UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
MÁRCIO ANDRÉ BRAGA
– OS SELVAGENS DA PROVÍNCIA –
ÍNDIOS, BRANCOS E A POLÍTICA INDIGENISTA
NO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1834 E 1868
São Leopoldo
2006
MÁRCIO ANDRÉ BRAGA
– OS SELVAGENS DA PROVÍNCIA –
ÍNDIOS, BRANCOS E A POLÍTICA INDIGENISTA
NO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1834 E 1868 Dissertação de Mestrado em Estudos Históricos Latino-americanos Para obtenção do título de Mestre em História Universidade do Vale do Rio dos Sinos Programa de Pós-graduação em História Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina
Orientadora: Heloisa Jochims Reichel
São Leopoldo
2006
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
B813s Braga, Márcio André Os selvagens da província: índios, brancos e a política indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868 / por Márcio André Braga. – 2005.
167 f. : 29cm.
Dissertação (mestrado) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, 2005. “Orientação: Profª. Drª. Heloisa Jochims Reichel , Ciências Humanas”.
1.Política indigenista. 2. Questão indígena. 3. Índio I. Título.
CDU325.45(=1.81-82)
FOLHA DE APROVAÇÃO
Autor: Márcio André Braga. Título: Os Selvagens da Província – Índios, Brancos e a Política Indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868. Natureza do trabalho: Dissertação de Mestrado em Estudos Históricos Latino-americanos. Objetivo: Identificar e analisar a política indigenista aplicada na província do Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868, bem como as formas como ela se articulava aos encaminhamentos dados à Questão Indígena pelo Império brasileiro no período. Instituição: Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Área de concentração: Estudos Históricos Latino-americanos – Populações indígenas e missões religiosas na América Latina. Data de aprovação: _________________________ Banca Examinadora: Dra. Heloisa Jochims Reichel (Unisinos) _________________________ Dr. Pedro Ignácio Schmitz, S.J. (Unisinos) _________________________ Dr. John Manuel Monteiro (Unicamp) _________________________
AGRADECIMENTOS
Gostaria de mencionar, inicialmente, os meus professores. Em particular, agradeço a Dra. Loraine Slomp Giron, por ter me iniciado no universo da pesquisa.
Obrigado ao Dr. José Alberione dos Reis, portador de tamanha paixão por ensinar que seria difícil não ser contaminado.
A Dra. Vânia Beatriz Merlot Herédia, tutora e amiga, agradeço pelas dicas, pelo exemplo e pela torcida.
Obrigado a Dra. Paula Caleffi, pelas orientações iniciais que transformaram uma idéia em um projeto de pesquisa.
Agradeço de forma especial a minha orientadora, a Dra. Heloisa Jochims Reichel, pela paciência, pela dedicação e pelos ensinamentos.
Fora da acadêmia, mas não com menor importância, agradeço ao paciencioso pessoal do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, pela atenção dispensada a este pesquisador.
Impossível esquecer os amigos Claitor Mazzochi, Rudimar Mendes e Simone Gonçalvez, por terem estado presentes incondicionalmente quando as coisas ficaram nebulosas. Clai, Rudi e Moni, que tantas vezes me serviram de bússola, a vocês um muito obrigado, meu carinho e dedicação eternos.
A Cíndia Brustolin e Júlio Pereira, agradeço pela disposição em me receber semanalmente em sua casa.
Muito obrigado a Cláudia, ao Seu Algeu e a Dona Tereka, minha irmã e meus pais, pelo apoio constante a minha carreira de historiador.
Finalmente, obrigado a Bila, que foi uma parceira fiel e dedicada nas longas horas de estudo. Existiriam filas intermináveis para ouvir suas preleções a respeito dos índios rio-grandenses, caso você falasse, é claro.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo central analisar as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela aplicação da política indigenista no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868.
Para tal análise foram consultados prioritariamente os documentos oficiais produzidos naquele período pelos Juizados de Órfãos, pelas Diretorias de Índios e pela Presidência da Província, que se encontram reunidos no acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Entre esses, os gerados após 1845 passaram ainda por um recorte de ordem geográfica, tendo sido selecionados os relativos aos aldeamentos da Guarita, Nonoai e da Colônia Militar de Caseros.
Buscando subsídios para a análise proposta, o texto apresenta, como primeiro capítulo, um histórico da Questão Indígena no Brasil desde o período de dominação portuguesa até o Império brasileiro.
O segundo capítulo focaliza o encaminhamento da Questão Indígena no Rio Grande do Sul durante o século XIX, concretizado pela formação de aldeamentos indígenas na zona do planalto sul-rio-grandense. Nele, são privilegiadas as mudanças processadas na apropriação da terra na Província de São Pedro entre a tomada das Missões pelos portugueses e a Lei de Terras de 1850, momento em que ocorre o avanço dos colonizadores brancos em direção ao planalto gaúcho, marginalizando os grupos indígenas que habitavam esse território.
De posse dos subsídios desenvolvidos nos capítulos anteriores, o terceiro analisa as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela aplicação da política indigenista na província de São Pedro entre 1834 e 1868, bem como as reações da população indígena a essa mesma política.
Dessa análise, conclui-se que o tratamento dado à Questão Indígena pelo governo do Rio Grande do Sul, no século XIX, estava alinhado a política indigenista do Império. Entretanto, a abordagem provincial da questão não deixou de sofrer as influências da agenda de interesses regionais e nem das reações dos indígenas as iniciativas provinciais para sua integração a sociedade imperial em expansão.
PALAVRAS-CHAVE: Índios – Política Indigenista – Questão Indígena
ABASTRACT
This Paper has as primary objective analyze the actions maked by the official agents in charge for the application of indigenous politics in Rio Grande do Sul between 1834 and 1868. For this analysis was primarily consulted the official documents produced in that time by the Orphan Court, the Indigenous Directory and the Province Presidency, that is found on the Historical Archive of Rio Grande do Sul (AHRGS). The ones generated after 1845 passed by a geographic clip, selecting the files related to the Guarita, Nonoai and Colônia Militar dos Caseros villages. Searching for subsidy for the proposed analysis the paper presents, as the first chapter, a historical of the Indigenous Matter on Rio Grande do Sul in Brazil since the Portuguese domination to the Brazilian empire. The second chapter focus on the guidance of the Indigenous Matter on Rio Grande do Sul on the XIX century, realized by the indigenous village formation in the plateau zone from Rio Grande do Sul. In that chapter there is a privilege on the processed changes in the land appropriation on the Province of São Paulo between Mission's take by the Portuguese and the Lei the Terras in 1850, moment that occurs the white settler's advance in direction of the plateau of Rio Grande do Sul, marginalizing the indigenous groups that live in this territory. In grasp of the subsidy developed in the previous chapters, the third one analyze the actions taked by the official agents in charge of the application of the indigenous politics in São Pedro province between 1834 and 1868, as well the reactions of the indigenous population in the same politics. From this analyzes, concludes that the treatment gaved to the Indigenous Matter by the government of Rio Grande do Sul, on the XIX century, was aligned to the imperial indigenous politics. Whatever, the provincial approach of the matter didn't escape the influences of the regional interests agenda and even the reactions of the indigenous people to the provincial initiatives for the integration of expansion empire society.
KEY-WORDS: Indigenous – Indigenous Politics – Indigenous Matter
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................... 07 LISTA DE MAPAS ............................................................................................................... 08 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 09 1 A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL DA COLÔNIA AO II IMPÉRIO ..................... 15
1.1 Relações Entre Indígenas e Colonizadores na América Portuguesa ........................... 16 1.2 O Diretório Pombalino ................................................................................................ 21 1.3 A Política Indigenista de D. João VI ........................................................................... 24 1.4 O Império Brasileiro .................................................................................................... 28 1.5 A Legislação Indigenista do Século XIX .................................................................... 35
2 O RIO GRANDE DO SUL NO SÉCULO XIX ................................................................. 47
2.1 Integração dos Sertões do Centro-Sul ao Domínio Português .................................... 48 2.2 A Ocupação do Planalto Gaúcho e a Lei de Terras ..................................................... 53 2.3 Mão-de-Obra Livre e Despossuída no Rio Grande do Sul do Século XIX ................. 62 2.4 A Imigração e a Ocupação dos Vales e Encostas ........................................................ 68 2.5 Os Indígenas Encurralados Pelas Frentes de Ocupação .............................................. 76
3 A POLÍTICA INDIGENISTA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO .............................. 87 3.1 Índios e Seus Bens Tutelados Como Órfãos ............................................................... 90 3.2 As Iniciativas para Catequizar e Civilizar ................................................................... 96 3.3 O Cotidiano dos Aldeamentos ................................................................................... 112 3.4 A Reação dos Indígenas Aldeados ............................................................................ 138
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 149 FONTES CONSULTADAS ................................................................................................ 152 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 154 ANEXOS ............................................................................................................................. 158
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Organograma de cargos a serem preenchidos nos aldeamentos indígenas no
Império do Brasil a partir do Regulamento das Missões ....................................... 43
LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Avanço da ocupação territorial no Brasil pelos colonizadores ............................... 50 Mapa 2: Avanço da urbanização e povoamento no sul do Brasil entre 1801 e 1822 ............ 51 Mapa 3: Áreas de circulação dos grupos Kaingang no Rio Grande do Sul ........................... 78 Mapa 4: Localização aproximada dos aldeamentos indígenas criados no Rio Grande do Sul depois de 1845 .............................................................................................. 80
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INTRODUÇÃO
Este trabalho focaliza as ações tomadas pelos agentes oficiais encarregados pela
aplicação da política indigenista1 no Rio Grande do Sul entre 1834 e 1868. Além de
considerar as decisões de tal política, a análise considera as especificidades do processo de
expansão territorial e formação de mão-de-obra da província durante o período, bem como as
relações, conflituosas ou não, que se estabeleceram entre os brancos colonizadores e a
população indígena.
A historiografia que aborda a ocupação da terra e a constituição da força de trabalho no
Rio Grande do Sul do século XIX traz, em geral, o colonizador português, o negro, o índio e
o imigrante europeu como os elementos humanos constituintes da população rio-grandense.
Entretanto, nessas narrativas, os indígenas normalmente aparecem de forma apagada, como
se apenas fizessem parte da paisagem ao fundo do palco no qual interagem os demais atores.
1 Foram consideradas como “Política Indigenista” as ações tomadas pelo estado, ou
instituições representantes dele, com reflexos sobre as populações indígenas. Essa definição seguiu a dada ao termo por Lima (1995, p. 15) em seu texto sobre Poder Tutelar, Indianidade e a Formação do Estado no Brasil: “A expressão política indigenista designaria as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas. Isto exclui outros aparelhos de poder da esfera da definição, implicando em não se falar em uma política indigenista eclesiástica, nem tampouco condicionar a idéia de atos oficiais afetando populações autóctones à existência de uma racionalidade onde as ações práticas correspondem a um planejamento implícito e, sobretudo, explícito. De modo mais claro: Não há uma correspondência necessária entre os planos para os índios e as ações face a eles”.
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Quando os indígenas aparecem como agentes dessa história, as menções feitas a eles se
referem a sua atuação como peões de estância e, principalmente, aos conflitos entre os índios
e os colonos durante a ocupação da região dos vales e da encosta superior do nordeste.
Nesse sentido, merece menção a dissertação de Maria Luiza Martini (1993), tratando
da mão-de-obra no Rio Grande do Sul durante o século XIX. Nela, fica destacada a
importância do indígena remanescente das antigas reduções jesuíticas para o trabalho nas
estâncias de gado que se formaram na região durante a primeira metade daquele século.
Também têm perspectivas interessantes as obras de Ligia Osório da Silva (1996), Aldomar
Arnaldo Rückert (1997) e Paulo Afonso Zarth (1997), nas quais, estão analisados os efeitos
da ocupação territorial e da Lei de Terras sobre a população do Rio Grande do Sul naquele
momento. É preciso citar também os textos de Heloisa Reichel (1993; 2000; 2005) sobre a
ocupação e propriedade da terra na região platina no século XIX. Neles, apesar de
extrapolarem o recorte geográfico estabelecido para este trabalho, o índio aparece de forma
mais presente, o que fornece parâmetros de comparação com a política indigenista imperial
brasileira e com o processo de ocupação dos territórios rio-grandenses no mesmo período.
Na bibliografia específica dedicada às populações nativas do Rio Grande do Sul, as
atenções se concentram nos modelos sociais tribais ou, ainda, nas formas pelas quais os
povos indígenas resistiram ao convívio com os colonizadores que se instalaram nos
territórios por eles tradicionalmente ocupados. Esse olhar sobre os índios rio-grandenses
pode ser visto nos textos de Ítala Irene Becker (1976; 1995). No primeiro deles, são
apresentadas as relações estabelecidas entre os grupos Kaingang e a instalação das colônias
de imigrantes alemães na região dos vales. No segundo, estão descritas características
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culturais e históricas dos Kaingang no Rio Grande do Sul, bem como sua movimentação para
dentro dos aldeamentos no século XIX.
O texto de Luís Fernando Laroque (2000), tratando da atuação das lideranças Kaingang
no Brasil meridional, merece destaque, pois apresenta as relações entre índios e brancos não
apenas sob a perspectiva da resistência, mas também os processos de associação através dos
quais os líderes indígenas se aproximaram da política indigenista da província.
A resistência indígena aparece nesses trabalhos, bem como em outros, através dos
diversos relatos de assaltos e saques promovidos pelos índios contra os colonos, indicando
que a situação dos indígenas não era um problema menor no contexto de ocupação dos
territórios rio-grandenses, especialmente nas áreas ao norte e nordeste da província. No
século XIX essas áreas representavam os últimos redutos de índios arredios no Rio Grande
do Sul, por isso, são as regiões onde aparecem registrados o maior número de conflitos entre
índios e brancos no período.
Os problemas decorrentes do relacionamento entre o Império brasileiro em expansão e
as nações indígenas circunscritas no território que veio a constituir o atual território nacional
é o que se tratará como Questão Indígena2 neste trabalho. Nela, estão envolvidas a
sobrevivência cultural e física dos índios, sua relação com o Estado e a sociedade civil, as
disputas por terras e as políticas públicas para solução dos problemas decorrentes do
2 O entendimento dado aqui ao termo “Questão Indígena”, seguiu de perto o de Paulo Ricardo Pezat. Segundo
aquele autor: Por “questão indígena” entendo os problemas decorrentes do relacionamento entre a sociedade nacional (abrangendo os poderes públicos da União, estados e municípios, assim como a sociedade civil) e as nações indígenas. Refere-se tanto à sobrevivência física como à sobrevivência cultural dos povos subjugados, envolvendo lutas por terras, tentativas de absorção, reclusão ou extermínio, grau de tolerância da sociedade conquistadora com a diversidade de costumes dos conquistados, status do indígena incorporado (sob tutela ou como cidadão) etc” (PEZAT, 1997, p. 104).
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encontro entre as sociedades indígenas e a sociedade colonizadora. Esses problemas se
fizeram presentes na atmosfera dos poderes públicos do Império, bem como nas relações
entre os índios e a sociedade capitalista em expansão no Brasil do século XIX.
As políticas indigenistas elaboradas no período colonial para encaminhar essa questão
estão discutidas em textos como os de Beatriz Perrone-Moisés (1992) e John Manuel
Monteiro (1994). A respeito do período entre 1822 e 1889, pode-se encontrar essa mesma
discussão em obras como as de Manuela Carneiro da Cunha (1987; 1992), tratando da
legislação indigenista no período monárquico brasileiro.
Entretanto, a postura oficial do governo rio-grandense no trato da Questão Indígena,
bem como as suas iniciativas para encaminhar os problemas dela decorrentes no século XIX,
momento no qual se efetivava a ocupação capitalista da terra naquela província, permanecem
como uma lacuna na historiografia.
A análise da Questão Indígena, diante do contexto de ocupação dos territórios gaúchos
naquele período, levantou o questionamento que representa a problemática norteadora deste
trabalho: Como se desenrolou a Questão Indígena na Província do Rio Grande do Sul
durante o período imperial?
Foi buscando responder a essa questão central que se desenvolveu a análise da política
indigenista rio-grandense entre 1834 e 1868. Nessa análise, foram abordados os documentos
produzidos naquele período pelos Juizados de Órfãos, pelas Diretorias de Índios e pela
Presidência da Província, que se encontram reunidos no acervo do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul (AHRGS). Os critérios utilizados para seleção desta documentação, bem
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como a análise realizada a partir dela, estão discutidos de forma detalhada no terceiro
capítulo deste texto. Mesmo assim, por hora, é importante destacar que esses organismos
foram selecionados levando-se em consideração a legislação vigente Brasil imperial.
Segundo ela, durante a vigência dos decretos imperiais de 1831, 1832 e 1833, os juízes de
órfãos exerciam com exclusividade a tutela sobre os indígenas e seus bens.
A partir de 1845, com o Regulamento das Missões, os índios passaram a ser encargo
das Diretorias de Índios, órgão diretamente subordinado aos presidentes das províncias.
Entre os documentos provenientes da Diretoria de Índios que abarcava o território do atual
Rio Grande do Sul, foram selecionadas amostras dos relativos aos aldeamentos da Guarita,
Nonoai e da Colônia Militar de Caseros, por serem os conjuntos mais representativos da
Questão Indígena arquivados no fundo de Catequese dos Índios do AHRGS.
Determinados os organismos estatais a serem analisados, foram definidas as balizas
temporais do trabalho, levando-se em consideração as fontes documentais disponíveis. O ano
de 1834 foi determinado como marco inicial do trabalho por ser a data do primeiro
documento proveniente dos Juizados de Órfãos da província a mencionar a Questão
Indígena. O ano de 1868, marco cronológico final da análise, é a data do Relatório mais
recente emitido pela diretoria do aldeamento de Nonoai no período imperial.
Entretanto, para a compreensão da política indigenista aplicada pelo governo da
província de São Pedro entre 1834 e 1868, fez-se necessário estabelecer os princípios a partir
dos quais a Questão Indígena era tratada no Brasil. Para isso, no primeiro capítulo do texto
foi apresentado um histórico dos encaminhamentos dados a questão, desde o período de
dominação portuguesa, até a aplicação das leis que regulamentaram a propriedade capitalista
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da terra durante o período monárquico brasileiro. Apesar de não terem sido elaboradas em
função das disputas territoriais entre índios e brancos, a Lei de Terras e o seu Regulamento,
editados respectivamente em 1850 e 1854, tiveram profundos impactos sobre as populações
indígenas. Isso, pois, com o avanço das frentes de ocupação da terra, a partir da primeira
metade do século XIX, o eixo das discussões entre índios e brancos foi deslocado para as
disputas envolvendo os terrenos tradicionalmente ocupados pelas populações nativas.
Visto que a posse da terra se tornou o ponto central da discussão em torno da Questão
Indígena no século XIX, para uma análise da política indigenista na província de São Pedro,
fez-se necessário a apresentação do contexto regional naquele período. Assim, no segundo
capítulo deste trabalho, foi descrito o processo através do qual se deu a anexação do Rio
Grande do Sul à colônia portuguesa e a sua posterior integração ao avanço das frentes de
ocupação da terra promovido pelo Império. Foi feita, ainda, nesse capítulo, uma análise da
situação dos contingentes populacionais desalojados dos territórios pela instalação de
estâncias e colônias. Entre esse grupo de desterrados, estavam os indígenas das regiões norte
e nordeste da província.
No terceiro capítulo, foi analisada a documentação selecionada no acervo do AHRGS,
relacionando-a aos encaminhamentos historicamente dados à Questão Indígena no Brasil e
ao contexto rio-grandense no século XIX. Nesse processo de análise puderam ser destacadas
as ações tomadas pelos agentes da província diretamente envolvidos na questão, as
articulações entre a política indigenista da província e o projeto imperial para colonização
dos indígenas. Além disso, puderam ser detalhadas as reações dos grupos de índios atingidos
pelas políticas de catequese e civilização desenvolvidas pelo Império e pela província para os
indígenas.
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1 A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL DA COLÔNIA AO II IMPÉRIO
Os encaminhamentos dados à Questão Indígena no Brasil serão apresentados neste
capítulo, abordando desde a implantação da dominação portuguesa na América até a
elaboração das legislações indigenistas, na metade do século XIX, pelo Império Brasileiro.
Cinco momentos foram identificados, sendo que a política indigenista adotada pelos
governos aparece com nuances diferentes, embora não tenha havido, em nenhum deles, uma
mudança substantiva na direção dada à Questão Indígena.
Inicialmente, são caracterizadas as relações estabelecidas entre portugueses e índios
desde o século XVI até a primeira metade do século XVIII, focalizando o tratamento dado
pelo empreendimento colonizador português aos habitantes nativos da América. Este
momento inicial merece destaque, pois nele foram lançadas as bases que nortearam a política
indigenista no Brasil, não somente no período colonial, mas também durante o Império.
No segundo item do texto, são analisadas as mudanças introduzidas pelo Diretório
Pombalino de 1757, o qual, ao remover os religiosos de sua situação de intermediários entre
a coroa portuguesa e os índios, e instituir as vilas pombalinas, alçou os nativos à categoria de
cidadãos.
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No item seguinte, é focalizado o período joanino, principalmente no que diz respeito
aos efeitos das Cartas Régias de 1808, que, ao invocarem as guerras justas, inauguraram uma
ofensiva aberta aos índios hostis dos sertões. Neste momento, a servidão indígena volta a
vigorar oficialmente na colônia portuguesa, incentivando a prea de índios no sertão.
O quarto item analisa a atuação do Império Brasileiro nas décadas imediatamente
posteriores à independência. Mesmo com a independência, permaneceu em vigor a política
indigenista de D. João VI, transformando em uma questão importante, na pauta do Império, a
necessidade latente de se formular uma política geral para nortear as relações entre índios e
brancos.
No quinto item do texto, é abordada a Legislação editada pelo Império para
encaminhar a Questão Indígena, bem como a estrutura instituída por esta Legislação para dar
conta da Questão Indígena no Brasil. Essas legislações vieram suprir a ausência de diretrizes
amplas para a Questão Indígena num período em que essa problemática cruzou com a
regulamentação da propriedade fundiária no Império.
1.1 Relações entre Indígenas e Colonizadores na América Portuguesa
Desde sua implantação, no século XVI, a dominação portuguesa aplicou tratamentos
diferenciados aos índios amigos ou aliados – que eram considerados uma opção de mão-de-
obra – e aos índios que resistiram à conquista, denominados bárbaros ou hostis – aos quais
cabia a guerra e o extermínio. Aos primeiros, desde o século XVI, era destinado o itinerário
descrito por Perrone-Moisés:
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[...] devem ser “descidos”, isto é, trazidos de suas aldeias no interior (“sertão”) para junto das povoações portuguesas; lá devem ser catequizados e civilizados, de modo a tornarem-se “vassalos úteis”, [...] (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 118)
O roteiro identificado pela autora indica o que parecia ser o ponto mais importante da
questão indígena até o final do século XVIII para os portugueses, ou seja: como alinhar as
populações nativas à necessidade de braços da empresa colonizadora. Dos indígenas
aldeados, dependia o trabalho nas roças de subsistência e nas lavouras dos colonizadores,
bem como a manutenção dessa mão-de-obra e a formação de um contingente militar
importante na defesa das vilas portuguesas contra invasores e índios hostis. Os portugueses
dependiam dos nativos aldeados, pois eles conheciam a língua e a região. Esses saberes,
somados ao exemplo que davam ao viverem em aldeamentos, eram fundamentais para novos
descimentos e, portanto, para a renovação dos braços nas lavouras e dos homens disponíveis
para a defesa das vilas.
Para “conquistar pela fé e civilizar” as populações nativas, padres jesuítas vieram para
as novas terras. O primeiro grupo, tendo por superior Manuel da Nóbrega, chegou às
possessões portuguesas em 1549, em Salvador. A partir da instalação de sua residência os
padres passaram, imediatamente, a criar escolas para as crianças indígenas, iniciando os 210
anos de atuação dos jesuítas junto aos índios da América portuguesa. Dando conta dos
objetivos da Companhia de Jesus e também dos interesses da Coroa, foram fundados
colégios3 que deram suporte à ação de catequese reunindo, inicialmente, filhos de
portugueses e meninos índios. Nesses colégios, ministravam-se fundamentos do cristianismo
e padrões de civilização europeus. Os colégios foram fundados com recursos provenientes da
Coroa portuguesa, como doações de terras e outros, inclusive financeiros. 3 Para aprofundamento da atuação jesuíta no Brasil ver: FRANZEN, 2002, p. 69-91.
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A presença dos missionários jesuítas no trato com indígenas foi incisiva até o período
pombalino4, tendo os religiosos da ordem usufruído de uma posição privilegiada na política
indigenista portuguesa. Os padres aplicaram modelos sociais e econômicos no
estabelecimento de reduções bastante harmonizados aos interesses da Coroa. Os
estabelecimentos organizados pelos jesuítas preparavam os índios para servirem como mão-
de-obra aos colonizadores portugueses e, ao mesmo tempo, garantiam a posse da costa
brasileira pela sedentarização da população. Além disso, as reduções produziam a maior
parte dos mantimentos consumidos no seu sustento tendendo a auto-suficiência econômica,
ou ao menos a uma suficiência relativa. Assim, os estabelecimentos organizados pelos
jesuítas tornaram-se interessantes e viáveis para a coroa portuguesa.
Os primeiros estabelecimentos situaram-se na faixa litorânea, atendendo às
necessidades metropolitanas de povoar a costa e preservar a posse do território. Ainda no
século XVI, no que tange às relações entre índios e brancos, iniciaram-se duas práticas que
se perpetuaram nas possessões portuguesas na América. A primeira foi a inserção do
elemento branco nos estabelecimentos destinados à civilização de indígenas, inclusive com a
introdução de órfãos “como instrumentos de atracção dos pequenos indígenas [...]”
(FRANZEN, 2002, p. 77). A segunda foi a concentração de índios no litoral, suprindo a
defasagem de população no território ocupado pelos portugueses.
Essas práticas puderam ser verificadas ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as
atividades dos missionários passaram a penetrar mais no interior do continente. Os
4 Período entre 1757 e 1798, quando vigorou o Diretório que se Deve Observar nas Povoações de Índios do
Pará e Maranhão, ou simplesmente, Diretório Pombalino. As modificações no trato com os índios introduzidas pelo Diretório serão discutidas mais adiante nesse capítulo.
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descimentos permaneceram como uma constante durante todo o período da administração
portuguesa. Como destacado por Perrone-Moisés (1992, p. 118), era recomendado persuadir
os indígenas de que lhes interessava a proximidade com os colonizadores, pois os
portugueses garantiriam seu bem-estar. Para isso, os descimentos eram sempre
acompanhados de um missionário, incumbido de convencer os indígenas das vantagens de se
unirem aos vassalos portugueses.
