UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA MULHERES DOS SÉCULOS XVIII
E XIX: CONTRIBUIÇÕES DA MARQUESA DE ALORNA
GISLAINE APARECIDA VALADARES DE GODOY
MARINGÁ
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA MULHERES DOS SÉCULOS XVIII
E XIX: CONTRIBUIÇÕES DA MARQUESA DE ALORNA
Tese apresentada por GISLAINE APARECIDA
VALADARES DE GODOY ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Estadual
de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção
do título de Doutor em Educação.
Área de concentração: EDUCAÇÃO.
Orientador: Prof. Dr. CÉLIO JUVENAL COSTA
MARINGÁ
2018
GISLAINE APARECIDA VALADARES DE GODOY
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA MULHERES DOS SÉCULOS XVIII
E XIX: CONTRIBUIÇÕES DA MARQUESA DE ALORNA
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Célio Juvenal Costa - UEM
(Orientador)
Prof.ª. Drª. Maria Tereza Santos Cunha - UDESC
Prof.ª. Drª. Fabiane Freire França - UNESPAR
Prof.ª. Drª. Jani Alves da Silva Moreira - UEM
Prof. Dr. Gilmar Alves Montagnoli - UEM
Aprovação: 29 de junho de 2018
Dedico a todas as mulheres determinadas a amar o que são, sua
inteligência, seu corpo e seu poder, independente de quanto isso pode
custar. Em especial àquelas que tendo consciência da distância entre
direitos e a garantia deles, não desistem da luta, não desistem de amar,
não desistem da vida e, muito menos de si mesma, presto homenagem
aos seus atos de visão e coragem.
AGRADECIMENTOS
Minhas palavras finais Ficam ali no começo, mas eu só as registro no fim. Independente do tom do desfecho, Se as cortinas serão de veludo ou voil, Eu agradeço a todos que até aqui estiveram
presentes e ausentes Alguns com ares de apreço e outros, desdém. Fica a nota impressa de um rascunho final Não são as palavras que denotam todo o processo. Por mais que eu agradeça, Ainda fica a falta do registro da ausência [...].
(MOREIRA, J. A. S., 2013)
Ao Professor Doutor Célio Juvenal Costa (PPE/DFE/UEM) pelas orientações na trajetória
do doutorado, pela amizade, parceria e dedicação. Pelos momentos de conversa, troca de
experiências e de aprendizagem. Obrigada “Painho”;
Ao Professor Doutor José Eduardo Franco, da Universidade de Lisboa, que me acolheu
no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – CLEPUL, me possibilitando
conhecer a educação em Portugal e me aproximar da marquesa de Alorna, personagem
fundamental desse trabalho. Obrigada por ter sido meu orientador em terras lusitanas;
Aos professores que contribuíram na apreciação da tese: Drª Fabiane Freire França
(UNESPAR); Drª Maria Tereza Santos Cunha (UDESC); Drª Jani Alves da silva Moreira
(UEM) e Drº Gilmar Alves Montagnoli (UEM);
Ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPE) da Universidade Estadual de
Maringá, em especial ao secretário Hugo Alex pela atenção;
À Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
oportunidade que obtive em participar do Programa Institucional de Bolsas de Doutorado
Sanduíche no Exterior (PSDE), com o qual me foi possível realizar o estágio na Universidade
de Lisboa;
À Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ao Centro de Literaturas e
Culturas Lusófonas e Europeias – CLEPUL, pela oportunidade concedida no doutoramento
intercalar em 2017;
À Universidade Estadual de Maringá (UEM), à Pró-Reitoria de Pesquisa e Graduação
(PPG) e ao Departamento de Pedagogia (DPD/UEM), que por meio do Plano Anual de
Capacitação Docente (PACD) me oportunizou o afastamento de minhas atividades nessa
última fase do doutorado;
Ao Laboratório de Estudos do Império Português (LEIP/UEM), pelos estudos
proporcionados.
À Professora Doutora Jani Alves da Silva Moreira, quem me inspira na vida acadêmica
pelo seu conhecimento, capacidade, profissionalismo e dedicação à educação; também pelas
valiosas orientações na elaboração dessa tese.
Às minhas amigas queridas Maria Eunice França Volsi, Andreza Vieira, Natália
Cristina de Oliveira, Márcia Denise Fancelli, Sheila Patrícia Landucci, Ana Cornélia
Zabotto, ao meu amigo Oziel Vicente de Souza, pelo companheirismo e apoio nessa e em
tantas outras caminhadas.
Às minhas parceiras e amigas em terras lusitanas, Rafaelle Lauff e Josineide Siqueira
que suavizaram com amizade e carinho a estadia longe de casa.
À minha família que além de compreender minha ausência durante o período de
doutoramento, me apoiou, carinhosamente, acreditando em meu potencial.
Aos meus alunos do Curso de Pedagogia do Campus Regional de Cianorte da
Universidade Estadual de Maringá, que motivam minha caminhada em busca de
conhecimento e aperfeiçoamento profissional.
Enfim, a todas e todos que de alguma forma contribuíram para a realização desse trabalho.
O Pirilampo e o Sapo
Marquesa de Alorna (1750 -1839).
Lustroso um astro volante
Rompera as humildes relvas:
Com seu vôo rutilante
Alegrava à noite as selvas.
Mas de vizinho terreno
Saiu de uma cova um sapo,
E despediu-lhe um sopapo
Que o ensopou em veneno.
Ao morrer exclama o triste:
– Que tens tu de que me acuses?
Que crime em meu seio existe?
Respondeu-lhe: – Porque luzes?
GODOY, Gislaine Aparecida Valadares de. PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA
MULHERES DOS SÉCULOS XVIII E XIX: CONTRIBUIÇÕES DA
MARQUESA DE ALORNA. 150 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Prof. Dr. Célio Juvenal Costa. Maringá, 2018.
RESUMO
O objetivo dessa tese é analisar os princípios educativos femininos, contidos em um conjunto
de seis cartas da marquesa de Alorna, poetiza e notável dama da sociedade portuguesa,
escritas na segunda metade do século XVIII e endereçadas a uma filha que se casaria. A
intenção desta investigação pretende examinar a contribuição que a educação teve no
processo de construção da identidade das mulheres portuguesas daquele período, bem como
na tomada de consciência delas enquanto coletivo humano, tomando a marquesa ao mesmo
tempo como exemplo dessa construção e uma das responsáveis por esse processo em outras
mulheres, seja direta ou indiretamente. Assim, nossa hipótese é que a marquesa teria sido uma
das pioneiras na condução desse processo que levaria, posteriormente, a emancipação
feminina e teria tido na instrução, um importante aliado. A análise considerou que tais
princípios propostos pela marquesa, presentes nas orientações que ela destinou à filha, se
estabeleceram a partir das exigências sociais do período, que puderam ser identificadas pelas
representações das mulheres tipificadas pela própria sociedade. Para dar conta do proposto
nos pautamos nas orientações dos Annales, que nos oportunizou estabelecer diálogos com
outras áreas do conhecimento, criando condições para que haja uma visão global do objeto de
estudo e da discussão deste sobre outros ângulos, sobre pontos de vista de autores das ciências
sociais, da história, da psicologia, da economia etc., ampliando o entendimento acerca do
próprio objeto e das suas relações com o contexto em que está inserido; considerando os
vários aspectos da vida e da sociedade, como a civilização, a economia e a cultura. Por fim,
permitiu-nos materializar nossa proposta de olhar as mulheres a partir delas próprias. O
resultado da investigação, pretende mostrar que houve mudança na autoimagem feminina e,
por conseguinte, uma nova representação social da mulher na sociedade portuguesa do século
XIX, e que a instrução foi um fator determinante nesse processo. Procurou ainda, apresentar
as contribuições da pesquisa em quatro eixos: no âmbito da historiografia, da educação, da
trajetória feminina na luta pelos seus direitos e pelos espaços a serem ocupados e; no âmbito
pessoal.
Palavras-chave: princípios educativos; marquesa de Alorna; mulheres; emancipação
feminina; séculos XVIII e XIX
GODOY, Gislaine Aparecida Valadares de. 18th AND 19th CENTURIES
EDUCATIONAL PRINCIPLES FOR WOMEN: MARQUISE OF
ALORNA CONTRIBUTIONS. 150 f. Thesis (Doctorate Degree in Education) – State
University of Maringá. Supervisor: Prof. Dr. Célio Juvenal Costa. Maringá, 2018.
ABSTRACT
The purpose of this thesis is to analyze female educational principles contained on a set of six
letters wrote by marquise of Alorna, poet and remarkable Portuguese lady on that society
from her daughter who was getting married. These letters were written on the last of 18th
century. The investigation intents are to examine the contribution that education had to
identity the construction process on Portuguese women at that period and their awareness
raising as a human collective as well, taking marquise as an example of this mental structure
and one of responsible for this process to another women, directly or indirectly. Our
hypothesis is that marquise of Alorna was one of the pioneers to this process conduct and in
addition to instruction, one strong ally, female emancipation happened. The propose analysis
considerer that principles who had projected by marquise, and were on her daughter’s letter
orientation, were established to social requirements at that moment, which could be identified
by types of women representations of that society itself. Therefore, we are guided by Annales’
orientation and because of that we could create dialogues to other areas of knowledge,
creating a global vision to the study object and see the same discussion but on science social
author’s points of view, history, psychology, economic way etc., maximizing understandable
about the study object and their relations with the context which are related; seeing many
aspects of society’s life such as civilization, economics and their culture. In conclusion, it
allows us to see women from their own perspective. Not only that but female self-image had
changed, and consequently a new Portuguese female social representation at 19th century
happens; instruction was very important factor in this process. It also presents research
contributions in four ways: historiography; education; the female trajectory and their fight for
better rights; personal choice possibilities.
Keywords: educational principles; marquise of Alorna; women; female emancipation; 18 and
19th centuries.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
1.1. FORMULAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA ................................................. 17
1.2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ....................................................... 27
1.3. ESTADO DO CONHECIMENTO ................................................................................... 34
1.4. DESENVOLVIMENTO E ANÁLISE .............................................................................. 43
2. D. LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL DE LORENA E LENCASTRE –
MARQUESA DE ALORNA .................................................................................................. 45
2.1 UM POUCO SOBRE D. LEONOR ................................................................................... 45
2.2 D. LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL DE LORENA E LENCASTRE: DA PRISÃO
NA CLAUSURA AO CENÁRIO DA LITERATURA PORTUGUESA ................................ 47
2.3. D. LEONOR E AS ORIENTAÇÕES ÀS FILHAS: PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA
UMA NOVA FASE ................................................................................................................. 68
3. REPRESENTAÇÕES DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO ÀS MULHERES: UM
ESTUDO DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO FEMININA PORTUGUESA NOS
SÉCULOS XVIII E XIX ........................................................................................................ 77
3.1. BREVE PANORAMA DA SITUAÇÃO FEMININA NOS SÉCULOS XVIII E XIX ... 77
3.2. A EDUCAÇÃO FEMININA EM VERNEY E RIBEIRO SANCHES: PEQUENOS
AVANÇOS E SINAIS DE MUDANÇAS ............................................................................... 81
3.3. OS PRINCÍPIOS EDUCATIVOS DO SÉCULO XVIII NAS CARTAS DA
MARQUESA DE ALORNA .................................................................................................... 86
3.4. EDUCAÇÃO FEMININA E A MULHER EM VERNEY, RIBEIRO SANCHES E
MAQUERSA DE ALORNA .................................................................................................. 100
3.4.1. Luiz Antonio Verney e Antonio Nunes Ribeiro Sanches .................................................. 101
3.4.2. Marquesa de Alorna ............................................................................................................. 103
4. PRINCÍPIOS EDUCATIVOS FEMININOS EM MULHERES DO INÍCIO DO
SÉCULO XIX ....................................................................................................................... 110
4.1. EDUCAÇÃO E CULTURA NAS MULHERES DAS LETRAS: O NASCIMENTO DA
MULHER ‘MODERNA’. ...................................................................................................... 111
5. CONCLUSÃO ................................................................................................................... 136
FONTES ................................................................................................................................ 142
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 142
BIBLIOGRAFIA DE APOIO ............................................................................................. 147
11
1. INTRODUÇÃO
Esta tese, é dedicada ao estudo dos princípios educativos femininos contidos em um
conjunto de seis cartas da marquesa de Alorna, poetiza e notável dama da sociedade
portuguesa, escritas na segunda metade do século XVIII e endereçadas a uma filha que se
casaria. A ideia motivadora desta investigação foi verificar a contribuição que a instrução e o
processo educacional tiveram no percurso de construção da identidade das mulheres daquele
momento, bem como no seu reconhecimento enquanto sujeitas de sua própria história,
tomando a marquesa ao mesmo tempo exemplo dessa construção e uma das responsáveis por
esse processo em outras mulheres, seja direta ou indiretamente.
A análise pretendeu considerar que tais princípios, propostos pela marquesa e
presentes nas orientações que ela destinou à filha, se estabeleceram a partir das exigências
sociais do período, que puderam ser identificadas pelas representações das mulheres
tipificadas pela própria sociedade. Cabe ressaltar, neste momento, o que denominamos de
princípios educativos.
Para nós, a expressão ‘princípios educativos’ é composta pela concepção de educação
compartilhada de Paulo Freire que entende a educação como o meio pelo qual é possível
construir o sujeito de modo a libertá-lo do determinismo e dotá-lo de elementos, permitindo-
lhe ser autônomo (FREIRE, 2003), e da definição de princípio, proposta por (FERREIRA,
1986), que diz que ‘princípio’, em latim principium, significa início, embasamento de
algum fenômeno. Mas pode ser definido também como causa primária, o lugar ou espaço em
que algo ou um ato ou ação, ou, ainda, um conhecimento teve sua origem. E, princípios, na
mesma perspectiva, podem ser conceituados como um conjunto de normas ou padrões de
conduta a serem seguidos por uma pessoa ou instituição. Esse conjunto pode estar associado
às proposições ou preceitos capitais que orientam os estudos, maiormente os que geram o
pensamento e o comportamento.
No campo da filosofia, os princípios, conduzidos pelos códigos morais, são valores
que o indivíduo adota conforme sua consciência. Chauí (1996) nos apresenta ampla discussão
sobre o comportamento humano pautado no senso moral no campo ético. Para a autora, os
sujeitos em sua conduta ética agirão de acordo com a sua consciência, no que estabelecem
como o bem e o mal, o certo e o errado, o proibido e o permitido. Essa atitude é denominada
de consciência moral, pela qual julgará as suas ações e atos mediante os seus valores morais,
contudo a consciência e as responsabilidades de suas ações são condições indispensáveis da
vida ética.
12
Ao relacionarmos os princípios educativos com o campo moral e ético, vivenciado pela
marquesa de Alorna e transmitido em suas cartas, estamos a ponderar o conjunto de seus
próprios princípios que estão vinculados à educação que recebeu e que possuía. Dessa forma,
“princípios educativos” são aqui considerados o conjunto de diretrizes, valores e ideias que
fundamentariam o processo formativo/educação do indivíduo, nesse caso, das mulheres,
possibilitando, a elas, um despertar das suas capacidades e potencialidades.
A fonte tomada para investigação, assim como a seleção de D. Leonor como a
condutora da nossa viagem ao século XVIII e início do século XIX, se deu por entendermos
que essa senhora foi uma das pioneiras no processo de emancipação da mente feminina e com
sua forma de pensar e agir contribuiu imensamente para a mudança da autoimagem feminina1,
possibilitando, com isso, um reposicionamento da mulher na sociedade daquele tempo.
Portanto, partimos da hipótese de que ocorreu uma mudança na representação do feminino e
que D. Leonor foi uma das responsáveis por esse processo que ocasionou a construção de uma
“nova mulher”, tendo como mecanismo à sua disposição a instrução que recebeu e que,
posteriormente, buscou ofertar às mulheres de sua época.
Todavia não estamos dizendo com isso que, a partir dela, não houve mais sujeição das
mulheres em Portugal. Também não dissemos não ter havido outras mulheres2 capazes de
1 Consideramos autoimagem, de acordo com Mosquera e Stobaus (2006), a organização interna de si mesmo, ou,
ainda, o conhecimento individual de si mesmo, composto por elementos de realidade e elementos subjetivos de
autopercepção, que diz respeito à percepção dos sentimentos, atitudes e ideias que se referem à dinâmica pessoal.
Seria também o campo onde é produzida a identidade do sujeito (WOODWARD, 2006), à medida que é
percebida pelo próprio indivíduo, como aspecto que intervém no posicionamento diante do outro. No que diz
respeito à autoimagem feminina, consideramos que seja a percepção que as mulheres possuíam de si mesmas, a
visão que tinham de si, composta pelo conhecimento individual, sentimentos, atitudes e ideias associadas à visão
que a sociedade possuía delas, que, ao longo do tempo e das interferências que foram sofrendo em seus
processos educativos, instrucionais, culturais e no próprio contanto com a sociedade, foi se modificando e
promovendo uma transformação interna nelas, capaz de proporcionar uma construção de si diferente da ‘inicial’,
“qualificando assim sua humanidade”. (VASCONCELOS, 2017). 2 Cabe mencionar outra grande mulher portuguesa que também não se silenciou, lutando pelos direitos iguais
entre homens e mulheres, Ana de Castro Osório (1872 – 1935). Essa mulher é considerada pioneira nesta luta e
escreveu em 1905 Mulheres Portuguesas, primeiro manifesto feminista português. Foi uma das criadoras do
Grupo Português de Estudos Feministas no ano de 1907 e no ano de 1909 contribuiu na fundação da Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas, também ajudou a fundar a Associação de Propaganda Feminista em
1912, na Comissão Feminina Pela Pátria em 1916 a partir da qual constituiu, ainda naquele ano, a Cruzada das
Mulheres Portuguesas. (Revista COLÓQUIO/Letras n.º 52 (novembro de 1979). Cartas inéditas de Aquilino
Ribeiro, pág. 47. / Rita Correia (26 de março de 2011). «Ficha histórica: Ave azul: revista de arte e critica (1899-
1900)» (PDF). Hemeroteca Municipal de Lisboa. Consultado em 12/05/2017).
Houve também Carolina Beatriz Ângelo (1878 – 1911), médica e feminista portuguesa que adquiriu o direito de
ser a primeira mulher a votar nas eleições da Assembleia Constituinte de 1911. Isso se deu pelo fato de ser viúva
e ter sua filha Emília Barreto Ângelo como sua dependente, tendo, portanto, de sustenta-la; isso lhe permitiu
solicitar o direito de ser reconhecida como ‘chefe de família’, tornando-se assim, a primeira mulher a votar no
país. Todavia, como um meio de evitar que esse fato se repetisse e outras mulheres reivindicassem o mesmo
direito, a lei foi alterada no ano seguinte, especificando que somente ‘chefes de família’ do sexo masculino
pudessem votar. ( http://www.cdocfeminista.org/index.php/pt/biografias-de-feministas/49-carolina-beatriz-
angelo-1878-1911).
13
questionar a condição feminina na sociedade da época em que viveram. Queremos sinalizar,
apenas, o início da emancipação feminina (no século XVIII), vista posteriormente no século
XX e continuada neste século, tendo, em Portugal dos Setecentos, uma pioneira, D. Leonor,
uma das primeiras mulheres a questionar a diferença moral e intelectual entre homens e
mulheres daquele período.
Com o intuito de esclarecer o nosso posicionamento em relação ao papel de D. Leonor
nesse processo, explicamos que, ao nos debruçarmos sobre o entendimento e conceituação da
temática emancipação, denominamos de “emancipação feminina” a tomada de consciência
das mulheres enquanto ‘grupo’ ou ‘coletivo humano’3, capaz de realizar uma reflexão sobre si
próprias enquanto indivíduos e sobre a sua condição social, papel desempenhado na
sociedade, sua presença ou ausência do e no campo social, bem como quanto a sua voz ou
silêncio na sociedade em que estão inseridas. Ou seja, a emancipação, aqui, seria um
‘despertar’ da “[...] autoconsciência das mulheres como gênero, como parte do processo da
agenda da humanidade” (SILVEIRA, 2014, p. 169), como pessoas que possuem identidade
própria, com capacidades e potencialidades. Nesse sentindo, D. Leonor, a partir da formação
que recebeu e da sua trajetória de vida e participação social, atuou como uma das agentes
nesse processo.
Chegar até o nome de D. Leonor precisou de uma seleção por meio de levantamento
histórico-bibliográfico de mulheres que tivessem, de certo modo, se recusado a serem
coniventes com a ideia de que as distinções biológicas e, por conseguinte, médicas e jurídicas
em relação aos homens pudessem ser utilizadas como um estratagema para explicar ou
justificar as distinções psíquicas e comportamentais que validariam uma participação limitada
das mulheres no campo social. Necessitou, ainda, identificar uma mulher que mostrou sua
recusa por meio de posicionamentos e atuações de ordem prática em sua própria trajetória,
Na França, contemporânea de D. Leonor, a dramaturga, ativista política, feminista e abolicionista Olympe de
Gouges (1748 – 1793) foi também uma defensora da democracia e dos direitos das mulheres. Seus escritos
feministas alcançaram grande audiência. Em sua obra intitulada Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã,
(em francês: Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne) de setembro de 1791, fez oposição ao
patriarcado da época e a forma como se expressava a relação entre homens e mulheres. Devido aos seus escritos
foi morta por sentença a guilhotina. (CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e do Brasil. 5ª ed. São
Paulo; Editora Lumen Juris, 2007. ISBN 9788537501399).
Também não podemos deixar de mencionar outra grande mulher de quem falaremos mais adiante, a escritora
inglesa Mary Wollstonecraft (1759–1797), defensora dos direitos das mulheres. Escreveu romances, tratados,
entretanto o trabalho mais conhecido foi a obra Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher (1792), na qual ela
defende a ideia de que as mulheres não são, por natureza, inferiores aos homens, mas apenas aparentam sê-lo
por falta de acesso à educação e escolaridade. Ela alvitra que homens e mulheres devem ser tratados como seres
dotados da razão, concebendo, portanto, uma organização social baseada na racionalidade. (Gordon,
Lyndall. Vindication: A Life of Mary Wollstonecraft. Great Britain: Virago, 2005. ISBN 1-84408-141-9).
3 Expressão utilizada por Victória Sal em sua obra intitulada Dicionário Ideológico Feminista, publicada em
Barcelona no ano 2000.
14
que, ao se recusar a isso, recusou também a possibilidade de outras mulheres de menor
condição social que a sua permanecerem mergulhadas no sono profundo da sombra
masculina.
Encontrar alguém que tenha possibilitado o despertar da sua autoconsciência e preocupar-
se não só em manifestar isso à sociedade do seu tempo, mas também contribuir no despertar
de outras consciências em condições sociais e culturais desfavoráveis, contando com apenas
sua formação e energia, era fundamental para responder as nossas inquietações em relação às
mulheres no que diz respeito à concepção de incapacidade que lhes fora atribuída. Era
essencial para demonstrar que isso seria uma falsa construção ideológica que só poderia
existir para atender aos interesses de um grupo ou de uma organização social. Pois identificar
mulheres que fizeram esse tipo de recusa era uma “prova” de que se elas existiram, que foram
capazes de fazer uma leitura diferente da realidade posta, que poderiam e teriam influenciado
outras mulheres ao ponto de contribuir para o processo de construção e ao surgimento
histórico de movimentos feministas do século XX que lutaram pela igualdade de direito e de
oportunidades entre homens e mulheres. Seria um comprovante real e concreto de que houve
mudança na autoimagem feminina que fomentou e possibilitou o estabelecimento do gérmen
da autonomia e emancipação feminina.
Localizar uma mulher imbuída nessa condição foi fundamental para encontrar e mostrar a
nós e aos leitores que algo foi estabelecido cultural, social e economicamente para justificar a
desigualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres; para satisfazer nosso
desejo íntimo e acadêmico de compreender a necessidade de terem existido movimentos que
lutassem pelos direitos femininos, sem que eles pudessem ter sido estabelecidos de forma
“natural” como os dos homens. Essa inquietação e verdadeiro incômodo foi o fator gerador
dessa investigação que acabou por nos levar até D. Leonor e a comprovação de que nossa
hipótese em relação à condição feminina ao longo dos tempos e da existência de pioneiras do
despertar das mulheres era verdadeira, era real. Foram exatamente essas inquietações e
incômodos que permitiram a elaboração das questões problematizadoras desta pesquisa que se
encontram mais adiante.
Nessa busca pela personagem ideal, fizemos um longo percurso. Iniciamos nossos estudos
em períodos históricos anteriores ao estabelecido para esta pesquisa, procurando fazer uma
“varredura” na história das mulheres a fim de entendermos o porquê da imagem negativa da
mulher, do imaginário de que elas poderiam representar um risco, um perigo à lucidez
masculina, ao ordenamento social. Queríamos saber onde e como isso aconteceu e o principal
motivo. Nunca nos conformamos com a necessidade da luta pelos direitos, pelo espaço social,
15
pelo reconhecimento de cada uma de nós como indivíduo que somos, com vontades e desejos
próprios, com capacidades e habilidades que nos validam como sujeitas da nossa própria
história. E, por isso, precisávamos encontrar mulheres em diferentes tempos históricos que
fossem exemplos da nossa capacidade e potencialidade, que demonstrassem em suas próprias
vidas que sempre fomos capazes e desejosas de caminhar com suas próprias pernas e, ao
mesmo tempo, apresentassem suas contribuições para o despertar de outras, que a condição
vivida pelas mulheres era resultado de uma construção mental feminina “imposta” por outras
construções erigidas na e pela sociedade.
Assim, em outras pesquisas realizadas por nós em caráter institucional, iniciamos nossas
investigações ainda no século XIII no Ocidente, estudando o manual A Legenda Áurea, de
Jacopo Verazze. Essa obra descreve a vida de 26 santos e santas e servia como um manual
aos padres para orientar a formação de seus fiéis. Nessa pesquisa estudamos o perfil de três
santas como sendo exemplos de comportamentos femininos a serem seguidos e, portanto,
perfis ideais de mulheres medievais.
Depois, em outro estudo, elegemos o período compreendido entre os séculos XVII ao XIX
e estudamos as representações do feminino no período abarcado entre os séculos XVII ao
XIX pela ótica das imagens fílmicas. Esta pesquisa contou com a participação do professor
doutor Célio Juvenal Costa e nos tornou visíveis elementos interessantes que contribuíram
para aquecer nossa hipótese em relação à mudança da autoimagem feminina que acabou
sendo aprofundada nessa investigação e que, por fim, resultou nesta tese.
Paralelamente a esse estudo, orientamos um projeto de iniciação científica que investigava
a educação conventual de três religiosas portuguesas do século XVII. Essa investigação foi
muito profícua, pois nos deu um dos elementos que faltava para ‘nosso quebra cabeça’ acerca
da possibilidade da emancipação feminina, tendo como um dos recursos ou instrumentos para
isso a instrução.
Esses estudos percorreram um total de cinco anos e culminaram na atual investigação, que
se concluiu depois de três anos e meio. Portanto, com a história das mulheres, estamos
envolvidas em pesquisas, reflexões e debates há oito anos e meio. Desse período total, há três
anos e meio com a marquesa de Alorna e sua contribuição na mudança da autoimagem
feminina, nos princípios educativos e na emancipação do pensamento das mulheres. Foi um
caminhar de muitas descobertas e de um despertar íntimo. Não foram só resultados positivos,
ocorreram muitos obstáculos como, por exemplo, ao nos depararmos com poucos estudos
acerca da educação das mulheres no período em destaque; a identificação da personagem que
16
‘respondesse’ às expectativas da investigação; e, o mais difícil, porém resolvido, chegar perto
de onde teria vivido e se relacionado D. Leonor, em Lisboa.
D. Leonor surgiu dos estudos realizados na orientação do projeto de iniciação científica, já
mencionado. Ao tratarmos da educação conventual feminina, reportamo-nos a Portugal pela
relação próxima com o Brasil e pelas influências que exerceu sobre a educação brasileira. Ao
estudar um pouco da história de Portugal e na definição das religiosas a serem pesquisadas,
fomos encontrando várias histórias das mulheres daquele país e, ao verificar os nomes em
destaque, deparamo-nos com a marquesa. O interesse por ela foi instantâneo e se deu pela sua
história de vida inicialmente, pelo fato de ter sido aprisionada em um convento por questões
políticas e por ter se tornado uma grande poetiza nessas condições. Lendo sobre ela, fomos
descobrindo a notável figura que foi e como era querida e admirada pelos literatos
portugueses, um rol de trabalhos acerca das poesias dela foi se descortinando à nossa frente e,
pelos seus escritos, fomos nos interessando cada vez mais.
A busca foi se aprofundando e, na obra de Hernani Cidade (1930), A Marquesa de Alorna:
sua vida e obras, tivemos a certeza de que havíamos encontrado ‘a mulher certa’. A partir
dessa obra, chegamos até a nossa fonte, a publicação das cartas da marquesa por Cidade. Já de
posse da nossa fonte, elegemos o conjunto de seis cartas que D. Leonor escreveu a uma das
suas filhas que estava para se casar e, como explicaremos mais adiante, nessas cartas pudemos
identificar os princípios educativos femininos que teriam, ao mesmo tempo, revelado uma
consciência feminina de suas capacidades e orientações formativas oferecidas à outra mulher,
configurando, assim, a possibilidade de unirmos nossas ‘pistas’ quanto à possibilidade de o
início da mudança da autoimagem feminina ter se dado por um processo de desenvolvimento
da autoconsciência das mulheres que denominamos aqui, como já mencionado, de
emancipação feminina, e os princípios educativos como um dos agentes principais no alcance
dessa emancipação. Desse modo, tais princípios tornaram-se nosso objeto de estudo. As cartas
publicadas por Cidade foram nossa fonte, e a marquesa, nossa condutora na viagem por
Portugal da segunda metade do século XVIII e anos iniciais do século XIX.
Com o intuito de encontrarmos elementos concretos acerca do pioneirismo de D. Leonor e
de nos aproximar o máximo possível do que teria sido sua vida, suas relações e suas
produções, realizamos um estágio doutoral por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior- PSDE - da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes
- no período de abril a agosto de 2017, participando dos estudos realizados pelo Centro de
Literaturas e Cultura Lusófonas e Europeias, que fica lotado na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Nesse centro contamos com a orientação do professor doutor José
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Eduardo Franco que nos possibilitou todos os elementos necessários para a nossa proximidade
com a marquesa de Alorna.
Na realização desse estágio, pudemos pesquisar sobre a marquesa, sua vida e suas obras
por meio da Biblioteca Nacional, arquivos da Torre do Tombo e museus. Todavia não nos foi
permitido o contato com as cartas originais, pois se encontram preservadas em arquivos
inacessíveis. Mas a experiência da visita às terras portuguesas foi essencial aos estudos, bem
como a orientação do professor doutor José Eduardo Franco. Na ocasião pudemos verificar o
quanto D. Leonor é reconhecida e admirada pelos seus conterrâneos e o quanto suas
produções representaram culturalmente para eles. Fato importante, inclusive, para
verificarmos a originalidade e o ineditismo de nossa pesquisa, uma vez que nem mesmo em
seu país existem estudos sobre sua contribuição na educação feminina.
A seguir, apresentamos as questões norteadoras da nossa investigação, bem como suas
delimitações.
1.1. FORMULAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA
Figuramos a ‘mulher’ como tema desta pesquisa porque a consideramos uma categoria
analítica válida, categoria social. Assim sendo, enquanto categoria social, a mulher D. Leonor
possui as condições necessárias para estabelecer elementos que nos permitem mergulhar em
um tempo histórico e verificar, naquele universo, as condições de vida, da cultura da época,
bem como a organização social vivenciada em suas necessidades e mazelas.
Com intuito de delimitarmos melhor nosso campo de investigação, fazem-se
necessários alguns esclarecimentos. Primeiro, explicaremos o que denominamos de categorias
de análise e como pretendemos utilizá-las em nossos estudos. Em seguida, elucidamos os
motivos pelas quais nomeamos a mulher como uma categoria de análise a fim de deixar
evidentes os motivos que nos levaram a não utilizar o termo gênero para esta investigação.
Categoria de análise, em nosso entendimento, é aquela apresentada e conceituada por
Bardin (2009), em sua obra intitulada Análise de Conteúdo, publicada pelas Edições 70 na
cidade de Lisboa, a qual a conceitua como uma ponte ou ligação entre os objetivos propostos
pela pesquisa e os seus resultados, possibilitando, enquanto mecanismo ou elemento, a análise
do conteúdo, de forma a comprovar os indicadores levantados na ocasião da pré-análise e na
exploração do material/fonte. Nessa perspectiva, a pesquisa se enquadra em uma análise de
conteúdo que, segundo Bardin (2009), é um método de investigação que, a partir de um
conjunto de técnicas de análise das comunicações, possibilita a realização de análise dos
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conteúdos das mensagens destacadas para estudo. Em nosso caso, permite a análise do
conteúdo das cartas escritas pela marquesa de Alorna, endereçadas a uma de suas filhas.
Portanto, nossa categoria de análise é a mulher, pois a identificamos, no cenário
histórico, como a capaz de figurar o contexto estudado. A mulher em nossa análise apresenta
o universo em recorte feminino e permite estabelecer a relação com os objetivos perseguidos
e com o conteúdo trabalhado. Em função disso, nossa primeira seção traz a trajetória de vida
da marquesa, apresentando-a em Portugal do século XVIII. Cotejamos a categoria mulher na
figura da marquesa como representação e expressão do universo das mulheres daquela época
a fim de evidenciar o seu espaço social, as suas atribuições na sociedade, bem como as suas
representações sociais, que decorriam das ações e mensagens transcritas por essa mulher em
cartas, e a expectativa de aprendizagem que se tinha nos conteúdos enunciados.
Ao refazer os passos trilhados por D. Leonor, vemos o tracejar dos caminhos que
contribuíram para uma mudança no pensar das mulheres enquanto uma categoria histórica,
pois, com ela e por meio dela, podemos observar o possível trajeto histórico, passos que
cooperaram para da emancipação feminina, advindo, em um primeiro plano, pela educação
própria que recebeu e pelas formas em como ela resolveu os seus conflitos e as suas
necessidades, que lhe provocou o despertar da condição feminina e o desejo de rever esse
quadro, depois, pelos princípios educativos que ela teria formulado e expresso nas cartas que
ela escreveu e enviou à sua filha que estava para se casar. Dessa forma, entendemos que a
mulher, enquanto categoria de análise, legitima e valida a nossa análise histórica.
No que diz respeito a gênero, nossas leituras nos conduziram a uma viagem acerca da
origem do uso desse termo. Vimos que seu uso esteve vinculado aos movimentos feministas
do século XX, que buscaram, no Ocidente, estabelecer o alerta e a necessidade de se
estabelecer direitos de oportunidades e políticos igualmente entre homens e mulheres. Foi
possível perceber que o termo gênero se consolidou nos movimentos feministas, em especial
das mulheres norte-americanas, como aponta Scott (1990, p.72), ao elucidar que desejavam
[...] enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra
indicava uma rejeição do determinismo biológico no uso do termo “sexo” ou “diferença
sexual”.
Ainda, segundo Scott (1990), na sua utilização mais recente e simples, o termo
‘gênero’ tem sido utilizado como sinônimo de ‘mulheres’, pois os livros e artigos que
tratavam das mulheres e que tinham a história das mulheres como tema foram substituindo,
em seus títulos, o termo ‘mulheres’ por ‘gênero’. Levantamos como hipótese que a utilização
do termo ‘gênero’ parece propiciar certo crédito científico às pesquisas e desencadeia uma
19
conotação mais objetiva e neutra do que ‘mulheres’, facilitando, assim, a aceitação dos
resultados e dando-lhes credibilidade. Por outro lado, não contribui muito para que as
mulheres sejam reconhecidas como sujeitas da história; já, quando se trata diretamente das
mulheres,
[...] o termo “história das mulheres” revela a sua posição política ao
afirmar (contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são
sujeitos históricos legítimos, o “gênero” inclui as mulheres sem as
nomear, e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica
(SCOTT, 1990 p 75).
Ao considerar esses aspectos do uso do termo ‘gênero’, afirmamos, mais uma vez, que
optamos por realizar nossa investigação nos apropriando do termo ‘mulher’ como categoria
de análise, pois nossa pesquisa não caminha pela trilha das discussões em torno do gênero e,
sim, em busca da compreensão específica da mulher enquanto uma categoria histórica de
análise, do seu despertar quanto as suas capacidades, do seu processo formativo enquanto
ferramenta para tal despertar.
Não pretendemos entrar nas discussões e meandros acerca das diferenças entre os
sexos, ou do possível domínio de um sobre o outro, ou ainda quanto aos movimentos que
buscaram a igualdade de oportunidades, os direitos políticos etc. É necessário deixar bem
claro que, embora algumas dessas questões permeiem nosso texto, este estudo não se prende
às discussões acerca da submissão feminina, da opressão sobre as mulheres ou pela luta de
igualdade entre homens e mulheres. Os momentos históricos em que se fizeram presentes as
desigualdades de condições entre os sexos, por assim dizer, foram necessários para
mencionarmos a situação feminina no período, a fim de demonstrarmos as modificações que
foram ocorrendo no consciente feminino em relação a elas próprias, no processo de
reconhecimento de si, enquanto indivíduos dotados de capacidades e condições de reger suas
próprias vidas.
Dessa forma, não estamos querendo reforçar a história do pensamento feminista, descrita
por Scott (1990), que afirmava que a história do pensamento feminista é de recusa da relação
entre o masculino e o feminino. As análises, aqui mediadas, não são tentativas de reforçar
esse quadro, também não possuem a pretensão ou a intenção de desvalorizar os movimentos
feministas que contribuíram para a garantia dos direitos das mulheres. Salientamos que nesta
pesquisa examinamos a trajetória de uma mulher que representou mulheres, enquanto uma
categoria social, e a sua contribuição para o despertar de suas consciências, posicionando-as
como autônomas e integrantes da história. Trata-se da ‘descoberta’ do início dessa caminhada,
dos mecanismos ou ferramentas que possibilitaram isso. Trata-se, portanto, da educação
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feminina e das mulheres que viveram a mudança e contribuíram na mudança de outras, em
especial, da marquesa de Alorna.
Assim, optar por estudar a história das mulheres é uma forma de estudar a sociedade
pela ótica de uma parcela de seus membros. É compreender uma organização social em sua
forma de pensar e agir a partir de quem a vivenciou, gozou as alegrias e sofreu com as
dificuldades da sociedade em que estava inserido. É o caminhar pelas estradas de um tempo
que não podemos alcançar senão pelas ‘pernas’ de outros.
Demarcamos que nosso objeto de estudo se refere aos princípios educativos femininos
no período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do
século XIX. A história das mulheres e a categoria de análise mulher se convertem em um
‘pano de fundo’ apropriado para compreendermos o momento histórico em evidência, no qual
a categoria de análise mulher está eivada por suas representações sociais e suas singularidades
históricas, levando-nos a compreender os fatores que influenciaram na elaboração dos
princípios educativos femininos.
Ressaltamos que, ao tomar a história das mulheres como ‘pano de fundo’ para nossas
análises, estamos a executar os estudos segundo a perspectiva de que é uma forma de
apreendermos a mulher como participante da história e não como um dos seus objetos. Isto é,
com este estudo pretendemos contribuir para o desenvolvimento de um olhar sobre a mulher
como alguém que participa e constrói a história ativamente e não como alguém que faz
figuração na história, como objeto dela. É uma proposta para olhar a história das mulheres a
partir delas próprias. É um olhar para a sociedade em que a mulher estava inserida, tentando
ver essa sociedade apenas como um espaço habitado por diferentes sexos, com diferentes
atribuições que definiam a organização social.
Portanto, todo o caminhar desta pesquisa seguiu na busca pelo entendimento dos
princípios educativos, destinados às mulheres, e na influência desses nas modificações
observadas quanto à autoimagem feminina, em especial a das portuguesas.
Como já mencionado, a categoria de análise mulher, figurada pela marquesa de
Alorna, ou D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre - a Alcipe4 - como era
chamada pelos poetas e intelectuais do período, concebeu em nosso tema a oportunidade de
viajar pela sociedade portuguesa do século XVIII, apresentando-nos não apenas os contextos
social, político, econômico e cultural da época como também e, especialmente, o universo
4 O nome Alcipe foi atribuído à D. Leonor por um dos poetas frequentadores dos outeiros que ocorriam as grades
do convento onde a futura marquesa estava enclausurada. Não se sabe porque da escolha desse nome, apenas que
foi atribuído a D. Leonor quando despontava como poetiza. (CIDADE, 1941).
21
feminino daqueles tempos, aproximando-nos, dessa forma, do nosso objeto de estudo e,
viabilizando, por meio de sua trajetória de vida, pelas relações sociais que estabeleceu e pelas
batalhas que travou, uma visão panorâmica daquela sociedade. Isso porque, mesmo sendo
uma aristocrata, conseguiu mostrar a vida de mulheres de outras classes sociais, à medida que
construía suas relações com as pessoas que a rodeavam e por meio de suas ações em seu
cotidiano.
Além da ‘mulher’, buscamos trabalhar com mais duas categorias de análise:
emancipação feminina e princípios educativos femininos, com a ‘mulher’ figurando como
categoria social, como já explicamos acima. A emancipação feminina, como um elemento que
emerge do contexto das respostas dos sujeitos da pesquisa, favorece a identificação dos
elementos que indicam mudança no pensar das mulheres, o que, futuramente, resultaria em
um novo perfil feminino, e os princípios educativos femininos como agentes condutores do
percurso realizado pelas mulheres no processo de tomada de consciência ou autoconsciência
feminina quanto as suas capacidades e potencialidades. Em nosso próximo tópico, intitulado
Pressupostos Teórico-Metodológicos, retomaremos essas categorias a fim de demonstrar
como estas serão utilizadas, ao longo da investigação e à luz do nosso referencial teórico,
também mais bem definido no referido tópico.
Com o desígnio de prosseguirmos acerca da delimitação de nossos estudos, retomamos
nossa personagem, Alcipe, que, como mencionávamos anteriormente, não se isolava entre as
pessoas de sua classe. Em vários momentos de sua vida, como será possível visualizar na
primeira seção deste texto, a marquesa conviveu com mulheres menos abastadas e auxiliou-as
em seu processo formativo por meio de alguns princípios educativos que foram se delineando.
Fato esse que nos permitiu visualizar a heterogenia dos grupos e suas redes, exemplificando,
por meio de sua trajetória e lutas, que as ações dos grupos sociais não estavam totalmente
definidas, podendo se observar embates e fissuras desenhados em torno dos interesses de cada
grupo.
Pela sua conduta diária, sua forma de pensar e agir diante das mais diversas situações
do cotidiano, D. Leonor foi construindo, talvez sem se dar conta, um espaço e uma condição
para as mulheres que lhes possibilitaram, de certa forma, o reconhecimento de suas
capacidades e a redefinição de uma identidade própria. D. Leonor atuou, também, na
elaboração de um novo perfil de mulher, diferente daquele instituído socialmente pelas
representações sociais do feminino que havia até o momento. Utilizou-se do que havia para as
mulheres naquele momento, para estabelecer uma nova condição de vida para si própria e,
posteriormente, para outras. Do espaço doméstico e das atribuições familiares, Alcipe criou
22
outro universo dentro daquele que já existia, com muita sutileza e energia, sem causar
enfrentamento efetivo com a sociedade; trabalhou com os valores éticos e morais da época e
alcançou um espaço novo e atuante para a mulher, se não para que ela própria desfrutasse da
conquista, mas para as futuras gerações que tiveram, em sua atuação, um passo pioneiro na
emancipação do pensamento feminino.
As cartas de D. Leonor, destinadas à filha que se casaria, revelaram-se verdadeiras
orientações educacionais, permeadas de princípios educativos norteadores de um processo
formativo inovador que tinha como ponto de partida a expectativa de aprendizagem que a
sociedade5 depositava nas mulheres, mas que atingia um libertar da mente e das ações
femininas na sociedade do seu tempo. Tomar essas cartas como fonte de nossos estudos fez
toda a diferença no processo de reflexão sobre o mundo das mulheres do século XVIII e sobre
o seu processo formativo. Ler as cartas de Alcipe nos proporcionou, ainda, desenvolver um
novo olhar sobre a relação sociedade – mulheres, sobre o que a organização social de dado
período esperava enquanto função social de seus membros, o que deles necessitava, em
especial das mulheres.
O movimento de relacionar as cartas ao contexto histórico do período, às
expectativas de aprendizagem da sociedade e ao papel da mulher naquele espaço e tempo nos
permitiu entender que a sociedade não só determina e define os papéis dos sujeitos em sua
organização, conforme necessidade e exigência, como, também, desenvolvem justificativas e
teorias para reafirmar seu posicionamento, além de coibir qualquer movimento contrário aos
seus propósitos. São justamente essas justificativas e teorias que nos interessaram e que, em
nossa investigação, nos fizeram ver como e quanto a educação esteve vinculada a esse
movimento, fazendo, inclusive, o processo de ‘inculcamento’ dessas ideias que defendiam e
justificavam uma determinação social.
A relação entre as cartas de Alcipe, as expectativas de aprendizagem, os interesses e as
necessidades sociais revelaram a ‘manipulação’ do conjunto de ideias formativas que
produziam sujeitos sociais e o posicionamento das mulheres nesse contexto, evidenciando que
sua suposta incapacidade foi uma ideia criada e construída pela própria sociedade no intuito
de justificar e manter os posicionamentos necessários à sua existência, ao seu funcionamento
e ao progresso de dada forma de organização social, política e econômica. A diferença entre
5 Estamos denominando expectativas de aprendizagem o comportamento e conduta, bem como a função social
que a sociedade da época esperava/almejava das mulheres.
