ou práticos. “Amor” é um conceito de experiência próxima; “catexia em um objeto” de experiência distante. “Estratificação social” e, talvez para a maioria dos povos do mundo, “religião” (e certamente “sistema religioso”) são de experiência distante; “casta” e “nirvana” são de experiência próxima, pelo menos para hindus e budistas. (GEERTZ, 2008, p. 87)
O trecho acima instiga a atentar para os conceitos, formas de expressar e nominar
práticas e ações sociais que surgem a partir do lugar da experiência de vida. Diálogo interessante
para pensar o outro em seu contexto social e cultural. O próprio Geertz reforça o quanto é
essencial para antropólogos (aqui, entendo como todo e qualquer pesquisador que se dispõe a
estar em campo de pesquisa com o “outro”, o diferente) não se questionar sobre o tipo de
“constituição psíquica” que deve assumir para compreender o outro, mas, partir do significado
de ver as coisas do ponto de vista dos nativos. Isto não torna a questão mais fácil, contudo, em
suas palavras, a torna menos “misteriosa”. Esta compreensão fundamenta suas críticas a
Malinowski quando este entendia ser necessário pôr-se sob a pele do nativo para compreendê-
lo, como se para aproximar-se da realidade do outro fosse preciso viver exatamente como ele e
envolver-se nas mesmas práticas sociais do grupo estudado, ser “mais um deles”. O grande
desafio está em estabelecer uma conexão esclarecedora entre os conceitos de experiência
próxima e os de experiência distante. Tarefa extremamente delicada, porém, sem dúvida, menos
misteriosa do que colocar-se “embaixo da pele do outro”.
Em meio a estas configurações teóricas, tracei um roteiro de entrevista com perguntas
semiestruturadas e fui conquistar espaço para fazê-las. O mote da entrevista também foi, como
já expresso em outro momento, estratégia de aproximação e construção de vínculo com os
interlocutores. A primeira entrevista concretizada se deu a partir do contato com o grupo da
Unidade de Saúde, feita com dona Conceição. Uma senhora no auge de seus 92 anos. “Olha,
45
dona Conceição sabe de muita coisa, viu? ”, foi o que escutei de pronto da ACS que me
acompanhava. A senhora em questão marcou a entrevista em sua casa num dia de quarta-feira,
à tarde. Considerei que poderíamos entrar pelo horário da “merenda”, então levei um bolo para
contribuir com o lanche, na expectativa de assim ser convidada. A senhora me esperava como
prometido, mas precisei da ajuda da ACS para identificar sua casa – ainda estava aprendendo a
me situar no território. A casa ficava no térreo, como estabelecido no planejamento da
HABITAFOR, onde os idosos teriam a prioridade de moradias com maior acessibilidade. Ao
seu lado, residia uma ex-nora, dona Lúcia, o “ex” devido à morte do filho de dona Conceição,
casado com a senhora Lúcia, contudo, as duas mantinham ainda uma estreita relação de
parentesco. Com a presença de Lúcia, a entrevista, que seria realizada apenas com dona
Conceição, acabou por se transformar numa entrevista com as duas, sendo esta última a
protagonista da conversa.
Dona Conceição me recebeu em sua casa, uma das mais de 600 unidades habitacionais
entregues no plano de urbanização da comunidade. Uma casa simples. Ao entrar, deparei-me
logo com a cozinha no canto esquerdo, uma cozinha estreita, “estilo americana”, mas sem o
balcão. A cozinha ainda conserva a mesma estrutura e materiais desde a entrega da casa
construída pela Prefeitura. O que não acontece com outros cômodos que foram reformados pela
moradora, como a troca de piso, “reboco” das paredes, reforma do banheiro. Dona Conceição,
inclusive, destaca, em vários momentos, o seu desejo de colocar cerâmica e “ajeitar” sua
cozinha. “Ainda não pude porque só recebo um salário e tenho que comer e comprar meus
remédios”. A casa que conta também com dois quartos, um banheiro e a sala insere-se na planta
de menor tamanho, outras possuem três quartos. Por ser moradora do térreo, levou-me para um
espaço tal qual uma espécie de “varandinha” que seria o vão externo à sua residência, de
passagem para a próxima moradia. Um espaço em frente à sua porta de entrada que cabia,
perfeitamente, duas cadeiras e cuja brisa do vento o tornava mais agradável que a “quentura”
da casa. Ali, deram-se as minhas primeiras entrevistas.
Apesar da extensa idade, dona Conceição apresentou disposição para responder,
dedicadamente, a cada pergunta. Sem muito se alongar em suas respostas, ela logo queria saber
a próxima questão, “o que mais você quer saber? ”. Mas, não senti que seria alguma inquietude,
a senhora alimentava um tipo mais “objetivo”, mais “prático”, que pude perceber melhor com
a convivência no grupo e a observando no trato com as pessoas, principalmente com crianças,
não gostava de ser “incomodada” por estas. Um traço marcante de seu comportamento junto
com sua contraditória serenidade ao falar sobre as perdas e experiências sofridas na vida. Dona
Conceição já havia perdido dois filhos dos sete que tinha e o marido, em suas palavras, a
46
abandonara quando foram morar na comunidade. Fato que, segundo ela, não a “comoveu” tanto
já que este bebia muito e a agredia. Isso a levou a trabalhar “em casas de família” e a criar os
filhos, sozinha.
Minha mais idosa interlocutora reside na Maravilha há muitos anos, nem soube precisar,
talvez por volta de 50 anos, sendo, assim, uma das suas primeiras moradoras. Sua nora, dona
Lúcia, chegou depois e lembra muitos fatos marcantes de quando vivia no Surrão. Esta, quando
residente da Maravilha favelizada, sempre foi moradora da região surrada da comunidade. Aos
quase 60 anos de idade, relembra das várias enchentes e dos momentos de sufoco que passou
com a família. Esta interlocutora chegou até a entrevista sem ser convidada, mas se aproximou
de uma forma tão leve, educada, que acabou também como participante daquela interlocução.
As narrativas de vida, de acordo com Bertaux (2010), podem assim ser consideradas
desde que haja a forma narrativa em uma entrevista. Quando o sujeito se utiliza de tal processo
para relatar os conteúdos de suas experiências vividas, manifestando-se como um “contador”
de sua própria história, “diremos que existe algo de narrativa de vida”. Essas narrativas, como
analisa o autor, são atravessadas por mediações subjetivas e culturais, contudo, são intervenções
que não afetam a “estrutura diacrônica das situações, acontecimentos e ações que balizaram
esse percurso” (p. 52). Bertaux (idem) emprega uma metáfora interessante para a melhor
compreensão do universo que envolve as narrativas dos sujeitos: “seu ‘desenho’ está bem
restituído; por outro lado, a rememoração pode modificar retrospectivamente suas cores” (p.
52).
O que me interessa é perceber a singularidade sentida e narrada por cada interlocutor
com o objetivo de interconectar as histórias, como na feitura de uma grande teia. Em Bertaux
(2010, p.48), o autor assim descreve o que chamo de interconexão: “Relacionando-se vários
testemunhos sobre a experiência vivida de uma mesma situação social, por exemplo, será
possível superar suas singularidades para alcançar, por construção progressiva, uma
representação sociológica dos componentes sociais (coletivos) da situação”. Este autor afirma,
inclusive, de superação das singularidades, creio que para obter o que ele denomina por “núcleo
comum às experiências”. Significa, portanto, focar na dimensão social que as narrativas
reunidas carregam em si. A capacidade interpretativa e de análise do pesquisador é, aqui,
convocada a lançar-se sob o horizonte de narrativas e observações captadas em campo. A
intenção é organizar as experiências e trazer para apreciação os fatos e falas que marcam a
expressividade de um sujeito coletivo: os moradores da Maravilha. Sujeito que, ao expor seu
olhar sobre seu território, também oferece contribuições que encontram similaridades e ajudam
a compor um cenário global do “estar na cidade pós urbanização”.
47
Outra importante interlocutora que muito tem contribuído para pensar este cenário é
Dona Maria, senhora que já fora mencionada em outros momentos aqui. É uma agente que me
chamou bastante a atenção pelo sorriso fácil e pela disponibilidade em ceder à entrevista. Logo
percebi, no diálogo inicial, o quanto se sentia sozinha, “porque todos os meus vizinhos
trabalham o dia todo”, ela repetia. A senhora de 72 anos de idade é presença certa nos grupos
mensais do Posto de Saúde. Em sua rede de afetos, sugere, fortemente, a influência de seus
animais domésticos, dois cachorros. Ela fala de “Jolie” (o cachorro mais antigo em sua
companhia) como se referisse a um ser humano, com tamanha riqueza de sentimentos e
expressões que identifica no animal. “Jolie é meu companheiro”, relata ao contar sobre suas
tardes de passeio pela comunidade. Também credita seus momentos de “passar a tarde”, como
ela chama, e não ficar tão sozinha a existência de uma oficina mecânica na esquina de seu bloco
de apartamento. “Eles trazem mais movimento aqui pra rua e pra mim também”, fala
acompanhada de uma longa gargalhada. D. Maria reside, hoje, “do outro lado da BR”, no
conjunto Nossa Senhora de Fátima e foi ex-moradora do Surrão, na Maravilha.
Em busca de interlocutores masculinos, para diversificar meus achados em campo,
encontro-me com o Sr. João, de 87 anos. Um encontro provocado pelo acaso, já que esse senhor,
por problemas de locomoção, não vai ao grupo da Unidade de Saúde. Por ter diabetes, recebeu
uma rápida visita da ACS Ângela que lhe avisara de uma consulta. Como estava acompanhando
com Maria, perguntei se em um momento que lhe fosse propício, poderia entrevistá-lo para
minha pesquisa. O senhor respondeu positivamente e marcamos a entrevista em sua casa.
Seu João mora sozinho em seu apartamento, no térreo. Apesar de subir as escadas bem
esporadicamente – porque tem um filho que habita um apartamento no primeiro andar – não
teria condições de residir em um piso superior, pois, visivelmente, mostra todo seu esforço em
fazer o joelho “funcionar” em suas passadas. Ele conta que depois de anos de trabalho no
“roçado”, em Aratuba, interior do Ceará, adquiriu certas dores no joelho e deformidades nos
pés que o fazem travar uma luta diária para locomover-se. “Eu, às vezes, ainda vou andando até
a igreja, quando não, tenho um vizinho que tem pena e me leva até lá de carro, mas só vou se
ele oferecer, porque não quero atrapalhar a vida dos outros”, narra sobre suas idas à igreja
evangélica que se localiza na entrada da comunidade. Ele diz ser evangélico desde 1980, da
igreja Assembleia de Deus. Em muitos momentos de sua narrativa, refere-se a Deus e ao
“senhor Jesus”. Por exemplo, quando fala que “pediu a Deus um bom vizinho” e quando fala
da relação com a ex-mulher. Sobre a relação, deixa transparecer um término traumatizante ao
afirmar que a mulher o abandonou. “Ela me deixou e saiu inventando coisa ruim sobre mim,
que eu a maltratava, mas não era verdade”. Ele continua: “Sabe rumação de gente doida que
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não quer fazer a vida com a gente? ” E, mais uma vez, evoca Deus, “Nunca que eu voltaria pra
ela, só se Deus descesse na terra e me pedisse, aí eu voltava porque ele é o todo poderoso”.
Revelando que teve 13 filhos, assusta-me quando declara que só 4 “se criaram”. Dos 4
filhos, 3 homens e 1 mulher, apenas 1 deles não mora na Maravilha. Um filho, com sua mulher,
mora em no andar superior de sua casa e dá muito suporte na alimentação e apoio com a casa
de Seu João, assim como a vizinha da frente, que lava e passa suas roupas. Seu João também já
não enxerga muito bem. Por isso a ajuda ser tão bem-vinda. Igualmente, percebi que muito
bem-vindo é o carinho dos netos que lá se encontravam na hora da entrevista. O senhor se
reportava com muito afeto ao netinho mais novo e ele ao “vovô”. “Esse aqui, tem dia que desce
só pra pentear meu cabelo, fico todo descabelado”, fala em meio a um sorriso “derretido” pelo
neto. Por sinal, muito afetuoso comigo também.
A casa deste senhor foi a primeira que entrei e que ainda está como fora entregue pelo
Habitafor. Sem reboco nas paredes, sem piso de cerâmica, com as mesmas instalações, portas
e janelas. Percebi que seu João, como se justificando, falava-me que ainda não teve como
reformar a casa, mas que ainda ia fazer, se Deus lhe desse tempo de vida para tal. Sua casa,
assim como está, faz de seu João um ator interessante e pertinente para entender a cidade, ou
melhor, neste caso, a Maravilha em suas diversidades e significações distintas para cada sujeito
que a habita de maneira singular.
O trabalho de interlocução requer paciência e sensibilidade. Senti, inicialmente, que Seu
João não estava entendendo muito bem meu interesse em entrevistá-lo, em conhecer sua casa,
sua rotina. Ao se sentir receoso, fechou-se um pouco, não aprofundava suas percepções. Até
que conquistei sua confiança e disposição para falar mais abertamente. Ao final do nosso
encontro inicial – outros aconteceram – eu o agradeci e ele também me agradeceu. Uma gratidão
que vinha do “foi bom ser escutado também”. Para mim, como pesquisadora, houve uma certa
inquietude no processo de escrita, ocasião em que se revelou aquilo que me foi garantido em
confiança. Para citar Bourdieu (2008), quando da escrita do que compreendemos em campo, do
retorno para realizar a passagem do que foi dito para o refletido, “como de fato não experimentar
um sentimento de inquietação no momento de tornar públicas conversas privadas, confidências
recolhidas numa relação de confiança, que só se pode estabelecer na relação entre duas pessoas?
” (p.9).
Interessou-me diluir tal inquietação e tido em vista a feitura de uma pesquisa como
atividade racional e não uma “busca mística”. Como bem constata Bourdieu (2008), em A
Miséria do Mundo, as entrevistas apresentadas não são apenas estudos de casos como “espécies
de novelas”. Os pressupostos metodológicos e as análises teóricas estiveram presentes para a
49
adequada compreensão das entrevistas. O discurso oral, somado a toda linguagem já descrita
por Bourdieu como gestos, olhares, silêncios, entre outros, é que aqui se me apresentou, o que
Lahire (2004) denomina por um “indivíduo – objeto construído”. Definido como “uma
realidade social caracterizada por sua possível (provável) complexidade disposicional, que se
manifesta na diversidade dos domínios de práticas ou cenários nos quais esse indivíduo insere
suas ações” (p. 10). Lahire ainda acrescenta ao desenho desse indivíduo: “é o ‘depositário’ de
disposições de pensamento, sentimento e ação, que são produtos de suas experiências
socializadoras múltiplas, mais ou menos duradouras e intensas, em diversos grupos (dos
menores aos maiores) e em diferentes formas de relações sociais” (p.10). Dessa forma, como
morar, construir relações, agregar valores e fazer parte de sistemas classificatórios em uma
comunidade tida por favelizada e, hoje, urbanizada, pôde influenciar na construção dos
indivíduos, interlocutores desta pesquisa? Logicamente, esse é um aspecto da dimensão da vida
desses sujeitos que foquei a minha atenção. Contudo, tais sujeitos, em suas narrativas,
contemplam outras dimensões e manifestações que importam na medida em que me permitiu
apreender de maneira mais complexa esse “indivíduo – objeto”.
Outro interlocutor, sujeito partícipe desta pesquisa, que aqui apresento, é o Seu
Raimundo. Assim como sua esposa, Dona Joana. Esta participou da entrevista e, em vários
momentos, atravessava a fala do marido para contar seus causos ou “completar” o que o marido
deixou truncado, na opinião dela. O casal teve 9 filhos e perdeu um com 25 anos, de câncer,
tristeza aparentemente bem cicatrizada para eles. O início da conversa é marcado pela minha
curiosidade a respeito da chegada deles na Maravilha. Ela chegou primeiro e quando o
conheceu, levou-o para morar em sua casa, por volta de 1965, quando, de acordo com sua
narrativa, só existiam nove casas. “Era terreno a granel”, explica dona Joana.
Seu Raimundo participou do grupo que organizei na Associação de Moradores e se
mostrou disposto a me receber em sua casa. É um senhor que no alto de seus 71 anos ainda
conserva uma aparência jovial, um porte atlético. Dona Joana é 10 anos mais velha e,
inevitavelmente, fez questão de falar sobre a “história” deles. “Minha filha, esse homem era
muito bonito, no começo não queria me envolver com ele porque ele era um menino pra mim
(...) tinha medo de começar a ter menino e ele me deixar por outra mais nova”, foi uma de suas
primeiras falas, sob gargalhadas do marido. Ela continua: “eu era bem ajeitada quando ele me
arrumou, fiquei com ele porque ele insistiu muito (...) era muito novo”. Percebo que essa
preocupação marcou o início da vida dela com seu Raimundo e que, agora, parece ser
infundado. Os dois aparentam ter uma relação de muito companheirismo, ele preparava o
50
almoço quando cheguei e ela mesmo que “atravessando” suas falas, assim o fez solicitando com
carinho.
Seu Raimundo é aposentado por ter trabalhado como padeiro, inclusive foi em uma
padaria que ele conheceu Dona Joana. Apesar dela não ter conseguido se aposentar por tempo
de trabalho – trabalhava com afazeres domésticos em casas de famílias –, conseguiu o benefício
assistencial de prestação continuada (BPC), que lhe confere, mensalmente, a quantia de um
salário mínimo. Assim, os dois parecem manter uma vida financeira estável. A casa já fora
bastante modificada, a cerâmica do piso trocada mais de uma vez (a primeira destruiu-se por
conta de problemas na obra das casas), paredes rebocadas e pintadas, até uma janela fora trocada
por uma porta, modificando, consideravelmente, o projeto inicial da casa. O casal aproveitou e
construiu uma espécie de varanda na entrada da casa, colocou uma coberta, piso, e deixou o
“cantinho” aconchegante para receber as visitas. Estas que, aliás, não faltam. Das visitas que já
fiz por lá, há sempre alguém de passagem, um vizinho aposentado para sentar e colocar o papo
em dia, um “irmão” da igreja (são evangélicos há mais de 30 anos) para dar uma palavrinha,
parentes para dar apenas um “olá”, enfim, a casa está sempre de portas abertas. E isso,
literalmente, já que, atualmente, com duas portas e um “vento correndo solto”, o espaço tornou-
se apreciado por aqueles que fazem parte de sua rede de afetos.
Dona Joana se mostrou uma interlocutora muito colaborativa ao trazer suas lembranças
como se as tirasse de uma espécie de diário pessoal. Falas ricas em detalhes e entrega. Aqui,
neste ponto do texto, destaco a importância do “lugar” dessas falas, dos colaboradores desta
pesquisa. Bourdieu (2008) explica que as narrativas que descrevem uma história de vida
dependem da posição do agente num campo. Para exemplificar, o que um sujeito narra aos 50
anos sobre os primeiros 20 anos de sua vida é diferente do que relata aos 20 anos sobre sua
vida. Bourdieu, assim, passa pelo conceito de história de vida e introduz o de trajetória de vida,
que está articulado às categorias campo e habitus. Na sua concepção, a trajetória de vida é
linear, cronologicamente ordenada por eventos sucessivos, ou seja, em posições que foram
sucessivamente ocupadas pelo agente num campo. Por consequência, a narrativa do agente será
relacionalmente determinada dentro do campo, e sustentada em sua história passada,
acumulada, que orienta o perfil e a ação posterior da trajetória do indivíduo, ou seja, seu habitus.
Com o conceito de trajetórias de vida, Bourdieu polariza a discussão sobre narrativas de
vida elaborada por Bertaux. Em “trajetórias de vida”, o autor defende uma completa objetivação
dos dados. O que no artigo de Guérios (2011, p.12) será sintetizado a partir do entendimento de
que “a crítica de Bourdieu diz respeito justamente à ausência, nos estudos de história de vida
realizados por Bertaux e seus seguidores, de um esforço sociológico para situar a trajetória da
51
vida estudada frente às condições concretas de existência a ela subjacentes”. Aqui, disponho-
me não a construir, necessariamente, histórias ou trajetórias de vida, mas analisar sob uma
perspectiva compreensiva o que as narrativas e seu “poder” de reconstituição dos fatos e
expressão dos sentimentos têm para contribuir com determinada investigação. A partir da fala
dos moradores que, por hora, apresento e busco situar contextualmente – ou para Bourdieu,
significá-los, brevemente, em torno de suas trajetórias – intentei desfiar as transformações da
Maravilha “favela” para a Maravilha atual. As narrativas dos moradores encontram lugar de
prioridade nesta pesquisa, contudo, se somam às observações, aos documentos oficiais do
Habitafor, aos estudos anteriormente realizados no local, enfim, as narrativas se somam a outras
estratégias metodológicas que me levem a uma compreensão social a respeito do objeto
pesquisado.
Nestas narrativas se situa ainda a fala marcante da ACS Ana. A agente comunitária foi
minha guia na comunidade e, também, interlocutora da pesquisa. Por ter uma posição
privilegiada na Maravilha, já que é conhecida e respeitada por todos, pôde me proporcionar
uma entrada e acessos mais fáceis ao cotidiano dos moradores. Mas, igualmente, pôde
contribuir com o estudo por meio de seus relatos concedidos em entrevista e diálogos informais.
Ana tem 40 anos e reside na Maravilha há cerca de 15 anos, para onde mudou-se para viver
com o marido que já era morador da comunidade. Antes de se tornar trabalhadora da saúde, há
6 anos, trabalhou por quase 10 anos num projeto social, o Centro de Convivência Familiar –
CCF, ainda existente na Maravilha, local do meu contato inicial quando da tentativa de entrar
em campo. Ela narra que ajudou muita gente no período de enchentes, pois a CCF realizava um
trabalho de abrigamento e acolhida a essas pessoas: “Eu sempre morei naquela parte de cima,
então nunca sofri o que o pessoal lá de baixo passava”.
A agente de saúde acaba por se tornar uma referência na comunidade, é o canal mais
direto de comunicação entre os moradores e o Posto de Saúde. Essa experiência faz com que
Ana seja uma figura que conserva as histórias de vida de muitos moradores. Ela é conhecedora
das dores (principalmente por estar vinculada ao serviço de saúde), dos hábitos, muitas vezes
dos segredos (acabou por virar uma espécie de confessionário para alguns sujeitos mais
sozinhos), dos conflitos internos, ou seja, ela guarda chaves e cadeados e muito contribuiu no
direcionamento e escolha de meus interlocutores. Assim, cada interlocutor aqui mencionado
teve essencial participação na feitura desta pesquisa. O grande desafio que se apresentou esteve
na análise destas narrativas para uma compreensão sociológica de um fenômeno social. Afinal,
como as narrativas em torno da urbanização da Maravilha, a rememoração de uma vida anterior
52
a esse processo pode contribuir para desfiar não somente uma história particular de um
território, mas servir para pensar os fenômenos urbanos e os movimentos da vida na cidade.
53
3) CAPÍTULO 2: A CIDADE EM CONSTRUÇÃO: COMPREENDENDO POLÍTICAS,
COSTURANDO CONCEITOS
3.1 O oásis, a cidade
A reflexão sobre a cidade como “oásis” está presente na crença do consumo de um lugar
para além do suprimento das necessidades básicas de sobrevivência dos indivíduos. A cidade
como símbolo do moderno, do “avançado”, do extraordinário em direto contraste à vida
ordinária do campo, habita o universo dos sujeitos, travestindo-se de imaginário fortemente
retratado, por exemplo, na literatura e no cinema. Em um clássico como Vidas Secas, a título
de ilustração, Graciliano Ramos explora o íntimo de seus personagens, desnudando sentimentos
e desejos mais ocultos. Assim o faz ao retratar o desejo de Sinhá Vitória de comprar um “sapato
de salto alto para ir à cidade”. Naquele momento, a personagem necessitava sobreviver diante
de uma trágica situação de fome e seca no sertão, contudo necessitava, igualmente, alimentar a
alma com os sonhos e os sentidos que a vida citadina podia lhe oferecer.
Da mesma forma se expressa o menino Pacu, em Abril Despedaçado, quando se
reconhece como participante de uma espécie de “vida bolandeira”. Neste filme, o cotidiano
mecânico e tedioso, que se simboliza pelo eterno girar dos bois na bolandeira, parece sinalizar
um sentimento de “vida vazia” no menino e em seu irmão, Tonho. A cidade, por seu turno, com
o sugestivo nome de Ventura, é vivida como um espaço de possibilidades de descoberta, como
uma verdadeira “aventura”, abrigo e – ao mesmo tempo – estímulo para as inventividades dos
irmãos.
Longe de juízo de valores, o que pretendo aqui não é de forma alguma produzir ou
alimentar o universo dicotômico entre vida no campo versus vida na cidade, mas sim destacar
o marco do surgimento e ocupação das cidades sob o aspecto multidimensional que as evoca e
as compreende não somente como território inserido em uma lógica estruturalista do lugar do
trabalho, da subsistência. Faz-se pungente, assim, refletir sobre cidade a partir de uma dimensão
de espaço conquistado, sob uma perspectiva micrológica que também indica subjetividades no
habitar a cidade. A velha cantiga do “daqui não saio, daqui ninguém me tira” aplica-se muito
bem à discussão do território como conquista (seja legítima, em termos jurídicos, ou não, apenas
para adiantar algo que será tratado em outro momento deste texto), como fruto de resistência e
direito ao acesso às benfeitorias e oportunidades que tal lugar pode proporcionar aos seus
habitantes.
54
Nessa lógica, em um texto da obra Cidades Invisíveis, de Calvino (1990), deparei-me
com a cidade chamada “Anastácia”, trecho que me levou a pensar na “maravilha da descoberta
da cidade”. Ou seja, em como a cidade, a cultura urbana, os hábitos citadinos, podem alimentar
desejos para além da garantia de sobrevivência e de uma “vida mais digna”. Tal texto me
conduziu à aproximação com a gênese da comunidade Maravilha. Uma gênese que aponta para
a história da migração no Ceará. Mostra uma origem marcada pela chegada de migrantes do
interior do Estado e, de acordo com os jornais da época, pela fuga das secas e busca de
oportunidades que lhes faltavam. Contudo, o que percebo em minhas pesquisas neste campo é
o que Rios (2006) já anunciou, a atração do sertanejo para a vida na cidade não se encontra
apenas no fator seca e em seus desdobramentos econômicos. Acontecimentos da ordem da
expulsão somam-se aos da ordem do desejo, como também cita Santiago (2002, p. 117) “a
fascinação pelo exotismo e pelo soberbo da cultura urbana, a cidade como espaço possível da
concretização das necessidades sociais e dos desejos de reconhecimento pessoal e coletivo”.
“Eu sou da hidrolândia, minha família é de lá, eu sou do mato”, a fala de dona Joana
ilustra mesmo que simbolicamente o significado que a interlocutora agrega à sua vida no
interior. “Ser do mato” se faz expressão de uma vida sem muitas possibilidades. Ela relata que
sua vinda à cidade resultou em “vida nova”, em emprego, moradia e casamento, apesar de ter
um noivo em sua cidade natal, quando chegou em Fortaleza, os atrativos de se fixar na Capital,
sair “dos matos”, a fez constituir família e buscar residência na “cidade grande”. Os relatos
também figuram fatores subjetivos que associam à cidade o valor de refúgio, de vida autônoma,
como na fala de uma interlocutora antiga na comunidade: “Saí de Acaraú porque me envolvi
num causo lá, meu pai era muito ‘coisado’, e por isso fugi, mais minha irmã (...) em 1960, eu
vim morar aqui, nessa casinha aí. Tinha só 18 casas, os pessoal fazia de noite, a Base vinha e
derrubava”.
Assim, a ocupação ou invasão, e até mesmo a compra de casas já construídas pelos
chamados grileiros, na Maravilha, deram-se em um contexto de possibilidade viável de
permanecer na cidade. Uma Fortaleza no despontar da década de 1960, período no qual a capital
cearense já contava com diversas experiências do surgimento de favelas, de ocupações
coletivas. Muitas pessoas advindas das cidades do interior procuravam alojar-se em favelas
existentes ou partir para a criação de novas. Enquanto que o fluxo do deslocamento interno -
entre regiões, bairros e localidades - em Fortaleza também se fazia crescente, inclusive na
Maravilha, que passou a receber ex-moradores de outras favelas, como a do Lagamar17. O
17 Referida no Jornal O Povo de 17 de fevereiro de 1981 como “a maior de todas as favelas”, o Lagamar também estampa as páginas dos jornais, quase sempre, na sustentação de lugar violento e recôndito de perigosos. Segundo
55
decênio de 1960 entra, então, para a história com o incremento da população urbana da
metrópole de Fortaleza que registrou taxa de crescimento de 77% com relação ao decênio
anterior (BERNAL, 2004).