Uma vez aldeados, os indígenas recebiam garantia de manutenção de suas terras. Essa
garantia apareceu, pela primeira vez, no Alvará de 26/07/1596, expresso pela máxima
“senhores das terras das aldeias, como o são na serra”5, tendo sido reafirmada por diversas
vezes durante o período português, como por exemplo no Alvará de 1596; nas Leis de 1609 e
1611; na Provisão de 08/07/1604; na Carta Régia de 17/01/1691; no Diretório de 1757)6.
Posteriormente, o Império voltou a garantir terras reservadas aos índios (Decreto n.º 426 de
24/07/1845; Lei de Terras de 1850; Lei n.º 1318 de 31/01/1854)7.
Nesses aldeamentos, a população indígena ficava confinada em áreas mais reduzidas
que as originalmente ocupadas – daí a associação feita por Manuela Carneiro da Cunha entre
a redução territorial e o termo “redução” utilizado para definir a reunião de índios nas
missões jesuíticas durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Com esse confinamento, os sertões
ficavam “limpos” para os colonos, vistos como os capazes de cultivar a terra que estava
sendo desperdiçada pelos “selvagens”. As reduções territoriais, promovidas pelos
aldeamentos dos missionários a partir do século XVI, foram o primeiro grande esbulho de
5 Apud PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 119. 6 Idem, ibidem. 7 Reproduções desses documentos podem ser encontradas in: CUNHA, 1992, p. 191, 212, 220.
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terras sofrido pelos índios8. Nas áreas de índios ditos “bravos”, sedentarizá-los em aldeias
tornou-se uma prática comum desde aquele período.
Quanto às relações de trabalho entre indígenas aldeados e colonos, dispositivos legais
estabeleciam, tanto para as administrações leigas quanto para as dos missionários, como
deveriam ser os modos de pagamento e os períodos de serviço para os indígenas aldeados. A
remuneração do trabalho dos indígenas provenientes de aldeamentos foi prevista em Lei
desde 1587, reafirmada no Alvará de 1596, em Lei de 1611, no Regimento para o Grão-Pará
e Maranhão de 1655 e no Diretório de 1757. Diversos desses documentos referiram a boa
vontade dos índios em trabalharem para colonos sob tais condições. No entanto, como
observou Perrone-Moisés em nota ao seu texto sobre a legislação indigenista colonial, “de
seus “salários”, em geral pagos ao administrador das aldeias, os índios costumam receber
apenas uma fração, e em espécie” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 131).
Corroborando a análise da autora acima citada, as violações à liberdade e ao prazo de
trabalho estipulado, os salários não pagos e a submissão dos indígenas a condições piores do
que a escravidão foram constantemente documentadas na bibliografia referente ao
indigenismo na América portuguesa9.
1.2 O Diretório Pombalino
8 Essa circunstância foi freqüentemente referida na bibliografia, sendo discutida de forma bastante completa nos
textos de Manuela Carneiro da Cunha sobre os Diretos do Índio e sobre a Legislação Indigenista no Brasil do século XIX.
9 Para aprofundamento das violações contra o trabalho indígena ver: MOREIRA NETO, 1988; PERRONE-MOISÉS, 1992; MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, 1992.
21
O Diretório Que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, ou
simplesmente Diretório Pombalino10, entrou em vigor em 1757, trazendo um conjunto de
mudanças que laicizaram as reduções, nomeando diretores não religiosos para a
administração das aldeias. O seu texto reafirmou a abolição oficial da servidão indígena,
como já acontecera diversas vezes no século XVII, bem como o princípio de converter os
indígenas em agricultores sedentários e produtivos foi mantido, como sugeria o fragmento
abaixo do Diretório Pombalino de 1757:
19 Depois que os Diretores tiverem persuadido aos Índios essas sólidas, e interessantes máximas, de sorte, que eles percebam evidentemente o quanto lhes será útil o trabalho, e prejudicial a ociosidade; cuidarão logo em examinar com a possível exatidão, se as terras, que possuem os ditos Índios são competentes para o sustento de suas casas, e famílias; e para nelas fazerem suas plantações, e as lavouras; de sorte, que com a abundância dos gêneros possam adquirir as conveniências, de que até agora vivem privados, por meio do comércio em benefício comum do Estado.11
Segundo Carlos Moreira Neto (1988, p. 20), a partir do Diretório, o regime implantado
pelos jesuítas cedeu seu lugar a um esforço sistemático da coroa para a integração12, sem
intermediários, dos indígenas aldeados ao sistema colonial.
A presença de colonos brancos nos aldeamentos indígenas, que já era uma realidade
desde o período dos jesuítas, foi incentivada pela política pombalina. Enquanto vigorou o
10 O diretório era um texto legal editado no século XVIII, que regulamentava os aldeamentos indígenas. Apesar
de ter visado o Pará e o Maranhão, foi aplicado em toda a colônia portuguesa na América. Seguindo a lógica de racionalização do Estado vigente no período, converteu as antigas aldeias em vilas, diminuiu o papel da Igreja no trato com os índios e aplicou um modelo de urbanização que visava inserir os índios política, econômica e socialmente em uma esfera de administração laica.
11 Diretório Que Se Deve Observar nas Povoações dos Índios da Pará, e Maranhão, § 19 apud MOREIRA NETO, 1988, p. 166. A redação do documento foi atualizada por aquele autor.
12 A perspectiva de integrar o indígena ao restante da sociedade colonizadora em expansão configurou-se como uma característica constante da política indigenista no Brasil, desde o período colonial até a República. Neste trabalho, a manutenção dessa perspectiva de que os índios se integrariam a sociedade que se formava em trono deles foi chamada de integracionismo.
22
Diretório, famílias de colonos foram instaladas no interior das vilas para que, com a
convivência entre índios e brancos, acabasse a “odiosa separação, entre uns e outros”13.
As vilas instituídas pelo Diretório eram diferentes dos aldeamentos jesuítas,
principalmente pela existência de um modelo administrativo aparelhado e controlado pelo
estado colonial português. As vilas de Pombal trouxeram, ao universo físico do índio, além
da presença efetiva do colono, autoridades e instituições que representavam oficialmente a
coroa portuguesa como os códigos de posturas e a normas legais. Índios e mestiços se viram
alçados a postos de vereadores, juízes e administradores, entre outros.
Acima de tudo, como destaca Moreira Neto (1988, p. 25), “a nova ordem representava
a desistência da autonomia relativa”. Essa relativa autonomia, característica dos aldeamentos
missionários, cedeu espaço à integração dos indígenas à ordem colonial como cidadão de
segunda categoria. O mesmo autor destaca, sobre a situação dos índios cidadãos de Pombal,
não podermos esquecer que “colonizados, eram necessariamente subordinados aos
colonizadores e nunca iguais em direito, a despeito dos textos legais” (MOREIRA NETO,
1988, p. 25). Essa afirmação vem ao encontro do que parece ser a função básica da vila
pombalina: integrar o índio já aldeado ao mundo da América portuguesa, aproveitando o que
Moreira Neto (1988) chamou de “índio genérico”14. Esse indígena, destituído de suas
identidades tribais, foi criado pelos missionários nas reduções e transformado numa massa
produtiva econômica e socialmente controlada.
13 Diretório Pombalino, 1757, §80-8 apud PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 119. 14 O termo “Índio Genérico”, usado pelo autor ao tratar dos indígenas do século XVIII, refere-se aos indígenas
aldeados, que já haviam sido expostos, ao menos parcialmente, ao processo de apagamento das identidades tribais. A criação desse “Índio Genérico” fazia parte do que poder-se-ia chamar de funções implícitas dos aldeamentos, pois, as antigas identidades tribais traziam consigo toda uma carga de conflitos endógenos e exógenos, sendo alguns deles anteriores aos contatos entre portugueses e índios, que inviabilizavam o convívio intertribal nos aldeamentos e dificultavam a utilização da mão-de-obra indígena.
23
A importância do indígena como mão-de-obra e habitante de território, juntamente com
a de parcela integrante do reino português, aparecia associada, também, à política
expansionista portuguesa. As instruções enviadas por Pombal ao seu comissário para as
questões de limite na região sul evidenciam isso:
[...]a fôrça e a riquesa de todos os Países consiste principalmente no número e multiplicação da gente que o habita: como [...]se faz mais indispensavel, agora, na Raia do Brasil, para sua defesa, em razão do muito que tem propagado os Espanhóis nas fronteiras deste vasto continente, onde não podemos ter segurança sem povoarmos, á mesma proporção, as nossas Provincias desertas [...] não só julga S.M. necessário que V.Sa. Convide, com os estímulos acima indicados, os vassalos do mesmo Senhor, Reiniculas e Americanos que se acham civilizados, mas tambem que V.Sa. estenda os mesmos e outros privilégios aos Tapes, que se estabeleceram nos Dominios de S.M., examinando V.Sa. as condições que lhes fazem os Padres da Companhia Espanhois, e concedendo-lhes outras à mesma imitação, que só não sejam iguais, mas ainda mais favoráveis; [...]15
O diretório Pombalino e os parâmetros por ele estabelecidos para o tratamento da
questão indígena vigoraram até sua revogação por Carta Régia, em 12 de maio de 1798.
Essa, além de revogar o Diretório Pombalino, restabeleceu a servidão e atribuiu aos índios a
condição de órfãos.
§ 41 – Todos aquelles moradores que ajustarem e trouxerem para os servir Indios d’aquellas Nações que estiverem em paz como estão agora os Murás, Mondurucús e Carajaz: ordenovos lhes permitais estes ajustes, obrigando-os porém a manifestar logo ao Governador aquelles que d’este modo trouxerem, afim que mandeis immediatamente proceder a termo, pelo qual sejam obrigados [...] a educar e instruir os mesmos Indios de sorte [...] que sejam elles baptizados; e pelo mesmo termo ficarão elles obrigados a pagar-lhes o estipendio convencionado. Para o que hei por bem conceder a estes Indios o privilégio de Orphãos.”16
15 Instruções de Pombal a Gomes Freire apud MOREIRA NETO, 1988, p. 26. 16 Fragmento da Carta Régia de 1798 apud CUNHA, 1987, p. 110.
24
A tutela orfanológica17, que caracterizou o tratamento das questões indígenas no século
XIX, surgiu na revogação do Diretório Pombalino com a determinação de que os índios
seriam tutelados pelo estado com o status jurídico de órfãos. A partir daquele momento, os
juizados de órfãos deveriam cuidar para que os índios, por eles tutelados, não fossem lesados
em seus contratos de trabalho. Apesar de a tutela orfanológica representar um direito
assegurado à assistência legal, a integração do índio como súdito leal da Coroa, sob essa
condição, atribuía-lhe a conotação de um cidadão de segunda categoria, incapaz18 e, por isso,
tutelado. A condição de órfãos visava evitar que, por sua incapacidade de compreender a
língua ou os costumes dos cidadãos civilizados, libertos de qualquer ordem fossem
escravizados, estando protegidos pela orfandade não apenas os índios, mas também os
negros libertos. Esses últimos, segundo Cunha (1992, p. 24), eram, em geral, africanos
resgatados em águas brasileiras por navios britânicos depois da proibição do tráfico de
escravos.
1.3 A Política Indigenista de D. João VI
A ação da Coroa portuguesa no início do século XIX foi de caráter profundamente
anti-indígena. Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, D. João VI
restabeleceu a guerra justa e incentivou a servidão indígena através das Cartas Régias de 13
de maio, 05 de novembro e 02 de dezembro de 1808. Nelas, a guerra justa aos índios ditos
selvagens, antes invocada defensivamente, foi reinaugurada com caráter abertamente
ofensivo contra os índios de São Paulo e Minas Gerais, genericamente chamados de
17 Para maior aprofundamento ver: CUNHA, 1992, p.25. 18 A incapacidade relativa dos índios, expressada pela tutela orfanológica, vigorou durante o século XIX e parte
do século XX, concretizando-se legalmente no código civil republicano de 1916. Para maior detalhamento das políticas indigenistas na Primeira República e da incapacidade relativa no Código Civil Brasileiro de 1916, ver: LIMA, 1995.
25
botocudos. O caráter anti-indígena da política de D. João teve receptividade em todas as
regiões da colônia, pois, apesar de fazerem referência aos botocudos das regiões de São
Paulo e Minas Gerais, as Cartas Régias de 1808 e 1809 foram aplicadas em todas as áreas do
domínio português na América. Um exemplo da aceitação da guerra justa foi a carta que
aprovou o projeto de estabelecer uma comunicação por terra entre as áreas de colonização no
Pará e em Goiás, apresentado pelo desembargador Theotonio Segurado em 1811:
Acontecendo porém [...] que a nação Carajá continue nas suas correrias, será indispensável usar contra ela da força armada; sendo este, também, o meio de que deve lançar mão para conter e repelir as nações Apinagé, Chavante, Cherente e Canoeiro; por quanto, suposto que os insultos que elas praticam tenham origem no rancor que conservam pelos maus tratamentos que experimentaram da parte de alguns Comandantes das aldeias, não resta, presentemente, outro partido a seguir senão intimidá-los, e até destrui-los, se necessário for, para evitar os danos que causam19
No fragmento acima, aparecem aprovadas ações militares contra grupos indígenas
conhecidos, sendo que alguns deles tinham contato pacífico com a sociedade regional.
Segundo Moreira Neto (1988), a postura de aceitar o índio porque era fornecedor de mão-de-
obra cedeu espaço para uma rejeição étnica do mesmo. Este último, caso não se sujeitasse ao
projeto de expansão português, deveria ser eliminado e substituído por indivíduos mais
alinhados ao avanço do progresso e da civilização.
Os indígenas feitos prisioneiros nas ditas guerras justas deveriam servir aos milicianos
e moradores que os aprisionassem. Como era de se esperar, em um território vasto e
frouxamente controlado pelo poder central, as Cartas Régias abriram a possibilidade de
guerra contra muitos grupos indígenas em diversas regiões da colônia. Esses grupos se
19 Apud MOREIRA NETO, 1988, p. 33.
26
tornaram uma fonte farta e oficialmente viável de mão-de-obra e de terras, pois, como
anunciavam os textos régios, os índios aprisionados deveriam servir por quinze anos e as
terras conquistadas, passavam a ser consideradas devolutas20.
Segundo os textos régios de D. João VI, a servidão dos indígenas seria temporária e
serviria para conjugá-los à sociedade civilizada através dos exemplos que teriam, vivendo
com seus senhores. O convívio com os civilizados também serviria para iniciar os selvagens
na agricultura e nos ofícios mecânicos, preparando-os para se tornarem vassalos úteis da
coroa.
O discurso contido nas Cartas Régias de D. João VI, também presente no documento
pelo qual foi revogado o Diretório Pombalino em 1798 apregoava, na realidade, uma
justificativa para a servidão indígena, apresentando o que poderíamos chamar de uma
“pedagogia da civilização”.
20 Segundo Siqueira Campos (1936, p. 13), originalmente, a definição jurídica de “devoluto”
fazia referência à propriedade de terras que retornou ao domínio de um seu senhor de procedência, pelo fim da validade das concessões ou outros títulos que legitimavam sua ocupação. Entretanto, Lígia Osório da Silva (1996, p. 156) destacou que o sentido atribuído ao termo “Terras Devolutas”, pela Lei de Terras de 1850, não equivalia a sua definição jurídica tradicional. Houve uma redefinição do conceito, tornando legal o sentido usualmente dado ao termo devoluto desde os tempos coloniais, com o qual o conceito entrou definitivamente para a língua portuguesa, o de vago. Essa redefinição do conceito ia ao encontro dos parâmetros definidos para a ocupação da terra segundo a Lei de 1850, pois respeitava o domínio dos posseiros, mesmo quando inexistiam títulos de domínio legal. Seguindo ainda o destacado por Silva, o artigo 3º da Lei mantém a validade do domínio dos posseiros quando define as Terras Devolutas pela exclusão das que não o são, ou seja, as que não eram de uso público, as que não estavam sob domínio particular por título legítimo, as que não se achavam ocupadas por posse mesmo que não fundadas em título legal. Considerando as terras excluídas pelos parâmetros citados acima, o que restou foram as terras vagas, ou tidas como desocupadas. Assim, para fins de análise, considerou-se, neste trabalho, a definição dada a Terras Devolutas como sinônimo de vagas, visto, como já destacado por Silva, ter sido este o significado usualmente dado ao termo desde a colônia, e que foi legalizado a partir de 1850. Para uma análise completa do significado do termo, ver: SILVA, 1996, p. 156. Ver ainda: CAMPOS, 1936, p. 13.
27
Essa pedagogia da civilização se tornou uma característica das iniciativas tomadas pela
coroa para solucionar a Questão Indígena no início do século XIX. Segundo ela, os indígenas
aprenderiam os padrões de convivência necessários para serem integrados na sociedade
civilizada através do convívio com cristãos que os educassem. Como recompensa, pelo seu
empenho em trazer os selvagens para o seio da civilização, os tutores podiam utilizar a mão-
de-obra dos indígenas por eles tutelados enquanto os educavam, ou pelo tempo estipulado
pelas legislações vigentes. A oficialização dessa fonte de braços e terras pode ser
exemplificada pelo seguinte fragmento da Carta de 1º de abril de 1809:
Ao mesmo comandante ordenareis que, quando seja obrigado a declarar a guerra aos índios, que então proceda a fazer e deixar fazer prisioneiros de guerra pelas bandeiras que ele primeiro autorizar a entrar nos campos ... bem entendido, que essa prisão ou cativeiro só durará 15 anos, contados desde o dia em que forem batizados [...] Autorisareis ao Commandente para que além das sesmarias concedidas ao Governo possa repartir os terrenos devolutos em proporções pequenas [...]21
A conversão dos terrenos tomados dos índios em terras devolutas pelas Cartas Régias
de D. João VI pareceu ser um primeiro encaminhamento da política indigenista adotada nas
décadas seguintes. Em outra palavras, a ocupação da terra passou a dar a tônica das
discussões a respeito dos problemas envolvendo índios no século XIX. O deslocamento do
eixo da Questão Indígena para a terra foi impulsionado, entre outros motivos, pelo
incremento da mão-de-obra escrava negra que reduziu a importância do índio como
trabalhador e, principalmente, pelo avanço das frentes de expansão agrícola rumo ao sertão.
A busca pelas ditas “terras vazias”22 que, por sua vez, representavam uma imensidão de
21 Fragmento da Carta Régia de 01 de abril de 1809, reproduzida em: CUNHA, 1992, p. 71. 22 O termo terra vazia, aqui mencionado, não deve ser tomado no seu sentido literal, visto ser sabido que as
áreas geográficas para as quais avançaram os portugueses na América, bem como o Império brasileiro depois
28
terras a serem libertadas da improdutiva barbárie dos seus habitantes naturais, tornou
dinâmicas as fronteiras do sertão23.
1.4 O Império Brasileiro
O período entre a revogação do Diretório Pombalino e o Regulamento das Missões de
1845 permaneceu carente de uma legislação que desse conta da Questão Indígena em âmbito
geral.
A característica flutuante da política indigenista nas últimas décadas do domínio
português, onde cada caso era julgado conforme as circunstâncias específicas e que aparecia
inserido, permaneceu como uma continuidade durante todo o primeiro Império. A
independência em nada modificou o tratamento dado aos índios, sendo que não podemos
destacar nem mesmo grandes alterações na forma de pensar as relações entre índios e
brancos. Prova dessa continuidade foi o silêncio da Constituição de 1824, que manteve em
vigor as diretrizes estabelecidas por D. João VI.
Durante a primeira metade do século XIX, a questão indígena apareceu ligada ao
acirramento da disputa pela posse da terra que, como mencionado anteriormente, se tornou a
tônica do problema no período. Essa disputa passou a ter um espaço mais relevante nas
discussões do Parlamento brasileiro, onde apareciam subterfúgios como os apresentados por
deles, eram bastante povoadas. Por outro lado, o conceito de terra vazia, que persistiu por todo o período de expansão dos limites e fronteiras brasileiros, legitimava a posse daqueles territórios anteriormente ocupados por indivíduos ou coletividades tidos como marginais em relação aos projetos de ocupação propostos oficialmente, tanto pelo governo português quanto pelo Império do Brasil. Para uma discussão mais aprofundada da função do conceito de terra vazia na expansão fronteiriça brasileira ver: VANGELISTA, 2000, p. 59-72.
23 A necessidade da busca de novas terras para a agricultura no sertão aparecia, no período, associada à difusão dos princípios fisiocratas. Doutrina econômica que circulou pela Europa na segunda metade do século XVIII, segundo a qual, somente a produção em larga escala no setor agrícola poderia construir a prosperidade de uma nação, pois era produção dos grandes territórios destinados a agricultura seriam, segundo os fisiocratas, a única fonte verdadeira de riqueza.
29
um deputado do Maranhão, usando elementos da relação entre os índios e suas terras para
negar-lhes a legitimidade do indigenato24:
Uma aldeia de 200 a 300 índios, umas vezes se achava a 20 léguas acima e dahi a poucos dias 20 léguas mais abaixo; chamar-se-ão estes homens errantes, proprietários de tais terrenos? Poderá dizer-se que elles tem adquirido direito de propriedade? Por que razão não se aldeiam fixamente como nós? [...] Eu quisera que se me mostrasse a verba testamentária, pela qual nosso pai Adão lhes deixou aqueles terrenos em exclusiva propriedade [...]25
Segundo Carlos Araújo Moreira Neto (1998), a posição do Império refletia a exclusão
do índio da agenda de interesses nacionais26, restando a eles, o papel de empecilho à
expansão territorial do Império.
Contudo, a necessidade de uma política indigenista com medidas amplas e
permanentes era sentida em vários níveis do governo imperial e, apesar de a Constituição de
1824 não ter levado em consideração a questão, ela foi bastante debatida no período
imediatamente anterior ao texto constitucional outorgado por D. Pedro. A Assembléia
Constituinte de 1823 formou, durante os trabalhos de elaboração do projeto constitucional,
uma Comissão de Colonização e Catequização, a qual recebeu, em junho do mesmo ano, um
projeto de José Bonifácio com o nome de Apontamentos Para a Civilização dos Índios
Bárbaros do Brasil.
24 Direito originário a posse da terra definido por Beckhausen como: “Trata-se de direito congênito, impregnado
de laços culturais e históricos, que não se confunde com a posse civil, tampouco com ocupação (já que neste sentido estaria implícito um direito preexistente) e que nos remete a imemorialidade do domínio sobre as terras brasileiras [...].” BECKHAUSEN, 2000, p. 59.
25 Annaes do Parlamento Brazileiro, Rio de Janeiro, Assembléia Geral Legislativa, Câmara dos Senhores Deputados, 1826, tomo terceiro, Typ. Do Imperial Instituto Artístitco, 1874, p. 189. Reproduzido parcialmente in: CUNHA, 1992, p. 16.
26 Para aprofundamento ver: MOREIRA NETO, 1998, p. 40.
30
O texto de Bonifácio foi uma das mais inovadoras e influentes propostas de
encaminhamento para a questão indígena no século XIX, embora mantivesse a visão
eurocêntrica do índio selvagem:
Com effeito o homem no estado selvatico, e mormente o Indio bravo do Brazil, deve ser preguiçoso; porque tem poucas, ou nenhumas necessidades; porque sendo vagabundo, na sua mão está arranchar-se successivamente em terrenos abundantes de caça ou de pesca [...]27
Mesmo mantendo a imagem de inferioridade dos indígenas e não tendo sido levado a
cabo, os Apontamentos de José Bonifácio gozam de, pelo menos, dois grandes méritos. Esses
Apontamentos tornaram-se um marco da questão indígena no Brasil, cujos princípios se
fizeram presentes em outros documentos indigenistas posteriores, com influências visíveis
até mesmo na criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) já durante a Primeira República.
Além disso, indicavam uma demanda que se apresentava como fundamental na sua época: a
criação de medidas amplas e permanentes para o trato da questão indígena.
Os Apontamentos de José Bonifácio haviam sido apresentados, anteriormente, numa
reunião das Cortes Gerais de Lisboa (1821-1823), juntamente com outros projetos de
deputados brasileiros. Apesar do prestígio político do autor, nenhum dos dois parlamentos
aprovou a proposta. A sua reprovação, na Constituinte de 1823, demonstra, para Moreira
Neto (1988, p. 40), “a continuidade dos interesses coloniais no Brasil após a independência”,
ao menos no tocante à Questão Indígena, onde, seguindo uma lógica fisiocrata, se procurava
liberar terras dos índios para a colonização e a produção agrícola.
27 SILVA apud CUNHA, 1992, p. 348.
31
Enquanto projetos como o de José Bonifácio procuravam manter, nas discussões da
Constituinte de 1823, a idéia da integração do índio ao restante da sociedade, outros
parlamentares buscavam a anulação do índio naquela pauta. Para alguns deputados, manter
os direitos dos índios não fazia parte das atribuições do Império, como ficou expresso em
declaração feita pelo deputado Montesuma: “Os índios não são brazileiros no sentido político
em que se toma; elles não entram comnosco na família que constitui o imppério”28.
O projeto de constituição de 1823, em seu Título XIII, art. 254, chegou a propor que a
“Assembléia terá igualmente cuidado de crear estabelecimentos para Catechese e civilização
dos índios, emancipação lenta dos negros, e sua educação religiosa, e industrial”29.
Entretanto, esse projeto constitucional esbarrou em D. Pedro I que, na sua Carta Outorgada
em 1824, não fez qualquer referência aos índios ou aos problemas suscitados pelas suas
relações com o restante da sociedade que se formava.
Para Cunha (1987, p. 63), o Brasil independente retrocedeu no reconhecimento dos
direitos indígenas, negando a soberania e a cidadania aos índios. Os estadistas colocaram a
questão da construção da nação brasileira, desde a independência, a partir das premissas da
Revolução Francesa, conforme as quais, a cada Estado, deveria corresponder uma nação30.
28 Diário da Constituinte, sessão de 25/09/1823 apud CUNHA, 1987, p. 63. 29 Fragmento do projeto de Constituição de 1823 apud 1987, p. 212. 30 O termo nação, tomado aqui como uma instituição que surge com a Revolução Francesa, não aparecia
carregado das conotações étnico-culturais que lhe foram conferidas posteriormente pelo romantismo. Conforme Chiaramonte (1993), na concepção herdada dos franceses e que se tornou usual no início do século XIX, a nação era configurada como uma reunião do povo (ou povos), sujeito a um governo ou representação comum, vivendo segundo uma mesma legislatura. Assim, substancialmente, a nação e o Estado tem a mesma gênesis, posto que ela não era a tradução de uma nacionalidade, mas a consolidação de uma legitimidade político-administrativa capaz de imputar a soberania. Depois da terceira ou quarta década do século XIX, com o romantismo, a nação foi associada ao princípio da nacionalidade, com toda a sua carga étnico-cultural e sua capacidade de legitimar a existência do Estado. Para um aprofundamento das utilizações do termo nação nos séculos XIX e XX, ver: CHIARAMONTE, 1993, p. 49-84.