23
homens e mulheres foi, talvez, o ponto de partida6 para que se desencadeassem outras
elaborações mentais, ideologias, comportamentos, crenças e valores que dariam origem às
concepções de inferioridade e incapacidade femininas no período, restringindo a participação
das mulheres às funções vinculadas apenas ao espaço doméstico e ao casamento.
Dessa forma, o resultado da investigação, que está expresso e impresso neste texto,
pretende mostrar que houve mudança na autoimagem feminina e, por conseguinte, uma nova
representação social da mulher na sociedade portuguesa do século XIX. Evidenciamos que
tal mudança teve início na segunda metade do século XVIII, tendo como um dos seus
principais agentes os princípios educativos, revelados nas cartas de Alcipe7, bem como a
demanda de energia das próprias mulheres que, em um esforço por ela liderado, reconheceram
suas capacidades e habilidades, transformando, de forma processual, sua situação na
sociedade e possibilitando um longo e, ainda em andamento, movimento posterior de
emancipação feminina.
Neste momento cabe apresentar as cartas que nos possibilitaram a realização desta
investigação. As cartas a que nos referimos são correspondências que D. Leonor enviou entre
os anos de 1795 a 1799 para uma das suas filhas, não é possível saber ao certo para qual, pois,
em um período curto de tempo, duas filhas se casaram. Segundo Cidade (1941), acredita-se
ter sido Leonor, a filha de mesmo nome da marquesa, que teria se casado com o marquês da
Fronteira em 1799, pois a essa altura estava com 17 anos e solteira. Já Juliana teria se casado
em 1795 com o conde de Ega. As outras filhas da marquesa não se casaram.
Todavia consideramos importante o conteúdo dessas cartas, a época em que foram
escritas e a intenção da mãe ao redigi-las. As correspondências analisadas formam um
conjunto de seis cartas, todas, em teoria, enviadas para a mesma filha no período que
antecederia o casamento desta, ou seja, se para Leonor, entre 1798 e/a 1799. Na publicação de
Cidade (1941), a qual tomamos para análise das cartas, não há menção se houve resposta da
filha a cada uma das correspondências enviadas, ou mesmo para uma das cartas. Isso porque,
6 A expressão ponto de partida não tem, neste momento, a intenção de afirmar que foi no século XVIII que se
criou a ideia de incapacidade e inferioridade, determinada pela diferença entre os sexos, mas, sim, que a ideia, já
existente, foi utilizada como “start” para novas elaborações mentais que reafirmassem tal incapacidade feminina,
ao promover, com isso, as condições ideais para o posicionamento da mulher na sociedade daquele tempo. 7 Não estamos dizendo com isso que as cartas permitem aferir e/ou generalizar a mudança na autoimagem
feminina. Elas apenas indicam que houve essa alteração (pela própria conduta da autora das cartas) e mostram as
contribuições da marquesa para que essas mudanças continuassem por meio das orientações que ela registrava
nessas correspondências. Outro ponto importante a esclarecer é que não são as cartas as responsáveis pelas
‘mudanças futuras’ das mulheres. Elas tão somente apresentam os possíveis agentes (princípios educativos
expressos em forma de orientações ofertadas por D. Leonor) dessa mudança na conduta íntima feminina.
24
ao que parece, Cidade, ao publicar as cartas, não tinha a intenção de realizar estudos ou
mesmo divulgar o efeito das cartas na formação da filha.
Aparentemente, desejava apresentar a marquesa, sua vida e obra enquanto poetisa,
além da figura importante que ela fora para Portugal daqueles tempos. Buscava, de certa
forma, homenagear a dama admirada pelos seus conterrâneos. Então, para ele, a relevância
das cartas estava em identificar o pensamento da marquesa, seu perfil e importância para a
sociedade portuguesa, bem como para conhecer os costumes da vida e da sociedade daqueles
tempos, como podemos observar no prefácio do livro em que publicou as cartas de D. Leonor.
As cartas e outros escritos de D. Leonor de Almeida, neste volume insertos e
todos publicados pela primeira vez, creio poderem dar ao leitor, completo
em seus múltiplos aspectos, o retrato moral que dela foi esboçado [...]
Percorrendo tais escritos, conviveremos como espírito como poucos
representativo do seu século, que sucessivamente anima a enclausurada de
Chelas, depois a esposa e a mãe ocupada do futuro marido e dos filhos, a
seguir a dama de honor interessada pela harmonia conjugal dos seus
soberanos e finalmente a mulher política, toda empenhada na defesa de
Portugal contra a ameaça do poder napoleônico. (CIDADE, 1941, prefácio,
p. VII).
Em outra passagem do mesmo prefácio, há outro registro de Cidade que confirma suas
intenções com a publicação das cartas de D. Leonor:
As cartas às filhas são numerosíssimas, na colecção. Mas nenhuma tem o
valor moral e literário das que se inserem neste volume. E não interessam
apenas pelo que nos dizem dos seus conceitos de moral conjugal, da sua
noção de arranjo e ordem domésticos; da sua humanidade para com os
criados. Igualmente merecem a nossa atenção pelos aspectos que nos dão
dos costumes da vida de interior e sociedade. (CIDADE, 1941, prefácio, p.
XIX)
Dessa forma, não nos foi possível saber se essas cartas obtiveram respostas, como
também não foi possível identificar de onde foram enviadas, tampouco o local de destino,
pois, na publicação de Cidade, esses dados não foram reproduzidos. O que vemos na
publicação é a reprodução do conteúdo das cartas e a ordem em que foram enviadas. O autor
as denomina em ‘Primeira Carta’, ‘Segunda Carta’ e assim por diante. Ao contrário das
reproduções das cartas enviadas ao pai dela, por exemplo, no período em que estava
enclausurada em função de seu exílio político na infância e adolescência e que apresentam
data de envio, local e destino, como será possível observar mais adiante, no Quadro 1 que
25
apresentaremos na seção 3 deste trabalho, indicando as cartas analisadas e as cartas que foram
lidas como fontes complementares em nossos estudos.
Ainda acerca das cartas, cabe informar que os originais se encontram em arquivo
reservado na Fundação das Casas de Fronteira e Alorna8, que está em funcionamento na
antiga casa do marquês de Fronteira em Lisboa, genro9 de D. Leonor. De acordo com a
fundação, essas cartas e outras, também redigidas pela marquesa de Alorna, estão sendo
preparadas para ficarem em exposição no espaço da fundação que é aberto à visitação. Em
razão disso, não estavam disponíveis para consulta na ocasião de nosso estágio doutoral em
Lisboa.
Optamos por trabalhar com cartas em nossas análises, porque entendemos que estas
escrituras, denominadas práticas epistolares, possibilitam ao pesquisador a abertura de um
espaço importante:
[...] a partir do qual a história pode ser investigada, isto é, buscada em
vestígios e problematizada a partir de diferentes ritmos da vida social de uma
época. Materializados em papel e tinta, eles eternizam, em folhas
amarelecidas pela passagem do tempo, ideias, saberes, valores,
acontecimentos e dizeres: representações escritas em suporte papel de um
outro tempo, produzindo sentidos e construindo significados à ordem do
existente. (CUNHA, 2013, p. 116)
Portanto, a escrita epistolar interessa e muito ao pesquisador, pois está permeada de
conhecimentos de dado período histórico, ilustrando hábitos, valores e princípios
compartilhados e cheios de representações de época (CUNHA, 2013). Formam um conjunto
de “documentos históricos” que
[...] manifestam e se materializam, por escrito, registros multifacetados e
representações complexas e contraditórias, com as quais mulheres vivem e
reinventam seu cotidiano, permitindo-nos seguir suas reações e, no limite,
suas emoções diante dos fatos narrados. Esta reflexão coloca em cena uma
maneira diferenciada para pensar a História em conjunção com as
sensibilidades que dão forma à vida cotidiana e à contemporaneidade em
seus diferentes matizes, dadas a ver por uma “riqueza de vestígios deixados
por homens e mulheres que não fizeram história na acepção clássica do
termo, mas viveram, simplesmente, suas vidas”. (CUNHA, 2013, p. 117).
8A Fundação fica localizada no Largo São Domingos de Benfica 1, 1500-554 Lisboa, Portugal 9 Denominamos caso do genro e não da filha, porque a casa já era do marquês quando contraiu matrimônio com
a filha de D. Leonor, e está após o casamento passou a residir nessa casa, bem como a própria D. Leonor no final
de sua vida. Por isso a fundação é denominada Casa de Fronteira e Alorna e não o contrário.
26
Entendemos que as cartas representam uma fonte rica em detalhes, em vivências que
nos permitem nos aproximarmos de um universo de que não fizemos parte, mas nos
interessam o funcionamento e a história presente nas traçadas linhas. Compreendendo as
cartas nessa perspectiva, tomamos as correspondências de D. Leonor como uma ‘janela’
aberta para século XVIII nos permitindo olhar a paisagem cultural, social, política e
econômica daqueles tempos, pela ótica de quem vivenciou aquele mundo.
Assim, o material documental para a análise de conteúdo realizado nesta pesquisa foi
as seis cartas escritas a filha que se casaria, mas de forma complementar analisamos também
outras correspondências que D. Leonor enviou a outros familiares em épocas diferentes,
como, por exemplo, as cartas que trocou com seu pai durante o tempo em que viveu no exílio
conventual, em sua adolescência e juventude, também, as cartas que trocou com uma amiga
durante a temporada de vida no convento e, por fim, já na sua vida adulta e antes das que
destinou a sua filha, algumas cartas que trocou com a realeza da época e com pessoas
influentes daquela sociedade, nas quais manifestou as suas preocupações de ordem política.
Todas essas cartas que fizeram parte da nossa leitura atenta contribuíram para que
pudéssemos visualizar a trajetória de D. Leonor, seus interesses, suas relações e sua forma de
pensar e agir. Isso foi possível porque as cartas, naquele período, representavam verdadeiros
diários, revelavam, como já dito, pensamentos, expunham dúvidas e angústias, expressavam
preocupações e, também, traziam orientações acerca de temáticas vivenciadas pelas mulheres
naquela realidade, como as que traziam orientações à filha da marquesa.
Esclarecimentos realizados quanto às cartas, voltemos a nossa personagem, D. Leonor, que,
com muita energia, atuou significativamente no estabelecimento das condições iniciais para a
efetivação de mudança na autoimagem feminina, ao defender um processo formativo que
desse às mulheres um suporte para desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e
intelectuais, contribuindo, dessa forma, na construção de um perfil de mulher relativamente
autônoma, capaz de reger sua vida, seu pensar, possibilitando, a ela, a passagem do “modo
sujeitada” para “sujeita” de sua própria história. Cabe novamente afirmarmos que o caráter
educativo está não na forma sistematizada por meio de um projeto ou proposta educacional
oficial, mas por meio de suas ações ao longo de sua trajetória, como insistir com as mulheres
à sua volta para que se aplicassem aos estudos, promovendo, em sua própria casa, momentos
de realização de instrução e ensino às moças pobres de Almerim, por exemplo, e, por fim,
escrevendo orientações à sua filha.
Nessa perspectiva, as perguntas problematizadores deste estudo, que permitiram a
identificação de D. Leonor como pioneira do processo de emancipação da mente feminina,
27
bem como a instrução como um agente que contribuiu para esse movimento foram as
seguintes: Ocorreu na sociedade portuguesa, entre os séculos XVIII e XIX, uma mudança na
autoimagem feminina? Quais fatores teriam contribuído para que essa mudança ocorresse? E,
por fim, teria sido D. Leonor uma pioneira no movimento que promoveu tal mudança e qual
teria sido seu papel?
1.2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Em resposta às questões norteadoras da pesquisa apresentadas no tópico anterior e na
tentativa de delimitar o espaço e o tempo em que se desenvolve o tema investigado,
ressaltamos, mais uma vez, que a análise está centrada nos princípios educativos orientadores
da formação das mulheres portuguesas da segunda metade do século XVIII e primeiras
décadas do século XIX, em um período de profundas alterações políticas, sociais e
econômicas europeias. Tal recorte temporal se justifica por ser um momento que, embora a
sociedade portuguesa estivesse passando por uma fase de reacomodação de valores,
redefinição de papéis e reafirmação de outros, observamos uma alteração na conduta e no
pensar de algumas mulheres, revelando o início de um processo de mudanças na sua
autoimagem e, posteriormente, na sua representação social.
A percepção quanto a essas modificações se deu ao compararmos a mulher do início
do século XVIII com a da segunda metade desse mesmo século e com a que vemos no século
XIX. Ao olharmos para as mulheres, notamos uma sutil diferença entre elas e, embora todas
sejam resultantes da construção simbólica social utilizada a partir de seu sexo, das suas
características biológicas e das condições jurídicas a elas destinadas, é possível visualizarmos
pequenas alterações nas poucas escolhas que puderam fazer.
Assim, a figura feminina que vemos descrita na literatura da primeira metade do
século XVIII é a que se estabeleceu progressivamente a partir de concepções criadas
anteriormente a esse período e que foram reafirmadas ou, muito provavelmente, reinventadas
pelas religiões, em especial pelo catolicismo antigo e medieval, conforme imaginário e
necessidades daqueles tempos. Essa mulher foi tendo sua imagem construída no final do
mundo antigo e depois, no mundo medieval, quando religiosos como santo Agostinho, Tomás
de Aquino e santo Ambrósio, com atitudes misóginas10, como afirma Vaquinhas (2011),
10 Talvez essa atitude (misógina) ou o pensamento que ela exprimia no tempo dos religiosos mencionados; não
fosse entendida por eles como algo pejorativo em relação às mulheres, como vemos na atualidade
(VAQUINHAS, 2011). Mas, reforçava a ideia de que as mulheres deveriam ocupar um lugar social menos ativo
28
classificaram as mulheres em dois grupos representados por dois modelos femininos: o da
Virgem Maria e o de Eva. As que pertenciam ao primeiro grupo eram exaltadas pela
preservação do corpo e pela nulidade sexual, e as que pertenciam ao segundo grupo foram
execradas por representarem o pecado, a transgressão e a desobediência à ordem estabelecida.
A medicina e o direito contribuíram muito na consolidação dessa visão estabelecida
pela religião, pois a forma como evidenciaram a diferença entre homens e mulheres, seja
biológica ou legalmente, fortaleceu a ideia de que a mulher, pelo seu sexo, deveria ocupar um
lugar menos ativo socialmente que os homens.
[...] representações ambivalentes da mulher anjo ou demônio, luz ou trevas,
poder criador ou poder satânico – apoiam-se na autoridade indiscutível de
algumas ciências como é o caso da medicina e do direito. Consciente ou
inconscientemente, estes ramos do saber alimentam preconceitos
antifeministas, conferindo-lhes credibilidade científica e o estatuto de
verdades insofismáveis. (VAQUINHAS, 2011, p. 21-22).
Veja-se o caso da medicina. O discurso médico sobre as mulheres assenta
[...] Com organismo débil (órgãos delicados, uma estrutura óssea fraca,
tecidos moles e esponjosos, nervos bastante ramificados o que explicaria a
grande sensibilidade e predomínio da emoção sobre a razão), sujeita a
indisposições periódicas que condicionam a sua instabilidade humoral, a
mulher é considerada, no século XIX, como possuindo uma fisiologia
patológica. Comprovaria esta fragilidade a falta de autocontrolo, o que
convertia a mulher num ser a proteger. (VAQUINHAS, 2011, p. 21-22).
Por essas razões, convencionou-se socialmente que as mulheres deveriam ser
tuteladas por um homem, podendo ele ser seu pai, irmão ou marido. Tal situação lhe rendeu a
ausência de direitos civis, registrada e validada pelo direito da época.
[...] o código Civil português de 1867 [...] traduziu na lei a autoridade do
homem sobre a mulher, no caso desta ser casada e dos pais sobre as filhas,
no caso destas serem soleiras. Enfim, a subalternização feminina na relação
conjugal e filial. Para além, de não reconhecer à mulher quaisquer direitos
políticos ou familiares, proibia-a de administrar bens próprios ou familiares,
só consentindo que o fizesse no caso de impedimento do marido.
(VAQUINHAS, 2011, p. 24).
Segundo Catroga (1985, p. 138), todas essas restrições foram produzidas pela “[...]
mentalidade da época e da função social atribuída à família, a qual era considerada como
célula económica e afectiva básica para a reprodução fisiológica dos mecanismos de
que os homens, ou que pelas suas características físicas e emocionais não poderiam deixar de serem tuteladas e
ter seus destinos planejados por outras pessoas (pelos homens).
29
autoridade.” Situação essa que implicava na subalternização da mulher e na redução de seu
espaço social. A mulher do século XVIII e início do século XIX ficou confinada ao espaço
doméstico, tendo como atribuições a maternidade, o cuidado com o lar e com marido,
praticamente, dominada por este, sem acesso ao conhecimento.
Todavia, ainda na segunda metade do século XVIII, paralelamente a toda essa
situação, as primeiras vozes dissonantes desse discurso começaram a se erguer, começou-se a
‘defender’ os direitos femininos, colocando-se em xeque as verdades dos séculos, mudando-se
concepções, derrubando-se mitos. De forma tímida, inicia-se um movimento em prol da
instrução da mulher, destacando-se nessa empreitada alguns nomes como Luiz Antonio
Verney e Ribeiro Sanches, que, embora não pensassem em uma educação para emancipação
feminina, acabaram por abrir os caminhos para uma futura mudança na situação feminina.
Surgem também, no período, algumas vozes femininas que contestaram as
representações sociais das mulheres. Lopes (1989) dedica um tópico, em seu livro, para
apresentar as vozes dissonantes desse discurso que responderam às mensagens misóginas,
proclamadas às mulheres. Em uma passagem de seu livro intitulado Mulheres, espaço e
sociabilidade: a transformação dos papéis femininos em Portugal a luz de fontes literárias
(segunda metade do século XVIII), Lopes convida Paula da Graça, a primeira a dar
testemunho de grande lucidez no julgamento que faz da situação feminina. Também apresenta
Gertrudes Margarida de Jesus, que, em 1761, criou um folheto demolidor aos argumentos da
suposta incapacidade feminina e superioridade masculina. De acordo com Lopes, Gertrudes
Margarida de Jesus refuta os defeitos apontados pela obra Espelho11 às mulheres.
Os defeitos refutados por Jesus foram a ignorância feminina, a inconstância e a
formosura. Lopes menciona que Jesus argumentou da seguinte forma: a ignorância seria
resultado da falta de instrução, negada às mulheres e a inconstância seria um defeito de
ambos os sexos, e, quanto à formosura, Lopes (1989, p.26) cita a fala de Jesus que teria sido:
“não tenho tempo para tratar do terceiro defeito; porque outros ministérios próprios da minha
pessoa me levão huma grande parte dele”.
Entre essas vozes, podemos situar D. Leonor que, quer seja pela sua produção literária,
demonstrando toda a capacidade intelectual feminina, ou pelas batalhas que viveu em sua
trajetória ou pelos princípios educativos que levantou, também ergueu sua voz, mostrando que
algo se modificou no consciente feminino.
11 Obra de frei Amador do Desengano que acusa o sexo feminino de ignorância, inconstância e formosura.
30
Portanto, a mulher que chegou até o século XIX não é a mesma que caminhou pelo
século XVIII, ou seja, mesmo com a força social atuando como “inculcadora” da
incapacidade feminina e mesmo no espaço reduzido da sua atuação, as mulheres se
modificaram, mudaram seu pensar sobre si própria, mudaram sua autoimagem e iniciaram um
movimento de projeção dessa mudança, que vamos assistir nos anos que iniciam o século XX
com os movimentos feministas12.
Para desenvolver o processo de investigação acerca dessa temática, a pesquisa foi
desenvolvida com base no referencial teórico, proposto pelos Annales, pois este apresenta a
possiblidade de rejeitar as ‘verdades’ dos documentos oferecidos pelas fontes e nos permite
questionar, desafiar e provocar as fontes, podendo, com isso, compreender que elas não falam
por si próprias, necessitam ser indagadas, podem, portanto, serem vistas em suas múltiplas
formas. Nessa perspectiva pudemos estabelecer questões/diretrizes da investigação e propor
hipóteses que exercem uma função norteadora no método utilizado, estabelecendo um diálogo
entre a investigadora e as fontes de estudo, dando a essas um caráter dinâmico.
As questões levantadas no estabelecer do eixo da pesquisa possibilitaram que se
abrisse “[...] a janela das inquietações políticas, morais, éticas e científicas, transformando a
pesquisa em um campo que dialoga e interage com a vida e com a percepção do mundo, sem
abrir mão do rigor científico e da metodologia e técnica de trabalho com as fontes”
(CALDAS; MARTINS, 2012, p. 279)13. Ou seja, permitiram uma aproximação significativa
nossa com a pesquisa, possibilitando que esta pudesse também projetar as perguntas
pertinentes a sua vida, em consonância com as apreensões da sociedade na qual está inserida,
no seu tempo, criando, portanto, um estreito e rigoroso campo de trabalho intelectual. Aqui
residiu a nossa afinidade teórica, como pesquisadora, com o referencial apresentado.
Entretanto, para além da afinidade que se estabeleceu por essa perspectiva teórica, há
outros pontos importantes que se fazem necessários destacarmos para que não haja dúvidas
quanto à seleção do referido aporte teórico. Um desses pontos seria o entendimento que os
Annales apresentam da história que, como apontam Caldas e Martins (2012, p. 279), “[...]
passa a ser entendida como reescrita, como uma construção no tempo presente”. Vindo, dessa
12 Mencionamos aqui os movimentos de modo geral que ocorreram no Ocidente, que em sua maioria lutavam
pelo direito de oportunidades iguais entre homens e mulheres e pelos direitos políticos das mulheres. 13 Não optamos por nos reportar diretamente a Marc Bloch para realizar essas considerações, porque não
desejávamos sugerir que nos fixaríamos na primeira fase dos Annales para realização de nossos estudos. Como
nossa opção foi por utilizar os fundamentos desse aporte teórico como um todo, preferimos apresentar as
possibilidades que os Annales poderiam nos oferecer de forma geral, utilizando para isso teóricos que
contribuíssem para a exposição desse objetivo.
31
forma, ao encontro da nossa proposta de lançar um outro olhar sobre a história das mulheres;
essa perspectiva, possibilita estabelecer outra visão sobre as mulheres, uma que as vê como
sujeitas e não sujeitadas.
Além disso, trabalhar, na perspectiva dos Annales, nos oportuniza instituir diálogos
com outras áreas do conhecimento, criando condições para que haja uma visão global do
objeto de estudo e da discussão deste sobre outros ângulos, sobre pontos de vista de autores
da das ciências sociais, da história, da psicologia, da economia etc., ampliando o
entendimento acerca do próprio objeto e das suas relações com o contexto em que está
inserido.
De acordo com Caldas e Martins (2012), os Annales, abrangendo suas fases de
desenvolvimento e atuação no campo investigativo, abrem um leque de possibilidades de
estudo para o pesquisador, seja tomando referenciais da sua primeira fase com Marc Bloch ou
com Lucien Febvre, em 1929, ampliando o potencial das fontes e permitindo que se indaguem
as mesmas, estabelecendo questões norteadoras da pesquisa e hipóteses. Ou na perspectiva
globalizante do objeto de estudo, criada por Fernand Braudel entre as décadas de 1950 e 1960,
na segunda fase dos Annales, quando também contribuiu para uma ressignificação do tempo,
que pode se apresentar em suas múltiplas facetas cronológicas atendendo “[...] à expectativas
e projeções da sociedade, repartindo-se em temporalidades afeitas à durabilidade de ações no
tempo e ao tempo das ações humanas: a curta, a média e a longa duração” (CALDAS;
MARTINS, 2012, p. 279). Ou, ainda, em sua terceira fase, quando possibilitou que os
vencidos ou excluídos da história pudessem expressar sua voz e participar da construção
daquela, entendendo que toda atividade humana é considerada história, como avalia Le Goff
(1976) e, ainda, Duby (1991) abrindo espaço, junto com Perrot (1991), para que se pensasse a
história das mulheres.
Por todas essas questões é que selecionamos os Annales para fundamentar nossa
análise, possibilitando o desenvolvimento da nossa investigação, dando-nos condições de
situar nosso objeto de estudo no cenário da história das mulheres, abrindo-nos espaço para
tratar desse objeto, dialogando com outras áreas do conhecimento, podendo, dessa forma, nos
apoiarmos em autores importantes das ciências sociais, como Nobert Elias (1994) e Pierre
Bourdieu (1986), possibilitando, com isso, discutirmos a educação das mulheres em dado
período histórico e em determinada sociedade, considerando os vários aspectos da vida e da
sociedade, como a civilização, a economia e a cultura, por fim, permitindo-nos materializar
nossa proposta de olhar as mulheres a partir delas próprias.
32
Outra opção que fizemos e que entendemos ser necessário esclarecer é quanto ao fato
de não desejarmos nos apoiar em apenas uma das fases dos Annales. Isso porque, ao longo de
nossos estudos, apoiamo-nos nos aspectos de mais de uma fase. Optamos por utilizar os
aspectos fundantes das fases dos Annales os quais fossem úteis para as análises que
realizamos na pesquisa.
Partindo do exposto e da nossa opção teórica, apresentamos neste momento como
organizamos a pesquisa. Pensando na abertura ofertada pela primeira fase dessa corrente
teórica, estabelecemos, inicialmente, as questões norteadoras da pesquisa e nossa hipótese,
conforme descrita no item anterior deste texto introdutório. Com base nas possibilidades
proporcionadas pela terceira fase, selecionamos a ‘mulher’ como categoria social para a
análise e a história das mulheres como ‘pano de fundo’ dos nossos estudos. Utilizando dos
pressupostos da segunda fase, traçamos o percurso que as mulheres teriam desenvolvido no
processo de formação da autoconsciência. Com o referencial da primeira fase, pudemos
questionar nossa fonte e enxergar o que poderia existir ali para além do que estava impresso e,
com isso, foi possível estabelecer a compreensão da emancipação feminina como uma
possível resposta para uma das questões norteadoras e, também, a comprovação da nossa
hipótese, portanto, com isso, elencamos outra categoria de análise, a ‘emancipação feminina’.
Por fim, tendo a segunda fase como referencial, pudemos ver que a educação vigente naquele
período era uma resposta às expectativas e projeções da sociedade portuguesa sobre as
mulheres do século XVIII e, que, informalmente, foi sendo alterada por algumas mulheres,
como a marquesa, por exemplo. Com essa percepção, pudemos estabelecer os ‘princípios
educativos femininos’ como mais uma categoria de análise.
De posse dessa organização, pudemos refinar nosso olhar para o período em estudo e
para a sociedade daquela época, passando a entender que o espaço destinado às mulheres bem
como todas as condições de vida que as cercavam são frutos das necessidades criadas no
processo de construção e manutenção de dada sociedade, considerando nesse conjunto a
produção da vida material, a questão civilizatória própria de cada sociedade e a própria
organização social, com suas exigências e imperativos.
No entanto compreendemos que isso não corresponde, necessariamente, às reais
necessidades humanas, mas sim às obrigações de manutenção de dada condição social,
política e econômica que, acabam, por sua vez, em não apenas determinar prioridades da vida
em sociedade, como, também, definem papéis sociais, não se atentando às necessidades de
bem-estar dos indivíduos, independentemente de seu sexo. Diante disso, podemos dizer, de
acordo com Elias (1994), que existe uma ordem invisível que oferece ao indivíduo uma gama
33
mais ou menos restrita de funções e modos de comportamentos possíveis. Essa ordem teria
determinado, em nosso entendimento, o papel da mulher ao longo dos tempos, fazendo com
que ela própria acreditasse nas limitações que lhe foram impostas ou nas determinações
sociais necessárias ao funcionamento de dada estrutura social. Esse controle exercido sobre os
indivíduos pode ser executado pela sociedade sobre estes, por meio de suas leis, princípios e
valores, como também pelos outros indivíduos dentro do convívio social, ou, ainda como
aponta Montagnoli (2017, p. 20 -21), pelo “[...]autocontrole, um código social de conduta
gravado tão fortemente no indivíduo a ponto de tornar-se um elemento constitutivo dele
próprio, agindo até quando ele se encontra sozinho”.
Nessa perspectiva, a formação da personalidade e do pensamento se daria a partir de
três aspectos: com as proibições apoiadas em sanções sociais que se reproduzem no indivíduo
como formas de autocontrole; com as pressões sociais para restringir impulsos; e com a
vergonha sociogenética que cerca o indivíduo, atuando na internalização dos hábitos. Ou seja,
não é nem necessária a violência física para exercer o controle do indivíduo se fazendo valer
pela ameaça direta, pois o controle mais importante e, talvez, o mais eficaz se dá no interior
do próprio indivíduo (ELIAS, 1994). Mecanismo eficiente esse e que garante, portanto, a
sobrevivência da sociedade, pois esta não consegue sobreviver sem que seus membros não
internalizem esse tipo de controle. Assim, a relação entre sociedade e sujeito seria, nas
palavras de Elias (1994, p. 189), “[...] estrutura social e estrutura de personalidade do ser
individual”.
Realizando uma relação de ideias acerca de como se define e se naturaliza a atribuição
de papéis sociais, podemos dizer que a psicologia do século XVIII ou, ainda, a mentalidade14
daquele momento, compreendia a condição feminina como algo natural, comum. Tal
condição estaria, para aquelas mentes, em consonância com a organização social do período e,
portanto, responderia bem às exigências sociais vigentes. Nisso se incluem as mulheres
também, pois, como afirma Lopes (1989), bombardeadas por essas ideias, passaram a
acreditar nelas. O consciente coletivo pesava sobre todos, mesmo havendo vozes dissonantes,
como já comentado.
Diante dessas considerações, concordamos com a ideia proposta pela Escola de
Annales no que diz respeito à exclusão das mulheres da história, pois esta era escrita por
homens acerca de ambientes nos quais as mulheres não estavam inseridas. Como afirma
14 A ideia de mentalidade, mencionada aqui, é a expressa pela Escola de Annales que, segundo Vahl e
Vasconcellos (2014, p. 228), como “mentalidades”, que seria um tipo de estrutura mental, compartilhada pelos
atores sociais em contextos específicos.
34
Perrot (1988), o “ofício do historiador” é de homens que escrevem a história no masculino. Os
campos abordados são os cenários público, político, econômico e de guerra e não incluem,
portanto, a mulher. Ou seja, a organização social via a situação feminina a partir desse prisma,
havia um consciente coletivo operante nesse sentido.
Todavia, por meio das discussões promovidas pelos Annales e pelo rompimento com
os universos particulares que essa escola promove no campo da história, se tornou possível
não apenas realizar essa leitura quanto ao posicionamento da mulher na história e na
historiografia, como, também, foi possível compreender que, para se atingir um entendimento
quanto à situação feminina, era preciso alcançar “[...] a compreensão da dicotomia masculino
e feminino e suas interações sociais para desvendar as relações de poder e dominação entre
eles” (SILVA; SANTOS 2008, p. 7).
A possibilidade posta pela perspectiva da Escola de Annales quanto ao estudo das
mulheres representou um caminho plausível para as discussões em torno da temática, pois,
ainda de acordo com Silva e Santos (2008, p. 4), essa
[...] corrente historiográfica permite que a mulher passe a fazer parte da
história geral, pois ela inclui os contextos em que ela estava inserida, como a
vida privada, as práticas cotidianas, a família, o casamento, a sexualidade,
entre outros. Além disso, a defesa da interdisciplinaridade e a utilização de
outras fontes que não unicamente a escrita, permite que a voz das mulheres
sobre o passado seja ouvida.
Dessa forma, ao pautarmos na abordagem cultural que os Annales permitem,
procuramos analisar a situação feminina no período em destaque neste estudo para, a partir
dela e dos elementos que a permeiam, identificar a mudança ocorrida na autoimagem
feminina, bem como a atuação de D. Leonor como uma das pioneiras “ocultas” do processo
de emancipação da mente feminina.
1.3. ESTADO DO CONHECIMENTO
A revisão da literatura sobre a educação feminina, realizada ou proposta no período
compreendido entre os séculos XVIII e XIX, refere-se a um mapeamento acerca das pesquisas
desenvolvidas sobre essa temática no Brasil e, nesse caso em especial, em Portugal, já que
nossa personagem era portuguesa. Com esse encaminhamento, buscamos compreender a
temática em estudo a partir de dois aspectos: 1) buscamos autores que propuseram estudos
envolvendo essa temática no período proposto e 2) realizamos uma busca no banco de teses e
35
dissertações da Capes que trataram sobre o tema, envolvendo o final da primeira metade do
século XX até o ano de 2105. O determinante para a definição do período revisitado se deu
pelos primeiros registros de estudos envolvendo a marquesa de Alorna, nos anos 40 do século
XX.
Nossa busca percorreu os seguintes locais:
• Biblioteca do conhecimento on.line (http://www.b-on.pt);
• Repositórios Universitários Nacionais (http://www.rcaap.pt);
• Educational Resources Informational Centre (http://www.eric.ed.gov);
• Google Acadêmico (http://scholar.google.pt);
• Biblioteca Nacional de Portugal;
• Fundação das Casas de Fronteira e Alorna;
• Torre do Tombo;
• Banco de Teses e Dissertações Capes;
• Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
• Revista Brasileira de História da Educação;
• Revista Histedbr;
• Revista Brasileira de Educação.
Tal procedimento foi preciso para que pudéssemos dimensionar, organizar e situar
nosso objeto de estudos nas publicações e pesquisas já realizadas no campo educacional
envolvendo a pós-graduação stricto sensu, em especial, mestrado e doutorado em educação.
Pois, como aponta Soares (1989), compreender o estado do conhecimento acerca da temática
é fundamental ao processo de desenvolvimento da ciência, com isso, é possível organizar
periodicamente o conjunto de informações e resultados já alcançados, permitindo a indicação
das possibilidades de inserção de diferentes e novas perspectivas sobre o tema.
A educação feminina em diversas épocas e sociedades já foi debatida por outros
investigadores, assim como a marquesa de Alorna já figurou em outras pesquisas. No entanto
o estudo vinculando a marquesa à educação de mulheres, na perspectiva por nós abordada,
ainda não foi proposto. Isto é, analisar a educação feminina em uma perspectiva progressiva
de autonomia das mulheres expressa e proposta por D. Leonor, ainda que informalmente em
suas cartas, não foi temática nem objeto de estudo privilegiado por nenhum pesquisador no
Brasil ou em Portugal.
Os estudos envolvendo as mulheres, em sua maioria, tratam da condição da mulher na
sociedade ou discutem as conquistas femininas ou, ainda, papel social das mulheres em
36
determinados períodos históricos. Quando se reportam à educação feminina, apresentam
pesquisas acerca da educação formal, sistematizada e, nesse caso, referem-se a períodos
posteriores ao século XVIII.
Todavia não estamos afirmando que não tenha havido estudos que discutiram as
questões femininas em outros aspectos, como, por exemplo, a participação ou ausência das
mulheres na política, seu poder de sua influência junto aos homens, os movimentos que
lutaram pelos direitos de oportunidade e direitos políticos, como os movimentos feministas.
Assim como não estamos dizendo que estudos envolvendo essas perspectivas não tenham
fornecido contribuições valiosas às pesquisas em torno das mulheres, da história destas , para
a história e historiografia. Só pretendemos sinalizar que estudos envolvendo as mulheres e seu
universo, ao longo dos tempos, existiram e foram contributivos, mas, em sua grande parte,
terminaram percorrendo os caminhos que incidem nas discussões a respeito da capacidade ou
não das mulheres ou da subalternização feminina.
Considerando essa situação, tendo pretensões diferentes dessas e desejosos de
promover uma reflexão acerca da mulher, enquanto alguém que participa da agenda da
humanidade, propomos neste estudo verificar uma possível mudança na autoimagem da
mulher, bem como identificar seus agentes influenciadores e atores envolvidos em tal
processo.
Assim, entendemos que uma discussão que busca a reflexão, no sentido aqui exposto,
deve estar desvinculada das discussões que cotejam a incapacidade, a fragilidade ou a
subordinação do sexo feminino em relação ao masculino. Ao contrário, nossa análise
fundamenta-se na ideia da sujeita ‘mulher’ e não em um indivíduo situado apenas na condição
vinculada da construção ideológica do seu sexo. A respeito da mulher, pensamos como Duby
e Perrot (1991, p. 9):
Para onde quer que nos voltemos, ela está presente, infinitamente presente:
do século XVI ao século XVIII, no conjunto das cenas doméstica,
econômica, intelectual, pública, conflitual e até lúdica da sociedade, a
mulher está presente. Está também presente em acontecimentos que
constroem, transformam ou dilaceram a sociedade. De alto a baixo na escala
social, ela ocupa todos os espaços, salvo, evidentemente o da guerra – e
mesmo aqui há que exceptuar o período tumultuoso da Fronda – e, da sua
presença falam constantemente os que a olham, muitas vezes para se
assustarem com ela.
37
Portanto, optamos pela reflexão a partir do significado da palavra ‘mulher’, descrito
em dicionários15, e compartilhamos, como já nos posicionamos em outros textos de nossa
autoria16, a definição apresentada pelos professores Pontes e Santos (2014), ao dedicarem-se a
estudos acerca da representação do homem e da mulher a partir do Dicionário de usos do
português do Brasil, escrito por Borba (2002) e que define assim a mulher:
Segundo Borba (2002, p. 1068 apud PONTES E SANTOS, 2014, p. 136):
[mulher] Nf 1 ser humano do sexo feminino: mantido o limite para a
puberdade para o homem aos quatorze anos e para a mulher, aos doze (AE);
olhou para o centro do palco, vendo um corpo de mulher tombado no chão
(BB) 2 mulher na idade adulta ou moça que atingiu a puberdade: Um homem
e uma mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato? (ANB); minha filha,
já estás uma mulher (BN) 3 esposa: Acaso ela é minha mulher, minha
esposa? (A); marido e mulher discutiam como chamar a menina a nascer
(ANA) 4 parceira sexual do homem: às vezes pensava até em procurar outra
mulher (AFA); conhecer aquela que seria a primeira mulher de sua vida
(BB).
Pontes e Santos afirmam que, “[...] dos enunciados definitórios do verbete acima, é
possível destacar os seguintes traços semânticos:1. ser humano; 2. sexo feminino; 3. idade
adulta; 4. entrada na puberdade; 5. esposa e 6. parceira sexual” (Ibid., p. 136).
Parafraseando os autores, podemos afirmar que a definição de “mulher”, apresentada
acima, induz ao entendimento de mulher como sendo ser humano do sexo feminino em idade
adulta; que teve sua primeira menstruação; esposa e parceira sexual em potencial. Isto é, o
conceito de mulher é elaborado a partir dos seus aspectos biológicos, definidos inicialmente
na Idade Média, tendo seu papel na estrutura familiar construído historicamente pelas
necessidades sociais, que se pautavam na ideia de família como microcélula da sociedade.
O mesmo ocorre na definição de homem, também apresentada pelos mesmos autores
ao citarem Borba (2002), demonstrando que aquele também é definido a partir dos mesmos
aspectos, ainda que em seu verbete apareçam mais traços semânticos do que na definição de
mulher.
15 Vale ressaltar que dicionários são elaborados a partir de construções históricas e culturais de dada sociedade
em determinadas épocas, podendo ser atualizados sempre se considerando tais circunstâncias. Isso significa dizer
que as definições apresentadas não estão completamente despidas das concepções sociais do contexto em que
foram escritas. Contudo, para este estudo, a definição apresentada servirá apenas como ponto de partida para
visualizar a mulher enquanto sujeito, na perspectiva de alguém que recebe e desenvolve papéis dentro de uma
organização social. 16 Referimo-nos a um artigo intitulado As representações do feminino no período compreendido entre os séculos
XVII ao XIX pela ótica das imagens fílmicas, publicado na Revista de História da Universidade Federal do Rio
Grande – Historiae, vol. 8, nº 2, 2017, p. 155-170.
38
homem Nm 1 ser humano em geral; indivíduo da espécie humana: O
pequeno deus que há no homem (OAQ); Chegou-se inclusive à data precisa
do aparecimento do homem: ele teria nascido há 200.000 anos, de uma
mulher muito propriamente chamada de Eva (SU) 2 ser humano do sexo
masculino: é muito feio, tanto para homem como para mulher! (FEL); a
mulher pode vencer o homem nos esportes? (REA) 3 a humanidade: Por
isso, ele que era meio grego, foi para uma ilha grega, escrever em grego a
última tragédia do homem (SPI); É a cidade dos grandes monumentos
criados pelo homem desde o século XI (CLA) 4 o ser humano como criatura
de Deus, com dualidade de corpo e espírito e com as virtudes e fraquezas daí
decorrentes; ser mortal: Senhor meu Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro,
Criador e Redentor meu (OSA); a primeira expressão de grande amor que se
conhece, foi (é) o ato divino, criando o homem e o universo, segundo se lê
no Gênesis (EM) 5 marido ou amante: morreu um homem meu e ninguém
me avisa (SO); o meu homem, o falecido Capitão Rodrigo, um dia chegou
pra passar a noite na vila e ficou aqui o resto da vida (TV) 6 pessoa;
indivíduo: não era homem de meio-termo (VIS); Zumbi não era homem de
voltar pro dono dele, para levar de chicote, ser encanado em cadeia pior que
a de hoje ainda (PM) 7 pessoa de quem se trata especificamente: muito ao
contrário, para nós importa bem mais fornecer ao nosso homem condições
de multiplicar o esforço (DP) 8 o ser humano do sexo masculino em idade
adulta; homem feito: ele já é um homem (MD); mas agora, já homem,
Valdemar via-os de maneira diferente... (COT) 9 modo deinterpelar alguém:
– Fale, homem! – instou o padre (ALE); – Fala, homem, o que está
acontecendo? (ATR) [Classif: de+nome humano] 10 aquele que executa com
absoluta fidelidade as ordens de alguém: todos contra o ditador, menos o
Salgado, que era homem de Getúlio (FSP); você que é o meu homem de
confiança desligue-me, e dê energia, força (VO) _ Adj 11 macho; corajoso:
Vai bancar homem pra cima de mim? (BA); Esse padre é muito homem
(GCC) _ homem com agá maiúsculo homem de verdade; macho: pode ser
até que ele não seja nem mesmo homem com agá maiúsculo (RAP)
(BORBA, 2002, p. 818).
Tomando como base as definições apresentadas, entendemos que tanto o homem
quanto a mulher são definidos não pelo seu sexo, mesmo isso aparecendo na definição do
dicionário, mas pela atuação que exercem na sociedade, ou, ainda, pela sua função social. O
sexo é utilizado como uma forma de qualificar os seres humanos, ou seja, “[...] sexo é o
conjunto de características estruturais e funcionais segundo o qual um ser vivo é classificado
como macho ou fêmea” (BORBA, 2002, p. 1281). Portanto, a determinação das funções de
cada um, de acordo com o sexo que possui, é uma elaboração histórica e social, que considera
as características físicas e emocionais de cada sexo. Nesse sentido, a noção de que existem
fraqueza ou fortaleza nos sexos é uma produção histórica que teve como sustentação primeira
39
as características físicas, biológicas e psicológicas de cada sexo diante do executar de
determinadas tarefas nas sociedades em cada época17.
Considerando esses apontamentos, concluímos, inicialmente, que a posição das
mulheres na sociedade, seja anterior ou atualmente, foi designada segundo as necessidades e
exigências sociais de cada época. O discurso para justificar esse movimento é que sofreu
distorções, provocando uma representação pejorativa da mulher, apresentando-a, de certa
forma, como um ser inferior, mais fraco ou incapaz de determinadas tarefas. Todavia não é
objetivo aqui averiguar isso. Nesta pesquisa, como já foi mostrado anteriormente, a intenção é
identificar e compreender a mudança que ocorreu na autoimagem feminina das mulheres
portuguesas dos séculos XVIII e XIX, possibilitando a elas uma relativa autonomia,
estabelecendo alguns elementos que lhes permitissem escolher os seus caminhos.
A situação feminina e o cotidiano da mulher no período compreendido entre o século
XVII e metade do XVIII, segundo Hatherly (1996), não foram estudados de forma integral.
Imaginamos que isso se deva porque o espaço destinado às mulheres era o privado, da casa, e
a ‘vida’ naquela época acontecia no espaço público. Entretanto esse é um olhar equivocado,
pois no período barroco18 a mulher cumpriu outros papéis além dos mais manifestados
(esposa, mãe, filha). A mulher barroca foi também
[...] heroína: dama ou cortesã, intelectual, artista, mística ou até santa,
demonstra por vezes sua capacidade de afirmação pessoal e mesmo
uma espécie de proto-consciência-de-classe, antecipando claramente o
feminismo moderno. (HATHERLY, 1996, p. 270).
Diante das considerações da autora, é possível inferir que, para as mulheres que
extrapolaram os muros do lar, um dos determinantes dessa situação foi a maneira como se
17 A palavra homem é a evolução de ‘hominem’, que em latim vulgar já teria a forma ‘homine’. É a palavra
latina – e não a portuguesa – que se liga a ‘humus’ («solo», «terra»), estabelecendo uma relação que era
frequente em grande parte das línguas da família indo-europeia.
Com efeito, no dicionário de Carl Darling Buck (A Dictionary of Selected Synonyms in the Principal Indo-
European Languages, 1949), explica-se que em itálico (grupo que incluía o latim), em céltico, em báltico, em
germânico, a palavra que significava «homem» como ser terreno por oposição aos deuses, seres celestiais
derivava realmente do termo que designava «terra». A par de ‘homo’ existia outro vocábulo em latim, ‘vir’, para
referir um homem enquanto varão, isto é, «pessoa do sexo masculino».(Creative Commons, 2005.<acesso em
24/08/2017). Não encontramos uma etimologia para a palavra mulher equivalente à encontrada para a palavra
homem.