Muitos moradores limitam-se a afirmar que o terreno era da Base Aérea. Uma
interlocutora, conhecida por sua longa data neste território, descreve que a dificuldade de
permanência no local (devido às investidas da Base que insistia em desfazer os barracos
erguidos) só foi cessada com o apoio da “finada Olga”.
A finada Olga, mulher do Virgílio, foi quem foi lá, botou nós dentro dum caminhão réi, que era do lixo - era um caminhão de carroceria - num era esses carrão bonito que tem agora não, aí botou a gente lá, dezoito pesssoas que moravam aqui, as famílias, aí levou na Base, chegou lá e falou com o comandante. (Dona Antônia, em entrevista realizada em 2007)
Na verdade, Dona Antônia se refere à senhora Luíza Távora, primeira dama de Fortaleza
quando da eleição de seu marido Virgílo Távora para governador do Ceará (gestão de 1963 à
1966). A eternização de Luíza Távora como mulher destemida, desafiadora, não impede que
assinale a política assistencialista que aí se instalara, fincada em bases populistas pela
manutenção de um poder personalista. Baseada nesta perspectiva, que a interlocutora guarda
recordações daquela “bondosa” senhora que ajudou anascente comunidade: “Foi a finada Olga
que botou a gente aqui”. Não há menção a instituições ou a qualquer tipo de política social.
Tal ilustração é presente em diversas narrativas nos períodos que antecedem à intervenção mais
estruturada do poder público por meio do Habitafor. A assimilação de personagens
“salvadores”, a “quem se deve muito” na comunidade, faz parte dos relatos que habitam a
memória recente e antiga dos moradores. Figuram nomes que vão desde Luíza Távora e a
reconhecimento de religiosos, , como o padre Amorim, da paróquia do Bairro de Fátima e à
prefeita Luiziane Lins, personagem marcada em todos os momentos de pesquisa de campo
como “aquela que acreditou na gente”, como afirma Seu Raimundo ou “a única que fez essa
urbanização acontecer”, conforme expressão de Dona Maria.
As lembranças carregadas de personalismo apoiam a “costura” de histórias que contam
sobre a dinâmica do povoamento da cidade de Fortaleza. As chamadas migrações internas, ou
seja, constituídas por um movimento massivo de saída do campo para as grandes cidades, foi
fenômeno central, observado também na Maravilha, na construção de Fortaleza. Tal fenômeno
o documento do Estado do Ceará “As migrações para Fortaleza” (1967) sua fundação aponta para o ano de 1953, com a composição, principalmente, de migrantes oriundos do interior. O mesmo documento calcula uma estimativa de que em 1961 a favela já contasse com cerca de 800 habitantes.
56
é mundial. A migração no Brasil, por exemplo, é um fenômeno antigo, que assume maior
dimensão na história a partir da Revolução Industrial - iniciada no século XIX. Fato marcante
que envolveu o fortalecimento de um sistema econômico baseado no capital e que impeliu uma
drástica mudança no regime de produção. As conseqüências destas transformações apontam o
intenso crescimento da demanda, no País, por mão-de-obra barata. Inicialmente, representada
pelos imigrantes de diversas nações. Esta assertiva pode ser identificada nas discussões de
Fausto Brito (2006, p. 221):
No Segundo Império (1831-1840) até o final da República Velha, com a notável expansão da economia cafeeira e com o primeiro e expressivo surto de industrialização, ampliaram-se as relações mercantis entre as diferentes regiões brasileiras, até então meros arquipélagos regionais. Entretanto, as migrações internas não acompanhavam esse processo de integração, em razão dos expressivos fluxos de imigrantes internacionais. A imigração internacional era fortemente financiada pelo Estado e, desse modo, impunha limite à expansão dos deslocamentos populacionais internos.
No entanto, com o decorrer dos acontecimentos políticos e econômicos no País, esta
realidade assume outras dimensões. A partir do século XX, a velocidade do processo de
urbanização atinge dados alarmantes. Apenas na segunda metade desse século, segundo Brito
(2006, p.223), “a população urbana passou de 19 milhões para 138 milhões, multiplicando-se
7,3 vezes, com uma taxa média anual de crescimento de 4,1%”. Essa enorme transformação da
sociedade brasileira tinha como um dos seus principais vetores a grande expansão das
migrações internas. Elas se constituíam no elo maior entre as mudanças estruturais pelas quais
a sociedade e a economia passavam e a aceleração do processo de urbanização (BRITO, 2006).
Mas que sopros orientam o movimento entre campo-cidade? A seca, somada a outros
fatores de ordem econômica, é, geralmente, utilizada como alicerce da principal justificativa
das migrações sertanejas. Segundo Singer (1983), os fatores de expulsão que levam às
migrações são de duas ordens: fatores de mudança, cujo principal condicionante se expressa
nos avanços tecnológicos disseminados pelo campo, incidindo diretamente sobre a economia e
o trabalho na zona rural; fatores de estagnação, representados pelas insuficiências físicas de
subsistência, miséria e fortalecimento de uma estrutura social profundamente concentradora e
injusta. Firma-se, assim, uma região estagnada, resultante da deterioração das próprias
condições de vida.
Jucá (2003) também credita à instabilidade agrária - decorrente das secas e do sistema
latifundiário improdutivo, apoiado na concentração de terras - o aumento do fluxo migratório
para a capital Cearense. Todavia, a própria fragilidade da confiança no Estado para a resolução
57
destas problemáticas sócio-econômicas, que porventura respinga nas demais intituições de
âmbito civil e até eclesiástico também corrobora para este movimento de “bater em retirada”.
Visto que a seca, por um lado, aguça as lutas sociais obrigando a memória dominante a refazer-
se, por outro lado, ela é um dos acontecimentos em que se cristaliza o déficit de confiança no
Estado como instituição capaz de resolver os problemas ligados à questão da terra.
(SANTIAGO, 2002)
Não obstante os questionamentos explicitados, o que quero enfatizar é que a busca pela
cidade não é passível de ser explicada somente pelo clichê “instinto de sobrevivência”. Rios
(op. cit.), ao analisar os campos de concentração no Ceará durante a seca de 1932, revela a
preocupação do Estado com tamanho êxodo e super lotação da cidade de Fortaleza, avaliando
que a proporção da seca não justificaria exacerbada calamidade. O que fortalece os argumentos
iniciais de uma busca não apenas por sobreviver, por condições de resistir cotidianamente, mais
do que isso a cidade “chama” a vivê-la em sua cultura citadina. Remetendo-me, uma vez mais,
ao texto de Calvino, talvez seja possível melhor exemplificar o ponto aqui debatido:
A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez, que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo (CALVINO, 1990, p. 16).
Seja “enganosa”, como retrata a citação acima, seja lugar de satisfação, estamos diante
da cidade como lugar de “concretização do possível” para aqueles que a desejam. Daí lanço os
seguintes questionamentos: a “cidade”, assim referenciada, está de “portas abertas” para todos?
Como o Estado planeja e efetiva políticas públicas direcionadas para a questão urbana? De fato,
é assegurado a todos o direito à cidade como riqueza social em contraposição à sua
mercantilização? Estes questionamentos me remetem a uma problemática vivenciada e
observada em sua dinâmica nacional e figura, de forma concreta, no exemplo da comunidade
Maravilha. Contudo, antes de aprofundar estas questões, faço um percurso do contexto
estrutural mais específico da formação da cidade de Fortaleza, onde se encontra a Maravilha.
58
3.2 Compreendendo “o habitar” em Fortaleza: favelização da cidade
A década de 1930 desponta, na história de Fortaleza, acompanhada de um intenso
adensamento populacional nas periferias da Cidade. Como explanado no item anterior, a
migração interna - com seus diversos condicionantes - revela-se fenômeno primordial no
entendimento do crescimento urbano acelerado de Fortaleza. Na medida em que denuncia o
despreparo da estrutura urbana em absorver os novos moradores – seja com oportunidade de
trabalho, seja com garantia de moradia. Daí despontar como propulsor para a formação de suas
favelas. Segundo consta no Plano Diretor da Cidade, de março de 1969, a maioria dessas favelas
se constituíu a partir de 1930. Apesar da constatação do registro de casas dispersas no então
arraial Moura Brasil desde 1888, considerado “a mais antiga forma de pré-favelamento que a
cidade conheceu” (JUCÁ, 2003, p.48), os anos trinta do século passado foram o boom da
favelização da Cidade.
O final de 1931 já anuncia a chegada de migrantes, uma constante na história da Cidade
que tendeu a aumentar rigorosamente. É o movimento migratório agravado também pela seca
de 1932. À época, o interventor Carneiro de Mendonça, por meio da Inspetoria Federal de Obras
Contra a Seca (IFOCS) limitou-se, numa tentativa de engajamento e garantia da permanência
dos camponeses, praticamente ao alistamento de sertanejos para trabalhar na construção de
açudes e estradas, como demonstra Farias (1997). Este fato, entretanto, não foi suficiente para
evitar a chegada de grandes levas de retirantes a Fortaleza. De acordo com Rios (2006, p.11),
“As regiões mais atingidas pela seca aglomeravam nas suas estações de trem uma imensa
quantidade de famintos. Desses lugares, saíam todos os dias, locomotivas com vagões
completamente lotados”. Este quadro sofrido fora bastante explorado pelos jornais daquele ano,
ainda segundo Rios (idem, p.10), o jornal O Povo, do dia 13 de abril de 1932 ressaltava que
“Mais dois trens entulhados de famintos se dirigem a esta capital”. Eram homens, mulheres,
crianças e idosos, todos lançados à tensa disputa de uma oportunidade para se chegar à “cidade
grande”.
Ainda, conforme informações de Rios (2006), as autoridades, ante esta situação,
intervieram de forma a conter o ir e vir dos flagelados pela Cidade, que, na visão das elites,
levavam doenças, desordens e maus hábitos para onde iam. A prática de manter a cidade dos
ricos de Fortaleza afastada (ou parcialmente afastada) da miséria concretizou-se em frentes de
trabalho, em políticas de emigração para outros Estados e na construção de locais para o
aprisionamento dos flagelados. Nessa seca, o poder público isolou parte dos sertanejos em sete
59
Campos de Concentração, distribuídos em lugares estratégicos para garantir o encurralamento
de um maior número de retirantes. Os Campos de Concentração foram pensados como forma
de concentrar a pobreza. Uma estratégia encontrada pelo Estado no sentido de reprimir o avanço
e disseminação de mazelas entre a “distinta sociedade” urbana que, pouco a pouco, se
estabelecia. Não havia investimento em políticas públicas efetivas para o campo, muito menos
em políticas de habitação capazes de rediscutir o acesso desigual à terra, ao espaço urbano. As
autoridades agiam sob a argumentação de se com a mendicância em que se encontravam os
sertanejos, empurrando a “poeira” (a massa pauperizada) para debaixo do tapete. Ou melhor,
para os “acampamentos”, como eram apelidados pelo Governo da época os então Campos de
Concentração. Em contrapartida, chamados pelos sertanejos de Currais do Governo.
Paradoxalmente, os mesmos flagelados que não eram bem-vindos no cartão-postal de
Fortaleza participaram ativamente do processo de construção da Cidade - muitos representavam
uma mão de obra quase gratuita. Era a construção de um progresso urbano sob a intensa
utilização da mão-de-obra flagelada. Proveitos de uma seca que rendiam frutos. Isso quer dizer
que a intensa migração e o retrato social desolador que se formara, tão repugnados pelo poder
público e elite local, por hora assumiam o caráter de fonte de atração de recursos para o
embelezamento da Cidade. Em suma, a chamada migração desordenada, para o poder público
e os coronéis locais, era considerada uma certa “faca de dois gumes”: por um lado, era utilizada
para edificar esta nova cidade que se delineava, por outro, acarretava na necessidade de controle
dos flagelados para assim usufruir a cidade com “liberdade” (RIOS, 2006; JUCÁ, 2003;
SANTIAGO, 2002) .
Dessa forma, o ano de 1932 firma o significativo incremento da capital cearense,
refletido na reforma de ruas e edificações, melhoria e investimento em grandes obras - como as
estradas de ferro e o Porto de Fortaleza – que incidem diretamente no desenvolvimento do
comércio, da indústria, do turismo, enfim, da economia local. Na Gazeta de Notícias de 22 de
Junho de 1933 (APUD RIOS, 2006) é constatada que a cidade de Fortaleza convivia com uma
das maiores secas do século XX, entretanto, seus jornais não hesitavam em afirmar: “Fortaleza
é uma das capitais mais progressistas do Norte e quiçá do paiz inteiro” Esse exercício de
elevação da auto-estima e elaboração de uma identidade é explorado por Nogueira (2006, p.13)
nos seguintes termos:
Na região Nordeste, a velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical, belo e atrativo. Devido à limpeza urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza, ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com outros lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre.
60
Vale ratificar que esta “busca incansável” pela desconstrução de uma imagem para o
desenho de outra, todo esse processo de urbanização pelo qual passou Fortaleza, fora sempre
permeado por uma impactante exclusão social e segregação sócio-espacial. O que culminou,
assim, no adensamento populacional nas periferias. Tal fato valida uma realidade nacional. As
reformas urbanas, realizadas em diversas cidades brasileiras entre o final do século XIX e início
do século XX, lançaram as bases de um urbanismo moderno “à moda” da periferia. Realizavam-
se obras de saneamento básico para eliminação das epidemias, ao mesmo tempo em que se
promovia o embelezamento paisagístico e eram implantadas as bases legais para um mercado
imobiliário de corte capitalista. A população excluída desse processo era expulsa para os morros
e franjas da cidade (MARICATO, 2001). No caso de Fortaleza, neste referido interim, a
população era excluída para as faixas de terras litorâneas. A ocupação dessas, assim como a
invasão de áreas e regiões ambientalmente de risco para a moradia é fruto de um processo de
urbanização desigual e excludente, revelador do crescimento populacional de uma cidade sem
a devida ampliação relativa à infraestrutura urbana. Neste contexto, Silva (1992, p.33) traz
como destaque: “O homem do campo, que se desloca em busca de melhores condições de vida
na cidade, quando chega, é logo ‘expulso’ para as periferias urbanas, ficando numa situação
idêntica ou pior que a anterior”.
Silva (idem) argumenta que as condições precarizadas nas periferias acabam por se
configurar como única forma disponível de permanecer na cidade, diante das dificuldades de
emprego e renda encontradas pelos migrantes no ambiente urbano. Sendo assim, os anos de
1930 sinalizam o início da intensidade da ocupação de áreas com baixa valorização do solo. De
fato, a discutida “expulsão” para as periferias destina às populações pobres às áreas sujeitas à
inundação, mangues, dunas, morros, em suma, àquelas regiões de muita dificuldade de acesso,
fator que corrobora para a constituição de um contingente de excluídos do processo de
urbanização. Todavia, este processo de exclusão não se deu de forma homogênea e conforme a
lógica de expropriação e higienização da Cidade. Deste modo, ele não teve força suficiente
para impedir a “infiltraçãode parcelas dessa população, já carimbadas como exclusos, em áreas
reconhecidamente destinadas aos mais abastados da sociedade, como no caso da Maravilha que
está fincada em uma área de grande valorização mercadológica na Cidade.
A discussão da urbanização de Fortaleza, sobretudo a partir de 1960, se volta à
problemática dos “terrenos vazios”, alvos de constantes processos de ocupação e de problemas
para o Estado e proprietários, quando de particulares. A ocupação destas áreas desemboca no
empurra-empurra de assumir responsabilidades pela sua “tomada”. Daí surge o questionamento
61
público, simplista e reducionista da questão urbana: quem está contribuindo para este processo
de espraiamento das favelas e ocupações irregulares? Interrogação que tende a culpabilizar
aqueles que permitiram a invasão destes espaços, como se a problemática habitacional se
resolvesse com a política de “fixar muros”. Silva (1992, p.64) acrescenta: “em Fortaleza, ocorre
o que é dominante noutras cidades, porém, é também comum a localização de favelas em áreas
‘nobres’ e mesmo alhures, sem as tais dificuldades de acesso”.
Mesmo que os “casebres” também se encontrem incrustados nos lugares considerados
“nobres” da cidade, existe uma marcada segregação sócio-espacial. Essa confrontação foi
sempre presente na história de Fortaleza. Para o integrante da Central Única das Favelas - CUFA
(Ceará), Preto Zezé – em coluna, de 2008, escrita para o blog dapraianet.blogspot.com.br – o
que se verifica é um verdadeiro apartheid social: “Esse apartheid é o mesmo que garante a
derrubada dos barracos e destrói a natureza para construção de campos de golfe ou resorts”.
Este sentido de apartar também é o mesmo que permeia a historicidade de sustentação dos
pilares da “cidade-fortaleza”. A estratégia das elites de manter uma cidade bonita, moderna, de
espírito arrojado, com suas ruas “ladrilhadas”, impunha o necessário isolamento do que não era
bem quisto a esse público. Isolamento este que não é representado apenas pelo encarceramento
ou aprisionamento em si (a exemplo dos flagelados, dos leprosos, dos loucos), mas igualmente
pelo descaso, pelo não investimento em políticas públicas interessadas nas devidas questões
sociais que tanto se entremostraram - e se entremostram - neste processo urbano. Um descaso
que, da mesma forma, faz-se presente na preocupação exarcebada com a manutenção da ordem
e da estética urbana, “deixando-se como secundário o problema insolúvel da pobreza”,
conforme afirma Jucá (2003, p.50).
Neste movimento de isolamento, ou de distinção social, os espaços assumem suas
valorizações de acordo com a presença de seu público. Silva (1992) demonstra, por exemplo, o
grande investimento estrutural encontrado no bairro Aldeota por este ser a área urbana preferida
da burguesia. Outros são apontados pelo autor, que se refere, particularmente, à década de 1990,
como os bairros Meireles, Papicu, Praia de Iracema e o Bairro de Fátima. Anterior a atual
consolidação da Aldeota como centro residencial da “granfinada”, os bairros Benfica e
Jacarecanga eram conhecidos por abrigarem a aristocracia da Cidade. Duas grandes famílias
rivalizavam em ostentação: os Gentil, naquele, e os Filomeno, neste, com suas pomposas casas
copiadas de modelos europeus (JUCÁ, 2003). No entanto, o bairro do Jacarecanga, por
exemplo, em meados da década de cinqüenta do século passado, defronta-se com a migração
de sua burguesia. Isso se deve, principalmente, à dispersão de cada vez mais casebres pela
região, resultando no apontar para grande parte da sociedade de “uma favela a mais e uma praia
62
a menos”.
Segundo Santiago (2002), a mudança de residência das elites do bairro Jacarecanga, por
volta da segunda metade do século XX, imbrica, de um lado, na consolidação do Pirambu e, de
outro, na emergência do bairro Aldeota. Este fato deu o tom ao fortalecimento de um fenômeno
que só se intensificava mais e mais, o processo de distinção entre as camadas populares e a
segregação sócio-espacial de Fortaleza. As zonas residenciais apresentam pouca diferenciação
entre si, a não ser na Aldeota, Benfica, Damas, Fátima, Meireles e alguns trechos de outros
bairros que são de padrão mais elevado. No extremo oposto do Pirambu, Moura Brasil, Tauape,
Vila Aerolândia, Bom Futuro, Alto da Balança e partes de outros bairros concentram os padrões
mais baixos de edificações. (PLANO DIRETOR DA CIDADE DE FORTALEZA, 1969, p.21).
A favela denominada de Pirambu se fez território onde, outrora, firmava-se um Campo
de Concentração. Aspecto contribuinte para o aflorar das favelas principiadas por um mito: o
lugar da “concentração” da miséria, das doenças e da marginalidade. Maculando-se como
“brechas” de entrada nessa “Fortaleza” imponente, deslumbrante, cujas luzes abrilhantam um
caminho do “progresso”, da modernidade. Mas, refletem, também, o esforço por um isolamento
da pobreza, inspirando uma retranca em prol da manutenção dos privilégios de poucos. O
“passe-livre” para essa “Fortaleza” não está acessível a todos. Nas palavras de Bauman (2001,
p.113), “imponentes porque inacessíveis, estas duas qualidades que se complementam e
reforçam mutuamente”. Tal inacessibilidade é corroborada com a designação e caracterização
cada vez mais expressa dos territórios destinados aos excluídos do acesso à terra e renda na
cidade. Na realidade nacional, areias, porões, cortiços, mocambos, aglomerados subnormais,
subúrbios ou favelas são denominações que implicam em representações que, por vezes, se
intercruzam ao longo da história.
Muitos dos flagelados que chegavam a Fortaleza, por via férrea, acabavam sendo
despejados na parte da Cidade que se localizava mais próxima do mar, onde se encontravam as
últimas estações férreas. Como consequência, a maioria erguia seus casebres nas proximidades
da praia. Para Rios (2006, p.16) “Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição das
primeiras favelas de Fortaleza. Grandes favelas se transformaram em bairros e ainda hoje
permanecem às margens da fachada marítima.” Só que, anterior ao reconhecimento dessas
favelas, essas áreas de risco que vinham sendo, desde longo período, colonizadas – em sua
grande parte por migrantes - eram denominadas, peculiarmente, na cidade do sol, de “areias”
(NOGUEIRA, 2006).
A exemplo da referência acima citada, apresenta-se o bairro do Pirambu, considerado
um prolongamento do Arraial Moura Brasil , tanto territorial como no sofrimento do povo. O
63
Pirambu conta a história de luta de um povo, luta pela posse da terra, luta pela permanência de
seus casebres. Como observa Barreira (1992, p.56) “A luta pela permanência na área ocorre
desde o momento em que os moradores tentam se fixar à terra e resistem às investidas policiais
no sentido de impedir a construção de casas”.
Estão sendo ali construídos casebres e mais casebres, em propriedades privadas, sem plano, sem licença, sem nenhuma norma legal... até casas edificadas no espaço reservado às ruas... outras com os fundos para a frente, criando o mais sério e insolúvel problema para a higiene e estética locais... (O POVO APUD JUCÁ 2003, p.50).
Para Maricato (2003), o que define a favela é exatamente a relação de ilegalidade do
morador com a terra. Trata-se, para a autora, de áreas invadidas ou ocupadas, alternativa mais
comum - somada aos loteamentos - de moradia da maior parte da população urbana de renda
baixa e média baixa. Assim classifica-se o chamado aglomerado subnormal que, de acordo com
a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, é um conjunto constituído
por unidades habitacionais – barracos e/ou casas - ocupando ou tendo ocupado, até período
recente, terrenos de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma
desordenada e densa. Em sua maioria, carentes de serviços públicos essenciais. Contudo,
entendo que essa noção - por se restringir aos aspectos meramente físicos e legais de
assentamento - não seja possível de captar a favela em suas dimensões sociais, perdendo de
vista as relações, o movimento que ali se constitui, o que tendencia, sobretudo, a uma
homogeneização territorial. Na Maravilha, os moradores mais antigos que, em sua grande
maioria, compraram casas e terrenos de grileiros, reconhecem que o território é fruto de
ocupação, mas que possuem mais direitos que os moradores mais recentes. Justificam que
compraram e tiveram condições de melhorar suas moradias em oposição aos mais recentes que,
inclusive, por chegarem depois, tiveram que invadir e habitar áreas mais insalubres e em
condições mais precárias, como observado nas falas abaixo:
Porque eles já vêm duma precaridade aí chega e fazem um barraco, não tão nem aí. Já a gente não, você vê que quando eu peguei essa casa aqui, eu não peguei ela desse jeito, eu fui ajeitando, aos poucos, com o meu suor, né. E eles não tão nem aí, eles chegam, fazem e ficam e é dali pra pior. A gente, não, já tem uma estrutura melhor e quer uma coisinha melhor pro lado da gente, né (Moradora da “zona nobre ou setor I” da Maravilha em entrevista concedida em 2008).
...a Maravilha antiga é essa daqui, essa daí é a Maravilha que veio depois. Em 71 ou 72 o pessoal começaram a invadir o terreno, começaram a fazer barracos
64
e barracos. A gente comprou a casa, né, minha filha. Minha irmã chorava muito porque não tinha onde a gente botar nada, só era três compartimento, era aquele clima bem desagradável. Hoje, minha casa tem dez compartimento, contando com banheiro, dispensa e tudo (Moradora da “zona nobre ou setor I” da Maravilha em entrevista concedida em 2008).
De acordo com o documento do Governo do Esatado do Ceará intulado As Migrações
para Fortaleza, de 1967, no contexto da favelização de Fortaleza, seguido do Pirambu, de 1930
a meados de 1950, emergem as favelas do Cercado do Zé Padre, do Mucuripe, do Morro do
Ouro, da Varjota, do Meireles, do Papoquinho, do Campo do América e do Lagamar. Só por
volta dos anos 1960, como dito em outro momento, temos os primeiros registros do surgimento
da favela Maravilha, o qual se dá em tempos marcados pela insurgência dos movimentos
reivindicativos urbanos. O “erigir” da Maravilha acontece num período em que se constitui uma
nova etapa da favelização da Cidade, a dos embates por melhores condições, representados,
sobretudo, pela cobrança de equipamentos sociais urbanos em áreas precarizadas. Assim, a
construção da Maravilha se insere numa ordem política onde as reivindicações fazem-se
elementos fundamentais pela busca do fincar-se e, ainda, dignamente, quando surgem as
discussões em torno da cidadania e dos direitos sociais. Em suma, para estes “núcleos de
pobres”, o que se tornava emergente era a luta, como diz Santiago (2002, p.127), pelo
“reconhecimento, pela integração espacial e pela inserção social de seus moradores.”
Apesar do investimento em políticas de contenção, seja pelo uso da força institucional
ou pela disseminação de uma “ideologia da marginalização” – que buscou, veemente, impedir
a livre circulação dos pobres pela cidade – o Estado não pôde conter a propagação das favelas.
Nesta perspectiva, as favelas concorrem para a conclusão de que o espaço urbano se constrói
muito mais pelos embates políticos e conflitos do que pelo próprio planejamento idealizado. É
constatatdo que as autoridades estão sempre se munindo de planos e mais planos, os quais
primam pela ordenação e pelo desenvolvimento “adequado” da cidade. No entanto, a busca pela
territorialização que implica numa forma estratégica de inserção – e o pobre nem sempre ocupa
o espaço previsto – e usufruto das benesses oferecidas pela região, associada à lógica da
disputa, do confronto, impele às autoridades constantes remodelações de seus planos. Campos
(2005) traz à tona este campo de confrontação ao retratar a realidade do Rio de Janeiro.
Suscetível de ser aplicada a tantas outras realidades, como possível de se inferir da citação que
se segue:
As estratégias de sobrevivência e também de resistência que foram desenvolvidas pelas massas pobres, seja nos cortiços localizados na área central da cidade, seja nas favelas (espaços contemporâneos), em face das
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várias intervenções do Estado, colocaram-nas sempre em condição de conflitos eminentes com o poder público... A apropriação do espaço pelos mais pobres, segundo o entendimento de diversos autores conservadores, era (e é) considerada como uma transgressão ao ordenamento do solo urbano (CAMPOS, 2005, p.22)
Em consonância com este contexto, é possível admitir, como faz Campos (2005, p.24)
“que as populações pobres, através de suas apropriações dos espaços periurbanos, ilegais à luz
do poder público, participaram da construção do espaço urbano das cidades.” Construções que
não foram homogêneas em todo o Brasil. Estabelecido um paralelo entre Fortaleza e Rio de
Janeiro (berço da problematização social da favela), é possível captar momentos históricos
distintos bem como influências particulares. Ao refletir sobre o Rio de Janeiro, dá-se o encontro
com a terminologia do termo favela. Muitos estudiosos explicam a categorização deste termo
construído historicamente que, no âmbito social, se enche de sentido a partir da Guerra de
Canudos.