32
Dentro dessa visão de nação, era impossível garantir direitos a um grupo não identificado
com o restante da sociedade nacional.
Segundo a mesma autora, o silêncio da Carta Outorgada em 1824 a respeito da questão
Indígena representava um paradoxo. Isso ocorreu porque, enquanto se negava o índio, não
mencionando sua existência na Constituição, o mesmo era difundido como um símbolo
nacional. Um exemplo dessa contradição são os personagens criados por José de Alencar em
Iracema e o Guarani.
Com relação ao índio representado como símbolo da nação, um outro paradoxo
destacado por Cunha (1992, p. 5) diz respeito a que, no século XIX, a questão da
humanidade do índio voltou a ser colocada. O cientificismo do período preocupou-se em
estabelecer antropóides humanos e levantou controvérsias sobre a linha que marcava o
fenótipo biológico humano. Três crânios de Botocudos foram parar em coleções suecas,
alemãs e americanas, entre 1818 e 1868. Examinando o crânio levado em 1818 pelo príncipe
von Wied-Neuwied, Blumenbach o classificou como algo entre o orangotango e o homem. O
crânio levado a Harvard por Hartt, em 1868, foi analisado e declarado bastante próximo do
humano. Para a autora, o que “os tupi-guaranis são à nacionalidade”, figurando como
símbolo da auto-imagem do Brasil, “os botocudos são à ciência” (Cunha, 1992. p. 7).
Oficialmente, a humanidade do índio era afirmada, mantendo o orgulho nacional, mas,
domesticamente, a idéia da bestialidade e animalidade indígena era freqüentemente
expressada. Em 1827, Francisco Pereira de Santa Apolônia, presidente da província de Minas
Gerais, fez o seguinte comentário sobre a índole dos Aymorés: “Permitta-me V. Exa.
33
Reflecitir que de Tigres só nascem Tigres; de Leoens, Leoens se gerão; e dos cruéis
Botocudos (que devorão, e bebem o sangue humano) só pode rezultar Prole semelhante.”31
Ao nível das ações concretas, a primeira iniciativa substancial promovida pelo governo
imperial foi em 1826, com a condução de uma ampla consulta às províncias sobre a índole
dos índios da região, quais as melhores terras para aldeá-los e quais os motivos pelos quais as
iniciativas anteriores teriam falhado mesmo com recursos da fazenda pública. A origem
dessa consulta, provavelmente, estava vinculada à atuação da Comissão de Colonização e
Catequese formada em 1823, somada à influência dos Apontamentos de José Bonifácio sobre
o pensamento indigenista da época. A intenção da consulta era a formulação de um Plano
Geral de Civilização para os Índios, mas como as respostas obtidas pelo governo
demonstraram a impossibilidade do estabelecimento do mesmo naquele momento, a
iniciativa acabou fadada ao esquecimento.
Enquanto permanecia a ausência de uma diretriz geral a ser dada à Questão Indígena,
intensificavam-se as iniciativas de ocupação produtiva das ditas terras vazias.
Os indígenas apareciam de forma singular nesse quadro, pois o indigenato havia sido
reafirmado legalmente diversas vezes, demonstrando que, em tese, o Estado reconhecia o
direito dos índios à terra. Entretanto, na prática, o indigenato continuava sendo violado,
algumas vezes com a conivência do próprio Estado. Essa circunstância criou uma situação
onde a terra precisava ser desapropriada legitimamente.
31 Francisco Pereira de Santa Apolônia ao Visconde de São Leopoldo, março de 1827. Apud CUNHA, 1992, p.
5.
34
Complementando o esbulho das terras indígenas, iniciado pelas reduções do século
XVI, nas áreas de colonização mais antiga identificou-se uma segunda etapa da tomada das
terras indígenas: o apossamento das terras que haviam sido reservadas para os aldeamentos.
Como já dito anteriormente, os aldeamentos foram criados para a iniciação dos
indígenas no convívio com o restante da sociedade. Visando acelerar o processo de
integração dos índios a sociedade, foi mantida, entre 1808 e 1824, a mentalidade pombalina
de conceder terras a colonos portugueses no interior dos aldeamentos, para que eles
servissem como exemplo de civilidade aos indígenas aldeados. Essa prática foi mantida pelo
menos até o Regulamento das Missões em 1845.
Uma vez misturados à população sertaneja, os índios eram então classificados como
“assimilados” e o aldeamento extinto, liberando a terra para a posse legal dos colonos32.
Esses últimos, por sua vez, viam, na proximidade das aldeias, uma possibilidade de
abastecimento de mão-de-obra farta, barata e administrada por indivíduos nomeados pelo
Estado com autonomia para dispor a mão indígena a terceiros.
As etapas descritas acima não podem ser grifadas como regra. Entretanto, elas
apareceram como uma prática recorrente nas questões envolvendo terras indígenas e, pelo
32 Um exemplo pôde ser constatado em correspondência expedida pelo Juiz de Órfãos de Porto Alegre, Joaquim
Lopez de Barros em 1856, referindo-se ao aldeamento da Aldeia dos Anjos, criado na segunda metade do século XVIII: “(...) tenho a honra de informar segnificando a V. Exª. primeiro que tudo, e pelo que é publico e notorio que na Freguezia da Aldeya de Nopsa Senhora dos Anjos foi onde houve se não o primeiro pelo menos um dos primeiros Aldeyamentos de Indios d’esta Provincia, e que as terras depse Aldeyamento se diz terem sido invadidas e usurpadas por mtas. Pepsoas por ter sucepsivamente declinado e achar-se inteiramente extinto (...)”. Correspondência do Juizado de Órfãos de Porto Alegre, 11 de outubro de 1856. AHRGS J-23.
35
menos até o final do século XIX, formavam um processo de expropriação comumente
verificado.
1.5 A Legislação Indigenista do Século XIX
Dada a derrota da modernização proposta por Bonifácio em 1823 e a completa omissão
da Carta Outorgada de 1824, a legislação indigenista, que continuou vigorando nos primeiros
anos do Império brasileiro, constituía-se das Cartas Régias de D. João VI. O Império
permaneceu fomentando o aldeamento de grupos indígenas e seguindo a lógica característica
do período de disponibilizar espaços colonizáveis. A legislação imperial reafirmou repetidas
vezes a demarcação de terras para a civilização de índios, o que demonstrava a manutenção
da perspectiva integracionista e o vislumbre da formação de uma nação unificada, da qual o
índio deveria fazer parte. Outra permanência, que visava a integração dos índios, era o
incentivo à instalação de colonos brancos entre os indígenas. Exemplo dessas continuidades
foi o Decreto nº.31 de janeiro de 1824:
Sendo consideravel o numero de Indios Botecudos que têm concorrido, e todos os dias vem concorrendo ás margens do Rio Doce, os quaes é de summa necessidade contentar e aproveitar, já, aldeando-se e dispondo-os para a civilisação, [...]: Manda S. M. o Imperador [...] ao Governo da Provincia do Espirito Santo, o brevissimo regulamento interino [...], para que o ponha logo em pratica: dando regularmente parte do que fôr passando, e apontando as providências que julgar adequadas. E porque para o aldeamento dos Indios é necessario marcar terreno, e muito convem aproveitar os colonos civilisados que forem concorrendo a pedir terras para se estabelecerem, pois que de sua vizinhança, e communicação resultam gradnes benefícios á civilisação de selvagens: Manda outrosim S. M. o Imperador que o Governo da Provincia, além dos terrenos para o aldeamento dos Indios, continue a dar sesmarias a particulares que as pedirem, na fórma das leis; Manda finalmente o mesmo A. S. que seja empregado como Director dos Indios e Inspector da guarda de Pedestres que se estabelecer, o Coronel Julião Fernandes Leão, por confiar delle que desempenhará tão importante commissão, visto a
36
actividade, zelo e intelligencia que tem mostrado neste genero de trabalho. Palacio do Rio de Janeiro em 28 de Janeiro de 1824. – João
Severiano Maciel da Costa.33
A reserva de terras para os índios não recebeu parâmetros novos de imediato,
permanecendo norteada pela Provisão de 08/07/1819 e pelo Decreto de 26/03/1819,
documentos nos quais ficara afirmado que as demarcações deveriam ser “nos lugares em que
se achão arranchados, pela preferência que devem ter nas sobreditas terras”34. Na consulta
promovida pelo Império em 1826, apesar dos resultados pouco favoráveis, percebemos os
ecos desses parâmetros, onde se afirmava a preferência dos índios na escolha dos locais para
os aldeamentos. A declaração dada pela Câmara da Vila de Barbacena, na consulta de 1826,
mostrava que os parâmetros estabelecidos em 1819 ainda tinham voz corrente na reserva de
terras para os indígenas. Na declaração dizia que: “deve ser a arbítrio e escolha dos mesmos
índios: parece injustiça que ao dono da caza se determine lugar para sua estada”35.
Em outubro de 1823, na Lei que deu forma aos governo provinciais, instituindo os
Presidentes e criando os Conselhos, D. Pedro I decretou as questões que demandavam juízo
administrativo encargo do Presidente da província reunido em conselho. Entre elas estava a
catequese de indígenas.
Art. 24 – Tratar-se-ão pelo Presidente em Conselho todos os objectos que demandem exame e juizo administrativo, taes como os seguintes: [...]
33 Reproduzido in.: CUNHA, 1992, p. 111. 34 Apud CUNHA, 1987, p. 67. 35 Idem, ibidem.
37
§ 9: Promover as missões e catequese dos Indios, a colonisação dos estrangeiros, a laboração das minas, e o estabelecimento de fabricas mineraes nas Provincias Metaliferas. [...]36
A existência de legislações pontuais, como a acima citada, relativiza a autogestão dos
indígenas entre 1798 e 1845, mencionada por alguns autores37.
Entretanto, somente a partir da década de 1830, com a revogação das Cartas Régias
de D. João VI, a legislação indigenista passou a apresentar modificações em relação à
herança dos portugueses. Um Decreto da Assembléia Geral Legislativa, sancionado pelo
Senado, revogou a Carta Régia de 5 de novembro de 1808 e aboliu a servidão indígena por
Guerra Justa nos arredores de Lages. Em outubro de 1831, o mesmo decreto foi sancionado
pela Regência Trina e, sofrendo pequenas modificações, ganhou força de Lei ampliando a
revogação para as Cartas Régias de 13 de maio e 28 de dezembro de 1808.
27/10/1831: Lei – Revoga as Cartas Régias que mandaram fazer guerra, e pôr em servidão os índios A Regência, em nome do Imperador, o Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os
súbditos do Império, que a Assembléa Geral Legislativa Decretou e Ela sancionou
a Lei seguinte: Art. 1º - Fica revogada a Carta Régia, de 5/11/1808, na parte em
que mandou declarar guerra aos Indios Bugres da Província de São Paulo [...].
Art. 2º - Ficam também revogadas as Cartas Régias de 13/05 e de 2812/1808, na
parte em que autorizam, na Província de Minas Gerais, a mesma guerra [...]. Art.
36 Reproduzido in: CUNHA, 1992, p. 109. 37 Cíntia Régia Rodrigues (1999, p.50), por exemplo, afirmou que entre a revogação do Diretório Pombalino e o
Regulamento das Missões, os índios teriam vivido sob um autogoverno. Entretanto, as prolongadas análises feitas por Manuela Carneiro da Cunha sobre a legislação indigenista no século XIX, apresentaram uma elaborada hierarquia de cargos normalmente providos por não índios, demonstrando que os agentes com poder sobre a questão indígena no Brasil eram indivíduos ligados ao governo central, ou, em alguns casos, o próprio imperador.
38
3º - Os índios [...] em servidão, serão dela desonerados. Art. 4º - Serão
considerados como órfãos, e entregues aos respectivos juízes [...]. Art. 5º - Serão
socorridos pelo Tesouro do preciso, até que os Juízes de Órfãos os depositem onde
tenham salários ou aprendam oficios fabris. Art. 6º - Os Juízes de Paz, nos seus
Distritos, vigiarão e acorrerão aos abusos contra a liberdade dos índios. [...]
Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos 27 dias do mês de Outubro de 1831,
décimo da Independência e do Império. Francisco de Lima e Silva, José da Costa
Carvalho, João Braulio Muniz.38
A Lei regencial de 1831, como pode ser visto, reavivou a tutela orfanológica, não
apenas por equiparar a condição civil dos indígenas a dos órfãos, mas, também, porque a
própria pessoa do índio passava a ser encargo dos Juízes de Órfãos, salvo nos casos de
abusos contra a liberdade dos indígenas, ocasiões nas quais a questão deveria ser julgada
por um Juiz de Paz. Ainda na década de 1830, os assuntos referentes aos indígenas se
tornaram definitivamente de responsabilidade dos juizados de órfãos. Com os decretos de
1832 e 1833, foram extintos, respectivamente, os cargos de Ouvidores de Comarca e
encarregados os Juízes de Órfãos da administração dos bens dos índios, que anteriormente
era feita pelos sobreditos Ouvidores.
Apesar da reafirmação da condição jurídica de órfãos para os indígenas e a
transferência da tutela deles e de seus bens para uma instância regional de poder, a dos
Juizados de Órfãos, legislar sobre a catequese e a civilização de indígenas permanecia uma
exclusividade do poder central. As câmaras provinciais podiam apenas propor dispositivos
38 Reproduzida in: CUNHA, 1992, p. 137.
39
legais que precisavam ser sancionados pela Assembléia Geral e pelo Imperador. Em 1834,
as Assembléias Provinciais conseguiram um avanço significativo na descentralização da
questão. O artigo 11 do Ato Adicional de 1834 atribuiu autonomia às Assembléias
Legislativas Provinciais para legislar, cumulativamente à Assembléia Geral, a respeito da
catequese e da civilização de indígenas.
A possibilidade da existência de uma legislação provincial sobre a questão indígena
foi uma vitória para as elites locais que, naquele período em que a propriedade da terra era
uma questão importante, passaram a poder também legislar sobre a formação e organização
de territórios reservados aos índios. Conforme Manuela Carneiro da Cunha: “Mais
próximas do poder local, não é de admirar que as Assembléias Provinciais tenham legislado
em detrimento dos diretos indígenas, em particular extinguindo sumariamente aldeias para
se apropriarem de suas terras”.(Cunha, 1987, p. 69)
Os Decretos de 1831 e 1833, mais o Ato Adicional de 1834 foram as legislações mais
representativas que abarcaram a questão indígena até 1845. Nenhuma delas alterou em
profundidade a concepção que se tinha do trato com os indígenas, mantendo a mesma
estrutura e importância dada à questão no período colonial e no Primeiro Império.
O Decreto N.º 426, de 24 de julho de 1845, contendo o Regulamento Acerca das
Missões de Catequese e Civilização dos Índios39, representou o primeiro instrumento legal
indigenista do Império que foi concebido para ser aplicado em âmbito geral. Porém, o
39 O Anexo A, deste trabalho, apresenta uma reprodução integral do Regulamento das Missões de 1845.
40
alcance desse Regulamento não pode ser superestimado, sendo ele mais um regimento
administrativo detalhado do que uma nova política indigenista propriamente dita.
O Regulamento pareceu ter vindo tardiamente para atender aos anseios, tão presentes
no primeiro reinado, de parâmetros gerais para o tratamento da Questão Indígena. O
Decreto N.º426 serviu, na realidade, para oficializar, ao nível de postura geral do Império,
as mesmas concepções usuais que vigoraram anteriormente. Foi mantida a política
integracionista que visava a assimilação dos indígenas através da sua concentração em
aldeias, local onde esses seriam economicamente integrados à produção agrícola. Depois de
1845, a criação de estabelecimentos destinados à sedentarização e colonização de indígenas
ganhou impulso, pois se tornara uma diretriz apoiada legalmente pelo Regulamento das
Missões.
Legalmente amparadas pelo Decreto Nº 426, as províncias passaram a intensificar a
política de concentração de indígenas em territórios controlados pelo governo. Esse
processo de intensificação na criação de novos aldeamentos estava associada à necessidade
de terras disponíveis, conseqüência do deslocamento da ocupação do território para um eixo
mais central entre as prioridades do Império.
Com a intensificação da política de aldeamentos, depois de 1845, os grupos indígenas
que ainda vagavam pelos sertões foram desalojados das áreas a serem ocupadas pela
ampliação das propriedades agrícolas e pela instalação de novas colônias. Esse processo
também garantiu uma relativa pacificação dos conflitos entre indígenas e integrantes das
41
frentes de expansão e pioneira40 que adentravam as regiões não colonizadas do sertão. A
intensificação da política de aldeamentos foi fundamental para a regulamentação da posse
da terra no Brasil, promovida pelo Império a partir da década de 1850. Como foi destacado
anteriormente, reunir indígenas em aldeias administradas por agentes oficiais foi uma
prática comum em toda a política indigenista aplicada no Brasil, assim, os grupos indígenas
eram conduzidos a um sedentarismo patrulhado que garantia terra vaga nos sertões.
Outro ponto importante do Regulamento das Missões era que, mesmo não destituindo
a competência legislativa das Assembléias Provinciais sobre a questão, o Decreto de 1845
marcava um relativo retorno do governo central ao domínio dos encaminhamentos dados à
Questão Indígena. Isto pois, pelos parâmetros estabelecidos no Decreto N.º426, a nomeação
dos altos cargos para o exercício da política indigenista dependiam da ratificação do
próprio imperador.
O Regulamento estabelecia a existência de cargos, como o de Diretor Geral de Índios,
cuja nomeação era exclusividade do Imperador. O laço entre Império e cargos da diretoria
de índios era ressaltado também pela atribuição de postos militares da Guarda Nacional aos
funcionários administrativos da diretoria geral e das aldeias.
Art. 11. Em quanto servirem, terão a graduação Honoraria, o Director Geral de Brigadeiro, o Director da Aldêa de Tenente Coronel, e o Thesoureiro de Capitão; e usarão uniforme, que se acha estabelecido para o Estado Maior do Exercito.41
40 O papel das frentes de expansão e das frentes pioneiras, bem como seus impactos sobre as populações
indígenas, serão analisados mais detalhadamente no item 2.4, do segundo capítulo deste trabalho. 41 Fragmento do Regulamento das Missões reproduzido in: Rodrigues, 1999. p. 33-41.
42
As possibilidades de arrendamento das terras reservadas passaram a ser encargo do
Diretor Geral de Índios de cada província. Fazia parte, da alçada deste, verificar se, nos
aldeamentos estabelecidos, os índios tinham produção agrícola e se as terras disponíveis
para as aldeias estavam bem dimensionadas. Além disso, cabia-lhe decidir sobre a
manutenção desativação e/ou fusão de aldeias e sobre a necessidade de criação de novos
aldeamentos.
A administração dos bens dos índios, que na década de 1830 havia sido confiada aos
Juízes de Órfãos, passou a ser encargo da Diretoria Geral de Índios e, em parte, dos
Diretores de Aldeias, seus procuradores oficiais, nomeados pelo presidente de província
para representá-los diante dos órgãos de justiça e demais autoridades a partir daquele
momento. Pelo Regulamento, as terras das aldeias eram reservadas aos índios em usufruto,
sendo aberta a possibilidade de doação dos terrenos aos índios. Não se deve perder de vista
que os parâmetros estabelecidos para essa doação eram de difícil alcance, sendo
necessário, além de “bom comportamento”, que os indígenas cultivassem efetivamente a
terra por doze anos, com prazo estendido em caso de viuvez.42
Aos Diretores de Aldeias, cabia indicar índios para serviços públicos no aldeamento
ou fora dele, zelando para que o trabalho fosse remunerado. Mesmo não sendo parte de sua
42 Ver §15 Art. 1º do Regulamento das Missões, Anexo A deste trabalho.
43
competência, era comum os Diretores intermediarem a contratação do trabalho de
indígenas para particulares.43
Em seu texto sobre poder tutelar no indigenismo brasileiro, Antônio Carlos de Souza
Lima (1995) destacou a confusão causada nas incumbências dos Diretores de Índios pela
vigência da escravidão. Essa permitia a compulsão oficial ao trabalho, muitas vezes gerida
sobre os índios pelo Diretor da Aldeia, que se autoprojetava na figura de um capataz, com
direitos de exploração do trabalho dos indígenas sob sua guarda. Assim, o trabalho
indígena em nenhum momento deixou de ser acessível para particulares. Houve apenas uma
mudança nos intermediários entre os índios e seus contratadores que, com o Regulamento
das Missões, passou dos Juízes de Órfãos para os Diretores de Aldeias.
Com a nova estrutura de cargos e funções, uma das modificações trazidas pelo
Regimento merece menção. O Império voltou a encarregar a Igreja de boa parte da
responsabilidade pela integração dos povos indígenas, e reafirmanda a máxima “catequizar
para civilizar”. Todos os aldeamentos deveriam contar com um missionário, detentor de um
rol de funções que iam desde o atendimento espiritual da aldeia, da responsabilidade pelos
registros civis e chegava a atuações na administração geral dos aldeamentos.
Art. 6º. Haverá hum Missionario nas Aldêas novamente creadas, e ns que se acharem estabelecidas em lugares remotos, ou onde conste andão Índios errantes. Compete-lhe: § 1º. Instruir aos Índios nas maximas da Religião Catholica, e ensinar-lhes a Doutrina Crhristã.
43 Nessa questão havia uma nítida confusão entre as antigas atribuições dos Juízes de Órfãos e as novas
atribuições dos Diretores de Aldeias. Os referidos Juízes sim tinham a incumbência de estabelecer acordos de trabalho, não apenas para índios, mas para todos os seus tutelados.
44
§ 2º. Servir de Parocho da Aldêa, e seu Districto, emquanto não se crear Parochia. § 3º. Fazer o arrolamento de todos os Índios pertencentes a Aldêa, e seu Districto com declarações dos que morão nas Aldêas, e fora dellas; dos baptizados, idades, e profissões; e dos nascimentos, e obitos, e casamentos; para o que lhe serão fornecidos os livros pelo bispo Diocesano, pela caixa de Obras Pias. § 4º. Dar parte ao Bispo Diocesano, por intermedio do Director Geral da Provincia, do estado espiritual da Aldêa; representando as necessidades, que encontrar, e apontando as providencias, que lhe parecem mais proprias para occorrer a ellas. § 5º. Representar ao Director Geral, por intermédio da Aldêa, e necessidade, que possa haver outro Missionario, que ajude, principalmente se houver nas visinhanças Índios errantes, que seja nistér chamar á Religião, e a Sociedade. § 6º. Ensinar a lêr, escrever, e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que sem violencia se disposerem a adquirir essa instrucção. § 7º. Substituir ao Director da Aldêa, quando esteja impedindo o Thesoureiro, e nos casos, em que este o pode substituir.44
No quadro abaixo, está destacada a estrutura de cargos estabelecida pelo
Regulamento de 1845 para os aldeamentos no Império brasileiro.
44 Fragmento do Regulamento das Missões de 1845 reproduzido in: Rodrigues, 1999, p. 33-41.
DIRETOR GERAL DE ÍNDIOS
Nomeado pelo Imperador para cada Província.
DIRETORES DE ALDEIAS
Propostos pelos Diretores Gerais de Índios, mas nomeados pelos
Presidentes de Província.
MISSIONÁRIO
Solicitados pelos
TESOUREIRO ALMOXARIFE CIRURGIÃO
Propostos pelos Diretores Gerais de Índios, mas nomeados
45
Figura 1: Organograma de cargos a serem preenchidos nos aldeamentos indígenas
no Império do Brasil a partir do Regulamento das Missões
Apesar de ter restabelecido a predominância do governo imperial sobre a Questão
Indígena depois do Regulamento das Missões, os governos provinciais mantiveram seu
poder de influência nessa estrutura, como demonstra o quadro acima. Além dos cargos que
dependiam da nomeação do governo provincial, as terras que seriam destinadas aos novos
aldeamentos e a manutenção ou ampliação das aldeias mais antigas continuavam passando
pelo crivo dos Presidentes de Província e das Assembléias Provinciais.
Outros dois dispositivos legais do século XIX assumiram grande relevância diante da
Questão Indígena: a Lei n.° 601 de 18 de setembro de 1850, mais conhecida como Lei de
Terras45, e seu Regulamento, o Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854.
A Lei n.º 601 de 1850 redirecionou a ocupação territorial brasileira e estabeleceu novos
princípios para a ocupação e o registro da terra em todo o Império, os quais afetaram
diretamente as terras dos índios. Isso se deveu aos parâmetros estabelecidos para o registro
das posses, que excluíam os indígenas da possibilidade de acesso legítimo e privado a terra.
Entre os princípios estabelecidos pela Lei de Terras, estavam a revisão do conceito de
terras devolutas e a inserção do princípio do registro de imóveis.
45 O Anexo B deste trabalho contém excertos da Lei de Terras relevantes para a Questão Indígena.
46
A Lei de 1850 voltou a afirmar a reserva de terras para a colonização e catequização de
indígenas, sendo que elas deveriam ser registradas como tais pelos Diretores das Aldeias. Na
prática, esse registro foi diversas vezes negligenciado ou feito de maneira irregular.
Essas terras deveriam ser reservadas em terrenos devolutos e concedidas em usufruto
aos indígenas, sendo as mesmas demarcadas preferencialmente nas mesmas áreas onde eles
estivessem arranchados. Mas a preferência de fixação dos indígenas em terras já ocupadas
por eles, que aparecia em diversos decretos e leis desde o início do século XIX e voltava a
ser reafirmada em 1850, representava uma contradição interna da Lei de Terras. Ao mesmo
tempo em que era dada a preferência dos índios sobre suas terras, a lei estabelecia que os
simples roçados e arranchamentos, característicos das aldeias indígenas, não configuravam
posse legitimável dos terrenos.
A Lei de Terras aparecia ainda como uma reedição do integracionismo característico da
política indigenista imperial em pelo menos dois pontos. O primeiro deles, quando reafirmou
a implementação de aldeias para “catequização e colonização” de índios, o que, seguindo a
lógica corrente no século XIX, podia ser entendido como sinônimo de “civilização” de
indígenas. O segundo, reafirmado novamente no Decreto n.º 1318 de 1854, afirmava que as
terras destinadas a aldeamentos deveriam ser reservadas em usufruto aos índios, podendo no
futuro passarem a sua posse conforme permitisse seu estado de civilização.