18 O Barroco foi um período do século XVI, marcado pela crise dos valores Renascentistas, gerando uma nova
visão de mundo através de lutas religiosas e dualismos entre espírito e razão. O movimento envolve novas
formas de literatura, arte e até filosofia. (SOUZA, s/d).
40
apoderaram da palavra, falaram, leram, escreveram e publicaram, ao projetar, a partir disso,
a sua imagem na sociedade do seu tempo (HATHERLY, 1966).
Contudo esse movimento ainda não foi suficiente para romper totalmente com as
barreiras sociais, impostas ao seu sexo, tanto que, como discorrem Duby e Perrot (1991), as
mulheres foram deixadas por muito tempo às margens da história. Classificadas como seres
inferiores, quando comparadas aos homens, não figuravam sua própria história, não
elaboravam seus projetos de vida, não eram consideradas sujeitos com condições de
interagir com a sociedade em que estavam inseridas. As mulheres, por um longo período,
foram descritas quase que como objetos inseridos em um quadro social. Por vezes
demonizadas e, em alguns momentos, santificadas a pretexto de modelos ideais de conduta.
Não se olhava para elas como indivíduos, criaturas com vontades e pensamentos próprios,
não eram consultadas sobre seu destino, não eram ouvidas quanto às suas dores e alegrias,
simplesmente, viviam entre aqueles que as definiam.
Vários estudiosos da história das mulheres debruçaram-se sobre questões acerca da
vida e do cotidiano feminino, sempre apresentando a sua condição subalterna, a submissão
explícita, as dificuldades de sobrevivência quando não estavam tuteladas por um guardião.
Outros estudiosos vinculados à literatura19 tratavam, e tratam, das mulheres que, como
mencionado acima, tomaram a palavra e fizeram da escrita uma forma de serem vistas e
ouvidas, senão em suas necessidades, mas enquanto intelectuais. Nesse sentido, encontramos
muitos estudos da área da literatura20 que discutem as produções femininas na perspectiva da
linguística e do gênero literário, inclusive estudos relacionados à marquesa de Alorna, ou
Alcipe, como também era conhecida no campo literário.
Os estudos que se dedicam à formação feminina, ao processo educativo das mulheres
normalmente fixam o olhar para questões vinculadas aos projetos educativos sistematizados,
como já dissemos, e discutem programas de estudos, metodologias de ensino e aprendizagem.
Não encontramos, nas buscas realizadas, estudos que tratassem do processo formativo na
perspectiva a que este estudo se propõe, ou seja, nada consta nos bancos públicos de
dissertações e teses, textos que investigaram os princípios educativos femininos implícitos na
formação não sistematizada, nas orientações subjetivas, propostas pelas próprias mulheres por
meio de correspondências, orientações verbais ou situacionais, vivenciadas na troca de
experiências registradas em diários ou documentos considerados informais.
19 Zinani (2014); Anastácio (2005) e vários. 20 Almeida (1996); Barroso (1992); Braga (1984); André (1995); Delile (2006); Erhardt (2003); Frazão (1983);
Martins (2000); Santos (1988) e vários outros.
41
Dessa forma, percebemos que a educação espontânea, aquela que se desenrola no
cotidiano das pessoas, que se abriga nas orientações oferecidas com base na prática social de
cada um, ainda não foi devidamente explorada enquanto uma forma de educação, de
formação humana ou, ainda, como expressão dos valores que subsidiam a formação do
pensamento, das condutas dos sujeitos e que, também, são ou fazem parte do processo
educativo dos indivíduos. Assim, também, como a educação feminina fora dos parâmetros
dos programas de ensino e da educação sistematizada, não foi empreendida em pesquisas a
contento. Com essa percepção, procuramos desenvolver estudos que possam contribuir nas
reflexões acerca da formação feminina, evidenciando princípios educativos que, ao mesmo
tempo, foram promotores e promovidos pela mudança da autoimagem feminina, ao
demonstrar que a educação, enquanto instituição social, atua na formação dos sujeitos,
explícita e implicitamente, podendo ser esta formal ou informal.
A originalidade desta pesquisa reside no fato de apresentar um movimento pioneiro na
emancipação do pensar das mulheres, movimento oculto nas orientações educacionais de uma
senhora que soube estabelecer princípios educativos que conduzissem as mulheres de seu
tempo rumo ao reconhecimento delas próprias enquanto sujeitas de suas próprias histórias.
Reside, ainda, no fato de identificar uma mulher que até então foi destacada pela história
apenas como escritora, celebrada pelo seu estilo de escrita e pela intelectualidade, mas não
como uma das pioneiras do movimento de emancipação do pensamento feminino na
sociedade portuguesa de fins do século XVIII e início do século XIX.
Esta pesquisa contribui, portanto, na busca de respostas quanto a questões como:
Quem somos? Do que somos capazes? Qual será nosso espaço? Posso me tornar quem almejo
ser? E, ainda, na busca pelos vestígios das antepassadas que nos ajudam a compreender, como
afirmam Duby e Perrot (1991, p. 7), “[...] as raízes da dominação e as relações entre os sexos
através do espaço e do tempo”.
Dessa forma, conforme apontado mais acima, observamos que os trabalhos
desenvolvidos, envolvendo a história das mulheres, não passaram pelas questões aqui
levantadas, daí ser possível afirmar que este estudo apresenta um caráter de ineditismo,
podendo contribuir com as reflexões em torno da educação feminina e, principalmente, com a
‘construção de um novo perfil de mulher’ que surge no século XX. Para afirmar tal situação
com tranquilidade, realizamos um estado do conhecimento sobre o objeto de pesquisa aqui
tratado que não apontou investigações em torno da ideia de mudança na autoimagem feminina
por meio dos princípios educativos subjetivos na formação feminina, bem como do papel
importante de D. Leonor nesse processo. Assim, passamos a apresentar os resultados do
42
estado do conhecimento. Ressaltamos que essa revisão trilhou, ainda que não de forma
intencional, o caminho de uma revisão crítica acerca dos trabalhos envolvendo a história das
mulheres e, em especial, a marquesa de Alorna.
Em nossas buscas em Portugal, encontramos dois grandes estudiosos da marquesa de
Alorna, Vanda Anastácio21, que escreveu sobre ela pela vertente literária, ou sua influência
sobre a sociedade portuguesa no que diz respeito a sua participação política na sociedade de
seu tempo, neste caso, pela história social. Seus trabalhos, como poemas e as traduções que
realizou ao longo das atividades desenvolvidas na trajetória de vida, registram momentos
importantes da literatura portuguesa e, por essa razão, é sempre mencionada nas investigações
dessa área. Os registros que Anastácio apresenta como revisão literária acerca da marquesa
seguem, portanto, nessa direção.
Outro estudioso da marquesa de Alorna foi o professor doutor Hernani Cidade22 que,
na década de 1940, produziu pesquisas em torno da vida e obra dela. As obras mais
relevantes, resultantes de seus estudos, foram as em que ele atuou na organização e seleção
dos trabalhos de D. Leonor: Marquesa de Alorna: Poesias (1930); Marquesa de Alorna -
Inéditos, cartas e outros escritos (1941), Marquesa de Alorna: sua vida e obra – reprodução
de algumas cartas inéditas (1930). Nesses trabalhos, Cidade também abordou apenas a
questão literária das produções de D. Leonor.
Há, ainda, também em Portugal, a professora Maria João Lopo de Carvalho23, que, no
ano de 2011, publicou uma biografia romanceada da marquesa de Alorna. Esse trabalho
recebeu o título de Marquesa de Alorna: do cativeiro à corte de Viena. Apresentou, segundo a
21 Vanda Anastácio é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem colaborado
com diversos Centros de Investigação da Universidade de Lisboa (Centro de Estudos Clássicos), da
Universidade Nova (CESNOVA) e da Universidade de Coimbra (Centro de Estudos Camonianos). Integra a
equipa que prepara a edição crítica da correspondência e da obra da marquesa de Alorna com o apoio da
Fundação das Casas de Fronteira e de Alorna. Realizou edições críticas de autores portugueses dos séculos XVI
a XVIII. Entre as suas obras publicadas contam Visões de Glória (Uma introdução à Poesia de Pêro de Andrade
Caminha) (2 vols., 1998), a edição e estudo de uma obra do Cavaleiro de Oliveira (Viagem à Ilha do Amor,
2001), as Obras de Francisco Joaquim Bingre, em seis volumes (2000-2005) o Teatro Completo de
Camões (2005). É responsável pela edição da correspondência trocada entre a marquesa de Alorna e a Condessa
do Vimieiro durante o período em que aquela esteve encerrada no mosteiro de Chelas (Cartas de Lília e Tirse
(1771-1777), 2007). Coordenou o volume coletivo intitulado Correspondências (usos da carta no século
XVIII) (2005). Publicou no Brasil Os Sonetos da Marquesa de Alorna em 2008 e em Portugal a colectânea de
ensaios A Marquesa de Alorna (1750-1839). Estudos (2009). (Agália. Revista de Estudos na Cultura. Ed.
Associaçom Galega da Língua (AGAL). URL: http://www.agalia.net <acesso em 03/07/2017>.
22 Hernani Antonio Cidade, foi um jornalista, crítico literário, ensaísta, historiador e professor universitário
português na Faculdade de Letras de Lisboa que em sua obra Miscelânia de Estudos, em honra do Prof. Hernâni
Cidade (1957), escreveu sobre os trabalhos desenvolvidos pela marquesa que foram referidos nesse relatório. 23 Maria João Lopo de Carvalho é licenciada em letras pela Universidade Nova de Lisboa. Foi professora de
português e inglês em todos os graus de ensino. Começou a publicar na oficina do Livro em 2000. Possui vários
títulos publicados. Atualmente é cronista regular na imprensa escrita e na televisão portuguesa. Marquesa de
Alorna foi seu primeiro romance histórico. (CARVALHO, 2011).
43
própria autora, “a história de uma mulher apaixonada, rebelde, determinada e sonhadora que
nunca desistiu de tentar ganhar asas em céus improváveis, como a estrela que, em pequena,
via cruzar a noite” (2011, orelha da obra).
Dos registros levantados por nós sobre trabalhos que tratam da marquesa ou de suas
produções, desde o mais antigo, ainda do século XIX, até os mais atuais, datados do ano de
2017, a maior parte aborda questões literárias, alguns tratam do uso das correspondências
como gênero textual, e outros, bem poucos, do posicionamento político audacioso da mulher
D. Leonor para seu tempo. Mesmo estes últimos não tocam na questão educacional. Ou seja,
não mencionam os princípios educativos femininos24, presentes em suas cartas, ou seu
pioneirismo na oferta de educação às meninas de classes sociais desfavorecidas, nem mesmo
mencionam as suas “ideias educacionais” e, também, não a apresentam como uma das
pioneiras no movimento de emancipação das mentes femininas, como propõe esta pesquisa.
Com base na busca realizada e nas leituras executadas, acreditamos que as questões apontadas
nesta investigação e o problema aqui proposto não foram, ainda, respondidos.
Portanto, consideramos importante identificar os princípios educativos femininos nas
cartas da marquesa de Alorna que, a partir de suas ações, modo de pensar e pela sua própria
conduta, contribuíram com a emancipação das mentes femininas. Dessa forma, seguimos com
a investigação a fim de colaborar nas reflexões acerca do processo de emancipação da mente
feminina pela via da educação das mulheres do final do século XVIII e início do século XIX.
1.4. DESENVOLVIMENTO E ANÁLISE
Esta pesquisa desenvolveu-se em cinco seções; a primeira se refere à introdução, em
que apresenta como se deu o processo da pesquisa. A segunda seção, intitulada D. Leonor de
Almeida Portugal de Lorena e Lencastre – Marquesa de Alorna, realiza uma apresentação da
marquesa, que nos conduziu em uma “viagem” à sociedade portuguesa da segunda metade do
século XVIII e pelos anos iniciais do século XIX, mostrando, inicialmente, a situação
feminina no período, imersa em um contexto conturbado de reformas políticas e sociais.
Ainda nesse percurso trazemos até o leitor as cartas redigidas pela marquesa e enviadas, como
24 Com relação aos princípios educativos femininos, presentes nas cartas da marquesa de Alorna, apenas um
artigo publicado por Leila Mezan Algranti em 2014 se aproxima das nossas discussões. Todavia, segundo sua
publicação, intitulada Educação de meninas na américa Portuguesa: das instituições de reclusão à vida em
sociedade (séculos XVIII e início do século XIX), os princípios educativos femininos não são inovadores e, ao
contrário, reafirmam a situação feminina subalternizada, preparando as mulheres apenas para as atribuições de
mãe, esposa e responsável pela casa. Portanto, a autora afirma que a marquesa, assim como Ribeiro Sanches,
direciona a educação feminina para a administração da casa e para compor uma conduta moral aceita pela
sociedade da época. Nesse sentido, o trabalho aqui proposto se opõe ao dessa estudiosa.
44
já mencionado anteriormente, para sua filha que se casaria (provavelmente, para D. Leonor,
filha de mesmo nome que a marquesa), no total um conjunto de seis cartas para a mesma
destinatária que, segundo nossa percepção, revelaram algumas orientações de caráter
formativo que neste trabalho denominamos de ‘princípios educativos femininos’.
Ao dar continuidade às discussões e com o intuito de demonstrar a condição das
mulheres no momento em destaque, descrevemos brevemente, na seção 3, intitulada
Representações da sociedade em relação às mulheres: um estudo dos princípios da educação
feminina portuguesa nos séculos XVIII e XIX, a situação feminina na sociedade dos
Setecentos, bem como a educação das mulheres naquele contexto. Mostramos a educação
feminina proposta por Luiz Antonio Verney e Ribeiro Sanches (educação sistematizada) e por
D. Leonor (princípios educativos). Evidenciamos que as propostas realizadas por Verney e
Sanches estão em consonância com a mentalidade social daquele momento, ou seja,
manifestam um reforço ao papel que as mulheres deveriam desenvolver naquela sociedade; já
a da Marquesa, embora não tenha sido sistematizada ou tenha feito parte da educação oficial
do país, revelou-nos não apenas o início do movimento que, mais tarde, resultaria na
emancipação do pensamento feminino, mas também já uma alteração na autoimagem
feminina.
As intenções dessas duas seções foram ambientar o leitor ao período em estudo,
aproximando-o do contexto português e da situação das mulheres naquele universo, bem
como demonstrar os projetos educacionais femininos no âmbito sistematizado e projetado
para o desenvolvimento da sociedade daquele tempo e no âmbito informal, preconizados por
D. Leonor em suas cartas, para, com isso, evidenciar, por meio dos princípios educativos,
‘propostos’ pela marquesa, uma inicial mudança na concepção de atuação das mulheres na
sociedade (desenvolvida por ela própria), bem como uma modificação na autoimagem
feminina.
Na quarta seção expomos uma leitura mais profunda do conjunto de cartas em estudo
e, portanto, uma análise mais apurada dos princípios educativos femininos, presentes nas
mensagens impressas nas cartas, buscando, com isso, ao mesmo tempo, identificar e
evidenciar traços que demonstram o nascimento de um pensamento mais autônomo e
confiante, como também a preocupação e o desejo de propor um projeto educativo às
mulheres que lhes possibilitasse elementos para garantir um espaço maior e mais atuante na
sociedade, levando-as a se verem como alguém capaz de ser sujeita da sua própria história. O
movimento realizado nessa seção elenca características de um novo perfil feminino nascendo,
45
provavelmente ‘precursor’ dos futuros movimentos feministas de fins do século XIX e do
século XX.
A quinta e última seção expressa nossas considerações finais, na qual realizamos uma
síntese analítica do trabalho proposto e apresentamos nossas conclusões a partir da análise das
cartas de D. Leonor, evidenciamos os indicadores que nos levam a compreender os primeiros
passos no caminhar das mulheres rumo à construção de um pensar mais autônomo das
mulheres e do reconhecimento de suas capacidades e potencialidades. Toda a discussão e
análise acerca da mudança da autoimagem feminina como um indicativo de construção de
uma ‘nova mulher’ e de um processo de emancipação feminina realizou-se considerando os
registros da marquesa, as orientações que ela ofertou à destinatária como sendo princípios
educativos que puderam ser identificados e elucidados à luz da metodologia utilizada nesta
pesquisa. Procuramos demonstrar que tais princípios representavam, simultaneamente, a
mudança da autoimagem das mulheres, pela forma de ser da própria marquesa, como também
a ferramenta necessária para o despertar da autoconsciência feminina, pelo menos daquelas
que tivessem acesso a uma formação. Destacamos também o papel importante de D. Leonor
nesse processo, considerando-a uma pioneira no encaminhar dessa demanda.
2. D. LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL DE LORENA E LENCASTRE –
MARQUESA DE ALORNA
Esta seção tem como objetivo apresentar a marquesa de Alorna, para tanto dispõe uma
biografia que vai além da descrição da vida dessa dama da sociedade portuguesa, propicia
uma viagem a Portugal do século XVIII e início do século XIX, possibilitando uma visita à
organização social, política, econômica e cultural daquela sociedade. Também leva o leitor a
conhecer a situação feminina no período, imerso em um contexto conturbado pelas reformas
políticas e sociais.
2.1 UM POUCO SOBRE D. LEONOR
Escrever sobre alguém, a fim de apresentá-lo (a), é estar em uma condição especial e
delicada ao mesmo tempo. Especial, porque nos coloca como quem determinará o que deve
ser recordado sobre a trajetória da personagem e delicado, porque nos coloca em uma posição
difícil, à medida que fica, em nossas mãos, definir o que devemos considerar relevante sobre
o biografado, suas relações, sua rede de contatos, seus posicionamentos diante do cotidiano e
46
da vida. Assim, quando temos uma personagem a apresentar, é preciso que tenhamos certa
cautela e respeito para com sua trajetória. Dessa forma, é preciso selecionar o modo ou a
forma de como biografar a pessoa em destaque.
Considerando que D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre é uma
personagem composta de características marcantes e possui um dos mais refinados e
contundentes perfis femininos no século XVIII e XIX da sociedade portuguesa, sua biografia
deve, respeitosamente, evidenciar os aspectos e atuações que justifiquem a atenção dada aos
seus escritos e a sua contribuição quanto à educação das mulheres no referido período. Em
função disso, e por entender que essa mulher pode ser considerada uma “representante” das
mulheres no processo de emancipação feminina, como aponta Ribeiro (2002), é que esta
seção busca narrar sua trajetória de vida na perspectiva histórica, não como um trabalho de
reconstrução dessa trajetória, restringindo-se à história de uma vida, mas como um índice
referencial de um universo, de uma estrutura social e de uma cultura, isto é, como um
conjunto coerente de normas e experiências. Portanto, procuramos situar D. Leonor entre a
individualidade de seu ser e o seu ser social.
Nesse sentido, adotamos, na realização desta breve biografia de D. Leonor, o conceito
de “trajetória vital”, citado por Zimmermann e Medeiros (2004), quando esclarecem os
caminhos seguros e úteis de uma biografia na realização de um estudo como o desenvolvido
aqui. Assim, na perspectiva dos autores, biografar uma personagem, fazendo-nos valer desse
conceito, é adequado por inibir o reducionismo na construção biográfica, possibilitando que o
indivíduo seja inserido na ideia de história processo,
[...] onde pode ser sujeito e sujeitado dentro das permanências e mudanças
históricas. Portanto, ao fazer uso do conceito de trajetória vital evitar-se-ia
uma visão fragmentária e causal da biografia. Pierre Bourdieu defende a
construção da noção de trajetória evitando assim a ilusão biográfica, ou seja,
a história de um sujeito deslocado do espaço social. (ZIMMERMANN E
MEDEIROS, 2004, p. 35).
Na mesma perspectiva, Bourdieu (1996) assegura que, para escrevermos uma
trajetória, devemos previamente construir
[...] os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o
conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado [...] ao
conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com
o mesmo espaço dos possíveis. (BORDIEU, 1986, p. 190).
47
Desse modo, em nossos estudos e análises, entendemos a biografia como um
instrumento útil e suplementar no entendimento das tensões, conflitos e contradições de um
tempo, que oferece elementos essenciais para a compreensão do período estudado. No caso
deste estudo, em particular, compreender o momento vivido por D. Leonor e as influências
que sofreu no contexto em que estava imersa, provocando em nossa personagem elaborações,
pensamentos e ações que contribuíram no entendimento dos princípios educativos femininos,
aplicados à formação das mulheres portuguesas na segunda metade do século XVIII e nas
primeiras décadas do século XIX.
Portanto, como aponta Priore (2009), a biografia entendida dessa maneira nos permite
compreender que o indivíduo não está só.
Ele existe “em uma rede de relações sociais diversificadas”. Na vida de um
indivíduo, convergem fatos e forças sociais, assim como o indivíduo, as
ideias, representações e imaginário convergem para o contexto social ao qual
ele pertence. (PRIORE, 2009, p. 10).
Embasados nesse conceito de biografia e entendendo-a como uma ferramenta
importante em nossos estudos, apresentaremos nesta seção D. Leonor de Almeida Portugal de
Lencastre – marquesa de Alorna, autora de vários textos e cartas que foram reunidos na obra
Inéditos: cartas e outros escritos25, parte importante de nossas investigações, deixando,
portanto, que essa senhora nos conduza a Portugal da segunda metade do século XVIII e
primeiras décadas do século XIX.
2.2 D. LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL DE LORENA E LENCASTRE: DA PRISÃO
NA CLAUSURA AO CENÁRIO DA LITERATURA PORTUGUESA
[...] era também uma formosa mulher estatual, o rosto a um tempo forte e
suave, de linhas firmes e nítidas, iluminado por uns belos olhos muito
grandes, claros e penetrantes, doces e levemente irônicos, um não sei quê de
subtil e vivo a denunciar uma pequenina tendência para as originalidades
amáveis – como para as desassombradas atitudes varonis. (CIDADE, 1930,
p.7).
D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre26 nasceu em Lisboa, em 31 de
outubro de 1750, de família aristocrática, pertencia à nobreza da sociedade portuguesa27 que,
25 Obra em que Cidade seleciona e organiza textos e cartas escritas pela marquesa de Alorna, publicada em 1941. 26 D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, condessa de Oeynhausen por seu marido, Dama da
Ordem de Cruz Estrelada em Alemanha; D. de Honor, e Dama da Real Ordem de Santa Isabel em Portugal; 4ª
48
pelo antigo regime28, ocupava posição social honrosa e respeitada por todos os membros
dessa sociedade. Todavia isso não lhe garantiu proteção contra a perseguição que sua família
sofreu pelo Marquês de Pombal ao serem acusados pela tentativa de morte do rei D. José I. Na
ocasião do ocorrido, sua família foi arrolada no processo de acusação e seus avós maternos, os
Távoras, foram penalizados com morte, e seu pai, D. João de Almeida, 2º marquês de Alorna,
preso no forte da Junqueira. Enquanto ela, sua irmã, Maria, e sua mãe, também de nome
Leonor, ficaram enclausuradas em um convento em Chelas, o Mosteiro de São Félix29. Seu
irmão, Pedro, recebeu um guardião, indicado pelo marquês de Pombal, para cuidar de sua
criação, formação e dos bens da família Alorna.
D. Leonor teve uma infância atribulada e aos oito anos foi privada do convívio de seu
pai e irmão, como já mencionado. De seu nascimento até os oito anos, viveu no Palácio do
Limoeiro, em Chelas. Nesse pequeno espaço de tempo, gozou de uma vida privilegiada pela
classe social à qual pertencia, tinha acesso a uma educação primorosa por via do seu convívio
familiar. De acordo com alguns escritos sobre sua trajetória vida, entre eles um romanceado,
escrito por Carvalho (2011, p. 20), Leonor “Era sem dúvida uma criança precoce, sabia de cor
a história sagrada e a história profana, as parábolas da Bíblia e os deuses da mitologia pagã”.
Era considerada pelos seus familiares uma menina inteligente, curiosa, sempre questionando
tudo. Muito observadora, chamava a atenção para situações e fatos.
marquesa de Alorna e 7ª condessa de Assumar, pela morte de seu irmão, o marquês dom Pedro de Almeida
Portugal e de seus dois filhos. Era primogênita de seus irmãos por esta ordem; seguindo-se-lhe a senhora D.
Maria de Almeida, condessa da Ribeira Grande, 2ª mulher de dom Luiz Antonio Câmara, 6º conde do mesmo
título, dos quais é neto dom Francisco de Salles da Câmara, 8º conde da Ribeira Grande; e seguindo-se seu irmão
dom Pedro de Almeira Portugal, que foi o 3º marquês de Alorna; 5º conde de Assumar, Védor da Casa Real,
comandador da Ordem de Cristo, tenente general, governador das Armas da Província do Além-Téjo, chefe da
Legião de Tropas Ligeiras, organizada com seu nome em Portugal; falecido em 1813, sem sucessão viva de sua
esposa, a marquesa D. Henriqueta da Cunha, filha dos 6ºs condes de São Vicente; ou de seus filhos que também
faleceram, dom João – 6º conde de Assumar em 1805; e dom Miguel em 1806; em cuja falta a senhora D.
Leonor sucedeu a seu irmão dom Pedro, que foi o último marquês de Alorna. (CIDADE, 1941, p. 5). 27 Seu pai foi dom João de Almeida Portugal, 2º marquês de Alorna; 4º conde de Assumar, Védor da Casa Real,
comendador da Ordem de Cristo, capitão de Cavalaria na Corte; sua mãe, a senhora D. Leonor de Lorena; era 4ª
filha dos 3ºs marqueses de Távora, Francisco de Assis de Távora, que era 3º conde de Alvor, ramos dessa mesma
família, e marquesa D. Leonor Thomasia de Távora, que havia recebido toda a Casa dos Távoras, atualmente
extinta. (CIDADE, 1941, p. 5). 28 Antigo Regime trata-se de um regime centralizado e absolutista, em que o poder era concentrado nas mãos do
rei. Sua origem vincula-se ao sistema social e político aristocrático que foi estabelecido na França. Refere-se
ainda à forma de viver das populações europeias durante os séculos XVI, XVII e XVIII, isto é, desde a
descoberta marítima até as revoluções liberais (TOCQUEVILLE, 1856). 29 Mosteiro feminino de Cónegas Regrantes de Santo Agostinho; arquitetura religiosa, maneirista e barroca.
Atualmente é utilizado como igreja paroquial/cultural e recreativa: arquivo. É uma propriedade estatal e foi
construído no período compreendido entre os séculos XVI ao XIX. (Sistema de Informação para Patrimônio
Arquitetônico. SIPA; acesso em 25/05/2017).
49
Sua infância foi marcada por dois acontecimentos trágicos, o terremoto que assolou
Lisboa em 175530 e a prisão de seu pai em 1758. De acordo com as biografias escritas, entre
elas, A Notícia Biográfica de Alcipe, que introduz o tomo I da edição de 1844 das suas Obras
Poéticas, do terremoto ficaram as imagens de horror e o movimento de reconstrução de
Lisboa, que foi precedido por uma ‘desconstrução’. Desconstrução essa que foi além da
implosão de prédios em ruínas, mas provocada por um movimento liderado por Sebastião
José (marquês de Pombal) para a reconstrução de uma sociedade portuguesa na qual a
aristocracia não ocuparia mais o mesmo lugar de outrora, e não apenas em seus palácios, mas
também sua posição política, social e econômica.
Entretanto o terremoto não seria capaz de tamanha mudança, mas a necessidade de
reconstrução, vinda depois dele, associada à empreitada da economia moderna, vislumbrada
por Pombal e avalizada pelo rei D. José I, possibilitou um ‘reordenamento social’,
reposicionando as camadas sociais. Ao que tudo indica, o ministro Sebastião José, Pombal,
lançou mão de diversas estratégias para alcançar seus objetivos. Perseguiu os jesuítas, que
obstacularizavam a empreitada na América Portuguesa, e criou situações políticas que
desencadearam no deslocamento da antiga nobreza na ordem social.
Da separação dos membros de sua família, em especial de seu pai, ficaram para D.
Leonor a saudosa imagem do seu tempo de criança, da presença forte de seu pai e um
profundo vazio, alimentado pela mágoa nutrida contra Pombal e a política social deste,
também certa ‘revolta’ pelos anos de cativeiro injusto, pelas privações por que passara e pela
falta de liberdade. Ao ler suas cartas endereçadas ao seu pai31, percebemos tal dor e o
descontentamento com o claustro, com as relações desenvolvidas com as religiosas.
Confesso a V. Exª que não acho neste mundo nada que me dê gôsto, senão
os corações de V. Exª e os meus livros. O mais tem tudo uma certa
incoerência aborrecível para meu génio, que tenho a confiança de julgar
muito parecido como de V. Exª. Mas que me importa pregar aos hereges?
Queixo-me em vão,
Pois meus gemidos
Ficam perdidos
Entre a voz de confusa multidão. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941, p. 48).
30 Esse terremoto provocou uma destruição em quase toda a Lisboa, especialmente na zona Baixa, atingindo
também o Algarve e Setúbal. O sismo foi seguido de um tsunami. Na ocasião ocorreram mais de dez mil mortes.
Teve enorme impacto político e socioeconômico na sociedade portuguesa do século XVIII. (ALMEIDA, 2006) 31 Nesse momento ainda não apresentaremos um quadro com todas as cartas estudadas, pois aqui apenas
queremos ilustrar os sentimentos de D. Leonor que contribuíram na construção da mulher que ela se tornou.
Posteriormente, apresentaremos tal quadro.
50
Todavia também é possível observar, por essas mesmas cartas, o crescer e o
amadurecer dessa senhora que, em 18 anos de prisão conventual, se construiu como uma
mulher forte e capaz de decidir seu destino, fazer escolhas e encaminhar a própria vida, como
podemos observar, quando ela trata da questão de seu casamento, em que fez uma escolha
contrária à vontade de seu pai. Assim, apesar das dificuldades encontradas na vida
enclausurada, é preciso que reconheçamos que essa mesma vida lhe permitiu alcançar uma
formação intelectual32, que deu respaldo para sua trajetória, para a visão de mundo que
desenvolveu, para o entendimento da preciosidade que é ter uma boa rede de contatos e,
ainda, para o traquejo político ao traçar articulações a fim de conquistar seus objetivos.
Cidade (1941), ao mencionar a construção da identidade e da consciência de D.
Leonor em seu tempo de claustro, afirma sobre as cartas da futura marquesa de Alorna:
Percorrendo-as com a atenção que merecem, impressiona-nos vivamente o
que nelas se mistura de certa nitidez na visão política, de confiança nas
próprias capacidades e planos para a solução de uma crise formidabilíssima,
que não era nacional, senão porque era europeia [...] (CIDADE, 1941, p.
XXIII – XXIV).
Essas situações serviram como força motriz na construção da mulher que D. Leonor se
tornou, também a influenciaram na forma de pensar, de ver o mundo e, em especial, a
sociedade em que estava inserida. Propiciaram a ela o desejo de alcançar conhecimentos que
pudessem lhe conduzir os passos de modo a intervir na sociedade em que estava inserida. A
busca pelo conhecimento moveu essa mulher e a manteve “viva” durante o tempo de clausura.
Ela aprendeu alguns idiomas, como o francês, o inglês, o árabe e o latim; leu sobre
astronomia, literatura e filosofia; estudou a lógica, a poética, a história sagrada e a profana;
teve acesso a autores como Voltaire e Rousseau.
Entretanto, aos oito anos de idade, pouco antes de ser encerrada no convento em
Chelas, D. Leonor já aparentava tudo que viria a ser. Seus convivas comentavam a seu
respeito, como apresenta Carvalho (2011, p. 37):
32 A questão da formação intelectual da futura marquesa de Alorna, ou melhor, a possibilidade que teve de
receber, ainda que não forma desejada por ela, um aprendizado e contato com o conhecimento, pode ter se dado
pelo fato de que a Ordem Religiosa responsável pelo mosteiro onde ela ficou em exílio, seguia os ensinamentos
de santo Agostinho e, portanto, valorizava o desenvolvimento intelectual como um caminho para o entendimento
do cristianismo. A Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho seguia os princípios essenciais da Regra
de Santo Agostinho: conciliação entre a fé e a razão; conhecimento natural de Deus; e, negação do mal. O ramo
feminino dessa ordem religiosa é conduzido pelas Canonisas ou Cónegas de Santo Agostinho. Foi fundada na
Lorena, França em 1597 pela beata Alice Lederc sob a orientação do padre Pierre Fourrier, com a finalidade de
dedicar-se à educação das jovens. (Convento da Graça/Convento Nossa Senhora da Graça/Igreja Paroquial da
Graça/Igreja de Santo André e Santa Marinha; SIPA. Acesso em 25/05/2017).
51
Não era de Luís, o primogênito Autouguia de nove anos envergonhados e
tímidos, que Feliciana se queixava mas de Leonor, a mais velha das
raparigas que, aos oito anos, mostrava já a pose de uma rainha, a curiosidade
de um cientista e o temperamento de um oficial do exército.
Aos 12 anos, já na clausura de Chelas, D. Leonor começou a notar o quanto a
educação destinada às mulheres era pequena, pois praticamente se reduzia às prendas
domésticas. Então, vislumbrou-se outra forma de educação que deveria ir além das prendas
domésticas pois acreditava que, sem conhecimento, aquelas meninas não passariam de
mulheres ignorantes e bestiais, já que no convento ela identificava e via as religiosas como
mulheres vazias e ‘parvas’, e, na carta a seu pai, transcrita por Cidade (1941, p. 5), isso fica
evidente:
[...] com a gente a quem o exercício do juízo parece uma singularidade, uma
afectação ridícula, uma pedantaria e um empenho abominável de distinguir-
se, é preciso ceder á parvoíce e sofrer o julgo bestial de meia dúzia de
animais que se opõem a isto e que estimariam achar por onde nos pegassem
para na mente dos srs.
Entre os 16 e os 18 anos D. Leonor começou a participar dos outeiros, encontros
realizados às portas do convento nos quais as religiosas e demais reclusas recebiam, nas
grades das janelas, pessoas, entre elas, homens da sociedade, poetas e intelectuais para
declamarem poemas, travar algumas discussões, configurando-se como alguns salões da
sociedade em que encontros semelhantes aconteciam para celebrar a intelectualidade,
apresentar os poetas, músicos e artistas para a sociedade. Nesses encontros, as portas do
convento constituíam-se uma rede de contatos e, assim, D. Leonor foi construindo a sua seleta
lista de contatos, que contava com intelectuais, filósofos, poetas, professores e pessoas da
sociedade lisboeta como condes, por exemplo.
Nos outeiros ocorriam os batizados dos novos poetas e poetizas e, em um desses, D.
Leonor foi batizada de Alcipe, nome pelo qual passou a assinar suas obras poéticas às quais
deu vasão desde cedo na clausura. Esses encontros, como não aconteciam com tanta
frequência, eram esperados com muita ânsia, com guloseimas preparadas pelas religiosas,
eram um ‘evento’ e traziam um pouco de ‘civilidade’ às paredes do convento.
As cartas que D. Leonor, ou Alcipe, redigiu não só ao seu pai, no tempo da clausura,
mas também à sua considerável amiga Tirce, ao seu irmão, D. Pedro de Almeida, além das
que endereçou a poetas, à corte portuguesa e, também, às suas filhas, já longe da clausura, são
52
expressões claras de todos os momentos de sua vida, revelam não apenas uma trajetória de
vida, mas a construção de uma identidade feminina com um perfil de mulher diferenciado do
esperado para as exigências e necessidades daquela sociedade. Os termos e expressões
utilizadas, as críticas sutis a uma realidade política e até o engrandecimento dos autores que
ali mostravam que Alcipe ia se reconhecendo como alguém com grande intelectualidade,
capaz de fazer uma leitura da realidade em que estava inserida, de questionar a organização da
sociedade e, até, de idealizar modificações nesta. Consciente de sua situação no convento e do
que isso significava, bem como o motivo pelo qual se encontrava ali, não se deixava abater
pelas rígidas orientações da vida no claustro.
Seu comportamento diante de determinadas ocasiões demonstrava essa consciência,
bem como a mágoa de estar lá injustamente. É possível observar isso na passagem em que foi
repreendida pelo arcebispo certa vez, quando foi pega ajudando seu irmão a entrar no
convento para visitar sua mãe que se encontrava doente e por despertar ciúme e,
provavelmente inveja, nas religiosas do convento por poder vestir-se de modo diferenciado e
usar cabelos compridos. No livro Obras Poéticas, na passagem em que relata sua biografia,
destaca-se esse episódio, revelando a personalidade marcante da futura marquesa de Alorna
Passados poucos dias, voltou o Arcebispo a ver se era obedecido. Chamada
Alcippe á Grade, apareceu no seu costume antigo.
– Não lhe disse eu que vestisse de cor honesta? (lhe disse o Arcebispo). Não
lhe disse eu que corasse os seus cabelos?
– Como não sou religiosa (lhe respondeu Alcippe), só de meu pae ou da
minha mãe posso receber uma tal ordem.
– Deixe estar, que eu direi ao Senhor Marquez a sua desobediência. – A
meu pae? - Não falle em seu pae: so senhor Marquez de Pombal é que eu lhe
fallo. Ao que Alcippe retorquio como todo valor que dá a consciência da
própria dignidade, repetindo-lhe dois versos, que então muito a propósito lhe
ocorreram, de uma tragédia de Corneille.
Le coeur d’Eléonore est trop noble et trop frane
Pour crainde ou respecter le bourreau de son sang33. (MARQUESA DE
ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 19)
Além das cartas, Alcipe escreveu poemas. Tornou-se uma grande poetisa, reconhecida
e elogiada pela sociedade intelectual, como é possível observar na menção que Lopes (2005)
faz das palavras de Alexandre Herculano, diretor da revista O Panorama – periódico de
grande projeção nacional e de grande tiragem para época, que sobre ela disse:
33 “O coração de Eleonor é muito nobre e grande, para ter medo ou respeito pelo carrasco de seu sangue”.
53
Àquela mulher extraordinária a quem só faltou outra pátria, que não fosse
esta pobre terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra
vans pretensões de superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devi
incitamentos e proteção litteraria, quando ainda no verdor dos anos dava
seus primeiros passos na estrada das letras. (LOPES, 2005, p. 148).
Por tal reconhecimento é que encontramos muitos estudos acerca do gênero poético
tomando seus escritos como fonte de investigação e análise na área da literatura. Todavia suas
cartas também guardam preciosas fontes de estudos para além dos registros de seus poemas
em muitas delas. As cartas de D. Leonor revelam também os princípios educativos basilares
da formação das mulheres. As cartas destinadas a uma filha que se casaria evidenciam isso e,
por isso, foram selecionadas como fonte para nossa investigação quanto ao processo
formativo feminino das portuguesas na segunda metade do século XVIII e nas primeiras
décadas do século XIX. Também, é em função desses registros e do que acreditamos sobre o
que simbolizam é que discutimos a mudança da autoimagem feminina no referido período e,
consequentemente, a representação da sociedade das mulheres desse tempo.
Segundo o livro Obras Poéticas (1844) – biografia da marquesa de Alorna, é possível
dividir a trajetória de D. Leonor em três tempos: 1ª) a menina e donzela na vida de seu pai,
Marquês de Alorna, também tempo do cativeiro; 2ª) a esposa e mãe, condessa de Oeynhausen,
viúva, e até a morte de seu irmão; e, por fim, 3ª) marquesa de Alorna, título adquirido com a
morte de seu irmão e sobrinhos - a mulher política. Embora neste trabalho não tenhamos a
intenção de tratar da marquesa seguindo essa classificação, entendemos ser interessante
apresentar tal organização porque foi a partir dela que passamos a conhecer a trajetória de D.
Leonor e foi com ela que pudemos conhecer o lado materno dessa senhora, associando suas
preocupações com as orientações que ela expressou nas cartas que endereçou para sua filha,
na segunda fase de sua vida, como sugere essa classificação. Essa classificação também
auxilia no desenvolvimento da biografia por nós realizada aqui, conforme indicamos no
próximo parágrafo.
Com relação ao primeiro tempo de D. Leonor, transcorrido totalmente dentro do
convento, é possível dizer que foi o tempo de construção da sua identidade, a partir da
formação que lá recebeu, das leituras que realizou, das conversas que travou nos outeiros, das
cartas que trocou com seu pai (LOPES, 1987). Entendemos que foi quando começou a se ver
como sujeito e não como sujeitada. Com a poesia, expressou o seu crescimento não apenas
intelectual, mas enquanto indivíduo dotado de capacidade, de vontades, tempo de reflexão e
aprendizado, inclusive com os contextos político e econômico que Portugal vivia naquele
período.
54
Nessa primeira fase da sua vida, por meio de seus escritos (cartas e poemas), é
possível dizer que seu comportamento e forma de pensar, expressos pelas críticas que fazia à
rotina do claustro, às proibições e ao tratamento destinado aos seus entes, evidenciavam um
novo perfil de mulher na sociedade setecentista. Talvez, inspirada por sua avó materna, a
Marquesa de Távora34, demonstrava determinação e fidelidade ao seu modo de pensar.
Inteligente e sutilmente ardilosa, encontrava meios de se expressar e de ser ouvida, como no
episódio do confronto com o arcebispo no convento em Chelas. Considerando e resguardando
o fato de que ela pertencia à aristocracia, situação essa que lhe conferia certos privilégios e
um contato com a cultura, D. Leonor despontava como um novo perfil de mulher, que se
valeu do conhecimento que obteve e dos contatos que estabeleceu para ocupar certo espaço na
sociedade.
Sua preocupação com a educação das mulheres revelava seu entendimento acerca da
importância da formação na constituição destas. E, embora ela não deixasse de lado o
entendimento quanto às atribuições femininas na sociedade de seu tempo (exemplificado isso
nas cartas que escreve à filha que se casaria), D. Leonor abriu espaço para uma formação que
envolvia outros fundamentos como economia, organização do tempo e seu uso, situações e
fatos que deveriam, ou não, gerar preocupação. Ela indicava leituras, como em uma carta que
enviou a uma de suas filhas em que disse:
É chegado o momento de pôr em prática o que sabe, o que lhe fiz aprender,
de pessoas mais hábeis que eu, e das quais os escritos fizeram a base de sua
instrução e do seu recreio. Recorde [...] todos aqueles modelos que lhe
inculquei, desde que pôde escutar-me, e sobretudo, os Livros Sagrados nos
apresentam, sem deixar-se iludir pelas máximas hoje recebidas, que trocam
pela glória de ser uma mulher forte, a miséria de passar por elegante,
distraída e bela. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941,
p. 75-76).
Todo o conhecimento que buscou durante o tempo de cativeiro lhe serviu de
ferramenta para a construção da mulher que se tornou. Ela ‘se via’ diferente, reconhecia-se
capaz, emancipada e se projetava em suas relações sociais, contribuindo para a edificação da
representação da mulher nos séculos XVIII e, em especial, no século XIX. Tanto que chegou
a ter discípulas no convento que vinham ter com ela aulas, situação tanto mencionada na obra
de Cidade (1930), quanto nas Obras Poéticas (1844).
34 Mulher determinada e fiel a seus princípios e ideologias. Em seu momento derradeiro, após ser sentenciada à
morte por guilhotina, a marquesa de Távora expressou sua fidelidade ao seu modo de pensar e ao seu estilo de
vida, solicitando, inclusive ao seu carrasco que não deixasse sua echarpe cair. (Carvalho, 2011).
55
Quanto à questão literária, fruto também de sua estadia no convento, resultou em
reconhecimento poético, sendo sempre lembrada pela sua poesia e, também, segundo os
estudiosos de literatura, como Ferraz (2003), por retratar um momento de transição na escrita
poética:
[...] a dramacidade do discurso poético servirão, na época de Alcipe, o
processo de resistência da poesia; permitem que seu compasso se contenha
no já conhecido (no clássico) e, no mesmo tempo, ajudam a rasgar-lhe novos
horizontes. (FERRAZ, 2003, p. 18).
A forma de escrever de Alcipe não só revelava as expressões literárias em transição,
como também demonstrava sua capacidade intelectual e os efeitos de seu processo
educacional, fato esse que acreditamos ser um agente influenciador na construção dessa
mulher e na mudança da autoimagem feminina. Isso porque, segundo Ferraz (2003, p. 18), a
poesia não é consequência “[...] mas o próprio acto de representação”.
A literatura de Alcipe expressa toda a sua forma de pensar, por isso acreditamos que
tenha adotado o idílio35 como forma literária para apresentar sua interpretação acerca da
política de seu tempo, bem como das questões sociais (CIDADE, 1930). Sua interpretação
sutil da realidade da sociedade portuguesa e, posteriormente, suas tentativas de intervenção
nessa sociedade demonstram que ela foi se construindo enquanto sujeito histórico a partir
daquilo que a incomodava na sociedade, ou seja, a política e as reformas sociais pelas quais
Portugal estava passando e que afetaram a classe social à qual pertencia e, mais que isso,
atingiram diretamente a sua família (CIDADE, 1930). Todos os seus movimentos, incluindo
sua formação, foram desenhados a partir de seus contextos particular e social, razão essa pela
qual nos deixamos ser guiados por essa senhora nesse mergulho em Portugal e no
estabelecimento dos princípios educativos femininos daquele tempo que, posteriormente,
embasariam toda a conduta das mulheres que contribuíram na construção de uma sociedade
moderna.
Quando a sociedade se modifica ou sofre mudanças, como o que ocorreu na sociedade
portuguesa desse período, saindo do antigo regime para o liberal, os comportamentos sociais
são redefinidos. Homens e mulheres assumem novas atribuições, mudando suas
representações. Todavia, antes que isso ocorresse de fato, algumas mulheres, como Alcipe,
anteciparam esse movimento, procurando entender o mundo no qual estavam inseridas.