O termo favela referenciava o nome de uma planta, um arbusto, mais precisamente,
conhecido cientificamente como Jathopha Phyllacontha. Berenstein (2003, p.105) faz um
trocadilho para ilustrar o que concluiu dessa definição: “As favelas, no entanto, se desenvolvem
mais como o mato que brota nos terrenos baldios. Os abrigos das favelas ocupam um terreno
vazio da mesma forma que o mato que nasce discretamente nas bordas e logo acaba ocupando
a totalidade do terreno.” Somente com o episódio de Canudos é que a favela (planta) adquire
novo sentido, como relata Oricchio (2003, p.122):
Durante o cerco de Canudos, a parte do acampamento militar reservada aos soldados rasos situava-se no morro da Favela - que tinha esse nome porque lá havia muito da planta chamada favela. Depois do fim da guerra, os soldados voltaram ao Rio de Janeiro e ganharam como prêmio terrenos para construir suas casinhas. Esses terrenos, situados em lugar de baixo valor imobiliário, nos morros cariocas, foram espontaneamente batizados de morro da favela. O que era nome de planta sofre deslocamento semântico para designar o conjunto de habitações modestas, moradia de gente pobre, que fica fora da cidade, nos morros que a circunda, ou na sua periferia.
A origem semântica da favela também se encontra no trabalho de Valladares (2000), no
qual a autora reafirma Oricchio, ao constatar que no final do século XIX, o Morro da
Providência, no Rio de Janeiro, assume a denominação de Morro da Favella, logo após a
ocupação deste pelos combatentes de Canudos. A incorporação e generalização do uso da
palavra favela em nível nacional advém da visibilidade dos morros cariocas. Valladares - em
seu retrospecto da favela como problema social no Rio de Janeiro - credita ao tratamento
estatístico da categoria “favela” (instituído pelo IBGE), por volta de 1950, essa incorporação,
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passando progressivamente de uma categoria local a uma categoria nacional. Porém, na capital
cearense, no despertar dos anos trinta do século passado, já se tem rumores do uso da
denominação favela, com a Favela Cearense Moura Brasil (JUCÁ, 2003). Antecedente às
particularidades regionais do processo de favelização, Maricato (2001) conduz uma explanação
mais ampla que possibilita inferência às raízes da questão habitacional. Esta autora elucida a
tragédia urbana brasileira, que se constituiu ao longo de cinco séculos de sua formação social,
balizada, especialmente, na privatização da terra (1850) e emergência do trabalho livre (1888)18.
A primeira atenta quanto à discussão aqui delineada acerca da segregação sócio-espacial, pois
remete ao histórico da concentração fundiária no Brasil a partir do poder de propriedade e do
consumo da terra. Ainda segundo Campos (2005, p.20), “A concentração de terra ganha
significado preocupante no sentido de que foi em sua esteira que se formaram as maiores
fortunas do País, além desse fato, ao impedir que milhares de brasileiros tivessem acesso a parte
das terras”. O que possibilitou a existência de “sobras” que poderiam se destinar ao imenso
restante de miseráveis da sociedade, excluindo e isolando essa população do acesso legal ou de
áreas de seu interesse.
No que concerne à emergência do trabalho livre como influência na instituição de uma
tragédia habitacional urbana, Maricato (2003) faz referência ao não provimento das
necessidades básicas do trabalhador pelo mercado, seriam itens de subsistência como a própria
moradia. A fragilidade da chamada reprodução da força de trabalho incidiu na transformação
da habitação em mais um item no mercado de consumo, contribuindo para a crise habitacional
de âmbito nacional.
“Favelizando”, pois, este o percurso, fenômenos regionais possibilitam analisar, ou
traçar um paralelo, a respeito da origem da favela não apenas semanticamente. Em Fortaleza,
como vem sendo trabalhado aqui, e reafirmado por inbtermédio do Plano Diretor da Cidade
(1969), a migração contínua - do interior para a cidade - é o grande propulsor do súbito
crescimento populacional, o que revela o não abarcamento da economia regional de tamanha
mão-de-obra oriunda do campo. Esse agravamento da exclusão produtiva e social incide
diretamente no campo habitacional, na formação das favelas: “seus habitantes são, em sua
maioria, migrantes do interior, que a migração seja recente ou remota” (1969, p.33). No caso
de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, a instalação das fábricas produziu o incisivo
chamamento da população para as cidades, determinando um novo tipo de trabalhador: o
operário fabril. Daí se originam as habitações coletivas, conhecidas como cortiços, porões, ou
18 Para maior aprofundamento desta questão, cf. Faoro, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.
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casas de cômodos. Logo a intervenção pública incidiu sob essas habitações coletivas, em meio
aos princípios higienistas que vigoravam na primeira República (VALLADARES, 2000). Com
a retirada dos moradores do pólo central, área valorizada, onde se encontravam as
oportunidades de emprego, as encostas ou morros começam a ser povoados. Além da forte
presença de negros (escravos alforriados) que advinham dos cortiços e outros, remanescentes
da Guerra do Paraguai e de Canudos, situavam-se naqueles espaços quilombos urbanos. Os
mocambos, como eram endogenamente denominados os quilombos, perpetuaram-se como
espaço de luta, de resistência ao sistema escravocrata. Após a Abolição, transmutaram-se em
favelas, entretanto, sem perder sua função primeira de resistência (CAMPOS, 2005). Portanto,
reportando-se para o contexto atual, a favela resiste. Demonstra esta resistência quando seus
sujeitos lutam para permanecer nos locais “escolhidos” para moradia, quando emergem no seio
do espaço das elites, quando confrontam a ordem e a estética urbanas.
Além de um espaço maculado, os moradores da favela carregam consigo aquilo que
Valladares (1980) destaca como “mito de origem”. Nos morros cariocas, a título de ilustração,
emblemam o estigma e a discriminação étnica e social, são os filhos dos ex-escravos. Assim,
os estigmas vividos hoje pela população favelada são anteriores à existência da própria favela.
Em Fortaleza, a favela constituída por migrantes, os mesmos que, outrora, foram destinados aos
Campos de Concentração por serem ameaçadores a ordem imposta, miseráveis, sujos,
promíscuos, transmissores de doenças. Resumidos assim pelo Plano Diretor da Cidade (1969,
p??): “Tratam-se de pessoas dotadas de poucas aptidões, criados geralmente na lavoura... daí
criarem para a cidade graves problemas sociais de mendicância, prostituição, infância
abandonada, delinqüência e ‘favelização’”. Os mitos que pairam sob a favela são responsáveis
por gerar dualidades e determinismos cristalizados, disseminados sem nenhuma reflexão,
acabam produzindo representações contundentes no imaginário de muitos. Anthony Leeds e
Elisabeth Leeds discutem alguns destes mitos.
Os moradores têm uma organização social e valores altamente rurais e são desajeitados (...) e não familiarizados com os modos de vida da cidade, muito embora sejam essencialmente voltados para o futuro e desejosos de progredir ou, por outro lado, que são pessoas que não desejam trabalhar, são assassinos, ladrões, marginais e prostitutas e são imediatistas, com pouca preocupação com o futuro (LEEDS e LEEDS, 1978, p. 86).
Zaluar também valida a questão das mitificações que rondam o universo da pobreza e
favelização da cidade:
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Desconhecemos o que lá se passa, embora nossa fértil imaginação o faça, desde logo, um antro de banditismo, violência, sujeira, imoralidade, prosmicuidade, etc. Duplamente excluídos por serem “outros” e por serem “incultos” e “perigosos”, os pobres urbanos vivem, neste olhar etnocêntrico e homogeneizador, o avesso da civilização. (ZALUAR, 1994, p.12)
Já a criação de um universo dual pode ser constatada, por exemplo, por meio de
observações relativas ao cinema brasileiro. Neste, a favela é possível de ser o inferno do crime,
como em Cidade de Deus, ou um lugar em que boa parte da população é formada por gente
pobre, honesta, trabalhadora e esperançosa, como em Uma Onda no Ar (ORICCHIO, 2003). O
desafio de superar uma abordagem dual e um olhar impregnado de dogmas, homogeneizador,
lança o propósito de entendimento de uma lógica que se mostra em suas relações de poder,
estratégias e táticas (CERTEAU, 1994): a lógica da favela, que não pode ser reduzida ao
esgotamento da pura anomia social, organismo estranho ou cidade informal.
3.3 Políticas públicas de habitação
Ao tomar a Maravilha, espaço de recente “urbanização”, mas que durante cerca de 50
anos fora identificada por território favelizado – cujas implicações sociais da experiência vivida
e das construções em torno da relação favelização versus urbanização, apresento no próximo
capítulo –, temos em Veena Das e Deborah Poole (2008) a perspectiva social acerca da cidade
tencionada a partir da configuração de “margens”. A teoria das margens proporciona um
panorama excepcional para compreender o Estado e sua reprodução. A tese apresentada por
referidas autoras é a de que as margens são necessárias ao Estado e convidam a repensar os
limites entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal. As margens espaciais e sociais
são contempladas como lugares de desordem nas quais o Estado tem sido incapaz de impor sua
ordem. Sendo assim, refletir sobre as margens não é refletir sobre áreas periféricas, mas sim
sobre territórios “esquecidos” e, ao mesmo tempo, sob o estabelecimento tácito de códigos de
conduta, normas e imposições em contradição ao Estado hegemônico.
À luz dos estudos das margens, é possível compreender o jogo da presença e não
presença do Estado na Maravilha, o desenrolar entre estratégias e táticas (CERTEAU, 1994), o
sentimento de fazer ou não parte de uma cidade dita legal. Muito escutei sobre as contingências
impostas pelo Estado, representado pela figura da Habitafor, e sobre as astúcias empregadas
pelos moradores para driblar tais contingências. “Eles dizem que não se pode mexer nas
estruturas dos apartamentos, mas tem gente que já fez até duplex lá dentro”, a fala é de uma
moradora, ilustração emblamática para mostrar como as práticas se estabelecem no cotidiano
69
dos moradores. A menção ainda de não fiscalização da Habitafor desde que as unidades
habitacionais foram “entregues” reforça nos moradores o sentimento de esquecimento do poder
público. Na fala de muitos, por não haver a instituição da fiscalização dos spróprios agentes
governamentais, as regras de convivência acabam sendo geridas e construídas no jogo de forças
entre os moradores, cotidianamente, a exemplo do que narra uma das moradoras entrevistadas
pela pesquisa: “Não gosto que as pessoas mudam tudo, fica tudo desorganizado, feio e a
Prefeitura não fiscaliza isso”19. Assim também se expressa outro interlocutor – acreditando na
ausência do Estado desde a origem da comunidade e que se sustenta nos dias atuais – que apesar
de não ser morador do território, trabalha na Unidade de Saúde responsável por assistir a
população local:
Aqui no terreno da Maravilha aconteceu o mesmo que na UFC20, não tinha dono é para deixar o povo morar mesmo (…) mas era para o governo organizar a ocupação, como acontece na Alemanha que é tudo organizado. Estive na Alemanha ano passado e lá o governo é forte. Aqui, as pessoas fazem o que quiserem (ACS da Unidade de Saúde que assiste a Maravilha)
Assim, refletir a respeito das experiências da e na Maravilha significa, necessariamente,
analisar o lugar do Estado na configuração das relações e dos processos de entendimento,
planejamento e realização os processos de urbanização desenvolvidos. A urbanização
apresentou-se, então, como fenômeno primeiro e pontapé inicial na formulação das questões
de investigação desta pesquisa. É a partir da concretização deste fenômeno que inicio minha
caminhada de estranhamento e construção do objeto de estudo em si. Contudo, tal fenômeno é
apenas um elemento de constituição da compreensão sobre a vida na cidade. Meu olhar se volta,
nesse momento, às compreensões sobre a vida citadina em um território hoje urbanizado, antes
incorporado como favela, que se encontra sob uma perspectiva mais ampla, nos estudos sobre
as cidades. As cidades, como discutido por Magnani (2009), mais do que um “mero cenário”, é
uma estrutura estruturada e estruturante a partir de interações, trocas e confitos.
As análises sobre as cidades e seus modos de vida possuem uma larga trajetória. Em
Simmel (1979), que experimentou as “transformações socioespacias geradas pela Revolução
Industrial”, é possível notar a mobilização de reflexões cujas motivações giravam em torno da
compreensão das singularidades do “urbano”, algo intimamente ligado ao contexto da
19Agente Comunitária de Saúde – ACS e atualmente moradora do Conjunto Nossa Senhora de Fátima, antiga moradora do Surrão. 20 Referindo-se à Universidade Federal do Ceará que, na lógica do ACS, por ter um terreno extenso e “sem dono” (na verdade, é um terreno da União) foi legitimamente ocupado e muitas famílias ainda residem no Campus conhecido por Pici. É possível observar que muitas casas foram construídas e permanecem há anos cercadas pelos muros da Universidade.
70
“modernidade”. O surgimento das metrópoles industriais, as transformações urbanísticas, o
incremento populacional, as relações entre os sujeitos habitantes das metrópoles – baseadas no
anonimato, na impessoalidade e na cultura mediada pelo dinheiro–, assim como o
“comportamento blasé”, foram algumas das temáticas que figuraram o pensamento do
sociólogo alemão.
Sobretudo a partir da década de 1910, percebo também a emergência de outro conjunto
de reflexões determinante no que tange à trajetória mencionada. Refiro-me ao aparecimento,
nos Estados Unidos, da Escola de Chicago21, considerada a primeira a tomar, efetivamente, a
cidade como laboratório de análise social. Noções como a de “cultura urbana” e,
posteriormente, de “urbanismo como modo de vida” e “processos de urbanização” foram
centrais para tal Escola, que ainda trabalhou sob uma perspectiva pragmática de intervenção
social, buscando atuar sobre aquilo que denominava de “problemas urbanos”. Esse caráter de
intervenção, é importante ressaltar, motivou críticas variadas ao trabalho da Escola de Chicago
e a despeito de seu já citado pioneirismo no que concerne aos estudos urbanos, sendo ela
enquadrada sob uma lógica teórica marcadamente positivista.
No entanto, a interlocução com essas referências primeiras é algo que considero
interessante para a contextualização desta pesquisa. Com Simmel (1979), sobretudo, é possível
pensar a importância das interações entre os sujeitos para a constituição do mundo social,
deslizando, portanto, a idéia de que ele apresenta-se como um dado, como algo já construído.
De forma mais específica - além de suas discussões sobre a “vida mental” na metrópole,
marcada pela expansão de círculos de relação, pelo estabelecimento de múltiplas conexões e,
igualmente, por uma individualidade crescente derivada da “ocasião” e “necessidade” de uma
maior divisão do trabalho - o conceito de sociabilidade apresenta-se como uma rica ferramenta
teórica. Simmel sinaliza para uma abordagem que não se pretende harmônica, considerando o
conflito, a rivalidade e a negociação entre os sujeitos, por exemplo, tanto quanto suas relações
lúdicas ou de solidariedade.
O conflito é um dos elementos que explicam a produção da vida social, para além de
sua reprodução. Constitui-se como princípio de transformação, estruturante das interações
sociais. A interação dos sujeitos entre si e com a sociedade é, então, o que o autor denomina de
sociação. Ao discutir essa categoria, Simmel me chama a atenção para o entendimento da vida
21Para Frúgoli Júnior (2005), três pesquisadores merecem destaque no que se refere à Escola de Chicago, são eles: Robert Park, que tomou a cidade como uma verdadeiro campo de investigação da vida social; Louis Wirth, que desenvolveu o conceito de “urbanismo” enquanto “modo de vida” e; Robert Redfield, antropólogo importante para o estabelecimento de “estudos de comunidade” devido ao seus interesse por pequenas localidades.
71
social em constante movimento, “em cooperação”. É na relação dos sujeitos entre si, para com
os outros e contra os outros que se encontra a unidade social, o processo de sociação, de onde
a sociedade se faz produto. A sociedade só é possível como resultante das ações e reações dos
indivíduos entre si, ela é um “acontecer” (SIMMEL, 1979).
A Maravilha como espaço de interações emerge como e campo legítimo da possibilidade
de se aprofundar naquilo que Simmel caracteriza por “poros da cidade”. A “porosidade” da
cidade remete-se ao contexto microsociólogico onde os afetos dos sujeitos engendram a
tessitura urbana e onde estes também se deixam tomar pelo espírito da metrópole, numa espécie
de sintonia dialógica. Dialogismo permeado de constantes dualidades – segredo e revelação,
atração e repulsão, forma e contéudo –, onde objetividade e subjetividade se estabelecem como
estruturas estruturadas e estruturantes, para citar Bourdieu (2014). Mais do que isso, o estudo
dos “poros” reflete o objetivo de se voltar para a “respiração” social (SIMMEL, 1979), um olhar
que permite perceber o mundo social de dentro para fora, maturado na “cultivação” da vida em
seu dia a dia. A dinâmica da sociedade apresentada por Simmel mostra que ela se exprime muito
mais como um “todo caótico”, ou seja, um campo de multi-interações.
A essas reflexões pioneiras sobre a cidade, e o viver na cidade, somam-se interlocuções
teóricas mais contemporâneas, merecendo destaque a que toma o trabalho de Michel Agier
(2011) como referência. Para ele, a cidade não pode ser concebida como uma entidade, mesmo
raciocínio devendo dirigir-se a seus bairros e localidades. Fora desse padrão de “evidência” do
urbano, , apresenta-se um fenômeno que é recheado de ambiguidades e tensões, e que por isso
mesmo configura-se como um verdadeiro desafio prático e teórico para o pesquisador. A
indicação de Agier para o enfrentamento deste desafio localiza-se na substituição de uma
pergunta que, por vezes, parece fundamentar ou resumir os interesses de pesquisa: em vez de
indagar “o que é ?”, sugere o autor, talvez possamos perguntar “o que faz?”.
Assim, formular perguntas nos termos de “o que faz a cidade?” ou, no que respeita a
esta investigação, “o que faz a Maravilha?” tem como consequência proceder reflexivamente
desconstruindo noções de essência ou norma: o que interessa é o “processo humano e vivo” que
confere tonalidade “relacional e situacional” a uma cidade ou lugar. Ora, essa posição de
centralidade ocupada pelo “processo humano” implica a admissão das localidades como algo
vívido e imprevisível, das localidades como tributárias das relações entre os sujeitos que as
habitam. É esse movimento, que parte da própria atuação dos moradores em relação ao seu
lugar (atuações concretas – como na organização social do espaço –, ou simbólicas, como nas
atividades de classificação moral de grupos de sujeitos ou mesmo de outros lugares que
72
pertencem àquela favela/comunidade), o que se constituiu como minha principal matéria de
interesse no processo de pesquisa realizado.
Por outro lado, ao pensar a cidade a partir do paradigma da ocupação desordenada, da
constituição de espaços favelizados, da desigualdade de acesso às benesses que esta possa
oferecer aos sujeitos, da produção de exclusão social e estigmatizações, inevitavelmente,
adentro em um campo de discussão permeado pela noção de atuação do Estado e de políticas
públicas. Discutir acerca do “fincar-se na cidade”, como também fora trabalhado neste primeiro
momento, traz implicações relevantes para se pensar o fazer das políticas públicas. Políticas
que engendram intereções das mais diversas com os sujeitos, seja de aprovação e apoio em
partes, descontentamento e embate direto em outros. Foi assim, a título de ilustração, que
observei mais diretamente na Maravilha, hora a as estratégias do poder público e suas
ferramentas de atuação – as políticas – são aceitas e respaldadas por seus usuários, hora é ponto
de conflito, de resistências. Seja por meio de lutas ou táticas empreendidas no cotidiano
(CERTEAU, 1996).
A análise lançada aqui, portanto, toma a política de habitação como “chave” para se
buscar compreender os comportamentos, sentidos e ações traçadas pelo Estado diante do
reconhecimento dessa questão como problema público. O poder público como um dos agentes
de produção habitacional, segundo Máximo (2012, p. 53), apresenta importante função “na
provisão de meios de acesso à moradia, no financiamento, na regulação dos diferentes modos
de produção, na construção direta de unidades habitacionais – em especial às destinadas à
população de baixa renda –, e ainda na implementação de políticas habitacionais”. Nesse
estudo, é importante refletir sobre o olhar empreendido e a relação estabelecida com os
beneficiários da política de habitação implementada na Maravilha. Os significados em torno de
tal política expressos e apreendidos com os moradores advém justamente dos “conflitos”
(SIMMEL, 1983) existentes, do consumo questionado ou não, do jogo entre “táticas e
estratégias” (CERTEAU, 1994) entre os beneficiários e os implementadores da política de
urbanização do território da Maravilha. Para tanto, é adequado pensar na política de habitação,
primeiramente, em caráter nacional, até chegar no foco da pesquisa que visa a compreender a
dinâmica da política habitacional em Fortaleza, mais particularmente direcionada ao
agenciamento realizado pela Habitafor na comunidade Maravilha. Estabeleço o período que
compreende os últimos governos – FHC, Lula e Dilma – como recorte temporal desta análise.
Sob a égide das políticas públicas, a discussão sobre o direito à cidade e à moradia digna
encontra seu caráter mais pragmático. Importante, neste caso, a análise sobre o pensar e o agir
diante das privações e desigualdades sociais que a ocupação desordenada tende a refletir em
73
território urbano. Para citar Wacquant (2005), se trata da compreensão de um estar citadino de
forma marginalizada, o que é endereçado tanto para forasteiros como para os mais íntimos: há
a referência das “favelas” como regiões-problema, áreas proibidas, circuitos selvagens da
cidade, bem como territórios de privação e abandono a serem temidos e evitados por se ter ou
configurar a crença de que lá se encontre excesso de crime, de violência, de vício e de
desintegração social.
Na perspectiva da legislação brasileira, o direito à moradia com qualidade foi incluído
como um dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, assim como o direito à saúde, à
educação. Em 14 de fevereiro de 2000, por meio de emenda constitucional, estabelece-se o
direito à moradia como fundamental, já antes instituído na Constituição como direito
social.Estel fato, sobretudo, para os movimentos populares reivindicatórios da Reforma
Urbana, é uma verdadeira conquista, tendo em vista à enfâse e destinação de atenção e recursos
que este reconhecimento agregou à esfera pública na problematização das políticas públicas de
habitação. A política de habitação como foco, e vinculada à urgência de intervenção ampla que
inclui investimentos em habitação, saneamento, transporte público, energia, ecologia,
desenvolvimento local, educação e saúde pública territorial. Ou seja, equipamentos, estruturas
e serviços presentes e acessíveis à população em seu território de habitação. Enfim,
investimentos e atuação que perfaçam de forma mais completa a reivindicação do direito à
cidade e à moradia digna.
Este desafio de uma necessária atuação conjunta das políticas públicas, quando o
destaque é a habitação, percorreu – e ainda percorre – as diversas esferas de intervenções
governamentais. Ao traçar, aqui, os contornos das políticas adotadas e implementadas nos
governos FHC, Lula da Silva e Dilma Roussef, é possível perceber os avanços e limitações de
cada gestão. As leituras e pesquisas de dados referentes à atuação das citadas gestões diante da
habitação como problema público, conjecturam, em princípio, olhares distintos. Sem adentrar
no mérito do debate entre os campos da política “neoliberaisl” versus política “social
democrata”, a intenção é contribuir com a discussão sobre as políticas públicas de habitação, as
formas de se fazer essa política que, como tantas outras, moldam-se e edificam-se a partir de
paradigmas, interesses e perspectivas no âmbito da esfera social, assegurada por determinada
gestão/governo.
No contexto nacional, tratar de moradia digna revela, para além do ideal de integração
entre as políticas, uma realidade fortemente marcada pelo déficit habitacional tanto em termos
quantitativos como qualitativos. Este último diz respeito à condição de degradação ambiental e
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social de moradia em que muitos sujeitos se encontram ao permanecer em áreas de risco (às
margens de rios e canais, por exemplo), ao viver em lugares insalubres (pouca ventilação,
úmidos, com muitas pessoas ocupando o mesmo cômodo), sem garantia de acesso à energia
elétrica e/ou água potável. Este tipo de déficit soma-se ao de natureza quantitativa. Para citar
o exemplo da Maravilha, pude constatar a formação de uma ocupação22 em meio aos conjuntos
habitacionais, margeando a obra do futuro Veículo Leve sobre Trilhos – VLT, decorrente da
insatisfação de alguns moradores com o tamanho da unidade habitacional entregue e, ainda,
após a constituição de novas famílias depois do realocamento delas para a nova área urbanizada.
Muitas famílias que vieram a se constituir nas unidades já entregues entraram na luta por outras
moradias. Tem-se, assim, um déficit que aponta o histórico acesso desigual à terra no País e
expõe a problemática crônica da desequilibrada distribuição de renda e domínio mercadológico
da regularização fundiária.
Para analisar quantitativamente os déficits habitacionais no Brasil, um dos estudos mais
recentes – realizado em 2008, pela Fundação João Pinheiro, em parceria com a Secretaria
Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, publicado em abril de 2011, e tendo como
fundamento a base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – estima
que o déficit habitacional, naquele período, correspondia a 5,546 milhões de domicílios, dos
quais 4.629 milhões, ou seja, 83,5%, estavam localizados nas áreas urbanas. Deste total, 36,9%
localizavam-se na Região Sudeste, seguida da Região Nordeste, com 35,1% do total. O estudo
também analisa o déficit habitacional segundo faixas de renda média familiar mensal, em
termos de salários mínimos. O resultado mostrou que a maior concentração do déficit
habitacional se dava na faixa de até três salários mínimos (89,6%) e que as famílias com renda
até cinco salários mínimos totalizavam 96,6% do déficit habitacional urbano.
Estes dados mais recentes não fogem, contudo, a uma lógica de constância do panorama
habitacional que se configura no País desde os primeiros anos de governo FHC. Considerando
tal configuração, foram estabelecidas, no período, ações que priorizarassem o financiamento de
moradias para famílias com renda de até 3 salários mínimos. Na gestão psdbista, é possível
observar um boom no incremento em habitação e urbanismo, se comparado ao governo anterior,
22 Nesta ocupação havia moradores insatisfeitos da própria Maravilha e aqueles, recém chegados sendo novatos na comunidade, são chamados de “aproveitadores” (ELIAS E SCOTSON, 2000). Conforme a fala de uma moradora antiga, “veio gente pra cá do Lagamar, de todo canto”. Para muitos, os ocupantes das margens do trilho aproveitaram a necessidade de continuidade da obra e a proximidade do período de eleições municipais para fazer pressão política. O resultado desta ocupação e de alguns atos no local – manifestações com a paralização da Avenida Borges de Melo e queima de pneus – foi a conquista da inclusão de todas as famílias em política do “aluguel social” (quando a Prefeitura financia um valor específico para que as famílias paguem um aluguel) e a futura promessa de uma casa em algum conjunto habitacional da cidade.
75
mas menos por apresentar, de fato, um trabalho efetivo e mais devido ao fraco investimento do
governo Collor/Itamar nesta modalidade de política. Desta forma, os números apontados pelo
governo são relevantes quando em comparação ao que já se havia construído até então, mas ao
serem investigados sob o contexto de resolutividade da problemática tais números não se
mostram tão importantes comparaçados em série.
Em síntese, nos governos (primeiro e segundo mandato) FHC encontra-se uma política
cujo financiamento se centrava no uso de empréstimos externos, do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço – FGTS e recursos dos tesouros, que tinha na Caixa Econômica Federal –
CEF a centralização para a destinação dos recursos voltados para a questão da habitação urbana.
Vale destacar que anterior à implementação da CEF, o Banco Nacional de Habitação – BNH
fora a instituição de desenvolvimento urbano responsável principal pelo financiamento da
produção habitacional. O BNH instituído na época da ditadura militar, em 1964, a partir da
efetivação de um grande Plano Nacional de Habitação, assim como a CEF atualmente, tinha
como principal fonte de recurso o FGTS. Ficou marcado na história do País como primeira
iniciativa estruturada e organizadora do Sistema Financeiro de Habitação – SFH, que
proporcionou o financiamento de moradias em grande escalas, sendo extinto em 1986 com a
criação da Caixa Econômica Federal. Conforme Gondim (2012), o BNH contribuiu fortemente
para o modelo de urbanização segregadora. “A solução padronizada de financiar grandes
conjuntos habitacionais em áreas distantes ou com pouca acessibilidade aos centros de
emprego, comércio e serviços não logrou assegurar aos pobres o acesso à habitação digna”
(GONDIM, 2012, p.116).
Quanto à organização administrativa, o governo FHC efetivou a criação de uma
Secretaria de Política Urbana – no âmbito do Ministério de Planejamento e Orçamento –, apenas
no segundo mandato, com a tarefa de concentrar esforços para a questão, estrategicamente,
não priorizou a urgência ou profundidade requerida pela problemática. Os principais programas
federais, como o Pró-moradia e o Habitar – Brasil, não se mostraram suficientes e tão pouco
apresentaram critérios técnicos que pudessem trazer maior resolutivadade, sobretudo, às
famílias com renda de até 3 salários mínimos.