Art. 72 “serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas nos distritos onde existem hordas selvagens”.
Art. 75 “ As terras reservadas para colonisação de indígenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu uso fructo; e não poderão
47
ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permittir o seu estado de civilização”.46
Certamente, não se pode afirmar que a legislação indigenista brasileira do século XIX
integrava algum projeto de desenvolvimento nacional do Império. Entretanto, se, ao tratar
da integração econômica dos “espaços vazios” do território brasileiro promovida pelo
Império, não foi possível indicar uma intencionalidade na edição do Regulamento das
Missões pouco antes da Lei de Terras, podia-se ao menos afirmar que essas leis não
atingiram a sociedade brasileira de forma desligada uma da outra. Isto porque o registro
das terras se beneficiou com a redução dos territórios indígenas promovida pelo governo
imperial através do Regulamento das Missões.
46 Fragmento do Decreto de Regulamentação da Lei de Terras apud CUNHA, 1987, p. 68.
48
2 O RIO GRANDE DO SUL NO SÉCULO XIX
Neste segundo capítulo, são apontados o processo de expansão territorial pelo qual o
Rio Grande do Sul foi anexado à colônia portuguesa na América e a forma como foi
integrado economicamente ao Império brasileiro o planalto sul-riograndense, região onde
estavam localizados os aldeamentos indígenas instalados na província durante o século XIX.
Devido às características oscilantes da política indigenista brasileira, tornou-se
necessário, para a condução de uma análise do tratamento dado aos índios no Rio Grande do
Sul no século XIX, apresentar o contexto regional em que a problemática indígena estava
inserida naquele período. Essa análise foi balizada pelos dois pontos norteadores das disputas
em torno da questão indígena no Brasil, a posse da terra e a formação de mão-de-obra.
No primeiro item do texto, é abordada a expansão territorial lusitana na América em
direção aos sertões do centro-sul e o panorama em que se deu a incorporação do território
sul-riograndense aos domínios portugueses.
A seguir, é analisada a ocupação da terra nos territórios já incorporados do planalto
gaúcho, bem como da integração econômica dos mesmos ao restante do Império. Nesse
momento, também estão indicados os impactos causados pela regulamentação da
49
propriedade territorial promovida pela Lei de Terras a partir de 1850, no processo de
ocupação da terra no planalto rio-grandense e seus efeitos sobre as populações indígenas da
região.
O terceiro item do texto identifica os elementos componentes da reserva de mão-de-
obra livre na província de São Pedro, analisando as formas como os indígenas foram
integrados a essa massa de trabalhadores.
Complementando o enfoque da desterritorialização sofrida pelas populações nativas do
planalto gaúcho, o quarto item do texto descreve o avanço das frentes de imigração e
colonização em direção ao Vale do Rio dos Sinos, ao Vale do Caí e às escarpas da Encosta
Superior do Nordeste, analisando ainda os problemas entre imigrantes e índios, causados
pelo ingresso de colonos nos últimos redutos indígenas nas terras altas da Província durante
o século XIX.
Finalizando o capítulo, é abordada a situação dos indígenas, encurralados pela
ocupação de seus territórios tradicionais, suas reações diante dos contatos com as frentes de
expansão e ocupação, bem como a postura assumida pelo governo provincial diante do
problema.
2.1 Integração dos Sertões do Centro-Sul ao Domínio Português
O avanço dos portugueses para o interior do continente americano, iniciado pelas
entradas e bandeiras no século XVII, não causou desavenças entre índios e portugueses
exclusivamente a respeito da posse da terra. Essas expedições tinham outro interesse central,
como Sérgio Buarque de Holanda referiu: “[...] antes de tudo a vontade de corrigir os efeitos
50
da carência de mão-de-obra para a faina rural o que fomentou muitos episódios próprios da
sociedade do planalto.” (HOLANDA, 1986, p. 26)
Mesmo considerando o alcance territorial bastante vasto, obtido pelas bandeiras no
século XVII, essas expedições não visavam, ao menos num primeiro momento, fixar
habitações ou feitorias. Considerando essas características, os enfrentamentos entre indígenas
e brancos giraram em torno da prea de índios promovida pelos bandeirantes.
A fixação de portugueses nos territórios do centro-sul se tornou mais efetiva a partir do
final do século XVII, com a descoberta das minas. Naquele momento, passaram a ser
instalados, no interior do sertão, feitorias, fortes, vilarejos e pousos. Esse avanço territorial e
sua gradual integração ao domínio luso propiciou, conforme destacado por Lígia Osório
Silva (1996), além de um aumento das perspectivas econômicas portuguesas na América, um
considerável afluxo populacional para as regiões de mineração, bem como para as que a elas
se vinculavam. Em poucas décadas, os sertões do centro e do sul do Brasil atraíram uma
população que, apesar de instalada de forma esparsa, iniciou a exploração das possibilidades
econômicas daquelas regiões ligadas principalmente à prea de indígenas. Esse afluxo de
pessoas alterou o traçado da ocupação territorial, como podemos observar no mapa abaixo.
51
Mapa 1: Avanço da ocupação territorial no Brasil pelos colonizadores. Fonte: MELATTI, 1993, p. 181.
A inserção dos territórios ao sul de Laguna no contexto econômico português do
período, que apareceu destacada no mapa a partir do século XVIII, esteve ligada ao início de
expedições que arrebanhavam o gado vacum, muar e bovino, concentrado naquela região
como resultado da ação dos jesuítas espanhóis. Assim, o tropeio de gado para as zonas de
mineração foi a atividade que iniciou a integração econômica dos territórios ao sul de
Laguna à colônia portuguesa na América.
A incorporação das regiões noroeste e oeste do Rio Grande do Sul aos territórios
portugueses teve início com o Tratado de Madrid, em 1750. O Tratado, feito para implantar
uma divisa natural entre o território espanhol e português, exigia a ocupação efetiva da terra
para garantir a posse portuguesa do território delimitado pelo tratado. Os tropeiros paulistas,
52
que haviam se apossado do planalto paranaense na região de Guarapuava e se inserido nos
campos de Santa Catarina, incursionaram à região da margem esquerda do rio Uruguai em
busca de gado e, ali, se estabeleceram com estâncias, incentivados pela concessão de
sesmarias da coroa. Esses estancieiros passaram a deter o controle de grandes extensões de
terras salvaguardadas por peões militarizados que cumpriam uma dupla função, pastorear o
gado e, indiretamente, garantir os direitos portugueses estabelecidos pelo Tratado.
Apesar dessa presença portuguesa mais efetiva na região das antigas reduções desde
meados do século XVIII, foi a conquista das Missões por Borges do Canto, em 1801, que
definitivamente oficializou a ocupação portuguesa do território das antigas reduções
jesuíticas e das antigas estâncias missioneiras. No mapa abaixo, pode-se ver o avanço da
ocupação territorial no Rio Grande do Sul durante as primeiras décadas do século XIX.
Mapa 2: Avanço da urbanização e povoamento no sul do Brasil
entre 1801 e 1822. Fonte: Adaptado de HOLANDA, 1985, p. 377.
A ocupação daquelas regiões de campo realizou-se, segundo a historiografia
tradicional, através da concessão de sesmarias a militares como recompensa pela
Cidades
Vilas
Áreas sob influência de vilas ou cidades Áreas povoadas de forma relativamente estável, mas
53
participação na conquista do território. Segundo Reichel (2000), em seu texto sobre a
privatização da terra no início do século XIX:
Saint-Hilaire ofereceu elementos para que a historiografia tradicional sul-riograndense definisse o caráter da expansão de território que estava se processando ao identificar a estância como unidade de produção predominante e que seu proprietário era um comandante da guarda de Santana. Ou seja, a privatização da terra se realizava através da concessão de sesmarias a militares, originando o grupo dos estancieiros-militares. (REICHEL, 2000, p. 130)
Essas unidades produtivas tinham suas atividades diretamente ligadas à criação de
gado, garantindo sua inserção na economia colonial através do comércio desses animais nas
regiões centrais da colônia.
A ocupação efetiva da região das missões, distribuída entre estancieiros-militares,
permitiu o avanço sobre as terras também no sentido oeste-leste, partindo da costa do rio
Uruguai para o interior do Rio Grande do Sul, dispersando ainda mais os remanescentes
indígenas das missões. Entretanto, essa ocupação não constituía uma apropriação privada dos
terrenos. Os militares que estabeleceram estâncias no noroeste do Rio Grande do Sul, no
período imediatamente posterior a conquista das missões, em geral, recebiam concessões
para ocupação das terras na forma de sesmarias. Em contrapartida, com essas concessões a
Coroa portuguesa esperava garantir a defesa daqueles territórios e a manutenção dos limites
estabelecidos, na segunda metade do século XVIII, pelos Tratados de Madrid e Santo
Ildefonso.
O processo descrito acima confirma uma peculiaridade da ocupação da terra no Brasil
já destacada anteriormente por Lígia Osório da Silva: “a propriedade territorial constituiu-se
54
fundamentalmente a partir do patrimônio público” (SILVA, 1993, p. 14). Em outras palavras,
a constituição da propriedade da terra no Brasil se deu dessa forma, pois, até a
independência, a doação de sesmarias e a posse pura e simples eram os dois grandes
mecanismos de apropriação da terra no Brasil.
Proclamada a independência, as concessões de sesmarias futuras foram suspensas por
D. Pedro através de uma resolução imperial de 17 de julho de 1822. A partir daquele
momento e até 1850, a posse passou a ser a única forma de aquisição de domínio sobre a
terra. Esse período entre 1822 e 1850 foi, no Brasil, o momento de transição entre a
concepção da terra como propriedade do estado e a mercantilização da terra como
propriedade privada.
2.2 A Ocupação do Planalto Gaúcho e a Lei de Terras
Nas primeiras décadas do Império, a facilidade de acesso a terra e sua posterior
valorização causaram uma procura por novas áreas disponíveis. Essa busca por terras
impulsionou a população que se alojara na região das missões em direção do planalto
gaúcho47.
A ocupação dos campos do planalto se deu, geograficamente, a partir da costa do Rio
Uruguai, impulsionada pela redução das terras devolutas disponíveis na região das missões,
ocupadas entre 1801 e 1820 pelos militares que participaram da conquista do território
missioneiro. Com o esgotamento dos campos disponíveis na região das antigas reduções, a
47 Estão sendo tratadas aqui como Planalto gaúcho, as terras de campos nas regiões altas ao norte do atual
estado do Rio Grande do Sul. A ocupação desta região, localizada entre a Encosta Superior do Nordeste, o Rio Uruguai e os campos dos atuais municípios de Nonoai, Passo Fundo e Palmeira das Missões, é relevante para a contextualização deste trabalho, pois no século XIX estas áreas eram o reduto dos grupos indígenas que se tornaram alvo da intensificação na política de aldeamentos, desenvolvida pelo Império e pelo governo da Província, entre as décadas de 1840 e 1870.
55
população que chegava à região foi forçada a procurar terras nas áreas que correspondiam ao
norte do município de Cruz Alta e, mais tarde, ao município de Passo Fundo, mais distantes e
isoladas em relação às primeiras estâncias estabelecidas depois da conquista.
A ocupação desses campos no planalto gaúcho foi relativamente lenta no período entre
1820 e 1850. Embora o acesso as terras estivesse facilitado pela ausência de trâmites
burocráticos depois da suspensão das sesmarias em 1822, o que fez da posse pura e simples a
principal forma de acesso a terra no Brasil, os campos do planalto gaúcho serviam apenas
como passagem e sua potencialidade econômica ainda não era plenamente conhecida.
Umas das dificuldades que se apresentava à inserção luso-brasileira nos campos do
planalto era a presença de indígenas hostis nas áreas de mato existentes entre os campos. Os
campos do planalto eram entremeados de florestas, terrenos inexplorados pelos brasileiros e
portugueses, pois não eram úteis para a atividade pastoril. Segundo Becker (1995, p. 61),
essas florestas eram povoadas, desde o século XVIII, por grupos Kaingangs hostis à
ocupação lusitana.
As dificuldades de acesso, o desinteresse econômico e os riscos acarretados pela
vizinhança hostil, somados ao tamanho e ao número ainda baixo de posses registradas pelo
Comando Militar das Missões na região do planalto até a metade do século XIX, servem para
demonstrar que a ocupação da região era bastante parca até 1850. Não se pode negar que os
registros sobre a ocupação dessas áreas sofreram a influência das dificuldades de fazer um
recenseamento preciso naquele momento. Mesmo assim, segundo dados apresentados por
Rückert (1997, p. 61), em 1847, nos campos de Passo Fundo, distrito de Cruz Alta, existia
uma população de apenas 1159 almas, um número bastante baixo, mesmo no período.
56
É importante lembrar que esses números não contemplam a existência de lavradores
pobres e índios coletores de erva-mate. Essa população, que vivia dispersa nas florestas da
região, migrando em busca de novos ervais, com freqüência não aparecia nos censos de
almas em função das dificuldades que tinham de se fazerem presentes com relativa
assiduidade às Igrejas. Dados mais sólidos sobre quem eram os posseiros e o tamanho das
posses apareceram após a Lei de Terras de 1850, pois ela exigiu o registro dos terrenos
ocupados.
Na metade do século XIX, a posse estava consolidada como principal forma de
ocupação e apropriação de terras nas áreas de campo do planalto, tendo essa prática se
intensificado por volta da década de 1850. A partir desse momento, ela foi legitimada pela
Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, que dispôs sobre a regulamentação do registro de
terras no Império, a chamada Lei de Terras. A intensificação do apossamento dos campos
ficou evidente no ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, datado de janeiro de 1858, no
qual se informava o presidente da província de que “[...] neste município em campos não
existe terreno devoluto algum, porém, Mattos, existem em abundância[...]”48. No mesmo
ofício, entre as áreas devolutas, cobertas de mato, citadas como mais bem situadas, estavam
o Mato Castelhano, a picada de Botucaraí e as margens dos rios da Várzea, Goioen e Passo
Fundo, na região de Nonoai, territórios historicamente ocupados por índios Kaingangs.
Depois da metade do século XIX, a posse da terra sofreu alterações substanciais,
trazidas pela Lei de Terras. A partir de então, uma maior precisão na demarcação entre terras
particulares e públicas pôde ser estabelecida. Daquele momento em diante, foi acelerada a
48 Fragmento do Ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, Janeiro de 1858 apud RÜCKERT, 1997, p. 73.
57
legitimação das posses tomadas por grandes proprietários na região do planalto gaúcho como
resultado – entre outros fatores ligados a uma presença mais efetiva de brasileiros na região –
do próprio formato exigido para a regularização das possessões. Em seu Artigo 5º, a Lei de
1850 estabeleceu os parâmetros para legitimar as posses e determinou a revalidação das
ocupações realizadas através de sesmarias, no formato exigido pela Lei, mesmo para as
concessões anteriores à resolução de 1822.
[...] Art. 5º. Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou quem o represente, guardadas as regras seguintes:
[...] § 2º. As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indemnisação pelas benfeitorias. [...]49
Nem todos os sesmeiros regularizaram imediatamente suas terras, mas, certamente,
como efeito do Artigo 5º, boa parte dos concessionários sentiu o perigo de perder suas
possessões, ou de ter que disputá-las com outros posseiros. Entretanto, além de criar
condições para a legitimação das posses primárias, a Lei de 1850 estabelecia, no seu Artigo
6º, parâmetros específicos para a configuração da propriedade, os quais restringiram bastante
as possibilidades dos pequenos posseiros e índios legitimarem suas terras.
Art. 6º. Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva e morada habitual exigidas no artigo antecedente.50
49 Fragmento da Lei de Terras de 1850 apud RODRIGUES, 1999, p. 23. Grifos meus. 50 Artigo 6º da Lei de Terras reproduzido in: IOTTI, 2001. p. 112. Grifos meus.
58
Os indígenas e os caboclos, que viviam do extrativismo nos matos da região e, assim
como os pequenos posseiros, não se enquadravam nos parâmetros exigidos no Artigo 6º,
ficaram impossibilitados de legitimar suas ocupações. Além das dificuldades legais, esses
habitantes das áreas de florestas ou de pequenas áreas de terra viviam, freqüentemente,
isolados devido às grandes extensões geográficas, tendo dificuldades para manter a
comunicação com as sedes paroquiais e freqüentar regularmente as Igrejas, encarregadas de
divulgar a Lei.
Em razão dessas dificuldades, os pequenos posseiros ficaram sabendo mais
tardiamente dos efeitos da lei sobre suas áreas de ocupação e atividades produtivas, bem
como dos efeitos nocivos que os parâmetros estabelecidos pelo Art. 6º tinham sobre seus
direitos as terras. Como ressaltado no texto da Lei, os roçados, derrubadas ou queimadas de
matos ou campos, ranchos ou outros semelhantes não configuravam posse útil da terra e,
portanto, os indivíduos que assim dispusessem dos terrenos não tinham uma ocupação
territorial legitimável.
As exigências de cultura efetiva, bem como de domicílio fixo, criaram uma grande área
de terras disponíveis para apropriação nos campos e matos de uso comuns habitados por
caboclos e índios. Estas áreas passaram a ser vistas pelos grandes proprietários, que
almejavam aumentar suas possessões anteriores, como terrenos devolutos, facilmente
apropriáveis dentro dos padrões de ocupação considerados úteis pelo Império. Em diversos
casos, a comprovação da “cultura efetiva” não ultrapassava a presença extensiva de gado
pastoreado por um ou dois peões agregados, estabelecidos na região sob a bênção dos
estancieiros, o que configurava a exigida “morada habitual”. Essa prática se tornou comum,
59
visto que a Lei permitia a legitimação da posse pela presença tanto do respectivo posseiro,
quanto pela de um seu representante.
[...]morada habitual do respectivo posseiro, ou quem o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1°. Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado, ou do necessário para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contigo, [...]51
O princípio da Posse Útil ressaltava mais uma vez a função da Lei de 1850 como
mecanismo de criação de um mercado de terras, necessário à expansão da agricultura
mercantil e capitalista que se desenvolveu no século XIX. As necessidades de expansão
dessa economia agrícola exigiam a reserva de novas terras apropriáveis pelos latifúndios em
todo o território do Império. A reserva de terras apropriáveis foi feita pela exclusão dos
habitantes dos sertões das possibilidades de acesso à propriedade, ou seja, pela restrição das
possibilidades de índios e caboclos se apropriarem das terras.
O Planalto rio-grandense participava de forma secundária na economia
agroexportadora desenvolvida no restante do Império. Sob este olhar, estando voltada para o
abastecimento interno, a apropriação de grandes áreas de pastoreio criava o espaço ideal para
o fomento de um mercado complementar à grande lavoura desenvolvida no nordeste.
Seguindo esta lógica, seus terrenos estavam destinados a atividades que viessem a contribuir
para o desenvolvimento da grande lavoura agroexportadora, ou ainda, terrenos apropriados
para o plantio em larga escala de produtos considerados estratégicos pelo Império, como era
o caso dos campos de trigo no vale do Rio Pardo.
51 Fragmento da Lei de Terras de 1850 reproduzido in: IOTTI, 2001. p. 112. Grifos meus.
60
A situação dos pequenos posseiros caboclos que habitavam as matas, além dos
problemas de comunicação e informação a respeito das possibilidades de legitimação de suas
áreas de ocupação e a descaracterização de suas atividades produtivas como ocupação útil
dos terrenos, aumentou a dificuldade dos moradores das florestas para regularização de suas
terras. Pode-se afirmar isso, pois boa parte desses caboclos vivia da extração da Erva-Mate
no interior das florestas, atividade que, apesar de sua representatividade como produto de
exportação para os mercados da Bacia do Prata, não configurava a posse útil segundo a Lei.
Esses caboclos não possuíam mais do que roças de subsistência, baseadas na agricultura de
coivara, para manutenção do núcleo familiar durante a exploração dos ervais em que estavam
trabalhando. Esgotadas as possibilidades daquela área, migravam para outro erval
descoberto, descaracterizando também a morada habitual.
Os indígenas passaram por dificuldades semelhantes. Apesar de terem territórios
assegurados pela Lei, garantia reafirmada pelo Regulamento da Lei de Terras de 1854, os
indígenas também foram impossibilitados de legitimar diretamente a posse de seus territórios
tradicionais, pois, seu modelo de produção, baseado na caça, coleta e pequenas lavouras de
subsistência, também não caracterizava posse útil dos terrenos.
A transformação da terra em bem comercializável no século XIX, parafraseando
Rückert (1997, p. 27), passou pela “destruição do território indígena e caboclo e à construção
de novas e diferentes formas fundiárias”, bem como pela renovação das formas de
apropriação legítima do solo a partir de 1850.
61
Em ofício datado de 16 de janeiro de 1850, enviado pela Câmara Municipal de Cruz
Alta à presidência da província, foram prestados esclarecimentos a respeito do apossamento
de terras no planalto. Nele, era possível perceber como a presença de índios nos terrenos não
representava um empecilho, nem para o Comando Geral das Missões e nem para os grandes
posseiros:
[...] sendo o comandante geral de missões autorizado a conceder terrenos devolutos a quem os queira cultivar, e sendo este meio ainda mais fácil de obter terrenos a ele se recorriam todos que queriam obter terrenos. Este concedia a quem pedia desde que pela informação do comandante do distrito e resposta das áreas confinantes lhes constava estar o terreno desocupado, sem distinguir se pertenciam ou não a comunidade dos índios. [...]52
O ofício da Câmara de Cruz Alta deixava transparecer que, ao menos no Rio Grande do
Sul, a Lei de Terras legitimou práticas antigas de ocupação de territórios, práticas essas
existentes pelo menos desde o fim das concessões por sesmarias em 1822.
O avanço do apossamento das áreas ocupadas por caboclos e indígenas chegou a gerar
conflitos entre os grandes posseiros e as municipalidades, sendo freqüente, nas atas das
Câmaras Municipais, pronunciamentos defendendo índios e caboclos, principalmente quando
esses apareciam ligados à atividade de extração de erva-mate. O confronto entre as elites
regionais do planalto não se devia a uma conscientização das municipalidades quanto à
defesa dos cidadãos regidos por sua autoridade, mas sim, ao fato de que a receita arrecadada
com a tributação sobre a produção de erva-mate no século XIX revertia para as Câmaras
Municipais. Para a viabilidade do negócio, foram mantidas áreas de florestas sob a
52 Ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, 16 de janeiro de 1850 apud RÜCKERT, 1997,
p. 63. Grifos meus.
62
administração municipal, com o status de terras públicas reservadas para uso comum. Essas
terras de uso comum passaram a representar um espaço de exploração extrativista para a
população expulsa dos campos e que vivia da produção dos ervais. Essa recebia relativa
proteção das autoridades municipais, visto a relevância da erva-mate como produto de
exportação e atividade promotora de receita para as Câmaras Municipais.
A representatividade da erva-mate para a economia regional não poderia ser
desprezada, pois, mesmo não sendo um produto de interesse direto para os centros
agroexportadores do Império, os ervais figuravam como um dos principais produtos de
exportação da província ao lado da produção pecuária, durante todo o século XIX. Entre
1860 e 1871, a arrecadação proveniente do imposto sobre a erva-mate foi de 35:029$93253,
monta expressiva se comparada com outros produtos.
Entretanto, mesmo com a esporádica defesa das parcelas menos favorecidas da
população por autoridades municipais, a mercantilização da terra teve forte impulso com a
aceleração das posses depois de 1850. O preço do hectare subiu 23,4% entre 1851 e 1881,
conforme nos mostra Zarth (1997, p. 91), ao acompanhar a evolução do preço da terra a
partir de inventários post-mortem. Era possível comprar 1 (um) hectare de campo por 500
réis em 1851, sendo o mesmo campo avaliado em 617 réis no início da década de 1880. A
valorização das terras foi uma conseqüência previsível do processo de privatização das
mesmas promovido pelo Império. A redução dos territórios possíveis de apropriação tornou a
terra uma mercadoria com valor em ascensão.
53 Dados extraídos de: ZARTH, 1997, p. 57.
63
Com a escassez de espaços disponíveis para a massa de caboclos, índios e pequenos
posseiros acelerado pela legitimação das posses, essas populações foram transformadas em
habitantes de terras alheias. As dificuldades de acesso à propriedade fundiária que foi
imposta à massa de habitantes oficialmente despossuídos a conduziu a um papel determinado
na economia regional: complementar a formação de uma reserva de mão-de-obra livre,
controlada pela impossibilidade de acesso direto a terra e pelos vínculos de dependência
estabelecidos entre a população e os estancieiros, legítimos proprietários das terras.
2.3 Mão-de-Obra Livre e Despossuída no Rio Grande do Século XIX
Com as dificuldades de acesso à propriedade dos terrenos, os caboclos e indígenas
habitantes das terras de mato passaram a complementar, no cenário rio-grandense do século
XIX, a reserva de mão-de-obra livre. A formação dessa massa de trabalhadores despojados
iniciara com o tropeio de gado e o declínio das reduções jesuíticas no século XVIII.
Os índios guaranis viviam nas reduções de forma bastante precária depois da expulsão
dos jesuítas, facilitando o seu desalojamento do território. Martini (1993) fala em
missioneiros organizados nos povos até 1828. Esses indígenas missioneiros se transformaram
em peões de estância, guias de tropeiros e agricultores trabalhando como temporários. Sua
experiência com o gado os qualificou como uma mão-de-obra disputada. A mesma autora
descreveu os indígenas habitando rancharias no interior das matas, áreas essas que haviam
ficado para trás na ocupação inicial dos campos e estâncias pelos portugueses.
Assim, boa parte dos índios remanescentes das reduções jesuítico-guaraní passou a
viver nas áreas de mato no período a partir da primeira ou segunda década do século XIX,
mantendo relações comerciais ou de trabalho com os colonizadores das áreas de campo,
64
sobrevivendo da extração e comércio de erva-mate, da lavoura de subsistência, do trabalho
temporário remunerado ou, ainda, das três atividades alternadamente.
O extrativismo não era uma exclusividade de trabalho dos indígenas que ocupavam as
matas. Viviam também, nesse ambiente, os caboclos nômades, atraídos para a região durante
a ocupação inicial e marginalizados pela distribuição de terras.
A manutenção dessa massa de trabalhadores habitante das matas foi possível pelas
características da produção ervateira e agrícola no período. Para esses camponeses
expropriados, os ervais, que permaneceram de domínio público até bem avançada a segunda
metade do século XIX, tornaram-se uma fonte de renda viável.