35 Idílio <eidillion> significa ‘pequeno quadro’ ou, por derivação, pequena poesia. Entre os gregos antigos, dava-
se o nome de idílio a qualquer poema curto, de natureza descritiva, narrativa, dramática ou lírica.
(www.creativecommouns.org aceso em: 25/08/2017).
56
Acreditamos que o fator gerador desse processo foi a formação recebida por essas mulheres,
associada à possibilidade de supressão do papel, antes a elas definido, de esposa, mãe e/ou
filha. O cerceamento desse papel ou dessas atribuições sociais veio por meio do ingresso nos
conventos, fosse por vocação ou por motivos variados,
O convento passou a representar uma alternativa de vida para as mulheres desse
período. Ainda que fossem enviadas para a clausura por questões políticas, como foi o caso de
D. Leonor, ou, também, por outras situações como a inviabilidade de constituir matrimônio,
ou por qualquer outra razão, o convento possibilitava acesso ao conhecimento, à música e à
arte e o ‘livramento’ de um casamento, muitas vezes indesejado, das responsabilidades do
matrimônio, da criação dos filhos ou da obediência aos pais, atribuições essas que
obstaculizavam o acesso à intelectualidade, à possibilidade de dedicar-se a outras coisas. Em
alguns momentos da história e em alguns contextos específicos, como o da colonização do
Brasil, a procura pelos recolhimentos e conventos chegou a representar um obstáculo à
consolidação do processo de colonização, pois as mulheres começaram a se ausentar da
sociedade e, por conseguinte, deixaram de atuar como esposas e mães, dificultando a fixação
de famílias e o processo educativo das futuras gerações, uma vez que elas eram as
responsáveis pela educação das novas gerações.
Dessa forma, é possível dizer que os conventos contribuíram com a mudança da
autoimagem das mulheres, à medida que, ainda que de forma restritiva, proporcionaram a elas
um processo formativo em que foi lhes permitido reconhecer suas capacidades e
potencialidades, bem como alargar seus horizontes. Há, portanto, uma relação entre convento,
formação feminina e mudança na autoimagem das mulheres e, por conseguinte, uma
possibilidade de redefinição dos comportamentos na sociedade. Redefinição essa que algumas
mulheres, talvez as que estivessem mais preparadas intelectualmente, souberam aproveitar,
ganhando espaço na sociedade, porque antes iniciaram esse processo de modificação em sua
autoimagem ainda que nos conventos.
As ideias iluministas ofereceram grandes contribuições para essas modificações
sociais e na redefinição de papéis e/ou comportamentos, à medida que embasaram a busca
pelo progresso econômico e subsidiaram o movimento de consolidação da classe burguesa.
Nesse movimento, a educação e a procura pelo conhecimento tornaram-se ferramentas para o
alcance desses objetivos. Nesse sentido, a educação das mulheres também foi vista como uma
necessidade, já que eram elas as responsáveis pela formação das futuras gerações e, também,
pela administração da economia doméstica. A mulher foi sendo reconhecida como um sujeito
importante desse processo, ainda que de forma tímida. Talvez, seja possível afirmar que as
57
ideias iluministas, associadas às mudanças sociais em busca do progresso e da modernidade,
tenham contribuído para essa modificação na representação feminina, possibilitando às
mulheres a conquista de novos espaços sociais.
Em Portugal, essas modificações sociais ocorreram por meio das reformas pombalinas
que, imbuídas pelos mesmos ideais iluministas, buscaram colocar o reino e seus domínios em
uma posição mais destacada na Europa, possibilitando à corte portuguesa adquirir condições
econômicas que lhe possibilitassem conquistar elementos necessários para competir
internacionalmente. Segundo Nunes e Barbosa (2012, p. 04), a reforma portuguesa,
promovida por Pombal, estabeleceu um
[...] pano de fundo para conclamada modernidade, para a implementação
das reformas estabelecidas pela política pombalina, na medida em que se
pretendia fixar um parâmetro para igualar ou até superar o que acontecia na
Europa culta, devolvendo a Portugal o prestígio e o reconhecimento da
época dos descobrimentos.
Esse movimento para a modernização do país possibilitou também, em terras
lusitanas, a redefinição de comportamentos e, talvez em razão disso, criou-se a possibilidade
de um espaço um pouco mais significativo para as mulheres e de certo reconhecimento quanto
às suas capacidades intelectuais, fato esse que, indubitavelmente, possibilitou um
reposicionamento delas na sociedade. Notamos isso pelo espaço que as mulheres ligadas à
literatura, poesia e arte foram conquistando no cenário intelectual, inclusive com apresentação
e defesa dos intelectuais masculinos do período naquela sociedade. Foi o que aconteceu, por
exemplo, com D. Leonor que, das grades do convento de Chelas, nos outeiros de que
participava, desfilou sua poesia nos salões de Portugal e de Viena. Obviamente isso não se
estendeu a todas as mulheres daquela época, e sim àquelas que pertenciam a uma classe social
mais abastada. Todavia não podemos negar que, mesmo não incluindo todas as mulheres do
período nesse novo espaço da intelectualidade, as que alcançaram esse espaço simbolizaram
uma mudança na representação do feminino na sociedade.
Com relação à D. Leonor, em especial, sua condição de cativa no convento, como já
dito anteriormente, não só lhe possibilitou o acesso à educação, como também, provavelmente
por razões pessoais, vinculadas à prisão de seu pai e à perseguição de Pombal aos seus
familiares, promoveu a busca pelo entendimento das questões do seu tempo e da sua
sociedade, ainda que estivesse apartada dela. Daí ela ter perseguido leituras que lhe
proporcionassem isso, não sendo, portanto, por acaso que tenha lido Rousseau e Voltaire, uma
vez que esses pensadores faziam parte das discussões em torno do iluminismo, como aponta
58
Cidade (1941), e que, por sua vez, teria alicerçado Pombal em suas reformas, atingindo a
família de D. Leonor em particular.
D. Leonor se interessava por autores ingleses e lia um periódico denominado Review,
isso durante sua estada no convento ainda, em uma carta ao seu pai, escrita na época de seus
exames no convento, ela comenta sobre o periódico, aparentemente entusiasmada:
No Review inglês, do mês de dezembro, achei uma galante novidade que
quero da a V. Exª. Vem a nota de uma colecção de poemas feitos por uma
negra de vinte anos, que completa agora, cativa ainda. Entre eles uma
epístola ou outra cousa que valha ao Conde de Dortmouth, sendo secretário
de Estado da expedição na América, onde fala galantemente da sua própria
situação e do seu Páis [...] Aparece no mesmo Review uma lady inglesa
chamada Miss Aikin, também de bastante engenho e com algumas obras de
merecimento, mas com muitas esquipações condenáveis e pedantescas.
Imaginação fértil, juízo sólido, demasiadas alegorias e erudições déplacées.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 31-32).
Com relação às suas leituras, Alvim (1988) informa que D. Leonor lia também Diderot
e considerava os escritos destes magníficos, classificando suas obras Sistema da Natureza e
Sistema Social os dois mais célebres livros publicados naquele século. Além desse autor,
admirava, ainda, Newton e fazia incursões aos domínios de autores religiosos como Boussuet,
Bourdaloue e Fénelon, que a ajudavam a cultivar sua curiosidade pela leitura e pelo saber.
Todo esse aparato intelectual garantia a ela independência mental e argumentação para
defender suas convicções, coisa que fazia frequentemente enquanto estava no convento, no
qual foi surpreendida pelas restrições do ambiente, pelas regras impostas pela clausura e para
não se submeter a todas as ordens que lhes eram postas. Uma situação dessas ocorreu quando
não obteve a absolvição do confessor de sua mãe diante de sua teimosia.
Esse episódio, d. Leonor relata a seu pai e, em seus escritos, deixa evidentes tal
independência mental e seu poder intelectual, emitindo sua opinião sobre a forma de pensar
do confessor, deixando parecer, de forma sutil, sua crítica quanto ao pensamento dos homens
do período. Sobre o confessor, em seu relato ao pai, Alcipe diz: “[...] imbuído de ideias
vulgares a respeito dos filósofos, entende ser a poesia ciência de pagãos, a matemática ciência
dos loucos, a física meio de estabelecer nova religião ou total transformação do cristianismo”,
e, como relato final ao seu pai sobre essa passagem, acrescenta ainda: “[...] em matéria
científica vale mais o dito sábio herege do que dum santo ignorante”. (BOLAMA, 1916, p.
25).
59
Reflexões semelhantes são apresentadas por ela quanto ao governo de seu país,
quando se refere aos soberanos que atuam em consonância ou em dissonância aos
movimentos de Pombal. Sobre isso, D. Leonor argumenta:
A razão porque os príncipes se entregam às desordens das suas paixões é
porque mil preocupações (entenda-se preconceitos) e as adorações vilíssimas
dos homens os tem persuadido de que só a divindade pode julgá-los
competentemente. Esta ilusão é a origem fatal da infelicidade pública e de
que o destino da sociedade penda impunemente do capricho e da
extravagância de um homem só, desfavorecido de todas as noções da
verdadeira moral. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE,1941
p. XVIII – XIX).
Com esses episódios, relatados por ela própria, é possível notarmos a capacidade
crítica da marquesa de Alorna bem como seu posicionamento político e a sua forma de
visualizar a sociedade de sua época. Também evidenciam a força do contexto histórico do
momento sobre uma classe social que se via deslocada do centro de poder, provocando um
reordenamento social, típico das transformações sociais. Mais uma vez, permitir que d.
Leonor nos conduza na viagem a seu tempo histórico e à sua sociedade possibilita a
compreensão do período e, consequentemente, dos acontecimentos que provocariam não só as
mudanças na sociedade, mas também na forma de pensar e agir dos homens daquele tempo.
Como é possível vermos por meio das cartas endereçadas ao seu pai, a primeira fase
da vida de D. Leonor foi forjada na clausura, que lhe rendeu a privação da liberdade, mas
também os elementos necessários para que se constituir não só na escritora Alcipe, mas na
mulher que alimentou o desejo de ver sua família liberta, seu reino livre do marquês de
Pombal, e a honra do nome dos Távora e de seu pai restituída na sociedade portuguesa.
Durante os 18 anos de cativeiro, D. Leonor construiu um conhecimento significativo, uma
cultura rica, obteve respeito pelos seus escritos, admiradores na alta sociedade lisboeta e toda
a condição essencial para seus próximos passos de volta à sociedade portuguesa.
Na segunda etapa de sua vida, D. Leonor, por volta dos seus 27 anos, encontrou a
liberdade tão desejada. Com a morte de D. José I e, a partir dessa, a retirada de Pombal do
cenário político, ela e sua família, como também outros membros da nobreza, atingidos pelas
perseguições de Pombal, puderam retornar ao convívio social, retomando as rédeas de suas
vidas. A liberdade veio por meio das mãos de D. Maria I que assumiu o trono com a morte do
rei.
Uma vez liberta e de volta ao convívio social, muitos pretendentes à sua mão
surgiram, mas, de todos os que estavam a seu dispor, D. Leonor escolheu o conde
60
d’Oeynhausen36, a contragosto de seu pai, pelo fato de o conde ser estrangeiro (alemão),
podendo, portanto, levar sua filha para longe e não professar da mesma fé que a de sua
família. Esse fato foi resolvido com a conversão do conde ao catolicismo, sendo, inclusive,
batizado e recebendo como padrinhos a rainha D. Maria I e El Rei D. Pedro, dos quais
nomearam para comandar o 6º Regimento de Infantaria, então 1º Regimento do Porto,
partindo para essa cidade após o casamento e nomeação (CIDADE, 1930).
Um ano após a esses acontecimentos, em 1780, nasceu sua primeira filha, a futura
marquesa de Fronteira que, por ocasião da mudança de D. Leonor e do marido para Viena,
tempos depois, ficou com sua avó materna. A mudança para Viena, na Áustria, se deu pelas
articulações políticas que D. Leonor, então a Condessa de Oeynhausen, estabeleceu junto às
majestades portuguesas quando esteve em visita aos seus familiares em Lisboa. Naquele
momento, D. Leonor permaneceu por dois meses nessa cidade travando tais articulações que,
de acordo com a obra Obras Poéticas, teria sido em função do desejo de aumentar a fortuna e
a boa sorte de seu marido. Tais articulações renderam a este a nomeação de ministro enviado
a Viena da Áustria.
O desejo de ver aumentada a fortuna e boa sorte de seu marido fez com que
a Condessa viesse a Lisboa, e dahi fosse a Salvaterra, onde estavam Suas
Magestades; e em dois mezes ali fez a sua corte, obteve para seu marido a
nomeação de Ministro Enviado a Vienna d’Áutria, para onde foi necessário
que partissem, deixando o Conde o comando do Regimento, e ella deixando
a sua filha na companhia da Marqueza mãe e avó. (MARQUESA DE
ALORNA, 1844, p. 22)
Ao partir para Viena, passou algum tempo em Madrid, desenvolvendo boas relações
com o rei Carlos III. Também passou pela França, onde também estabeleceu bom
relacionamento com Luiz XVI e sua mãe, e, valendo-se do bom momento, também travou
importantes relações com Jacques e Suzanne Necker37, que, naquele tempo, possuíam crédito
e influência junto aos eruditos e políticos da época, podendo, a partir dessas relações,
participar das reuniões sociais nas quais era possível encontrar tais pessoas (CIDADE, 1930).
36 Karl von Oeynhausen – Gravenburg (1739 -1793), em português Carlos Augusto, Conde de Oeynhausen-
Groewenbourg na Áustria e do Sacro Império Romano, era filho de Friedrich Ulric, Conde de Oeynhausen-
Groewenbourg no Sacro Império Romano e de Friederike Wihelmine de Lorena, neta do Cavaleiro de Lorena
amante de Filipe d’Orleães. (CIDADE, 1941). 37 Suzanne Necker, também conhecida como Madame Necker, era uma escritora suíça, casada com o ministro
das Finanças da França, Jacques Necker. Madame Necker, em sua casa, mantinha um salão literário onde
realizava reuniões ou assembleias , recebendo grandes intelectuais do período como também poetas. Seu salão
era conhecido e respeitado pela sociedade intelectual francesa.
61
Em uma dessas reuniões realizou, a convite, uma narração dos acontecimentos da
época. Pela participação, recebeu aplausos e reconhecimento quanto ao seu talento para tais
exposições públicas.
D. Leonor permaneceu em Viena por certo tempo, onde travou especiais relações de
amizade com a imperatriz Maria Thereza, de quem obteve reconhecimento pessoal,
recebendo, inclusive, a insígnia e o diploma da Ordem da Cruz Estrellada38 daquele império,
que passou a usar quando obteve autorização de seus soberanos (CIDADE, 1930).
D. Leonor, em sua caminhada, ao lado de seu marido e às voltas com a nobreza de seu
tempo, travou relações e, por meio delas, articulou-se a fim de alcançar sucesso e boas
posições a seu marido. Entre sua rede de contatos, registramos,
Além das ilustres personagens que ficam nomeadas, muitas foram as pessoas
mais notáveis daquela Corte que em toda a ocasião mostraram a sua
amizade, estima e sympatia pela Condessa. Entre estas se distinguiram o
Principe de Kaunitz o Landgrave de Furstemberg, Mme. De Valsein, Mme.
De Thun, e outras Senhoras, em que a Condessa falava muitas vezes, e que
eram da sua mais intima convivência. Aqui achou a Condessa ainda o
Abbade Pedro Metastasio, Poeta Cesares da Corte de Carlos 6º. e de Maria
Thereza, com o qual contrahio as relações de amizade, e as da literatura
italiana, que muito lhe aproveitaram nas suas composições as harmoniosas.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p.23).
Possivelmente, as leituras selecionadas a dedo no tempo da clausura tenham
‘habilitado’ a condessa a perceber a importância das relações sociais e de uma boa rede de
contatos no pleito de seus objetivos que, na terceira fase de sua vida, revelaram-se de ordem
política e ideológica no que dizia respeito ao seu país na defesa contra a ameaça das invasões
de sua pátria, para ela, de valor eterno, buscando defender também seu país contra as
ideologias que estariam mudando o mundo.
Essa causa era a defesa, contra a ameaça das invasões, da Pátria – valor
eterno; mas era também a defesa, contra as ideologias que estavam
transformando o Mundo, de valores perecíveis, como o da hierarquia
dominante, a cujos os direitos tradicionais estavam ligados os interesses da
aristocracia. (CIDADE, 1941, p. XLI).
Ainda em Viena, D. Leonor teve três filhas. A primeira faleceu ainda no primeiro ano
de vida; a segunda era a senhora. D. Frederica d’Oeynhausen, e a terceira, a senhora D.
38 Ordem da Cruz Estrelada, de acordo com Tagore (1884), foi uma Ordem de Cavalaria criada pela princesa de
Mântua, Leonor de Gonzaga-Nevers, em 1668. A ordem era composta exclusivamente por mulheres da nobreza
que, enquanto membros, tinham como missão dedicarem-se ao serviço da oração, da Santa Cruz, levando uma
vida virtuosa, atuando no exercício da religião e da caridade.
62
Juliana, que foi condessa da Eja e depois condessa de Stroganoff, na corte da Rússia. Durante
o tempo em que viveu em Viena, a condessa de Oeynhausen manteve correspondência com
seus familiares, apenas seu pai não lhe respondia às cartas a ele enviadas. Porém a filha
amorosa não se deixou vencer pela resistência do pai e lhe enviou um painel que ela própria
havia pintado, expressando sua saudade e afeto. A partir de então, o marquês de Alorna
passou a lhe escrever com regularidade.
A condessa pintou outros quadros nesse período, demonstrando sua sensibilidade e
apego à arte. Assim, viveu de três a quatro anos. Depois, por questões de saúde e pelos
negócios de seu marido em Lisboa que exigiam sua presença, D. Leonor o acompanhou mas
não seguiu para seu destino diretamente, passou por alguns lugares e precisou se deter em
Avinhão para ter seu filho, Carlos, o qual teve a rainha D. Maria I como madrinha de batismo.
Infelizmente, Carlos faleceu ainda pequeno logo após a chegada de sua mãe a Lisboa
(CIDADE, 1930).
De Avinhão, continuando sua viagem39, passou por Marselha, onde nasceu sua filha, a
senhora D. Henriqueta, que posteriormente se tornou dama camarista de D. Maria II.
Passando pela Espanha, via estrada da Catalunha, nas proximidades de Col de Balaguer, foi
assaltada por ladrões e se salvou graças a sua rapidez de raciocínio e perspicácia40, que
também lhe valeram para escapar de uma enchente que encontrou ao chegar a Tortosa.
Durante toda a sua viagem, D. Leonor foi chamada a usar de sua determinação, coragem e
ousadia para chegar ao seu destino. Citamos essa passagem da sua vida, apenas para ilustrar a
determinação e coragem da mulher que ela se tornara e como forma de evidenciar o quão
difícil era, naqueles tempos, uma mulher realizar uma viagem sem a presença constante de um
homem, demonstrando, dessa forma, o cotidiano do século XVIII (CIDADE, 1930).
Por fim, ainda de acordo com Cidade (1930), D. Leonor passou em Valência e chegou
a Portugal, onde foi recebida por seus familiares e pela rainha D. Maria I. Amparada pela
corte portuguesa, obteve sucesso nos negócios de seu marido que se juntou a ela
posteriormente, trazendo consigo sua filha que havia nascido em Marselha. Em Portugal D.
Leonor teve mais dois filhos D. Luiza e João Ulrico. De volta às terras lusitanas, seu marido
continuou a servir no Estado militar, atuando ainda como tenente general e inspetor geral da
Infantaria. Por fim, foi nomeado para o governo de Algarve, não chegando a exercer a função
39 Há indícios de que D. Leonor permaneceu em viagem por dois anos, encontrando-se com seu marido nesse
período já que esse procurava ir ao seu encontro, como sugere a obra Obras Poéticas (1844). 40 Não há um registro claro do que exatamente teria acontecido com a marquesa e nem como ela teria se salvado
das duas situações difíceis. Há apenas a menção de que ela passou por essas duas circunstâncias e que, pela sua
perspicácia, teria conseguido contornar a situação, mantendo sua integridade física.
63
por falecer antes. Em 3 de março de 1793 o conde morreu, deixando a condessa com seis
filhos, sem riqueza, mas, como ela própria afirma em sua obra Obras Poéticas, com bons
exemplos de vida a serem seguidos.
Essa perda não foi a primeira, pois, na ocasião de sua viuvez, a condessa já havia
perdido sua irmã, a condessa da Ribeira, e sua mãe, a marquesa de Alorna. Com a morte de
seu marido, D. Leonor dedicou-se aos seus filhos, à poesia e à pintura. Também se dedicou a
trabalhar em traduções, como a do Poema das Estações, de Thompson. Passou, nesse período,
a ocupar-se, então, da educação dos filhos e do socorro aos pobres de sua terra. Também
dedicou tempo e energia à educação das moças de Almerim, mantendo sob seus recursos uma
mestra que ensinava a essas moças a leitura, a escrita e demais conhecimentos necessários às
mulheres de sua época, como ela própria afirma em seus escritos (MARQUESA DE
ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 29-30): “Entretinha á sua custa uma boa mestra,
para as moças d’Almerim aprendessem todas a ler, a coser, e os mais lavores próprios do seu
sexo”.
Depois, como conta Cidade (1930), voltou a Lisboa e, em sua casa, realizava reuniões,
recebendo os sábios e eruditos. Essas reuniões tratavam-se de várias temáticas envolvendo a
cultura e a riqueza da linguagem de Portugal e também da Alemanha. À mesma época estava
ocorrendo a Revolução Francesa e muitos refugiados imigravam para Portugal. A condessa
não ficou alheia a isso e, por vezes, procurou ajudar essas pessoas, trazendo-as, inclusive, para
dentro de sua casa até que conseguissem um lugar para ficar, como podemos verificar na obra
da própria marquesa – Obras Poéticas-, de 1844. A revolução preocupava D. Leonor, pois
carregava princípios e ideologias que vinham de encontro com seus ideais de organização
social, com os valores da monarquia e com os interesses da nobreza. Foi nesse período
também que duas de suas filhas se casaram41, D. Leonor, com o Marquês da Fronteira, e D.
Juliana, com o conde de Ega.
41 Uma delas se casa em 1795, D. Juliana com o conde da Ega. E D. Leonor com o marquês de Fronteira em
1799. (CIDADE, 1941). Mesmo sendo um momento politicamente delicado para a Europa conservadora, e
mesmo D. Leonor estando atenta aos movimentos políticos do período, não deixou de se preocupar com a
formação de suas filhas que estavam por se casar e escreve um conjunto de seis cartas endereçadas a elas
abordando os princípios educativos, presentes no processo formativo das mulheres daquela sociedade. Essas
cartas expressam não apenas a preocupação e zelo de uma mãe para com suas filhas, mas também as
expectativas de aprendizagem depositadas sobre as mulheres a fim de que estivessem preparadas para
responderem às necessidades e exigências sociais de seu tempo. Os princípios educativos, presentes nessas
correspondências, vinculam-se ao contexto da época, evidenciam o papel das mulheres na organização social,
mas, para além desses aspectos, que são relativamente óbvios, há algo que chama mais a atenção, pois, diluída
nas orientações da mãe quanto às várias atribuições femininas em um casamento, está presente uma visão de
mulher acerca das mulheres, ou seja, são mulheres preocupando-se com a educação delas próprias, mulheres
discorrendo sobre mulheres e não mais homens tratando das mulheres, de sua conduta etc.
64
A casa da condessa, segundo Cidade (1930), continuou a ser espaço de reuniões e
encontros com a erudição, com a arte e com as poesias. Uma das pessoas ilustres dessas
reuniões era o pintor italiano Foschini que, inclusive, ensinava às filhas de D. Leonor a sua
arte. Esses encontros eram famosos em toda a Lisboa e chegaram aos ouvidos do príncipe
João que, tomando ciência das qualidades artísticas e culturais de D. Leonor, convidou-a para
ajudar na construção de um espaço dedicado às Belas Artes, o Palácio da Ajuda. Nesse
palácio floresceram, segundo a própria D. Leonor, bons professores.
Apesar de toda a disposição de D. Leonor para a construção desse espaço, ela não
obteve muito sucesso, não podendo contribuir como o esperado. Mesmo assim, o príncipe
regente reconheceu seu esforço e a nomeou dama de Honor42 da princesa D. Carlota Joaquina,
sua esposa. Nesse período, seu pai faleceu, trazendo novamente grande tristeza ao coração da
condessa. Em meio a esses acontecimentos, ela pressentiu a invasão da França a Portugal43 e
encaminhou uma carta aos seus soberanos, em uma tentativa de preveni-los do que poderia
ocorrer. Acerca disso, a marquesa de Alorna, (1844 apud CIDADE, 1941, p. XXV), escreve:
Estávamos então em vésperas das invasões francesas, mas desde o começo
do século que elas nos ameaçavam – e desde o começo do século que D.
Leonor, pormenorizadamente informada do que ia pelo Mundo, se agitava
em diligências múltiplas para evitar à Pátria tal catástrofe. Esta, ameaçava o
Trono e o altar, a hierarquia de valores a que tinha ligados os interesses
materiais e espirituais da sua estirpe. Por isso, procura a colaboração do
Patriarca e se esforça, em febril afã a que a própria inutilidade exaspera, por
chamar ao seu partido os Ministros e os Príncipes Regentes. Entende D.
Leonor que de nada servem contemporizações como governo pérfido de
Buonaparte. O que importa é provocar-lhe a ruína no próprio seio da França,
uma vez que as potencias estrangeiras combatiam em vão havia 10 anos.
Ficam evidentes, nessa passagem, todo o seu amor pela sua pátria e, também, toda a
sua percepção política. Esse episódio revela seu posicionamento político e ideológico,
demonstrando que viria ainda mais uma face dessa extraordinária mulher, a política. Essa face
é o que conduziria sua vida nos próximos anos.
42 Dama de Honor é o mesmo que dama de companhia. É uma assistente pessoal em uma corte real ou feudal,
auxiliando uma rainha, uma princesa ou de um alto nobre. Historicamente, na Europa, uma dama de companhia
muitas vezes era uma nobre de uma família altamente notável na sociedade, entretanto, era de categoria inferior à
mulher na qual fazia companhia. Embora ela poderia ou não ter recebido ressarcimento pelo serviço prestado, foi
considerada mais uma companheira do que um servo. (CHISHOLM, 1911, p. 664). 43 Provavelmente isso ocorre por volta de 1805 a 1806, se consideradas as datas das cartas que D. Leonor envia
aos seus soberanos, pressentindo a invasão francesa. A carta como um primeiro presságio é datada, segundo
Cidade (1941), de maio de 1806.
65
Diante desse contexto, D, Leonor decidiu se ausentar do país uma vez que era
totalmente contrária aos princípios apregoados pela Revolução Francesa44. Então, solicitou
autorização aos seus soberanos e partiu levando consigo seu filho, passaportes e cartas de
recomendação, deixou com seu irmão suas filhas, pedindo a ele que delas se responsabilizasse
até seu retorno (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941)
Seu destino era Madrid, mas, logo que chegou, soube que os franceses tinham entrado
na Alemanha, então achou por bem suspender sua jornada e dirigiu-se para a Inglaterra. Ao
saber que Portugal havia sido invadido pelos franceses e que a família real havia seguido para
o Brasil, permaneceu na Inglaterra. Residiu naquele país por dez anos, não sendo anos muito
agradáveis. Por precaução, enviou seu filho para o Brasil e permaneceu sozinha. Durante esse
período passou por mais desgostos, perdeu mais uma de suas filhas e soube que outra estava
sendo perseguida em Portugal.
Regressou em 1809 a Portugal, mas teve que voltar à Inglaterra, por convocação
daquele país sob a justificativa de ter partido sem passaporte45. Acabou permanecendo nas
proximidades de Gales até 1812, voltando para Londres, onde ficou por mais dois anos, até
que a França fosse restaurada e que Luiz XVIII fosse restituído ao poder. Por esse tempo,
renovou suas relações com madame de Stell46, sendo essa relação interessante para as duas
damas que podiam realizar conversações acerca da política de seu tempo, embora não
compartilhassem dos mesmos ideais políticos, sendo Stell republicana e D. Leonor,
monarquista.
A essa época, segundo Obras Poéticas (1844), se encerrou a segunda fase da trajetória
de D. Leonor. Essa etapa de sua vida foi lhe muito importante, pois, como observamos em
seus escritos (1844), foi um período de grandes aprendizados e experiências que a
fortaleceram enquanto cristã e também seus ideais. Embora tenha sofrido perdas dolorosas de
seus entes queridos, viveu seu casamento o qual se constituiu segundo sua própria escolha,
formou sua família e estabeleceu contatos importantes que lhe renderam negócios ao seu
marido e destaque na sociedade aristocrática. Apesar de sua base intelectual ter sido formada
44 A Revolução Francesa tinha como lema a liberdade, igualdade e fraternidade. Lema que derrubava os ideais
da tradição e da hierarquia de monarcas, aristocratas e da Igreja Católica. (HOBSBAWM, 1996).
45 Eram tempos difíceis para Portugal, os franceses haviam voltando a invadir o país. No início daquele ano, a
França representada pelo militar Junot extinguiu o Conselho de Regência e substituiu-o por um conselho militar
a que o próprio Junot presidia. Uma proclamação anunciou a destituição da Casa Real de Bragança. O nome do
Príncipe Regente foi substituído pelo nome do imperador e as armas portuguesas pelas armas de França.
(ARAÚJO, 1993). 46 Madame Stell, filha do casal Jacques e Suzanne Necker. Na ocasião em que travou amizade com seus pais,
pôde conhecê-la e desfrutar de seu convívio quando esteve na França. Depois, em função de seu retorno a
Portugal, ficaram um período sem contato e, nessa nova ocasião, puderam renovar suas relações de amizade.
66
na primeira fase de sua vida, ainda no convento em Chelas, e de lá ter guardado a memória
que marcou sua infância, movendo-a rumo ao conhecimento e construindo-lhe a determinação
e a coragem necessária para continuar sua jornada, foi na segunda fase de sua vida que sua
consciência política se consolidou e, a partir das experiências que vivenciou nessa etapa,
construiu seus ideais os quais defendeu com toda a energia possível, estabelecendo as bases
para sua vida política que viria na terceira etapa de sua vida.
Conforme aponta Obras Poéticas (1844), a terceira fase da vida de D. Leonor iniciou-
se com a morte de seu irmão, D. Pedro de Almeida Portugal, 3º marquês de Alorna, em 1813.
Essa fase começou marcada pela sua busca em restaurar o nome de seu irmão47,
restabelecendo a memória deste e retomando os bens da família que haviam sido confiscados.
D. Leonor lutou por dez anos para conseguir restabelecer a memória de seu irmão e o fez com
energia e dedicação, a mesma que a acompanhou por toda a sua existência.
Nunca deixou de dedicar-se também aos seus escritos, poemas, poesias e traduções.
Construiu uma bela obra literária que foi reconhecida por seus contemporâneos e que lhe deu
projeção social. Seus escritos são muito estudados pelos investigadores da literatura, todavia é
preciso ressaltar que as qualidades dessa mulher ultrapassam, e muito, sua obra literária. Sua
trajetória mistura-se à de seu país, às lutas empreendidas pela classe social a que pertencia e,
obviamente, à história das mulheres que buscaram vencer as restrições de seu sexo, impostas
pelas determinações e exigências sociais. Desempenhou suas atribuições sociais com
maestria, ocupando os papéis de mãe, esposa, filha dedicada e mulher. Enquanto mãe, foi
cuidadosa, prezando pela educação de seus filhos e usando para tanto todos os recursos
disponíveis para um processo formativo adequado. Às suas filhas, rendeu atenção especial,
preparando-as para a vida em sociedade, para os papéis que a sociedade esperava que elas
desempenhassem. Suas cartas demonstram claramente essa preocupação.
Enquanto esposa, segundo relato de Cidade (1930), dedicou-se ao seu casamento, ao
seu marido e ajudou-o em tudo o que lhe foi possível, conquistando cargos e nomeações para
ele, valendo-se de seus contatos e apreço pela monarquia de seu país. No papel de filha, desde
o tempo de cativeiro até enquanto teve seus pais neste mundo, procurou a cuidar deles e amá-
los, não desistindo de seu pai nem quando esse não aceitou bem seu casamento com o conde
de Oeynhausen.
47 D. Pedro de Almeida e Portugal, 3º marquês de Alorna, foi sentenciado pelo governo português como traidor
de sua pátria, por não ter regressado à Portugal na ocasião das invasões francesas, deixando de defender seu país.
Seus bens foram confiscados e sofreu condenação por traição em 1810. (DICIONÁRIO HISTÓRICO,
COROGRÁFICO, HERALDICO, BIBLIOGRÁFICO, NUMISMÁTICO E ARTÍSTICO, 2012, p. 326-328).
67
Mas foi enquanto mulher e escritora que se destacou na sociedade lisboeta. Pelas suas
palavras, teve seu conhecimento e potencial reconhecidos. Usou da pena e do tinteiro para
expressar seu código de ideias, seu posicionamento político e sua crença. Venceu batalhas
contra seu sexo, usando seus escritos, sua determinação e ousadia. Enfrentou o convento, o
arcebispo, as restrições sociais, escolheu seu marido, ajudou-o, realizou articulações políticas
e, com base em seus ideais, defendeu seu país.
Não se deixando vencer pela tristeza da perda, após a morte de seu irmão, tomou posse
de sua casa e foi viver por um tempo na Quinta de Almerim e, também, em Almada, onde
socorria habitantes pobres de Cassilhas. Em agosto de 1822, passou por mais uma perda: seu
filho João Ulrico faleceu, não podendo fazer uso do título que herdara de seu tio, o 3º marquês
de Alorna. Essa perda abateu significativamente D. Leonor. Mesmo assim, seguiu sua jornada
e continuou a servir seus soberanos. Recebeu o título de 4ª marquesa de Alorna.
Viveu até quase seus 89 anos, nunca deixando sua poesia de lado, apesar da idade
avançada. Pouco antes de falecer, escreveu um último verso com a mesma delicadeza e
sutileza como aos 18 anos de idade.
Em meu peito, onde a simples natureza
Erige o doce Templo de Ternura
Lança todos os danos da Tristeza
Qual fúria enorme, a Seva desventura (MARQUESA DE ALORNA, 1844
apud CIDADE, 1941, p. 210)
Em 11 de outubro de 1839 faleceu. Em todo o tempo de sua existência deu provas
constantes de determinação, coragem, inteligência e perspicácia. Foi reconhecida pelos seus
soberanos e convivas como alguém de boa índole, boa cristã e boa portuguesa, que sempre
amou a Deus e sua pátria, bem como a sua família.
Embora tenha sido possível percebermos as várias faces de D. Leonor e verificar o
quão forte foi essa mulher lutando por suas ideias e por tudo que acreditava, nossa atenção
fixa-se em um aspecto ou face dessa senhora: dirigimos um olhar mais atento a D. Leonor
mãe/mulher, preocupada com a educação das filhas e com a das mulheres de seu tempo. Isso
porque, tomando conhecimento de suas inquietações em relação à formação feminina, nos foi
possível cogitar que, antes da passagem da marquesa de Alorna pela sociedade portuguesa dos
séculos XVIII e XIX, as mulheres talvez não tivessem um “projeto de vida próprio”, por
atrelarem suas vidas a outras pessoas e atribuições sociais. Com a marquesa, ou
acompanhando sua trajetória e os esforços empreendidos para viver seus ideais, vemos que
68
era possível uma mulher ter um projeto de vida próprio, mesmo com as restrições impostas ao
seu sexo pela definição social de papéis.
É possível afirmar que “projetos de vida” como o da marquesa revelam uma “margem
de emancipação” reservada ao “recôndito feminino”, como comenta Dias (2007) em seu
artigo divulgado em um simpósio da Associação Nacional de História - ANPUH48, ao tratar
da condição de vida das mulheres no século XIX. Isso significa dizer que
[...] havia um refreamento no campo de possibilidades de suas atuações.
Porém, isso não implicaria necessariamente em dizer que as mulheres
estavam circunscritas à esfera doméstica apenas, mas é justamente nesta
“resistência” que ampliam e realizam seus projetos. (DIAS, 2007, p. 05).
A partir dessas considerações acerca da possibilidade de ampliar e realizar projetos de
vida femininos e, também, a partir da abertura para isso que a marquesa de Alorna, de certa
forma, concedeu às mulheres com seu próprio projeto de vida, é que, neste momento,
realizamos um recorte em sua trajetória de vida, retomando sua segunda fase, quando escreve
as cartas à filha que se casaria. O regresso à segunda fase tem o intuito de contextualizar as
preocupações com a formação da filha e com a necessidade de transmitir a esta orientações
sobre a conduta feminina no casamento, nas relações com o marido e demais homens na
sociedade, a questão da economia doméstica e das demais temáticas que D. Leonor julgou
importante para o período e para o projeto de vida de sua filha.
2.3. D. LEONOR E AS ORIENTAÇÕES ÀS FILHAS: PRINCÍPIOS EDUCATIVOS PARA
UMA NOVA FASE
Compreender o momento em que as cartas foram escritas é fundamental para
identificarmos as expectativas de aprendizagem que a sociedade tinha em relação à formação
das mulheres. Tais expectativas permitem entendermos os princípios educativos e, por
conseguinte, a educação das mulheres naquele tempo, bem como a influência desse processo
na mudança da autoimagem feminina e nas representações da mulher na sociedade.
As filhas da marquesa de Alorna contraíram matrimônio, como já mencionado, entre
os anos de 1795 e 1799: D. Juliana, em 1795, e D. Leonor, em 1799. Nesse período, de
48 Dias (2007) não se refere à marquesa de Alorna e sim à ideia de “projeto de vida” como um meio de revelar a
emancipação feminina, reservada ao espaço que as mulheres ocupavam na sociedade do referido período.
Todavia a expressão “projeto de vida”, bem como a expressão “recôndito feminino” nos parecem adequadas às
discussões que desenvolvemos neste texto.
69
acordo com Cidade (1930), a Europa vivenciava as consequências da Revolução Francesa,
novos tempos carregados de novos valores e necessidades assolavam a sociedade portuguesa;
as ideias liberais tomavam conta do cenário, fortalecendo as mudanças na organização da
sociedade, deslocando as classes sociais, revendo a forma de governo, estabelecendo novos
padrões de condutas e, também, novas atribuições aos membros dessa coletividade. As
questões política e econômica da Espanha, França e Reino Unido eram o centro das atenções
na Europa, um esforço francês para conter a supremacia do Reino Unido na economia e na
política era continuamente renovado e a insistência para que Portugal fechasse seus portos
àquele país era intensa.
D. Leonor, já viúva, residia em Portugal e se mantinha sempre atenta às questões
políticas de seu país. Aos seus olhos nada escapava e vinha percebendo que riscos de invasão
rondavam seu país. Acompanhava os movimentos dos franceses, chegando, por volta do ano
de 1806, a escrever aos seus soberanos alertando do perigo da invasão e das mudanças que
isso poderia trazer para o país.
Eram tempos tumultuados pela transição dos regimes e pelo movimento burguês de
afirmação de sua classe social, pelo reposicionamento das classes sociais, colocando os
burgueses em uma condição de participação efetiva dos processos de tomada de decisão da
sociedade, que traziam em seu bojo uma nova forma de pensar e uma nova organização
social, pelas quais o poder não ficaria centrado nas mãos de uma única pessoa e, mais que
isso, a economia passaria a ser conduzida pelo mercado, e o governo assumiria apenas o
papel de regulador desse mercado, fato muito criticado ainda, pois feria os princípios de
liberdade, fraternidade e igualdade, propostos durante a Revolução Francesa. Essas
modificações, envolvendo os aspectos econômicos e sociais, afetaram também os princípios
que regiam a conduta dos homens e mulheres, bem como seus papéis na sociedade. Isso
porque a conduta e as características que cada um deveria desenvolver variavam através da
história e das transformações sociais, redefinindo papéis psicológicos, culturais e sociais de
acordo com as necessidades e exigências de cada fase da sociedade (CIDADE, 1930).
Desde o momento em que as ideias iluministas passaram a permear o imaginário da
sociedade europeia, associando-se às mudanças que provocaram a transição do antigo regime
para o liberalismo, novas exigências pousaram sobre homens e mulheres. Havia preocupação
com a formação das futuras gerações, com o progresso econômico, com o desenvolvimento da
sociedade e, nesse cenário, a educação começava a desfilar como um recurso essencial para o
estabelecimento da nova ordem. E, mesmo as mulheres que não eram lembradas no processo
educativo, passaram a ser alvo das preocupações.
70
De acordo com Santos (1981), a condição das mulheres ao longo do tempo não era a
das mais confortáveis, se pensarmos que convencionalmente elas sempre estiveram sob a
tutela de pais, irmãos ou maridos, gozando de pouquíssimos momentos de liberdade assistida.
Suas atribuições giravam em torno da reprodução e cuidado com os filhos, do espaço
doméstico e do marido, não sendo necessária uma formação mais apurada. Havia certo
consenso social quanto à essa condição talvez porque fosse um momento em que a sociedade
precisasse mais de “músculos” do que de “cérebro”, e nesse ínterim não se pensava muito em
conhecimento intelectual, e no quesito “músculos” o biótipo masculino se favorecia, ficando
relegadas às mulheres tarefas que não exigiam muita força física nem intelectualidade: “[...]
também no século XVIII a mulher foi subalternizada, mas também é de nosso conhecimento
que esse facto não provocou em Portugal nenhuma convulsão social” (SANTOS, 1981, p. 36).
Todavia, com as transformações sociais, esse quadro foi se alterando:
[...] ao longo do século, foram-se agitando ondas que se tronaram mais
acentuadas a partir da segunda metade, provando afinal que nem todos eram
acordes com esse implacável e fatal destino de submissão. (SANTOS, 1981,
p. 36).
Uma preocupação com a educação das mulheres foi se instituindo. Obviamente que
essa preocupação não era com “elas” em si, mas pelo papel de primeiras formadoras das
futuras gerações que elas desempenhavam. Assim, começaram a surgir os primeiros escritos
dedicados à educação feminina. Em 1782, Luís Antonio Verney escreveu uma obra
pedagógica, denominada Verdadeiro Método de Estudar, considerada valiosa, polêmica, mas
revolucionária. Nessa obra há um capítulo dedicado à instrução feminina, no qual apresenta a
necessidade de as mulheres receberem instrução, justamente pelo papel que ocupavam na
sociedade, de formadoras das demais gerações, mas também por dirigirem as casas e
cuidarem da economia doméstica. O autor afirma, também, que o estudo e, por conseguinte, a
instrução contribuem para a formação dos costumes, já que, segundo ele, não há nenhum tipo
de lei que obrigue as mulheres a serem tolas e não saberem falar, ler e escrever.
Esse posicionamento de Verney, segundo Salgado Júnior (1949), era, para a sociedade
portuguesa da época uma novidade. Embora as perspectivas abertas fossem limitadas, já que
não se pensava na mulher enquanto sujeito e sim enquanto sujeitada, essa atitude de pensar a
educação da mulher trouxe possibilidades de mudança na representação social feminina e se
manteve, ao longo do tempo, como matéria de investigação.
71
Antes da publicação de Verney, em 1760, outro escritor português, Ribeiro Sanches,
publicou uma obra destinada à educação – As cartas sobre educação da Mocidade49, também
com aspectos inovadores e evidenciando o reconhecimento do processo educativo como um
mecanismo para o progresso de uma sociedade. Nessas cartas, seu autor também dedica
atenção à educação feminina, fazendo alusão à necessidade de se instruir as moças
portuguesas. Em seus escritos, é possível notar que eram contempladas nesse registro apenas
as mulheres da elite, as mulheres do povo ainda permaneceriam na condição de ignorantes.
As reflexões de Ribeiro Sanches (1760) se assemelham às de Verney, pois ambos
vinculam a necessidade de se instruir as mulheres para atender às necessidades e exigências
da sociedade e não como algo emancipador.
Em 1751, Cavaleiro de Oliveira também dedica alguns escritos à educação e à
instrução feminina. Afirma que, ao longo dos tempos, seria possível encontrar uma parcela de
mulheres intelectuais que não só poderiam se igualar aos homens, mas poderiam superá-los.
Todavia lembra que a sabedoria das mulheres deveria ter medida, sendo como tempero para
culinária, nem com pouco sal, nem com muito sal.
Nessa rápida menção sobre os escritos acerca da educação das mulheres, todos os
autores concordam que há necessidade de instruí-las, ainda que não seja para e por elas
próprias. Esse movimento já representava um avanço para o período e, mesmo não
alcançando todas as mulheres, significou a possibilidade de algumas delas despontarem no
universo do conhecimento e, por seu meio, se instalar um reconhecimento social quanto às
suas capacidades e o seu poder de contribuição social.
Entendemos que as que alcançaram esse patamar puderam, de certa forma, representar
as outras e iniciar um processo de construção de caminhos e alternativas para a mudança da
concepção sobre “ser mulher”, possibilitando, inclusive, forjar um novo perfil de mulher.
Outro fator que evidenciou o início de outros caminhos para as mulheres foi a instalação do
primeiro colégio para educação feminina em Portugal, também no fim do século XVIII.
A literatura do período revela a participação das mulheres nessa área, ou seja, não são
escritos sobre mulheres que surgem das penas dos homens, são mulheres escrevendo sobre
mulheres. Esse fator mostra que a ótica feminina sobre a mulher também se modifica, pois as
49 As cartas foram escritas para o futuro rei D. José I, com a intenção de mostrar ao monarca que Portugal
precisava investir na educação de seus jovens – uma educação nos moldes iluministas – para recuperar o reino
do atraso em que se encontrava, essas orientações, possivelmente, faziam parte de um projeto de
desenvolvimento da sociedade portuguesa.