Em um balanço geral, as decisões de financiamento à produção de moradias foram
tomadas, muitas vezes, sem levar em conta as necessidades e as condições do local. Os projetos
que incluíam a ubanização e a consequente construção de conjuntos habitacionais não previam,
por exemplo, a inclusão de comércios, lojas e espaços de lazer condizentes com a realidade de
seus moradores. Mesmo assumindo como prioridade o investimento em urbanização de favelas,
76
os “aglomerados subnormais”, o governo em questão não conseguiu concentrar o combate ao
déficit habitacional onde ele é mais grave, ou seja, entre as famílias com renda mínima e
dificuldades de inserção no mercado de trabalho devido, principalmente, à condição excludente
que lhe é imputada. Condição que se revela na dificuldade de acesso à escolarização, ou que
permite o acesso a uma educação sem qualidade, destinando a essas pessoas subempregos e
escassez de oportunidades de trabalho. (MARICATO, 2001)
Com a passagem para o governo petista no ano de 2003, muitos desafios permaneceram
e novos surgem no cenário das políticas públicas de habitação do País. Uma das primeiras
atitudes do governo Lula da Silva foi a criação do Ministério das Cidades, com a presença da
Secretaria Nacional de Habitação. A proposição parece sinalizar que um enfoque maior ou uma
atenção diferenciada que seria dispensada à questão. Segundo informações contidas em sites e
documentos do Partido, a intenção, de fato, era a de promover uma discussão mais ampla sobre
a cidade, tencionando a esfera do combate às desigualdades sociais com a transformação das
cidades em espaços mais humanizados. De acordo com o Ministério, à época, o que se pretendia
era a articulação entre as diferentes fontes de recursos, o fortalecimento da política fundiária
para habitação, a modernização da produção habitacional, a estruturação de linhas de
financiamento e o planejamento participativo da gestão urbana. (BITTAR, 1992)
Aliás, a participação popular incorporada em tom quase orgânico pelo modo de fazer
política do PT – afirmação esta baseada no exercício da utilização de instrumentos como
conselhos, conferências e o orçamento participativo como elementos integrativos da dinâmica
democrática do Partido – também é assimilada de maneira contundente pelas políticas de
habitação. Aproximando o que o que preconizam as diretrizes destas políticas com os exemplos
da “vida real”, situo o que se vivenciou na comunidade Maravilha. Os moradores do local, pelo
fato de estarem em área classificada como aglomerado subnormal e assentados em área de risco
ambiental, adquiriram forças em suas lutas pela urbanização do território por meio de espaços
como o Orçamento Participativo – OP:
As demandas por habitação apontadas no Orçamento Participativo, instrumento de participação popular com início em Fortaleza no ano de 2006 – foram priorizadas com a urbanização e recuperação das áreas de risco e beneficiamento das famílias que residem nestes espaços ilegais e desfiliados da cidade. A proposta do Orçamento Participativo revitaliza os instrumentos de controle social da política de habitação, em conformidade com as diretrizes e princípios consagrados na Lei Orgânica do Município de Fortaleza, na Política Nacional de Habitação de Interesse Social (PNHIS), no Estatuto da Cidade e no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. (BORGES, 2012, p. 20)
77
Esse momento inaugural do OP em Fortaleza, no ano de 2006 – quase segundo mandato
do Governo Lula da Silva – o Pís está sob grande efervescência na economia. Este ano prepara
as estratégias para a chegada do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, no ano de
2007. O PAC promoveu a execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística
e energética do País. Em relação à política habitacional, tornou-se importante ferramenta para
capitanear recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimente (BID), a se somarem à
efetiva participação da Caixa Econômica Federal e recursos locais, de estados e prefeituras.
Entre os anos de 2005 a 2009, para ilustrar o exemplo da cidade de Fortaleza, vários projetos
habitacionais recebem suportes necessários para finalmente saírem do papel, a citar, os projetos
de urbanização das áreas de risco no bairro São Cristóvão, Campo Estrela, Vila do Mar, Lagoa
do Papicu, Lagoa do Urubu, Açude João Lopes e a favela Maravilha. Tais áreas de risco,
bastante emblemáticas na Cidade, reafirmam o interesse primeiro dessa gestão federal (que
contou com o apoio de uma gestão municipal, à época, do mesmo partido político), de intervir
nas situações emergenciais e mais representativas da estrutura de desigualdade e manutenção
de pobreza nos centros urbanos.
Para agregar ao PAC na política de habitação, em 2009, foi criado o programa que viria
a se tornar o “carro-chefe” do governo petista na área, especialmente, habitacional, denominado
Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV. De acordo com pesquisa de Aragão, Araujo e
Cardoso (2011), faz-se importante ressalvar o fato deste Programa não se tratar unicamente de
uma ação destinada à construção de casas, mas, vale destacar a atuação dele em sua dimensão
econômica, por ter sido vetor de geração de emprego e renda e incremento do mercado de
construção civil em todo o País. Ainda, segundo os autores, o PMCMV objetiva, dentre outras
questões, subsidiar a aquisição da casa/apartamento próprio para famílias com renda até pouco
mais de 2 salários mínimos e facilitar as condições de acesso ao imóvel para famílias com renda
até R$ 5mil. Esses critérios vão ao encontro dos dados de déficit habitacional mecionados aqui.
A intenção é alcançar, por meio de faixas específicas de financiamento, cada público em sua
especificidade, priorizando àqueles sujeitos que se encontram em condições mais vulneráveis
de moradia.
Por se tratar de uma política pública recente, muitos são os estudos, com abordagens
diversas que buscam analisar e até avaliar o desempenho do PMCMV no campo social e
econômico. O Observatório das Metrópoles23, por exemplo, que caracteriza essa política como
23 Considerado um “instituto virtual”, o Observatório das Metrópoles é um grupo formado por cerca de 159 pesquisadores de várias instituições acadêmicas do país. Como Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT)
78
“a mais ambiciosa política habitacional do país”, buscou avaliar o Programa quanto aos seus
mecanismos de cadastramento e controle dos beneficiários, seus impactos sociais e econômicos
nas famílias beneficiadas e a qualidade de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos. Um dos
aspectos interessantes para pensar o potencial participativo e a compreensão da gestão sobre a
relevância do poder decisório dos moradores na construção de suas moradias está na
modalidade de “autogestão coletiva”. O Programa, em uma de suas facetas, se divide em
MCMV Entidades e o MCMV Empresarial, sendo que a primeira opção destina-se à
possibilidade de autogestão coletiva durante o proceso de construção das casas. Para melhor
entendimento, Lago (2011) discorre, em entrevista publicada pelo Observatório, a experiência
que observou em São Paulo com a autogestão coletiva:
São três dimensões importantes a se destacar no caso de São Paulo. A primeira é a qualidade da moradia. Porque para as pessoas que participam das experiências de autogestão coletiva a casa onde elas vão morar tem que ser bonita. Os moradores levam exigências para os arquitetos que muitas vezes eles não esperam. No conjunto Paulo Freire, por exemplo, os moradores queriam que o conjunto fosse pintado de verde, e recusaram a estrutura metálica proposta pela assessoria técnica. A justificativa para a cor verde é que queriam ver a casa de longe, quando estivessem chegando ao bairro; quer dizer, tem uma questão de autoestima muito forte ali. As pessoas querem varanda, vista, janela de tal cor, isso tudo vai dando adesão a esse tipo de projeto, tornando a mobilização e a participação mais fortes. E as moradias alcançam melhores resultados.
Esta análise torna-se fundamental na medida em que reacende uma antiga e sempre
presente demanda: a construção de moradias juntamente com a construção de identidades. A
previsão da “presença de vida”, no sentido mais profundo do termo, nos conjuntos habitacionais
se faz legítima. A idéia de conjuntos que mais se assemelham a um quartel ou cemitério retiram
dos “atores habitantes” a capacidade de conjugação de ações humanas em sua plenitude. As
antigas referências ganharão outros traçados no conjunto, mas há de se convir que a
oportunidade de criação de identidades, de novas referências de vida pulsante precisa mesmo
que, minimamente, sejam esboçadas no projeto de estruturação de um conjunto de habitações.
Diante deste contexto, esta pesquisa buscou explorar como se deu as fases de planejamento e
construção dos conjuntos habitacionais da Maravilha, ao mesmo tempo, buscou apreender a
percepção dos moradores sobre sua participação na construção de suas casas e, ainda, dos
agentes das políticas habitacionais sobre tal processo, o de urbanização.
promove o debate e apresenta publicações que contribuem para as discussões em torno do direito à cidade, moradia e transformações urbanas.
79
3.4 Os conjuntos habitacionais em Fortaleza: a Habitafor na Maravilha
O início da intervenção na produção habitacional popular em Fortaleza se dá a partir de
iniciativas isoladas e pontuais, por ações do poder público ou por atuação do setor privado. De
acordo com Máximo (2012), o exemplo mais significativo foi a construção de vilas entre a
década de 1930 e 1940 para abrigar trabalhadores do setor industrial. Iniciativa de uma grande
fábrica de tecidos no bairro Jacarecanga. As moradias eram constituídas de apartamentos que
variavam de um a três quartos, formando blocos de apenas dois pavimentos. Jucá (2003) destaca
a primeira atuação do poder público que se deu a partir da desapropriação, em 1948, de uma
área à margem da Avenida Bezerra de Menezes. A àrea fora dividida em 93 quadras e os lotes
repassados a pessoas que moravam há pelo menos um ano na Capital e não tivessem imóvel.
Os lotes eram vendidos pelo valor da desapropriação e financiados em 120 prestações mensais.
Experiência incipiente de intervenção estatal, porém significativa do reconhecimento da
necessidade de se pensar em políticas habitacionais.
As iniciativas de construção de conjuntos habitacionais em Fortaleza como política de
caráter intervencionista do poder público são anteriores à gestão dos governos federais citados,
do PSDB e do PT. Nesta perspectiva, ressaltarei as políticas locais implementadas que se
apresentaram-se como princípio das experiências de política de habitação popular na Cidade e
o significdo que historicamente elas foram assumindo ao longo de sua trajetória histórica. De
acordo com Holanda (2009),
As políticas habitacionais no Brasil possuem historicamente um caráter de extremo controle da população, buscando controlar seu tempo livre e barrar sua organização autônoma. Mediante essas estratégias de controle, foram implementadas as primeiras formas de segregação espacial da cidade, em que os pobres eram direcionados para as áreas mais periféricas das cidades e sem infraestrutura adequada. (p.17)
O próprio processo de favelização da Cidade, como vimos no tópico 3.2, se deu com a
ocupação das periferias de Fortaleza, áreas que continuaram destinadas aos mais pobres,
mediante a implementação da política de construção de conjuntos habitacionais, modelo de
política que passou por vários moldes e direcionamentos ao longo dos anos. De acordo com
Máximo (2012), o marco inicial da primeira produção habitacional por meio da intervenção do
Estado em Fortaleza, que ainda não era propriamente um conjunto habitacional, foi em 1953,
no atual bairro Henrique Jorge. Foram 456 casas construídas pela Prefeitura de Fortaleza por
intermédio da Fundação da Casa Popular – FCP, cujo conjunto foi o único empreendimento da
Fundação. Somente com o incremento dos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs é que
80
acontece a produção direta de conjuntos habitacionais e o financiamento em escala de moradias
para trabalhadores. De 1940 a 1960, com as IAPs, registram-se em Fortaleza 10 conjuntos
residenciais, com cerca de 1078 moradias, a exemplo do Mondubim (1955), com unidades de
81 m2, e o Parque Ibiapava (1950), na Barra do Ceará, com unidades habitacionais de 68m2
(MÁXIMO, 2012). Estes Institutos estavam inseridos no processo de reestruturação da política
de seguro social no país e ganharam importância por também atuarem na produção e
financiamento habitacional para a classe trabalhadora em ascensão.
Assim, os IAPs assistiam uma população considerada de baixa renda, mas com poder
aquisitivo para se inserir na Cidade de forma “legalizada”, ou seja, por meio da compra efetiva
da moradia. O mesmo aconteceu a partir da dácada posterior, em 1970, com a atuação do BNH,
na construção dos “conjuntos bairros”. Foram grandes conjuntos habitacionais, boa parte
constituídos por casas, totalmente horizontalizados, a exemplo de conjuntos como o Prefeito
José Walter (1970), com 4.774 unidades habitacionais e o Conjunto Ceará (1978), com 8.669
residências (ARAÚJO, 2013). Estes conjuntos povoaram as periferias de Fortaleza e
favoreceram a conurbação com outras cidades, como Caucaia, bem como fortaleceeram a ideia
de “bairros dormitórios”, compreendidos como aqueles lugares distantes da área de trabalho
dos moradores, impactando no custo social e econômico das cidades, fato que gerou , ainda, o
isolamento e a segregação socioespacial da Cidade. Como retrata Pequeno (2008), os conjuntos
acabaram por estimular o crescimento desordenado da Cidade e confirmar os bairros
dormitórios.
A lógica de construção dos conjuntos em regiões periféricas, com preços mais acessíveis
à população de baixa renda não alcançou os moradores considerados em situação de sub-
habitação, aquelas pessoas que realmente se apresentavam em condições de moradias
insalubres, oriundas, muitas vezes, de ocupações. Tendo em vista este público, especificamente,
e em conformidade com a orientação da política nacional de habitação, a partir de 1960 o
governo do Estado passou a investir em ações de desfavelamento, como se chamava à época.
As medidas tomadas eram voltadas ao reassentamento de moradores de áreas como faixas
litorâneas, encostas, faixas de reservas e próximas à rede ferroviária (MÁXIMO, 2012). A
desocupação desses territórios implicava na remoção de seus ocupantes para as zonas
periféricas da Cidade. Na esfera municipal, esse período contou com a atuação da Fundação do
Serviço Social de Fortaleza – FSSF, que se responsabilizou pela construção de conjuntos
habitacionais voltados para atender à política de desfavelamento e urbanização de Fortaleza.
Foi um programa integrado de desfavelamento, segundo Máximo, que no plano estadual teve a
81
participação da Companhia Estadual de Habitação do Ceará (COHAB – CE).
Se por um lado os governos investiam na criação de instituições e programas em prol
da assistência às camadas populares mais deficitárias em habitação da Cidade, por outro lado,
havia também cobrança política da população e dos movimentos sociais organizados. Muitas
das reivindicações de moradores que até hoje se faz presente, é o do direito de permanecer no
local de ocupação e não serem realocados para as periferias. Foi, inclusive, o que mais constatei
na Maravilha desde minha inserção no território, ainda como estagiária da PMF. Os moradores
não querem sair do lugar onde já firmaram vínculos sociais e econômicos, onde têm trabalho,
amigos, o mapa de mobilidade e laços com as instituições de assistência e saúde bem
estabelecidos. “Eu, minha filha, sempre morri de medo de tirarem nós daqui, eu não sei nem
onde fica esse tal de Zé Walter”, a fala é de uma interlocutora, moradora mais antiga da
Maravilha, expondo seus medos de ser obrigada a sair para morar em regiões periféricas da
Cidade. Araújo (2013) confirma que tais anseios, há tempos experenciados por esses moradores
de favelas em Fortaleza, no País também, impulsionaram a vivacidade dos movimentos sociais.
De acordo com Souza (2006), os casos das favelas do Pirambu, Lagamar e José Bastos
são exemplos da dimensão conflituosa entre a população favelada e o Estado, e do
fortalecimento dos movimentos sociais urbanos a partir destas lutas. Esses movimentos
contavam com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e em suas reivindicações
motivaram o Governo do Estado a criar o Programa de Assistência às Favelas de Área
Metropolitana de Fortaleza – PROAFA (BARREIRA, 1992), que, entretanto, demonstrou ainda
um caráter assistencialista e policialesco no modo de fazer política:
As obras assistenciais efetivadas com maior firmeza em 1980, no Governo de Virgílio Távora, visavam criar uma população cativa, objeto de realização dos famosos programas sociais. A primeira dama Luíza Távora foi o exemplo mais significativo dessa forma de assistencialismo, que se desdobrou desde a doação de bens à população pobre até a criação do Programa de Assistência aos Favelados (PROAFA), que passou a gerir os planos nacionais ou locais de habitação popular (BARREIRA, 1992, p. 37).
O PROAFA, citado por Barreira, passa a gerir os planos nacionais de habitação popular,
dentre estes o Programa de Erradicação da Sub-habitação (PROMORAR). O diferencial desta
proposta era centrar na urbanização das favelas sem a remoção dos moradores. A construção
das moradias fora organizada em regime de mutirão e concedia às famílias a legalidade da posse
do terreno que ocupavam. Máximo (2012) credita a instabilidade do Programa à falta de
adaptação econômica, social e cultural dos moradores que não receberam o apoio devido das
demais políticas, como de geração de emprego e renda. Esta última deveria estar estaria
82
relacionada às condições satisfatórias de atendimento às necessidades advindas da nova
moradia, tais quais como prestação mensal, e contas de água, luz e impostos. Araújo (2013)
expressa que, quantitativamente, o Programa não teve expressividade em Fortaleza. “O
PROMORAR beneficiou apenas 5.626 famílias, dando um percentual de apenas 7,85% de
famílias atendidas” (p. 33). Assim, durante o governo do presidente José Sarney (1985 – 1990),
mais especificamente em 1986, o PROMORAR e também o já referido BNH são extintos.
Sob o panorama nacional aqui exposto, na década de 1990 o déficit habitacional para a
faixa dos que recebiam até 3 salários mínimos continua significativo. Mesmo investindo em
Programas como o Pró-Moradia e o Habitar Brasil, de acordo com Pequeno (2008), tais
políticas ainda contribuíam para a exacerbação das condições de desigualdades sócio espaciais.
Pequeno ainda revela que esse período foi de incentivo à municipalização das políticas de
habitação, com destaque à criação, em Fortaleza, das Secretarias Executivas Regionais – SERs
e seus Distritos de Habitação e Trabalho. Este modelo de municipalização não veio, entretanto,
acompanhada de ação mais conjunta e estratégica pelas esferas de poder.
Em Fortaleza, a situação institucional se mantinha precária e desgovernada. Com ações em diversas secretarias, a questão da moradia era tratada de forma incipiente, fragmentada e acéfala, como o próprio planejamento urbano, ficando estas temáticas sempre a mercê de consultorias e terceirizações que em nada contribuíam para o desenvolvimento institucional (PEQUENO, 2008, s/p)
A insustentabilidade do descaso institucional na medida em que sociedade civil aumenta
a pressão é, ainda segundo Pequeno (Idem), a principal ferramenta que impulsiona mudanças.
Soma-se a este embate popular uma gestão nacional que se propõe mais participativa. Em 2002,
com a eleição do presidente Luis Inácio Lula da silva, do Partido dos Trabalhadores, apoiado
inclusive pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana, foi criado o Ministério das Cidades.
Por meio deste, há um incremento em ações voltadas à resolução do déficit habitacional,
contudo centrando o foco do problema nas áreas de risco e reduzindo o alvo de intervenção. O
que mais na frente se tentaria atingir com o Programa Minha Casa Minha Vida, que não foi
objeto de análise desta pesquisa. A comunidade da Maravilha, ao olhar intervencionista do
poder público se faz objeto quando do incremento do Programa Habitar Brasil, ao somar
parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.
O Habitar Brasil Bid – HBB, juntamente com os recursos do Programa de Aceleração
do Crescimento – PAC, lançado na segunda gestão do Governo Lula (2007 – 2010), foram os
canais propulsores do Projeto de Urbanização da Maravilha. No entanto, é preciso, também,
dar os créditos ao compromisso político à época, pois somente na gestão da prefeita Luizianne
83
Lins, iniciada em 2005, é que o antigo projeto de urbanização da Maravilha e de outras tantas
comunidades localizadas em áreas de risco saem do cadastramento inicial para a efetivação das
obras. Como explica Pequeno (2008, s/p):
Por outro lado, a oportunidade trazida com o Programa HBB, o qual escolhe Fortaleza como um dos municípios a ser contemplado, faz com que a prefeitura busque se aprimorar, ainda que visando claramente os recursos para obras. Fato é que os recursos destinados para desenvolvimento institucional remanesceram sem utilização por cinco anos, demonstrando que a vontade política de enfrentamento do problema habitacional não existia da parte do
A política habitacional, em Fortaleza, passa a ser dirigida pela Fundação para o
Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR, órgão da administração indireta
– uma autarquia – que centraliza a política de habitação do Município. Foi criada no dia 30 de
dezembro de 2003, por meio da lei nº 8.810, ainda na gestão do Prefeito Juraci Magalhães.
Segundo Araújo (2013), ratificando a citação acima, a presidente da HABITAFOR, primeira
da gestão petista, Olinda Marques, contornou a precariedade existente na Fundação
inicialmente com o apoio do Ministério das Cidades e utilizando um convênio do HBB, que
não tinha sido utilizado na administração anterior.
Em entrevista com três técnicos24 da Fundação – duas assistentes sociais e um advogado
– direcionada à realidade da Maravilha, pude compreender mais detalhadamente a atuação do
órgão durante o processo de urbanização da comunidade. Além de perceber as orientações
políticas, sensibilidade à questão urbana e perspectivas destinadas pela instituição à política que
se empreendia no momento: a urbanização da favela encravada em uma zona nobre da Cidade,
conforme depoimento de uma das técnicas:
A Habitafor é marcada principalmente dentro da gestão que iniciou em 2006, 2004 é o último ano de gestão do Juraci Magalhães, 2005 inicia a gestão da Luizianne Lins. Em 2005, salvo engano, já existia a contratação do Projeto Maravilha. Mas houve um cadastramento em 2006, houve um recadastramento em 2007. Parece que teve um em 2003, o primeiro, que ainda era no objetivo de contratação do Projeto (técnica 1 da HABITAFOR)
A citação acima pontua o começo da entrevista, os técnicos procuram me situar quanto
às investidas do poder público na realização do Projeto de urbanização da Maravilha. Contudo,
focando no papel da HABITAFOR e expressando a leitura da instituição perante o processo. O
que me importava para esta análise era apreender como tal órgão empreendia seus conceitos
24 Os entrevistados denominarei de técnicos 1, 2 (as assistentes sociais) e 3 (o advogado) para, assim, manter o anonimato dos interlocutores diante das narrativas e informações prestadas. Asseguro que preservando a identidade dos interlocutores, garanto maior privacidade aos relatos obtidos.
84
perante a urbanização, os moradores ali presentes, e compreender o jogo de forças entre
moradores e instituição. Muito do que também se encontra no capítulo posterior. Enfim, como
a HABITAFOR narra este Projeto que traz mudanças permanentes para a vida dos sujeitos
territorializados naquele lugar.
“A gente não saiu daqui porque a Luizianne lutou por nós”. Essa fala de uma moradora
entrevistada resume bem o que ouvi de tantos outros interlecutores, e para os técnicos da
HABITAFOR houve também uma força política para que o Projeto de fato acontecesse. “O
Projeto Habitar Brasil BID tinha muitas exigências em relação a manter as famílias no mesmo
local e em locais próximos, então eu lembro de como foi uma dificuldade na época conseguir
garantir os terrenos próximos” (TÉCNICA 1 da HABITAFOR). Garantir os terrenos próximos
gerou o que chamam de “grande confusão”. Isso porque os moradores e comerciantes das
redondezas não queriam que os moradores permanecessem ali. Na narrativa da técnica, a
Prefeitura teve que enfrentar essa empreitada, já que, para os reclamantes, “receber” aqueles
moradores seria aceitar o perigo, a pobreza e, mais diretamente, a desvalorização mercadológica
de suas moradias. Conforme a narrativa dos citados técnicos, as pessoas diziam que queriam
muito que os moradores melhorassem suas condições de habitação, mas longe dali, porque
assim a área ficaria desvalorizada com os novos conjuntos habitacionais que seriam erguidos e,
facilmente, visualizados por todos.
Se por um lado os conjuntos e as melhorias urbanísticas agregadas a estes mudam
positivamente a paisagem de um lugar deteriorado e insalubre, por outro, causam desconforto
aos que se sentem atingidos pelo novo cenário que se desenha muito próximo. Como em Soares
(2007), ao citar as descrições dos conjuntos habitacionais franceses feitas por Kopp (1987), que
se apresentam similares aos brasileiros produzidos pelo BNH: “construídos em áreas
longínquas e desprovidos de qualidade arquitetônica, configurando-se como ‘pesados’ caixotes
em tons acinzentados pelo envelhecimento precoce” (SOARES, 2007, p. 105). No caso da
Maravilha, a construção aconteceu no mesmo espaço, em área considerada nobre da Cidade. A
permanência deste contingente populacional e a arquitetura de suas moradias a partir da
construção dos conjuntos habitacionais, revelou-se grave incômodo à vizinhança, que parecia
desejar a assepsia social daquela área.
A estigmatização passou a ser explícita no encontro dos diferentes olhares e agentes
sociais externos à favela. Entretanto, os estigmas não se manifestam apenas externamente. No
interior da comunidade houve um movimento de distinção que acabou sendo ressaltado no
processo de urbanização. Para os técnicos, tal movimento não foi intencional. De acordo com
os depoimentos colhidos, o Projeto se deu como num “jogo de xadrez”. Construíram primeiro
85
um conjunto para deslocar parte dos moradores do Surrão, depois deslocaram a outra parte
ainda do Surrão para o conjunto Nossa Senhora de Fátima, enquanto já construíam na
Maravilha. Isso, de certa forma, proporcionou uma segregação entre os grupos internamente, O
“Surrão” saiu da Maravilha.
Até hoje se você chegar lá na Maravilha, eles falam diferenciado, eles chamam “o pessoal lá do surrão”. Uma vez, eu na minha época lá da dissertação do mestrado, fui entrevistar uma senhora do Nossa Senhora de Fátima e ela disse: “esse pessoal aí da Maravilha só quer ser as prega”, porque são mais ricos os da Maravilha. Então, entre eles têm essa diferenciação, e o pessoal que foi pro Planalto Universo se você fizer um levantamento, uma comparação, tem essa diferenciação. Tem esse estigma, esse preconceito entre eles também. Nas visitas, eles sempre se referem assim, principalmente aqueles que não foram beneficiados pelos pontos comerciais, “ah quando eu morava na Maravilha que não era urbanizada, eu tinha minha casa, eu podia criar galinha, criar num sei que, e aí quando eu me mudei pro apartamento, eu fiquei sem ter essa condição, né, e aí me senti prejudicada enquanto outros não precisavam e ganharam”. Eles falam que mesmo naquela condição, eles tavam melhor, porque não tinha nenhuma organização, então tinham mais liberdade (TÉCNICA 1 DA HABITAFOR).
A citação acima também demonstra as insatisfações geradas em moradores que dizem
se sentir prejudicados com a urbanização. Seu Raimundo, um dos interlocutores na pesquisa,
fala de, no início, ter se sentido não prejudicado, mas injustiçado, já que uma pessoa que tinha
um barraco iria receber a mesma casa que ele, dono de uma casa muito “bem estruturada”. A
equipe da HABITAFOR entrevistada reconhece as diferenciações sociais existentes na
comunidade, acreditam que quem chegou há muito tempo no território já havia alcançado um
patamar de estabilidade financeira, conseguindo, assim, manter uma melhor estrutura de
moradia. Contudo, os técnicos defendem a impossibilidade de um projeto de urbanização que
ratifique essa diferenciação socioeconômica entre os moradores e que possa individualizar os
reclames de cada morador:
Porque lá é o seguinte, as casas elas vinham melhorando quando ia chegando ali mais perto do Piamarta, né, então quanto mais perto do Piamarta, elas tinham uma tipologia melhor, né, casa de alvenaria, dois andares. E quanto mais perto do canal, elas tinham uma condição pior, mais favelizado. Então tinha esse problema mesmo entre o pessoal de cima e o pessoal de baixo. Só que quando você faz um projeto como esse, você não tem como diferenciar as pessoas com projetos de, tipo, um apartamento com um padrão A e um padrão B, né. Então, todo mundo foi tratado de maneira igual, porque ali era um varzão, um terreno de forma irregular, sem saneamento, sem nada, que o poder público interviu pra haver uma urbanização, um saneamento, uma qualidade, que atendesse a todos, lembrando que esse tempo de moradia era de apenas 20% na comunidade, não era todo mundo que vivia nessas condições maravilhosas (TÉCNICO 3 DA HABITAFOR)
86
Nas narrativas dos técnicos, está muito presente a condição de benfeitoria do poder
público diante de uma comunidade que se encontrava “irregularmente” na Cidade.