O aumento do volume de erva extraído dos matos despertou a atenção dos
comerciantes da região, que passaram a instalar depósitos para exportação de erva.
O ervateiro, pouco ou nada capitalizado, impossibilitado de deslocar sua produção até
os mercados platinos – grandes centros consumidores do produto – passou a vender a sua
produção aos comerciantes de erva instalados na região do planalto. Esse comerciante, em
geral, era o proprietário dos armazéns e das casas de comércio onde os camponeses
adquiriam bens de consumo – como ferramentas, farinhas, sal e fazendas, – criando um
círculo vicioso para o trânsito de valores, que não raramente redundava no acúmulo de
dívidas por parte dos ervateiros e comprometia parte das safras futuras. Com a concentração
das atividades comerciais em seus depósitos, os proprietários dos armazéns tinham relativo
domínio sobre a extração de erva-mate, através da manutenção das dívidas dos camponeses.
65
A mão-de-obra indígena envolvida na coleta e comercialização de erva-mate, até a
década de 1840, era basicamente composta por guaranis provenientes das antigas reduções
jesuíticas. Com o avanço do processo de apossamento dos campos em direção ao Planalto
gaúcho, os índios Kaingang, que habitavam a região norte da província, tornaram-se uma
outra opção de braços para o trabalho nos ervais.
A inserção dos Kaingang no mercado ervateiro regional se deu como conseqüência da
intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul, principalmente depois de
184554. Em suas correspondências aos presidentes da província, os Diretores de Índios do
Rio Grande do Sul descreveram o envolvimento dos Kaingang aldeados no circuito de
produção da erva-mate, se não como produtores, como mão-de-obra em ervais privados
próximos dos aldeamentos.
[...] aldeamento dos indios em Nonohay
[...] No correr da estação do inverno, occupão se estes na preparação da herva matte ou a fazem por conta propria vendendo=a no mercado, ou se ajustão mediante um salário determinado: e em o tempo das plantações dos sereaes, d’elles cuidão com a mesma actividade.[...] Directoria Geral interina dos indios em Nonohay, 16 de Novembro de 1868.55
Observei na guarita que os Bugres tem bastante confiança na gente d’aquella visinhança, que tem tido bastante prudência p.ª os attrair, e não sei que até agora se lhes tenhão dado motivo de escandalo: assim he que se acostumão alugar p.ª trabalhos nos hervaes, e se
54 A intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul a partir da década de 1840 será abordada
com maior proximidade no item 2.5 deste capítulo. 55 Relatório do diretor de índios de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao presidente da
província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.
66
estima seu trabalho a causa da facilidade que elles tem de trepar nas arbores p.ª desgalhar a herva.56
A inserção dos indígenas no mercado de trabalho como ervateiros, através da política
de aldeamentos do Império, trouxe à tona uma questão dedutível do encontro de índios e
caboclos no interior das florestas: a existência de disputas pela ocupação dos ervais, bem
como do espaço para as roças de subsistência dessas populações no interior das matas. Essa
disputa certamente acarretou enfrentamentos entre ervateiros caboclos e ervateiros indígenas
provenientes tanto dos aldeamentos – que a partir da década de 1840 são formados
predominantemente por grupos Kaingang – como remanescentes populacionais formados a
partir do abandono das antigas reduções.
[...]O Director Oliveira officiou ao director Geral, pedindo que, sollicitasse da Presidencia uma ordem pella que fosse prohibido por agora aos Portugueses entrar a fazer herva n’um grande herval que os Bugres descobrirão no matto que separa os campos da Guarita do Rio Uruguai. Julgo que esta providencia seria vantajosa desde já ao aldeamento, e logo também a todo o districto, pois deste modo elles mesmos abrirão estrada até o Rio para por elle transportar as hervas a S. Borja e a Uruguayana. A mais se evitaria qualquer desavencia com os outros hervateiros, que por isso não tem os Bugres querido abrir pique ou mostrar o dito herval se não he ao Sr. Oliveira.
Passo-Fundo 14 de Janeiro de 1851. Bernardo Pares PP. Miss.º 57
Os núcleos de extrativismo de erva-mate, apesar de terem gerado receitas
representativas e serem incentivados pelas Câmaras Municipais, tinham suas atividades
56 Correspondência do Padre Bernardo Pares ao presidente da província. AHRGS –
Catequese dos Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 57 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província. AHRGS – Catequese dos
Índios, 14 de janeiro de 1851. Maço 1
67
restritas ao período de inverno, como afirmou o próprio diretor do aldeamento de Nonoai em
1868: “[...] No correr da estação do inverno, occupão se estes na preparação da herva
matte”58. Nas estações quentes, os índios aldeados, bem como os dispersos pelos matos e os
caboclos, se convertiam em agricultores independentes, cultivando roçados ou aproveitando
o espaço entre as ervateiras para a lavoura. Apesar da conotação de subsistência dessa
produção, era inegável a sua importância para prover tanto as estâncias como a população
dos centros urbanos com gêneros alimentícios provenientes da agricultura e que não eram
abundantes nas lavouras das fazendas.
O texto de Paulo Zarth sobre a História Agrária do Planalto Gaúcho recorta bem essa
dupla fonte de abastecimento interno das estâncias:
No interior da estância a produção agrícola livre era conduzida pelos peões posteiros, agregados que cuidavam do gado em pontos estratégicos da propriedade, em troca do direito de plantar e de alguma remuneração. [...] Por outro lado, embora extremamente fraco, o mercado de produtos agrícolas existiu através de agricultores pobres da região. [...] (ZARTH, 1997, p. 115)
Como destacado no fragmento de Zarth, a presença desta abundante reserva de mão-
de-obra favorecia aos estancieiros, também, devido ao estabelecimento de outro tipo de
dependência do peão caboclo em relação ao estancieiro. Além dos laços de dependência
comercial, firmavam-se laços baseados no uso da terra e na troca de serviços por produtos
alimentares ou de consumo. Paulo Zarth (1997, p. 170) ressaltou esse tipo de relação de
produção no planalto como fator constitutivo da figura do agregado. Neste tipo de relação de
58 Relatório do diretor de índios de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao presidente da
província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.
68
trabalho, os caboclos e índios59 convertidos em peões recebiam permissão do estancieiro
para permanecer na terra, separando um pequeno lote para o cultivo de sua subsistência,
mantendo, no tempo livre, o pastoreio dos rebanhos do proprietário da terra, em troca de
alguma vaca, leite, ferramentas ou outros gêneros aos quais não teria acesso pela sua
produção direta.
Referindo ainda o mesmo texto, pareceu emblemático para a utilização da mão-de-obra
livre na forma de agregados ou de contratação temporária o exemplo da Fazenda Estrela,
citado pelo autor, que em 1866 contava com 3.600 cabeças de gado e apenas três escravos60
(Zarth, 1997, p. 115).
A constante afirmação da necessidade de compra de gêneros alimentícios nas
correspondências de Diretores de Aldeamentos revelava a participação dos índios Kaingang,
aldeados no século XIX, apenas como coletores e fornecedores de erva-mate neste escasso
comércio agrícola. As freqüentes aquisições de produtos para abastecimento das aldeias
demonstravam também que, apesar da existência de uma lavoura regular, principalmente de
feijão e milho, a produção raramente era suficiente para o abastecimento interno da aldeia
nas entressafras, impossibilitando a geração de excedentes comercializáveis.
59 O indígena que aparecia inserido nestas relações de trabalho como peão era o índio remanescente das antigas
reduções jesuíticas. Os aldeamentos que visavam a reunião de índios kaingang no norte da província, embora tivessem rebanhos bovinos, tinham uma produção interna direcionada para a lavoura de subsistência. A produção dos aldeamentos no Rio Grande do século XIX será melhor explorada no terceiro capítulo desta dissertação.
60 É importante ressaltar que a tradição pastoril do planalto gaúcho, em geral, exigia um emprego relativamente baixo da mão escrava, não apenas pela abundância de mão-de-obra formada pela legião de caboclos e índios despossuídos, mas pela própria natureza da atividade pastorial. Entretanto, essas características de mão-de-obra não se repetem em toda a província, servindo como exemplo para um contraponto à região das charqueadas ao sul, onde o montante de escravos nas propriedades rurais era bastante representativo.
69
Visto que na segunda metade do século XIX a reserva de mão-de-obra disponível para
as fazendas tinha sido formada principalmente por caboclos, habitantes das terras de mato e
engrossada por indígenas esparsos oriundos dos contínuos vai e vêm dos aldeamentos, essa
análise se alinha à interpretação de Souza Lima (1995, p. 99), onde a Lei de Terras de 1850 e
seu Regulamento de 1854 apareceram como dois dispositivos legais com profunda
importância, não apenas na efetivação da propriedade privada da terra, mas também na
formação de mão-de-obra destinada à subordinação nas grandes propriedades rurais do
Império. Assim, as grandes dificuldades enfrentadas pelos habitantes das florestas do
planalto para legitimar suas posses devidas à configuração de suas atividades produtivas, a
baixa freqüência com que compareciam às paróquias e a instabilidade de seus paradeiros,
somados à redução dos territórios indígenas pela intensificação dos aldeamentos, foram
determinantes para a formação da mão-de-obra livre na província do Rio Grande no século
XIX.
Essa mão-de-obra disponível para as fazendas, formada por índios e caboclos, apareceu
como elemento fundamental nas décadas finais do século XIX. Diferentemente dos centros
agroexportadores do Império, no planalto gaúcho, o escravo foi substituído pelo agregado –
em alguns casos assumindo ele mesmo esse papel – e não por imigrantes. Os imigrantes
europeus chegados na região dos vales, a partir da década de 1820, e mais tarde na região das
encostas e ao próprio planalto, vieram para compor pequenas propriedades rurais nas quais
se baseou o surgimento de um mercado agrícola no sul do Brasil. O projeto imperial que
inseriu imigrantes europeus no Rio Grande do Sul cercou definitivamente os remanescentes
populacionais indígenas alojados nas florestas do planalto e das encostas. Essa situação,
agravada pelo avanço da imigração em direção ao alto da serra, transformou o aldeamento na
70
opção oferecida pelo Estado para os indígenas que ainda vagavam pelas florestas do planalto
e das encostas.
2.4 A Imigração e a Ocupação dos Vales e Encostas
Paralelamente à ocupação das terras do planalto pelas estâncias de gado, nas regiões
dos vales do Rio dos Sinos e próximas à encosta superior do nordeste, o governo imperial
passara a implementar um projeto de colonização com imigrantes europeus já a partir da
segunda década do século XIX. Visto que a habitação por grupos indígenas não representava
para o Império uma ocupação efetiva, a colonização européia foi mais uma estratégia
utilizada para preencher os “vazios” demográficos no sul e ao mesmo tempo constituir um
novo grupo social, destinado a desenvolver as regiões coloniais dentro de um modelo
econômico baseado na pequena propriedade agrícola com mão-de-obra familiar.
Inicialmente, essas propriedades tinham uma produção de subsistência, mas depois vieram a
constituir um mercado de abastecimento interno para a província e outras partes do Império.
Marcos Justo Tramontini (2000), ao avaliar o processo de imigração de alemães para o
vale do Rio dos Sinos, destacou três posições diferentes para os apoiadores da imigração: A
importação de cultura européia para civilizar o sertão; a preparação para o final da
escravidão e o branqueamento da população.
Concretamente, a estratégia de imigrar europeus, adotada pelo Império, criou uma
classe de pequenos proprietários de terra, livres da influência dos grandes estancieiros e
dedicados a atividades comerciais agrícolas e, num segundo momento, também fabril.
71
A escolha de imigrantes europeus, em detrimento dos caboclos despossuídos ou dos
indígenas habitantes do planalto e das encostas, foi resultado da mentalidade do período. Os
colonos europeus eram tidos como os portadores das habilidades e da capacidade de
modernização desejada para a agricultura nas terras “vazias” e improdutivas do Império.
Enquanto isso, índios e caboclos, com seus roçados e atividades extrativistas, representavam
tudo o que havia de selvagem e atrasado no sertão da província. Ela se fazia perceptível no
discurso corrente entre os indivíduos que orbitavam na corte, bem como nos meios
permeados pelo poder legislativo e executivo. A Decisão de 31 de março de 1824, ordenando
o estabelecimento de uma colônia alemã na Província de São Pedro, serve para exemplificar
a imagem que o Império fazia dos imigrantes europeus.
Decisão Nº 80 de 31 de março de 1824. Manda estabelecer uma Colônia de Alemães na Província do Rio Grande do Sul. Esperando-se brevemente nesta Corte uma Colônia de Alemães, a qual não pode deixar de ser de reconhecida utilidade para este Império pela superior vantagem de se empregar gente branca, livre e industriosa, tanto nas Artes como na Agricultura: E constando a S.M. o Imperador que o Terreno em que se acha o Estabelecimento do Linho Cânhamo na Província de S. Pedro, é o mais apropriado para nele se estabelecerem os mesmos Alemães [...] S.M. Imperial está muito certo da inteligência e zelo do Presidente de Governo, para duvidar um só instante que nele empregará toda a eficácia e esmero nesta Comissão que lhe dá por mui recomendada. Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de Março de 1824. Luiz José de Carvalho e Melo.61
Como conseqüência da opção imperial pelo elemento branco imigrado da Europa para
a ocupação das zonas coloniais, a população nativa formada por índios e caboclos
61 Documento reproduzido in: IOTTI, Luiza Horn. Imigração e Colonização – Legislação de 1747 a 1915.
Caxias do Sul: EDUCS, 2001. p. 79. Grifos meus.
72
despossuídos permaneceu destinada a compor mão-de-obra para as estâncias ou a trabalhar
na preparação da estrutura para os projetos de colonização, abrindo estradas ou desmatando
áreas que seriam ocupadas pelos imigrantes.
Quanto aos papéis destinados aos agentes envolvidos no processo de colonização das
terras nos Vales do Rio dos Sinos e Caí, bem como nas terras das encostas, a análise feita
aqui se alinha à perspectiva apresentada por Zarth (1997, p. 33). Nela, os papéis foram
distribuídos de acordo com existência de duas etapas na ocupação do território, sendo a
primeira delas uma frente de expansão e a segunda uma frente pioneira62.
Nas áreas que viriam a ser colonizadas por imigrantes no Rio Grande do Sul, o papel
de integrante das frentes de expansão foi destinado aos caboclos empobrecidos e indígenas
que se engajavam em atividades remuneradas ligadas ao abastecimento da colônia, transporte
dos colonos e preparação da estrutura para os lotes nos períodos de entressafra do
extrativismo ou de suas roças. A existência dessa frente de expansão não ficou restrita às
primeiras colônias, estabelecidas na década de 1820 com imigrantes alemães no Vale dos
Sinos. A partir do final dos anos de 1820, quando iniciam os preparativos para a expansão da
62 O mesmo autor destaca sobre essa diferenciação que, as frentes de expansão e pioneira são na realidade duas
etapas de um mesmo processo de ocupação de novas terras, sendo possível separá-las apenas para fins de análise. Pode-se deduzir, seguindo o raciocínio de Zarth, que a diferenciação mais concreta entre as duas etapas se daria ao nível da solidez das relações entre os agentes e a propriedade da terra, bem como o nível de integração das atividades produtivas desses agentes ao mercado. Na etapa de expansão, a inserção no mercado é bastante reduzida, normalmente ligada a operações extrativas, sendo a apropriação da terra dada a partir de estatutos bastante precarizados. Mesmo assim seria a motivação do mercado, ou de uma perspectiva de mercado, que moveria a ocupação da terra. Por outro lado, a frente pioneira aparece dotada de uma intensificação migratória, acompanhada de uma crescente mercantilização da terra e da integração efetiva da produção ao mercado nacional. Nesta etapa, a produção agrícola sistematizada se sobrepõe ao extrativismo, alavancando a criação e o crescimento de um mercado de produtos e terras, se sobrepondo ainda o mercado de trabalho livre às formas existentes de trabalho compulsório. Apesar de Paulo Zarth desenvolver esta análise diante do panorama de ocupação de terras no planalto gaúcho, a participação de indígenas no reconhecimento de novas áreas para a colonização e desalojamento de grupos rivais ocupantes destas áreas, bem como o engajamento de índios e caboclos como mão-de-obra na abertura de estradas e desmatamento de terrenos, ambas as atividades desenvolvidas mediante remuneração, configuram uma frente de expansão relativamente engajada ao mercado de terras em formação nas áreas destinadas a imigrantes na Província de São Pedro no século XIX.
73
empresa colonizadora rumo às encostas e, no final do século XIX, quando a imigração
chegou às áreas do planalto, foram comuns as descrições de diretores de índios sobre o
engajamento de indígenas aldeados tanto na abertura e na manutenção de estradas, como na
pacificação de grupos hostis ao avanço colonizador sobre as áreas de mato, onde atuavam
como intérpretes e até como bugreiros. Essa participação dos índios foi fundamental ao
avanço da colonização e era o papel para o qual foram destinados nesse processo.
Esses indígenas foram cooptados pela empresa colonizadora durante o avanço da frente
de expansão. Eram grupos Kaingang que se instalaram no planalto e nas encostas no final do
século XVIII e não tinham passado pelo processo de redução nas missões jesuíticas. Esses
Kaingang viviam em pequenos grupos ligados por laços consangüíneos, que habitavam as
terras de mato entre os campos e, por isso, permaneceram à margem do processo de
ocupação das terras vazias do sul até o começo do estabelecimento das colônias de
imigrantes europeus. Com a intensificação da ocupação de áreas no planalto nos vales e nas
encostas a partir de 1820, os Kaingang foram envolvidos pela política de aldeamentos do
governo imperial63. Depois de aldeados, eles foram engajados como mão-de-obra em vários
ramos de atividade, entre os quais, as frentes de expansão da empresa colonizadora.
O papel do pioneiro ficou reservado aos imigrantes europeus. Como referido por Zarth
(1997, p. 77), os “colonos imigrantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os
caboclos”. Porém, os colonos foram encaminhados por funcionários do Império aos lotes que
seriam de sua propriedade. Eles eram instalados em áreas próximas a mercados
consumidores, facilitando a comercialização da produção e, por conseqüência, o pagamento
63 Os conflitos entre índios e colonos e o processo de aldeamento dos grupos Kaingang do Rio Grande do Sul
será abordado mais profundamente no item 2.5 deste capítulo.
74
das terras. Os imigrantes foram abastecidos e orientados para o desenvolvimento da atividade
agrícola, visando não apenas a lavoura de subsistência, mas, também, a atividade comercial
nas zonas de colonização. Essa estrutura preparada pelo Império mostra que o imigrante
europeu foi eleito para compor a frente pioneira. Esses pioneiros foram integrados à
economia imperial para formar, no sul, uma região abastecedora do mercado interno. Assim,
a ocupação das áreas vazias do Rio Grande do Sul tinha, além das conotações políticas
levantadas por Tramontini (2000) e citadas anteriormente, a perspectiva de formar o que
ficou conhecido como o “celeiro de abastecimento do Brasil”.
Em 1824, foi iniciado o projeto imperial de colonizar o vale do rio dos Sinos e a
encosta da serra com gente “branca, livre e laboriosa”, através da instalação de imigrantes
alemães na antiga Feitoria do Linho Cânhamo. Dois anos depois, em 1826, outro grupo de
imigrantes alemães foi instalado na Estância Velha, localizada entre a margem direita do rio
dos Sinos e a Costa da Serra. Essa rápida expansão da área destinada à colonização se devia
à velocidade com que avançava o contínuo envio de levas de imigrantes para as regiões da
Feitoria e da Estância Velha. O ofício emitido pelo diretor da colônia alemã em São
Leopoldo, em 17 de dezembro de 1829, dava conta do esgotamento das possibilidades de
distribuição de terras aos colonos na antiga Feitoria (que a essa altura já estava oficialmente
rebatizada como colônia São Leopoldo), bem como da expansão da colônia em direção à
serra geral:
[...] fazendo aberturas de comunicação com as distâncias de duas a três léguas da faldas da mesma Serra, ou dos lugares onde se termina o Campo: e se acontecer que prossiga a vinda de mais colonos, e com isso a necessidade de se aumentarem tais estabelecimentos mais extensão se deverá ganhar na Serra, por ser o único território que atualmente há a dispor. [...] e a mim compete-me indicar o meio, senão o mais apropriado para por aqueles Colonos acobertos de novas invasões porque para isso se dependeria de medidas que trariam grandes despesas, com que não podemos, e grandes delongas que se
75
fazem incompatíveis com a urgência deste objeto, ao menos o que pode animá-los a fim de não recearem novas invasões de gentios.64
Devido à rápida expansão das colônias fundadas na primeira onda de colonização,
entre 1824 e 1847, quando foram fundadas as colônias de São Leopoldo, São João das
Missões, Três Forquilhas, São Pedro das Torres, São José do Hortêncio, Feliz e Novo
Mundo, os imigrantes europeus passaram a habitar regiões mais próximas da encosta ou,
mesmo, inseridas na serra. Essa proximidade das áreas de mato ainda pouco exploradas
desencadeou o processo de fricção interétnica65 entre os colonos e os indígenas habitantes da
região, mencionado no ofício pelo diretor da colônia de São Leopoldo. Esse processo foi
desencadeado, pois, com a ocupação dos campos no planalto e a rápida expansão das
colônias alemãs nos vales, a encosta da serra permanecia como um dos últimos redutos
Kaingang no Rio Grande do Sul. Os dois grupos mais citados na bibliografia que circulavam
naquela região eram comandados pelos caciques Braga e Doble. Esses dois grupos
permaneceram em contato contínuo com a frente pioneira pelo menos até quando foram
aldeados, respectivamente, em 1850 (no Pontão) e em 1849 (no Campo do Meio)66.
64 Fragmento de correspondência do Diretor da Colônia São Leopoldo, Tomás de Lima, ao presidente da
província em 1829 apud Tramontini, 2000, p. 91. 65 A utilização dada ao termo neste trabalho se alinha à elaboração de Roberto Cardoso de
Oliveira, a partir da qual toma-se por fricção interétnica o processo de articulação social entre minorias étnicas e a sociedade abrangente, centrando a análise no desenvolvimento das interações promovidas pelos contatos étnicos. O autor elaborou a noção vinculando-a às relações entre índios e às frentes de expansão que se desenvolveram no seio da sociedade brasileira, ressaltando o caráter de permanente instabilidade desse tipo de sistema interétnico, isto, pois, o dinamismo do sistema é proporcionado pela presença constante de antagonismos, que podem se apresentar de forma manifesta ou latente. Para uma apresentação mais aprofundada da noção de fricção interétnica, ver: OLIVEIRA, 1976, p. 57 – 58.
66 O aldeamento das lideranças Kaingang no século XIX não deve ser entendido como um marco final nos conflitos entre índios e brancos. Na realidade, os aldeamentos Kaingang apresentavam um contínuo entrar e sair grupos indígenas, determinado pela disponibilidade de recursos dos estabelecimentos. Para uma descrição mais detalhada da atuação dos Caciques Braga e Doble, ver: LAROQUE, 2000.
76
A segunda onda de expansão da empresa colonizadora no século XIX, que resultou em
problemas de fricção interétnica com as populações indígenas, teve seu avanço entre 1848 e
1874. Dessa segunda onda, as colônias que tiveram contato mais direto com os
remanescentes indígenas foram as de Caí, Montenegro e Nova Petrópolis.
Os conflitos resultantes da abrupta redução territorial sofrida pelos indígenas são
exemplificados pelo número de colonos e funcionários do Império mortos ou seqüestrados
por indígenas no interior das áreas mais avançadas abertas para a colonização. Referindo-se a
esses conflitos na região de colonização alemã no vale dos Sinos, onde estavam as mais
proeminentes colônias européias da primeira metade do século XIX, Telmo Marcom
relembra que:
Entre 1829 e 1831, na região de São Leopoldo, foram assassinados 19 colonos, além dos feridos e das crianças raptadas. [...] Esse problema não se restringe apenas ao início da colonização, estando presente em todo o processo, principalmente até a consolidação dos aldeamentos [...].(MARCON, 1994, p. 67)
Naturalmente, os colonos que haviam sido instalados nas áreas mais afastadas foram as
mais constantes vítimas dos ataques indígenas. Existem diversas narrativas dos assaltos
promovidos por índios em propriedades agrícolas na encosta da serra, não sendo poucas às
vezes em que eles desalojaram colonos das propriedades a que tinham sido destinados,
provocando senão recuos, ao menos interrupções no avanço do projeto colonizador do
Império. O relato de Matthias Franzen, reproduzido no livro alusivo aos Cem anos de
77
Germanidade no Rio Grande do Sul, traduz a situação de disputa pelas terras de mato na
serra travada na província no século XIX:
Estaríamos bem satisfeitos e felizes, não fossem os selvagens que há tempo tornaram as matas inseguras e já roubaram a vida de 21 dos nossos irmãos alemães. [...] Mostram-se especialmente interessados em surrupiar utensílios de ferro. Fogem do estampido das espingardas e têm muito medo delas. No dia 16 de abril deste ano, os selvagens mataram a uma distância de 4 quilômetros daqui (no Rosental), 11 pessoas, entre adultos e crianças. Por isso os alemães retiraram-se das colônias mais afastadas [...]67
Nesses assaltos às propriedades dos agricultores mais avançados na serra, eram comuns
os seqüestros de crianças, como destaca Ítala Becker (1976, p. 71). Ao abordar o problema,
cita o exemplo do ataque na Picada Dois Irmãos em 1831, onde foram mortos três
indivíduos, feridos mais dois e raptada uma criança, resgatada em Cima da Serra
posteriormente.
Diversos outros relatos da reação68 dos indígenas serviram de exemplos para os
problemas de fricção interétnica causados pelo avanço das frentes de expansão e pioneira em
67 Correspondência de Matthias Franzen 1832 apud AMSTAD, 1999, p. 81. 68 A idéia de reação aplicada neste trabalho não deve ser entendida com o sentido único de
resistência, pois busca dar conta da uma série de ações desenvolvidas pelos Kaingangs, e outros grupos esporadicamente, como conseqüência do processo de fricção interétnica durante a colonização das regiões ao norte do Rio Grande do Sul. Em alguns momentos, essas reações dos grupos indígenas envolvidos no processo apareceram na forma de negociações e até mesmo como acomodações dos modelos culturais intragrupais a realidade que lhes estava sendo apresentada. Um exemplo de acomodação pode ser destacado da postura colaboracionista assumida por algumas lideranças Kaingang durante o século XIX, que seguem o modelo pelo qual se escolhem os líderes grupais a partir da capacidade dos escolhidos em manter a subsistência do grupo. A semelhança entre as duas situações reside no fato de os Pay e Pay-bang, que atuaram em colaboração com o governo provincial, o fazerem normalmente pesando as possibilidades de recebimento de recursos – soldo, alimentos, roupas – além de garantias de segurança e terras aos seus seguidores. Nos momentos em que se escasseavam esses recursos os grupos ganhavam os matos, retornando a suas antigas áreas de roças, coleta, pesca e caça, deixando claro que
78
direção a serra. Estes problemas decorrentes da disputa pela terra entre os imigrantes e
grupos indígenas historicamente alojados na região foram, antes de qualquer coisa, o
resultado da sobreposição das áreas destinadas aos colonos europeus e territórios
conhecidamente ocupados por índios.