72
escritoras começam a rebater os escritos dos autores masculinos que acusam as mulheres de
ignorância, bestialidade e de induzi-los ao pecado (ANASTÁCIO, 2013).
Acreditamos, a partir dos escritos de Anastácio (2013) e Lopes (1987), que a vida das
mulheres no fim do século XVIII não era fácil. Mas, no movimento de resistência e no
processo de autorreconhecimento, as mulheres foram estabelecendo novas concepções sobre
elas próprias e sobre o universo feminino. Paralelamente a esse movimento, ou associando-se
a ele, a ascensão da burguesia contribuiu ou provocou um afrouxamento da rigidez das
normas e dos costumes, de forma sistemática. Esse conjunto rígido de normas e costumes
começou a sofrer abalos e a ruir, abrindo espaço para novos tempos repletos de uma nova
vitalidade social. Nesses novos tempos, a mulher foi construindo seu espaço, abrindo
horizontes.
Esse movimento foi sentido por D. Leonor ainda no cativeiro de Chelas, quando
refletiu sobre o comportamento das enclausuradas e chegou à conclusão de que o
comportamento lamentável pela falta de conhecimento e cultura se dava por uma formação
educacional ruim. Assim, àquele tempo, D. Leonor já tecia críticas sobre as consequências da
falta de um projeto educativo que, de fato, oferecesse formação adequada às mulheres
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941). Acerca disso, ela relata tais
consequências em uma carta endereçada a seu pai:
Eu conheço muitas que não sabem, por seus pecados, nem ler nem escrever;
outras que, sendo muito estimáveis e de qualidades pessoais excelentes, são
uma miséria, porque se aplicam muito mal, destampam-se com um “ingrês”
muito sem sabor, dizem “ameitade” e “sastifação” e outras parvoíces deste
gênero. Falam inicialmente em enfeitar-se, qualidade aborrecível. Por fineza
dizem umas às outras: “como és tola”... Isto é comum, e a maior desgraça é
que estas infelizes lhe pareçam cousas das que o são menos, porque se
aplicam, e as condenam por modo aborrecível [...] (MARQUESA DE
ALORNA,1844 apud CIDADE, 1941, p. 6-7).
Em outros episódios do cativeiro, D. Leonor se mostra ‘inconformada’ com o
comportamento das moças e pela falta de interesse delas nos estudos. Para ela, não havia
outro caminho que pudesse abrir os olhos das raparigas quanto ao que de fato poderia ser
importante nas vidas delas. Acreditava que uma mulher conhecedora da filosofia, da arte, da
música tinha mais recursos para lidar com a condição de seu sexo. Por isso, ainda no
convento, dedicava parte de seu tempo a suas discípulas, no intuito de ‘salvar essas pobres
almas’. Em algumas passagens das cartas que remete ao seu pai, mencionou o bom
desenvolvimento de uma de suas discípulas.
73
Depois de liberta, D. Leonor continuou a defender a educação como um caminho para
a emancipação humana, em especial das mulheres, tanto que, em sua casa, dedicava não
apenas seu tempo para ensinar as moças que a ela recorriam, como para custear uma mestra
para lhes ensinar a ler, escrever, entre outros conhecimentos que entendia necessários às
mulheres de seu tempo.
Obviamente que tal postura se aplicaria à educação de seus filhos. Parte dessa
preocupação aparece expressa nas cartas dedicadas à filha que se casaria. Estas trazem as
‘prescrições’ ou orientações dela, que entendemos aqui como princípios educativos, pois se
traduzem em verdadeiras proposições ou fundamentos norteadores para a conduta e
pensamento da mulher, em especial para a que está se tornando ‘esposa’. Representam, ainda,
uma ‘modalidade’ de instrução que, como parte da educação ou do processo formativo da
mulher, deve proporcionar o desenvolvimento de ‘competências’ e ‘habilidades’ necessárias a
ela enquanto esposa, mas também enquanto sujeita, como vemos na passagem abaixo:
Quis a natureza orná-la a V. daquelas graças exteriores que necessariamente
recomendam uma pessoa moça na sociedade; porém esta recomendação é
sempre acompanhada dos mais terríveis perigos, dos inesperados precipícios.
O dom da beleza é precioso, quando a conduta o realça; mas se a menor
negligência o acompanha, serve só para fazer erros mais manifestos e
exercitar a maledicência dos invejosos. (MARQUESA DE ALORNA, 1844
apud CIDADE, 1941, p. 76)
[...] V. não tem sido educada de modo comum. As preocupações vulgares
que rompem muitas vezes os mais doces vínculos da natureza, não poderão
fazer prêsa na sua alma, se não se esquecer da minha doutrina [...]
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 78)
D. Leonor, à filha, recomendava o equilíbrio entre formosura e saúde; evitar-se gente
negativa e problemática; não ser ociosa: e, também, desviar preocupações vulgares, como
vimos acima. Orientações para a conduta, embasadas em proposições lúcidas que
demonstravam a necessidade de se ocupar com coisas úteis, como conhecimento, leituras que
promovessem análise, exercício da reflexão, como já citado por nós em outro momento do
texto, quando D. Leonor pediu à filha que se recordasse das leituras que ela havia sugerido:
“Recorde pois as obras de Fénelon, de Fordyce, de Madame de Lambert, e todos aqueles
modelos que lhe inculquei [...]” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 76).
Outra temática, também entendida aqui como uma orientação/instrução e/ou princípio,
era a economia que deveria ser de tempo, espaço e, também, a doméstica. Interessante notar
que, se pensássemos em um ‘componente curricular da formação para administradora do lar’,
74
a economia poderia ser vista apenas como uma questão de ordem prática e cotidiana entre os
afazeres previstos, vinculada à questão monetária dos gastos com empregados, suprimentos
etc. De acordo com a expectativa de aprendizagem da sociedade, seria isso mas as orientações
de D. Leonor ultrapassam esse ‘componente curricular’, ela tratou da economia de tempo.
Economia essa que interessava diretamente à mulher e não apenas à esposa já que o tempo era
um elemento ‘dela’ e não da ‘casa’. Sobre isso, D. Leonor orienta que
A economia do dinheiro não consiste tanto no modo de conservar, como de
o dispensar; mas esta será a última de que se trate. Há outros ramos de
economia mais importantes, de que falarei primeiro, dividindo-a deste
modo: economia de tempo, economia de espaço e economia doméstica.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 79).
Outro princípio a destacarmos é quanto à conduta nas relações sociais. As orientações
seguem um padrão a ser construído, mas também recursos para se viver de forma
relativamente autônoma na sociedade, fazendo bom uso do conhecimento para perceber quais
relações são interessantes e podem agregar e quais são desnecessárias e podem trazer perda de
tempo:
Se por acaso vos meteis num círculo de distracções fúteis ou de opiniões
extravagantes, certamente perderei os vossos mais preciosos direitos, e o
vosso império será destruído. Aspirai, pois, ao belo privilégio de fixar a um
tempo os costumes, os usos e os gostos. Mas fugi dessas opiniões mal
fundadas, desses espíritos de sistema frívolo e do ardor das partidas que,
pondo-vos fora da vossa esfera, vos metem em um turbilhão, em que é difícil
distinguir o erro [...] Esta reflexão lhe basta para, daqui por diante, saber
quem deve aceitar ou recusar com algum pretexto sempre polido e que nem
levemente ofenda o amor próprio de ninguém, porque desta atenção depende
a paz e o bom nome. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE,
1941, p. 90).
Cada item disposto nas cartas tem uma função na formação da moça e está em
consonância com as exigências e necessidades da sociedade50. D. Leonor evidencia,
principalmente na temática economia, que pode haver várias faces de um mesmo ponto e que,
para saber identificar cada face e fazer bom uso da economia, são necessários inteligência,
50 Com relação a essa afirmação, gostaríamos de esclarecer que ela não se contrapõe a nossa ideia de que as
orientações de D. Leonor principiavam um caminho para a emancipação feminina, pois, embora estivessem em
consonância com as exigências da sociedade da época, podem ser vistas como renovadoras porque, mesmo
definindo as características e os requisitos que a mulher deveria ter para cumprir suas tarefas domésticas,
alertavam para a necessidade de esta possuir outros conhecimentos, até então não pensados como necessários à
administração da casa, como filosofia, arte ou ainda como conhecimentos acerca da economia para que os
empregados, como veremos em outras passagens das cartas mais à frente em nosso trabalho, não a ludibriassem
nem os fornecedores que serviam a sua casa.
75
perspicácia e conhecimento. Outros aspectos, como possuir conhecimento de filosofia e arte,
revela o reconhecimento de potencial e mudança no perfil feminino, passando de ignorante a
intelectual.
A trajetória de D. Leonor ilustra um pouco do que foi nascer mulher na sociedade
portuguesa do final do século XVIII. Não dá conta, obviamente, de caracterizar a vida de
todas as mulheres, mas fornece subsídios para identificarmos alguns pontos ou elementos
indicadores do que se esperava delas naquele tempo. As mulheres, de forma geral, ou seja,
aristocratas ou não, tinham como espaço apenas o doméstico, e as suas casas, mais modestas
ou luxuosas, eram seu reduto. Bem educadas, eruditas ou sem os rudimentos da cultura, todas
elas tinham um papel social ou comportamento social bem definido na sociedade e sempre
estariam assistidas pelos seus “tutores”. Mergulhar no universo feminino pelos olhos de D.
Leonor nos permitiu compreender um pouco a sociedade do período, suas necessidades,
mazelas e ânsias.
As impressões e sentimentos de D. Leonor, registrados nas cartas que endereçava ao
seu pai, nos permitiram compreender como se deu a construção da mulher D. Leonor. Suas
palavras, ora carregadas de afeto e saudade, ora, de mágoa pela situação vivenciada pela
família, evidenciavam seu lado sensível e o despertar de uma poetisa. Os escritos mais ácidos
acerca da sociedade e, em especial, dos governantes evidenciavam não apenas a revolta pelo
cárcere, mas também a construção de sua visão política e da sua capacidade de análise,
calcada nos conhecimentos que tão avidamente buscava.
As palavras e o comportamento da jovem Leonor revelavam sua determinação e a
consciência de seu sexo, das condições de vida feminina e o entendimento quanto à
necessidade de obter uma educação mais apurada, embasada na filosofia, na ciência, na arte e
na música, para a emancipação do pensamento, ou, como ela comentava, para ampliar os
horizontes (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941).
Acreditamos que a poesia de D. Leonor, a Alcipe, expressava toda a sua sensibilidade,
capacidade intelectual e retratava a mulher que havia se tornado. As ações da mulher D.
Leonor, a escolha de seu marido, suas articulações políticas para alcançar seus objetivos, a
rede de contatos que estabeleceu e todo o seu posicionamento político demonstravam em uma
só pessoa a mulher, a mãe, a esposa, a filha e a patriota/cidadã que estabelecia, dona de seus
pensamentos e capaz de possuir seu próprio ‘projeto de vida’. De sujeitada, nos tempos do
convento, passou à sujeita de sua própria história.
Dessa forma, podemos dizer que estudar sua trajetória de vida foi uma forma de
viajarmos por Portugal do século XVIII, de maneira a mergulharmos em uma sociedade em
76
transformação, com conflitos de ideias e interesses, foi um meio de identificarmos papéis e
necessidades sociais, foi um mecanismo de aproximação daquele tempo, ‘um quase’ encontro
entre o contemporâneo e o passado. ‘Quase’, porque permaneceu distante pela condição
temporal, e ‘encontro’, porque nos possibilitou ver um pouco e, talvez, sentir a realidade
feminina pelos olhos e pela sensibilidade de D. Leonor. A ideia de ‘colocar-se’ no lugar do
outro foi uma sensação constante nessa viagem.
Encerramos essa viagem por meio da vida de D. Leonor, Alcipe, condessa
Oeynhausen, marquesa de Alorna, com seus versos, como forma de homenageá-la pela
possibilidade que ‘ela nos concedeu’ de visitar Portugal em seu tempo:
Fugi; cá ficará meu pensamento
Meditando nas horas malogradas,
E das tristes, presentes e passadas,
Farei para as futuras argumento.
Já não me iludirá um doce engano,
Que trocarei ligeiras fantasias
Em pesadas razões do desengano. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941 p.17)
77
3. REPRESENTAÇÕES DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO ÀS MULHERES: UM
ESTUDO DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO FEMININA PORTUGUESA NOS
SÉCULOS XVIII E XIX
Esta seção tem como objetivo apresentar um panorama da situação feminina no
período em estudo, utilizando-nos, para tanto, das representações da sociedade em relação às
mulheres daquele momento, bem como da educação ofertada a elas com caráter de reforço ao
comportamento social que lhes esperado. Em função disso, trazemos duas vozes masculinas
que se debruçaram sobre a educação das mulheres, procurando definir e sistematizar um
projeto educativo feminino. De acordo com Atallah (2006), essas vozes são de Luiz Antonio
Verney (1746) e Antonio Nunes Ribeiro Sanches51(1760). Finalizamos esta seção com os
princípios educativos, propostos pela marquesa, em contraposição ao projeto educativo
vigente e procuramos com isso evidenciar os indicativos de mudança no pensamento
feminino.
3.1. BREVE PANORAMA DA SITUAÇÃO FEMININA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Entendemos ser necessária uma apresentação da situação feminina na segunda metade
do século XVIII e nos anos iniciais do século XIX, porque acreditamos que, de posse de uma
visão panorâmica acerca das condições sociais das mulheres no referido período, ficaria mais
fácil a visualização do ‘pioneirismo’ de D. Leonor, ao orientar sua filha, a fim de
identificarmos os princípios educativos. E também evidenciaríamos que ela própria seria um
indicador de mudanças no pensar feminino, bem como seu desejo em contribuir para que
outras mulheres pudessem desfrutar dessa mesma maneira de pensar, de modo a alcançarem
uma autoconsciência ‘libertadora’.
Dessa forma, recorremos aos escritos de Silvestre (2009), para esboçar um panorama
geral da condição das mulheres ao longo dos tempos:
Em todas as sociedades e em todos os tempos, as leis, os preconceitos e os
costumes tenderam a restringir a vida das mulheres, limitando a sua
51 Sabemos que houve outras vozes masculinas dedicadas ao mesmo propósito, todavia para este trabalho
optamos por trazer essas duas vozes, por entendermos que o projeto educativo, apresentado por eles, resultou em
uma educação sistematizada e oficial daquele país. Segundo Cardoso (1998), as contribuições de Verney, por
exemplo, foram relevantes para o progresso cultural almejado por D. João V e as ideias de Ribeiro Sanches
vinham ao encontro das mudanças promovidas pela reforma que o Marquês de Pombal realizou naquele país.
Portanto, a proposta educacional desses autores estavam mais próximas de corresponder à expectativa de
aprendizagem da sociedade daquele tempo.
78
instrução, entravando o desenvolvimento das suas aptidões naturais e
subordinando a sua individualidade ao juízo de personalidades alheias. Essa
situação aduzia à injustiça social, legal e económica, repercutindo-se
desfavoravelmente na vida colectiva e retardando o progresso socio-
económico em geral. (SILVESTRE, 2009, p. 47)
Na Europa, em particular, até fins do século XVIII, e ainda durante o século XIX, as
mulheres eram consideradas seres inferiores, quando comparadas aos homens. Eram definidas
ou caracterizadas como criaturas emotivas, sem muita racionalidade e sem capacidade de
organização, sendo suas funções primeiras a reprodução e os cuidados com o espaço
doméstico. Embora essa fosse a realidade mais provável e a mais comum, muitas mulheres se
destacaram, como aponta Silvestre (2009, p. 48), “[...] como filósofas, chefes, rainhas,
guerreiras, artistas ou demonstraram capacidades que teoricamente eram apanágio apenas dos
homens”.
Interessante observar que a história descrita sobre as mulheres, muitas vezes narrada
pela ótica masculina, aponta as mulheres que se destacaram como exceções que surgiram por
conta da classe social à qual pertenciam, porque, em função de seu posicionamento social,
tiveram acesso à instrução e não como uma possibilidade, muitas vezes ‘cavada’ na sociedade
por elas próprias. Não negamos que pertencer a uma classe mais abastada favorecia, inclusive,
o acesso à instrução e possibilitava mais espaços de sociabilidade, porém há exemplos de
mulheres que não puderam fazer uso da sua classe social para se favorecer ou simplesmente
não a possuíam e que, também, buscaram caminhos para conquistarem um espaço
reconhecido na sociedade. A própria D. Leonor, embora fosse da aristocracia, em função de
ser obrigada a viver na clausura, não pôde desfrutar inteiramente de sua condição social para
alcançar tal espaço, precisou criar seu espaço com sua determinação, coragem e busca
incessante pelo conhecimento.
Há, ainda, mulheres que, em sua condição limitada pela classe social e pela miséria,
não atuaram no mesmo papel das aristocratas, mas no anonimato, apenas a história pôde não
ter se ocupado delas. Todavia é fato que as vozes dissonantes, como classifica Lopes (2007),
existiram e, de alguma forma, se espalharam, talvez não em grande número, mas em
potencial, tanto que a defesa pela igualdade de direitos se iniciou no século XVIII, alargando-
se posteriormente pelo século XIX, motivando as mulheres a lutarem pelos seus direitos,
objetivando que fossem ‘iguais’ aos homens. De acordo com Silvestre (2009), uma das
primeiras mulheres a buscar os direitos iguais foi a inglesa Maria Wollstonecfraft (1759 –
1797) que, na sua obra Vindication of the Rigths of Woman, publicada em 1792, exigia a
igualdade de direitos políticos para homens e mulheres.
79
No pensamento dominante do período havia uma evidente separação entre os dois
sexos no que dizia respeito ao público e ao privado. Essa divisão seria resultante do
imaginário da época que destinava às mulheres uma vida, como afirma Silvestre (2009),
‘interior’ e, para os homens, a ‘rua’ e a política. Ainda, segundo esse autor, além dos
princípios da organização política, havia outro discurso próprio daquela sociedade quanto aos
ofícios e que direcionava a definição de papéis ou comportamentos na organização social que
dizia: “Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos” (2009, p. 49).
De forma geral, talvez como resquício das contribuições das religiões, podemos dizer
que a mulher terá por muito tempo, ainda, uma imagem espelhada do pecado, de alguém que
só contribui se estiver sob a tutela de alguém e totalmente controlada. Sobre essa imagem
feminina, concordamos com Silvestre (2009, p. 49-50):
A mulher será sempre uma representação antropomórfica do fruto proibido
original, e por isso tradicionalmente viturpada, mas sem deixar de ser
desejada. Deus e Adão entraram em discórdia quando da criação da mulher,
mas a sua génese esteve na origem da solidão do homem para quem a
companhia de Deus não bastava.
Essa realidade foi se modificando, impulsionada pelas transformações sociais, pela
influência das ideias iluministas e pelo quadro que tais mudanças foram estabelecendo. O
espaço privado do lar foi se abrindo para as assembleias movimentadas pela arte e cultura, a
sociabilização, identificada por Lopes (2007) como um dos agentes da mudança do
pensamento e da conduta feminina, mesclando o público e o privado, colocando, dessa
maneira, a mulher como a idealizadora e executora dessa sociabilização. Essa nova situação
alterou as relações ente as pessoas e abriram-se possibilidades para a mulher que até então não
existiam.
Nesse caminhar, ao final do século XIX, os modos de sociabilização interpares ou
interclasses acentuaram-se, como afirma Silvestre (2009, p. 65), e novos hábitos e novos
comportamentos civilizacionais foram registrados, nos quais “[...] imperava uma mentalidade
burguesa [...]”. Essa mudança de comportamento, influenciada pelo pensar dos burgueses,
passou a exigir de todos um nível mais elevado de conhecimento e uma necessidade de expor
essa intelectualidade como meio para ascensão e respeitabilidade social. Isso alterou a
mentalidade geral das pessoas e surgiu a necessidade de as mulheres receberem uma instrução
mais refinada, já que, além de executarem as assembleias, participando ativamente do evento,
também eram as responsáveis pela primeira educação das crianças e pela administração do
lar.
80
De volta ao século XVIII, mais precisamente em sua segunda metade, quando as
primeiras modificações nas relações começaram a surgir assim como os primeiros indicativos
de que novos tempos viriam, as mulheres se aperceberam52 que, para tirarem proveito dessas
alterações e para conquistarem seu espaço, necessitariam obter, primeiro, instrução e, então,
criaram mecanismos para alcançarem o acesso ao conhecimento. A forma selecionada para
isso não foi a alternativa mais suave, mas a mais possível. Como possibilidade de acesso ao
conhecimento, as mulheres se depararam com os conventos e, como justificativa para a
necessidade de acesso, as assembleias que começavam a existir já que estas exigiam
inteligência social, arte da conversação, domínio da língua e conhecimentos vários.
Talvez nesse momento e a partir da percepção social de que as mulheres precisavam
obter maior instrução, é que vozes masculinas também se levantaram a favor de um processo
educacional voltado às mulheres. Entre essas vozes estavam Luís Antonio Verney e Antonio
Ribeiro Sanches que, em suas respectivas obras, ainda que de forma breve, dedicaram
momentos para a educação feminina.
Quiçá também tenha sido nesse momento, ou a partir dele, que D. Leonor, ainda
jovem, tenha notado a importância da educação para a emancipação do pensamento feminino
e, ainda, no cativeiro de Chelas, tenha traçado alguns passos para um projeto educativo
voltado às mulheres, visto que lá possuía discípulas e relatava o progresso delas em cartas
destinadas ao seu pai. Obviamente que, se em Chelas já pensava a educação, faria a
transposição dessa preocupação posteriormente quando buscou educar seus filhos, em
especial as filhas, como observamos em suas cartas.
Diante dessas considerações preliminares quanto à situação da mulher no final do
século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX e levando em conta as modificações
sociais e os elementos que proporcionaram pensar sobre a educação feminina, podemos
passar, neste momento, a apresentar os primeiros registros acerca da educação das mulheres,
evidenciando, com isso, os primeiros avanços no que diz respeito à instrução destinada a elas
e, portanto, a abertura para uma nova mentalidade feminina que seguirá com as vozes
dissonantes das mulheres em busca da sua emancipação. Vozes discretas, mas atuantes e
eficazes, como foi a voz marcante de D. Leonor, para nós, pioneira desse movimento, como
veremos mais adiante quando tratarmos das seis cartas enviadas a sua filha.
52 Dizendo isso, não estamos querendo afirmar que todas as mulheres, impreterivelmente, tiveram essa percepção
e se articularam ou articularam estratégias para modificarem sua realidade buscando instrução. Queremos dizer
que houve essa possibilidade e foi aproveitada por aquelas que conseguiram vislumbrar tal possibilidade.
81
Portanto, neste início de seção, apresentamos, brevemente, a situação feminina na
delimitação deste estudo, para que possamos identificar, nos próximos tópicos, as mudanças
que ocorreram no universo das mulheres e com quais ferramentas se dispuseram no executar
dessas alterações. Passamos agora a tratar das ferramentas.
3.2. A EDUCAÇÃO FEMININA EM VERNEY E RIBEIRO SANCHES: PEQUENOS
AVANÇOS E SINAIS DE MUDANÇAS
Portugal do século XVIII apresentava uma riqueza eclética de valores que
representava uma renovação mental que se conectaria com o iluminismo. Com o Marquês de
Pombal o reino entrou, segundo Cardoso (1998), em uma segunda fase iluminista, marcada
pelas reformas pombalinas, inclusive no ensino. Foi, ainda, nesse século que surgiram nomes
importantes para a divulgação das ideias iluministas e para o que alguns estudiosos
denominam modernização de Portugal. Nesse contexto estavam os pensadores como Luís
Antonio Verney53 e Antonio Nunes Ribeiro Sanches54, que contribuíram imensamente para a
secularização do ensino, para a liberdade de pensamento e, também, para a educação das
mulheres.
Verney contribuiu com o progresso cultural e com a reforma cultural de Portugal. De
acordo com Cardoso (1998), as ações de Verney contribuíram muito para o avanço do
progresso cultural almejado por D. João V e pelos espíritos mais progressistas daquele país.
Sua contribuição foi inestimável, pois, ao escrever O Verdadeiro Método de Estudar (1746),
colaborou com a substituição da escolástica dos jesuítas por uma proposta inovadora,
edificadora da modernidade científica do ensino superior.
Suas ideias educacionais estavam pautadas no ideal filosófico de John Locke,
principalmente no que dizia respeito ao entendimento humano55, consequentemente
53 Luís Antonio Verney (1713–1792) foi um filósofo, teólogo, padre, professor e escritor português. Foi um dos
maiores representantes do Iluminismo no país, autor da obra O Verdadeiro Método de Estudar (1746), contribuiu
muito para a reforma pedagógica do ensino. Nessa obra apresentou uma proposta pedagógica inovadora para
época que aproximava o conhecimento da realidade vivida pela sociedade, fazendo com que fosse um
conhecimento para aplicação e não para contemplação. (CARDOSO, 1998). 54 Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699- 1793) foi um médico português e grande intelectual, considerado por
muitos como enciclopedista – médico, filósofo, pedagogista, historiador etc. Escreveu muitos manuscritos sob a
influência do Iluminismo. O seu nome aparece entre os mestres do pensamento europeu da sua época, atuando na
implantação cultural e científica de Portugal, atendendo à solicitação do marquês de Pombal. Em 1760, escreveu
a obra Cartas sobre a Educação da Mocidade, contribuindo para a nova fase da educação portuguesa. (LEMOS,
1911).
55 John Locke, filósofo inglês (1632 – 1704) e ideólogo do liberalismo, defensor da teoria da tábua rasa, segundo
a qual a mente humana era como uma folha de papel em branco a qual pode ser preenchida apenas com a
82
desvalorizando a metafísica. Prezava por um projeto educativo que respondesse às novas
necessidades e exigências do período, vinculadas ao desenvolvimento econômico, às ideias
liberais e também às atividades burguesas. É possível percebermos isso pela forma como
estruturava sua proposta pedagógica56, pautando-se em uma forma de ensino que se
fundamentava na ordem prática dos conhecimentos e em sua aplicabilidade real e concreta.
[...] necessidade de tornar centro de estudos linguísticos, em vez do Latim, a
própria língua materna; inclusão, ao lado das línguas clássicas já
consideradas, algumas das línguas modernas (para o caso, e conforme as
necessidades do tempo, o Francês e o Italiano); a substituição da Retórica de
ornato, sem finalidade persuasiva, por certos princípios mínimos
conducentes ao discurso em perspectiva de razão; a inclusão, no quadro das
necessidades da cultura geral, dos estudos históricos e geográficos; a
importância a conceder aos estudos experimentais de Física como
preparação científica dos estudos superiores de natureza técnica, a
consideração a ter pelo nascente Direito das Gentes como fundamentação
dos estudos jurídicos; a importância a dar à Teologia Positiva na preparação
do teólogo, que se destina, na maioria dos casos, a pôr-se em contacto com
almas e não a preencher qualquer cátedra especulativa. (COELHO, 1985, p.
1139).
Incialmente, Verney contou com o apoio do rei, como aponta Cardoso (1998, p. 4): “O
rei apoiava gradualmente uma nova ordem progressista, os Oratorianos, o que concorreu para
a renovação do espírito do ensino”. Além disso, assim como o rei, Verney não nutria simpatia
pelos jesuítas, fato esse que o aproximou de seu soberano, e se posicionava contra a
Companhia de Jesus e contra o domínio religioso da ciência e da educação. Também era
contrário a várias questões pautadas na religião, como os Tribunais do Santo Ofício. Seus
posicionamentos não agradavam, portanto, “[...] os detentores das ideias do ensino em
Portugal”. (CARDOSO, 1998, p. 5) pois sua proposta pedagógica de reforma era marcada
pela ruptura57. Outro fator que lhe rendeu desafetos foi a ideia de defender uma educação para
experiência. Teoria essa que procurava explicar como poderia se dar a produção do conhecimento, contrariando
a doutrina das ideias de Platão, segundo a qual os princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e
existem independente da experiência. Escreveu a obra Ensaio acerca do entendimento humano, onde desenvolve
sua teoria sobre a origem e a natureza do conhecimento. Locke defende também a ideia do respeito ao direito
natural do ser humano – à vida, à liberdade e à propriedade. Influencia, portanto, as modernas revoluções liberais
e também os defensores do iluminismo. (LOCKE, 1999). 56 As suas cartas prosseguem o esquema e a estrutura apresentada: I - Língua Portuguesa, II - Gramática Latina,
III - Latinidade, IV - Grego e Hebraico (e línguas modernas), V e VI - Retórica, VII - Poesia, VIII - Lógica, IX -
Metafísica, X - Física, XI - Ética, XII - Medicina, XIII - Direito Civil, XIV - Teologia, XV - Direito Canónico,
XVI - Regulamentação geral dos estudos. (CARDOSO, 1998, p. 3). 57 Ruptura, aqui, deve ser entendida como protusão com a educação de caráter ‘contemplativo’, do uso
‘ornamental’ e a proposta de instalação de uma educação de ordem mais prática também porque propunha
grandes modificações no pensar da sociedade da época, elaboração de novos valores. Talvez, nesse aspecto, se
assemelhe aos ideais educativos de D. Leonor, já que esta, ao buscar divulgar o conhecimento entre as mulheres,
também promovia uma ruptura com a ordem estabelecida.
83
as mulheres. Toda a sua proposta educacional induzia a grandes modificações no pensar e na
construção de novos valores da sociedade portuguesa. Sua obra é composta por
[...] dezasseis cartas de profunda erudição, vivas, enérgicas e com um
perfume de graça, abordam, como já dissemos, temas muito variados.
Defende a simplificação da ortografia, a substituição da vetusta e pesada
arca de preceitos latinos do P. Manuel Álvares (que tinha 247 regras só para
a sintaxe dos substantivos !) em prol da gramática latina, o ensino da língua
portuguesa (recordemos que a Ortografia Portuguesa de padre Bento Pereira
estava escrita em Latim !), o ensino da História, da Cronologia, da
Geografia, da língua grega, do Hebraico, da Retórica, da Filosofia, da
Filosofia e da Metafísica (deixando no olvido os métodos peripatéticos), a
Ética, a Teologia, o Direito Canónico e Civil e a Medicina (recusa pactuar
com o ensino desta área que preferia a especulação à experimentação,
estudando anatomia humana em... carneiros !). (CARDOSO, 1998, p.5)
Verney ousou criticar grandes nomes do período, como Jéronimo Baía e até Camões,
pois, conforme relata Cardoso (1998, p. 6), “Os versos lusos seriam absolutamente contrários
ao espírito dos modelos da antiguidade e principalmente à boa razão”. Ele era absolutamente
inovador e revolucionário para o seu tempo, defendeu ideias que não se enquadravam à
estrutura institucional, acreditava que os nobres deveriam ter seus próprios colégios e
advogou, de forma veemente, que as mulheres também deveriam ter acesso à cultura, fato
esse que representou um avanço para a situação feminina, abrindo as primeiras possibilidades
de ampliação dos horizontes das mulheres, preparando o espaço e a elas próprias para
abandonarem a imobilidade mental delas e a crença na sua ‘incapacidade e inferioridade’. “A
modernidade do pensamento de Verney reflecte, em primeiro lugar, a sua adesão ao primado
iluminado da razão [...]”. (CARDOSO, 1998, p. 8).
Acreditamos que o posicionamento de Verney indicava os novos tempos que
principiavam a chegar e, também, as novas exigências vindas junto aos novos tempos, das
quais as mulheres souberam tirar proveito, demandando certa energia na busca de alternativas
para mudarem sua condição de vida. Talvez, D. Leonor tenha se apercebido disso quando
iniciou sua busca pelo conhecimento ainda no convento em Chelas.
Outro grande colaborador no processo de modernização de Portugal e na reforma do
ensino foi Ribeiro Sanches. Embora tenha atuado parte de sua vida como médico, não deixou
de manifestar interesse pela educação, quando percebeu que essa poderia ser um poderoso
mecanismo na melhoria do profissional da medicina, e, a partir disso, voltou seu olhar para o
processo formativo, passou a dedicar parte de seu tempo também para projetos educativos.
Seu pensamento educacional expressava os novos tempos e estava alicerçado nos ideais
84
iluministas e pelas ações políticas que tomavam conta da Europa. Participante da reforma de
Portugal, escreveu sua obra intitulada Cartas sobre a educação da mocidade, em 1760. Nela
apresentou um plano geral da educação, compreendendo desde o ensino primário até ao
ensino superior.
Seu projeto educativo apresentava uma visão pedagógica que defendia uma educação
de caráter cívico, no formato de um “catecismo da vida civil” (MARTINS, 2003, p. 513), que
trabalhava na igualização do trato dos nobres, no estudo das línguas vivas e nas aulas de
atividades físicas. Partidário das ideias de Pombal, acreditava que a nação portuguesa podia
acelerar o seu percurso histórico, recuperando seu atraso, por meio da modernização e
aperfeiçoamento cultural, considerando como fundamental reconhecer o verdadeiro Estado
civil e político (absolutismo).
Segundo Martins (2003, p. 514), Ribeiro Sanches entendia que a educação da
mocidade seria “[...] o instrumento e o meio através dos quais a nação se aproxima das outas
nações européias”. De acordo com Martins (2003), Ribeiro Saches entendia que a educação
portuguesa era meramente eclesiástica ou ditada conforme os ditames eclesiásticos que em
nada contribuíam com o progresso português.
Sanches, em suas obras de caráter filosófico/pedagógico, como, por exemplo,
Apontamentos para fundarse uma Universidade Real na cidade do reino que se achasse mais
conveniente, de 1763, demonstrava sua concepção de Estado58 e, a partir disso, desenhava
uma educação que pudesse contribuir na construção do Estado idealizado como aquele que
poderia modernizar Portugal. Dessa forma, ou a partir disso, seu projeto educativo propunha
instrumentos de gestão e administração educativa, como organização escolar e curricular,
programas e conteúdos que pudessem oferecer à sociedade um novo perfil de homem,
capacitado para atuar rumo ao progresso da nação. Assim, pretendia, com seus princípios
reformadores, que os alunos saíssem do processo formativo com
[...] conhecimentos das primeiras noções das coisas naturais e das ações
civis; com juízo tão bem formado que saibam o que é útil a si e à pátria, o
que é decente; e quem sai com estes elementos das escolas, os adiantará
facilmente na sociedade civil pela leitura e pelo trato dos homens instruídos.
(SANCHES, 1760, p. 167).
58 A concepção de estado expressa por Ribeiro Sanches que, norteava seu projeto educativo, tinha suas bases nas
ideias iluministas e nas ideias de pensadores como: Locke, Rousseau, Montesquieu etc. Assim, o entendia como
sendo um corpo civil e sagrado, resultante da fidelidade mútua entre Soberano e os súditos. (MARTINS, 2003,
p. 515).
85
No que dizia respeito à educação feminina, Sanches contribuiu, ainda que por motivos
diferentes aos da ideia de emancipação feminina, com a condição das mulheres. Ao defender
a ideia de que as mulheres necessitavam receber educação para melhor educar as novas
gerações, abriu um espaço novo para elas, o qual permitiu e incentivou que as mulheres
tivessem acesso à educação sistematizada e em estabelecimentos de ensino. Sua defesa em
torno da educação feminina passava pelo viés da contribuição que mulheres bem educadas
poderiam dar à sociedade, preparando melhor as crianças em sua primeira educação. Ele
expressa sua posição em relação à educação das mulheres em dois momentos nas suas Cartas
sobre a educação da mocidade, primeiro se remete à ignorância feminina como um prejuízo à
sociedade:
Aquelas ideias que nos dão as amas são destrutivas de tudo o que devemos
crer e obrar: ficam aquelas crianças expostas ao ensino de mulheres
ignorantes, supersticiosas; são os primeiros mestres da língua, dos desejos,
dos apetites e das paixões depravadas. (SANCHES, 1760, p.190)
No segundo momento afirma que não seria possível introduzir uma boa educação na
sociedade portuguesa se não houvesse estabelecimentos que pudesssem receber as fidalgas59
para dar-lhes um processo educacional adequado às suas atribuições sociais. Sugere que
Portugal tivesse convento ou recolhimentos que recebessem as meninas desde a mais tenra
idade, a fim de proceder uma educação favorável ao progresso português. Chega a dizer que
deveria haver escolas para as meninas e justifica seu posicionamento dizendo:
Porque, por último, as mães e o sexo feminino são os primeiros mestres
nosso. Todas as primeiras ideias que temos provêm da criação que temos das
mães, amas e aias; se estas forem bem educadas nos conhecimentos da
verdadeira religião, da vida civil e das nossas obrigações, reduzindo todo o
ensino destas meninas fidalgas à geografia, à história sagrada e profana, ao
trabalho de mãos senhoril, que se emprega no risco, bordar, pintar e estofar,
não perderiam tanto tempo em ler novelas amorosas, versos que nem todos
são sagrados, e em outros passatempos onde o ânimo não só se dissipa, mas
às vezes se corrompe. Mas o pior dessa vida assim empregada é que se
comunica aos filhos, aos irmãos e aos maridos. (SANCHES, 1760, p. 190-
191).
59 Se para Ribeiro Sanches educar as fidalgas era suficiente para garantir uma boa educação as novas gerações,
para D. Leonor isso não seria suficiente, pois ela procurava promover educação também para as moças simples
de Almerim. Entendia que educar todas as mulheres seria um sinal de avanço. Nesse sentido e retomando a ideia
de Sanches quanto à educação das mulheres ser algo necessário para uma boa educação das novas gerações,
entendemos que sinal de avanço de fato seria a proposta de D. Leonor, pois eram as mulheres simples que
atuavam verdadeira e cotidianamente com as crianças como amas de leite e cuidavam dessas crianças para suas
‘patroas’. E D. Leonor busca alcançar essas mulheres com sua atuação educativa, ainda em sua casa em
Almerim.
86
A melhoria da condição feminina começa a dar seus primeiros passos, ainda que pelas
mãos masculinas, não podemos negar os pequenos avanços para que as mulheres começassem
a chegar mais perto daquilo que poderia ‘libertá-las’ das amarras do imaginário existente, a
instrução.
D. Leonor percebeu isso logo que notou a diferença entre ela, sua irmã com instrução
e as religiosas que recebiam apenas os rudimentos da cultura e dedicavam-se ao conhecimento
sagrado. Diante do comportamento das religiosas e ciente do que poderia existir a partir do
conhecimento, a futura marquesa dedicava-se à busca incessante pelo conhecimento, trazendo
consigo não apenas a sua irmã, mas também outras meninas que buscavam outros caminhos.
Notando as possibilidades mentais que se abriam no contato com o saber, D. Leonor não se
restringiu apenas às obras que o convento disponibilizava, tratou de conseguir outros livros e
de estudá-los, discutindo-os de forma discreta com seu pai, por meio das cartas que trocavam.
Dessa percepção e com as orientações do pai, criou, ainda no convento, uma educação à parte
da conventual e contava com discípulas que se apresentavam adiantadas nos estudos,
motivando-a a continuar em seu propósito.
A ideia de ofertar uma educação emancipatória acompanhou D. Leonor por toda a sua
vida e, fora do exílio, em sua própria casa, com recursos próprios, como já descrito na seção
anterior, ela procurou proporcionar às meninas portuguesas conhecimentos e saberes
necessários às suas atuações sociais. Fato esse que evidencia seu papel pioneiro na
emancipação feminina e, também, a torna uma representante das mulheres na busca por
melhores condições de vida e na sociedade.
É fazendo essa leitura da marquesa de Alorna que apresentaremos, na sequência, as
cartas que ela redigiu, endereçadas à sua filha que se casaria.
3.3. OS PRINCÍPIOS EDUCATIVOS DO SÉCULO XVIII NAS CARTAS DA
MARQUESA DE ALORNA
O século XVIII foi o século das mulheres, como aponta Lopes (1987). Foi o momento
em que novos caminhos se abriram como possibilidades de ampliação do espaço feminino.
Sob a influência do iluminismo, a Europa iniciava um processo de modernização da cultura,
criando espaços de socialização, nos quais a poesia, a arte e a música eram participantes
frequentes. As casas da aristocracia recebiam os intelectuais do período para eventos que
respiravam cultura, conversas agradáveis e músicas que adornavam as assembleias em que
87
poetas apresentavam seus escritos e novos escritores eram apresentados pelos mais
experientes. Esse ambiente, totalmente novo, era também um momento de socialização, de
ampliação das redes de contato e o novo espaço da mulher.
A casa, antes espaço utilizado apenas pela família, passou ser cenário para um número
maior de pessoas. Esse recinto, que já era de domínio feminino, alargou-se para as demais
relações, mas, ainda, sob o domínio feminino, que deixava de ser apenas do cuidado com o
lar, para ser, também, o de festejos organizados e conduzidos pelas senhoras responsáveis
pela casa. Isso significa que surgiu uma nova atribuição para as mulheres, a de receber,
organizar e animar as assembleias60. Essa inovação exigiria das mulheres um comportamento
adequado, certa cultura e desprendimento no falar. Lopes acredita que foi pela socialização
que a mulher pôde ter acesso a uma melhor educação e alcançar o ‘espaço público’,
modificando seu perfil. Todavia os registros de Verney (1746) e de Ribeiro Sanches (1760)
revelam preocupação com a educação feminina que superasse a questão da socialização e
fosse além das assembleias como espaço de cultura e arte e da necessidade de uma anfitriã
bem preparada. Esses autores demonstram preocupação educativa, relacionada à formação das
próximas gerações como um mecanismo de garantia não só da modernização da cultura, mas
também como um meio de garantir que as futuras gerações estivessem preparadas para os
desafios da nova fase social que viria pela frente.
Esse movimento, fosse pela socialização, fosse pela preocupação formativa, associado
às influências do iluminismo e das transformações sociais vindas da instalação do liberalismo
e do processo de consolidação da burguesia, impulsionou a sociedade para o reconhecimento
da necessidade de designar uma educação feminina e, ainda, para a atribuição de novas
funções para as mulheres. (ATALLAH, 2006). Assim, entendemos que, independente das
intenções originais para com a formação das mulheres e mesmo que tal educação não fosse
desenhada para a emancipação feminina, é preciso reconhecer que tal movimento desses
fatores permitiu a melhoria da situação feminina, e, mais, isso foi percebido por algumas
mulheres que demandaram energias para aproveitar o momento e iniciar um processo de
construção de uma nova consciência. Isso fazia com que umas pudessem lutar pelas outras,
como foi o caso de D. Leonor, que, para além da preocupação inicial, apresentada por Verney
60 Assembleias eram os antigos saraus; eventos culturais ou musicais realizados geralmente em casas particulares
onde as pessoas se encontram para se expressar ou se manifestar artisticamente. Um sarau pode
envolver dança, poesia, leitura de livros, música acústica e também outras formas de arte como pintura, teatro e
comidas típicas. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Consultado em 25/08/2017).
.
88
e Ribeiro Sanches quanto à educação feminina, buscou pensar em um projeto educativo, o
qual, ainda de forma moderada, pudesse contribuir na construção de uma identidade feminina
própria.
Isso porque, ela vivenciava, cotidianamente, as mazelas da ausência de instrução na
vida das mulheres que conviviam com ela no convento. Em mais de um momento registrou,
em suas cartas, observações quanto ao comportamento, forma de pensar e agir das jovens que
não se aplicavam aos estudos ou das que tiveram pouco ou nenhum acesso à instrução. Nas
cartas que destinava ao seu pai durante os 18 anos de clausura, declarou várias vezes a
condição de alienação das mulheres, bem como a ‘encarnação’ dos papéis que a sociedade lhe
atribuía e o comportamento esperado para elas sem questionar, sem refletir sobre.
Apresentava as preocupações femininas de suas colegas de convento de forma crítica, como
quem tentasse chamar a atenção para as questões frívolas que a sociedade tomava como
importante na conduta das mulheres, esquecendo-se de que eram tão sujeitas da história
quanto os homens, já que delas dependiam o futuro das gerações e, claro, também, a
construção da nação (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941).
Quanto à situação de alienação e concordância feminina no que dizia respeito às
frivolidades, D. Leonor declarou: “Falam unicamente em enfeitar-se, qualidade aborrecível.
Por fineza dizem umas às outras: ‘como és tola’ [...]. Isto é o comum.” (MARQUESA DE
ALORNA, 1844 apud CIDADE 1941, p. 6-7). Todavia a Marquesa de Alorna também
registrou a presença na sociedade de outras mulheres mais cultas e de bom conhecimento,
como quando se remeteu às moças de seu tempo que viviam na corte:
[...] consta que a nossa Côrte está cheia de meninas aplicadas e algumas
poetas. A doutora dos nossos tempos é a prima Margarida [...] A outra
rapariga que V. Exª conhece muito bem, que é uma filha daquela Ângela que
estava em Beja; chamada Joana Isabel, faz versos, dizem que muito bem
[...]. Há muitas raparigas aplicadas: a filha do Visconde, todas as da tia
Penalva, a Condessa do Vimeiro, já crescida. Honram assim a todas estas
Princessas, que são aplicadas, especialmente a senhora Infanta D. Maria
Dorotea, que dizem ser notável no conhecimento da História. (MARQUESA
DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 6).
Esses dois registros de D. Leonor nas cartas que redigia ao seu pai no tempo do
claustro evidenciam sua percepção quanto à diferença de cultura, de ideias e de
comportamento entre as moças de seu tempo. É essa diferença entre elas que lhe chama a
atenção e a faz pensar que a instrução pode mudar a vida delas, ao mesmo tempo em que
89
entende que o fato de muitas não saberem ler e escrever faz delas meros instrumentos de
manutenção da condição frágil de vida das mulheres.