Reconhecem-se as diferenças socioeconômicas na Maravilha, mas há uma homogeneização no
agir, diante da concepção de irregularidade, de que todos são iguais perante ao “pecado” da
invasão. A instituição parte do pressuposto de que é necessário que os moradores tenham em
vista a ideia da coletividade. Para os técnicos, todos, no final, ganharam com a urbanização.
Mas alguns moradores resistiram e, ao embarcarem num acirramento conflituoso, receberam
valores correspondentes a indenizações. Isso para além do imóvel ao qual tinham direito.
Contudo, a conquista de um morador não significou a conquista da coletividade – de demais
que se encontravam no mesmo perfil. Enquanto poucos, por meio de uma luta individual,
conseguiram indenizações, outros, que também estavam nas mesmas condições, não tiveram
êxito. O depoimento abaixo ilustra tal discussão:
Lembrando que o direito individual nunca sobrepõe o direito da coletividade, então esses direitos individuais dessas casas, de piso, seja do que for, foram construídas em cima de terrenos, sejam eles ou privados ou públicos que não teve uma autorização, que não são dessas pessoas, foram construídas através de invasão, né, e foi feita uma intervenção para o benefício coletivo, não apenas daquela invasão, mas sim da coletividade porque ali foi um benefício pra cidade como um todo, porque ali é a entrada de Fortaleza (TÉCNICO 3 DA HABITAFOR).
A HABITAFOR, como autarquia gerenciadora dos programas habitacionais em
Fortaleza, inscreve-se no contexto de um Estado impelido a combater as chamadas injustiças
sociais. Uma configuração que reafirma por meio de leis como a própria Constituição de 1988
e, mais especificamente, pelo Estatuto da Cidade, a luta social e embates no campo da política
por direitos sociais. As desigualdades impulsionam movimentos, reivindicações, que para
Bobbio (1992,) sustenta o que chama de terceira onda de direitos, os citados direitos sociais.
São direitos que conclamam a atuação direta do Estado na prestação, com força da expressão,
de “justiça social”, convocando-o ao aprofundamento das obrigações de regulação da
sociedade. Incitam o que Santos define por “cidadania social”.
O segundo período do capital nos países centrais, o capitalismo organizado, caracteriza-se pela passagem da cidadania cívica e política para o que foi designado por “cidadania social”, isto é, a conquista de significativos direitos sociais, no domínio das relações de trabalho, da segurança social, da saúde, da educação e da habitação por parte das classes trabalhadoras das sociedades centrais e, de um modo muito menos característico e intenso, por parte de alguns setores das classes trabalhadoras em alguns países periféricos e semiperiféricos (SANTOS, 1997, p.243).
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No que tange à política habitacional, a propalada cidadania social é alcançada, na
Maravilha, de acordo com seus técnicos, quando há o cumprimento de leis estabelecidas, por
exemplo, no Estatuto da Cidade. A lei nº 10.257, de 2001, batizada de Estatuto, é pensada e
elaborada como projeto desde as discussões da Constituição em vigor. A efervescência dos
movimentos sociais urbanos já buscava, como destaca Rolnik (2012), o combate à especulação
imobiliária e a regularização fundiária dos imóveis urbanos. Desse modo, pensar a urbanização
da Maravilha é fazer acontecer o previsto no Estatuto, o que consta, a título de ilustração, no
parágrafo único desta lei: “Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade,
estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana
em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
ambiental” (Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, p. 17).
Esse marco legal fez importante avanço no processo de resolutividade dos
“assentamentos precários” (GONDIM, 2010). Mas, como bem explica Gondim (idem), tais
assentamentos são bastante heterogêneos de acordo com suas condições socioeconômicas e
padrões construtivos em um mesmo setor de aglomerado subnormal. Há dificuldades reais para
diferenciar a partir dos dados censitários o que são favelas, loteamentos irregulares e conjuntos
habitacionais em situação de precariedade urbanística e irregularidade fundiária. No caso da
Maravilha, não é diferente, uma das grandes reivindicações de moradores se baseou na lógica
das condições diferenciadas de habitação. O que para o poder público, aqui representado pela
HABITAFOR, se apresenta como reclamação não garantida por lei. A compreensão dos
técnicos é de que mesmo com perdas significativas na qualidade de moradia para alguns e as
insatisfações que surgem no geral, toda a comunidade ganhou com a urbanização. Mais uma
vez, como se todos estivessem no mesmo patamar de habitação e todos fossem parte da mesma
– tão diversa – Maravilha.
Eu lembro de uma senhora que tinha uma casa grande, né, e ela dizendo que o projeto não tinha (o interlocutor não finaliza a frase, mas entendo que ele fala sobre o “projeto não beneficiar todos”) né, aí eu disse assim a senhora fala isso pela senhora. A senhora pergunte a uma pessoa que morava num barraco na beira do canal que quando chovia entrava água, cobra, rato e ela perdia as coisas dela, se esse projeto não serviu. Aí ela disse, é pra ela serviu mas para mim não serviu. Então, assim, a intervenção do poder público é importantíssimo em relação a esse tipo de situação, né. Eu não sei se o sofrimento, às vezes, dá um bloqueio quando as pessoas recebem um tipo de melhoria, né, que a partir do momento que entra não sei se reconhece a situação, que às vezes eu me deparo a pessoa começa a reclamar e eu digo assim, quantos anos a senhora tem e ela disse eu tenho 60. Tá, se o poder público não tivesse intervido, a senhora com 60 anos de idade, a senhora teria tido condições de comprar uma casa igual a essa que a senhora tem, ela diz
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não. Então pronto, pois a senhora agradeça porque se não tivesse tido a intervenção a senhora talvez morreria e nunca teria a sua casa própria, digna, com saneamento básico, documentação no seu nome que a senhora vai poder passar para os seus herdeiros, né, para os seus filhos. Então, isso aí é importantíssimo que a senhora tem essa garantia da questão dessa moradia. (TÉCNICO 3 DA HABITAFOR)
O técnico acima narra sobre a importância da regularização da habitação e de como,
após a urbanização, a casa adquirida recebe o status de “imóvel seguro”, um bem que jamais
puderam de fato assimilar antes da urbanização com garantias de que eram proprietários. Isso
devido a não possuírem o “papel da casa”. A documentação legitimadora de posse do imóvel
sempre foi preocupação para os moradores do lugar. Nas minhas primeiras visitas, ainda no ano
de 2008, meus interlocutores já falavam muito sobre não se sentirem “verdadeiros donos” de
suas casas e conquistas relacionadas a esta. Para a HABITAFOR, o tal papel da casa significa
mais que legitimidade da moradia, uma nova postura diante do habitar a cidade. Nas minhas
entrevistas atuais com os moradores, também percebi a valorização atribuída à posse do
documento que comprava o estatuto de proprietário. No momento, apenas os moradores do
Planalto Universo possuiam a documentação por terem sido os primeiros a se instalarem no
local. Os moradores dos conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Maravilha aguardam ansiosos
por sua vez, mesmo que um detalhe aflija alguns deles: a prioridade da titulação da mulher na
documentação da posse da unidade habitacional. Percebi que interlocutores homens
demonstraram certo desconforto, ou melhor, pareceram não compreender muito bem a
motivação para este posicionamento da Prefeitura. Posição explicada em entrevista na
HABITAFOR.
A prioridade é ficar no nome da mulher, porque eu acredito que já também foi um novo entendimento de todos esses trabalhos de que a mulher ela continua com os filhos. Geralmente, o homem é que sai de casa, que deixa a família, e assim, tem menos preocupação com essa questão do abrigo e aí esse programa, né, especificamente o Minha Casa Minha Vida, ele traz essa prioridade pra mulher. O da Maravilha não é Minha Casa, mas também traz esse critério, todos trazem. E a mulher é quem mais segura, pelo que a gente viu, até a venda do imóvel. Tem mais cuidado como patrimônio da família, é a que mais zela em relação a esse tipo de venda, de se desfazer do lar por conta da preocupação com os filhos. Já o homem vende com mais facilidade, fica numa situação mais volátil em relação a isso (TÉCNICA 2 DA HABITAFOR).
A mulher assim, conforme referida Instituição, assume papel central na etapa final do
Projeto, a entrega do papel da casa própria. Esse último termo figura, na entrevista com os
técnicos, como uma reflexão que pode ser traduzida por meio do “duelo” casa dada x casa
comprada. Tal debate implica numa discussão costurada por um dos técnicos ao se referir ao
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sentido de propriedade. Interessava-me compreender os impactos da urbanização nos modos de
vida daqueles moradores, os quais foram respondidos objetivamente ou subjetivamente no
decorrer da entrevista, sendo um desses pontos, a questão de permanecer ou não no território.
De acordo com a HABITAFOR – e como foi discutido em alguns detalhes aqui – a comunidade,
de uma maneira geral, desconsiderando a heterogeneidade do lugar, viu as condições de
habitação mudarem positivamente, percebeu os sujeitos serem respeitados na conquista daquela
parte da Cidade, já que não foram removidos da área também teve seus laços sociais
preservados. Contudo, o fato de permanecer ou não no território, para além da situação onerosa,
decisiva para a saída de muitos, gerada pelos gastos de contas que antes não existiam – como
água e energia elétrica – um técnico da HABITAFOR aponta outras sugestões.
Aí tem uma situação também do apego do que é seu, você ter uma valorização também. Existe uma situação que tem que ser dividida, às vezes algo que é oferecido como melhoria que você recebe em troca dentro dessa ocupação, sem você ter o ônus até do pagamento, né, como é a questão do Minha Casa Minha Vida, de você não ter o comprometimento de pagar nada, eu sei que tem família que realmente não tem, infelizmente. Mas a partir do momento que você tem esse envolvimento, você diminui muito a questão da venda também porque você cria aquela obrigação, para eu poder receber eu vou ter que ter um compromisso de assinar um contrato, de pagar. Nessa urbanização, você recebe sem o ônus do pagamento da casa, você recebe a casa sem burocracia, você recebe a documentação pagando só água e luz, você não tem aquele vínculo com o pagamento com o banco “vou ter que pagar 5 anos essa casa “, “vou ter a documentação definitiva depois que eu terminar de pagar”, entendeu. (TÉCNICO 3 DA HABITAFOR)
Para o técnico entrevistado, o vínculo maior com a propriedade se fortalece mediante o
esforço financeiro para adquiri-la. Contudo, creio que para a maioria dos moradores da
Maravilha, por meio de entrevistas e observações, o vínculo maior se faz com o território em
que já estão enraizados há muito tempo. A vinculação com o lugar, a criação de territorialidades
através do tempo de permanência que mostra, muitas vezes, quem “eu sou” nesta cidade, trazem
sentidos e estabelecem elementos de identificação difíceis de se romper. São histórias presentes
em narrativas contidas no próximo capítulo.
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4) CAPÍTULO 3: A MARAVILHA DOS MORADORES
4.1 A Maravilha urbanizada: narrativas sobre a experiência de urbanização de uma comunidade favelizada
“Demorou muito, mas consegui minha casa”, a fala é de uma jovem de 34 anos,
moradora do terceiro andar de um dos blocos de apartamentos localizado no lugar de origem
da comunidade. Ela fala que chegou a morar de aluguel em outros lugares, mas logo que soube
que a “tal” da urbanização podia estar próxima de acontecer, resolveu comprar um “quartinho”
na comunidade Maravilha. “Olha, eu sofri demais porque era um quartinho pequeno pra morar
eu, meu marido e minha filha, mas tinha fé que conseguiria minha casa aqui, então fiquei”
(Renata, moradora da comunidade Maravilha, 34 anos). Como Renata, outros interlocutores
expressam o sentimento de nunca desacreditar que o sonho da casa nova e própria iria, enfim,
se concretizar. Sentimento compartilhado entre muitos moradores, principalmente por aqueles
que vivenciavam o lado mais “surrado” da comunidade, que viviam em condições mais
insalubres, dividiam espaço com a lama em períodos chuvosos e com os ratos rotineiramente,
lutavam para manter suas casas erguidas, pois o desgaste do tempo e da chuva provocado em
algumas moradias impeliam a estas uma condição de sempre inacabadas, ou melhor,
necessitadas intermitentemente de reformas.
Por outro lado, outros tantos moradores possuíam casas, em sua grande maioria,
localizadas na considerada, internamente, zona nobre da comunidade, em perfeito estado e
conservação. Casas, inclusive, recém reformadas pelos próprios moradores, “com cerâmica”,
como diria Dona Joana, portões e portas novas, garagens, varandas e até quintal. “Minha casa
era muito bonita, minha filha, eu mais meu marido quando chegamos aqui só tinha 9 casas, nós
trabalhamos pra deixar nossa casa bem ajeitadinha, do jeito que a gente queria”. A fala de dona
Joana tem o poder de captar aquilo que o poder público não publiciza, a chamada urbanização
de favelas nem sempre beneficiará a todos e, logicamente, não beneficiará a todos da mesma
forma.
É comum observar os slogans e propagandas de investimento público tratando das
urbanizações como melhoria e beneficiamento de todos os moradores de uma determinada
localidade. No sítio eletrônico do Tribuna Ceará, acessado em 26 de outubro de 201025, a notícia
retrata “famílias da comunidade Maravilha recebem apartamentos novos”. Comunica que
“famílias foram retiradas de áreas de risco e agora vão viver em habitações populares”. Da
25 Pesquisa realizada no período de construção do meu trabalho de conclusão da graduação em Serviço Social.
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mesma forma, o jornal O Povo, de 17 de fevereiro de 2011, traz como enredo “o sonho da casa
própria” e a “moradia adequada”. Na fala do presidente da HABITAFOR à época, o projeto de
reassentamento com 606 moradias envolvia a canalização do braço do rio que corta a
comunidade para, assim, torná-la um “local adequado para se viver”. Como também corrobora
o Sistema Jangadeiro, jornal local, acessado em 9 de novembro de 2009, noticiando que “420
pessoas da favela Maravilha ganham novo lar”.
As notícias dão conta de um cenário generalizante e mostram o Estado em seu papel de
dar resolutividade às questões sociais e pôr ordem na “cidade caótica”. Isso de acordo com um
plano de ordenação e limpeza já constituídos pelos moldes de se pensar o urbano no século XXI
e com base em princípios globalizantes. Como explicita Telles (2015) ao tratar de “cidade
global” ou “cidade neoliberal” que apresenta lógicas de produção dos espaços urbanos. Há uma
lógica de transversalidades e ressonâncias presentes nos diversos espaços e territórios urbanos
– jogos de poder e de atores – e em torno das quais os ordenamentos locais são produzidos,
negociados e agenciados em suas formas rotineiras ou conflituosas. No entanto, o que ecoa dos
noticiários exprime apenas a “façanha” do poder público e o “beneficiamento” da população.
Não observo, por exemplo, os contornos das disputas, dos conflitos e das experiências que não
se encaixam no perfil do tal beneficiamento.
“Essa urbanização pra mim não foi bom, perdi meus aluguéis, pra quem não tinha nada
foi ótimo”. A fala é de uma moradora, a quem chamo de Teresa, que tinha muitos “quartinhos”,
como ela mesma cita, por toda a Maravilha e de onde tirava boa parte de seu sustento ao alugar
esses imóveis. “Eu juntei minhas economias com a venda de comida, frutas e fui investindo
nesses quartinhos para alugar...eu tirava quase mil reais só de aluguel”. Na fala da moradora há
um misto de tristeza e sentimento de injustiça por ter perdido sua renda com a chegada do
projeto de urbanização. Ela explica que teve que vender, ou melhor, “praticamente dar” os seus
imóveis para não os perder completamente, já que só teria direito de receber um imóvel
referente ao atual imóvel onde situava sua moradia. “Olha, essas pessoas tiveram muita sorte,
as que moravam de aluguel, porque aí receberam uma casa nova praticamente de graça”. A
mesma moradora ressalta que morava na “rua da frente”, considerada área nobre da
comunidade, que sua casa era muito grande, duplex, “toda reformada” e que não se conformava
em receber a mesma casa que tantas outras pessoas receberiam quando estas possuíam apenas
um barraco.
Aqui, com esse e outros discursos apontados em campo, o sentido da homogeneização
(a falácia de que as pessoas numa favela comungam das mesmas necessidades) e
beneficiamento de todos vem abaixo. Entram em cena as histórias que se somam às das famílias
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beneficiadas e felizes com toda a mudança concretizada, as dos moradores que precisaram
resistir ou que se sentiram injustiçados por estarem regredindo nos seus padrões de moradia.
“Pra ser sincera, a urbanização foi uma bomba pra mim”, continua Maria em sua
narrativa, “como minha casa era muito boa, não me conformei em sair pra ficar apenas com
uma casa e ainda bem menor e pior que a minha”. A moradora, que na época já era ligada a
movimentos políticos na comunidade – hoje, faz parte da atual gestão da Associação
Comunitária da Maravilha – decidiu que sua única estratégia seria a de resistir. “Só sairia da
minha casa se eles me voltassem algum dinheiro também”. Assim, como se narrasse uma
verdadeira batalha entre inimigos, contou-me que mobilizou os demais moradores da rua da
frente para não saírem de suas casas, para que a HABITAFOR entrasse em negociação com
estes moradores. “A pressão foi muito grande, eles nos ameaçavam, diziam a toda hora que
iriam derrubar as casas com a gente dentro, muita gente não aguentou”. As ameaças, segundo
Maria, eram diárias, mas que não sucumbiu diante delas e fez muita movimentação,
peregrinando pela Regional e até à Procuradoria Geral do Município. “Teve gente que não
aguentou a pressão e saiu, mas até hoje toma remédio”.
A saída encontrada, para alguns, foi a medicalização da dor. Uma dor, conforme dona
Joana de “sentimento de angústia” ao ver sua “casinha” sendo derrubada. “Quando derrubaram
a bichinha, eu me desesperei demais”. A interlocutora fala a todo instante que sabia que a
urbanização seria para melhorar a vida da maioria das pessoas e, em muitos momentos,
demonstra que está satisfeita porque “entrou esgoto”, “as ruas são mais organizadas” e até
emenda um “Deus abençoe a Luiziana”. Mas, ainda assim, não deixa de manifestar seu
sentimento de injustiçada, “ficou o mesmo valor minha casa de quem tinha uma de tábua”, e
seu desespero ao ver sua casa que fora erguida com anos de labuta vir ao chão. “Elas andavam
era com remédio nos bolsos para dar ao povo”, ao se referir às funcionárias da HABITAFOR.
Lembrei, em meio às narrativas, um pouco da história da cidade de Jaguaribara, localizada no
médio Jaguaribe, interior do Ceará. Cidade que fora inundada pelas águas do imponente açude
Castanhão. Nesse caso, as pessoas foram remanejadas para outro território, onde fora construída
uma nova cidade, a Nova Jaguaribara. A mudança assustou muita gente que mesmo sabendo
que receberiam casas consideradas até melhores não deixaram de sofrer por suas casas que
representavam parte de suas vidas, memórias ali materializadas que passaram a constituir um
sentimento de luto26.
26 Sobre Jaguaribara e a experiência de seus moradores, ver melhor em Braz (2005), Braz (2011), Perote (2006), Silveira (2009).
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Para dona Joana, mais que um sentimento de luto, ela guardou um sentimento de perda
de direitos. “Como vocês têm coragem de fazer uma covardia dessa? ”, exclamou ao entrar na
nova casa. “A casa não tinha nada, minha filha, só as janelas e as portas, não tinha nem reboco”.
Teresa também achava que a casa seria entregue rebocada e com piso, “era o que a Luiziane
falava nas reuniões”. Para muitos que já tinham uma casa confortável e reformada foi
verdadeiro desalento receber a nova casa que mais parecia fruto de uma obra inacabada. O que
não conformava Maria que insistiu em não sair de sua casa até que a Prefeitura acordasse uma
indenização para além da nova casa. Os conflitos com Maria foram tão intensos que ela narra
uma verdadeira história de horror.
Eu dizia pra todo mundo que eu não tinha medo, que eu não saia do meio. Todo dia tinha alguém batendo na minha porta mandando eu sair porque tava atrapalhando as obras. Quem não segurou a pressão, saiu mesmo. Mas eu não saí. Aí, em 2008, o advogado do Habitafor mandou me surrar, me bater mesmo, levei soco e tudo, eu desmaiei. O ser humano é muito covarde. Fui em todo canto pra denunciar. Até que eles cederam e eu recebi 38 mil reais de indenização. Só quatro pessoas foram indenizadas porque lutaram.
Apenas uma casa da chamada rua da frente ou a “Aldeota da favela27” conseguiu
permanecer, mais pela sua localização do que por implantar resistência. A casa fica numa ponta
do território, o que não afetou as demais construções dos blocos de apartamento. Com o
exemplo de Maria, percebo o verdadeiro cenário ou movimento para implementação de uma
política pública que não afetaria igualmente a vida das pessoas que ali residiam. É um clássico
modelo do pensamento de Certeau (1994) quando este nos remete a pensar sobre as estratégias
empreendidas pelo Estado, com todo seu poder e investidas em planos e planejamentos, que
não escapam às táticas empregadas pelos moradores. Sujeitos “astuciosos” que fazem das
táticas instrumento para intervir no jogo de interesses, remexer nas regras. Telles (2015, p. 23)
situa com riqueza o cenário que estamos retratando:
Assim, por exemplo, em um programa dito de urbanização de uma grande favela, podemos encontrar: representantes dos poderes públicos que implementam esses programas, agências multilaterais de financiamento; escritórios de arquitetura de circulação internacional interessados na experimentação urbanística; bancos privados interessados em capturar novos clientes no hoje expansivo e lucrativo consumo popular; empresas privadas também em disputa de novos mercados. Simultaneamente, encontramos
27 A “Aldeota da favela” tornou-se expressão usual entre os moradores quando o tom da narrativa se aproximava mais da ironia. Apesar de muitos moradores da rua da frente ou setor I da comunidade (expressão originária do diagnóstico elaborado pela HABITAFOR) não reconhecerem nem que a antiga moradia era favela, mas aceitavam bem o termo criado para enaltecer a região. As pessoas se referiam dessa forma porque o lugar apresentava um padrão de qualidade das moradias muito superior ao restante da comunidade, daí a analogia com o Bairro considerado rico em Fortaleza.
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também: moradores locais e suas associações; igrejas evangélicas e seus seguidores; políticos locais e suas clientelas; chefes locais do tráfico de drogas e suas redes de negócios ilícitos...E ainda: agentes da ordem que tratam de controlar e policiar condutas e atividades cotidianas, sem esquecer seus “acertos” com os negócios ilícitos locais ou modos de acomodação e composição com os jogos de interesses constelados em cada local (...) Tudo isso se articula, compõe e se recompõe em uma arena de disputas, negociações, acomodações, acordos e conflitos em torno da distribuição dos recursos, dos modos e lugares de implementação de serviços e melhorias urbanas, etc.
Nesse cenário, os interesses são diversos, o jogo de resistir e conceder está sempre
presente, pois é assim que o território até então tido por favela vai ganhando novas
configurações e representações sociais. “Aqui era favela Maravilha, não gostava não, mas era
favela mesmo... O nome agora é Bairro de Fátima”, conforme a fala de dona Joana, a
urbanização trouxe elementos para a desconstrução do uso do termo favela – conforme visto no
segundo capítulo – e de todo o universo social que ele representa. Seu João acredita que “favela
Maravilha” traz o significado de “coisa não muito boa”, quando perguntado diz que mora
apenas na Maravilha, “aqui todo mundo conhece a Maravilha... Isso aqui é muito antigo”.
Interessante que insisto que ele me apresente uma denominação e ele diz “não sendo bairro é
favela, mas agora fizeram esse prédio”, referindo-se às construções dos conjuntos habitacionais.
Para ele, pouco importava essa referência ao lugar, o que lhe bastava era estar em um lugar
melhor. “Olha, quem não queria isso aqui é doido”, o interlocutor de 87 anos agradece muito –
creio que por ser evangélico, Deus e Jesus apareçam com frequência em suas falas de
agradecimento – porque sua antiga casa já estava bem “deteriorada”. Revela que só pediu muito
a Deus um bom vizinho, “aqui, diferente do interior que eu morava, as casas são muito junta,
tem que pedir um vizinho bom”.
A urbanização do território significou também mudanças profundas na forma de
apropriação e de tomar os espaços como referência afetiva. O que antes era o “Surrão”, o
“Morro do Macaco”, “Cemitério dos Burros”, “Tai da gata”, agora são nomes de ruas, números
de blocos, números de casas, letras. Teresa explica que antes era um só Código de
Endereçamento Postal – CEP e que agora cada rua tem seu CEP. “No começo, foi difícil, muito
número, muita letra, eles se perdiam”. O território ainda cortado por uma linha férrea –
conhecido por todos como trilho – mantém em seus moradores o mapa afetivo de outrora, como
pude identificar na fala de alguns “ali, onde era o antigo morro dos macaco” ou em “tu entra e
desce até o antigo Surrão”. Contudo, não fugiu ao ordenamento que se impõe como parte
obrigatória da formalização da cidade legal. A cidade ilegal, da ocupação, das invasões e
desregularizações começa a entrar no fluxo da “ordenação” da vida citadina.
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Uma ordem que parece fazer sentido na ressignificação do território e na maneira, como
bem expõe Mayol (1996), que implica uma forma de viver e se reconhecer por este espaço
apropriado. Não que as pessoas sejam mais felizes agora do que antes somente por vivenciarem
um espaço considerado ordenado de acordo com as imposições sociais que estão intrínsecas a
cada um de nós. O que Bourdieu (2014) vai tratar quando se refere ao “Estado que nos habita”.
O Estado que produz um mundo social ordenado, sem necessariamente dar ordens. Em síntese,
o Estado como esse ser “intangível” é também espaço de relações de força e de sentido ao
produzir princípios de classificação suscetíveis de serem aplicados ao mundo social. O Estado
que nos faz dar importância aos números que ordenam e classificam o mundo.
Na verdade, pelo que observei na Maravilha, as pessoas procuram viver a lógica do
ordenamento, mas também empregam, constroem e reconstroem sua própria ordenação.
Montam seus mapas afetivos e dão novos usos ao que veio e se fez posto. São as táticas
empreendidas que reordenam a vida social dos sujeitos, ou seja, no processo de distinção entre
“estratégias” e “táticas” há múltiplas maneiras de atribuição de sentidos (CERTEAU, 1994).
Os contra-usos expressos em movimentos de táticas dos moradores demonstram resistência às
estratégias dos sujeitos de poder institucional. Em um jogo conflitivo de poder e resistência, a
cidade planejada é muito menos traçada por planos e projetos e muito mais constituída pela
inventividade e sentidos que as táticas costuram cotidianamente. Como refere-se Leite (2002,
p. 122) “elas (as táticas) ocorrem justamente no interior dos espaços estratégicos, subvertendo
sentidos por não serem coerentes com esses espaços”.
Os movimentos de táticas podem ser observados e pinçados dos relatos de moradores.
“O bloco lá agora é o bloco do macaco, porque foi construído em cima do morro do macaco”,
fala uma moradora. É comum, inclusive, muitos idosos relatarem saudades das antigas
referências, mesmo reconhecendo que “as ruas estão mais largas” ou “aqui tá mais bonito”,
ainda há espaço para lembranças saudosas do “tempo antigo”. A urbanização traz histórias
novas, mas não apaga o sentimento de saudade de um tempo que, aparentemente, parecia ser
ruim. Isso porque as narrativas de sofrimento com os alagamentos, convivência com ratos, lixo
e esgoto a céu aberto registram um marco na história dos moradores que ainda se faz presente.
Mas não foi bem assim que acompanhei nos relatos. Os moradores reconhecem a vida de
sofrimentos, as grandes melhorias, mas não furtam de lembrar como, para exemplificar, que a
convivência era mais intensa entre os vizinhos, “ah, a gente vivia muito perto um do outro, era
porta com porta”, ou até do apego que alguns tinham com a sua casa, “feita do meu jeito”.
“Parece que as pessoas se reservaram mais, alguns pareceram que ganharam foi na loteria,
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viram até a cara, negam a fala”, é o que diz um jovem morador durante um grupo realizado na
comunidade.