2.5 Os Indígenas Encurralados pelas Frentes de Ocupação
Com a chegada dos imigrantes europeus, os índios coroados69 tiveram sua área de
circulação restrita aos redutos de mato, localizados entre os campos do planalto ocupados por
estancieiros e caboclos na extensa região que formava o município de Passo Fundo e as
frentes pioneiras de colonização dos imigrantes europeus. O Império tinha conhecimento da
presença indígena naquela área, detalhadamente descrita pelo engenheiro e agrimensor do
Império Alphonse Mabilde, que esteve na região entre 1836 e 1866. No fragmento abaixo, o
engenheiro descreveu um encontro com os indígenas em 1850:
[...] nas matas compreendidas entre os campos de Passo Fundo e os de Vacaria, cujos matos compreendiam o chamado Mato Castelhano – sempre foi o foco ou centro onde se concentravam os coroados – existia uma grande tribo daquela nação, sujeita ao cacique principal Braga. Ao sudeste destas matas e nas compreendidas entre as cabeceiras e as embocaduras do rio Turvo e rio da Prata, ambos tributários do caudaloso rio das Antas e, passando este último rio,
retornariam aos aldeamentos quando aqueles pudessem garantir o sustento do grupo. Como pode-se ver, ocorreu uma resignificação do papel de provedor do líder indígena, assumido pelo governo provincial para garantir a aliança entre índios os índios e a província, o que acomodava as necessidades do grupo a nova realidade imposta pela empresa colonizadora. Alianças desse tipo também podem ser verificadas entre grupos indígenas e fazendeiros, seguindo a mesma lógica de negociação de lealdade e não agressão. A idéia de reação aparece para dar conta, em um nível mais amplo, de posturas desse tipo, bem como de outros, assumidas pelos indígenas diante da sociedade colonizadora em expansão. Para outro exemplo de aplicação semelhante da idéia de reação, ver: LAROQUE, 2000, p. 43 – 80.
69 Nomenclatura generalizante onde foram englobados diversos grupos indígenas que habitavam o centro sul do país (Kaingang, Xokleng e etc.). Esses mesmos grupos são por vezes chamados de botocudos, bugres e outros nomes, apagando suas identidades grupais e substituindo-as por termos que, geralmente, são vistos como sinônimos de “índio selvagem”, “sem rei e nem lei”.
79
até à margem direita do rio Caí, existiam outras tribos da mesma nação e subordinadas ao cacique principal Braga. [...] O cacique Braga alojou-se, com sua gente – 19 das 23 tribos subordinadas – nos pinherais da serra entre o rio das Antas e o rio Caí, onde ficou muitos meses, até que mudou o seu alojamento geral para o território compreendido entre o rio Turvo e o rio da Prata. Em fins de 1850, encontrei ainda ali, num território de menos de duas e meia léguas quadradas, o cacique Braga e as 23 tribos subordinadas. (MABILDE, 1983, p. 159)
Esses eram grupos Kaingang migrados do planalto paranaense para o Rio Grande do
Sul, como conseqüência da ocupação dos campos de Guarapuava, que os empurrou para as
áreas de mato ao norte da província São Pedro ainda no século XVIII.
Quando do início da ocupação efetiva destes territórios pelos luso-brasileiros, três
grandes grupos Kaingang estavam alojados na região, tendo suas áreas de circulação
relativamente definidas, como demonstra o mapa a seguir.
80
Mapa 3: Áreas de circulação dos grupos Kaingang no Rio Grande do Sul. Fonte: Adaptado a partir de BECKER, 1976, p. 62.
Esses grupos eram comandados pelos Pay-bang Fongue – na região da Guarita, Pay-
bang Nonohay – nos campos que receberam o mesmo nome e Pay-bang Braga – líder do
maior dos três grupos, que ocupava as áreas entre o Rio Passo Fundo e a encosta da serra.
Teriam sido principalmente os grupos sob a influência do Pay-bang Braga os envolvidos em
confiltos com imigrantes europeus.
Dois desses, Fongue e Nonohay, segundo Becker (1976, p. 48), teriam migrado para o
Rio Grande do Sul num processo de reocupação territorial de áreas anteriormente utilizadas
por eles mesmos, vindos respectivamente do Paraná e de Santa Catarina. O grupo de Braga
tem origens incertas, sendo que Ítala Becker (1976, p. 53) cita um diálogo entre o Pay-bang
Braga e Mabilde, em 1850, no qual o velho índio descreve uma linhagem de sepultamentos
em uma clareira no Mato Castelhano. Pela descrição desta linhagem, feita por Braga, Becker
conclui que a ocupação Kaingang daquela área remontaria a meados do século XVIII.
Mesmo com seu território atravessado pelos caminhos das tropas e considerando os
assaltos a tropeiros promovidos pelos índios, os Kaingang haviam permanecido
Legenda: Grupo do Pay-bang Fongue
Grupo do Pay-bang Nonohay
Grupo do Pay-bang Braga
Área aproximada das antigas
81
relativamente isolados no norte da província até o século XIX. Com a ocupação das terras de
mato pela atividade extrativista, os conflitos entre os grupos Kaingang e caboclos e, depois,
entre Kaingang e imigrantes, durante o século XIX, tornaram-se mais freqüentes.
No período entre a independência e a Lei de Terras, o governo do Rio Grande do Sul
destinou áreas para aldeamentos de índios Kaingang, em diversas áreas da região norte da
província.
Como já foi dito no primeiro capítulo, a intensificação da política de aldeamentos no
século XIX foi decorrente de uma necessidade de desalojar os indígenas das áreas a serem
ocupadas por estâncias e colônias, bem como pela necessidade de pacificar os conflitos entre
indígenas e integrantes das frentes de expansão e pioneira que adentravam a região. É a este
acréscimo no montante de estabelecimentos criados para sedentarização e civilização de
indígenas que está sendo denominado como intensificação da política de aldeamentos no
século XIX.
A reunião de índios em aldeamentos, prática comum na política indigenista brasileira,
levava os grupos indígenas a um sedentarismo patrulhado, garantindo a segurança de
estancieiros, peões e colonos alojados nos sertões. No caso do Rio Grande do Sul, foram
criados doze novos aldeamentos a partir de 1848, além de pelo menos mais sete, citados por
Ítala Irene Basile Becker (1995), sem datação confirmada.
Legenda:
1 – Conceição 2 – Inhacorá 3 – Estiva 4 – Campina 5 – Guarita 6 – Nonoai 7 – Serrinha 8 – Pinheiro Ralo 9 – Erexim
82
Mapa 4: Localização aproximada dos aldeamentos indígenas criados no Rio Grande do Sul depois de
1845. Fonte: Adaptado a partir de BECKER, 1995, p.89.
O texto de Becker sobre o índio Kaingang no Rio Grande do Sul apresenta a criação
dos aldeamentos no norte da província, a partir da metade do século XIX, de forma bastante
detalhada. Entre os aldeamentos citados pela autora, os primeiros foram os de Tenente
Portela e Nonoai, criados respectivamente nas regiões da Guarita e dos campos de Nonoai,
ambos em 1848. Na Guarita foram reunidos cerca de 1000 índios que seguiam o Pay-bang
Fongue. Em Nonoai, o aldeamento foi iniciado com uma população de cerca de 144 índios,
dos grupos comandados pelos Pay-bang Nonoai e Condá.
A seguir, apareceram os aldeamentos de Santa Izabel e do Pontão, em Santo Antônio e
Lagoa Vermelha. Esses estabelecimentos foram criados, provavelmente, no ano de 1849,
abrigando uma população de 187 índios em Santa Izabel e 138 no Pontão. Não se teve
notícias sólidas sobre a origem dessa população, sendo possível indicar apenas que os índios
reunidos em Santa Izabel eram parte do grupo do Pay Doble.
No ano de 1850 foram criados os estabelecimentos do Ligeiro (Tapejara), Campo do
Meio (Marau), Campina (Palmeira) e Votouro (Erexim). Os dados sobre a fundação desses
83
aldeamentos são bastante confusos, sendo possível confirmar apenas que, em 1850, haviam
no Ligeiro cerca de 90 índios reunidos. No Campo do Meio apareceram indicações de uma
população inicial de 400 índios, provenientes dos grupos comandados pelo Pay-bang Braga e
pelo Pay Doble. Entretanto, a documentação utilizada neste trabalho indicou que o Pay-bang
Braga, propriamente dito, se apresentou no aldeamento somente em 1851.
Seguindo ainda as indicações de Becker, apareceram os aldeamentos de Cacique Doble
e Caseros, criados em 1862, nas localidades de Machadinho e Lagoa Vermelha. Ambos
estabelecimentos iniciaram com uma população aproximada de 60 indivíduos, que haviam
migrado de Santa Izabel depois de sua extinção, em 1861.
Além desses, a autora cita ainda a criação dos seguintes aldeamentos: Inhacorá (1880 –
Santo Augusto), Estiva (Palmeira), Água Santa (Tapejara), Serrinha (Sarandi), Campos de
José Bueno, Erexim (Erexim), Ventarra (Getúlio Vargas) e Fachinal (Lagoa Vermelha).
A criação dos aldeamentos recebeu o apoio de três dispositivos legais na metade do
século XIX: o Regulamento das Missões, a Lei de Terras e o Regulamento da Lei de Terras
de 1854. Estes dispositivos estabeleceram os parâmetros gerais para aldear indígenas no
Império e, assim, completaram a estrutura para a liberação de territórios. Esse princípio, de
aldear para disponibilizar terras nos sertões, recorrente no indigenismo brasileiro foi,
segundo Paulo Pezat (1997), ressaltado pelo Regulamento de 1845.
[...] a política indigenista elaborada em 1845, através da criação da Diretoria
Geral de Índios, não priorizava o atendimento das reivindicações destes ou
mesmo sua incorporação à sociedade, e sim à liberação das terras que ocupavam
84
para permitir a expansão da fronteira agropecuária. [...] desde o momento em
que os Kaingang [...] não puderam opor resistência à ocupação da região norte
do Rio Grande do Sul, as autoridades [...] passaram a atuar apenas nos
momentos críticos, sendo as demandas indígenas vistas como caso de polícia [...]
(Pezat, 1997, p. 130)
A Lei de Terras de 1850 também corroborou com a intensificação política de
aldeamentos, pois promoveu a regulamentação das terras para indígenas, sendo estas
reservadas tanto na Lei de 1850, quanto no seu regulamento de 1854, para a colonização de
indígenas: “Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º,
para a colonisação dos indigenas.”70
O registro das terras indígenas, em 1850, deveria ter sido feito pelos Diretores de
Índios, encarregados da administração das aldeias e procuradores dos índios desde 1845, mas
muitos não realizaram o registro das terras ou o fizeram indevidamente, abrindo espaço para
invasões de posseiros.
O que aparentemente poderia figurar como uma contradição da Lei de Terras, na
realidade, deixa claro o interesse do Império de remover do sertão os seus habitantes nativos,
permitindo a reocupação da região, pois, enquanto o texto legal reservava terras para os
índios, os expulsou de seus territórios tradicionais. É importante lembrar aqui que a posse era
a única forma de aquisição de domínio dos terrenos naquele então, mas que, pelos
parâmetros estabelecidos no artigo 6º da Lei de 1850, as ocupações indígenas não eram
70 Fragmento da Lei de Terras de 1850, reproduzida na íntegra in: IOTTI, 2001, p. 112.
85
posses legalmente legitimáveis. A Lei de Terras exigia “cultura efetiva e morada habitual”71.
Pelas características culturais dos grupos indígenas que habitavam as matas do Alto Uruguai
e as encostas nessa época, profundamente ligadas à caça e a coleta, as ocupações indígenas
não atendiam às exigências para a legitimação.
A ocupação dos territórios ao norte do Rio Grande do Sul a partir de duas frentes
distintas ressaltava o interesse do império em liberar o sertão de seus habitantes primeiros.
Exemplo disso foi a abertura, em 1850, da estrada delineada pelo já citado Alphonse
Mabilde, ligando o Passo do Pontão, na costa do rio Uruguai, a Picada Feliz, no município
do Caí. O traçado da estrada cortava o território habitado pelos grupos do Pay-bang Braga e,
mesmo com a intenção de abrir uma via de ligação com a capital, o próprio Mabilde afirma:
Indo sempre na frente em descoberta encontrei trinta e quatro arranchamentos ou alojamentos de Bugres, em várias partes do Sertão, e todos bastante distantes entre si, porém, sobre uma mesma cordilheira. Resolvi abrir a Picada pelo meio daqueles alojamentos para assim ficarem todos devastados. O resultado foi ficarem mui descoroçoados os Bugres, e terem-se mais depressa decidido anuir ao convite que lhes fazia de se retirarem daquele Sertão como ao depois o fizeram.72
Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que as iniciativas para convencer os
indígenas a se aldearem nem sempre foram conflituosas. Fazia parte da política de
aldeamento de indígenas proposta pelo Império a atração dos índios através de dádivas e
presentes. Nos seus contatos com o grupo de Braga, durante a abertura da estrada do Pontão,
Mabilde também recebeu recursos da província para atrair os indígenas e convencê-los a se
aldearem. Em correspondência ao engenheiro datada de 24 de abril de 1850, a presidência da
província envia ferramentas e vestimentas para apoiar o contato com os indígenas:
71 Fragmento da Lei de Terras de 1850, reproduzida na íntegra in: IOTTI, 2001, p. 112. 72 Mabilde apud Becker, 1976, p. 54.
86
O presidente da província, atento à precisão de não se afugentarem os indígenas, que têm aparecido e querido impedir o seguimento dos trabalhos da abertura da Picada, incumbe ao Engenheiro Alphonse Mabilde, os quais, mediante algumas roupas e mantimentos que se lhes distribuírem, se têm tornado mais razoáveis, não deixando contudo de fazer novas exigências; [...] sendo a despesa feita com essas roupas carregadas à mesma rubrica – Catequese e Civilização dos Índios[...]73
Esse processo de atração dos indígenas através de dádivas e presentes era uma prática
que se tornou amplamente utilizada, principalmente na segunda metade do século XIX, com
a intensificação da política de aldeamentos. O governo da Província apoiou essa prática,
seguindo, ao menos em parte, os procedimentos estabelecidos pelo Regulamento das
Missões. Além do apoio à atração de indígenas e de ter destinado terras para os aldeamentos,
o governo soube aproveitar, para o tratamento da questão, a presença de missionários
jesuítas74 no sul do Brasil, empregando-os na catequese dos Kaingang nos aldeamentos
estabelecidos ao norte da Província. Os aldeamentos criados na província, a partir de 1845,
recebiam ainda mantimentos, ferramentas, vestuário, tropas de bugreiros e recursos
financeiros.
Quanto aos grupos dissidentes dos aldeamentos, ou que apresentavam resistência para
se aldear, o governo da província lançou, repetidas vezes, ações coercitivas, utilizando
Companhias de Pedestres ou tropas de bugreiros civis. Nessas ações foi comum a presença
de chefes e caciques que colaboravam com o Império. Dois exemplos importantes de
73 Apud BECKER, 1976, p. 57. 74 Entre 1840 e 1867, padres jesuítas voltaram a atuar na catequização de índios no Brasil. As atividades
jesuítas foram concentradas nos aldeamentos Kaingang em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Os jesuítas dessa nova fase vieram para o Rio Grande do Sul depois de sua expulsão da Argentina por Rosas. A presença dos jesuítas era muito mais interessante para o Império como agentes civilizadores do que como evangelizadores. Digo isso sem perder de vista a recorrente prática de que era preciso atrair para catequizar e, assim, civilizar pela fé. A visão dessa prática como caminho para a assimilação indígena persistiu no Brasil, mesmo que de forma latente em alguns períodos, pelo menos até as ações positivistas conduzidas pelo SPI, já no século XX.
87
colaboracionistas foram o Pay-bang Fongue e o Cacique Doble. Esses não são os únicos
exemplos de lideranças Kaingang que colaboravam com o Império, mas suas ações, em
parceira com as tropas de bugreiros, ou ainda, atuando como bugreiros, são conhecidamente
importantes dentro das políticas de repressão a índios hostis no Rio Grande do Sul.
Segundo Luís Fernando Laroque, em seu texto sobre as lideranças Kaingang no Rio
Grande do Sul durante o século XIX, as ações de grupos indígenas como colaboradores do
Império não fugia às estruturas culturais tradicionais Kaingang, nem mesmo quando lhes
atribuía oficialmente a condição de bugreiro. Era, na realidade, uma ação que unia a
possibilidade de acesso a bens e retribuições, inclusive financeiras, que de outra forma não
seriam acessíveis aos grupos indígenas, a traços culturais e conflitos políticos intestinos
desses grupos. Laroque usa o exemplo do Cacique Condá, bugreiro que conduziu Francisco
da Rocha Loures aos campos de Nonoai em fins de 1845, para afirmar que:
[...] a guerra contra as tribos inimigas de sua própria nação estava subjacente na cultura Kaingang. Nesse sentido, [...] podemos dizer que as atitudes tomadas pelo Cacique Condá nesses eventos não significaram que ele estivesse trabalhando a favor dos fóg, mas sim atendendo aos interesses da tribo a que pertencia [...] (LAROQUE, 2000, p. 111)
Apesar do esforço do governo provincial para remover dos campos do planalto e da
encosta da serra os índios que ali habitavam75, a manutenção dos grupos dentro de
75 A questão da mercantilização e ocupação das chamadas terras vazias, durante o século
XIX, não foi uma exclusividade do Império do Brasil. No período imediatamente posterior as independências das colônias européias na América Latina, a maioria das novas nações tiveram que redirecionar suas políticas de ocupação da terra. Tornou-se necessária uma reorganização das formas de utilização da terra que permitisse a expansão capitalista das fronteiras agrícolas. Para uma análise mais detalhada das modificações nas formas de ocupação da terra na região platina ver: REICHEL, 1993, p. 25 – 48. Nos atendo ainda a
88
aldeamentos nunca chegou a ser plena. A necessidade da manutenção das tropas de
bugreiros, os constantes enfrentamentos entre brasileiros e índios, bem como as contínuas
migrações de grupos para dentro e para fora dos aldeamentos, demonstraram que nem todos
os índios haviam sido recolhidos aos estabelecimentos e nem convencidos a permanecerem
ali, não sendo raras as notícias de grupos que continuavam se abastecendo em residências ou
roças de colonos, de forma pacífica ou não, freqüentemente apoiados por outros índios já
aldeados.
região platina, na província Argentina de Buenos Aires o governo de Rosas adotou uma política orientada no individualismo liberal, abolindo as legislações específicas que protegiam os índios e seus territórios, os igualando aos demais cidadãos argentinos. Fora da proteção das legislações indigenistas, as terras dos índios puderam ser apropriadas durante a expansão das propriedades dedicadas a pecuária. Para aprofundar a situação dos indígenas diante da expansão capitalista nos territórios da argentinos ver: REICHEL, 2005, no prelo.
89
3 A POLÍTICA INDIGENISTA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO
Este capítulo tem por objetivo identificar a política indigenista no Rio Grande do Sul
do século XIX, bem como as articulações ou tensões existentes entre as ações tomadas pelos
organismos provinciais e as propostas e encaminhamentos dados à Questão Indígena pelo
governo imperial. Para isso, foram analisados documentos produzidos pelos juizados de
órfãos, pela presidência da província e, principalmente, pelas diretorias de índios,
encarregados da aplicação da política indigenista durante o Império.
O conjunto de documentos analisados é formado por cinqüenta e cinco amostras
arroladas nos fundos da Justiça, Indígenas e da Presidência da Província, resguardados no
acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Nesses fundos documentais
foram consultados sessenta e oito maços, contendo correspondências e relatórios produzidos
no âmbito dos organismos acima citados entre 1834 e 186876.
76 A datação recortada foi com base nas amostras selecionadas e não na classificação utilizada pelo AHRGS,
pois aquela se baseava exclusivamente no órgão expedidor ou receptor do documento, ignorando temáticas ou balizes temporais. Assim, alguns dos documentos reunidos nos maços pela classificação original do acervo não diziam respeito aos objetivos traçados para este trabalho.
90
Quatorze destes ofícios foram enviados ou recebidos pelos Juizados de Órfãos da
província, os únicos dos maços de correspondência associados àqueles juízes, nos quais
indígenas eram mencionados.
Outros quatro documentos são pronunciamentos dos presidentes da província no
encerramento de seus mandatos, sendo três Relatórios e uma Fala, todos encaminhados à
Assembléia Legislativa nos anos de 1862, 1864 e 1866. O período recortado para este
trabalho, foram os únicos anos onde havia referências à catequese e civilização de indígenas
nos relatórios dos chefes do executivo do Rio Grande do Sul.
O maior montante documental consultado foi o proveniente dos diretores de índios,
contando com trinta e cinco correspondências – entre cartas, comunicados e ofícios – e dois
relatórios selecionados, como amostras do fundo Indígenas. As dificuldades constatadas para
a uma análise total do acervo, devido ao grande volume de documentação disponível, impôs
essa seleção de amostras, que seguiu alguns critérios de ordem prática. Inicialmente, as
atenções foram centralizadas nos aldeamentos de Nonoai, da Colônia Militar de Caseros e da
Guarita. A escolha desses estabelecimentos, em detrimento de outros possíveis, foi feita
segundo a quantidade e a variedade de documentos disponíveis. Nos maços referentes a eles
foram encontrados correspondências e relatórios tratando de atividades cotidianas,
demografia, produção e fluxo de verbas ou outros recursos, informações nem sempre
presentes nos fundos de outros aldeamentos.
A seguir, foram selecionadas duas a três amostras em cada grupo de documentos,
tendo sido consideradas novamente sua tipologia e o volume de informações disponíveis,
além das possíveis relações com outros documentos ou com a bibliografia consultada.
91
Na análise, também foi considerada a Lei Provincial nº 274, de 15 de novembro de
1853, reproduzida na íntegra no texto sobre a Legislação Indigenista do século XIX de
Manuela Carneiro da Cunha (1992, p. 218). Apesar de sua origem diversa das demais fontes
documentais utilizadas no trabalho, o texto da Assembléia Legislativa da Província compila a
política indigenista do governo rio-grandense no período e, assim, ganha relevância para o
desenvolvimento do trabalho.
Definido o conjunto de documentos que comporia o corpo de análise, estes foram
submetidos a um processo de pré-análise, onde foi feita uma crítica inicial da documentação,
buscando identificar temas comuns, a descrição de práticas ou procedimentos e a
reincidência de questões factuais nos documentos. Desse questionamento inicial, emergiram
os seguintes eixos temáticos: Índios e Seus Bens Tutelados como Órfãos; Catequizar e
Civilizar; Cotidiano dos Aldeamentos; Reação dos Índios.
O corpo de análise foi fracionado em grupos, seguindo esses eixos temáticos e
encerrando a preparação das fontes para a análise propriamente dita. Passou-se, então, a
estabelecer relações entre os textos contidos na documentação e o contexto rio-grandense
descrito no capítulo anterior, buscando identificar os padrões práticos com que os
organismos oficiais conduziam a política indigenista nesta província, bem como suas
aproximações e afastamentos em relação às propostas e encaminhamentos dados à Questão
Indígena pelo governo Imperial Brasileiro.
92
3.1 Índios e Seus Bens Tutelados como Órfãos
O primeiro eixo temático emergido da documentação levantada girava em torno da
problemática da tutela dos índios e de seus bens legais.
Entre as amostras recolhidas, seis itens tratavam diretamente da questão. São ofícios
produzidos nos primeiros anos da ação do juizado de órfãos sobre a questão indígena,
solicitando a intervenção da presidência da província para o estabelecimento oficial da tutela
orfanológica sobre o patrimônio dos índios remanescentes que ainda viviam dispersos nas
antigas reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul.
Esses ofícios foram trocados entre o Juiz de Órfãos de São Borja, Domingos José da
Silveira, o presidente da província, Fernandes Braga, e o Comandante de Missões, Manoel da
Silva Pereira do Lago, entre 1834 e 1835, período em que vigoravam os decretos imperiais
de 1831, 1832 e 1833, transferindo os índios e seu patrimônio para a alçada daqueles juízes.
Oficialmente, as legislações da década de 1830 restabeleceram a tutela orfanológica
para os índios em servidão, mas a compreensão geral dada ao texto da lei alcançava a todos
os indígenas indiscriminadamente77. Entretanto, os seis ofícios referentes ao patrimônio das
antigas reduções foram os únicos localizados no acervo do juizado de órfãos que abordaram
a questão durante o período de vigência da tutela do órgão sobre os índios.
O primeiro documento da série foi escrito em 15 de Junho de 1834 pelo Juiz de
Órfãos, Domingos José da Silveira, e direcionado ao presidente da província. No ofício,
77 Sobre o conteúdo dos decretos imperiais de 1831, 1832 e 1832, que transferiram a tutela dos índios aos juízes
de órfãos, ver o item 1.5 do primeiro capítulo deste texto, onde foi tratada a Legislação Indigenista do Século XIX.
93
Silveira comunicava sua nomeação para o cargo pela Câmara Municipal de São Borja e
pedia instruções a respeito das atribuições que o cargo lhe trazia.
Illm.º e Exm.º Snr. Em sessão extraordinária da Câmara Municipal desta Villa de São Francisco
de Borja de 10 de Junho Corrente, fui nomeado á pluralidade relativa de votos, Juis de Órfãos interinamente,[...] como no Código do Processo não trate em artigo algo das atribuiçoens dos Juises de Órfãos, VEx.ª ma esclarecerá oque devo praticar aeste respeito [...]78
O texto apresentava o estabelecimento, quase protocolar, de uma relação oficial entre a
autoridade instituída pela municipalidade e o governo da província. O caráter sutil e
subserviente, através do qual o juiz Silveira solicitou instruções para o desenvolvimento de
sua função, desapareceu no fragmento seguinte do mesmo ofício, sendo substituído pelo
conhecimento tanto dos encargos dos juízes de órfãos a respeito dos bens dos índios como da
situação desse patrimônio na região das Missões.