Desse modo, percebemos que D. Leonor via a instrução como um recurso fundamental
para o pensar e o agir das mulheres. Sem descartar outros aspectos da formação feminina61,
ela destacava a importância da instrução no processo formativo das mulheres. Nas cartas
dirigidas à sua filha que se casaria, notamos essa preocupação de longa data com a educação
feminina, isto é, uma apreensão que se antecipa aos acontecimentos que colocarão as
mulheres em novos papéis e, provavelmente, com novos comportamentos; prova disso são os
conteúdos das cartas que não tratam só da criação de filhos, cuidados com a casa e o marido,
vão além, abordam a instrução e o recreio, evidenciando que a mulher deve saber se portar em
diversas situações e não só no espaço doméstico.
Para facilitar a visualização das cartas a que nos referimos, apresentamos o Quadro 01
com as cartas cuja leitura fizemos e que analisamos neste trabalho, bem como também
registramos nesse quadro outras cartas destinadas a outras pessoas, mas que foram
complementares na análise.
Quadro 01 – Fontes Primárias e Complementares: As Cartas da marquesa de Alorna62
Cartas Remetente Destinatário Origem de
envio
Origem de
recebimento
Data Assunto
A ente
querido
D. Leonor Pai Convento em
Chelas
Forte da
Junqueira
s/d Os outeiros poéticos.
A cultura feminina
entre a nobreza.
Discussão sobre dois
cometas.
A ente
querido
D. Leonor Pai Convento em
Chelas
Forte da
Junqueira
s/d A ternura filial e as
percepções de D.
Leonor
A ente D. Leonor Pai Convento em Forte da s/d Exames no convento
61 Aprender a coser, a bordar, a cozinhar, a organizar a casa, a vestir-se etc. 62 Acerca desse quadro, vale explicar que a ordem de apresentação das cartas, se fez pela ordem do uso delas
neste trabalho, ou seja, os primeiros comentários sobre as cartas enviadas por D. Leonor se fizeram na ocasião de
sua biografia, iniciando pelo período de claustro, durante o qual a futura marquesa enviava cartas ao pai que se
encontrava prisioneiro no Forte da Junqueira, na sequência fomos citando e comentando trechos das cartas
enviadas à filha. Também é importante ressaltar que, na reprodução das cartas, Cidade (1941) não reproduziu as
datas em que foram enviadas e também não informou as possíveis respostas a essas cartas, de modo que não
sabemos quantas obtiveram respostas e de quais pessoas. Outro dado importante a informar é que no período em
que a marquesa enviou as cartas à sua filha, se encontrava-se na Inglaterra em período de afastamento de
Portugal por conta das invasões francesas e por ser contrária aos ideais da Revolução Francesa que
acompanhavam essas invasões, enquanto suas filhas estavam sob os cuidados de seu irmão D. Pedro em Lisboa.
90
querido Chelas Junqueira
A ente
querido
D. Leonor Pai Convento em
Chelas
Forte da
Junqueira
s/d O enciclopedismo da
cultura. O contato
com autores ingleses.
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 1ª – Os deveres
da dona de casa
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 2ª – Questão da
economia/ economia
de tempo
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 3ª – Economia
de espaço
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 4ª – Economia
doméstica
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 5ª – As elações
sociais e a questão de
comportamento
A ente
querido
D. Leonor Filha Inglaterra Lisboa s/d Carta 6ª – As elações
sociais e as
influências
Fonte: Elaborado pela autora (2018)
A primeira carta trata dos deveres da dona de casa, entretanto, antes de iniciar suas
orientações sobre questões do trato da casa, D. Leonor, naquele momento a condessa de
Oeynhausen, pede a sua filha que retome seu aprendizado, relembrando os modelos que a mãe
teria lhe apresentado para guiar sua conduta e o entendimento acerca dos verdadeiros atributos
que se devem ter na sua conduta diária.
As ideias novas e religiosas com que V. entra no mundo, minha querida
filha, os princípios decorosos e honestos com que passa do estado de donzela
para o de mãe de família, podiam-me descansar e dispensar-me de pôr
escrito leis que V. tem (graças a Deus!) gravadas no seu coração [...] Quanto
à especulação de seus deveres, nada tenho que dizer: essa sempre foi a
ciência que mais lhe inculquei, desde que vi raiar em V. o crepúsculo da
razão, e certamente me parece que a teoria da mais perfeita moral a sabe V.
perfeitamente. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941,
p.75).
Essa recomendação da condessa revela que é preciso saber mais que costurar, cozinhar
e cuidar da casa, para que saiba pensar por si só e conduzir sua vida vinculada ao seu marido.
Complementa suas orientações iniciais lembrando a filha da educação que recebeu,
evidenciando que foi diferenciada. Vemos isso quando a condessa afirma que a mulher não
91
deve se ater às preocupações vulgares, não pode se prender a coisas pequenas e frívolas, deve
se ocupar de coisas úteis ao seu crescimento (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941, p. 78).
Prender a alma aos vínculos da natureza nos parece um alerta quanto à naturalização e
conformação no que diz respeito às atribuições femininas na sociedade do final do século
XVIII. Sugere, aos nossos olhos, uma recomendação quanto à necessidade de não se viver em
estado de alienação, tomando as mensagens misóginas como verdades. Propõe, ainda, que sua
filha esteja preparada para assumir novos espaços e, ainda, que, a partir do doméstico, ela
desenvolva a consciência de si enquanto sujeito e não se dobre às imposições da sociedade.
D. Leonor não só deseja para a filha uma vida feliz, como também a orienta a construir
tal felicidade, sabendo se aproveitar da condição existente e, até mesmo, do espaço restrito – o
doméstico -, para se impor e desenvolver seu projeto pessoal de vida. Outro momento que
revela tal intenção encontra-se expresso em sua segunda carta, ainda relativa aos deveres da
dona de casa, quando busca orientar sua filha quanto à questão da economia, alertando que
essa temática não deve estar atrelada apenas à questão do dinheiro e, sim, a outros ramos da
economia mais importantes, como a economia de tempo. Acerca desta economia, D. Leonor
explica que
O tempo é uma sucessão de instantes que os homens calcularam e reduziram
a espaços determinados, compreendidos em períodos certos. Cada acção
necessita de um certo número de minutos ou horas; e cada minuto ou hora
mal empregada, produz desordem na economia das acções. (MARQUESA
DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 79-80).
Ainda com relação à questão da economia de tempo, D. Leonor assevera: “[...] a regra
que esse estabelece cada qual para a economia do tempo não é o que basta para conservá-la e
os maus hábitos das pessoas que nos rodeiam nos furtam momentos preciosos” (MARQUESA
DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 82). O que a mãe zelosa quer dizer com essas
palavras à filha é que o tempo é algo precioso para ser malgasto com maledicências, ou ao
ouvir ‘parvoíces’ das pessoas que fazem mau uso de seu tempo. O tempo deve ser empregado
com utilidade e precisão, para que haja espaço reservado para outras coisas mais importantes,
como o governo da casa, a educação dos filhos e os talentos que cada mulher tem, como a
cultura, o saber, o envolvimento com a arte, a música e a saúde do corpo físico. Portanto, a
ideia de economia de tempo está pautada não apenas na responsabilidade do governo da casa,
mas também e, talvez, principalmente, na educação da mente, envolvendo-a com coisas que
92
possam agregar benefícios à sua vida, melhorando sua qualidade e a condição feminina no
cotidiano, ao simplificar tarefas de modo a sobrar-lhe tempo para outras coisas.
Com ideias simples que se apresentam de forma moderada e associada aos deveres
sociais da mulher, D. Leonor vai inculcando em sua filha elementos para que esta possa
organizar sua vida sem deixar de lado suas atribuições, mas exercitando sua mente e seu
pensar para projetar a própria vida e tudo isso dentro do espaço restrito destinado às mulheres
daquela época. Realmente parece ser muita sagacidade da parte dessa senhora.
Na terceira carta enviada para a filha, D. Leonor aborda o tema da economia do
espaço.
[...] agora passamos a ver em que consiste a economia do espaço. A ordem e
o método respiram ordinariamente na acções de uma pessoa bem morigerada
[...] de modo que cuidado minucioso em conservar todos os móveis no lugar
produz facilidade para a conservação e asseio [...] (MARQUESA DE
ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 83-84).
Observamos que essa temática e a forma como a mãe a trata estão carregadas de certa
dualidade de intenções, tanto no que diz respeito ao uso do tempo, como também do espaço.
Na questão do tempo, além do bom uso deste, para facilitar a organização de suas atividades
domésticas e demais atribuições, há a ideia do que fazer com o tempo para que esse seja
aliado na execução de outras coisas que enriquecem o espírito, ampliam o conhecimento e
que, por conseguinte, refletirão na atuação da mulher junto à sua família e, em especial, ao
seu marido. Essa medida simples garantia à mulher certa autonomia no seu cotidiano,
elencando suas atividades e prioridades, e lhe oferecia uma posição de segurança e domínio
do espaço e do tempo.
Com relação à economia de espaço, as lições simples de limpeza e organização do
espaço físico dos cômodos da casa trazem, de forma sutil, outros conceitos importantes que,
ao segui-los, a filha alcançará a admiração de seu marido, possibilitando que ele a escute em
suas solicitações. As sugestões propostas pela condessa vêm no sentido de que a filha, com
tais cuidados, proporcione ao marido o apoio necessário às suas atividades, o descanso
merecido, além do riso e do prazer. Dessa forma, ele estará plenamente satisfeito e disposto a
ouvi-la sempre63.
63 Embora essas orientações possam fazer parecer que a educação feminina giraria em torno de agradar e
satisfazer as necessidades do homem, do marido e, por conta disso, estariam reforçando tal ideia. Entendemos
que não é o que ocorre, pois a proposta é aliar essa possibilidade com a de ser ouvida e atendida, ou seja, soa
mais como uma ferramenta capaz de quebrar o silêncio feminino do que de reforço do atendimento às
necessidades do marido.
93
Uma mulher hábil e delicada considera sempre a câmara como um teatro da
felicidade de seu marido e, portanto, deve apresentar-lha sempre como um
asilo contra todas as penas da vida, e não se demorar nela enquanto ri ou
dorme. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 86).
Para que a filha possa compreender com clareza esse conceito, D. Leonor toma o
espaço do quarto do casal – naquele tempo denominado câmara -, para exemplificar a questão
da importância da limpeza e organização no estabelecimento de um ambiente favorável aos
seus propósitos, realizadas por ela própria:
No estado de casada, importa muito que a limpeza e a elegância cresçam e
que por nenhum modo se permitam reciprocamente os casados o que seria
reprovado em presença de qualquer outra pessoa, porque desses descuidos
nasce às vezes o nojo e a repugnância, e daí as decepções e as antipatias. [...]
Uma mulher hábil e delicada considera sempre a câmara como um teatro de
felicidade de seu marido e portanto deve apresentar-lhe sempre como um
asilo contra todas as penas da vida, e não se demorar nela senão o tempo em
que ri ou dorme. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941,
p. 85-86)
Na mesma perspectiva, D. Leonor trata também do toucador – espaço onde a senhora
se arruma, se adorna. Aqui, suas orientações se tornam ainda mais interessantes e inteligentes,
pois ela se utiliza de conceitos de organização do espaço e do cuidado de si própria, para
sugerir a ideia de como a esposa pode se manter admirada, desejada pelo marido, além, é
claro, de contribuir na economia doméstica, fato esse que será muito valorizado pelo senhor
da casa.
[...] Se o luxo tem feito que o toucador seja templo dedicado à beleza, as
cerimonias devem ser misteriosas e pôr longe deles o vulgo profano. Que
preço podem ter para o marido delicado os atractivos de uma senhora em
négligé, em licita desordem de toucador, se o recato não diviniza?
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p.86).
Com essa orientação, D. Leonor sugere, de forma delicada e sutil, meios para que a
filha possa sempre despertar, em seu marido, o reconhecimento de suas habilidades e, ao
mesmo tempo, a admiração de sua beleza. Essa ideia não tem caráter de ‘sensualização’, mas
de recursos para haver e manter um bom relacionamento entre o casal.
Indo além, a futura marquesa ainda fornece mais elementos que possibilitam o
reconhecimento, por parte do marido, das habilidades da esposa com relação à economia
doméstica e ao bom andamento dos serviços da casa. Sobre isso, ela sugere: “É o bom gôsto
que sabe variar e transformar as cousas mais insignificantes em ornatos lindos e pouco
94
dispendiosos. Mas a vaidade não se farta de riquezas, e por isso de extravagâncias e dívidas”
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 86).
Para tratar da economia doméstica, terceira parte da temática economia, D. Leonor
escreve a quarta carta do conjunto de seis cartas. Nessa carta, ela aborda a questão da
administração da casa e dos empregados. Inicia tratando das qualidades dos criados,
destacando o que a dona da casa deve observar na contratação da criadagem. Alerta, ainda,
sobre o número ideal de criados, afirmando que, ao contrário do que se habitua nas famílias
portuguesas, não é necessário um número elevado de criados. Um número grande é
meramente ostentação. Para que a casa funcione bem, é preciso um número reduzido de
criados, pois, assim, há ocupação para todos e pouco tempo para conversas paralelas, fofocas
e assuntos que demandem tempo e criem ambientação desfavorável à harmonia entre os
próprios ciados e o senhorio. Dessa forma, um número reduzido de criados bem preparados
para exercer mais de uma função na casa é o ideal. Orienta, ainda, que os criados devem ser
bem tratados, ter horas de descanso e receberem amor, pois, além de serem humanos, isso faz
com que haja perfeição no serviço e lealdade nas relações.
Com relação a esse aspecto, lemos em seu texto mais do que orientações acerca da
economia no número de criados. Lemos orientações quanto ao respeito por aqueles que a
serviam, acerca disso a marquesa orienta que “[...] os criados entram na classe de filhos, a
quem devemos felicidade, descanso e amor” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941, p. 87). Outra orientação importante que aparece nas cartas e que vai além das
questões administrativas do lar e, por isso, demonstra a necessidade de a dona da casa ter
conhecimentos e fazer uso deles é quando D. Leonor sugere medidas para que a governança
da casa e das finanças destinadas à execução da dona da casa seja exitosa. Nesse sentido,
orienta na contratação de um mordomo, ao elencar quais seriam os ‘pré-requisitos’ e as
atribuições deste. Esse cuidado é destacado em seu texto, porque se vincula diretamente à
administração de recursos materiais e financeiros, despendidos em prol da casa. Também,
porque controlar as despesas da casa é uma das atribuições da dona da casa.
Segundo D. Leonor, o mordomo deve ter um livro de razão no qual deve registar todas
as despesas, as compras e os recursos utilizados, dia a dia. Outros criados, responsáveis por
setores da casa e dos serviços, também devem ter tal livro e proceder os registros. Todavia
todos esses registros devem ser conferidos pela dona da casa, cuidando para que não haja
desperdícios. Sobre isso, D. Leonor afirma que
95
Êstes livros devem no fim de semana ser confrontados com o livro do
mordomo, e somar-se a receita e despesa com maior exactidão, presidido
pela dona da casa, para não haver engano. (MARQUESA DE ALORNA,
1844 apud CIDADE,1941, p. 88).
Notamos que, entre as atribuições femininas, está a administração geral da casa,
incluindo o emprego de recursos financeiros, além de compras e gastos com a cozinha,
cavalariça, adega e copa. Essa responsabilidade demonstra que, para dar conta disso tudo, a
dona da casa deve possuir certos conhecimentos, além, é claro, de saber ler, escrever e
calcular. Ela deve ter noções de economia, de logística e deve entender da alimentação, de
serviços prestados e conhecer os preços válidos para cada compra ou serviço prestado. Deve
ter uma visão panorâmica da casa, dos criados e das relações que deve travar para obter a
organização desejada. Ou seja, são atribuições ligadas aos novos valores burgueses e,
também, às novas necessidades que vinham surgindo na fase que a sociedade iniciava
vivenciar. A partir desse momento, já é possível visualizarmos os novos valores e princípios
que regerão essa sociedade.
E, D. Leonor, como pioneira que era, antecipa-se a esse movimento e inicia um projeto
educativo, embasado em princípios que fundamentem os novos papéis/comportamentos
sociais que virão pela frente. A futura marquesa finaliza suas orientações relativas à economia
com o seguinte resumo: “Tendo v. bem presentes todos os artigos que formam o plano da
economia do tempo, da economia do espaço e da economia doméstica, conseguirá, sem
dúvida formalizar um governo bem regulado de casa” (MARQUESA DE ALORNA, 1844
apud CIDADE, 1941, p. 88).
Isso significa dizer que, se a filha internalizar o conceito de economia, dividido nas
três partes propostas pela mãe, ela não só conseguirá administrar bem sua casa, como também
saberá conduzir as relações sociais e familiares de modo que rendam frutos saudáveis a ela
própria e aos convivas. Saberá manter o encantamento do marido por ela e terá o
reconhecimento não só dele quanto às suas habilidades, capacidade e conhecimento, como de
todos demais que com eles travarem relações sociais. D. Leonor, com três simples conceitos,
e a partir do espaço doméstico, ofertou à sua filha princípios educativos que lhe
fundamentavam para a vida pessoal e para o desenvolvimento de sua autonomia.
As lições da futura marquesa de Alorna não param por aí. Ao contrário, alcançam
outros aspectos do comportamento feminino e mais estratégias para garantir seu espaço e seu
valor na sociedade. D. Leonor aborda as relações sociais que devem e que não devem permear
a vida e o cotidiano social da mulher hábil e inteligente. Sobre isso, a mãe orienta a filha para
96
que não se distraia com opiniões extravagantes, frivolidades e ‘ideias modernas’64 sobre
comportamento nas assembleias, ou qualquer outro espaço público. Termina essa seção
recomendando cuidado com as amizades e atenção ao comportamento, conforme segue:
A mulher distraída, encostada sempre na indulgência dos outros, dá carreira
à sua extravagância, passa de uma combinação esquisita a outra, e não repara
que, enquanto lhe perdoam e até a celebram, tacitamente a julgam, e talvez
com uma severidade iníqua lhe interpretam as acções menos significantes,
mas inconsideradas, como crimes ou disposição para elas. (MARQUESA,
DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 92).
O princípio educativo nesse item pode ser visualizado quando D. Leonor chama a
atenção para se evitar frivolidades e atenção com as coisas que não agregam em nada à vida
de uma mulher. É preciso que esta se ocupe de situações, coisas e pessoas que tragam
benefícios a ela, que contribuam em seu desenvolvimento enquanto pessoa e que não
coloquem em risco suas conquistas e sua posição junto à família e à sociedade. Pois novos
tempos virão, novos valores serão instalados, mas nada se dá de forma rápida, há um tempo
em que convivem socialmente o ‘novo’ e o ‘velho’, deixando as pessoas divididas em sua
crença entre o que pode ser uma representação de modernidade e progresso e o que pode ser a
perda de valores essenciais para a organização social.
Durante essa transição, o que vale ou protege as mulheres é o bom senso, é a
inteligência e a percepção, fortalecendo a determinação para as novas ações a serem
empreendidas, o discernimento para saberem quando esperar e quando agir e a tolerância com
o caminhar lento das mudanças sociais. Isso porque D. Leonor bem sabe que, àquela época, a
situação da mulher ainda estava ou era frágil e não se poderia colocar em risco a perda do
pouco que se vinha conquistando. Ao contrário, era preciso estabelecer degraus para a subida
rumo à emancipação feminina e não pesos para travar essa caminhada. Essa sensatez aparece
na quinta carta, quando ela afirma que
As opiniões modernas de que estão tão encasquetadas as senhoras, longe de
serem um veículo para agradar, são certamente um obstáculo. E V., minha
rica filha, que tem um entendimento não comum, sentirá a força da razão
com que lhe peço que se defenda dessas ideias comuns e não tome por
modelo senão as regras invariáveis da modéstia, que se lhe têem inculcado,
64 Ideias modernas nessa passagem devem ser compreendidas como comportamentos inadequados de extrema
exposição da figura feminina, como conversas em alto tom, proximidade excessiva dos homens presentes,
assuntos considerados exagerados e que ultrapassassem os valores ainda vigentes na época. A futura marquesa
deseja que a filha desenvolva “dotes” que favoreçam seu reposicionamento na sociedade enquanto alguém capaz
e não que seja desmerecida, pois, embora novas ideias e alguns novos princípios estejam sendo inseridos na
sociedade daquele tempo, os velhos valores tradicionais e rígidos ainda não tinham sido abandonados.
97
para não decidir, em ocorrências problemáticas [...]. (MARQUESA DE
ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 88-89).
Por fim, em sua sexta e última carta, D. Leonor tata da escolha das companhias. A esse
tema, chama a atenção da filha para que sempre esteja atenta quanto às pessoas que a cercam,
pois não deve haver indivíduos que não possuam o mínimo de conhecimento sobre as coisas
e sobre a realidade em que estão inseridos, não deve manter por perto de si pessoas que não
contribuam em nada com a sociedade e que vivam em um mundo de futilidades. Essas
pessoas induzem, em sua opinião, a um entendimento equivocado quanto ao conceito de
liberdade, provocando situações que poderiam manchar uma reputação e levar a mulher ao
descrédito.
Segundo D. Leonor, liberdade deve ser de pensamento, de gestos, desde que não
venha acompanhada de desembaraço excessivo, pois esse conduz à maledicência e provoca a
malícia dos homens. Para evidenciar a necessidade de cuidado na escolha das companhias, D.
Leonor descreve o tipo de pessoa que se deve evitar para não ser ridicularizada ou
influenciada na conduta e no pensar:
[...] tenho encontrado na minha vida indivíduos que se podem com justiça
chamar de vegetais dos quais todas as funções vitais se limitam a comer,
dormir, rir, divertir-se e enfeitar-se [...]. anulando a inteligência e
sentimento, são-lhe sempre estanhos os mais homens. Se a humanidade
padece, não são essas pessoas aquelas sobre as quais se pode contar para
conforto e remédio. Se fazendo uso de suas faculdades, investigando a
natureza... e procuram para a sociedade, nada entendem além das regras da
moda; e levando sua imperícia muito longe, não conhecem nem as cousas
que usam nem os princípios das mesmas artes que os divertem.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 92-93).
Tal descrição revela a importância que D. Leonor dá ao conhecimento e ao bom uso
dele. Nesse breve relato, chama a atenção da filha para que valorize o que de fato possa
agregar valores, conhecimentos e princípios à sua vida.
Como é possível observar, as cartas de D. Leonor à filha que se casará são mais que
correspondências entre mãe e filha. Suas orientações, sugestões de conduta, regras para o bem
organizar uma casa, critérios para contratação de criados e para escolha de companhias,
alertas quanto aos tipos de pessoas que podem cercá-la, pedido de atenção quanto a assuntos e
situações fúteis, conselhos sobre economia de tempo, de espaço e doméstica, indicações para
a boa ambientação entre os casados e sobre a vida da mulher casada caracterizam a construção
de um perfil de mulher novo em relação ao que vinha existindo até então. Não traça o perfil
98
apenas da mulher casada, mas da mulher do final do século XVIII, daquela que enfrentará
novos tempos, que conquistará um espaço público, que fará uso das suas capacidades e de
seus conhecimentos na modernização do país, na melhoria da cultura, daquela que
contribuirá no processo de emancipação feminina, executando os primeiros passos de um
movimento que, futuramente, deverá lutar pela igualdade social entre homens e mulheres,
ultrapassando a questão de gênero e chegando ao entendimento de coletividade.
A mulher ‘idealizada’ pela futura marquesa de Alorna é diferente da que propõem
Verney e Ribeiro Sanches em seus tratados sobre educação. Enquanto esses autores pensam
na construção de uma mulher mais bem preparada para formar os filhos, preparando-os para a
nova fase da sociedade, dando-lhes a base necessária para contribuírem com a consolidação
de uma sociedade moderna econômica e culturalmente, D. Leonor propõe uma mulher que vá
além de suas atribuições determinadas socialmente para seu sexo. Ela procura projetar uma
mulher capaz de se reconhecer como sujeita de sua própria história, alguém que possua
identidade própria, com autonomia de pensamento, hábil o suficiente para fazer de uma
condenatória e redutora uma situação favorável ao seu reconhecimento enquanto indivíduo
capaz e produtivo.
O perfil idealizado por Verney (1746) é o de uma mãe e esposa bem formada para
essas funções em um contexto de modernização e de transição política e econômica. Ou seja,
de uma mulher com uma educação mais encorpada, se comparada ao que se tinha até então
(mulheres, em sua maioria, analfabetas e ignorantes em vários aspectos da sociedade), mas
apenas o suficiente para bem criar e educar seus filhos, contribuir no pensar do marido e
administrar a casa (ATALLAH, 2006). Portanto, entendemos que não havia preocupação em
oferecer uma educação feminina para a emancipação das mulheres, para que elas pudessem
ser autônomas.
A exemplo de Verney (1746), Ribeiro Sanches (1760) também pensará na construção
de uma mulher preparada para ser uma mãe culta e uma esposa agradável, capaz de conversar
com seu marido e entretê-lo sem ser com bobagens. Para esse autor, Portugal não se
modernizaria enquanto as fidalgas não tivessem acesso à instrução, enquanto não houvesse
um estabelecimento de ensino voltado à educação feminina.
Se tomarmos a obra de Ribeiro Sanches (1760) sobre a educação da mocidade e nos
debruçarmos sobre a parte em que trata da educação feminina, vemos sua preocupação com
uma educação voltada para as mulheres na perspectiva dos papéis que a elas já estavam
atribuídos ou ao comportamento esperado. Em suas palavras, lemos: “Achei que tratar da
educação que deviam ter meninas nobres e fidalgas merecia a maior atenção, porque (por
99
último) vêm a ser os primeiros mestres de seus filhos, irmãos e maridos” (SANCHES, 1760,
p. 191.). Portanto, a mulher, como afirma Santos (1981, p. 35), “[...] não é assim, olhada na
sua individualidade, não tem direitos próprios neste campo e a sua educação não tem em vista
as suas próprias aspirações, mas funciona como um agente ao serviço da sociedade”.
Outro grande nome da cultura europeia foi Cavaleiro de Oliveira, que também dedicou
algumas páginas de sua obra Amusement Periodique (1751) à educação e à instrução das
mulheres. Nessa obra, de acordo com Santos (1981, p. 36), o autor fez o seguinte comentário
sobre a educação feminina:
Através da história poderá coligir-se um magote de mulheres doutas, que
igualaram ou até excederam, se assim o exigem, os mais belos espíritos de
homem que tem havido; lá de muito longe em longe, uma destas luminares
aparece. Perfeitamente; mas são estes fenômenos tão extravagantes como
raros [...]. A sapiência da mulher quer-se como sal nos temperos, nem muito,
nem pouco, regradinho (SANTOS, 1981, p.36).
A partir das considerações realizadas aqui, podemos afirmar que a instrução feminina
no século XVIII foi entendida como necessária, mas “[...] só em quantidade que baste para
ensinar meninos, entreter maridos, animar os salões” (SANTOS, 1981, p. 38). Ou seja, uma
nova educação para uma antiga mulher.
Já D. Leonor ultrapassa esse ideal, pois não deseja, ao que parece, repaginar uma
antiga mulher. Pretende fazer emergir, na sociedade do século XVIII e no tempo que está por
vir, uma nova mulher. Talvez, em seus pensamentos, idealize alguém que possua os
elementos necessários para estabelecer outra situação para as mulheres, uma nova condição de
vida, diferente da que se vivenciava até então. Em suas orientações, estão presentes esses
elementos diluídos em comportamentos e atitudes, aparentemente comuns ao dia a dia
feminino, atividades próprias do cotidiano da mulher casada, decisões simples vinculadas à
boa administração da casa, do espaço doméstico e sugestão de condutas nas relações sociais e
pessoais, por exemplo.
Esses elementos aparecem em pequenas coisas, como quando ela pede à filha que se
utilize da educação diferenciada que recebeu e quando trata da questão da economia de tempo
e de espaço, são elementos como conhecimento em filosofia, cuidados com o saber e o bom
uso deste nas relações e no alcance de objetivos. Evidentemente, esses conhecimentos não
seriam necessários à ‘antiga mulher’, tampouco para administrar a casa, mas para estabelecer
bons diálogos, criar situações que favoreçam a satisfação de suas necessidades. Não servem
apenas para entreter o marido, mas para mobilizá-lo aos seus pedidos.
100
Considerando esses aspectos levantados, parece-nos razoável realizar uma breve
comparação entre os princípios educativos femininos, expressos por Verney (1746) e Ribeiro
Sanches (1760), com os que se apresentam nas cartas da Marquesa de Alorna. Todavia o que
se seguirá não é um estudo comparativo entre a concepção de educação dos autores e de D.
Leonor. Isso não ocorrerá por algumas razões, entre elas, porque, primeiro, não é foco da
nossa investigação, depois, porque Verney (1746) e Ribeiro Sanches (1760) foram
‘chamados’ pela sociedade portuguesa para elaborarem propostas pedagógicas que pudessem
contribuir na modernização da cultura portuguesa e no progresso do país. Eram estudiosos e
se debruçaram sobre essa tarefa, pensando, inclusive, em um projeto educativo formal,
sistematizado, enquanto que D. Leonor não se dedicou, em nenhum momento, a elaborar um
projeto educativo formal. Todas as vezes em que esteve envolta com a educação, mesmo
sendo de suas discípulas no tempo de exílio conventual, ou, posteriormente, quando contratou
uma mestra para ensinar as moças pobres de Almerim, a marquesa não se dedicou a trabalhos
sistematizados e formais para com a educação oficial portuguesa. Logo, uma comparação
entre os escritos deles não seria recomendável, nem cabível.
O que se propõe, neste momento, é apenas a sinalização das diferenças e semelhanças
entre alguns dos princípios educativos femininos, destacados por Verney (1746) e Sanches
(1760) e pela marquesa de Alorna, a fim de verificarmos o pioneirismo de D. Leonor no
movimento de emancipação da mente, do pensar das mulheres sobre elas próprias e,
obviamente, sobre a representação social sobre elas. Também, para evidenciar que os dois
autores ainda pensavam em determinado perfil de mulher, o qual, acreditavam, ainda seria
necessário àquela sociedade. E D. Leonor já via além do momento e vislumbrava uma
possibilidade diferente na sociedade para as mulheres, um espaço maior e o reconhecimento
das capacidades e potencialidades destas.
A partir das ressalvas apontadas no que concerne a Verney (1746), Ribeiro Sanches
(1760) e à marquesa de Alorna, passamos, neste momento, a sinalizar as diferenças na
concepção de educação, papel da mulher e educação feminina, entre eles, a fim de
identificarmos, nos princípios educativos, propostos por D. Leonor, a possibilidade da
construção de uma nova identidade feminina.
3.4. EDUCAÇÃO FEMININA E A MULHER EM VERNEY, RIBEIRO SANCHES E
MAQUERSA DE ALORNA
101
O presente tópico tem por objetivo apresentar a concepção de educação feminina, expressa
por Verney (1746), Ribeiro Sanches (1760), e as orientações de D. Leonor, registradas em
suas cartas destinadas à filha que se casaria por volta do ano de 1799, visando demonstrar as
diferenças entre as propostas formativas dos senhores e os princípios educativos da marquesa.
3.4.1. Luiz Antonio Verney e Antonio Nunes Ribeiro Sanches
Verney (1746) demonstra, claramente, em seus escritos, a influência que recebeu de
pensadores como John Locke, especialmente no que se refere à concepção de
desenvolvimento humano, mais precisamente sobre a parte do aprendizado das pessoas.
Quanto a isso, Verney é adepto da teoria da ‘tábula rasa’ ou da ‘folha de papel em branco’,
isto é, a mente humana está em branco, sem qualquer inscrição de conhecimento e pode,
portanto, ser impressa pelo conhecimento adquirido, pode ser preenchida com ele.
Considerando essa posição quanto ao aprendizado, é possível compreendermos sua proposta
de ensino, uma vez que desde os programas curriculares até a justificativa de o que se ensinar
e para que estão em consonância com tal teoria.
Percebemos isso quando Verney (1746) defende a ideia de que o conhecimento deve
ser de ordem mais utilitária, para que se possa aplicá-lo nas questões a serem desenvolvidas
ou resolvidas na vida cotidiana em sociedade. Conforme afirma Atallah (2006, p. 7), Verney
[...] constrói seu método com bases no sistema cultural que fundamentou as
obras de John Locke, nas quais a importância dos sentidos para a elevação
da inteligência humana seria fundamental, afastando as discussões políticas
das esferas religiosas, legitimando uma moral de caráter utilitário e
pragmático.
Portanto, para ele é necessário apenas o contato com o conhecimento previsto e a sua
prática. Ou seja, não há necessidade de se formar um indivíduo capaz de analisar e avaliar
crítica ou politicamente a realidade em que está inserido, pelo menos não para todos os
indivíduos. Talvez daí derive sua ideia de educação feminina, que, mesmo tendo representado
um avanço para a época, já que nem se discutia uma educação feminina, não propunha uma
educação que promovesse, de fato, a autonomia da mulher enquanto indivíduo, e sim uma
‘profissionalização’ dela enquanto mãe, esposa e responsável pela casa da família.
Dessa forma, é possível perceber que, para ele, a educação teria como função social
favorecer o desenvolvimento econômico da sociedade e, ao mesmo tempo, contribuir na
modernização da cultura e progresso da sociedade (ATALLAH, 2006). Não há preocupação
102
em fazer um processo formativo, voltado para a emancipação humana, para a autonomia de
pensamento, para o indivíduo em si. Daí a proposta de uma educação que se desenrole por um
ensino menos enciclopédico, sem o caráter eclesiástico e mais prático. De acordo com
Cardoso (1998, p. 8),
[...] na filosofia que o nosso iluminista explora o seu gosto pela inovação.
Para trás ficam as influências perniciosas da filosofia Árabe e escolástica, à
luz de Aristóteles, absolutamente incompatíveis com o ideal científico e
claro das novas correntes. Verney ultrapassa mesmo o cartesianismo e o
atomismo gassendista, que dominaram o início do século, seguindo de perto
o experimentalismo mais vivo e a razão como primado básico, pilares em
Locke, Condillac, Helvécio e Holbach.
Nessa perspectiva, pensar a educação feminina foi, para ele, uma forma de pensar a
‘profissionalização da mulher’ enquanto mãe, esposa e dona da casa, pois, conforme já
apontado na seção anterior deste texto, Verney (1746) entendia a mulher como alguém
responsável pela primeira educação das novas gerações, aquela que deveria transmitir os
princípios, os valores da sociedade bem como as primeiras letras e despertar a necessidade do
conhecimento nas crianças, aquela que deveria ter uma boa conversa para entreter seu marido
e ter conhecimentos para administrar a casa. Desse modo, sendo ela a primeira educadora dos
filhos, dos futuros homens da sociedade, deveria ter ela, também, uma educação mais
adequada a essas funções e, especialmente, ao seu sucesso. Por isso, ele dedicou uma
passagem da sua obra sobre a educação às mulheres.
Ribeiro Sanches (1760) realizou o mesmo movimento de Verney (1746), suas
proposições vieram ao encontro das apresentadas por Verney, contribuindo, portanto, com o
aperfeiçoamento da educação portuguesa e com a modernização da cultura. Pelo que notamos
em suas Cartas sobre a Educação da Mocidade, seu entendimento quanto à função social da
educação não difere do de Verney, bem como seu pensar sobre os programas curriculares no
que diz respeito a estarem mais próximos das necessidades sociais da época. A exemplo de
Verney, Sanches também pensa uma educação de ordem mais prática, sem a interferência das
concepções eclesiásticas.
Notamos, em sua obra, que, para ele, o ensino deveria ter caráter cívico, no formato de
um catecismo da vida civil, deveria estar voltado para a igualização do trato dos nobres e para
acelerar o percurso histórico português para modernizar e aperfeiçoar a cultura, colocando
Portugal em melhor posição diante dos demais Estados europeus. Nesse sentido, o
conhecimento seria o elemento chave para formar uma consciência cívica que favorecesse e
103
fortalecesse a construção de um Estado. Ou seja, também não estaria voltado para o indivíduo,
para sua formação pessoal, para sua autonomia e posterior aplicação em sociedade mas, única
e exclusivamente, para as exigências e necessidades sociais do período. Seu posicionamento
se justifica pelas suas influências filosóficas que são oriundas das ideias de Locke (1690).
Considerando seus aportes teóricos e seu entendimento sobre a função social da
educação, percebemos que sua ideia de educação feminina não estaria voltada, obviamente,
para a mulher em si e, sim, claramente, voltada a ela como membro da sociedade, devendo
estar preparada para contribuir com o projeto de construção de um Estado. Ou seja, a mulher,
tanto em Verney quanto em Sanches, não é vista como um indivíduo, como um sujeito capaz
de colaborar com a sociedade, como alguém que pode e deve pensar por si própria e conciliar
seus interesses com os da sociedade; a mulher, para eles, não tem identidade própria.
Em função disso, a proposta de educação feminina de Sanches caminhou no mesmo
sentido da de Verney. Assim, ele propõe um processo formativo que contenha conhecimentos
sobre religião, vida civil, geografia, história sagrada e profana, trabalhos domésticos e
artesanais como bordar, pintar e estofar, de modo que sejam úteis para a formação dos filhos,
para a administração da casa e seu bom funcionamento e que a esposa possa entreter seu
marido com boas conversas e não com mexericos e crendices. Uma proposta rompendo com
toda e qualquer possibilidade de desenvolvimento pessoal, aprimoramento do conhecimento
em outras áreas ou de construção de identidade própria. É novamente a ‘profissionalização’
da mãe, da esposa e da dona de casa e não a formação da mulher.
3.4.2. Marquesa de Alorna
D. Leonor, diferentemente de Verney e Sanches, não chegou a formular uma proposta
pedagógica formal, ou um projeto educativo para a educação oficial de Portugal. Embora
sempre tenha demonstrado preocupação com a educação e, em especial, com a educação das
mulheres, acreditamos que, por razões variadas e desconhecidas pelos seus biógrafos e demais
estudiosos, não se dedicou a esse trabalho. Sua proximidade maior sempre foi com a poesia,
por isso ter sido muito citada e estudada pelos investigadores vinculados à área de literatura.
Todavia, ainda que indiretamente, esboçou sua ideia de educação, seu entendimento acerca do
papel da mulher na sociedade, indicou que possuía consciência quanto à situação feminina de
seu tempo e pensou, sim, como podemos ver nas cartas que trocava com seu pai, ainda no
tempo da clausura, ao referir-se à educação ofertada no convento, na preocupação com a falta
de aplicação nos estudos por parte de várias internas do convento e, posteriormente, quando
104
oportunizou, às moças de Almerim (já em sua vida adulta e após sua viuvez), contato com a
instrução e com uma formação voltada para elas.
Ainda no convento, contribuía na formação das internas, chegando a ter seguidoras.
Meninas e moças que seguiam suas orientações nos estudos e, motivadas pelo espírito curioso
de D. Leonor, também se entregavam aos prazeres do conhecimento, não apenas se dedicando
aos estudos ofertados pelas religiosas, mas também fazendo as leituras que D. Leonor
indicava. De acordo com algumas passagens da obra de Cidade (1941), as quais apresentam
cartas da futura marquesa, observamos que elas organizavam os estudos65, dividindo os
programas por área de conhecimento, em que cada qual estudava uma e, pelo que parece,
depois trocavam suas conclusões e elaborações intelectuais. Vejamos um relato da passagem
que D. Leonor conta ao pai sobre exames de verificação da aprendizagem de todas e também
para a troca de conhecimentos:
[...] no último domingo deste mês faremos aqui um exame dos nossos
estudos. Uma discípula minha o faz de Gramática, M. Tancrede de poesia e
eu dou conta dos primeiros oito séculos de História Eclesiástica. É na nossa
mesma casa e não assistem senão as pessoas da casa e alguns sátrapas, que
pouco ou nada entendem estas matérias. (MARQUESA DE ALORNA, 1844
apud CIDADE, 1941, p. 29).
Como vemos, D. Leonor, embora não tivesse um projeto educativo oficial,
desenvolvia um ensino ou, pelo menos, organizava grupos de estudos, nos quais conduzia o
processo de aprendizagem das internas interessadas. Incentivava a leitura de temas variados,
estudos sobre pensamentos filosóficos e preocupava-se com o desenvolvimento de um ensino
que permitisse às suas discípulas um aprendizado duradouro que pudesse levar consigo para
todos os seus dias. Como ela mesma afirma, “Temos assentado que este é um método galante
meio de ficar mais na memória o que estudamos e de nos habilitarmos a usar nossos talentos”
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 29.). Isso evidencia que D.
Leonor idealizava uma educação para além da ‘profissionalização’ das mulheres enquanto
mães, esposas e administradoras do lar. Ela desejava formar mulheres que pudessem usar dos
seus conhecimentos para crescer intelectualmente, aprimorar suas capacidades e ultrapassar os
65 Cabe ressaltar que esses estudos em grupo, bem como os programas que a futura marquesa elaborava, não
eram de conhecimento das religiosas. Ao que parece, de acordo com a própria marquesa de Alorna (1844), esses
encontros ocorriam sutilmente em meio às horas livres das internas e, muitas vezes, nas próprias celas em que
ficavam instaladas. D. Leonor era quem se disponibilizava a organizar tudo, verificar as leituras e orientar as
‘discípulas’. Não há registros sobre métodos de ensino utilizados por D. Leonor. Nem mesmo pelas religiosas.
Contudo, no que diz respeito a estas , pelo período em que viviam, acreditamos que as religiosas trabalham na
perspectiva ainda da escolástica.
105
muros de suas casas. Ela entendia que as mulheres eram capazes e podiam contribuir para
além do previsto socialmente e que era preciso romper as barreiras da ‘profissionalização’
proposta por Verney e Sanches, por isso, incentivava as internas, organizava um programa de
estudos diversificado e se preocupava com o aprendizado ativo das discípulas.
Em suas palavras notamos toda a sua dedicação e consciência quanto à importância do
processo formativo feminino: “A minha discípula tem catorze anos e uma casta de percepção
a mais rara. Gosta muito dos estudos e eu infinito de ensinar. Nenhuma das outras lhe chega
aos calcanhares, porém todas me fazem gosto, porque faço de que se apliquem.”
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 29). Portanto, é visível a
preocupação de D. Leonor com a instrução das internas, assim como sua concepção de
conhecimento e do papel do conhecimento em suas vidas. O conhecimento seria um
instrumento para o desenvolvimento das capacidades intelectuais, reflexivas e de autonomia
do pensamento, e não uma ferramenta ou mecanismo apenas para a modernização e
aprimoramento da cultura como o era na perspectiva vista por Verney e Sanches, a qual
visava ao desenvolvimento apenas da sociedade e não do indivíduo. Nesse sentindo, para D.
Leonor, a educação seria uma forma de libertar a mente da opressão da ignorância.
Já para os autores Verney (1746) e Sanches (1760), a educação tinha outra finalidade,
como já mencionado em tópico anterior. Para que possamos entender a diferença de
pensamento e posicionamento entre eles e D. Leonor, não podemos, no entanto, realizar juízos
de valor sobre as concepções por eles apresentadas. Para que compreendamos a diferença no
pensar a educação deles, é preciso entender que as concepções elaboradas individualmente
pelos sujeitos são formadas a partir do meio em vivem, das necessidades e exigências que os
cercam e da influência do contexto em que estão inseridos. Assim, as concepções de educação
bem como o entendimento quanto à função social da educação de cada um deles foram
resultado de uma construção mental, permeada por esses elementos submersos na relação
sociedade-civilização-cultura. E a proposta de processo formativo de cada um seguiria as
concepções próprias construídas por eles. Podemos dizer, então, a partir dessas considerações,
que a proposta de ensino e a expectativa de aprendizagem de cada um deles estão envoltas
nesses elementos.
Verney (1746) e Sanches (1760) tinham uma expectativa de aprendizagem feminina
voltada para o perfil determinado pela sociedade do período. Esse perfil, solicitado
socialmente no final do século XVIII, ainda não era um modelo de mulher diferente do que se
tinha até então. Ao contrário, por mais que mudanças estivessem se instalando na sociedade
com os ideais liberais, ainda era um momento de transição. A burguesia ainda lutava para se
106
afirmar enquanto classe social, o ideal liberal dava seus primeiros passos e o processo de
modernização nacional era incipiente. Logo, o perfil de sujeitos para essa sociedade deveria
ser o de ‘colaborativos’, produtivos e estruturados em funções bem definidas, não se
almejando um remanejamento de funções. O que se pretendia era vestir os ‘antigos modelos’
com novas roupagens mais adequadas ao momento (ATALLAH, 2006). Portanto, a mulher (a
fidalga), nesse cenário, era aquela idealizada pela educação feminina proposta por Verney
(1746) e Sanches (1760), ou seja, a mesma mulher de antes, restrita ao espaço doméstico com
atribuições bem definidas e sem grandes expectativas de ampliação do seu espaço ou do seu
desenvolvimento pessoal. Ela era mais uma peça na engrenagem social. A única inovação
para as mulheres no contexto das ideias de Verney e Sanches era uma proposta educacional
dirigida a elas, oferecendo-lhes poucos elementos formativos, apenas o suficiente para que
contribuíssem no projeto maior, a reforma social.
D. Leonor, ao contrário dos cavalheiros, estava imersa em outro contexto. Tinha
influências diferenciadas e suas necessidades eram outras em relação àquelas percebidas por
Verney (1746) e Sanches (1760). Ela vivia a condição de seu sexo, mas vivia também o
contato com a instrução e, por características próprias, associada à sua determinação e visão
de longo alcance, vislumbrava uma mulher diferente dessa proposta por Verney (1746) e
Sanches (1760), contribuindo igualmente para a sociedade, mas com espaço para si própria e
para seus interesses pessoais. Antecipava a capacidade feminina para alçar voos mais altos e
conquistar espaços maiores. Do seu contexto, pensou outra forma de educação feminina. Fora
do convento, já mais madura e vivenciando os movimentos sociais cotidianamente, D. Leonor
seguiu com seu ideal de educação, promovendo no interior de sua casa um projeto educativo
voltado para as moças simples de Almerim, contemplando as leituras entendidas por ela como
fundamentais ao desenvolvimento intelectual (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941).