Na mesma oportunidade, durante a realização de uma atividade em grupo, como já
relatado no primeiro capítulo, pude analisar alguns desenhos feitos por moradores sob a
instrução “desenhar a Maravilha antiga e a atual”. Observei que dos 9 desenhos obtidos, apenas
em 2 as pessoas deixaram claro as mazelas sofridas pelos moradores antigamente – ao
desenharem ratos, lixos e alagamentos – principalmente na área do Surrão. O que se faz
marcante é a presença do trilho e a nova identificação do lugar com a existência de blocos de
apartamentos. Nem só de tristezas e amarguras se faz a memória dos moradores a respeito do
“tempo antigo”. “Eu sinto saudade até de um banquinho de pedra que ficava na porta da minha
casa... Fim de tarde, eu tava sempre lá”. A fala é de uma moradora idosa que diz manter sempre
boas recordações. Assim como dona Lúcia, ao afirmar que sofreu com as enchentes, mas foi
muito feliz na sua “casinha” construída na época do mutirão organizado pelo Padre Amorim.
Ao falar sobre felicidade, ela lembra muito da presença do marido que não viveu para ver a
mudança e a casa nova. Percebo que suas memórias de satisfação com o lugar “de antes” estão
bem atreladas ao fato de sua família “estar completa”, com filhos e marido.
A lembrança, para Halbwachs, é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento, na medida em que porta o "sentimento do já visto". É reconstrução, principalmente em dois sentidos: por um lado, porque não é uma repetição linear de acontecimentos e vivências do passado, mas sim um resgate destes acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupações e interesses atuais; por outro, porque é diferenciada, destacada da massa de acontecimentos e vivências evocáveis e localizada num tempo, num espaço e num conjunto de relações sociais. Tanto o reconhecimento quanto a reconstrução dependem da existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais, e não simplesmente ideias ou sentimentos isolados, e que são construídas a partir de um fundamento comum de dados e noções compartilhadas (SCHMIDT E MAHFOUD, 1993, p. 289)
Diante do meu universo de entrevistas e observações, os idosos são os que mais se
manifestaram para lembrar de uma Maravilha que era “favela”, mas era um lugar bom de se
viver. A Agente Comunitária de Saúde – ACS Ana, inclusive, narra história de idosos que
“vieram a óbito por conta dessa mudança”.
A gente tinha uma idosa que era deficiente visual, que apesar de morar no Surrão, sabia se virar. Sabia que na frente da casa dela morava um filho. Sabia onde tava cada coisinha dela. No apartamento não, ela ficou perdida. Aí, ela acabou ficando numa rede, não queria mais levantar, perdeu mesmo a vontade. Acabou se agravando, pegou uma pneumonia e não resistiu.
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A ACS, por acompanhar a comunidade, ou melhor, assisti-la há alguns anos, traz
lembranças bastante vivas do que experenciou com os moradores. Lembra com detalhes de
sentimentos atrelados à urbanização que muitos idosos experimentaram, assim como também
se recorda dos relatos das crianças atendidas pelo Projeto Social em que trabalhava à época.
“Elas chegaram no outro dia dizendo ‘tia, na minha casa tem um banheiro, tia; tem um chuveiro,
tia; tem uma privada’, quando você se depara com um depoimento desse nos dias atuais, poxa,
você pensar que o ser humano não tinha uma privada, uma coisa tão básica”. A agente de saúde,
como outros retrataram, reconhece que mesmo sua casa sendo melhor antes era necessário
pensar na coletividade. Em suas palavras, “quando a gente mora numa comunidade, a gente tem
que ver o bem comum para todos, eu tava numa situação confortável, mas quando eu descia lá
pro Surrão não era legal o que eu via”. Ana descreve os tempos de enchente que só a
concretização do Projeto de urbanização foi capaz de mudar.
A primeira vez que entrei lá no Surrão foi difícil pra mim. Entrei com água até o joelho. Vê as pessoas naquela situação, eu saia com vontade de vomitar mesmo, me coçando, eu não conseguia ajudar. Ficava lá na CCF28 ajudando o pessoal que já tava chegando por lá, porque as meninas da CCF entravam mesmo. Tinham que ajudar a tirar as pessoas de lá porque a água vinha e tinha rato, tinha cobra, eu tenho pânico de cobra, fezes flutuando. (ACS ANA, 40 anos)
Nossa interlocutora descreve algumas penúrias enfrentadas por parte dos moradores e
acredita que a comunidade, como ela se refere, teve que se unir no sentido de aceitar que as
mudanças com a urbanização acontecessem para o “bem de todos”. Nesse momento, levanta
para si – como se pretendesse fortalecer uma espécie de necessidade de reconhecimento ao
lugar – a bandeira da comunidade. É interessante porque o seu discurso não se apresenta apenas
como a fala de uma moradora, mas consta também a fala de uma representante do poder público,
que “trabalha pelo seu povo”. Sua noção de comunidade se apregoa tal qual um “antídoto” aos
inconformados com as perdas. Percebo que o sentido de comunidade traz conforto para muitos
que se viram em um processo de perda de direitos. À comunidade, os moradores associam
sentimentos de união, familiaridade e pertença. Ouvi, informalmente, nos corredores do
Habitafor, “esse pessoal conseguiu ficar no mesmo lugar porque era uma comunidade já bem
estabelecida”.
28 A Casa da Convivência Familiar – CCF é uma organização da sociedade civil de interesse público. O Projeto foi inaugurado em 1995 na Maravilha com o objetivo principal de abrigar as crianças, com atividades de reforço escolar e acompanhamento social, nos horários alternados da escola. A CCF é fruto de uma iniciativa alemã e recebe patrocínio de uma Associação daquele país.
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A ideia de comunidade assume, na verdade, um duplo sentido para os moradores. Tanto
desliza em torno da simbologia da união entre todos como valoriza a representação de um lugar
mais apropriado para se viver, que estabelece um oposto positivo ao uso do termo favela. Dona
Maria se refere ao primeiro significado, “é uma comunidade, eu acho que aqui tem tanta paz,
apesar dos pesares... Aqui, todo mundo se conhece de pequenininho, a gente tem alguns
vagabundos, mas respeitam a gente. Acho que isso aqui é uma comunidade bem linda mesmo”.
Já em trabalho de campo realizado antes da urbanização, uma moradora relata que prefere
chamar “Comunidade Maravilha”, pois “a favela eu acho que seja até uma palavra assim, que
não seja muito boa, que tão desconsiderando”. E assim como ela, muitos moradores acreditam
que a “evocação” da favela está essencialmente carregada de imagens e representações que
pouco informam sobre os processos sociais existentes. Isso porque - conforme pudemos
constatar no seu movimento de construção social, conforme analisa Castro (2004) - foi
modelada como “unidade social”. E, neste caso, negativamente, muitas vezes identificada, de
maneira quase que universal, como local insalubre e propagador de doença, abrigo de
marginais, avesso da civilidade. No entanto, como forma de desconstruir tais indesejados
paradigmas e fortalecer a supremacia da harmonia, do compartilhamento do comum (aspecto
importante na “chamada para as lutas”), a comunidade igualmente acaba por modelar-se numa
“unidade social”.
Neste sentido a substituição de um termo por outro, não contribui para a compreensão da dinâmica dos processos sociais, para a compreensão do significado e da forma como os diferentes dispositivos acionados por indivíduos e coletividades respondem a processos de interação (CASTRO, 2004, p.194).
Acreditar que a “favela”29 significa o berço da sujeira, da pobreza, da violência, da
carência material e moral é da mesma forma compreender que a “comunidade” revela um povo
que vive em harmonia, unido, que comunga das mesmas experiências. Daí se faz a extrema
relevância, conforme ainda observa Castro (2004), de não se enrijecer tais categorias analíticas
ao ponto de mascarar o movimento presente nesta realidade. Estou, assim, discutindo a respeito
de um mesmo espaço social que se constitui em sua heterogeneidade, mas que não se reduz ao
29 A construção dos moradores do que era o Surrão corrobora com a definição do que seja “favela”. Para muitos, a favela é o lugar onde só se encontra “casinha pobre”, “pessoas barraqueiras”, aquelas que gostam de confusão, ou então, no dizer de uma das moradoras mais antigas, que fazem muita frescura, envolvem-se com drogas e roubos. Assim, o Surrão era o lugar que apresentava muito desta delimitação: “Porque lá dentro é mais trancado, também a “moradiazinha” deles é pobre, é barraquinho, tábua, diferente da daqui. Aqui tem casa de tijolo, lá é mais favela mesmo como diz a história” (Dona Maria).
99
todo maniqueísta ele é bom ou ruim, feliz ou triste. Esse espaço “agido” e “vivido” é muito
mais “múltiplo” do que cogitamos até então.
Esses diversos recortes e polaridade na comunidade, sobretudo estabelecida entre
“Surrão” e “rua da frente”, de certa maneira manteve-se presente após a urbanização. Isso
devido à configuração do Projeto de urbanização. Como a área do Surrão foi a primeira a ser
urbanizada, consequentemente, os moradores desse território foram os primeiros a sair. Uma
parte foi remanejada para blocos de apartamentos no Planalto Universo, na comunidade
conhecida como “Boba” e outra parte foi para o outro lado da BR 116, para condomínios
construídos no terreno comprado pela Prefeitura (ver mapa na figura 11). Dessa forma, sem
cogitar as mudanças devido a permutas entre os moradores, o “Surrão30” acabou sendo
deslocado do território inicial da comunidade. Ana conta que os moradores do Surrão foram os
primeiros a sair e que “era bonito de ver aquela mudança, aquela energia boa”. Mas também
não deixa de narrar os acontecimentos pós mudança que influenciaram a despedida de muitos
que resolveram vender suas casas e traçar outros destinos.
É porque o pessoal era muito apegado ao local mesmo, então muita gente não se adaptou, acabou vendendo apartamento. Teve muito mais venda pra lá do que pra cá. Planalto Universo teve muito mais venda. Acho que quase a maioria não tá mais aí. Alguns foram pro interior, alguns foram pra outra comunidade e outros venderam, gastaram o dinheiro e voltaram pra área de risco (ACS ANA, 40 anos)
30 O Surrão também recebe definições da mídia desde longa data: “No escuro e sem água potável. É nessa situação que se encontra mais de 50 famílias que residem no “Surrão”, um trecho da favela da Maravilha” (Diário do Nordeste, 19/03/1989). E, mais recentemente, sob o título Comunidade denuncia inchaço de favela no Bairro de Fátima, o chamado Surrão é destacado: “O local é mais uma área de risco, já que, para lá converge 60% das águas de Fortaleza. Em época de chuvas, o lugar desaparece sob a lama e o lixo arrastado pelos canais afluentes, sujeitando os barracos e seus moradores a uma tragédia” (Diário do Nordeste, s/d).
100
Figura 11
Figura 11 – Identifica a disposição atual da comunidade Maravilha após a urbanização. No mapa, visualizamos o Conjunto Habitacional Maravilha (circulado) com um setor antes e outro depois da linha férrea do Veículo Leve Sobre Trilhos – VLT. O Conjunto Habitacional Nossa Senhora de Fátima encontra-se logo depois do canal e da BR 116. Fonte: Google Maps.
As insatisfações destes moradores somaram-se à problemática socioeconômica, pois de
acordo com informações colhidas junto a ACS, a maioria dos moradores da Maravilha era
composta por catadores de materiais recicláveis que ganhavam cerca de 10 reais por dia, “não
tinham como pagar as contas de casa”. Na antiga moradia, ao não terem recursos financeiros
suficientes para pagarem serviços essenciais, como energia elétrica, muitos moradores
praticavam o conhecido “gato”31. Ao fazê-lo, não se preocupavam com pagamento de energia
ou água. “As pessoas não tiveram como se sustentar, eu tenho muita pena nesse sentido”,
destaca a agente de saúde. Alguns não tiveram mínimas orientações sobre aspectos peculiares
que envolveriam a urbanização. Para Ana, faltou “educação social”. “Então, o que foi que
aconteceu? Eles se mudaram pra lá e teve gente que chegou pra mim e disse assim ‘eu tou
lavando a roupa e tou jogando a água fora pra não pagar esgoto’”. Como se o fato da água não
descer pelo cano fosse privá-lo da responsabilidade do pagamento da conta de esgoto. Então, a
31 A prática do “gato” envolve a ligação elétrica clandestina destinada a furtar energia elétrica do sistema de rede da cidade. No Brasil, tal prática é considerada criminosa, contudo, muito comum de ser observada, sobretudo, nas áreas mais pobres da cidade.
101
princípio, os moradores provenientes do Surrão tiveram mais dificuldades. O processo de
adaptação a uma “nova” vida exigiu a inserção dessas pessoas em um novo padrão cultural.
Muitos, para exemplificar, criavam animais – como galinhas, muitos cachorros e até bode,
vacas – que entraram como pauta de discussão entre moradores e HABITAFOR tendo em vista
a impossibilidade de mantê-los na vida urbanizada e sua “necessária” ordenação. Assim como
os catadores encontraram dificuldades para armazenar seu lixo coletado durante o dia. Nesse
último caso, a organização comunitária se fez decisiva para a construção de um galpão de
reciclagem. Uma catadora bastante conhecida entre os moradores tornou-se forte liderança
nessa empreitada que culminou no reconhecimento da Prefeitura da necessidade de se erguer
um lugar para o armazenamento desse material.
A líder que iniciou o diálogo com os responsáveis pelo Projeto na HABITAFOR era
chamada de Ronaldinha. Ela recebera esse nome em analogia ao jogador de futebol, em alta
àquela época, devido ao seu cabelo raspado como o do então jogador. A catadora participou
ativamente das negociações com a Prefeitura. Eu pude entrevistá-la na época em que expressava
sua indignação de não poder acumular o lixo em seu pequeno apartamento, pois havia uma
ferrenha discussão com os demais moradores que não admitiam tal prática nos apartamentos
por tornar o ambiente propício aos ratos e baratas. A própria líder do movimento que lutava por
um lugar, sobretudo, seguro para guardar seu material e “carrinho”, não concordava em mantê-
los no apartamento. “O que me deixa mais indignada é a Prefeitura não ver que esse problema
ia acontecer com um monte de catadores no Surrão”. A fala de Ronaldinha descreve uma falha
de planejamento durante o andamento do projeto de urbanização. A discussão sobre
planejamento revela o que Freitas (2010) inspirado por Magnani (2002) elucida quando faz
referência à cidade tratada “de fora e de longe” esquecendo os sujeitos sociais e seus
agenciamentos cotidianos.
O registro do envolvimento cotidiano e direto do pesquisador com seu ‘objeto’ de estudo, e o registro de narrativas, além da análise detalhada de vários tipos de documentação escrita e imagética, ajudam a lembrar esta dimensão esquecida pelo olhar ‘de fora e de longe’. É um ‘olhar de perto e de dentro’, como designa Magnani (2002), que vai além do ‘olhar competente’ do perito que decide ‘o que é certo e errado’, torna complexa a perspectiva dos ‘interesses do poder’ que decide o que é conveniente como empreendimento e lucrativo como investimento, assim como relativiza uma tendência universalizante. (FREITAS, 2010, p.62)
O autor, assim, adota a perspectiva de que se deve procurar os distintos ordenamentos
de sentido, signos, significados, usos e práticas presentes na cidade, e ter cuidado com a
homogeneização em prol de um ordenamento geral, único e definitivo. A partir desta inspiração,
102
pensar ordenamentos sociais possíveis, sobretudo, usos e contra usos e formas de organização
distantes das “mãos” do poder público configurará o item dois deste capítulo. Abordarei o
cotidiano na Maravilha urbanizada diante do que já fora aqui exposto, sob a compreensão dos
diversos olhares e narrativas depreendidas em torno de tal reforma. Esta que não significou
apenas a construção de muros ou a dragagem de um rio, que não significou apenas mais
concreto ou ruas mais amplas, que não significou somente a caminhada da vida em degraus e
por entre blocos, significou e significa mais. Mais em habilidades de agenciamento, em disputas
por distinção, em vida que se faz cotidianamente.
4.2. O cotidiano na Maravilha de hoje
A urbanização da Maravilha criou novos cenários assim como outras dinâmicas
socioculturais, redes de sociabilidade e distintas práticas que podem ser capturadas e
apreendidas em demonstração daquilo que Agier (2011) denomina por “cidade bis”: “A cidade
produzida pelo antropólogo a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações
dos citadinos que ele próprio observa diretamente e em situação” (AGIER, 2011, p.32). Essa é
a cidade entendida como processo humano. A Maravilha urbanizada, em seu cotidiano,
desvenda sua dinâmica local numa espécie de imbricamento entre mudanças estruturais e a
consequente influência deste fenômeno na forma de estar na cidade por parte dos moradores.
Em entrevistas, observações e andanças pelo campo, algumas questões adquiriram mais ênfase
e ganharam concretude no estudo durante a caminhada investigativa.
4.2.1 O público e o privado
“As ruas estão mais largas, isso é muito bonito”. A fala de uma moradora evidencia sua
satisfação com a mudança estética da comunidade. No entanto, mais que um apelo estético, sua
fala destaca uma mudança de estilo de vida. Significa que a Maravilha dos becos, dos labirintos
para os forasteiros ao local, não existe mais. A comunidade de antes da reforma marcada por
uma arquitetura muito singular de becos, entradas e saídas, imersa em um movimento de
construção próximo a uma bricolagem, onde muros e passagens se erguiam e se desfaziam a
qualquer momento, agora convive com os traçados da cidade planejada. Como constata
Berenstein (2003), o espaço efetivamente labiríntico de algumas favelas, tal é o emaranhado
dos caminhos internos, e ainda sem placas, nomes, números, sinalizações em geral, torna-o cada
103
vez mais privado aos que nele habitam. Será que a Maravilha das ruas largas se vê mais inserida
na cidade dita formal?
Nos tempos de “favela”, foi-me difícil entrar na comunidade, senão acompanhada de
um “guia”. Em um momento que me aventurei a fazer uma entrevista no Surrão sem guia, não
consegui, de forma alguma, retornar sozinha para o trilho, parte mais “aberta” da comunidade.
Mais do que me sentir perdida naquele território labiríntico, sentia-me uma intrusa. Sentia que
a cada beco que entrava, a cada acesso que escolhia, estava invadindo a privacidade de algum
morador. Era a senhora estendendo as roupas da família, outra acendendo o fogareiro no preparo
do almoço, a criança que brincava de bola, o senhor que consertava seu sapato, os jovens que
conversavam em banquinhos. Tudo no espaço dos becos, no que se considerava rua, no externo
ao seu lar, no espaço público que lhes restavam como complemento ao espaço privado para
realização de suas atividades necessárias ao cotidiano ordinário daquelas famílias.
Eu percebo que hoje as pessoas estão mais afastadas. Não tem mais aquele sentimento mesmo de comunidade, sabe? Eu acho que é porque antes era tudo muito junto mesmo. Não sei se as casas eram muito pequenas, escuras, ruim mesmo, aí as pessoas ficavam mais nas ruas. Acho que é porque morava muito um por cima do outro, aí tinha mais aquela união. Deve ser isso (RENATA, moradora da comunidade Maravilha, 34 anos ).
A interlocutora questiona a influência dos traçados e disposição das moradias e ruas na
mudança de relacionamento entre os moradores. Ao passo que para muitos moradores a
Maravilha adquire ares de bairro com sua nova arquitetura quando do reconhecimento de “não
é mais favela aqui” ou “aqui é só Maravilha” e, ainda, “Aqui é bairro de Fátima”, não deixa de
incutir o questionamento da positividade da ordenação de outrora na constituição de um
sentimento mais aflorado de comunidade. Essa narrativa tão presente, sobretudo entre os
moradores mais idosos, confere um contexto saudosista ou até de idealização do passado. Um
passado que, conforme este perfil de moradores, os mais idosos, foi marcado por um sentimento
de partilha maior e isso, grande parte, por influência da situação de moradia. Um passado que
remonta ao que Certeau (1996) acredita ser “trabalho” dos relatos urbanos, qual seja,
transformar as memórias – “infância, tradições genealógicas, eventos sem data” – em elementos
vivos de uma história construtora de uma “cidade mítica”. “Acrescentam à cidade visível as
“cidades invisíveis” de que fala Calvino” (CERTEAU, 1996, p. 200)
Na Maravilha o modo relatado de habitar e fruir os espaços públicos se entrelaçava com
os espaços privados. Hoje, a lógica urbanística racional parece fazer sucumbir, em partes, a
“lógica do caos”. Junto às construções de blocos com as unidades habitacionais, vieram ruas
104
largas, calçadas e espaços projetados no sentido de tornar mais privado o lugar destinado ao
abrigo e mais público aquele espaço que assim deve se tornar de livre acesso. É bem notável
para “os externos” à comunidade que, hoje, a adentram, o sentimento de “caminhar por um
bairro”, de sentir-se em um espaço mais público pela forma como espaço encontra-se disposto,
mesmo que para os moradores o tempo de vivência e a apropriação destes espaços acabem por
gerar o que Certeau (1996) identifica por “privatização progressista do espaço público”. Os
becos já não mais existem como prolongamentos das casas, mas é possível observar as calçadas
que recebem ladrilhos e perdem seu tom acinzentado e seu caráter normatizador, os
“puxadinhos” que buscam invadir sorrateiramente o espaço das ruas, os lugares dedicados
imprevisivelmente ao abrigo de carros de moradores, traduzindo, desta maneira, as artes do
fazer, conforme ainda Certeau (IDEM) e os contra usos (LEITE, 2002).
As ruas ou o espaço “de fora” continuam sendo, também, lugar de encontro, de
confraternizar com as cadeiras na calçada, das brincadeiras das crianças. Ainda que menor,
devido à nova configuração física do espaço, como traz Matos (2002, p.46), “o privado
ultrapassa os círculos da moradia ou da família, misturando-se com os laços comunitários e
étnicos, criando espaços de sociabilidade e reciprocidade”. O “público”, em movimento de
distinção, designou-se “o lado de fora”, o mundo da produção das condições materiais de vida
em contraponto ao da reprodução da existência, sendo, inclusive, correspondido “às conotações
negativas de multidão, perigo, estranhamento, indiferença, circulação”, conforme Matos (2002,
p. 46).
A casa e a rua, o público e o privado são elementos que, como retrata Certeau (1996, p.
43) “não são remetidos um de costas para o outro”. São, na verdade, interdependentes um do
outro porque, no bairro, ou na comunidade, um não tem significação sem o outro. São os
opostos que dão sentido à existência de cada um. É na conjugação de um “dentro” e um “fora”
que se formula, segundo ainda Certeau, a delimitação de um espaço que é tomado como
“parcela conhecida do espaço urbano” para determinado usuário:
O bairro constitui o termo médio de uma dialética existencial entre o dentro e o fora. E é na tensão entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro, que se efetua a apropriação do espaço. Um bairro, poder-se-ia dizer, é assim uma ampliação do habitáculo; para o usuário, ele se resume à soma das trajetórias inauguradas a partir do seu local de habitação. (CERTEAU, 1996, p. 42)
Esse contexto, compreendido por Certeau como bairro, é vivenciado pelos moradores
da Maravilha sob a denominação de comunidade. O que torna a configuração do espaço dito
público ainda mais privado, pois é comum as pessoas observarem ou até vigiarem quem neste
105
espaço percorre. Senti, em uma de minhas caminhadas pelas ruas da comunidade, olhares
interrogativos quanto a minha presença ali. “Quem é a senhora? Faz o quê por aqui? É doutora
nova? ”, foram indagações feitas por uma moradora ao me ver próxima à ACS da área. Em
outra ocasião, fui sozinha à casa de uma moradora que, naquele momento da visita, se
encontrava ausente. O vizinho morador do andar de cima, que me viu se aproximando, logo
questionou “A senhora quer falar com alguém? ”, respondi que procurava uma senhora e ele
me alertou que esta estava internada, “quer falar alguma coisa? Deixar algum recado? ”.
Visivelmente eu não era dali, o espaço público que percorria era um espaço permitido para
minha locomoção, mas eu não pertencia a ele, logo não se fazia tão público assim. Lembrei-me
de Comerford (2003). em suas investidas antropológicas na “roça”. Ao caminhar e se hospedar
na casa de moradores de pequenas localidades na zona rural, sempre era indagado sobre sua
origem, tão nítido se fazia seu não pertencimento àquele lugar. Mas não devido à aparência, na
realidade, o que acontece é o estranhamento por parte dos moradores que sabem muito bem
quem circula pelo território. Interessante a questão a que chega Comerford (2003, p. 30):
“‘Você é parente de quem? ”” (...) Essa maneira de abordar um estranho percorrendo essas
localidades rurais revela um pressuposto: a princípio, quem circula nessas localidades ou é
morador do lugar ou é parente de morador do lugar”. Meu rosto não era familiar aos que sempre
estão por ali e que conhecem os que por ali costumam andar. Esse controle informal, tal qual
cita Comerford (idem), faz parte de uma “rede de observação” que representa um traço
marcadamente cultural, elemento da “arte agonística das relações sociais” (2003, p.32).
Este espaço público da comunidade, muitas vezes tão íntimo e restrito aos que nela se
territorializaram, contudo, também se faz palco da publicização de insatisfações sociais. Levar
determinada problemática para as ruas denuncia a questão para a sociedade, impõe pressão ao
poder público. No caso da Maravilha, ocupar o espaço da rua depois da urbanização gerou
repúdio por parte de alguns moradores e apoio em outros aspectos. Escutei “a Maravilha tá
muito bonita, só não tá mais por causa daqueles barracos” e “Esse povo veio pra cá ‘enfeiar’ a
Maravilha”. Por outro lado, ouvi também que eles estavam no direito deles de procurar uma
vida melhor. Trata-se da ocupação que surgiu nas margens da linha férrea, no momento de
construção do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), tática para ocasionar mais pressão no Estado.
Pressão esta não somente por um possível impedimento ao andamento das obras do VLT, mas
ainda por influenciar negativamente na construção de uma “urbanidade” na Maravilha.
Urbanidade comungada para defender a ideia de civilidade, de ordenação. Ou seja, a
“desfavelização” do local estava seriamente ameaçada. A desordem voltava a invadir o espaço
público. Uma moradora explica como se deu a ocupação.
106
Começou com os moradores da Maravilha, tipo um filho que morava com a mãe e arrumou uma mulher e filho, aí foi e montou um barraco pra ver se conseguia uma outra casa. Eles estão no aluguel social agora, alguns na Boba, outros no Bom Jardim, porque eles estavam atrapalhando a construção do VLT e possivelmente eles possam ganhar uma casa. Mas ainda não tá acertado. Eles deram um ano de aluguel social, num valor ‘x’, por isso que teve gente que foi pra tão longe, porque o dinheiro é pouco. (ACS ANA, 40 anos)
A ocupação que surgiu pós-urbanização revelou o desejo de “cuidado” com a
comunidade pelos moradores, contudo sem negar o reconhecimento de uma luta ali florescente,
a luta por moradia. Os moradores sentem, de forma umbilical, que aquele espaço público
ocupado é de todos, querem zelar por ele, como na fala da ACS Ângela, “esse pessoal tá
deixando o lugar meio feio, tão querendo desorganizar as coisas e isso não é legal pra gente”.
Houve o incômodo com a apropriação deste espaço que é “tão nosso” na fala dos moradores,
não se pode negar, mas, ao mesmo tempo, uma aceitação – por alguns até identitária por já ter
se encontrado em situação similar – com a ideia da necessidade de ocupar para alcançar um
objetivo. Neste caso, o objetivo é o direito à propriedade, à inserção na cidade de maneira a
driblar o jogo de mercado tantas vezes inacessível para grande parte dos que ali se encontram.
Como bem trata Caldeira (2000), que mesmo expressando uma realidade inerente à cidade de
São Paulo, não deixa de tocar em um universo que representa uma realidade nacional, a
dificuldade histórica de acesso a empréstimos por parte das classes populares. Enquanto as
classes médias conseguiam empréstimos subsidiados pelo governo, às camadas trabalhadoras
restava a construção precária de casas nas periferias das cidades.
No caso da Maravilha, não se trata de periferia e sim de um território com privilegiada
localização na Cidade. Contudo, as condições de habitação do terreno o tornaram
desinteressante para o mercado, como a proximidade com o canal do rio e a linha férrea.