[...] Pela Lei de 29 de Novembro de 1832 forão extintos os Lugares de Ouvidores das Comarcas, que tinhão sob. sua Adeministração os bens dos Índios: Em virtude desta Lei aparece o Decreto da Regência de 3 de Julho de 1833, que Há por Bem encarregar a Adeministração dos ditos bens aos Juises de Órfãos dos Municípios Respectivos, emquanto pela Assemblea Geral senão derem outras providencias. Os Bens dos Índios deste município seachão de baixo da Adeministração do Tem. Coronel Comandante de Missoens desde oanno de 1826. VEx.ª me Ordenárá sedevo dar execução neste Decreto, ou amarcha que devo seguir com a Respopnsabilidade, ou sem ella dos ditos bens dos Índios de Missoens.
Deos Guarde a VEx.ª Villa de São Francisco de Borja de Missoens 15 de Junho de 1834.
Ilm.º e Exm.º Snr. Presidente da Provincia de São Pedro
Domingos José da Silveira79
78 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja ao Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de junho de 1834. AHRGS J – 43. 79 Idem.
94
O ofício inaugurava uma disputa entre o juiz Silveira, baseado no Decreto de julho de
1833, e o Comandante de Missões Pereira do Lago, apoiado por uma portaria ministerial de 6
de Junho de 1826.
A disputa entre as autoridades locais, que se estendeu até o primeiro semestre do ano
posterior, foi acompanhada através dos ofícios seguintes. Em outubro de 1834, o juiz Silveira
escreveu novamente à presidência da província, dando conhecimento de ter sido notificado
sobre a delegação da guarda do patrimônio dos índios ao Comandante de Missões. Ainda
assim, o juiz questionou novamente a legalidade da postura do governo da província ao
apoiar a portaria ministerial que mantinha Pereira do Lago como administrador daquelas
propriedades.
[...] pelo que respeita a Adeministração dos bens dos Índios, enpasso a Cumprir a Ordem de V.Ex.ª, não ingirindo=me pordever de Subdito, mas não por Convicção de sua Legalidade, avista do Decreto citado em meo officio de 15 de Junho. Permita=me, V.Ex.ª, a respeitosa observação,, que ou hû Decreto não tem força de Lei, ou a Lei he Letra morta, visto que obita à sua execução huma Simples Portaria de hû Ministro. A Portaria do Ministro he datada de 6 de Junho de 1826, e o Decreto da Regência he de 3 de Julho de 1833, mui posterior a aquella Portaria. Este Decreto, Exm.º Snr., he extensivo, e mui claro, e positivamente incumbe aos Juises de Órfãos da Administração dos bens dos Índios; suas disposiçoens são geraes, e por conseqüência, só hû Acto Legislativo, enão huma Portaria opoderá revogar, ou empecer seo Cumprimento, como entendo em minha mesquinha percepção. VEx.ª, porem, Mandárá oque lhe aprouver.
Deos Guarde a VEx.ª Villa de São Borja 15 de outubro de 1834.
Illm.º Exm.º Snr. Antonio Rodrigues Fernandes Braga. Presidente da Província80
A defesa convicta do direito de tutela sobre os bens dos índios, pelo juiz Silveira,
parecia confirmar a tradição “financista” do juízo de órfãos que, desde o período colonial
80 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja ao Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de outubro de 1834. AHRGS J – 43.
95
português, operava valores e bens pertencentes aos índios, depositados no cofre dos órfãos.
John Manuel Monteiro (1994, p. 111) destacou esta característica dos Juizados de Órfãos em
seu texto sobre a mão-de-obra indígena em São Paulo no século XVII.
Além desta função, o juízo de órfãos acumulava outra, talvez mais importante ainda: emprestar a juros o valor dos bens dos órfãos, tornando-se uma das principais fontes de crédito para os colonos.[...] Em São Paulo, estes pagavam pesados 8% de juros anuais sobre o principal emprestado, o que era justificado pelo “uso e costume da terra”. (Monteiro, 1994, p. 111)
Manuela Carneiro da Cunha, quando tratou da tutela orfanológica em seu texto sobre a
legislação indigenista do século XIX, também anotou a exploração dos indígenas pelos juízes
de órfãos, ressaltando em nota os benefícios pessoais dos sobreditos juízes na tutela de bens
e índios. A nota da autora diz que: “Era sabido que o ofício de Juiz de Órfãos, pelo poder que
tinha de distribuir libertos para trabalharem, enriquecia rapidamente seus incumbentes: tão
notório era isto que não se pertmitia a ninguém deter esse cargo por mais de quatro anos”
(CUNHA, 1992, p. 111).81
Essa mesma relevância do patrimônio indígena na tutela orfanológica, percebida pelos
dois autores, aparecia nos ofícios do juiz Silveira da vila de São Francisco de Borja. A
análise integral dos dois documentos não demonstrou, em nenhum momento, uma
preocupação direta com a pessoa do índio, encargo dos juízes de órfãos desde o Decreto de
27 de outubro de 1831, antes mesmo de o patrimônio indígena ter sido transferido para a
guarda daqueles juízes.
81 No texto, a autora faz referência aos índios libertos da servidão pela Lei de 27 de outubro de 1831,
considerados como órfãos desde então.
96
Nas cinco outras amostras componentes deste eixo temático, continuou, como tema
central, a administração dos bens indígenas. A Secretaria dos Negócios do Império interveio
na questão em setembro de 1834 e sancionou os direitos do juizado de órfãos sobre aqueles
bens. A partir de janeiro de 1835, Domingos José da Silveira passou a dominar a questão e,
na documentação, apareceram os primeiros encaminhamentos dados pela nova administração
aos imóveis das antigas reduções.
[...]Fico entregue do Officio de VEx.ª datado de 29 de Janeiro do Corrente anno, acompanhando a Copia do Aviso da Secretaria dos Negocios do Imperio de 12 de Setembro do anno proximo passado, em que Manda a Regência [...] fiquem os Indios das Vila Missoens – Orientais do Uruguai, debaixo da direcção, e Adeministração do Juis de Orfãos de São Borja, e pela mesma maneira mafáz VEx.ª siente [...] Responçabilizandome pela mesma Adeministração, e como me diz VEx.ª,, não de pouca monta. Nodia 22 de Fevereiro mefoi derijido hû officio do Tenente Coronel Manuel da Silva Pereira do Lago[...] Comunicandome, que desde aquella data, ficava desligado de tal Adeministração: em Consequencia poiz cingindome ao Regulamento dos Juizes de Orfãos, equerendo dar outro andamento aesta dita Adeministração, para que apareção rendimentos, mandei numerar as Cazas desta villa, pertencentes aos bens dos Índios[...] e despos de completa esta avaliação deque sefar termo neste Juízo, mandei preceder Edital naforma domesmo Regimento dos Juizes de Orfãos, edevem nos dias seguintes 18, 19 e 20 do Corrente, Correr pregão em hasta publica, aquém porellas mais der alugueis, sobre suas avaluaçoens.[...] Não dou Conta a VEx.ª dos mais Povos, Estancias, e utencilios que pertencem aesta Administração, porque ainda não recebi o Archivo dos Povos, ainda que esteja ja investido para deliberar atal respeito, mas para dar aminha Conta de recebimento a VEx.ª mehe perciso revisar tudo primeiramente.
Deos Guarda a V.Ex.ª Villa de São Borja 15 de Março de 1835 Ilm.º e Exm.º Snr.º Presidente da Provincia Antonio Rodrigues Fernandes Braga
Dominguos José da Silveira Juiz de Órfãos da V.ª e M. de São Borja82
Pereira do Lago e Silveira trocaram outros dois ofícios entre si, respectivamente em 11
e 12 de março de 1835, tratando o pagamento dos aluguéis e os imóveis que seriam
disponibilizados para o Comando das Missões, além do destino dos demais imóveis.
82 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja Domingos José da Silveira ao Presidente da Província do Rio Grande
do Sul. Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 15 de março de 1835. AHRGS J – 43.
97
No último documento desta série, Silveira apareceu completamente inteirado da
situação, tanto dos imóveis das reduções, como das estâncias adjuntas aos povos e do gado
nela reunido. O ofício, encaminhado ao governo da província, pedia aprovação para a venda
de parte do gado da estância de São Gabriel.
[...] em de me haver reprezentado o capataz da Estancia de São Gabriel, que faz parte dos bens dos Indios, cuja Administração foi confiada aeste Juízo, aurgente necessidade de ser aliviada aquella Estancia do grande pezo de animaes que nella pastão, [...] resolvi vender mil rezes decriar da referida Estancia de S. Gabriel, as quaes com effeito seachão vendidas a Francisco Berardo Vernes. Espero de VEx.ª a a provação desta minha deliberação. Deos guarde a VEx.ª São Borja 16 de Agosto de 1835. Illm.º Exm.º Antonio Rodrigues Fernandes Braga Presidente da Provincia
Domingos José da Silveira Juiz de Orfãos do M. de São Borja83
A importância do patrimônio na tutela orfanológica dos índios mereceu destaque
também, pois as estâncias das antigas reduções jesuíticas apareciam ligadas ao contexto de
ocupação das terras de campos para criação de gado no Rio Grande do Sul.
As concessões de sesmarias foram suspensas por resolução imperial a partir da década
de julho de 1822, o que restringiu as possibilidades de acesso a campos com domínio
legitimamente assegurado. No período entre 1822 e 1850, a posse vigorou como o único
meio de obtenção de domínio sobre a terra no Brasil. No entanto, não haviam mecanismos
para legitimar essas posses.
83 Ofício do Juiz de Órfãos de São Borja Domingos José da Silveira ao Presidente da Província do Rio Grande
do Sul. Correspondência do Juizado de Órfãos de São Borja, 16 de agosto de 1835. AHRGS J – 43.
98
A tutela orfanológica dos bens dos índios funcionou, no caso exemplificado pelas
correspondências descritas anteriormente, como o subterfúgio legal que forçou a
transferência de uma parcela substancial de terras e gado do domínio do Comando das
Missões para a alçada do juizado de órfãos, mais especificamente para a guarda do juiz
Silveira. Essa característica da tutela orfanológica se aproximou da afirmação de Silva (1993,
p. 14), segundo a qual “a propriedade territorial constituiu-se fundamentalmente a partir do
patrimônio público”. No exemplo do Juizado de Órfãos de São Borja, não se pode falar em
propriedade, mas sem dúvida, a disputa se travou em trono da tutela legítima de bens
garantidos aos índios pelo Império.
A tutela dos juízes de órfãos sobre os indígenas e seus bens se estendeu até 1845 com
o Regulamento das Missões, quando as Diretorias de Índios foram criadas e passaram a
aplicar a política indigenista no Brasil. Entretanto, até o fim de sua atuação oficial junto aos
indígenas, o juizado de órfãos não apresentou nenhuma preocupação direta com a forma
como viviam os índios no Rio Grande do Sul, constatação feita pelas poucas vezes em que a
questão apareceu mencionada na documentação. Tão pouco, demonstrou a elaboração de
algum tipo de instituição garantindo os direitos dos índios em seus acordos de trabalho, no
tocante a sua integridade física ou mesmo algum mecanismo para inserir os indígenas no
mercado local de trabalho, como se poderia supor pela mentalidade integracionista que
vigorava no período.
3.2 As Iniciativas para Catequizar e Civilizar
O segundo eixo temático, identificado durante a pré-análise da documentação, versava
a respeito das propostas de inserção para os indígenas e das iniciativas dos organismos
99
oficiais na província de São Pedro, durante o século XIX, que visavam integrar os índios ao
contexto regional do período.
Um conjunto de dezoito documentos abordava o tema, todos eles redigidos entre 1845
e 1868, portanto, referiam-se ao período posterior à edição do Regulamento das Missões.
Quinze desses documentos eram ofícios encaminhados por diretores de índios para o
presidente da província. Nesses ofícios os Diretores relatavam os resultados obtidos nas
ações desenvolvidas por eles no estabelecimento e na condução dos aldeamentos e, também,
apresentavam sugestões para melhorias naqueles estabelecimentos ou na aproximação com
grupos de índios arredios.
Um dos Relatórios e uma das Falas dos presidentes da província, encaminhados à
Assembléia Legislativa, também tratavam dessa temática. Esses prestavam contas das ações
do governo provincial diante da Questão Indígena. Entretanto, os dois documentos da
presidência se restringiam a reproduzir informações prestadas anteriormente pelos diretores
de índios, sendo raras as observações adicionais ou críticas a respeito da postura dos
diretores de índios ou dos trabalhos em andamento nos estabelecimentos por eles dirigidos.
Para análise do tema, foram considerados, ainda, fragmentos da Lei Provincial Nº 274
de 1853, pois nela estavam determinados os modelos que deveriam ser seguidos nos
estabelecimentos mantidos pela província para os índios.
O primeiro documento da série foi enviado por Francisco Ferreira da Roxa Loures ao
Conde de Caxias, que era o presidente da província naquele então. O ofício, datado de
100
outubro de 1845, relatava os contatos iniciais entre um grupo comandado por Loures e
indígenas habitantes de um toldo84 nas regiões circunvizinhas de Passo Fundo.
O senhor Roxa Loures foi contratado em São Paulo para acompanhar o missionário
Antônio Leite Penteado nos contatos com os indígenas que vagavam pela região de Passo
Fundo. Essa expedição pareceu ter sido uma das primeiras iniciativas do governo da
província para o aldeamento de indígenas depois do Regulamento de 1845.
O grupo era formado pelo missionário, por Loures e alguns outros homens vindos com
ele de São Paulo, além de uma força militar sob comando do Tenente Coronel Antônio Maria
de Souza, que levava uma remessa de roupas e ferramentas enviadas pelo governo da
província para atrair os indígenas e estabelecer um contato pacífico com os mesmos.
O ofício de Roxa Loures demonstrou a importância central dessas dádivas para a
aproximação com os índios, tendo sido a tarefa do grupo adiada vários dias na espera das
ferramentas e das roupas que serviriam como presentes.
[...] Eu acho desnecessario dizer a VExª os motivos que ou veram de senão cuidar com mais brividade no principio da Cathequeze dos Gentios que suponho que o Reverendo Antonio Leite Penteado, melhor espôrá a VExª, Cumprindo-me unicamente dizer a VExª que em razão de ter eu empenhado minha palavra a VExª dava-me para a a companharme, ajudar ao dito Padre no principio desta Cathequizi, pr. ser aquella ocazião mais opportuna pa. incetar esse trabalho, foi-me preciso esperar a vinda da factura para ser destribuida pelos Indios comforme as ordens de VExª arrespeito: Cuja factura depois de muita demora chegou em fins de 7bro [...]85
84 O termo “Toldo” apareceu com freqüência em toda a documentação utilizada como amostra para este
trabalho. Nas descrições feitas pelos interlocutores, os toldos apareciam como arranchamentos de índios já contatados e que, em alguns casos, mantinham relações regulares com as autoridades instituídas ou ainda com moradores brancos das proximidades. Entretanto, esses índios dos toldos não se viam nem eram vistos pelas autoridades como indígenas oficialmente aldeados segundo o Regulamento das Missões.
85 Ofício de Francisco Ferreira da Roxa Loures ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos Índios, 15 de outubro de 1845 – Maço 1 – Documentos Diversos.
101
Devidamente equipado, o grupo de Loures dirigiu-se ao campo na tentativa de
restabelecer as conversações com toldos indígenas já contatados anteriormente, mas que
permaneciam à margem dos aldeamentos organizados pela província. A estratégia adotada
por Loures foi tentar convencer os índios das intenções pacíficas do governo, que pretendia
unicamente trazê-los para o seio da sociedade civilizada.
[...] com sultemos de eu com mª jente da que trouce de S. Paulo com parte de factura hir aos toldos onde os tinha deixado a fim de ver-se depor alguma maneira sepodia comseguir alguma coiza; com efeito fui, ecom mtº custo pude em contrar Com os abitantes de hum toldo, e de estes pude reduzir atrazer treis, e os mais a li deichei surtidos de ferramenta, Ponches, e roupa: contentamento que tiveram depois de ter eu repartido o que levava por elles foi bastante, e depois de bem persuadidos de que VExª hera qm. ali nos mandava com o fim de dizer-lhes que sua intenção era unicame. o fazer-lhes entrar na sociedade, e que para este fim estaria prompto a asistir-lhe com tudo quanto percizassem, arribei deixando aelles botando mil bênçãos em VExª. [...]86
Encerrada sua tarefa de estabelecer os contatos iniciais, Loures anunciou seu retorno a
São Paulo, deixando a cargo do Padre Penteado o início da catequese. Para apoiar o trabalho
do missionário, ficou encaminhado o retorno de um casal de índios que estava residindo no
Uruguai, pois eram pessoas influentes entre os indígenas e poderiam facilitar a ação do
padre.
[...] Finalme.; qtº. Amim omais custozo esta feito e sérto na ativide. ezello do Pe. que por VExª esta em carregado desta Cathequézi que tudo ira bem. [...] Passo a recolherme pª S. Paulo pela nova estrada, e de combinação com o Pr. levo os tres Indios que nos vieram acompanhar, os q vão fazer junção em outros toldos, p.ª em lugar marcado se em contrarem com elle Pe. que então continua na Cathequizi, e apezar da pouca gente que tenho; p.ª instancia do Pe. fariy voltar do Uruguay o Indio Manoel, que he cazado com a filha de um Cacique o que o Pe. exige como de suma necessidade p.ª por elle entender os outros como bom imterpetre, e mm.º pela estima que goza a China, como huma das Nobrezas Selvajens. [...]87
86 Idem. 87 Idem.
102
A expedição conduzida por Loures, segundo o descrito no ofício, levou em
consideração as recomendações feitas pelo Regulamento das Missões em seu Art. 1º, §19,
para que fossem utilizados meios brandos e suaves para atrair os índios aos aldeamentos. A
utilização das dádivas foi sugerida, para a aproximação e estabelecimento de laços de
confiança com os índios, por José Bonifácio em seus Apontamentos de 1823 e, no Rio
Grande do Sul, se tornaram uma prática usual mesmo nos aldeamentos já estabelecidos.
Essa forma como foi conduzida a ação de aproximação com os indígenas do toldo por
Loures, com apoio do governo provincial, demonstrou novamente que o Regulamento de
1845 apenas oficializava práticas já seculares no tratamento da Questão Indígena.
O tratamento utilizado por Loures ao anunciar os índios que retornariam do Uruguai
para apoiar o padre demonstra, também, a manutenção da imagem dos indígenas como
selvagens, vivendo à margem da civilização. No documento citado acima, mesmo deixando
clara a expressão social da mulher do índio Manoel enquanto membro de um grupo
socialmente destacado, Loures a classifica como uma “china” pertencente a uma nobreza
“selvagem”. A adjetivação, dada pelo representante da província à índia a marginalizava
duplamente. Primeiramente, enquanto mulher que vive fora dos modelos sociais vigentes e,
por isso, uma selvagem. Em segundo lugar, mesmo sendo casada e reconhecida como tal,
descrita com o termo pejorativo de china, que desmoralizava tanto sua condição de esposa
quanto a de membro de uma nobreza.
103
Retomando o modelo de aproximação com os indígenas utilizado por Loures, desde o
século XVI a formação de grupos para contatar indígenas tinha essa estrutura descrita no
ofício, unindo a ação de sertanistas e missionários no convencimento dos indígenas sobre as
vantagens da vida nos aldeamentos.
Encerrado esse momento inicial de aproximação, a integração do indígena na
sociedade através dos aldeamentos voltou, desde 1845, a ser incumbência dos religiosos.
Ficava concretizada, então, a relação entre catequizar e civilizar. O Regulamento de 1845 já
reafirmava essa relação, dada a importância da figura dos missionários nos aldeamentos, e a
Lei Provincial Nº 274 a ratificou na esfera regional em 1853.
Art. 2º. Os padres missionarios serão exclusivamente empregados, não só no ensino dos rudimentos das primeiras lettras, como na propagação da religião, esforçando-se com o seu exemplo e conselhos por inspirar nos indigenas o amor ao trabalho.88
As assinaturas dos documentos que tratavam da catequese e civilização no Rio Grande
do Sul atestavam a volta da figura central da Igreja na condução da política indigenista
depois de 1845. Dos dezoito documentos abordando a questão, dez eram assinados por
religiosos que apareciam como administradores interinos ou mesmo diretores dos
aldeamentos.
O padre Bernardo Pares, em ofício de novembro de 1848 ao presidente da província,
demonstrou o engajamento dos missionários na crença da religião como instrumento de
civilização dos indígenas.
88 Lei Provincial n.º 274 – Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul, novembro de 1853, reproduzida in.:
CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação Indigenista do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992, p. 218.
104
[...]Quanto a religião eu julgo que elles não tem nenhuma, e que a Idea do ser supremo he nelles muito confusa e material: Porém sabendo agradar a elles, e inspirar-lhes confiança me parecerão serem bastante docis p.ª que se possa lograr delles, que se deixem instruir nas verdades de nossa Santa fé: mas o mesmo que eu dizia antes fallando de sua natural indolência, se precisa tambem p.ª isto de tempo e paciencia, e se perderia tudo se se pretendesse ganha-los de outro modo. [...]89
Além da ligação direta entre catequese e civilização, os documentos indicavam que o
destino dos indígenas aldeados era a integração como mão-de-obra agrícola. Inicialmente, a
preocupação dos diretores das aldeias era o estabelecimento de roças para o sustento do
próprio aldeamento. O ofício enviado pelo Padre Bernardo Pares ao presidente da província,
em outubro de 1849, demonstrava o empenho do missionário em manter os índios
envolvidos com o trabalho das roças.
[...] vendo se passaba o melhor tempo de roçar, me decidi a comprar huma ducia de machados e outra de foces para dar principio aos trabalhos. [...] temos ya huns dez alqueres de roça, bem feita, segun dicem, os qe. entendem, tanta na roçada como na derrubada. [...] teremos para a roça-grande huns doce alqueres, que correndo o tempo regularmente darão milho, feijão e abobra para manter abundantemente quantos Bugres se agreguen a este Aldeamento. Á mais da roça-grande os Bugres tem feito as suas particulares: Victorino Condá de 1½ alquer, seu Irmão Domingos de 1 alquer, Canãfe de 1 alquer, Criquincha, Caembé, Ñandi, Nonnemi, Arimbenk cada hum de ½ alquer, Nonohay, o capitão Jacob e outros estão agora roçando com porretes a falta de ferramentas, e espero qe com a chegada d’este se tem de animar muito pois são gente trabalhadora, principalmente os do Nonohay, que dicem querem plantar bastante para não passar mais fome. No qe. respeita este trabalho estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião gostosos [...]. A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. [...] Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.90
89 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 06 de novembro de 1848 – Maço 1. 90 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.
105
No exemplo do aldeamento de Nonoai, descrito pelo padre Pares, vemos que o plantio
de roças para consumo interno no aldeamento era um dos objetivos a serem alcançados pelos
diretores de índios. Essa incumbência dos diretores de índios do Rio Grande do Sul alinhava-
se à política indigenista do Império e, ao mesmo tempo, dava ênfase à idéia de encerrar
rapidamente os gastos do Estado com a tutela sobre os indígenas, através da criação de uma
relativa autonomia econômica para os aldeamentos. Para isso, foi tomado como norte, no
estabelecimento dos aldeamentos, a integração dos índios à agricultura através de
aldeamentos auto-sustentáveis.
O princípio de criar aldeamentos capazes de se autoprover no século XIX foi
estabelecido a partir do modelo das antigas reduções guaraníticas administradas pelos
jesuítas até a metade do século XVIII. Em carta enviada a um colega de ordem em 1848, o
padre Bernardo Pares indicava que a relação entre as antigas reduções guaraníticas e o que se
esperava dos aldeamentos da província, mesmo não aparecendo descrita nos documentos
oficiais, norteava a política indigenista da província no século XIX.
[...] devo fazer saber à V.R. que isto não é nem poderá ser coisa que se pareça ás antigas reduções, pois nem as circunstâncias locais, nem as pessoais dos índios, nem as idéias do dia o permitem. Não é possível isolar umas reduções que se acham tão imediatas às populações e estâncias, nem os índios acostumados a tratar com os cristãos da vizinhança sofreriam facilmente esse isolamento. [...]91
Retomando a análise do documento anterior, chamou a atenção o empenho do padre
Pares para o estabelecimento de roças particulares pelos indígenas. O destaque dado aos
91 Carta do Padre Bernardo Pares ao Padre Lerdo, 07 de novembro de 1848 apud PEZAT, 1997, p. 266.
106
índios que se interessaram pelo plantio privado, recebendo por esse trabalho as mesmas
recompensas dos envolvidos nas roças comunitárias, demonstrava que no Rio Grande do Sul
existia a perspectiva de integrar rapidamente o índio a um modelo de agricultura de
subsistência voltada para o sustento do núcleo familiar.
[...] A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. [...] Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.92
A iniciativa do padre Pares destacava o alinhamento, em tese, da província ao projeto
imperial de integração dos indígenas. Isso, pois, o Regulamento de 1845 previa, em seu Art.
1º, §3º, a manutenção das terras individualmente cultivadas em usufruto aos índios, ou as
suas viúvas, quando esses pudessem comprovar bom comportamento e capacidade de se
sustentar, preferencialmente pela agricultura. Entretanto, nos documentos consultados
durante este trabalho, foi possível identificar apenas um caso de manutenção do indígena em
suas terras depois de fechado um aldeamento. O caso referido tratava de um indivíduo
remanescente da antiga Aldeia dos Anjos, estabelecimento fechado antes mesmo da edição
do regulamento das missões. Nos aldeamentos criados depois de 1845 no norte da província
as terras permaneceram sempre reservadas para os grupos nelas reunidos e, posteriormente,
nos casos onde estabelecimentos foram fechados, esses terrenos acabaram sendo
reincorporados aos próprios nacionais ou apossados por particulares.
92 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.
107
Mesmo mantida a diretriz de incorporar os indígenas à sociedade como agricultores, o
Regulamento de 1845 abria a possibilidade de instalação de oficinas nos aldeamentos, desde
que atendessem às necessidades imediatas do estabelecimento e fosse possível engajar os
índios no aprendizado dos ofícios ali desenvolvidos. O regulamento falava em: “§ 26.
Promover o estabelecimento de officinas de artes mechanicas, com preferencia das que se
prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admitidos os Índios, segundo as
propensões que mostrarem”.93
No ofício enviado pelo padre Pares ao governo da província, em outubro de 1849, o
missionário demonstrava a pretensão de estabelecer o ensino de ofícios aos indígenas fora
das atividades agrícolas. Seguindo a orientação de estabelecer oficinas a partir das
necessidades imediatas dos estabelecimentos, na ocasião, Pares solicitou a manutenção no
aldeamento do carpinteiro encarregado da construção das mangueiras e de uma capela para
ensinar o ofício aos indígenas.