Foi nas cartas que endereçou à sua filha que estava para se casar que pudemos
observar, na subjetividade de sua escrita, princípios educativos e orientações diferentes das
propostas nos projetos educacionais de Verney (1746) e Sanches (1760), no que dizia respeito
à educação feminina, como pudemos notas nas considerações que realizamos anteriormente
ao apresentar suas cartas. Na delicadeza de suas palavras e na sutileza das sugestões que
oferecia à filha quanto aos assuntos que deveriam interessar às mulheres casadas, percebemos
sua concepção de mulher e uma nova proposta de formação que simultaneamente atendesse
aos interesses da mulher, emancipando-a mentalmente sem, no entanto, confrontar
efetivamente a sociedade ainda despreparada para um novo perfil feminino. Ela reconhecia,
107
pois, a diferença entre os sexos e a atribuição de cada um na organização social, ela não
confrontava isso, apenas criou novas condições dentro dessa situação.
Portanto, entendemos que D. Leonor via a educação em dois planos, primeiro, como
uma forma de emancipar a mente, depois, como mecanismo de progresso social. Enquanto
recurso emancipador, entendia o processo formativo como movimento gradual, que visava à
formação plena do indivíduo, envolvendo os aspectos intelectuais, morais, religiosos,
culturais, sociais e políticos. Prova disso são seus apontamentos quanto ao conhecimento de
ciências que realizou ainda no exílio conventual, quando pediu à filha que se lembrasse das
leituras de Fénelon, quando falou da dedicação de suas discípulas e, também, quando
evidenciou as ‘parvoíces’ (como ela própria se referia) daqueles que não se aplicavam aos
estudos (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941).
Olhando atentamente para esse quadro aqui descrito, podemos afirmar que não só o
pensamento educacional da marquesa de Alorna está mais à frente que o dos autores
apontados aqui, como, também, seu entendimento de sujeito, de indivíduo está mais refinado,
pois ela enxerga o indivíduo que habita o sujeito social, promotor de seus pensamentos e
ações, ao passo que Verney e Sanches veem o sujeito social que o indivíduo deveria ser.
Nesse sentido a sensibilidade e perspicácia feminina, associadas à sua construção
mental de sujeito (a), colocaram a marquesa de Alorna à frente de Verney e Sanches,
tornando-a uma pioneira66 no movimento de emancipação da mente feminina na sociedade
portuguesa. Dessa forma, sua concepção de mulher e de educação feminina será distinta da
expressa por Verney e Sanches. Por isso, enquanto eles pedem um programa de educação
feminina voltado para a mulher existente até então, com componentes curriculares restritos,
ela sugeria leitura de filósofos, economia de tempo para que tivesse disponibilidade para si e
para as coisas além das atribuições domésticas.
Enquanto Verney (1746) e Sanches (1760) sugeriam controle social sobre as mulheres
para que não perdessem tempo com leituras que não agregariam aos objetivos educacionais e
sociais estabelecidos, D. Leonor indicava cuidado com as relações e orientava condutas
interessantes para mulheres inteligentes. Enquanto eles solicitavam estabelecimentos de
educação para as fidalgas a fim de que estas se preparassem bem para exercer o posto de
primeiras educadoras dos filhos e boas esposas, ela oferecia educação para as meninas pobres
66 Pioneira porque se antecipou em idealizar um projeto educativo que vislumbrasse autonomia no pensar, propôs
leituras e programas de estudos, ainda que não institucionalizados, que ultrapassavam a questão da
profissionalização da mãe, da esposa e da dona da casa, como previam Verney e Sanches. Não resumiu as
relações sociais femininas a mexericos, ao contrário, nas cartas enviadas a sua filha, orientava para que esta não
se envolvesse em relações que possibilitassem esse tipo de comportamento. Incentivava as relações sociais que
pudessem agregar em conhecimento.
108
de Almerim em sua própria casa. Por fim, enquanto eles pensavam a mulher “sujeitada”,
Alcipe pensava na mulher ‘sujeita’.
Diante do exposto, podemos dizer que mulheres como D. Leonor, ainda que
aristocratas ou princesas, mesmo que, de certa forma, como afirmam alguns historiadores,
privilegiadas pela sua condição social, foram pioneiras na caminhada civilizacional, realizada,
como aponta Leal (1999), pela racionalização e psicologização67, procurando, por meio dessa
caminhada, estabelecer o convívio entre os sexos e, especialmente, subtrair o poder do senhor
(pai ou marido) por meio da submissão à força física, escondendo pela via dessa submissão a
tentativa e, por que não dizer, a iniciativa/ação ‘ardil’ de se impor pela força moral disfarçada
sob a aparente fragilidade. Essa ideia vem ao encontro do que propõe D. Leonor nas suas
orientações à filha que se casaria.
Isso nos leva a pensar que as mulheres encontraram, ainda no século XVIII, um jeito
de, dentro da condição determinada pelo seu sexo, manipular os elementos que as reduziam
ou lhes eram redutores enquanto indivíduos e em seu desenvolvimento pessoal, modificando
o quadro social, projetando nele uma nova imagem ou representação feminina. Ou seja, elas
mudaram sua própria concepção de mulher e, depois, a projetaram na sociedade.
Quantas mulheres deram início a esse movimento ou participaram dele em seus
respectivos países? Várias. Conhecemos só as que a história destacou. Outras tivemos que
buscar identificar em suas trajetórias de vida, como foi o caso da marquesa de Alorna.
Neste momento, não nos importa saber qual o número de mulheres que participaram
ativa ou efetivamente desse movimento, nem de quais classes sociais eram, se eram
contraditórias ou não, se advogaram em causa própria inicialmente ou não, ou seja, não
importa como ou qual foi sua motivação para tentarem se mobilizar, provocar mudanças em
sua condição de vida.
O importante é saber que existiram mulheres que se incomodaram com a situação
feminina, que não se calaram e procuraram atuar de alguma forma em seus cotidianos,
modificando sua própria imagem, sua concepção acerca do sexo feminino e buscaram meios
de se emanciparem mentalmente. E que esse movimento teve pioneiras, entre elas, D. Leonor,
que propiciaram outros movimentos posteriormente, provocando um desencadeamento de
67 O conceito de racionalização e psicologização, utilizado por Leal, está fundamentado na teoria do processo
civilizador de Nobert Elias que, para definir a direção do processo civilizador diz que é preciso que haja o
critério da mudança alterando o equilíbrio ente coerção externa (penalidades, punição etc) e autocoerção
(educação; civilidade, cortesia); é preciso que se penda para a autocoerção, pois quando a sociedade é civilizada
e educada, as punições são menos necessárias. Desenvolve-se assim, um padrão social de
comportamento/sentimento que produz autocontrole mais estável e diferenciado, além de um aumento na
identificação mútua de pessoas. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2012).
109
ações e situações que desembocou nas conquistas que vivenciamos hoje. Além disso, importa
saber que mulheres, como D. Leonor, se preocuparam com outras mulheres de classes sociais
distintas e manifestaram uma consciência crítica em relação à sociedade em que viviam e em
relação ao processo formativo feminino, mostrando, portanto, que a subalternização da
mulher se deu pela via social e econômica e não pela (in) capacidade de cada uma delas.
Dessa forma, é evidente que houve modificação na autoimagem feminina (D. Leonor é um
exemplo disso) e essa modificação veio por meio da tomada de consciência de algumas
mulheres quanto ao seu papel na sociedade e quanto às suas capacidades e poder de
contribuição social.
Também é evidente que a tomada de consciência feminina teve início com pioneiras
que perceberam, no processo formativo e na instrução, um meio para realizar um movimento
capaz de ‘reposicioná-las’ na sociedade, ainda que estejamos falando das mulheres da nobreza
que tiveram acesso à instrução, e não de todas, é possível ver nestas (nobres) esse movimento,
seja pelas mãos daquelas que puderam se dedicar às letras ou por meio das que dirigiram os
salões de suas casas, conduzindo as assembleias.
110
4. PRINCÍPIOS EDUCATIVOS FEMININOS EM MULHERES DO INÍCIO DO
SÉCULO XIX
Nesta última seção, pretendemos apresentar o novo perfil feminino que foi surgindo
no início do século XIX, motivado pelas mudanças na autoimagem feminina, provocadas
pelos princípios educativos nascentes no final do século XVIII, que impulsionaram as
mulheres a se reconhecerem como sujeitas de sua própria história, capazes de criarem e
desenvolverem projetos de vida próprios.
Todavia vale ressaltar que esse perfil, destacado por nós, não é o mesmo para todas as
mulheres daquele período, pois é preciso reconhecer que, conforme interpreta Hufton (1991),
isso ocorreu apenas entre as mulheres nobres e alfabetizadas que tiveram acesso à instrução.
Não foram todas que puderam contar com um processo educacional sistematizado, que
puderam instruir-se em conventos, realizar leituras variadas, ter contato com as artes, com a
música e com a literatura. Para as que não puderam atingir uma educação assim, restou a
educação doméstica, realizada apenas em casa e com objetivo de tornar essas mulheres as
futuras esposas, mães e donas de casa. A elas chegaram apenas os rudimentos da cultura e,
muitas vezes, nem isso,; dependendo da sua condição social, como destaca Hufton (1991, p.
27):
Enquanto filhas de pequenos rendeiros, de trabalhadores agrícolas ou de
ganhões, elas precisavam de poucas competências para além das que lhes
eram transmitidas pelas mães e que não iriam para além da aptidão para
coser ou fiar, ocupar-se de trabalhos agrícolas simples ou cuidar de crianças
mais novas.
Entre as mulheres da aristocracia, a realidade era um pouco diferente, mesmo
possuindo basicamente as mesmas funções na sociedade, elas tiveram acesso à educação e à
instrução, como nos foi possível perceber pela preocupação demonstrada por Verney (1746) e
Ribeiro Sanches (1760). Por meio dessas mulheres foi possível verificarmos a importância e o
papel da educação na modificação do pensamento feminino. Portanto, como procuramos
demonstrar ao longo deste trabalho, nossa investigação realiza um recorte na história das
mulheres e pinça um ‘tipo de mulher’ para o estudo, a nobre/aristocrata e alfabetizada.
Conforme já destacamos anteriormente, neste estudo selecionamos a marquesa de Alorna e
suas orientações maternais à filha que estava para se casar, registradas em cartas.
Dessa forma, retomaremos as cartas da marquesa para que, ao apresentar nossas
análises acerca de seus escritos e orientações, seja possível evidenciarmos que tais registros
111
demonstram, ao mesmo tempo, um novo perfil feminino e também um movimento educativo
em prol da emancipação da mente feminina.
O movimento realizado nesta seção elenca características desse novo perfil que nascia,
provavelmente ‘precursor’ dos futuros movimentos feministas de fins do século XIX e do
século XX, a partir das cartas da marquesa.
4.1. EDUCAÇÃO E CULTURA NAS MULHERES DAS LETRAS: O NASCIMENTO DA
MULHER ‘MODERNA’.
O século XVIII foi considerado, por alguns historiadores, ‘o século das mulheres’,
pois, como aponta Sonnet (1991), há preocupação com a educação feminina, expressa por
vários segmentos da sociedade. Preocupação essa que teve início em períodos anteriores,
envolvendo, inclusive, os reformadores católicos que, ainda na virada do século XVI para o
XVII, compreendem que uma educação para as mulheres pode significar um processo de
reconquista religiosa e moral da sociedade no seu conjunto.
Ela é a peça mais importante do dispositivo, visto que é chamada a transmitir
a boa nova hoje ensinada. Esta tomada de consciência dá um impulso
decisivo à generalização de uma instrução feminina que compreende pelo
menos a leitura e o catecismo (SONNET, 1991, p. 144).
Enquanto os reformadores católicos se debatiam com a instrução feminina na
perspectiva da reconquista religiosa e moral, as pessoas das letras colocavam-na de outra
forma. Nos salões literários da Europa, com relação aos ‘defeitos’ femininos, reprovados nas
mulheres, estes seriam resultados da falta de instrução. De qualquer maneira, como já
sinalizamos anteriormente, reconhecer às mulheres a necessidade de saber ler, escrever e
contar, ainda que em virtude da sua função social exclusivamente familiar e doméstica, abre,
mesmo assim, espaço para o acesso à cultura e, como afirma Sonnet (1991), “novos poderes”.
No que diz respeito à educação feminina, o século XVIII inclina-se para a educação
familiar, tendo garantia de bons resultados só nos meios privilegiados, já que esta era
basicamente ofertada em conventos e havia custo elevado para manter as meninas e as moças
internas desfrutando de uma educação mais apurada.
[...] o internato num convento custa os olhos da cara. Efectivamente, a
ausência ou a insignificância da fortuna da maior parte das famílias poupa as
112
raparigas ao claustro. Os preços praticados só permitem a entrada no
convento das filhas de uma ínfima franja de gente rica, aristocratas ou
grandes burgueses (SONNET, 1991, p. 157).
As moças que não dispunham de uma riqueza que lhes permitisse o acesso a uma
educação do nível descrito recorriam às escolas elementares, conhecidas como escolas de
‘caridade’ que assumiam esse público para formação rudimentar. De acordo com Sonnet
(1991), as escolas elementares podiam ser pagas ou gratuitas, rurais ou urbanas e abrangiam a
maior parte da população, atendendo a meninas e meninos. Nesses estabelecimentos de
ensino, as práticas educativas abarcavam os rudimentos da alfabetização e o saber contar. Não
ofertavam, portanto, uma formação mais apurada.
Ainda de acordo com Sonnet (1991), as moças da aristocracia recebiam uma educação
mais refinada que contemplava outros conhecimentos. Em casa, sob os cuidados de mestres
particulares ou no convento, internas temporárias, essas moças tinham acesso a uma instrução
que contava com um programa curricular contemplando história, geografia, matemática,
línguas como o latim, francês, inglês, música, arte, pintura, literatura etc. Ou seja, era uma
formação mais requintada e intelectualizada, permitindo às moças ampliar seus horizontes,
desenvolver suas capacidades cognitivas e, com isso, desenvolverem uma leitura mais acurada
da realidade em que estavam inseridas. O reflexo disso, sem dúvida alguma, seria a
construção de um perfil feminino diferente daquele proposto pela sociedade inicialmente,
quando se pensava na educação feminina.
A nosso ver, eram as filhas da aristocracia que demonstravam, primeiramente, uma
mudança de interesses, desejos pelo conhecimento e passaram a destacar-se nas artes, na
música, na pintura e nas letras. Quando começaram a se destacar, iniciaram também um
processo de promover certa influência sobre as outras mulheres, aos poucos foram se
tornando exemplos vivos da vida feminina em outros cenários que não mais o doméstico, o
familiar. E, também, exemplos de outras atuações sociais que não só de mães, esposas e
governantes do lar. Todavia cabe ressaltar que a educação ofertada às mulheres, em especial
os conventos, mesmo concebendo um programa curricular melhor que os rudimentos da
cultura desenvolvidos nas escolas elementares, ofereciam um saber limitado, devendo isso
ocorrer por vários fatores, entre eles, o pouco tempo destinado aos saberes escolares e o
acervo limitado de obras para estudo.
As mulheres que se destacaram na cultura, nas artes etc. tiveram que ir além do saber
ofertado, muitas acabavam recorrendo a livros vindos de fora do convento, como foi o caso da
marquesa que, em suas cartas destinadas ao pai no tempo da clausura, revelou o uso dessa
113
prática. O esforço foi recompensado, lentamente foram sendo reconhecidas pela sociedade de
seu tempo e suas produções foram atingindo o público, como também ocorreu com D. Leonor
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941).
Com essas considerações, realizadas a partir de nossas leituras e, principalmente,
levando em conta os relatos da marquesa quanto à importância da educação, entendemos que
esta foi, sem dúvida, um agente importante na construção de um novo perfil feminino.
Embora limitada e restrita a um público seleto, a educação agiu na modificação do
pensamento feminino e foi capaz de despertar a consciência das mulheres que a ela tiveram
acesso, quanto às suas capacidades, quanto ao seu potencial. Pela educação e pela instrução,
mulheres como D. Leonor puderam se reconhecer como sujeitas da história, como alguém que
poderia projetar sua própria vida e contribuir para que outras mulheres destituídas dessas
possibilidades pudessem também passar por esse despertar. Essa situação, com certeza, revela
um perfil distinto do desenhado para as mulheres até então. Podemos inferir que esse seria um
perfil da ‘mulher moderna’, portanto, D. Leonor se enquadraria nesse perfil, D. Leonor seria o
retrato da ‘mulher moderna’.
E, enquanto uma mulher moderna68, denunciava a frivolidade e a inconsistência das
formas de emprego do tempo, tradicionalmente proposta às jovens. Daí, talvez, viesse a
preocupação em orientar sua filha quanto à economia ‘bem sucedida’. Também, talvez fosse
por conta disso que ela se preocupava com a educação da filha, pois desejava uma educação
para ela própria e não apenas, como aponta Sonnet (1991, p. 151), “[...] para tornar a sua
presença agradável aos que a rodeiam [...] para o prazer e o bem-estar do marido e dos filhos.”
Nesse sentido, na análise que procedemos nesta tese, podemos evidenciar que as
cartas escritas por D. Leonor representam o nascer de uma nova forma de pensar das
mulheres, expressam a fina percepção quanto à importância de possuir conhecimento, de
realizar leituras que contribuam para desenvolver a reflexão, demonstram a consciência
feminina despertando para a condução da própria vida, evidenciam o interesse em ocupar o
tempo com relações que agregam para o progresso individual e familiar, com assuntos que
contribuem para o crescimento intelectual.
68 Estamos denominando mulher moderna aquela, que a partir de nossas leituras e estudos, (SILVEIRA, 2014),
(GODOY; COSTA, 2017), (ZINANI, 2014), (RAGO,2002) e (SCOTT, 1988) concebemos como quem
apresenta uma racionalidade superior à superficialidade dos estereótipos femininos, descritos para a maioria das
mulheres do século XVIII. Aquela que procura se expressar enquanto indivíduo e não como uma extensão do
masculino. Aquela que possui uma força interior que lhe enaltece o espírito e, mesmo atuando no espaço que lhe
era definido, fazia-o sob seus próprios termos. Aquela que, pelo conhecimento, busca a consciência. Enfim,
aquela que se diferencia dos padrões ‘oficiais’ de feminino, de mulher.
114
Conforme a marquesa vai evoluindo em sua escrita e apresentando orientações
envolvendo temáticas como economia de tempo69, como selecionar as relações e evitar
pessoas que em nada agregam70, só estabelecendo mexericos e intrigas, vai demonstrando o
discernimento na eleição de coisas, situações e pessoas que podem ocupar o tempo da mulher.
Ao demonstrar discernimento, evidencia que, ao contrário do que apresentavam Verney
(1746) e Sanches (1760) quanto aos interesses das fidalgas, as mulheres, em especial as
aristocratas, as damas, não estavam mais, pelo menos não em sua totalidade, disponibilizando
seu tempo para mexericos ou assuntos apenas vinculados à moda ou de caráter frívolo.
Aquelas que fizeram uso ativo da sua formação, que aderiram às leituras que acrescem o
intelecto, que vivenciaram de fato o contato com a arte, a música e a poesia, desenvolveram
interesses diferentes aos que permeavam as preocupações dos autores.
Entretanto, ao realizar essas considerações, não estamos afirmando que não havia
mulheres dessa mesma classe social, ou de outras, que manifestavam interesses por questões
frívolas, como justificaram Verney (1746) e Sanches (1760), para elencar o currículo da
educação feminina, pois, se assim o fosse, não haveria tal preocupação. O que queremos
evidenciar é que havia mulheres que já não se interessavam mais por essas questões, que, por
efeito do acesso e aproveitamento da instrução, desenvolviam novos interesses, manifestavam
sensibilidade para o mundo das letras, ocupando-se da leitura e produção de poesias e
poemas, da pintura, da arte. Direcionavam seu tempo para ocupações diferentes, ainda que
conciliando com as atividades de administração do lar, passaram a ler filósofos, escritores da
arte, poetas, e cada nova leitura, novas características estavam sendo incorporadas por essas
damas.
O próprio ato de organizar as assembleias, selecionar os poemas, as músicas de acordo
com cada público demonstrava a percepção necessária para tal seleção. As críticas políticas,
realizadas sutilmente nessas sessões, exprimiam uma ‘personalidade autônoma’. Como
exemplo disso, temos a própria D. Leonor que, em sua mocidade no convento, ao participar
dos outeiros, selecionava cuidadosamente as poesias que recitaria, como na passagem na carta
que enviara a seu pai, intitulada ‘Uma tertúlia de locutório”, na qual procedia uma avaliação
de seu próprio trabalho, conforme segue abaixo:
[...] me tenho proposto uma grande obra, vendo que até agora não tenho feito
cousa que mereça maior consideração e que tudo quanto escrevo é de uma
69 Quadro 1 desse trabalho, pp. 82-83. Carta 2ª ‘Questão de economia de tempo’. 70 Quadro 1 desse trabalho, pp. 83. Carta 6ª ‘As elações sociais e as influências’.
115
ordem e de um carácter que limita fortemente o entendimento. Resolvi-me a
intentar (pelo gosto de Young) um poema sobre a Morte; e se acaso a solfa
corresponder à letra que tenho disposta, não ficará ofensiva dos ouvidos.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 23.).
Podemos, portanto, afirmar que ela própria representou esse novo perfil, pela sua
forma de pensar, pelas reflexões que realizava e pelas críticas que elaborava, utilizando-se do
conhecimento que recebera.
D. Leonor, no tempo de clausura, já demonstrava o despontar desse perfil, fosse pela
participação nos outeiros ou, como podemos ver em várias passagens das cartas que enviava
ao seu pai, apresentando reflexões que realizava em torno dos acontecimentos que
presenciava ou quando tomava conhecimento do ocorrido71. Um bom exemplo disso é visto
na carta enviada ao seu pai, a qual tratava sobre os outeiros e a cultura feminina entre a
nobreza. Nessa correspondência, ao comentar sobre as passagens de dois cometas, fez uma
crítica ‘ácida’ às explicações dos padres acerca dos cometas, revelando que ela possuía
leituras e fontes que lhe garantiam um conhecimento válido para discordar das fontes
utilizadas pelos padres. Isso já demonstrava seu potencial crítico, o conhecimento que vinha
adquirindo e uma característica ‘nova’ às mulheres daquele tempo, a ‘autonomia de
pensamento’ e a ‘ousadia’ em expor o que pensava. Vejamos tal passagem:
As novidades que há por cá são dois cometas que aparecem, um formidável
para o Oriente e outro mais pequeno para o Ocidente. Tem ido um grande
motim de prognósticos e parvoíces, porque uns vêem espadas no cometa,
outros, mãos, outros círculos na cauda; houve quem segurasse tinha lido um
letreiro, e outros são tão estonteados que, sendo ele grandíssimo,
absolutamente não vêem. [...] Os frades, que o observam com seu moral e
teologia, muito me desinteressam, e há poucos dias o mundo veio abaixo
sobre mim, porque me disseram que um muito douto fora buscar as obras de
Santo Agostinho, para poder falar no cometa. Respondi eu a isto que me
parecia, se ele não tinha outras luzes, que estava totalmente impossibilitado,
porque me parecia que Santo Agostinho não era tido pelo melhor astrónomo;
que do seu tempo para cá havia cousas muito interessantes para quem queria
alguma instrução nessa matéria [...] Preguntaram-me se queria eu afectar ou
me persuadia que sabia mais que Santo Agostinho. Respondi que não, mas
que tinha a certeza que sabia algumas cousas modernas que o Santo nesse
tempo só como espírito profético podia saber que se haviam estabelecer.
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p.7-8).
71 Referimo-nos à carta intitulada ‘Os outeiros poéticos. A cultura feminina entre a nobreza. Discussão sobre dois
cometas’, mencionada no Quadro 1 deste trabalho, p. 88, e uma das passagens se encontra acima (sobre os
cometas).
116
Portanto, retomar às cartas72 da marquesa, sejam elas as enviadas durante o exílio
conventual ou as posteriores, já na sua fase adulta enquanto mãe, é uma forma de
visualizarmos a construção, progressiva, desse novo perfil feminino. As cartas são “[...] um
conjunto de documentos expressivos de um espírito rico de tantos aspectos e animado de tal
bulício, que fazem dele o mais representativo do seu tempo” (CIDADE, 1941, p. XLV –
XLVI - prefácio), ou seja, expressam perfeitamente tal processo, pois as
[...] cartas de D. Leonor de Almeida realizam, sem modelos anteriores nem
sugestões alheias, esse tipo de comunicação [...]. A nota irônica ou áspera; a
efusão de ternura ou a exposição política; a simples narrativa, tanto como a
eloquência que é apenas a vibração mais tensa dum sentimento – tudo ocorre
a uma pena mais do que nenhuma até então [...] (CIDADE, 1941, p. XLVI –
XLVII, prefácio).
Assim, nossa análise demonstra que, associando as orientações educacionais
(expressas nas cartas destinadas à filha) ao novo perfil de mulher nascente na sociedade dos
primeiros anos do século XIX, encontramos indícios de como D. Leonor, de forma
precursora, contribuiu no processo de emancipação feminina e na educação das mulheres.
Não só pela formação que proporcionou às suas filhas, mas também às outras mulheres que
recebera em sua própria casa, ofertando-lhes educação e preparação para a vida fora da tutela
masculina. Isso, a nossos olhos, possui caráter inovador para a época e nos faz olhar para a
marquesa vendo-a como uma mulher moderna que levou às mulheres, destituídas da
possibilidade de ter acesso a uma educação apurada, cultura, conhecimento, meios de
raciocinar por si próprias.
As cartas à filha diretamente não alcançaram muitas mulheres na época em que foram
escritas, apenas no início do século XIX, conforme informação do curador da Fundação das
Casas de Fronteira e Alorna após a catalogação das mesmas na própria Fundação73. No
entanto suas orientações extrapolaram essas cartas, pois a própria marquesa fazia uso delas
nas aulas que ministrava em sua casa para as moças de Almerim.
Dessa forma, podemos dizer que suas orientações atingiram um número significativo
para a época entre as mulheres, extrapolando, inclusive, sua casta social. Portanto,
72 As cartas à filha só foram publicadas após sua morte, quando suas filhas trataram de reunir todos seus escritos,
separando-os e classificando-os em poemas, poesias, odes, traduções que realizou de várias obras e, claro, suas
cartas. Então, no ano de 1844, sob o nome da marquesa, publicaram parte desse material, sendo assim possível
que o público tivesse acesso a este. Contudo as cartas destinadas à filha, esse conjunto de seis que neste trabalho
estudamos, foram catalogadas posteriormente por volta dos anos finais do século XIX sob a responsabilidade da
Fundação das Casas dos Fronteiras e Alorna, hoje um arquivo das duas famílias, Fronteira (família do marido da
filha Leonor) e Alorna. 73 Informação colhida em visita a esse espaço em julho de 2017.
117
entendemos que foi uma agente influenciadora na construção do pensar das mulheres daquele
momento. Um exemplo de sua influência na formação das mulheres ocorreu com sua irmã,
parceira de exílio conventual e nos estudos, que, pela descrição da própria D. Leonor, se
mostrou alguém que se enquadra nesse ‘novo perfil’ feminino, cujas características poderiam
enquadrá-la como uma ‘mulher moderna’. Sobre sua irmã, ao referir-se ao futuro marido
desta, D. Leonor afirma:
Eu o julgo o homem mais feliz do mundo todo. Será bem difícil encontrar no
tempo presente uma rapariga nas circunstâncias da mana, porque, ainda que
se podem achar muitas damas, nenhuma tão linda. Não se encontra com
facilidade uma mulher completamente estimável, e a mana, sem perder
nenhuma delicadeza daquelas que constituem uma lindíssima, galantíssima e
perfeitíssima dama, tem demais as qualidades, que devem adornar uma
mulher forte e capaz de sérias reflexões que exige o estado para que V. Exª e
Providência a destinaram. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud
CIDADE, 1941, p. 3).
Vemos, nessa passagem, que D. Leonor valorizava a capacidade de realizar reflexões nas
mulheres, provavelmente porque isso significava não só aquisição do conhecimento, mas
também a habilidade de saber utilizá-lo em situações diferentes daquela em que foram
adquiridos. O valor disso está no que representa, ou seja, nas características que as mulheres
começavam a adquirir, demonstrando novas ações, carregadas de ‘personalidade’, de vontade
própria. As mulheres que elaboravam recursos internos importantes para se tornarem sujeitas
do seu próprio projeto de vida. Em várias passagens das cartas redigidas ainda no convento, a
marquesa evidencia a importância de se possuir conhecimento.
Leio, e, nos intervalos da lição, converso como cerqueiro ou hortelão, por
outro nome, que é um velho com a simplicidade dos do campo, de poucas e
boas ideias, convenientes ao seu estado, e que, depois de uma longa carreira,
se admira de que uma rapariga delicada lhe possa dar lições do seu ofício.
Ouve-me com muita atenção, pede-me grandes certezas da verdade que eu
lhe ensino, para não perder seu tempo com experiências inúteis, e propõem-
se verificar, no pequeno terreno que cultiva, o que lhe ensino para o
fertilizar. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 52 -
53).
Essa passagem também ilustra que D. Leonor lia, além dos filósofos e poetas, autores
sobre botânica, tanto que ela escreveu uma poesia sobre essa temática já na sua fase adulta,
expressando conhecimento na área e sensibilidade poética para retratar tal conhecimento.
Acerca da botânica na forma poética, escreveu a obra intitulada Recreações Botânicas, poema
original em seis cantos, da qual reproduzimos um dos versos:
118
As labiadas são familia illustre
Que a Natureza distinguiu vaidosa,
Pela forma do calix, pelas bracteas,
Pela corolla as reconhece as eschola.
Destas plantas cheirosas as virtudes.
Combatem as tristezas, a dôr, e a morte [...]. (MARQUESA DE ALORNA,
1844, Tomo IV p. 348).
A educação de D. Leonor foi um recurso precioso na construção da mulher que ela se
tornou, na composição da sua personalidade forte e determinada, ela mesma reconhece isso
em seus diálogos com seu pai por meio das cartas, quando comenta que sua erudição é pelo
seu encerramento no convento, pois, uma vez lá, a formação se tornara sua melhor ocupação.
Com relação a estadia dela no convento e ao seu processo formativo, Ribeiro (2002) ressalta
que, mesmo o objetivo de Pombal sendo trancafiá-la para diminuir o poder e o status que a
nobreza detinha, acabou por contribuir para a formação de D. Leonor, dotando-a,
indiretamente, dos recursos necessários para aumentar a erudição desta e, com ela, sua
‘emancipação’ que mais tarde se estenderia a outras mulheres. Nas palavras de Ribeiro (2002,
p. 82) lemos: “[...] a prisão revelou-se um local onde foi possível aumentar a erudição e com
ela a emancipação dessas mulheres”.
Com essa assertiva de Ribeiro (2002), confirmamos nossa hipótese quanto à educação
ter sido uma ferramenta para o desenvolvimento da autoconsciência feminina e esta enquanto
um recurso para o processo de emancipação. Já as ações da Marquesa de Alorna em prol da
valorização do conhecimento e na promoção de educação a outras mulheres comprovam seu
caráter pioneiro no processo de emancipação destas.
Retomando as cartas endereçadas a sua filha, procuraremos destacar as orientações de
D. Leonor que contribuíram para o nascer de um perfil feminino distinto do que se via ainda
por aqueles tempos. Tomamos a primeira carta, intitulada Os deveres da dona de casa. Nesta
carta, D. Leonor inicia suas orientações, seria a primeira etapa de um processo formativo,
organizado em três blocos, dispostos em seis cartas. Estamos denominando de blocos porque
D. Leonor estabelece temáticas e as ordena, agrupando-as por grau de importância e uso, ao
que parece. Assim, temos um bloco abordando os deveres da dona de casa (primeira carta);
um bloco tratando da economia que se subdivide em três tópicos (economia de tempo,
economia de espaço, economia doméstica – segunda, terceira e quarta cartas); e, por fim, o
último bloco abordando a questão da conduta nas relações sociais e na seleção de conviveres
(quinta e sexta cartas).
119
Nesse primeiro bloco, primeira carta, D. Leonor74 se utiliza do que seriam as
atribuições na condução de uma casa, para abordar questões importantes, relativas à felicidade
feminina. Ela inicia buscando a memória da filha quanto à educação que recebeu em sua
formação, faz isso com o intuito de justificar porque não se deterá meramente aos deveres da
dona de casa. A mãe sugere que a educação que a filha recebeu e, portanto, os atributos e
conhecimentos que ela teria desenvolvido nesse processo formativo são satisfatórios para que
ela saiba que tais tarefas não precisam ser esmiuçadas, pois seriam simples para tomar tanto
tempo nas orientações maternas; além disso, as atividades de governo da casa já estavam
expressas pela sociedade e suficientemente internalizadas na medida exata das suas
necessidades e responsabilidades. Ou seja, há outras orientações mais necessárias que darão
conta do governo doméstico e seriam mais bem aproveitadas para outros aspectos da vida.
Considerando essas questões, D. Leonor deixa claro que os deveres existem, devem
ser cumpridos, devem existir certa dedicação e cuidado, mas as mulheres não devem reduzir a
existência feminina a eles. O que caberia atenção nesse momento é não a mulher se deixar
levar e envolver-se totalmente por essas tarefas ou outras que não agregam tanto sabor à vida.
Mas também não se pode navegar nas embarcações dos divertimentos frívolos, são
necessários ponderação e discernimento que se materializam por meio do uso adequado do
conceito de economia.
[...] os prazeres de cada estado devem distinguir-se, calcular-se e escolher-
se; que se devem proporcionar com grande atenção ao tempo e às
circunstâncias, e que a arte de aumentá-los é regular de um modo
invariável as obrigações, para conceder ao recreio as horas necessárias do
descanso. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p..78)
Com essa recomendação, ela orienta que é preciso saber regular as atividades, não se
deixar tomar nem pelas obrigações, totalmente, nem pelos divertimentos frívolos. É preciso
regular o tempo destinado a cada coisa, pois isso combateria o risco de se envolver totalmente
nesse contexto e, ainda, possibilitaria o estabelecimento de condições favoráveis à
manutenção da erudição, bem como na seleção das relações sociais. A partir dessa
recomendação, D. Leonor passa a tratar do elemento chave para desempenhar tal empreitada
que, para ela, seria sinônimo de felicidade: “[...] buscaremos a origem de toda a felicidade na
economia bem entendida [...]”. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p.
79).
74 Carta de número ‘um’, intitulada ‘Os deveres da dona de casa’, mencionada no Quadro 1 deste trabalho, p. 89.
120
Com esse argumento de D. Leonor, é fatível inferirmos que sua preocupação de mãe
não residia no governo da casa em si, ou mesmo na conduta esperada para a mulher casada,
mãe de família. Sua preocupação jazia em evitar que sua filha mergulhasse na rotina de dona
de casa, esquecendo-se de quem era enquanto indivíduo, enquanto sujeita. Por isso, ressaltava
que era preciso saber desempenhar um bom governo doméstico. Por governo doméstico,
podemos entender um governo prático, objetivo e eficaz que não ocupasse nem preocupasse a
dona de casa, restringindo a vida desta a tais atividades. Com isso, D. Leonor passa, em sua
segunda carta75, a tratar da economia como um mecanismo capaz de proporcionar um bom
governo doméstico, sem que isso seja a função única da mulher.
É interessante notar a ‘didática’ da marquesa ao utilizar questões do cotidiano da
mulher, como os deveres de dona de casa, para exercitar a reflexão sobre as ações, o uso
adequado do tempo e a seleção das coisas ou circunstâncias que venham a valer a pena e
contribuir, de alguma forma, para o crescimento da mulher. Dessa forma, não haveria nada de
desconhecido no cenário estabelecido para a aprendizagem, não haveria nada que causasse
estranheza e isso facilitaria o entendimento da proposta da mãe. Notamos, em cada
orientação, a suavidade com que apresenta as ideias ‘inovadoras’ como a questão da
economia bem entendida, a forma como constrói a argumentação em torno da economia como
algo capaz de trazer felicidade à dona de casa, mostrando os benefícios disso para o uso do
tempo, exemplificando, inclusive, no que poderia ser empregado o tempo de forma útil à
mulher (filha).
Acerca do tempo, D. Leonor inicia suas orientações conceituando o que seria ‘tempo’,
demonstra de forma clara, afirmando que é uma sucessão de instantes calculados e reduzidos
pelos homens afim de buscarem uma relação útil entre ações desenvolvidas e bom emprego
do tempo despendido à elas, de forma a obterem benefícios no desempenho das mesmas.
Notamos que, ao conceituar ‘tempo’, a marquesa deseja conduzir sua argumentação
de forma que a filha perceba que a economia de tempo pode lhe resultar no bom emprego de
seus atos, na agilidade do cumprimento de seus deveres, sem necessitar tomar-se deles o dia
todo, o que a levaria justamente ao que a mãe gostaria de evitar, uma possível ‘alienação’,
produzida pela redução de seus movimentos às questões domésticas. Prova disso é a
orientação que vem na sequência da definição de ‘tempo’: “Uma mãe de família necessita de
tempo para [...] a cultura dos seus talentos, penhores sagrados que deve transmitir a seus
filhos” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 80). Como cultura dos
75 Carta de número ‘dois’, intitulada ‘Questão de economia/economia de tempo’, mencionada no Quadro 1 deste
trabalho, p. 89.
121
seus talentos, entendemos como conhecimentos, como podemos ver em outra passagem da
mesma carta, quando D. Leonor orienta que “[...] deve uma senhora ler ou estudar aquela
matéria que mais lhe importa saber [...]” (op. Cit. p. 81).
Nesse sentido, saber compreender o conceito de tempo e a ideia de economia bem
entendida seriam recursos valiosos para que as mulheres pudessem cultivar o hábito da
leitura, da meditação e, com isso, não restringir seu cotidiano ao espaço da casa, ao contrário,
ampliar sua capacidade de leitura da realidade e seu espaço de atuação na sociedade. A ideia
de aliar economia bem entendida à ideia de felicidade, a nosso ver, foi genial, pois cria um
mecanismo para abrir espaço entre as atividades do governo da casa e os interesses pessoais
das mulheres, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento da identidade da mulher,
possibilitando-lhe ser ‘ela mesma’, sendo uma mulher casada, isto é, conviver com outros
(marido e filhos) sem deixar de ser ela própria, ou, ainda, ser indivíduo e não extensão do
masculino.
Compreendida ou, pelo menos, explicada a concepção de economia bem entendida e o
conceito de tempo, D. Leonor passa à próxima orientação, a economia de espaço que,
segundo sua ‘didática’, viria na sequência, complementando o entendimento do que seria
economia bem entendida. Envia, então, a terceira carta. Nessa carta, a mãe inicia a orientação,
realizando uma associação do conceito de economia de espaço com economia de tempo.
O espaço deve ser considerado, a respeito dos pontos nas três dimensões,
como os instantes no tempo; e nesta consideração vem a ser o espaço uma
sucessão de pontos de linhas e de superfícies, de que se deve ter a idéia para
acomodar todos os objetos que nos importa conter. Partindo deste princípio,
devemos tirar o mesmo resultado do tempo, isto é: que a perda de muitos
pontos ou linhas no espaço produz desordem e desarranjo no governo de
uma casa. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 84).
A lógica aplicada por D. Leonor demonstra sua capacidade, seus conhecimentos que
alcançam várias áreas do saber, também apresenta sua capacidade de associar ideias e
estabelecer exemplos, evidenciando os bons resultados de sua formação. Assim, podemos
dizer que, pelas suas ações e pelas orientações que ela destina a sua filha, ela própria é
exemplo do que a instrução pode fazer pelo desenvolvimento do indivíduo, ou seja, a
educação é o caminho para que as pessoas possam descobrir outras formas de ver o universo
em que estão imersas, criar instrumentos para melhorar sua performance no ambiente em que
estão inseridas e, principalmente, para ampliar seus horizontes, modificando sua forma de ver
122
e viver o e no mundo, desconstrói concepções e estabelece outros parâmetros para novas
elaborações mentais, para a construção de conceitos.
Nesse sentido, a educação, conforme a teoria histórico-cultural que nos auxilia nessa
compreensão, é uma ferramenta que alavanca o desenvolvimento humano, pois proporciona
condições e oferece elementos capazes de promover no sujeito uma transformação no seu
pensar e no seu agir. Ao criar as condições de aprendizagem, estabelece também caminhos
para o desenvolvimento humano e, ao propor essa relação, contribui na formação das funções
psicológicas superiores, possibilitando ao indivíduo, como aponta Vigotski (2000, p. 326),
uma “tomada de consciência”. Nessa perspectiva, como afirma Luria (1991), a consciência é
compreendida como uma forma superiora ou elevada de reflexão acerca da realidade.
Evidentemente que não estamos dizendo, com essas considerações, que D. Leonor
vislumbrava a educação nessa perspectiva ou com tal propriedade sobre o processo educativo,
mas podemos afirmar que, mesmo não tendo conhecimento específico acerca do processo
formativo, menos ainda o sistematizado, D. Leonor foi capaz de perceber o quanto a educação
poderia fazer diferença no processo de tomada de consciência feminina.
Diante das considerações a respeito da educação e da relação aprendizagem e
desenvolvimento, enfatizamos que entendemos a educação nessa perspectiva e foi utilizando
essa concepção de educação, aprendizagem e desenvolvimento humano que chegamos à
conclusão de que a instrução e /ou o processo formativo foi fundamental para que algumas
mulheres (as que tiveram acesso à instrução) pudessem alcançar essa “tomada de consciência”
que entendemos aqui como emancipação da mente ou do pensamento feminino e, a partir dela
e com ela, pudessem se reconhecer como alguém com identidade própria, com desejos
próprios, vontades, interesses individuais, dissociados de suas funções de esposa, mãe e dona
de casa. Foi esse despertar que promoveu a mudança na autoimagem feminina. O conjunto
dessas modificações produziram um novo perfil de mulher, diferente daquele estabelecido no
século XVIII e promotor do perfil que veremos nos séculos XIX e XX na luta pelos direitos
das mulheres.
Podemos sublinhar, talvez de forma até ousada, que D. Leonor buscava isso quando
registrou suas orientações, que vemos aqui como princípios educativos. Ela buscava essa
“tomada de consciência”, uma forma de alcançar autonomia, emancipação humana, nesse
caso, feminina. Por isso, desdobrava-se para se fazer entendida por sua filha, procurando, no
cenário conhecido, estabelecer meios de explicar e evidenciar a importância de manter a
busca pelo conhecimento, de se tornar uma mulher capaz de conciliar suas atividades de modo
a poder executar outras ações de interesse próprio.
123
E nesse caminho continuam suas orientações quanto à economia de espaço, tratando
da organização da casa, da arrumação e, nesse item, aborda uma questão não muito comum
naqueles tempos para os costumes da aristocracia, que era não buscar a ostentação. Acerca
disso D. Leonor orienta que
O fanatismo tem estabelecido na maior das câmaras, em Portugal, oratório,
aonde até se diz missa [...] para justificar este excesso, alegam as beatas a
bondade divina [...] mas isto é parvoíce. Porque Deus criador de tudo
também escusa as cousas exteriores, e um coração puro, paciência e decência
são mais próprios ornamentos de uma câmara para honrar Deus [...].
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE 1941, p. 84 – 85.).
Isso também nos serve como uma evidência ou indicativo de outra forma de pensar
das mulheres, que começavam a valorizar outros tipos de posses. Mostrava um despertar para
o simples, para o necessário. Ou seja, a exemplo do movimento de valorizar mais a
inteligência e o conhecimento do que a beleza, essa visão de se ter o necessário representa
novos interesses. Talvez, o ‘ter’ aqui não tivesse mais a mesma importância que outrora,
quando expor grandes espaços e mobília luxuosa representava ‘poder’ feminino como único
espaço de domínio das mulheres. Talvez, elas começassem a buscar outros domínios ou
domínios de outras coisas.
Na sequência das orientações quanto à economia de espaço, D. Leonor informa que,
na próxima carta76, tratará do último item da economia bem entendida que deverá ser a
economia doméstica. E, então, envia a quarta carta.
Nessa carta, inicia tratando dos criados, da contratação desses e das atribuições de
cada um no funcionamento da casa. Ao tratar dos criados, faz uma referência que reforça a
ideia da carta anterior quanto ao aspecto da ostentação. D. Leonor discorre sobre o número de
criados que uma casa deve ter para um bom funcionamento. Sobre esse item, ela afirma que
Em Portugal há o costume de ter por ostentação um grande número de
criados e criadas e, ordinariamente, tanto cresce a família, quanto diminui a
perfeição do serviço. [...] O menor número possível de criados é sempre o
mais conveniente à perfeição do serviço. (MARQUESA DE ALORNA,
1844 apud CIDADE, 1941, p. 87).
Contudo é válido ressaltar que, embora ela orientasse para que não se tivesse um
número elevado de criados e criadas, D. Leonor enfatizava que isso não significaria servidão
76 Referimo-nos à carta de número ‘quatro’, intitulada ‘Economia doméstica’, mencionada no Quadro 1 deste
trabalho, p. 89.