Conforme a disposição do espaço, o fato dos moradores estarem concentrados em uma área de
acesso mais restrito, sempre tornou a relação da comunidade com seu entorno mais pontual. Na
verdade, retomando a discussão central aqui proposta e ampliando o contexto desta, a
comunidade antes da urbanização encontrava-se limitada a um espaço que a tornava mais
privativa aos moradores. Do ponto de vista espacial, muitos não tinham sequer conhecimento
da existência daquele território. Na fala de uma técnica da HABITAFOR, “as pessoas estavam
escondidas ali naquele espaço”. Um terreno que se assemelhava a um fosso, meio como uma
bolha, como um enclave num universo de asfaltos, mas ali, encoberto, à parte, “quietinho”. Até
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que com a urbanização, esse “mundo” resolve se mostrar, resolve ganhar o espaço público,
fazer mais parte da Cidade. Foi quando parte dos conjuntos habitacionais é construída do outro
lado da BR 116, bem mais próxima de diversos empreendimentos como prédios de classe média
e um grande hospital privado de Fortaleza. Assim, a confrontação de uma lógica público versus
privado, sob o enfoque do espraiamento da comunidade que é lançada para fora daquele
território fechado e sem tanta visibilidade, ganha contornos que expressam o desejo explícito
do segregacionismo classista de nossa sociedade.
Quando os profissionais do Hospital da Unimed souberam do projeto de urbanização da Maravilha, se mostraram muito satisfeitos. Eles diziam pra gente que finalmente a Prefeitura tomava uma atitude com aquelas pessoas. Elogiavam nosso trabalho por lá. Mas quando tiveram o conhecimento de que parte dos moradores iria para o terreno bem próximo do Hospital, quando souberam que a comunidade ficaria mais visível... Ah, aí não gostaram. A gente recebia ligações das equipes médicas perguntando porque íamos deixar aquele pessoal ficar ali. Houve muita resistência para a compra do terreno (a Prefeitura comprou o terreno que era de particular para a construção dos blocos de apartamento para os moradores da Maravilha). Enquanto eles estavam tudo escondido na beira do canal, ninguém se preocupava muito, quando saíram para morar ali do outro lado da BR, as pessoas começaram a ser resistentes (Assistente Social, técnica da HABITAFOR)
A segregação, assim como descreve Rolnik (2012, p.54), “se impõe ao nível da
constituição de territórios separados para cada grupo social”. E no contexto descrito, a sede por
segregar, esquadrinhar o espaço de acordo com uma meritocracia moralizante e moralizadora,
faz com que a aceitação da Maravilha para fora de seus muros se torne pauta de resistência
social. A reivindicação é para que a urbanização aconteça, mas para que o espaço continue
privado àqueles que nele circulam, seus moradores e outros sujeitos daquele universo, daqueles
que habitam a “vida em comunidades”. A principal alegação dos que condenam essa “tomada
da cidade” pelos moradores “favelados” seria a desvalorização do território por uma
aproximação daqueles que representam violência, sujeira e desordem.
Os moradores que se sentem legitimamente cidadãos da cidade e merecedores daquele
território não suportam a ideia de ter a sua “mancha” (MAGNANI, 2002) na cidade invadida
por quem não reconhecem como dignos a habitar tal mancha. De acordo com Magnani (2002,
p. 24), as manchas urbanas se estabelecem a partir da demarcação de uma área contígua,
“delineada pelos equipamentos que se complementam ou competem entre si no oferecimento
de determinado bem ou serviço, é reconhecida e frequentada por um círculo mais amplo de
usuários”. Contudo, no processo de aceitação mútua daqueles que circulam por determinado
território, por comungarem padrões sociais similares, nem todos são bem quistos e
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“convidados” a habitar determinada mancha. Pelo que pude observar no campo de pesquisa,
enquanto tal mancha era apenas parte de um trajeto – “representam escolhas ou recortes no
interior daquela mancha” (MAGNANI, 2002, p. 23) – para os moradores da Maravilha, estava
tudo mais tranquilo, eram apenas passantes naquele cenário estabelecido (ELIAS E SCOTSON,
2000). Mas ao se depararem com a situação real de terem que “abrir as portas” para dividir seu
espaço físico com aqueles moradores da favela de baixo, os ali estabelecidos não se mostraram
preparados.
Esse exemplo da Maravilha, de estigmatização territorial (GOFFMAN, 1978), tanto
interfere na construção de identidades dos moradores “deterioradas”, povoadas pela baixa
autoestima como no surgimento desse medo e rejeição pelos “de fora” tão citado aqui. Segundo
o autor, o estigmatizado passa a esconder seu endereço como numa busca de omitir sua origem
remetida ao caos, à bandidagem, aos dejetos de uma sociedade. O processo de estigmatização
no qual se encontra pode levar à mudança de moradia, muitas vezes, por não perceber a
possibilidade de desvincular-se de tal estigma se não por meio da saída do dito território
estigmatizado.
4.2.2 Violência, estigmas e lutas classificatórias internas
A representação da favela e seus moradores em analogia ao medo e à violência é
histórica. Para os moradores do entorno, bem configurados no exemplo dos profissionais do
Hospital, os moradores simbolizam uma ameaça à ordem pública. Há uma configuração que se
veicula como em os estabelecidos e os outsiders (ELIAS E SCOTSON, 2000). Em analogia ao
contexto da comunidade estudada pelos autores, os que se sentem estabelecidos, os moradores
do entorno – nem tanto pelo tempo de fixação territorial, mas pela situação de legalidade e
formalidade com o território – não aceitam a inclusão do que para eles se classificam como
outsiders. Ser o “de fora”, o “estranho” em comparação a típica racionalização burguesa da
normalidade, confere a estes sujeitos o rótulo estigmatizante, nesse caso específico, a
exemplificar, “os produtores” da violência urbana. No entanto, este ponto aborda, sobretudo, o
olhar dos moradores quanto ao cenário de mudanças da violência local após a urbanização da
comunidade. Será que os moradores se sentem como integrantes do imaginário da violência
urbana que recai sob os territórios pauperizados da Cidade?
Uma fala que ainda ecoa em minhas memórias, do período de campo para o trabalho de
monografia na graduação, foi de uma senhora, moradora antiga da Maravilha, que me relatava
109
sobre a investida do filho em uma empresa das redondezas à procura de emprego. A moradora
contava que o filho sempre foi muito estudioso e fizera diversos cursos na área de pleito da
vaga de trabalho. Ela narrou-me que ao chegar à empresa, foi efetuada avaliação do currículo
do seu filho que o considerou apto para a vaga em questão. Chegaram a confirmar que a vaga
era dele, pediram que voltasse no outro dia para começar as atividades. Contudo, no momento
de despedida, para preencher um cadastro, perguntaram onde o filho morava. O jovem, filho da
interlocutora à época, disse que era bem próximo, na Maravilha. O funcionário pelo cadastro
retrucou “Na favela Maravilha?”, o jovem apenas confirmou com um sinal positivo. A
moradora, então, contou que o funcionário entrou e pediu um instante, quando retornou,
desculpou-se e disse que havia se enganado, que a vaga já havia sido preenchida. Minha
interlocutora não conseguia esconder sua indignação com o preconceito sofrido pelo filho.
“Quer dizer, só quando ele disse que morava aqui, a impressão já tá mal lá dentro do trabalho,
eles acham que todo mundo que mora aqui é marginal, é perigoso” (Moradora entrevistada em
2008, período de pesquisa para trabalho monográfico).
O estigma da moradia no lugar favelizado se corporifica e marca os sujeitos de forma
indelével. O uso desta categoria está ancorado em Goffman (1978) que traduz, de forma ampla,
o estigma como a “situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”.
Para o autor, o estigma está diretamente vinculado à construção da identidade social de um
sujeito. Há atributos socialmente positivados ou não que são relacionados aos sujeitos, podendo
algum destes atribuir estigma ao sujeito envolvido no contexto. Esses estigmas se manifestam,
segundo Goffman, em relação às deformidades do corpo, ao que ele denomina por “culpas de
caráter” e às vinculações tribais de raça, nação e religião. No exemplo do morador dito
“favelado”, se verifica aí a condição do estigma pela idealização da favela como reduto de
sujeira, pobreza e marginalidade. Assim o “favelado” se faz sujeito que traz consigo o “caráter
desviante” por habitar um lugar espúrio, produtor de marginais e que, hegemonicamente e
homogeneamente, “afeta” aos ali residentes.
Uma violência que se estabelece como construto histórico de uma socialização
excludente e “apartadora”. Como discute Santiago (2002), Fortaleza, exemplo de grande
metrópole, ou na cidade “Forte”, os territórios se encontram bem demarcados sob a tensão de
quem pode e de quem “ali” não pode transitar ou habitar. Em meio a um urbanismo nascente
no País, a ordem principal entre médicos sanitaristas e governantes era a de manter a cidade
purificada, condizente com o perfil de desenvolvimento e progresso desejado, que nos mínimos
detalhes contava com o alinhamento das ruas, arborização das praças, limpeza de lugares
públicos, do ar, dos focos de doença. A concretização de um verdadeiro “paraíso”, um cenário
110
quase novelesco32. Mas algo de inoportuno poderia impedir o andamento desta política. Os
pobres e suas habitações. Dialogando com a historiadora Margareth Rago (1997, p.164)
vivenciamos de perto os discursos deste momento:
O controle global da população pobre da cidade, seja nos lugares públicos, seja no espaço doméstico, por parte destes especialistas se funda na crença generalizada de que a “casa imunda”, o cortiço e a favela constituem focos onde se originam os surtos epidêmicos, os vícios e os sentimentos de revolta.
A discriminação e criação de estigmas, no novo cenário da Maravilha urbanizada, não
se encontra mais tão pungente nas falas dos interlocutores como parte constitutiva do cenário
da violência subjetiva travada pelos moradores de territórios pauperizados. As narrativas tratam
da violência urbana, assunto que está presente nas pautas cotidianas de quase todos os
telejornais e de muitos no País. Não sendo diferente, na Maravilha, o assunto violência acaba
sendo evidenciado nos diálogos e entrevistas com os interlocutores. Como pesquisadora, meu
interesse maior era compreender a influência da urbanização nos índices de violência local. O
que me intrigava era a busca pela percepção de mudanças no território pós urbanizado em
relação à violência urbana. Para alguns interlocutores mais idosos, como dona Conceição, “a
Maravilha sempre foi um lugar tranquilo para se morar.” Por violência urbana, trabalho com a
compreensão a partir das leituras em Freitas e Paiva (2015) que tecendo com outros autores
trazem a seguinte reflexão:
Em linhas gerais, adotamos aqui a perspectiva de Silva (2008), que trata a violência urbana como uma representação coletiva que não tem um significado homogêneo, mas existe como uma categoria do entendimento do senso comum que consolida e oferece sentido a experiências vividas na cidade. Assim, a violência não é apenas relacionada ao crime, pois tem um horizonte semântico mais amplo e nos permite pensar, entre outras coisas, os problemas políticos e morais que permeiam a vida em sociedade. Consideramos também a violência do ponto de vista histórico e cultural, como ação que envolve a percepção de agentes a respeito dos limites ou das perturbações de acordos tácitos, entendimentos e regras sociais que podem ser gerados por excessos no uso da força, causando efeitos negativos e prejuízos à coletividade. (FREITAS E PAIVA, 2015, p. 117)
32Valladares (2000), em seus estudos sobre a favelização do Rio de Janeiro, destaca as preocupações do urbanismo incipiente para além do caráter sanitarista, incidindo na importância do “belo” mediante a “união” arquitetura e estética. A arquiteta Paola Berenstein (2003), em suas análises estéticas, nos chama a atenção para o modelo de ordenação e organização prevalecente nesse ideário urbanístico. Nega-se, desta maneira, o movimento proveniente dos confrontos, das tensões pela disputa de espaços, o conflito que se trava, cotidianamente, e que de fato incide no (re) fazer social, na construção da cidade.
111
Quando me refiro à moradia na Maravilha urbanizada, exploro sobre o lugar estar mais
ou menos tranquilo para se viver, instigo nas entrevistas e encontros informais a respeito da
percepção atual dos moradores quanto aos “efeitos” da urbanização no ideário de segurança e
violência que estes interlocutores apresentam. Em Freitas e Paiva (2015), os autores discutem
a respeito de uma violência que tem raízes na construção da nossa democracia, cuja
consolidação dos direitos políticos acontece sem a devida efetivação de direitos civis e sociais.
No contexto da vida das camadas populares, tal fato me faz pensar sobre como os sujeitos se
sentem e se percebem no espaço e no papel a eles destinados na cidade. Sob a égide histórica
da privação desses direitos, muitos aderem ao discurso da conformação com a violência que
sofrem ou dos quais são apontados como principais agentes causadores.
Nesse contexto, como evidenciou Zaluar (1985), os pobres urbanos se encontram em uma situação de dupla exclusão, pois são as principais vítimas e os principais acusados de crimes nas cidades, experimentando situações de discriminação em função da sua posição desprivilegiada frente aos segmentos mais bem posicionados política e economicamente. (FREITAS e PAIVA, 2015, p. 119)
Contudo, os discursos dos interlocutores pairam em torno de uma violência que está em
toda parte, que “toma conta da cidade”. O senhor João fala a respeito de não se ter segurança
“nem em casas ricas”. “Aqui, a gente tem que botar grade, tem muito ladrão por aí, até no
interior tem”. Essa fala é dita quando lanço a observação para a presença de grades em grande
parte das janelas das casas no conjunto. No caso de Seu João, o morador confirma sua
preocupação com a insegurança, o que não acontece em outros discursos (a maior parte deles)
quando os interlocutores expressam que o lugar está mais tranquilo e calmo, no entanto, observo
que as grades também estão lá, sobretudo nas janelas (Figura 12). O supracitado interlocutor
continua sua percepção, “tem os ladrãozão e os ladrãozinho, aqui tem mais desse pequeno
mesmo”, diminuindo assim o caráter inseguro e marginal do lugar. O que não condiz com o
relato de dona Maria, ao ser questionada sobre mudanças pós urbanização quanto à violência
local, afirma que “não tinha bandido e agora tem”. “Porque antes, minha filha, era tudo barraco,
ninguém se interessava em roubar pobre, agora não, os bandidos chegam mais”. Foi o único
discurso em que escutei que a violência tinha aumentado. Ao narrar uma tentativa de assalto
que sofrera numa área mais afastada, mas ainda na Maravilha, dona Maria, que é moradora do
conjunto Nossa Senhora de Fátima, deixa claro, entretanto, que os “bandidos” eram de “fora”.
Ela acredita que seriam “das bandas do Lagamar”. Narrativa que já acompanhei no trabalho de
campo anterior, realizado na época da graduação, de que aqueles que trazem perigo aos
moradores do local não são nativos dali. Um dado presente do mesmo modo na pesquisa de
112
Freitas e Paiva (2015, p. 120): “Nos bairros visitados, também é comum a menção a assaltantes
de outros bairros, pessoas que vêm até ali apenas para assaltar e depois voltam para seus lugares
de origem”.
Figura 12
Figura 12 – Imagem ilustrativa das grades que muitos moradores colocaram em suas residências. Fonte: Pesquisa direta da autora.
Quando me reporto à “violência na Maravilha” o que muitos narram é que a
urbanização influenciou positivamente na segurança do território. Mas há distinções entre
os três territórios oriundos do desmembramento do lugar. A Maravilha ficou muito mais
“tranquila” já os conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Planalto Universo não podem ser
equiparados ao primeiro, de acordo com as falas, por concentrar uma condição
socioeconômica distinta, já que estes conjuntos foram estabelecidos a partir da remoção
das pessoas em situação de maior vulnerabilidade social na comunidade. Esse olhar
caminha ao encontro de que os barracos ou o Surrão, a área surrada da favela, é que
alimentava a insegurança no local. Nesse caso, o sistema de classificação se faz
internamente, entre os que chegaram primeiro e os que vieram depois e se instalaram na
chamada “beira do canal”. Os mais antigos, com condições de moradia melhoradas com
o tempo e que tinham suas casas bem estabelecidas diante daqueles que mantinham suas
113
habitações com aspectos de abrigo temporário, localizavam as mazelas sociais do lugar a
este último público, os “outsiders”, para eles, do território (ELIAS E SCOTSON, 2000).
Percepção compartilhada também pela HABITAFOR que, por meio do discurso de alguns
técnicos que trabalharam neste território, credita à urbanização da comunidade a
diminuição dos índices de violência sob a justificativa de que com o fim dos becos e
barracos, os bandidos teriam abandonado o lugar. Abaixo duas falas que sintetizam a
compreensão do Habitafor e a outra de uma moradora da comunidade Maravilha:
A estrutura atual das ruas, com casas numeradas, ruas com nomes, transmite insegurança para os bandidos que agora podem ser facilmente encontrados...a história dos becos e a possibilidade de levantar e derrubar um barraco na hora que precisar, os escondia...a polícia também dificilmente entrava lá, e outra coisa, com a urbanização, eles precisaram entrar no cadastro aqui do HABITAFOR, então, precisaram mostrar a cara (TÉCNICA DA HABITAFOR).
Não acabou, mas melhorou, porque a questão do tráfico, a violência maior, tava na história dos barracos, que eram os últimos moradores, mas com a urbanização melhorou muito. A parte mais crítica veio pra cá, pro Planalto Universo, aí depois a outra parte foi pro Nossa Senhora de Fátima. Os que ficaram mesmo na Maravilha, os meninos que ficaram, acabaram que faleceram, uns foram embora, já tava muito mais calmo... Mas me sinto mais segura agora. (ACS ANA, 40 anos)
À guisa de conclusões, percebo que a preocupação com a violência no local para
os nativos é questão que não se estabelece como centralidade. As preocupações com
segurança fazem parte de um contexto maior que é o de habitar a própria cidade de
Fortaleza. No entanto, há o reconhecimento, apontado em páginas policiais dos jornais da
Cidade, de que a criminalidade como em muitas periferias pauperizadas de Fortaleza, se
emprega, também, na Maravilha, muitas vezes por meio do uso do “acerto de contas” e
do uso da força “policialesca”. “Mas isso não é só aqui não, né, fez coisa errada, aí
acertam as contas mesmo, dá medo na gente, mas é difícil acontecer isso aqui. ” A fala é
de uma interlocutora que, como outra acima mencionada, faz questão de exaltar a
tranquilidade do lugar. Essas narrativas me recordaram o debate do qual participei em
vinte e sete de agosto de 2016, no Centro Cultural Dragão do Mar, após assistir parte do
documentário “Cartas Urbanas”33 de realização do grupo Nigéria34. Um representante
33É uma série documental, de seis episódios. A partir de cartas trocadas por moradores de Fortaleza, o documentário explora os embates travados, cotidianamente, por moradores para permanecer na cidade. O mote principal da série é “Você tem direito à cidade?” (Fonte: http://www.nigeriafilmes.com/cartas-urbanas/) 34“Um coletivo de realizadores de audiovisual e uma produtora independente de cinema, com atuação dinâmica e engajada” (Fonte: http://www.nigeriafilmes.com/cartas-urbanas/)
114
deste coletivo cinematográfico, convocado a falar sobre a violência, o medo e o
imaginário coletivo deste – relacionado às comunidades pobres da Cidade e a
possibilidade de poder entrar nelas, muitas delas com histórias parecidas de
ocupações/invasões para garantir a territorialização do lugar, respondeu à plateia: “Olha,
no Serviluz35 – um dos locais onde o documentário fora realizado –, por exemplo, me
senti muito mais seguro, tem gente na rua, as periferias vivem muito mais a cidade do que
os bairros nobres”.
A ideia das ruas ocupadas, “vividas” pelos moradores do exemplo citado em
contraposição à em relação às ruas do bairro “Meireles”, “onde você não vê um pé de
gente”, acaba por, sobretudo, dirimir o construto da estigmatização. Ou seja, o conceito
de que a violência está instaurada nos espaços mais vulneráveis da cidade e de que os que
ali residem representam perigo iminente para os ditos cidadãos de bem, acaba por vir
abaixo no momento em que na sua fala o jovem reflete sobre o sentimento de sentir-se
seguro na periferia porque os moradores estão nas ruas, nas calçadas, vivenciando seu
território. “O que me assusta são as ruas escuras, sem ninguém... fácil de você ser
abordado num lugar assim”. Chamou-me atenção o fio de desconstrução – ou pelo menos
um ensaio disso – dos estigmas, o que me levou a aprofundar a questão durante o debate
pós documentário. Sendo um dos debatedores morador de uma comunidade da periferia
de Fortaleza que também passou por urbanização, ao meu questionamento sobre a
influência positiva desta em sua comunidade quanto à violência local e o processo
histórico de estigmatização, responde-me “Olha a luta contra isso aí se faz no dia a dia
através do envolvimento dos jovens com os projetos culturais, o grafite, o áudio visual”.
Em sua fala, a urbanização foi um passo importante na valorização de sua comunidade e
garantia de legalização e direito à moradia naquele lugar da cidade. Contudo, é preciso
mais do que uma reforma urbana para interferir nos Índices de Desenvolvimento Humano
– IDH de um lugar e isso fica bastante claro nas entrevistas com os moradores e discussão
com tal interlocutor em questão.
35 O bairro localizado no litoral nordeste de Fortaleza apresenta um dos menores Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de Fortaleza, segundo dados do IBGE de 2010. O Serviluz ou Cais do Porto é considerado um bairro perigoso e ocupa, frequentemente, as páginas policiais dos jornais da cidade. Está localizado na Secretaria Regional executiva – SER II de Fortaleza, contraditoriamente, Regional que concentra também os bairros mais ricos da cidade como Meireles, Aldeota, Dionísio Torres e Cocó.
115
4.2.3 Usos e contra usos
“Porque o que eu precisava era de mais espaço pra estender minhas roupas, aí fiz
esse segundo andar”. “Eu precisava de uma garagem, falei com meus vizinhos que não
se incomodaram e puxamos uma coberta na calçada pra caber o carro”. “Trabalho com
comida e a cozinha que foi entregue é muito pequena (...) fui na Regional e eles disseram
que eu podia reformar a cozinha, quebrei um quarto pra aumentar a cozinha”. Os
discursos de interlocutores da pesquisa tratam de reformas e adaptações das obras às suas
necessidades cotidianas. Berenstein (2003), em seus trabalhos sobre bricolagem, aborda
este assunto ao citar que a cidade é muito menos planejada e mais construída a partir das
dinâmicas dos sujeitos. Nesse caso, reconstruída, mutável, adaptada, como num
verdadeiro jogo de encaixar peças. Uma técnica do Habitafor, responsável pelo
acompanhamento direto dos conjuntos, fala sobre um gerenciamento público dessas
reformas particulares, mas também sobre uma auto administração necessária, “eles
precisam começar a entrar em acordo, saberem gerenciar seus próprios problemas”.
Alguns moradores explicam a respeito de um eterno clima de denúncias, como na
entrevista concedida por dona Joana:
Mulher, se eu lhe contar que nesse dia veio mais de 40 polícia, muito mais, minha vista escureceu de polícia, a sorte é que meu marido, ele é hipertenso né, aí ele ficou debaixo e disse ‘não saio’, vão derrubar mas eu não saio. Aí veio um senhor de bem que disse ‘seu Raimundo’, não faça isso não’, aí eu não tava, tinha ido pra Libânia (o Hospital Dona Libânia). Quando eu cheguei bem ali, eu vi a ruma de polícia, tudo armado, aí eu disse ‘meu Deus’ e a Daniela (vizinha) ‘o que é Dona Joana?’, eu disse, é uma dor bem aqui e ela disse ‘é porque a senhora tomou um susto’. Num tinha isso aqui (questiona apontando pra frente da casa)? Era cheio de polícia, tinha muito mais de 40, e tinha BOPE, tudo pra derrubar a área (refere-se a uma área, como uma varanda, construída por ela e uma parente que mora no apartamento acima do seu).
As denúncias fazem parte do universo de “usos e contra-usos36” do espaço público
no conjunto habitacional da Maravilha. É notável que até o momento presente e desde a
entrega dos apartamentos, os moradores muito modificaram seus espaços e alguns até
tentaram angariar mais metros quadrados para suas propriedades. As reformas geram um
fenômeno de distinção socioeconômica relevante na comunidade. O formato das fachadas
não pode ser modificado, por determinação do projeto de urbanização, o que destina às
36 Ver “táticas” em Certeau (1996) e Leite (2002).
116
portas (figuras 13, 14 e 15 ) o lugar de elemento externo simbólico de distinção. É
perceptível a variedade de portas como uma prática de anunciar ao outro o “nível de
moradia” diferente daquele vizinho “sem condições”. “Minha filha, aqui tem gente com
porta de madeira maciça, com os móveis tudo planejados, eu não tenho essas coisas, não
tive condição de reformar muita coisa, não”. A interlocutora se refere a um cenário que
mostra a heterogeneidade social entre os moradores da comunidade. A distinção (ELIAS
E SCOTSON, 2000), na verdade, inicia-se desde a remoção e realocamento das famílias,
tendo em vista que muitos moradores do Surrão não permaneceram no conjunto
Maravilha, foram remanejados para o dito “Carandiru” ou, formalmente, Planalto
Universo, conjunto próximo à comunidade Aldaci Barbosa, a “Boba37”.
Figura 13 Figura 14
37 A comunidade localizada no Bairro de Fátima, em frente à Avenida Borges de Melo, é denominada, oficialmente, por Aldaci Barbosa. O nome oficial é uma homenagem à assistente social falecida em 1976 que foi Presidente da Fundação do Serviço Social de Fortaleza e executora do plano de desfavelamento de Fortaleza, na época. Os moradores, carinhosamente, apelidaram a comunidade de Boba, facilitando a pronúncia do nome do lugar.
117
Figuras 13 e 14 – Portas originais, que permanecem nas moradias desde a entrega das unidades habitacionais pela HABITAFOR. Figura 15 – Porta reformada que conserva um status de simplicidade ao local. Fonte: Pesquisa direta da autora.
Figura 15
118
Figura 16
Figura 16 – Imagens de diferentes portas, em distintos blocos do Conjunto Habitacional Maravilha. É possível perceber portas grandes e até luxuosas, algumas reformadas recentemente ou com reformas inacabadas. Fonte: Pesquisa direta da autora. A justificativa técnica traz a distinção apenas como estratégia do projeto: “foram
as primeiras pessoas a sair porque começaram a urbanização pelo Surrão, com a dragagem
do canal... Por isso as pessoas foram instaladas no Conjunto que já estava pronto, o da
(avenida) Borges de Melo” (técnica do Habitafor). Mas destaco aqui um forte motivo pelo
qual tanto ouvi que o maior número de vendas de casas tenha sido justamente dessa etapa
do Conjunto. Os moradores não tiveram como manter, ou melhor, sustentar sua moradia.
É o que muitos autores, ao traduzirem livremente do inglês gentrification, definem por
gentrificação (BATALLER, 2012; FRÚGOLI JÚNIOR, 2000; SMITH, 2006). Significa
que o processo de urbanização gera imediatamente um “enobrecimento” da região
119
antigamente pauperizada. O que se percebe é que o investimento na política de habitação
não vem acompanhado do investimento em outras políticas sociais como emprego e
renda, por exemplo, como fica a manutenção de uma unidade habitacional que passa a
requerer pagamentos de contas de água e energia elétrica para alguém que está inserido
precariamente ou nem mesmo está no mercado de trabalho, muitas vezes, informal? Nesse
tipo de gentrificação, o que se tem é a valorização condicionada por benfeitorias públicas
de determinado território, cujo objetivo principal é o beneficiamento daqueles que ali
residem. No entanto, acaba por proporcionar, colateralmente, uma expulsão paulatina da
população original cujo rendimento não permite acompanhar, nesse caso, a sustentação
dos custos fixos com o imóvel, “a qual também é estimulada a se deslocar para outras
áreas, em vista de ofertas irrecusáveis de compra de suas propriedades” (SMOLKA apud
MEDEIROS, 1979, p. 26).
De acordo com Medeiros (2017), a gentrificação não se torna um fenômeno
positivo, nem negativo da política de habitação popular, surge em decorrência de
processos externos à produção de moradia, atrela-se à produção da cidade. As
dificuldades de manutenção e permanência no imóvel se somam aos fatores de
melhoramento da região – como pavimentação das ruas, drenagem, saneamento,
surgimento de novos pontos comerciais – que concorrem para outra “aplicação” do uso
da chamada moradia social38. A então moradia perde sua conotação social para se atrelar
a produto na “prateleira” de um mercado imobiliário informal bastante presente
localmente.