124
por parte deles, ao contrário, era preciso que tivessem descanso e fossem vistos como filhos,
sendo, portanto, necessário dirigir-lhes amor e proporcionar-lhes felicidade. Isso por duas
razões: pelo aspecto humano e cristão e porque, dessa forma, seria possível contar com a
gratidão e a lealdade deles no cumprimento dos seus deveres. Mas alertava que, mesmo
contando com a gratidão e a lealdade, era preciso atenção às questões de ordem financeira e
seria dever da filha, enquanto dona da casa, acompanhar todos os gastos e compras da casa,
ainda que tivesse “[...] um mordomo o qual seja inteligente e probo” (Op. Cit. p. 88). Seria de
responsabilidade dela (da filha) conferir os livros de registro das despesas, das compras e dos
pagamentos. Nesse tópico percebemos a necessidade das mulheres possuírem conhecimentos
matemáticos ou contábil porque a explicação que segue acerca dessa conferência demonstra o
uso de conhecimentos dessa ordem:
Soma-se o livro do mordomo e marca-se a soma da semana; depois de cada
uma das tabelas, a soma dada por cada oficial; compara-se as duas somas, e
logo se vê se são justas. É obra de dois minutos, e conserva a ordem. No fim
de cada mês, deve destinar-se uma hora para examinar individualmente o
preço dos gêneros, compará-los com do correio mercantil, e, se houver
excesso, corrigi-lo. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE,
1941, p. 88).
Como é possível notar, as atribuições no governo da casa eram muitas e necessitavam
de boa organização de tempo e conhecimentos básicos, e, se a mulher não estivesse a par
dessas tarefas e não fizesse uso da economia bem entendida, provavelmente ficaria imersa nas
tarefas da casa e, com pouco tempo nessa função, perderia de vista seus interesses próprios,
sua identidade individual e ficaria à sombra do marido e por conta da casa e dos filhos. Isso
justifica toda a preocupação de D. Leonor em relação às economias de tempo, de espaço e
doméstica. Também explica porque ela subliminarmente conferia à economia o sinônimo de
felicidade.
D. Leonor encerra sua quarta carta afirmando que,
Tendo V. bem presentes todos os artigos que formam o plano da economia
do tempo, da economia do espaço e da economia doméstica, conseguirá sem
dúvida formalizar um bom governo bem regulado da casa. (MARQUESA
DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 88).
Com essa carta D. Leonor conclui seu segundo bloco de orientações que tratavam da
‘segunda temática’, a economia bem entendida. Passa, então, a tratar da sua última temática
125
que diz respeitos às relações sociais e das amizades, para tanto, envia suas duas últimas cartas,
a quinta e a sexta.
A marquesa (1844, apud CIDADE, 1941, p. 89) inicia sua quinta carta afirmando que
“nada há mais decente que uma assembleia composta de companhia escolhida”, com essa
assertiva propõe que a filha saiba escolher suas amizades e, mais que isso, saiba se relacionar
com as pessoas conforme as características ou reputação destas, procurando evitar envolver-se
em um círculo de pessoas que cultivem distrações fúteis e que exprimam opiniões insensatas.
Notamos que D. Leonor, ao tratar dessas temáticas, procura mostrar que é preciso evitar
aquilo que não agrega positivamente à vida, ao intelecto e que pode trazer problemas ou
situações difíceis desnecessárias. A impressão que temos é de que D. Leonor dirige à vida um
‘olhar prático’ e objetivo que busca simplificar as tarefas cotidianas, otimizar o tempo gasto
nelas para que possa se ocupar de coisas, situações e relações que ‘valham a pena’, que
tragam benefícios de alguma forma. Não vemos isso de forma oportunista, mas sim de forma
consciente do que se deve priorizar na vida para se viver em um estado de felicidade.
No que concerne à felicidade feminina, entendemos que a marquesa a concebe como
algo a ser alcançado na prática das atividades domésticas e essas seriam apenas tarefas,
atribuições a serem desenvolvidas. Essa felicidade pode e deve ser alcançada na apreciação de
si própria, em suas realizações pessoais, no desenvolvimento das próprias potencialidades, na
dinâmica pessoal. Ou, como ela própria diz: “[...]ignorais acaso que há uma alegria suave e
recolhida, que satisfaz sempre a alma e nunca a desgosta do prazer de estimar-se a si mesma?”
(MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 90.).
Acreditamos que isso seria a expressão da tomada da autoconsciência, do
entendimento de que é possível ter uma identidade própria, seria a materialização do despertar
da crença na potencialidade individual feminina. Elementos essenciais para o desenrolar de
um processo de transformação do (a) sujeito (a), que resultarão na construção de um novo
perfil, isto é, de uma pessoa diferente daquela que existia até então, o indivíduo se desconstrói
e se reconstrói em alguém mais ‘evoluído’ do que seu estágio anterior, essa transformação do
(a) sujeito (a) se torna possível, porque mexe com as estruturas psíquicas superiores,
modificando sua formação inicial e estabelecendo uma nova base formativa, que acreditamos
ser capaz de proporcionar uma nova visão de si. Ou, nas palavras de Vigotski (2000, p. 326),
“[...] a tomada de consciência e a apreensão são essa base comum a todas as funções psíquicas
superiores cujo desenvolvimento constitui a nova formação básica”.
O contrário desse movimento, ou dessa situação, ou ainda a simples adesão à
expectativa de aprendizagem depositada pela sociedade dos Setecentos sobre as mulheres
126
seria o que Elias (1994) explica acerca da conduta estabelecida pelo controle que a educação
pode exercer sobre o indivíduo atuando na sua forma de ser nas relações humanas, afetando a
estrutura da sua personalidade, agindo no controle do seu comportamento, provocando-lhe,
também, o autocontrole. Nessa perspectiva as pessoas acabam sendo obrigadas a terem uma
conduta determinada na sociedade e, com isso, ocorre controle social, nada mais sendo que a
observação de um sobre o outro.
No caso das mulheres daquele período, o tipo de educação proposto por Verney (1746)
e Ribeiro Sanches (1760), na perspectiva da ‘profissionalização’ da dona de casa, da mãe e
esposa, agiria, a nosso ver no sentido interpretado por Elias (1994), ou seja, seria um
mecanismo de controle social e definição de comportamentos para que se vivencie um projeto
de sociedade vislumbrado.
É justamente na identificação dessas diferenças entre os princípios educativos,
expressos por D. Leonor, e o projeto educativo proposto por Verney (1746) e Ribeiro Sanches
(1760) que encontramos mais um indicativo de mudanças no pensar das mulheres, naquele
momento em especial, emitido pela marquesa, ao desvalorizar alguns comportamentos sociais
da época como divertimentos frívolos, sem nada a agregar, ostentações desnecessárias e, no
combate a isso, demonstrar sua opinião a respeito, de modo a justificar suas orientações,
como na seguinte passagem: “um tropel de reflexões vem ocupar o meu entendimento,
quando olho para a inversão de todos os princípios e para a futilidade das máximas que
passam por dogma na sociedade” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941,
p. 90-91).
Pelas preocupações expressas por D. Leonor, já é possível notar de que tipo de
assuntos a ‘cabeça’ da marquesa se ocupava. Logo se observa que D. Leonor, além de não se
interessar por locais, situações e pessoas que se cercam de “opiniões mal fundadas, desses
espíritos de sistema frívolo [...]” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p.
90), também não desejava ver sua filha envolta nessas circunstâncias. Daí recomendar
cuidado com as relações sociais, com os locais que poderia frequentar e com suas ocupações
nesse âmbito.
A mulher distraída, encostada sempre na indulgência dos outros, dá carreira
à sua extravagância, passa de uma combinação exquisita a outra, e não
repara que, enquanto lhe perdoam e até a celebram, tacitamente a julgam
[...]. “. (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 92).
Talvez, os olhos acostumados a lerem as propostas educacionais para mulheres no
século XVIII e XIX veriam nessas cartas e nas orientações de D. Leonor o reforço de uma
127
educação proposta por Verney (1746) e por Ribeiro Sanches (1760), interpretando essas
orientações, as quais denominamos de princípios educativos, como uma ‘doutrinação’ capaz
de fixar a mulher no espaço doméstico e reduzir sua vida às atribuições desse espaço. Como
acredita Algranti, que acerca das orientações da marquesa diz:
As cartas dois, três e quatro, por sua vez, tratam dos cuidados com a casa e
com os serviçais, atividades consideradas tanto pela marquesa, quanto por
Ribeiro Sanches como extremamente importantes na educação de uma
senhora da nobreza. As instruções da marquesa de Alorna nesse campo se
basearam na noção de economia: economia de tempo, economia de espaço e
economia doméstica. São essas que nos interessam comentar brevemente,
pois vinculam-se diretamente à necessidade de se educar as meninas para as
funções domésticas e da vida em sociedade. (ALGRANTI, 2014, p. 294).
Algranti (2014) ajuíza que essas orientações que ela denomina de “gestão da casa”
seriam um reforço para um dos aspectos que ela discute em seu texto acerca da educação
feminina daqueles tempos. Para a autora, há três aspectos os quais foram considerados para se
pensar uma educação para mulheres naquela ocasião, um seria quanto ao local onde se
desenvolvia o processo educativo (institucional ou doméstico), o outro seria quanto ao que
ensinar às meninas (plano de estudos ou programa pedagógico) e, por fim, os princípios da
educação feminina que, segundo a autora, seriam “as justificativas para educá-las”
(ALGRANTI, 2014, p. 283). A questão dos deveres da dona de casa se enquadra no último
aspecto, ou seja, para que ou por que destinar uma educação para as mulheres. E, nesse
sentido, as orientações da marquesa quanto à temática tempo vinculado ao governo doméstico
considerado bom seriam, segundo essa autora, um reforço à ideia de propor uma educação
feminina para a ‘profissionalização’ da dona de casa, esposa e mãe.
Nós já discordamos disso e, ao longo deste trabalho, procuramos evidenciar
justamente o contrário. Defendemos que a marquesa reconhecia, sim, as tarefas atribuídas às
mulheres socialmente, mas não fazia delas a ‘razão’ da vida das mulheres. Adversamente a
esse posicionamento de Algranti (2014), acreditamos que D. Leonor apenas se valeu do
cenário doméstico e das atividades de governo da casa, para mobilizar a atenção da filha para
as orientações que de fato ela desejava oferecer e julgava importantes. E, mais, julgamos ser
ela própria um exemplo da mudança do pensar feminino acerca das mulheres, pois suas ações,
sua atuação na sociedade, sua escrita revelava essa mudança e, consequentemente, o surgir de
um novo perfil feminino, com atuação marcante na sociedade, inclusive, com posicionamento
político próprio, registrado por Cidade (1941, p. XXV – prefácio):
128
Estávamos então em vésperas das invasões francesas, mas desde o começo
do século que elas nos ameaçavam – e desde o começo do século que D.
Leonor, pormenorizadamente informada do que ia pelo Mundo, se agitava
em diligências múltiplas para evitar à Pátria tal catástrofe. [...] Entende D.
Leonor que de nada servem contemporizações com o governo pérfido de
Bounaparte. O que importa é provocar-lhe a ruína no próprio seio da França
Portanto, não conseguimos acreditar que a marquesa reforçava, em suas orientações, o
mesmo ideal educativo de Verney (1746) e Ribeiro Sanches (1760).
Dando continuidade aos estudos das cartas de D. Leonor, vamos às suas últimas
orientações, presentes na sexta carta, na qual ela trata sobre a escolha das companhias. Ela
inicia suas orientações definindo que tipo de pessoas a filha deveria evitar inserir em seu
convívio. Com relação a isso, a Marquesa explicita:
Mais de uma vez tenho encontrado em minha vida indivíduos que se podem
com justiça chamar de vegetais, dos quais todas as funções vitais se limitam
a comer, dormir, rir, divertir-se e enfeitar-se. Que direito tem esta gente a ser
contada entre humanos? Se a humanidade padece, não são essas pessoas
aquelas sobre as quais se pode contar para conforto e remédio. Se, fazendo
uso das suas faculdades, investigando a natureza... e procuram para a
sociedade, nada entendem além das regras da moda; e levando a sua
imperícia muito longe, não conhecem nem as cousas de que usam nem os
princípios das mesmas artes que os divertem. (MARQUESA DE ALORNA,
1844 apud CIDADE, 1941, p. 92-93).
É evidente que D. Leonor sabia fazer uso do seu tempo e também selecionava do que e
de quem se ocupar. A opção em não se prender a pessoas que não agregam em valores,
princípios ou ideias reflete sua percepção quanto à ‘alienação’ daqueles que optam por não
realizarem uma leitura mais fluente da realidade em que estão inseridos, que se vinculam aos
‘modismos’ e preocupam-se apenas com as aparências e status. A marquesa, pelos seus
escritos, demonstrava que seus interesses ultrapassavam as questões apreciadas por pessoas
com características que denunciavam esse tipo de prioridade em suas vidas.
Sua fina percepção sobre as relações sociais e as implicações dessas para a vida
pessoal e social impressiona pela capacidade que revela de discernimento, pela aplicabilidade
da racionalidade em tudo o que realizou, mesmo estando inserida em uma sociedade que não
favorecia essa capacidade nas mulheres. D. Leonor foi capaz de ler sua realidade e considerar
os elementos importantes para realizar escolhas. E são justamente as escolhas que
consideramos um dos pontos chave para visualizarmos os indicativos de mudança na forma de
pensar das mulheres, pois estas não eram educadas para realizar ‘escolhas’. Quanto a isso,
acreditamos que Algranti (2014) está correta quando afirma que a justificativa para se propor
129
uma educação para as mulheres residia em educá-las para atender às expectativas da
sociedade da época.
Educar as mulheres para serem mães e esposas era, ao que tudo indica, a
justificativa mais comum quando se ventilava a proposta de instrução
feminina [...] Uma justificativa adotada, inclusive, por autores dos séculos
anteriores como Juan Vives e Fénelon e que hoje também se apresenta em
outros gêneros de escritos destinados a prepara-las para a vida em
sociedade. (ALGRANTI, 2014, p. 288).
Isso significa dizer que não havia a possibilidade de se pensar em algo diferente do
que era esperado delas ou para elas. As opções femininas eram matrimônio ou vida
religiosa77.
Nesse universo desenhado para as mulheres não existiam condições favoráveis para
desenvolverem um olhar para elas próprias, era muito difícil cada uma identificar, em si, os
interesses pessoais. Não havia espaço ou condições para que realizassem elaborações mentais,
capazes de conduzi-las ao reconhecimento delas enquanto indivíduos, enquanto ‘únicas’,
compondo uma coletividade. A ideia de interagir com a sociedade só era possível se
estivessem cobertas por vestes religiosas ou maternais. Destacar-se de outra forma, como nas
letras e nas artes, era para poucas.
Portanto, podemos evidenciar a ‘escolha’ como um elemento significativo na
identificação na modificação do pensamento feminino. Nessa perspectiva, tanto a
caracterização e/ou classificação de pessoas que D. Leonor realizara para identificar quem
poderia fazer parte da sua convivência, quanto à seleção de conviveres configuram-se na
opção de realizar ‘escolha’, possibilidade que ela percebeu existir e fazendo uso dela.
A capacidade de realizar escolhas era algo que já fazia parte da marquesa desde a
época da clausura, pois naqueles tempos ela já se fazia valer dessa capacidade, selecionando
suas leituras, preparando programas de estudos das suas discípulas, como já mencionamos
anteriormente, e decidindo com quem se casaria, contrariando, inclusive, seu pai nessa
escolha. Assim, a questão da ‘escolha’ era algo consolidado em D. Leonor, tanto que em suas
orientações à filha demonstra isso claramente e espera que esta também tenha isso bem
internalizado. “Esta reflexão lhe basta para, daqui por diante, saber quem deve aceitar ou
recusar [...]” (MARQUESA DE ALORNA, 1844 apud CIDADE, 1941, p. 90).
77 Para as aristocratas, porque, para as mulheres de outras classes sociais, outras possibilidades seriam trabalhar
no campo com seus familiares ou servirem de criadas nas casas dos mais abastados, como aponta Hufton (1991).
130
Assim, o que nos interessa nessa carta é a ideia de ‘escolha’. O cenário estabelecido ou
a questão das relações sociais enquanto conteúdo das orientações maternas são para nós
apenas a localização de onde esse pensamento se expressa e o meio pelo qual tal pensamento
se materializa. Desse modo, a ideia de realizar escolhas demonstra não apenas uma habilidade
treinada, mas a capacidade de discernimento, de representação do que entende como sendo
bom ou ruim para si. E, pensar nesses termos é olhar para si própria, ou seja, tomar
consciência da sua autoimagem e poder, e com isso, modificá-la.
Lançando um olhar atento para os conteúdos das cartas de D. Leonor, encontramos
três elementos que revelam a tomada de autoconsciência feminina: o olhar para si (ter tempo e
elementos para isso), a ideia de escolha (o que apraz e agrega) e o uso do conhecimento
(diferencial/elemento necessário na construção da identidade ‘individual’). Esses dados são,
para nós, indicativos, primeiro, de uma tomada de autoconsciência e, depois, da mudança na
autoimagem das mulheres, principalmente se resgatarmos as mulheres descritas na introdução
deste trabalho, as que foram classificadas em ‘Evas’ ou ‘Marias”, ou as descritas pela
medicina e pelo direito medieval (incapazes), indicativos de mudança no pensar feminino,
refletidos na conduta das pioneiras que demonstraram consciência quanto à existência e
funcionalidade deles. Como no caso da marquesa a qual evidenciou isso em seu
comportamento e nas orientações destinadas à filha.
Considerando esses apontamentos, podemos dizer que esses elementos são inclusões
das estruturas mental e emocional das mulheres (em um primeiro plano, da marquesa), que
teriam sido desenvolvidas por elas, ou, nesse caso, por D. Leonor, a partir do processo
formativo que vivenciou no convento, durante o tempo de clausura, e das consequências que
essa formação promoveu em seu modo de pensar e de conceber a mulher e as capacidades
desta.
Acreditamos que D. Leonor, a partir da formação que recebeu, pôde reunir em si os
três elementos que destacamos como indicativos de mudança no modo de pensar das
mulheres, o que lhe proporcionou a tomada da autoconsciência e a elaboração de uma
autoimagem capaz de refletir toda a sua capacidade de análise e reflexão acerca dela própria e
do seu derredor.
O ‘olhar para si’ representa o início desse processo, quando entendido como primeiro
passo, e indicativo da mudança do pensamento feminino, quando visto como algo possível a
partir da própria mudança. Isso aparece em uma passagem da quinta carta de D. Leonor
quando ela tratou do prazer de “olhar para si”; com isso, podemos inferir que ela se referia à
ideia de que seria mais válido esse movimento, seria de maior ganho pessoal que se envolver
131
com as distrações provocadas por pessoas de “opiniões frívolas”. Ora, isso, a nosso ver, indica
claramente uma forma de pensar distinta da considerada habitual para aquele período, caso
contrário, essa orientação da marquesa não faria sentido.
Nesse caso, evidenciamos alguém que já se encontrava em um estágio à frente das
demais mulheres, atuando sobre alguém em situação processual, que ainda não atingira o
mesmo estágio de consciência, mas que estaria a caminho disso. Isto é, alguém cuja
autoimagem já tinha produzido um ‘novo perfil’, atuando no processo de construção do perfil
de outro alguém.
A questão da ‘escolha’ representa uma fase já vencida na tomada de consciência
feminina, quando vista como um segundo passo na caminhada da construção de um novo
perfil. Ao mesmo tempo, pela mesma razão, se constitui em outro elemento promotor da
mudança, pois contribui no desenvolvimento da capacidade de discernimento. Nas cartas de
D. Leonor, vemos isso retratado nas orientações quanto às escolhas das companhias e das
relações sociais.
Por fim, o elemento denominado ‘conhecimento’, talvez, o mais significativo, pois
seria o principal agente no processo da transformação do pensamento feminino, conduziria,
por meio da educação, a uma tomada de autoconsciência, promovendo a mudança da
autoimagem, provocando, por fim, o despontar de um novo perfil de mulher. Esse movimento
resultaria no ‘olhar para si’, bem como na questão do estabelecimento das condições para
desenvolver a capacidade de discernimento.
Nesse sentido, a formação e a instrução teriam papel determinante nesse processo,
atuando como agentes transformadores das atitudes, criando disposições mentais críticas
necessárias para a realização de reflexões e análises, possuindo, assim, caráter libertador,
tendo como objetivo, segundo Menezes e Santiago (2014, p. 50)78, desenvolver a consciência
crítica capaz de notar “fios que tecem a realidade social e superar a ideologia da opressão”.
Entendemos que a educação, ainda que não fosse compreendida nesses termos ou pudesse ser
desenvolvida como o caráter descrito, teve função semelhante na vida de D. Leonor. E, em
função dela, vimos o florescer de uma mulher com um perfil distinto da maioria das mulheres
da segunda metade do século XVIII, capaz de perceber a importância da instrução na vida das
pessoas e, em especial das mulheres, para que estas pudessem desenvolver uma visão mais
ampla, atingindo outros horizontes para além das paredes da casa e com maiores
78 As autoras, nessa publicação de 2014, realizam uma discussão acerca da educação na perspectiva de Paulo
Freire e apresentam a contribuição do pensamento deste para compor as teorias curriculares, identificadas como
crítico-emancipadoras. Nessa passagem de nosso texto, recuperamos as concepções de Freire quanto à educação.
132
possibilidades de atuação, além do governo doméstico, enfim, que pudessem ‘olhar para si’ e
descobrir outras capacidades e potencialidades.
O resultado desse processo formativo, quando alcançado, seria o despontar da ‘mulher
moderna’, a exemplo da própria D. Leonor. Seria aquela que figuraria na segunda metade do
século XIX, encapando movimentos sociais em prol dos direitos das mulheres. Entretanto é
preciso lembrar que a mulher com as características do século XVIII não haveria ainda
deixado de existir, nem o cenário da situação feminina teria mudado completamente no século
XIX. O que existiria eram mulheres despontando com maior consciência da realidade e de
seus direitos, pelo menos aquelas que tiveram acesso à educação. E, conforme aponta
Vaquinhas (1997), elas encontrariam um cenário propício a isso, pois o século XIX foi,
segundo essa autora, um período composto por “dois mundos” diferentes, havendo conflito
entre a tradição e a modernidade79, portanto, “um tempo em que se tornará possível para uma
mulher assumir-se como sujeito, indivíduo de corpo inteiro, atriz política, futura cidadã”
(VAQUINHAS, 1997, p. 36).
A educação contribuiria muito para aumentar as possibilidades de um
‘reposicionamento’ social da mulher. Daria a ela, em primeiro plano, as condições essenciais
para se ver como sujeita, por exemplo, e, depois, em segundo plano, prepará-la para atuar nos
novos papéis. As mulheres que puderam perceber isso passaram a utilizar a caneta para iniciar
um processo de ‘reivindicação’, mostrando intelectualidade e capacidade na literatura, na
poesia, como foi o caso de D. Leonor. Algumas ousaram romper com as limitações sociais do
seu tempo, intervindo nos campos assistenciais e educativos. Acerca disso, podemos citar
algumas mulheres como Florence Nightingale (1820 -1910), heroína da Guerra da Crimeia,
que criou na Grã-Bretanha as primeiras escolas de enfermeiras; a austríaca Bertha von Suttner
(1843 -1914), fundadora do primeiro movimento pacifista pelo qual recebeu em 1905 o
Prêmio Nobel da Paz, entre outras. E houve mulheres que ainda foram além, destacando-se
nas ciências, como foi o caso Leblois em 1885, que se tornou doutora em ciências em
Sorbonne, e Marie Curie, que, em 1906, ascendeu à cátedra de física geral, também em
Sorbonne.
79 De acordo com Vaquinhas (1997), o século XIX foi um período de conflitos entre a tradição e a modernidade,
pois estava recheado de transformações sociais e econômicas. Foi quando começaram a ocorrer um crescimento
econômico, a ascensão da burguesia, a necessidade crescente de mão de obra (na indústria e nos setores de
serviços), e a sociedade passou a viver em “dois mundos”, o velho, carregado pelas tradições culturais, e o novo,
cheio de influências pelas ideais de progresso. Essas modificações na sociedade, vindas a partir da Revolução
Industrial, abriu espaço para que a mulher fosse convertida em um (a) trabalhador (a) economicamente
autônomo, semelhante ao homem, permitindo-lhe romper com os vínculos que a colocavam em uma posição de
dependência material em relação ao pai ou ao marido.
133
Claro que isso não foi o caso da maioria das mulheres, mas representou o despontar
das primeiras, das que provavelmente, pelo menos pelo seu próprio exemplo, motivaram
outras mulheres e também a sociedade, ainda que lentamente, a rever seu posicionamento em
relação ao potencial e capacidade feminina. No caso de Leblois e Marie Curie, estas ajudaram
a questionar, conforme defende Vaquinhas (1997), o discurso pseudocientífico sobre a
inferioridade feminina, endossando, de certa forma, os avanços que a ciência iniciava realizar
em relação aos falaciosos vínculos entre intelectualidade e os aspectos biológicos da mulher.
Portanto, associando os movimentos iniciais das mulheres conscientes de suas
capacidades e direitos com as transformações ocorridas durante o século XIX, pudemos
assistir ao nascer do perfil da mulher moderna que surge da ambivalência da situação
feminina em que se esta encontrava nesse período “[...] entre a tradição e a modernidade; a
resignação e o inconformismo; a submissão e o desejo de liberdade” (VAQUINHAS, 1997, p.
37).
Dessa ambivalência provocada pelas transformações sociais do período e pelo
despontar das primeiras mulheres conscientes, a ideia da instrução feminina ganha corpo, seja
pelas mãos dos que ainda defendem uma educação para a ‘profissionalização’ da mãe, esposa
e governante do lar, seja pelas mãos daqueles que começam a ver as mãos femininas, como
possível mão de obra para as necessidades comerciais ou, ainda, pelas mãos das próprias
mulheres que veem na educação uma possibilidade de autonomia. Acompanhando essa ideia,
de acordo com Vaquinhas (1997, p. 43), vemos “[...] a difusão de um novo discurso sobre as
mulheres, tendente a reabilitá-las, reivindicando-se a valorização do seu estatuto e do seu
lugar na sociedade”. Esse discurso vem dos movimentos conhecidos como femininos ou
feministas que intervirão a favor das mulheres de diversas formas, desde a fundação de
associações à organização de conferências públicas, passando não só pela criação de jornais e
revistas como também pela publicação de artigos na imprensa.
Esses movimentos, segundo Vaquinhas (1997), contribuem na luta pelo direito à
instrução feminina, além, é claro, de outros direitos como os de igualdade de oportunidades e
os direitos políticos. Ainda, de acordo com Vaquinhas, na maior parte dos países europeus,
inclusive Portugal, a questão da instrução feminina é o “principal cavalo de batalha da
emancipação das mulheres80, precedendo todas as outras reivindicações feministas”
(VAQUINHAS, 1997, p. 47).
80 De acordo com Vaquinhas (1997), Fourier, na França, foi o primeiro socialista a utilizar a expressão
‘emancipação feminina’ durante as reflexões acerca do reposicionamento da mulher na sociedade, reivindicando
134
A partir dos anos 50 do século XIX, a instrução feminina progride e o número de
escolas primárias, destinadas às meninas, vai se multiplicando, investindo-se,
concomitantemente, na formação das mestras de meninas. Segundo Vaquinhas (1997), em
Portugal a primeira Escola Normal Feminina é inaugurada em 1862. É preciso ressaltar que,
nos últimos anos do referido século, outros fatores contribuíram decisivamente para o acesso
da mulher à instrução, inclusive no ensino superior81: o desenvolvimento do comércio e da
indústria e a intervenção da mulher em favor da educação do seu sexo. Podemos dizer que o
caminho estava aberto.
Assim, como afirma Vaquinhas (1997), desde os anos inicias do século XIX até a
Primeira Guerra Mundial, a condição das mulheres foi se modificando, ainda que lentamente,
e foi se alterando de forma significativa, inclusive os mitos que a envolviam. “De anjo do lar,
sem voz política e de escassa ou nula formação intelectual, o estatuto feminino evoluiu no
contexto de uma sociedade que avançou timidamente para uma maior participação da mulher”
(VAQUINHAS, 1997, p. 50).
Portanto,
É certo que as mulheres do início do século XX mantinham ainda muitas
afinidades com suas antepassadas de 1820. Porém, durante estes cerca de
100 anos, ganharam consciência de si e assistiram a valorização de sua
função social. Sobretudo, venceram uma grande batalha, a da instrução
feminina, que fora, indubitavelmente, a grande reivindicação, dita feminista,
do século XIX, em todos os países ocidentais. (VAQUINHAS, 1997, p. 51).
Diante dessas análises e dos apontamentos realizados, podemos dizer que os primeiros
movimentos que resultariam no nascer da mulher reivindicadora dos séculos XIX e XX teve
uma pioneira em Portugal dos Setecentos, que, a partir da sua fina percepção, captou a
importância da educação e da instrução para a vida das mulheres, ousando, ainda que de
forma sutil, proporcionar conhecimento e erudição a outras mulheres, não restringindo suas
orientações aos seus filhos, mas ampliando as oportunidades a outras moças a quem a vida
não dera condições de instruir-se.
Em suas cartas destinadas à filha, verificamos não apenas sua percepção quanto à
importância e ao papel da educação no desenvolvimento das mulheres, mas também toda a
sua consciência quanto às capacidades femininas e os recursos para ativá-las. Encontramos os
isso para todos os aspectos da vida feminina desde o doméstico até o cívico. Segundo a autora, foi em virtude
disso que alguns especialistas o nomearam ‘pai do feminismo moderno’. 81No ano letivo de 1891-1892, a Universidade de Coimbra abre suas portas para a primeira mulher, que, de
acordo com Vaquinhas (1997), se tratava de Domitila de Carvalho que se licenciaria em matemática e medicina.
135
elementos necessários para essa ‘ativação’, como também, nesses mesmos elementos,
localizamos os indicativos da mudança da autoimagem feminina que seriam o requisito
precursor para todo o perfil feminino que viria depois.
D. Leonor não foi, portanto, apenas uma poetiza reconhecida, foi também uma
precursora no processo de tomada de autoconsciência, foi pioneira na construção dos
elementos que levariam à emancipação feminina e, por fim, uma defensora da instrução das
mulheres. Diante desse contexto, Vaquinhas percebeu que
“Miserável e gloriosa, a mulher do século XIX”. Conformistas ou revoltadas,
donas de casa ou jornalistas, as mulheres do século passado, com as suas
contradições e limites, ajudaram a redistribuir os papeis sexuais na
sociedade. Uma redistribuição que ainda hoje não terminou e da qual somos
devedores. (VAQUINHAS, 1997, p. 52).
Terminamos esta seção com a assertiva de que as mulheres do passado foram
responsáveis pelas mulheres que conseguimos ser até hoje.
136
5. CONCLUSÃO
Estudar as cartas redigidas pela marquesa de Alorna, por meio das publicações das
cartas selecionadas por Cidade (1941), foi um processo investigativo importante para nós,
tanto acadêmica quanto pessoalmente, trouxe-nos contribuições significativas, possibilitando-
nos compreender a mulher em tempo histórico distinto do nosso, fazendo-nos refletir acerca
das conquistas femininas, dos espaços ocupados pelas mulheres, do que ‘fomos’, do que
‘somos’ e do que ainda falta ‘sermos’. Possib
ilitou-nos compreender as representações sociais das mulheres, entender a relação
entre estas, a sociedade em que estavam inseridas e a sua função social em dado momento,
permitiu-nos identificar uma das pioneiras na construção do processo de emancipação das
mentes femininas e trazê-la a público.
Foi com as cartas de D. Leonor que pudemos identificar e analisar a forma pela qual se
iniciou o movimento de transformação do pensar das mulheres, da tomada de consciência, da
construção de uma identidade própria, de como passamos a nos reconhecer enquanto sujeitas,
enquanto indivíduos, quando começamos a nos tornar mulheres de ‘corpo inteiro’. O estudo
acerca dos princípios educativos, contidos nas orientações da marquesa e expressos nas cartas
enviadas à filha, confirmou nossa hipótese do pioneirismo de D. Leonor na motivação para
desenvolver a autonomia feminina, na percepção quanto ao papel da educação e da instrução
nesse desenvolvimento e no início da edificação da mulher moderna. São tantas as
contribuições que, pela necessidade de restrição que o término do trabalho exige,
procuraremos evidenciar as que consideramos mais significativas.
Com o intuito de melhor organizar a apresentação dos nossos resultados e das
discussões, exporemos as contribuições e defender a tese que delineamos nesta pesquisa,
mediante quatro eixos: 1) no âmbito da historiografia; 2) da educação; 3) da trajetória
feminina na luta pelos seus direitos e pelos espaços a serem ocupados; e 4) no âmbito pessoal.
Para tanto, traremos a lume uma retrospectiva das discussões mediadas e analisadas a fim de
pontuar, em cada seção, as contribuições adquiridas.
Em nossa segunda, seção intitulada D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e
Lencastre – Marquesa de Alorna, procuramos realizar uma biografia dessa senhora de forma
a evidenciar não apenas a sua trajetória, ações e atitudes, mas também como uma forma de
visitar um período histórico pelos registros pessoais de alguém, que, pelas suas experiências e
vivencias, fez emergir do tempo fatos considerados importantes do ponto de vista de quem
escreve, ou seja, de quem viveu aquele momento e pôde, de certa forma, contar com
137
propriedade com os acontecimentos, suas causas e consequências, situações produzidas e
transformações sociais ocorridas, trazendo cor, emoções que talvez não encontraríamos em
um texto histórico, pois, na maioria das vezes, esse tipo de texto se apresenta, como afirma
Rago (2002, p. 32), “[...] muito asséptico em sua pretensão de objetividade”.
As cartas de D. Leonor possibilitaram uma aproximação singular com o passado, com
as preocupações, hábitos e costumes daquela época. Com as cartas e a partir delas, pudemos
‘abrir uma janela no tempo’, o que nos permitiu olhar para aquela sociedade como quem
assiste a um filme, vendo passar diante dos seus olhos um desfilar de acontecimentos, de fatos
históricos envolvendo ‘personagens’ importantes que não contaram uma história, mas a
fizeram. A riqueza dos detalhes na escrita da marquesa, seja em suas cartas como também em
suas poesias e demais escritos, demonstra a realidade vivida nos mais diversos aspectos.
Relatando seu exílio político, as reformas do marquês de Pombal ou, posteriormente, a
situação política e econômica de Portugal, manifestava não só seu entendimento a respeito das
circunstâncias que a envolviam, mas também corroborava a visualização das relações sociais,
políticas e econômicas que a aristocracia, a monarquia, estabeleciam em prol dos interesses
sociais do período.
Ao escrever aos seus soberanos, demonstrando sua preocupação com as invasões
francesas, não se limitava em apontar tais preocupações, argumentava e justificava tais
inquietações com seu posicionamento político, representando boa parte do pensamento da
aristocracia da época que se via ‘expropriada’ dos benefícios da sua classe social pelas
reformas pombalinas. Quando relatava ao pai a vida no convento, as restrições vividas, o
desejo pela liberdade, a busca pelo conhecimento, discorria também como se dava a educação
conventual, oferecida às moças da aristocracia de seu tempo. Ou seja, esses relatos são
preciosos, pois, mesmo podendo representar só um lado dos acontecimentos (o lado da visão
aristocrática), ainda assim são contributivos porque apresentam os acontecimentos, retratam
as transformações, cabendo ao investigador o filtro necessário para o entendimento das
circunstâncias.
A leitura das cartas de D. Leonor, de seus escritos como um todo nos deu a
possibilidade de ver o século XVIII com a visão e o entendimento da organização do próprio
tempo, permitiu a visualização, com mais clareza, dos movimentos da mulher pioneira e do
seu ‘trabalho’ na instituição do processo de emancipação feminina, colocando-nos a par das
dificuldades e obstáculos postos ao desenvolvimento da autonomia das mulheres. Ao
evidenciar essas dificuldades, ao buscar meios para superá-la na educação, fez-se visível seu
pioneirismo. Fato também que nos fez valorizar ainda mais as lutas das mulheres do passado,
138
que, muitas vezes, de forma velada e silenciosa, brigaram pela autonomia, liberdade e espaço
social e jurídico, desfrutados por nós no presente (mesmo que não com todas as garantias de
respeito a isso). Esse ‘trabalho de luta’ de mulheres como D. Leonor, entre outras ‘guerreiras’,
nos deixou mais grata a elas, porque, se hoje estamos nessa posição, escrevendo este texto,
muito lhe devemos.
Com relação à história das mulheres, este estudo contribuiu para percebermos a
multiplicidade do passado e das temporalidades que constituíram os processos sociais e
culturais, bem como, nas palavras de Rago (2002, p. 32), “os silêncios, os esquecimentos e as
implicações políticas da exclusão operada pela memória histórica [...]” na vida das mulheres.
Nesse sentido, ler os escritos de D. Leonor, suas cartas, para nós, pequenas porções de seus
possíveis diários, foi uma oportunidade de conhecermos um pouco mais da nossa própria
história, não em uma tentativa de reconstruir o passado, mas como uma forma de
compreender as transformações que nos trouxeram até aqui.
A biografia da marquesa nos fez mergulhar em Portugal dos Setecentos e depois dos
Oitocentos, ver sua organização social, política, econômica e cultural, conhecer a situação
feminina naqueles tempos, seu cotidiano, função social, dificuldades e pequenos avanços.
Também nos possibilitou o trabalho investigativo com cartas, corroborando para
compreendermos a importância que esse tipo de fonte pode ter para a pesquisa, permitindo-
nos contribuir com a divulgação dessa alternativa para investigações, pois as cartas, como
aponta Cunha (2002, p.01),
[...] criam chances para analisar usos e funções da cultura escrita que, como
a arte ou a literatura, também contribuem para entender melhor cada época e
cada sociedade. Assim, a escrita epistolar interessa, sobremaneira, ao
historiador por estar recheada de práticas culturais de um tempo, hábitos e
valores partilhados plenos de representações de época. [...] O que interessa
ao historiador é a evolução desta prática, dos usos, maneiras e modos de
escrever, dos contextos em que se escreve, bem como os materiais, objetos
ou signos utilizados para se escrever além do espaço social, significados e
relações em que tais atos se produzem.
Portanto, conhecer D. Leonor e ter contato com as cartas que escreveu foi uma
oportunidade de estudo significativa, pela possibilidade de visitar outro tempo, pela riqueza
que nos ofereceu quanto aos valores e costumes da época, por possibilitar conhecermos a
situação feminina do século XVIII.
No primeiro eixo que definimos como sendo no âmbito da historiografia, ressaltamos
que o trabalho de investigação com essa fonte nos possibilitou alcançar o que pensamos ser o
139
real acontecido naquele período, pois, ao comparar os relatos de D. Leonor com outros textos
históricos, utilizados e mencionados ao longo da pesquisa, procurando com isso realizar um
cruzamento de dados, concluímos que a situação da mulher no século XVIII e anos iniciais do
século XIX era de fato ‘complicada’, se nos lembrarmos das restrições que sofriam em
relação a sua própria autonomia, do fato de serem tuteladas por outra pessoa e serem
conceituadas, muitas vezes, como incapazes intelectuais etc. Pudemos sinalizar, conforme
nossa hipótese inicial, que a marquesa teria sido uma das primeiras mulheres na sociedade
portuguesa daquela época a identificar tal situação e a procurar realizar algo em prol de mudá-
la. Isso significa dizer que, nesse âmbito, a contribuição da pesquisa está no fato de revelar o
pioneirismo de D. Leonor na ‘largada’ do processo de emancipação da mente feminina e
também de evidenciarmos que isso se deu pela contribuição da educação, tanto para a própria
marquesa, como também para as mulheres que, por meia dela, tiveram acesso à educação, às
orientações valiosas dessa senhora.
Obviamente que as contribuições historiográficas, sinalizadas acima, não se resumem
à biografia ou às cartas de D. Leonor, mas tiveram seu ponto de partida e base na trajetória
dela e em seus escritos, principalmente nas cartas que carregavam os princípios educativos
por nós analisados. E, nesses princípios educativos, residem as contribuições que procuramos
trazer para a educação. Ao tratarmos de sua análise nas cartas da marquesa, evento que
ocorreu de forma introdutória em nossa terceira seção e de forma mais profunda em nossa
última seção, encontramos ali a ‘prova’ de que a educação, aliada à instrução, faz, de fato, a
diferença na vida das pessoas, conferindo-lhes autonomia de pensamento, leitura crítica da
realidade em que estão inseridas e instrumentalizando-as para participarem, de forma ativa, na
sociedade em que vivem, além de libertá-las das amarras da opressão da ignorância, como
concebia Paulo Freire em suas obras.
Isto é, a educação, destaque do nosso segundo eixo aqui proposto, permite ao
indivíduo se reconhecer como sujeito (a) da sua própria história, como alguém capaz de atuar
na agenda da humanidade. Acreditamos ter sido isso que aconteceu com as mulheres, ao
perceberem a educação enquanto um mecanismo para sua emancipação. Foi o que notou D.
Leonor e trabalhou para que outras mulheres também pudessem desfrutar desse benefício.
Portanto, nosso entendimento acerca dos princípios educativos realizou-se fundamentado no
que compreendemos como sendo educação, ou, ainda, na perspectiva educacional de Paulo
Freire, como já apontamos. Vimos tais princípios como uma forma de educação com função
libertadora na vida das mulheres, como um meio de evitar que suas vidas, no caso da filha de
140
D. Leonor, ficassem reduzidas ao ambiente doméstico e às tarefas que neste ambiente as
mulheres tinham que realizar.
Com relação ao terceiro eixo, a análise da trajetória feminina nos levou a concluir que
não só no que diz respeito ao cotidiano das mulheres em meio aos seus afazeres, mas também
e, principalmente, pelas expectativas de aprendizagem depositadas nelas pela sociedade e
reveladas pelo pensamento educacional do período, descrito nas obras de Verney (1746) e
Ribeiro Sanches (1760), que, em nosso entender, seria um controle social, exercido pelos
interesses da sociedade da época sobre as mulheres. Em outras palavras, realizando um
comparativo com o que dizia Nobert Elias, (1994) quando discorreu sobre o controle exercido
pelo Estado sobre os indivíduos, a sociedade teria exercido esse mesmo controle sobre as
mulheres, utilizando-se, da mesma forma que o Estado, para Elias, de “leis” que, aqui, seriam
as convenções comportamentais, criadas a partir da concepção de mulher, construída ao longo
dos tempos, como vimos em nossa introdução e também na terceira seção deste trabalho, de
modo a internalizar nelas um comportamento adequado aos interesses coletivos, ao ponto de
elas próprias exercerem sobre si um autocontrole.
Considerando o exposto, os princípios educativos propostos por D. Leonor expressam
a autoconsciência feminina, despontando, ao mesmo tempo em que expressam o desejo e,
também, o caminho para a autonomia e para a emancipação das mulheres. Nesse sentido, os
elementos (olhar para si, poder de escolha, conhecimento como ferramenta para) revelam o
início desse processo, bem como a própria mudança da autoimagem feminina (se tomarmos a
própria D. Leonor como exemplo) que foram identificados e apontados pela pesquisa.
Portanto, compreendemos que os princípios educativos da marquesa existiram,
estando registrados em suas cartas, e revelam a mudança no pensar das mulheres, assim como
o entendimento quanto à importância da educação na formação pela do indivíduo e na
construção de sua identidade pessoal. Dessa forma, comprovamos tanto o pioneirismo de D.
Leonor, no que diz respeito ao início da caminhada rumo à emancipação feminina, quanto à
mudança na autoimagem das mulheres e o papel da educação nesse processo.
No que diz respeito ao âmbito da trajetória feminina na luta por direitos iguais de
oportunidade e pelo respeito e reconhecimento da mulher enquanto indivíduo, capaz de
participar na sociedade pelo que pensa e faz, acreditamos que a pesquisa contribuiu não só por
ter apresentado mais uma mulher que contribuiu na luta, mas por ter registrado mais um
episódio nessa trajetória.
Por fim, quanto ao eixo quatro, no âmbito pessoal, o estudo contribuiu de várias
maneiras, permitindo que conhecêssemos outra forma de luta pela garantia de direitos, talvez
141
mais silenciosa e sutil, mas igualmente corajosa e significante e intensificando nossa
motivação pela continuidade nas batalhas de espaços a serem conquistados pelas mulheres e,
mais, depois de conquistados, mantidos. Trouxe-nos uma visão panorâmica de quanto as
exigências sociais e seus interesses nos controlam intensamente, privando-nos, por vezes, da
ação do pensar, do agir e do priorizar, o que de fato nos agrega em termos de valores e
princípios, o quanto desenha em nós o comportamento que acreditamos nós mesmos termos
forjado.
Contribuiu, mostrando-nos, principalmente, que houve consideráveis conquistas
femininas, que a história ainda não nos trouxe à luz, e que esta tese abre caminhos para a
continuidade dessa compreensão. Parece que ainda estamos longe de fato de alcançarmos a
igualdade de direitos, o respeito à mulher, à sua segurança. Muito se conquistou, mas há ainda
muito a se garantir. Não finalizamos este trabalho acreditando termos esgotado tudo que
envolve a marquesa, seus escritos, a educação feminina ou mesmo os princípios de que
tratamos ao longo deste estudo. Findamos apenas temporariamente, porque acreditamos que
nada se conclui definitivamente em termos de pesquisa.
Acreditamos que rematamos por um tempo a pesquisa, apresentando resultados, mas,
enquanto estudo, sempre comporta continuidades, novos olhares, perspectivas e descobertas,
ângulos não visualizados em sua realização que podem ser retomados pelo próprio
investigador em outro tempo, ou por outros pesquisadores interessados na temática. Assim,
terminamos por hora nossas investigações acerca da Marquesa de Alorna e seus princípios
educativos femininos, pensando, por hora, que trouxemos algumas contribuições para as
temáticas que envolvem mulheres e educação.
142
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