Informações da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2007a, p.14) revelam dados
que confirmam a realidade dos moradores da área do Surrão: “O abastecimento de água
é predominantemente clandestino (76%) e somente cerca de 10% dos moradores pagam
a água proveniente da Companhia de Água e Esgoto do Ceará – CAGECE” e, ainda, “O
uso de energia clandestina foi registrado com percentual de 27%, sendo registrado em
maior número no setor I (o chamado Surrão) ”. Dessa forma, é possível perceber como
grande parte das pessoas que vivia no Surrão apresentava uma condição de dependência
crucial com meios clandestinos para suprir os serviços básicos de suas moradias. O
projeto para urbanizar o território acabou por gerar, dentre tantos benefícios, uma
38 Em pesquisas no Observatório das Metrópoles, a moradia social se constitui a partir da criação de políticas de habitação que concorrem para a legalização da moradia dos sujeitos que não possuem condições de morar legalmente na cidade por conta própria. Assim, a moradia social se estabelece na intervenção do Estado que busca assegurar o que está previsto em Constituição que é o direito à moradia digna como vetor de inclusão social.
120
mudança significativa nas dinâmicas econômicas e sociais locais. Para os moradores que
conseguiram se estabelecer nas novas condições, só escuto relatos de experiências
positivas, mas para os já citados moradores, para os quais a manutenção da moradia se
tornou inviável, as transformações advindas com a urbanização da área, ou, sob outro
ângulo de análise, pelo “enobrecimento” da região, não puderam ser plenamente
adequadas aos seus anseios. Decorrente desta fato, é observável, na área do conjunto
Maravilha conhecida como Planalto Universo, a substituição processual de sua população
original, o que pode ser compreendida consoante à análise apresenta por Medeiros (2017,
p.04):
A ironia do desenvolvimento desigual é que o Estado, ao prover melhorias nos espaços segregados, ocupados pela população de baixo poder aquisitivo, vê esses espaços serem apropriados pelo mercado, que, capitalizando as melhorias, desencadeia a ocupação dessas áreas por uma população de maior poder aquisitivo.
Os consequentes usos dos espaços, após uma grande transformação urbana,
podem ser dimensionados, mas não totalmente previstos. O planejamento excessivo e
controlado de uma cidade, de um bairro, segue invariavelmente o modelo que o gerou, a
cidade é sempre o resultado convergente de inúmeras influências (LEITE, 2002). Em um
jogo político entre estratégias e táticas, entre os legitimamente detentores do poder e os
destituídos, para citar Certeau (op. cit.), não se tem a neutralidade desse último. É
justamente nesse movimento que as dinâmicas de constituição dos espaços urbanos se
ancoram, ou como explicita Leite (IDEM), a partir da contribuição de Sharon Zukin:
[...] Diria que as “táticas”, quando associadas à dimensão espacial do lugar, que a tornam vernacular, constituem-se em um contra-uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado, como também de possibilitar que o espaço que resulta das “estratégias” se cinda para dar origem a diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos realizam (LEITE, 2002, p.122).
Apoiando-me na teoria das táticas como elemento gerador de contra-usos, capaz
de (re)mexer com a estrutura da lógica hegemônica estabelecida, pude observar melhor
os processos locais que resistem ao que está posto. Desde a narrativa da interlocutora ao
afirmar que não sairia de sua casa até receber, além do novo imóvel, uma parte em
dinheiro: “investi muito na minha casa pra não ganhar mais em troca, eu disse logo ‘quero
ser indenizada também”, até a inconformação da moradora com a falta de ventilação da
casa nova: “olha, eu mandei logo foi abrir essa porta (no lugar havia uma janela), porque
121
aí eu ficava com duas, uma na frente e outra ali atrás pra ‘mode’ o vento correr mais”. As
pequenas reformas fazem parte do cotidiano de “subversão da ordem” de muitos
moradores. Visitei mais de um apartamento localizado no terceiro (último) pavimento do
bloco em que os moradores construíram uma espécie de segundo andar. No primeiro
(Figura 17), a moradora ganhou mais espaço para sua área de serviço. No segundo (figura
18), a cozinha foi transferida para o andar de cima e a sala se ampliou. As construções
não envolvem, segundo os moradores, mudanças em paredes ou colunas estruturais, o
que, portanto, não causaria danos à segurança da estruturação do bloco. As reformas,
muitas vezes, são realizadas pelo próprio morador ou vizinhos que já exercem o ofício de
pedreiro. “Isso aqui eu montei tudo com material que meu marido trazia das obras dele,
ele ganhava e a gente ia usando aqui”, o relato é de uma moradora que construiu um
segundo pavimento no seu apartamento.
Figura 17 Figura 18
Figuras 17 e 18 – As figuras mostram reformas realizadas em apartamentos localizados no terceiro andar dos blocos. Por ter um teto sem o conhecido “forro”, os apartamentos apresentam espaço que possibilitaram a construção de um segundo piso, assim os citados apartamentos ganharam a estrutura de um duplex. Fonte: Pesquisa direta da autora.
Leite (2002) cita o “embelezamento estratégico” de Paris como forma pretendida
de disciplinar os usos do espaço urbano, por exemplo, ao abrirem grandes e largas
avenidas, dificultavam a construção das barricadas operárias e facilitavam a ação da
cavalaria de Bonaparte. Há uma lógica política na construção de apartamentos com áreas
tão diminutas (variam entre 44 e 60 m²), entregues ao morador de maneira tão
inacabada39, processo cujo cadastramento não se faz orientado a ponderar os distintos
“casos”, como o do morador de maior tempo de moradia na comunidade e que possuía
uma casa melhor, tal qual no relato do senhor Raimundo:
39 As unidades habitacionais são entregues para os moradores com tijolos na parte interna, sem o devido acabamento de “reboco” e pinturas nas paredes, e o piso é apenas cimentado, sem cerâmica.
122
Eu tinha uma casa era quatro compartimentos, eu tinha uma vendazinha, uma garagem de carro, também não foi valorizado isso aí [...] reclamei, mas disseram que não tinha isso, esse negócio de corrigir nada não. Mas só que eu vi gente aqui que valorizaram. Agora, não sei se é por causa da cara, porque eu soube “dumas” pessoas que valorizaram, ganharam a casa e mais dinheiro ainda. Teve gente que ganhou a casa e mais quarenta mil reais. Não valorizaram meu ponto, nada pra mim, não sei se por causa da minha idade ( SEU RAIMUNDO, morador da Comunidade Maravilha, 71 anos).
Assim, houve quem se sentisse injustiçado, houve quem se sentiu “premiado”.
Interessante é perceber nos depoimentos dos entrevistados, em sua maioria, a utilização
do verbo “ganhar”. Muitos desses entrevistados se percebem como sujeitos de direitos –
caso contrário, não se sentiriam injustiçados –, contudo, para exemplificar, o mesmo
senhor que reclama por direitos e refere-se à sua situação de injustiça por ter perdido na
transação de moradia com a urbanização, é o mesmo que se refere ao fato de “ganhar”
uma casa.
Percebo que esse Estado “benevolente” que “distribui” casas foi mais “legal e
justo” com uns do que com outros. O exemplo da moradora que recebeu ainda uma
quantia de indenização, mostra a verdadeira luta travada por ela e as autoridades
responsáveis pela reforma do lugar. Ela fala de resistência, de muita insistência e de
“garantia de direitos”. Por que essa moradora conseguiu uma indenização e outros na
mesma condição não? De fato, não existiu uma expressão de maior coletividade durante
o processo de negociação e aprovação do projeto de urbanização para a comunidade
Maravilha. Entretanto, diversas ações foram e continuam sendo taticamente
implementadas, cotidianamente, pelos moradores. No esquadrinhado dos planos e
roteiros institucionais não estava desenhado que as ruas seriam prolongamento das casas,
espaço de lazer e encontros. Não estava descrito pelo projeto como moradores
imprimiriam suas próprias identidades a suas unidades habitacionais e nem que aquele
apartamento, para alguns, seria utilizado como moeda de troca e venda para outras
conquistas, mais possíveis ou mais desejadas. Não estava escrito que mais invasões
poderiam acontecer, ou que famílias não se sentiriam contempladas com os planos
arquitetônicos para suas novas residências. Como bem aborda Leite (2002), ao tratar
sobre o processo de gentrificação, no nosso caso, não se trata apenas desse fenômeno em
si, mas do próprio processo de transformação social acarretado por um amplo projeto de
urbanização: “[...] diria que os lugares, quando erguidos pelos contra-usos no interior do
processo de gentrification podem representar formas táticas – especializadas e simbólicas
123
– de criar singularidades, expressar dissensões e reivindicar direitos. Direitos de pertencer
à cidade, de estabelecer itinerários próprios [...]” (LEITE, 2002, p.130)
4.3 Minha casa... Minha vida?
O tema deste item faz referência ao Programa Minha Casa Minha Vida –
PMCMV40, implementado pelo governo federal no ano de 2009. No entanto, a discussão
à qual me aterei não adentra o funcionamento ou sequer pretende tratar sobre o citado
programa. Na verdade, o questionamento acima escrito se refere ao sentido filosófico e
subjetivo que tal questão estipula. Afinal, quais os significados ou percepções abordadas
pelos interlocutores que apontam em direção à interpelação: “Minha casa, minha vida?”
O slogan do programa federal, imediatamente, torna a implicação do “minha casa, minha
vida” em perfeita harmonia de sentido. A casa aparece como objeto que recebe status de
centralidade máxima na condição de existência dos sujeitos. A casa não responde apenas
pelo lugar de abrigamento, pela moradia construída, o tijolo por tijolo que
cuidadosamente dão origem a uma edificação. Não significa apenas a zona de imunidade
oferecida ao recolhimento (MATOS, 2002). Talvez se aproxime do conceito de Da Matta
(1997, p.54), “o espaço marcado pela familiaridade e hospitalidade perpétuas que
tipificam aquilo que chamamos de amor, carinho e consideração ”.
Na Maravilha, o que se observa é que os discursos em torno da casa nova, ou sobre
a antiga também, ultrapassam os limites de suas paredes. A casa ou morada referida
retrata ainda a vida naquele território, naquela comunidade. “Eu nasci no Surrão, numa
enchente em 1977 [...]) aqui eu comprei meu primeiro pedaço de chão, fiz um quartinho,
depois fiz em cima, tudo meu sempre foi na Maravilha”. A fala é de uma interlocutora
que nasceu e cresceu na comunidade e que já fez parte da Associação de Moradores do
lugar. Percebo, em seus relatos, que sua história de vida está intimamente ligada à
Maravilha, na medida em que além de lugar de moradia, os diversos aluguéis que
mantinha na região foram, por muito tempo, sua maior fonte de renda. Com a
urbanização, ela também perdeu essa fonte, contudo, aquele território continua a ser seu
lugar, expressão daquilo que faz parte do seu processo de constituição identitária. Lembro
40 Criado em março de 2009, o Programa investe, sobretudo, em subsídios direto proporcional à renda das famílias e aumentar o volume de crédito para aquisição e produção de moradia. Além de aquecer o setor imobiliário e o ramo da construção civil. O Programa é dividido em setores que congregam públicos diferenciados, de acordo com a condição financeira de cada.
124
de entrevistá-la a partir de indicações de pessoas que me diziam “ela é da Maravilha”.
Naquele instante, refleti sobre o emprego daquelas palavras, que tanto escutei no decorrer
da pesquisa “ela ou ele é de lá”. Não falaram com frequência que a pessoa morava na
Maravilha, mas sim, que era de lá. “Ser da Maravilha” parece abrigar uma perspectiva
mais profunda do que habitar ou morar. Que subjetivações estão implicadas nesse
reconhecimento de ser ou pertencer a determinado território?
Após a reforma urbana na comunidade, mesmo os que demostraram
descontentamento com suas casas novas, são unânimes em descrever o papel da
urbanização numa possível mudança de reconhecimento dos sujeitos que dali “são” em
relação à posição destes na Cidade. “Aqui é Maravilha ainda só pra quem mora aqui, lá
fora é Bairro de Fátima, favela eu nem gostava não, mas era mesmo”. A fala de Seu
Raimundo vem acompanhada de um sentimento de “integrar-se à cidade”. O interlocutor
acredita que a urbanização não destituiu a comunidade que mora e sim influenciou
positivamente no reconhecimento do lugar como parte integrada da cidade de Fortaleza,
de um bairro, classificado, publicamente, como nobre. “Aqui não sendo bairro é favela,
mas agora não sei, porque fizeram esses prédios” (Seu João). Para este, a importância não
estava em estabelecer uma denominação e sim em confirmar que “as coisas mudaram”.
Aqui tá bem melhor, minha casa era muito velha, toda rachada, ela não aguentava mais muito tempo. Era no meio de umas coisas muito ruim, porque era uma casa por cima da outra[...]. Quando escuto “favela” Maravilha, acho que não seja coisa muito boa, é melhor quando falam só Maravilha. (Seu João, morador do Conjunto Habitacional Maravilha, 87 anos)
Eu acho que melhorou muito porque eu vi como era antes e tou vendo agora. Eu vi que as pessoas se esforçaram em melhorar, as pessoas se esforçaram em ajeitar seus apartamentos, porque a gente ganhou sem reboco, a única coisa assim mais ou menos pronta era o banheiro. Mas o resto, não, foi tudo o pessoal que se esforçou pra ter a sua casa mais ou menos ajeitadinha. (ACS ANA, 40 anos)
Os relatos acima endossam os efeitos da urbanização na transformação não
somente de uma forma de habitar, mas de ser e estar na cidade. O esforço enfatizado pelos
interlocutores expressa uma “luta” que implica nos atributos identitários que a casa nova
pode proporcionar aos sujeitos. Uma casa nova – no sentido amplo de uma comunidade
transformada –, uma vida nova. Essa que se configura por meio do reconhecimento
intersubjetivo entre os sujeitos (HONNETH, 2003). A teoria crítica do reconhecimento
aponta para a existência de luta individual e coletiva por reconhecimento social, sendo
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esta luta um “motor” da vida social. São os conflitos, as “experiências de desrespeito”
que geram tal luta por reconhecimento intersubjetivo. Referido autor explora três formas
de reconhecimento, cuja luta sempre se inicia pelo desrespeito a uma delas. Ele pretende,
assim, explicar as mudanças sociais por meio do movimento de “sentir-se injustiçado” e
agir para mudar uma realidade penalizadora.
Honneth (IDEM) compreende, ainda, que os indivíduos e grupos sociais só podem
formar sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente no âmbito privado
do amor, nas relações jurídicas e na esfera da solidariedade social (FUHRMANN, 2013).
No caso da Maravilha, o que se apresenta é um não reconhecimento como herança
transgeracional, sobretudo, das classes populares e dos segmentos marginalizados
moralmente. Fuhrmann (IDEM) afirma que a invisibilidade subjetiva e social é o
verdadeiro estigma humano que deflagra as lutas sociais. “A gente aqui vivia já sem
esperança porque todo tempo era um cadastro e nada acontecia, vivia de promessa,
quando as coisas começaram a acontecer, nem acreditei”. A fala é de uma ex-moradora
do Surrão que declara ter sentido um longo período de esquecimento por parte do poder
público com os moradores do território. “A gente se virou muito foi com a Igreja, o Padre
Amorim construiu até umas casas pra nós [...] a gente ficava era afundado na lama,
completamente esquecido”. Essa afirmação soma-se a outras que expressam sentimentos,
principalmente sobre aqueles que habitavam o Surrão, como na fala de um ACS da
Unidade de Saúde da área:
Eles lá eram mal vistos por tudo mundo, por quem morava na comunidade e pelo povo todo, né, a sociedade. É que eles viviam no meio da sujeira toda, era menino, cachorro, galinha, lixo, porque você sabe, né, eles tinham até lixo dentro dos barracos, mas só que era o ganha pão deles. Só em chamar esse nome (Surrão) já era desconsiderando as pessoas lá, né, porque, pra mim, isso já é sinônimo de tudo que não presta [...]. E só quem olhava por eles era a caridade mesmo.
Os “olhos” da caridade só fortalecem, cada vez mais, o sentimento de não
reconhecimento de sujeitos de direito. Para citar novamente Honneth (IDEM) e sua teoria
do reconhecimento intersubjetivo, o autor esclarece o que, historicamente, se fez possível
acompanhar quando a discussão trata sobre direitos. No século XVIII, havia os direitos
liberais de liberdade; no século XIX, era dos direitos políticos de participação e, no século
XX, os direitos de bem-estar social. Tal evolução, de maneira mais ampla, demonstra o
avançar da integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades que
126
caracterizam a pessoa de direito. O ser de direito desenvolve sentimentos de autorrespeito.
O desrespeito aos direitos como a privação destes ou a sua exclusão atinge a integridade
social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica.
A teoria do reconhecimento ajuda a refletir que, no contexto de um sistema
capitalista, as lutas sociais são impulsionadas não apenas em decorrência da desigualdade
material dos indivíduos. A ausência de reconhecimento intersubjetivo e social também se
faz elemento de importante conquista. Fato que percebi durante as interlocuções, quando
as perguntas e diálogos no grupo rondavam o assunto “casa nova”. Para alguns, mesmo
que não tenham conseguido um valor maior agregado, pois já possuíam casas de alvenaria
até melhores do que as que foram entregues com a urbanização, é unânime conceber que
a comunidade, de forma geral, transformou-se em um lugar mais “considerado” para se
viver. Em seus relatos, os interlocutores afirmam “não ter mais toda aquela pobreza” ou
“aqui ficou bem mais bonitinho” e até “agora não é mais favela que chama”. A
urbanização proporcionou, sobretudo, para os moradores do Setor I – o mais pauperizado
– até certa medida, se levantar um padrão comparativo com a vida anterior à reforma,
uma nova forma de se sentir inserido na vida citadina. “Eu antes não convidava ninguém
pra minha casa, tinha muita vergonha, eu morava num barraco perto do canal [...] agora,
eu chamo é muito, tenho minhas visitas, a senhora tá até convidada pra ir lá”. A fala é de
dona Maria que, com um sorriso largo, me convida a conhecer a casa nova. Deduzo disto
que, na verdade, a entrevistada me convida para entrar num universo diferente, a casa
nova é vida nova que se refaz a partir da construção de uma nova identidade. É a relação
com o contexto da cidade de Fortaleza que muda, a ideia de “invasão” e favelados que,
pouco a pouco se desfaz, é a conquista de um território valorizado da Cidade. É estar num
território “planejado” e com “mais dignidade” de moradia, conforme analisa Rolnick
(1999, p. 04) quando afirma que “além das implicações econômicas, a situação de
ilegalidade urbana tem implicações culturais [...] a condição de extra legalidade foi se
definindo como a alta densidade e subdivisão das casas e terrenos, configuração
urbanística considerada promíscua, indisciplinada e desregrada, ou seja, como espaço
sem lei, marginal”. A urbanização e consequente legalização dos terrenos, assim, vem
acompanhada de um “passe” para um sentimento maior de pertencimento à cidade.
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5) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, tive a oportunidade de explorar uma questão que muito me instigava.
Desde o período de elaboração da minha monografia sobre moradia na favela Maravilha, na
cidade de Fortaleza, alimentava o desejo de retornar e pesquisar a respeito desta comunidade,
após processo de reurbanização ao qual foi submetida. Naquele momento específico,
interessava-me compreender como os moradores percebiam suas vidas na cidade favelizada.
Por outro lado, o projeto de urbanização para esta comunidade, parecia estar próximo de tornar-
se realidade, fato que me atraia para, de alguma forma, continuar a pesquisa naquele lugar, com
novos questionamentos.
Retratei minha caminhada desde a escolha metodológica até os detalhes da minha
entrada no campo de pesquisa por entender que estes passos foram fundamentais para o
desenrolar deste trabalho. Na verdade, compreendo que o percurso metodológico seja um dos
cernes principais da pesquisa. A partir da apresentação do “como realizar” o processo
investigativo é possível dimensionar quais serão os desafios, as limitações, a atitude de
desenraizamento do pesquisador, dentre outros elementos que foram empreendidos na análise.
Desta forma, destaquei minhas dificuldades, estratégias de aproximação com o campo,
limitações e descrições que considerei pertinentes para a contextualização do universo da
pesquisa. Como diz Goldenberg (2004, p. 14) “o que determina como trabalhar é o problema
que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar”. E o
caminho aqui escolhido se baseou, sobretudo, na possibilidade de observar a dinâmica do
território, de estabelecer interlocutores, de participar de atividades locais no intuito de criar
vínculos.
A metodologia empregada me proporcionou dar um tom mais etnográfico ao trabalho.
Experienciei o sentido de conhecer afundo, lançar-me à aproximação do movimento da
realidade, para além dos mapeamentos instantâneos – com os quais estou acostumada a me
deparar nas Instituições – que, como diria Zaluar (1994), muitas vezes estão imersos numa
lógica da definição, de rotulações objetivas e concretas, como uma verdadeira “matemática
social”. Assim, no primeiro capítulo deste trabalho, detive-me em tratar das discussões
metodológicas, sobretudo, valorizando os desafios para a entrada no campo e o movimento de
aproximação com os interlocutores.
No segundo capítulo, reflito sobre a cidade “oásis”. Esta como possibilidade de
sobrevivência, mas também como centro de atração, de suprimento de desejos subjetivos. É no
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movimento migratório em busca do urbano e de uma cultura da urbanidade que constatamos o
inchaço das cidades e a consequente formação das ditas favelas. Exploro a cidade em
construção dinâmica. Em moradias pauperizadas e, muitas vezes, insalubres, os sujeitos lutam
pela legitimidade de viver nos centros urbanos. Uma luta que entre táticas e estratégias
(CERTEAU, 1994) fortalece a discussão e ação em torno das políticas públicas de habitação.
A discussão acerca das políticas de habitação mostra a infinidade de programas
pensados a cada governo no País. Propostas populistas, assistencialistas, segregacionistas,
outras mais inclusivas que desnudam o contexto político de cada época. As narrativas dos
interlocutores também revivem esses contextos e explicam a construção de ídolos e benfeitores
para a comunidade.
A pesquisa mostra que a comunidade conseguiu ficar no território de origem e em seu
entorno, mesmo que situado em área considerada nobre da Cidade. Este acontecimento não é
comum nas intervenções de urbanização dos espaços marcados por habitações precarizadas nas
cidades. É prática usual dos projetos de urbanização a remoção dos moradores das comunidades
afetadas para áreas distantes das que habitavam, concorrendo para aprofundar o processo de
periferização dos conjuntos habitacionais e segregação social.
A Maravilha é apresentada pela HABITAFOR como comunidade em condição
privilegiada já que conseguiu permanecer em seu território. Conquista explicada pelo tempo de
permanência dos moradores no mesmo lugar, desde a década de 1960, e pelo projeto político
de urbanização do espaço, impulsionado pelo Habitar Brasil Bid – HBB. A proposta do HBB,
segundo técnicos entrevistados na HABITAFOR, ia ao encontro dos planos políticos da gestora
na época, qual seja, urbanizar sem remover a população do seu território de origem. A falta de
interesse imobiliário pelo lugar também colaborou (o terreno perde valor de mercado por ser
cortado por uma linha férrea e se localizar próximo a um canal), o grande desafio se estabeleceu
na compra de terrenos próximos para abrigar todos os moradores que, no mínimo, fossem muito
perto das suas moradias iniciais, dos seus vínculos.
A citada Fundação, por meio de interlocutores, repercutiu suas perspectivas em torno
do processo por qual passou a comunidade, sob sua gestão. Destacou o desafio que foi para a
Prefeitura garantir os terrenos próximos para construir o conjunto Nossa Senhora de Fátima e,
após tal garantia, o impacto de ter que lidar com a resistência da vizinhança de não querer os
moradores “tão perto”. A HABITAFOR reconheceu, ainda, a heterogeneidade social da
comunidade como um fator difícil para agregar o apoio de todos ao projeto de urbanização. No
entanto, confirmou em suas ações que as distinções não poderiam ser observadas, mesmo que
individualmente alguns (conta-se nos dedos de uma mão) tenham lutado por seus direitos por
129
conta própria e obtido êxito (moradores que conseguiram indenizações). Para a Fundação fica
a premissa de que “o direito individual nunca se sobrepõe ao direito da coletividade”. A
perspectiva para os técnicos é a de que se alguns perderam, no final, a grande maioria saiu
vitoriosa. Pois, em geral, as condições de moradia estão melhores e, acima de tudo, hoje, os
moradores podem dizer que estão em situação regularizada. Em breve, terão o tão sonhado
“papel” da casa própria. A forma de apropriação da casa é, inclusive, discutida como fator que
pode vir a impulsionar sua venda. Isso, devido a possibilidade de uma menor valorização do
imóvel, segundo os técnicos, por parte do morador já que não há pagamentos para adquiri-lo.
Assim, a venda se justificaria pelo não pagamento de uma prestação que correspondesse a um
sentimento maior de posse, já que a conquista se deu sem “tanto esforço”, como também pela
condição de miserabilidade em que alguns se encontram, não permitindo que paguem as contas
de água e energia elétrica, por exemplo, inexistentes até então.
O terceiro capítulo deste trabalho foi dedicado à “Maravilha dos moradores”. No
primeiro ponto, trouxe, de maneira geral, os relatos e observações da experiência dos moradores
com a Maravilha em seus conjuntos habitacionais. O resgate de lutas individuais, como a jovem
que comprou um quartinho na comunidade com a esperança de receber sua casa após a
urbanização, indica um retorno às memórias sobre o passado. As recordações não revelaram só
tristezas e sofrimentos com a antiga condição de moradia, também trouxeram à tona lembranças
afetuosas com o lugar. O sentimento de comunidade em comparação à Maravilha de outrora,
para muitos, não é mais o mesmo. Fato creditado às mudanças estruturais do lugar. A vida
parece não ser mais tão compartilhada sem os becos de antes e as conversas ao “pé” da calçada.
Os idosos foram os que mais expressaram as memórias afetivas com a “antiga” Maravilha.
Sendo a história narrada por uma interlocutora a respeito do falecimento de uma idosa cega a
mais emblemática da pesquisa. A idosa não conseguiu se adaptar à vida no Conjunto. As
mudanças abalaram fortemente suas referências com o território e acabaram por minar sua
vontade de viver.
Contudo, a urbanização também marcou positivamente para os sujeitos a “forma de estar
na cidade”. O termo favela, internamente, cai em desuso para manter o já utilizado
“comunidade”. Para alguns, uma identificação apenas local, pois “lá fora” o termo Bairro é
visto como o mais apropriado, agora, para o lugar. Apesar de que, anteriormente, mesmo
reconhecendo que muitos denominavam o território como “favela Maravilha”, para os
moradores da dita área nobre, eles nunca foram favela. Os favelados eram os moradores do
Surrão que mesmo depois da urbanização e maior homogeneização das condições de moradia,
serão, internamente, classificados, ainda, como moradores ou ex-moradores do Surrão. O
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estigma do lugar favelizado persiste em marcar os sujeitos, o exemplo mais vivo da
estigmatização se mostrou na resistência da vizinhança em aceitar os moradores mais pertos de
suas moradias e postos de trabalho. Para esta vizinhança, os moradores, apenas por serem
moradores de tal território, carregam consigo a “semente” de ameaça à ordem pública.
As discussões sobre estigmatização abriram espaço, também, para as narrativas sobre a
violência local. A HABITAFOR credita à urbanização a diminuição da violência no lugar,
justificando que este ficou mais ordenado e, assim, mais difícil para atuação da “bandidagem”,
que não consegue mais se esconder nos becos, muito menos erguer e derrubar barracos na hora
que precisar. Para os interlocutores, a urbanização influenciou positivamente no aumento de
segurança na medida em que retirou o Surrão do lugar, pois seus moradores é que alimentavam
a ilegalidade existente. Consideram, na verdade, que a Maravilha sempre foi tranquila, a
violência é provocada pelos de fora da comunidade e que tal preocupação com a insegurança
local faz parte de um contexto maior que é o de habitar a cidade de Fortaleza.
Ainda no capítulo 3, reflito acerca das táticas e contra-usos empreendidos pelos
moradores como movimento de construção particular do novo espaço que se apresenta. As
unidades habitacionais receberam reformas tanto no aspecto funcional como em caráter de
elemento de distinção social. O caso das mudanças de portas é bem representativo desta análise.
Os sujeitos jogam com o ordenamento imposto ao seu modo, às vezes de maneira conflitiva,
outras tantas vezes em comunhão com a coletividade. A exemplo das privatizações sutis do
espaço com a construção de calçadas, garagens, cobertas. Os sujeitos querem um lugar que os
represente. As pessoas lutam não só em decorrência da desigualdade material, mas também
quando há ausência de reconhecimento intersubjetivo e social.
Por fim, quero ressaltar que este problema de pesquisa não se esgota por aqui, com a
finalização desta dissertação. Acredito que lancei questões que ainda podem ser trabalhadas e
aprofundadas futuramente. Isso diante de um trabalho que é apenas um olhar entre tantos
possíveis e multidisciplinares.
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