O homem qe. tem servido de dirigir os trabalhos da roça e qe. agora está facendo a manguera e cortando as maderas para Capella e Casa he escellente carpinteiro do matto, e não será fácil achar outro tão capaz de ensinar aos Bugres qe. o-estimão, trabalhador e de boa conducta, e qe. não menos entende de facer herva. Por isso me parece conveniente pedir a VE. qe. ma autoriçase para depois de levantar a Capella continuar tendo elle alugado para dirigir aos Bugres no facer as suas casas, e se for necessário taobem logo qe. chegue o tempo, para facer herva. Me parece qe. não seria fácil achar hum homem das suas qualidades qe. morasse n’aquelles sertões por 32$000 reis.94
A solicitação do religioso teve respaldo junto ao governo da província, ao menos
durante o ano seguinte. Nas prestações de contas enviadas pelo padre em julho de 1850 e
janeiro de 1851, constavam entre os gastos descritos as somas respectivas de 224$000 e
93 Fragmento do Regulamento das Missões reproduzido na íntegra in: RODRIGUES, 1999. p. 33-41. 94 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 28 de outubro de 1849 – Maço 1.
108
160$000, destinadas ao pagamento do mestre carpinteiro empregado na instrução dos índios
em Nonoai.
No início de 1851, o padre Pares voltou a demonstrar a intenção de instalar oficinas
nos aldeamentos. Nas observações finais do relatório entregue pelo missionário em janeiro
de 1851, constava a solicitação de instalação de um ferreiro em Nonoai, que, além de fazer a
manutenção das ferramentas do aldeamento, ensinaria o ofício aos indígenas.
Para este mesmo aldeamento se tem mandado a necessária ferramenta, e se pouparião muito dinheiro se houvesse ferreiro para a compor, claçar e conservar. Tem vindo no ppdo. Dezembro um ferreiro de Garopoaba que se engajaria pella quantia de 12$000 por mes para servir no Aldeamento, e ensinar aos Bugres. Para isto era preciso mandarlhe uma tenda completa com alguma porção de ferro e aço.
Passo-Fundo 14 de Janeiro de 1851. Bernardo Pares PP. Miss.º 95
Entretanto, na documentação consultada, não houve vestígios que pudessem
comprovar a instalação da ferraria solicitada por Pares. Somente q uinze anos depois, em
1866, um dos presidentes da província referiu, em relatório a Assembléia Provincial, o envio
de aço para o aldeamento de Nonoai. Mesmo assim, não pareceu existir ligação direta entre a
proposta de 1851 e o aço remetido pela província a Nonoai em 1866. O ensino dos ditos
ofícios mecânicos aos indígenas parece não ter tido continuidade. Além dos documentos
citados acima, somente na Fala do Vice-Presidente da província à Assembléia Legislativa, no
ano de 1866, se voltou a referir a instrução de indígenas em ramos de atividade desligados da
agricultura.
95 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
109
Classe Provincial Existiram em 30 de Junho último 51 menores da classe provincial, havendo 19 vagas, sendo 11 nos lugares reservados para os expostos e 8 para os indígenas. Estes menores aprendem os ofícios seguintes: Carpinteiros 24 Correeiros 14 Ferreiros e armeiros 7 Latoneiros e funileiros 6 Além destes ofícios 28 aprendem a arte da música.96
A classe provincial descrita pelo Vice-Presidente Cunha não era uma iniciativa
propriamente destinada à integração de indígenas. Havia uma reserva de vagas para
indígenas entre as existentes no ensino provincial de ofícios. No entanto, o documento da
presidência não indicava positivamente nem se as vagas reservadas para índios foram
preenchidas, nem se meninos índios eram freqüentemente enviados para instituições de
ensinos regulares da província. Entre os cinqüenta e cinco documentos consultados neste
trabalho, apenas a fala do Vice-Presidente em 1866 mencionou vagas reservadas para
crianças de origem indígena. Assim, mesmo que em 1866 alunos índios tenham freqüentado
as classes provinciais de ofícios mecânicos, a iniciativa do governo provincial naquele ano
não pareceu ter se repetido em anos anteriores ou posteriores.
Paralelamente ao princípio de converter índios em agricultores e as iniciativas isoladas
de iniciação dos indígenas em ofícios mecânicos, durante o período imperial, houve
alistamentos compulsórios de indígenas para servirem embarcados ou nos arsenais da
marinha. Uma Decisão imperial de 1827 recomendava a remessa de índios para os navios da
Armada Nacional e Imperial.
96 Fala do Vice-Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Antônio Augusto Pereira da Cunha
na 1a sessão da 12a legislatura da Assembléia Provincial, 3 de Novembro de 1866. AHRGS
110
05/09/1827: Decisão n. 82 – MARINHA – Recomenda a remessa de indios
para serem empregados no arsenal da Marinha da Cortê, e nos
navios da Armada Nacional e Imperial
Illm. E Exm. Sr. – Sendo necessario que no serviço do Arsenal da Marinha desta Cortê, e no dos navios da Armada Nacional e Imperial se empregue o maior número possivel de indios; Manda Sua Majestade o Imperador recommendar a V. Ex. a prompta remessa daquelles dos existentes nessa provincia que estiverem nas circunstancias de ser assim empregados conforme anteriormente se havia já ordenado por esta Secretaria de Estado. Deus guarde V. Ex. – Palacio do Rio de Janeiro em 5 de Setembro de 1827. – Marquez de Maceió. – Sr. Presidente da Provincia de [...]97
Segundo Lima (1995, p. 97), as requisições de indivíduos nos aldeamentos para
servirem embarcados, ou em arsenais da marinha, foram mais comuns nas províncias do
norte. No Rio Grande do Sul essa prática não apareceu comumente mencionada nas
correspondências dos aldeamentos consultados. A única referência encontrada na
documentação ao alistamento compulsório de índios foi uma recomendação do padre
Antônio Moraes Branco, diretor do aldeamento da Colônia Militar de Caseros em 1866.
Aconteceu que, naquele ano, alguns índios do aldeamento de Caseros ajustaram um
trabalho na roça de João Damasceno, morador da região do Turvo. Com a proximidade entre
os indígenas e a família de João, se iniciou um romance entre o índio Jacinto Doble e a filha
de Damasceno. Decidida a se casar com Jacinto, a menina mudou para o aldeamento.
Quando soube do não consentimento dos pais da menina naquela união, o padre Branco
tomou medidas para que a moça retornasse à casa paterna. Em seguida, recomendou o envio
do índio Jacinto para a marinha, como punição por incitar um mau exemplo aos demais
aldeados.
97 Decisão imperial n.º82 de 05 de setembro de 1827, reproduzida in: CUNHA, 1992, p. 130.
111
Eis, Exm. Sr., a narração fiel do facto. Agora, moralizando-o tomo a liberdade d’aprezentar a V.Ex.ª a minha opinião que peço a V.Ex.ª a graça de tomar em consideração.
Este Indio Jacintho não deve ms. morar neste Aldeamt.º, por que com o seu exemplo incita os outros a actos semelhantes, e alem disso acarreta sobre a Tribu a odiosidade do povo, que naturalmte. almeja a sua punição. Todos os Indios repreovárão o acto deste; só foi elle acompanhado do irmão João Gangrê, que tambem, por perverso, e vadio, deve acompanhar a Jacintho ao destino que V.Ex.ª der aos dous. Sou portanto d’opinião que devem estes dous sujeitos sentar praça na marinha [...]98
Como dito anteriormente, esta proposta de punição, feita pelo padre Branco, foi a
única referência citada, na documentação consultada durante este trabalho, que indicava o
alistamento compulsório de indígenas para embarcações da marinha imperial no Rio Grande
do Sul.
Com relação à manutenção das terras dos aldeamentos, a política indigenista aplicada
na província de São Pedro apareceu, nos ofícios dos diretores de índios, permeada do intuito
de concentrar cada vez mais os grupos indígenas, disponibilizando-lhes a menor área
possível. Apesar da resistência dos índios em reunirem-se nas áreas destinadas a eles pelo
governo provincial, três anos depois da edição do Regulamento das Missões, os diretores de
Índios tratavam das tentativas de reunir vários grupos em um mesmo aldeamento.
Em ofício de 06 de novembro de 1848, destinado à presidência da província, o padre
Bernardo Pares falava da recusa dos índios aldeados na Guarita em serem deslocados para
Nonoai.
98 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.
112
Os da Guarita não quizerão ajuntarse aos do Nonohay p.ª não se sujectarem ao Condá a causa de certas desconfianças que d’elle tinhão, e ainda durão, porem tampouco elles fizerão mais dannos aos christãos depois da presentação do Condá.99
No ano seguinte, em 1849, o mesmo missionário voltou a mencionar em ofício a
intenção do governo provincial de reunir em Nonoai o maior número possível de grupos
indígenas, solicitando ao presidente da província determinações sobre a ocupação dos
campos do Pontão, na região de Vacaria.
O tão prolongado temporal de chuvas me tem tido incommunicado com a Guarita e Vaccaria; de aqui recebi uma noticia confusa de qe. os Bugres fugidos do Campo-do-meio queria aldearse lá, e qe não seria difficil persuadir elles qe. fosse no pontão donde se achão os PP. Missrios. Eu estou persuadido qe. todos os qe. estavão no campo-do-meio, passarão ao Nonohay logo qe. saibão qe. não falta qe. comer e qe. serão lá protegidos. Porem quiçer saber a vontade de VE sobre se o Pontão debe povoarse de Bugres ou de Portugueses, pois me consta haver varias familias d’estes qe. tencionão estabelecerse lá. Eu dentro de poucos dias passarei, se o tempo melhorar a visitar aquelles Padres e então poderei informar melhor a VE.100
Os grupos Kaingang abordados pelo padre Pares nos dois ofícios não são os mesmos.
Os índios aldeados na Guarita eram do grupo comandado pelo cacique Fongue, os do Campo
do Meio e do Pontão seguiam o Pay-bang Braga e o Pay Doble. No aldeamento de Nonoai já
viviam reunidos diversos grupos, sendo que, em 1848, a liderança mais influente no
aldeamento parecia ser o Pay-bang Victorino Condá. Essa diversidade de grupos indicados
nos documentos demonstra que as intenções do governo da província não era reunir em
Nonoai grupos aparentados ou com algum tipo de vínculo histórico, mas sim o maior número
de índios possível.
99 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 100 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.
113
Em 1854, a situação tinha sofrido poucas alterações. Entretanto, a idéia de reunir em
Nonoai todos os grupos indígenas aldeados voltou a aparecer nos documentos da diretoria
daquele aldeamento. Em ofício de José Joaquim de Oliveira, enviado ao presidente Sinimbu
em 1853, o diretor do aldeamento de Nonoai deu parecer favorável ao agrupamento dos
índios aldeados.
Sou da opinião de V.Exª. que este local he omais azado para o aldeamento de todas as Tribus de Indios Coroados, que vagão por estes contornos, pela Vaccaria, Pontão, e Campo do Meio, muito embora ainda não se tenha conseguido aqui reunilos todos, em consequencia dos manejos de huns que só almejão desacreditar o governo actual, e esta Directoria, e de outros que despejadamente aspirão locupletar-se com os Campos e serviços dos Indios. Visto como aqui não estão reunidos todos os Índios, não he possivel ao certo dizer-se o seo numero; porem não he longe da verdade o calculo de 640, inclusive 289 que me acompanharão da Guarita sob as ordens do Capitão Fongue.101
Dois anos depois, o padre Antônio de Almeida Leite Penteado, novo diretor do
aldeamento, em ofício ao presidente da província, dava a entender que a intenção de reunir
os índios em Nonoai, apesar de não te sido concretizada plenamente, ainda existia.
Sua Exª. o Senr” Ex. Preside., informado do pessimo estado do aldeamtº. de Nonohaÿ, entendeo em sua sabedoria q. devia fundir-se as tribus aldeando-as todas em Nonohaÿ, cujos campos destinou pª. os indígenas; e deo a Directoria ao dº. Olivª. em 1853, o ql. em dias de Janrº. do anno pp. fes pª. ali recolher a sua mencionada tribu – Fongue –, tendo antes obtido recolher a – Nicaphÿm – ; porem esta desertou logo pª. a casa de seos amigos.102
101 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 102 Ofício do Padre Antônio de Almeida Leite Penteado ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul.
AHRGS – Catequese dos Índios, 1856 – Maço 2.
114
A persistência do governo na tentativa de reunir os indígenas do norte da província em
áreas cada vez mais reduzidas, no período entre as décadas de 1840 e 1860, nos permite
associar a criação dos aldeamentos à necessidade de disponibilizar terras para os projetos de
colonização que estavam sendo desenvolvidos pelo Império no sul do Brasil. Permite,
também, associar a redução dos espaços ocupados pelos indígenas ao processo de
mercantilização da terra, em desenvolvimento no Brasil desde a primeira metade do século
XIX, que culminara com a ascendente valorização dos terrenos em função da Lei de Terras,
depois de 1850.
Entretanto, entre 1834 e 1868, período abordado por este trabalho, o plano do governo
da província de agrupar todos os indígenas aldeados nos campos de Nonoai nunca foi
concretizada. As históricas rivalidades intragrupais dos Kaingang nunca permitiram uma
reunião pacífica e duradoura das lideranças daqueles indígenas. Além disso, as constantes
referências à existência de toldos nas proximidades dos estabelecimentos de catequese
demonstra que diversos grupos permaneciam transitando entre os aldeamentos.
A própria dinâmica interna dos aldeamentos, principalmente no que diz respeito aos
recursos de subsistência destinados àquelas populações e à segurança nas aldeias, impedia
uma permanência estável dos índios nos estabelecimentos mantidos pela província. A
dinâmica interna da vida nos aldeamentos mereceu uma análise mais aproximada, por isso,
será apresentada a seguir em item separado no texto.
3.3 O Cotidiano dos Aldeamentos
Pela natureza dos documentos consultados, a vida dos indígenas aldeados apareceu de
forma bastante detalhada na documentação, principalmente nos ofícios e relatórios
115
provenientes da diretoria dos aldeamentos. Os relatórios e falas dos presidentes da província
também apresentavam características do cotidiano dos estabelecimentos para catequese
indígena, mas, em geral, eles se limitavam a reproduzir as informações que recebiam da
Diretoria de Índios da província.
Entre as cinqüenta e cinco amostras arroladas para este trabalho, uma série de vinte e
nove tratavam do dia-a-dia dos estabelecimentos de catequese mantidos pela província do
Rio Grande do Sul. Neles, estavam descritas as rotinas de trabalho, os produtos obtidos nas
roças comuns e privadas dos aldeados, os relacionamentos sociais, os problemas
administrativos das diretorias e, em menor escala, a ligação dos indígenas com a religião.
Como já dito anteriormente, desde o início da intensificação da política de
aldeamentos, o estabelecimento de roças foi uma preocupação central dos diretores de índios.
Os roçados eram fundamentais para garantir a subsistência dos grupos aldeados e, assim,
mantê-los sedentarizados nos aldeamentos. O padre Bernardo Pares, em 1848, já apontava a
dificuldade de conter os índios nos aldeamentos em função da escassez das roças.
Os do Nonohay faz ja tres annos se apresentarão baixo do commando de seu Chefe Victorino (Condá) que pedio seguridade, e offereces, que procuraria reunir a gente toda de sua nação nos campos ditos de Nonohay, porque pe.la falta de alimentos não podião estar fixos naquelle lugar, mas se espalhavão successivamente pe.los matos a procurar a sua subsistência; porem se assegura que desde aquelle tempo não tem feito elles danno algum aos christãos. Ouvi dizer que se tinhão feito no Nonohay algumas roças, mas não quanto basta p.ª tanta gente [...]103
103 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1.
116
No ano seguinte, em 1849, o missionário que dirigia o aldeamento de Nonoai tomou
providências para que o dimensionamento das roças feitas pelos indígenas fosse suficiente
para o abastecimento de toda a população ali reunida. Mesmo não tendo recebido
ferramentas do governo da província, em agosto daquele ano, Pares utilizou recursos
financeiros destinados ao aldeamento para adquirir as ferramentas necessárias ao início dos
trabalhos. Munidos os indígenas, foram preparados e semeados quinze alqueires e meio de
terras. Além da área cultivada, apareceram no ofício do padre Pares outros roçados ainda
sendo preparados.
Na espera da ferramenta qe. VE. teve a bem mandar para serviço do Aldeamento do Nonohai com officio de 27 Agosto ppdo e qe. eu não recebi the o 28 de outubro, me demorei no Passo Fundo até o 18 Agosto; que vendo se passaba o melhor tempo de roçar, me decidi a comprar huma ducia de machados e outra de foces para dar principio aos trabalhos. Com esta pouca ferramenta ruin e cara entramos no matto qe. Separa esta Aldeã do passo Ngoi-u-em, donde temos ya huns dez alqueres de roça, bem feita, segun dicem, os qe. entendem, tanta na roçada como na derrubada. O matto hé bom, e se espera qe. apesar do temporal de chuvas, qe. segue vá ya mes e meio, tem de arder bem. Taobem se tem roçado huma tiquera boa, comqe. teremos para a roça-grande huns doce alqueres, que correndo o tempo regularmente darão milho, feijão e abobra para manter abundantemente quantos Bugres se agreguen a este Aldeamento. Á mais da roça-grande os Bugres tem feito as suas particulares: Victorino Condá de 1½ alquer, seu Irmão Domingos de 1 alquer, Canãfe de 1 alquer, Criquincha, Caembé, Ñandi, Nonnemi, Arimbenk cada hum de ½ alquer, Nonohay, o capitão Jacob e outros estão agora roçando com porretes a falta de ferramentas, e espero qe com a chegada d’este se tem de animar muito pois são gente trabalhadora, principalmente os do Nonohay, que dicem querem plantar bastante para não passar mais fome.104
O trabalho de estabelecimento dessas roças de subsistência parece ter dado resultado.
No relatório apresentado pelo padre Pares ao governo da província, em janeiro de 1851,
apareciam não apenas os roçados feitos pelos índios, mas, também, a extração de erva-mate
com fins comerciais no aldeamento da Guarita. Segundo o missionário: “Tanto no anno
104 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.
117
anterior como n’este fizerão grandes roças para plantações, e ja levarão ao mercado no anno
anterior 480 arrobas de herva, e no proximo passado 500”.105
A área cultivada nos aldeamentos permaneceu em expansão nos anos seguintes. Em
ofício remetido ao presidente da província pelo diretor do aldeamento de Nonoai, o senhor
José Joaquim de Oliveira, em 1854, foram descritos vinte alqueires de milho e dez de feijão
plantados na região da Guarita.
O tipo de cultura e a forma de plantio que apareceram descritas, tanto nos documentos
apresentados acima como em outros desta série, destacaram a característica de subsistência
dos roçados cultivados pelos índios aldeados. Em geral, eram roças de milho, feijão, abóbora
e batata, produtos de consumo direto, cultivados na medida considerada suficiente para
prover o aldeamento até a próxima safra. Em 1868, no relatório do diretor de índios de
Nonoai, apareceu uma rápida referência ao plantio de cereais. Porém, não ficou especificado
o tipo de grãos cultivados e nem o destino da produção. No mesmo relatório, o diretor
mencionou a utilização de palha na confecção de chapéus, o que nos permitiu supor que o
mencionado cereal tratava-se de trigo.
Entre os documentos consultados, o único que indicava a comercialização de produtos
cultivados pelos indígenas era um ofício do diretor do aldeamento de Caseros, o padre
Antônio Moraes Branco, enviado à presidência da província em 1864.
105 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
118
De posse do Officio de V.Ex.ª com fecho de 11 do mez preterito, cumpre-me informar a V.Ex.ª que este aldeamento é muito novo, e que por isso não tem tido rendimentos alguns, visto que as colheitas tm sido consumidas pelos Indios. Alguns Indios, alem da roça comum, plantarão suas particulares, e venderão algum milho; mas esse produto naturalmente deve pertencer-lhes, por que mesmo lhes é absolutamte. Precizo. Ds. Ge. a V.Ex.ª = Col.ª M.ª Caseros no Matto Portugues 14 de Fever.º de 1864.106
Também apontava no sentido da produção de subsistência, o fato de o trabalho dos
índios nos roçados dos aldeamentos não receber nenhum tipo de remuneração regular,
mesmo quando os serviços eram prestados nas roças comunais daqueles estabelecimentos.
Demonstrando que a paga pelos serviços dos índios aldeados não era uma prática comum,
em seu Relatório ao presidente da província, em 1851, o padre Pares reclamou da exigência
de pagamento por serviços prestados ao aldeamento feita pelos indígenas migrados de
Palmas e Guarapuava para Nonoai.
Tanto no Aldeamento da guarita como no Nonohay há bastantes Bugres manços dos que estiveram aldeados em Garupoaba e Parmas na Provincia de S. Paulo que são mais civilizados e gostão de ter sua creações e propriedades. Se por uma parte são úteis nas Aldeãs por ser seguros e impedir qualquer traição dos novos e os ensinar a trabalhar, por outra parte dão um mão exemplo porque não querem sem paga prestar serviço nenhum ainda que seja em beneficio do commum.107
A única referência apresentada na documentação como recompensa do trabalho dos
índios nos aldeamentos foi, em 1849, quando roupas e mantimentos foram distribuídos pelo
padre Pares aos indígenas envolvidos no trabalho de preparação de roças em Nonoai.
106 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 14 de fevereiro de 1864 – Maço 2. 107 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
119
A todos os qe. trabalharão na dita roça-grande, julguei conveniente recompensar com camisa e calsas, qe. receberão com tanta mayor alegria, quanto qe. fosse recompensa inesperada. O numero dos qe trabalharão na dita roça he dde 32. Ao mesmo tempo não só se daba mantimento a elles e a suas familias, mas taobem aos qe. trabalharão nas suas roças particulares pel-as qe. não me interesso menos qe. pel-a grande.108
Assim sendo, excetuando-se a venda de milho na Colônia Militar de Caseros, citada
pelo padre Branco em 1864, as rendas obtidas pelos indígenas eram normalmente produto da
atividade de extração da erva-mate, da prestação de serviços a terceiros, ou ainda, da venda
de artesanato.
Quanto ao artesanato, a atividade também foi citada uma única vez na documentação.
Tratava-se do já mencionado relatório da diretoria do aldeamento de Nonoai, enviado à
presidência da província em 16 de novembro de 1868. Segundo Manoel Francisco de
Oliveira, diretor do estabelecimento no período, os índios adultos faziam chapéus de palha,
retirando dessa atividade alguma forma de sustento. No documento Oliveira afirmava que:
“[...]as mulheres igualmente como os homens empregão na cultura dos sereaes, e em outros
serviços próprios da sua condição, como de fazer chapéus de palha etc, e do que tirão
sufficientes meios de subsistência[...]”109
No entanto, o produto que efetivamente inseriu comercialmente os indígenas aldeados
no mercado rio-grandense do século XIX foi a erva-mate. O produto extraído dos ervais
nativos, localizados na região do planalto, foi citado em cinco dos sete documentos que
tratavam da produção direta no interior dos aldeamentos. A erva-mate aparecia de forma tão
108 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1. 109 Relatório do Diretor do Aldeamento de Nonoai, Manoel Francisco de Oliveira, ao Presidente da Província
do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2.
120
representativa na economia interna dos aldeamentos que, em 1854, num momento de
esgotamento dos ervais nativos, o diretor de índios José Joaquim de Oliveira propôs ao
governo provincial que se enviassem os indígenas aldeados em Nonoai para a exploração do
mate na província do Paraná. Conforma o diretor: “Amenos que não vão trabalhar os Indios
nos Ervaes d’alem do Goÿoen, territorio da Provincia de Paraná, embreve aqui escaceará a
Erva mate, e não mais os Indios tirarão partido do seo fabrico;[...]”110.
A importância da erva-mate para a inserção econômica dos índios aldeados podia ser
percebida desde os primeiros anos da intensificação na política de aldeamentos na província.
No relatório do padre Bernardo Pares, enviado em janeiro de 1851 ao presidente do
Rio Grande do Sul, o missionário propôs a reserva de um erval para exploração exclusiva
dos indígenas aldeados na Guarita. Como argumento para sustentar a conveniência da
proposta, o padre sugeriu ainda que ficasse a cargo dos índios a abertura de uma estrada para
o escoamento da produção esperada daquele erval, que beneficiaria a toda a população da
região.
O Director Oliveira officiou ao director Geral, pedindo que, sollicitasse da Presidencia uma ordem pella que fosse prohibido por agora aos Portugueses entrar a fazer herva n’um grande herval que os Bugres descobrirão no matto que separa os campos da Guarita do Rio Uruguai. Julgo que esta providencia seria vantajosa desde já ao aldeamento, e logo também a todo o districto, pois deste modo elles mesmos abrirão estrada até o Rio para por elle transportar as hervas a S. Borja e a Uruguayana. A mais se evitaria qualquer desavencia com os outros hervateiros, que por isso não tem os Bugres querido abrir pique ou mostrar o dito herval se não he ao Sr. Oliveira.111
110 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 111 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
121
A produção de erva-mate aparecia ainda como uma opção de engajamento da mão-de-
obra indígena no mercado regional de trabalho, principalmente nos períodos de entressafra
dos roçados feitos nos aldeamentos. A possibilidade de inserir os indígenas como mão-de-
obra nos ervais foi logo percebida pelos encarregados da catequese e civilização dos
indígenas.
Como destacado no segundo capítulo deste trabalho, o mercado ervateiro era
economicamente importante na região do planalto, pois o produto encontrava um farto
mercado consumidor na região platina. Assim sendo, o trabalho dos índios nos ervais os
inseriu em um mercado regional que tinha a atenção constante das autoridades oficiais,
principalmente das Câmaras Municipais. Além disso, era uma das poucas atividades
econômicas possíveis para a população desalojada dos terrenos apropriados como efeito do
processo de mercantilização da terra na primeira metade do século XIX. Entre esses
desterrados, encontravam-se também os indígenas reunidos nos aldeamentos da província.
No discurso dos diretores dos aldeamentos, a respeito do ajustamento do trabalho dos
índios aldeados, podia-se perceber ainda presente a velha pedagogia da civilização, onde a
prestação de serviços por parte dos índios serviria para acostumá-los ao convívio com os
cristãos. O ofício do padre Bernardo Pares, enviado em novembro de 1848 ao presidente da
província, dando conta do início do trabalho de catequese nos campos da Guarita e de
Nonoai, abordava diretamente as possibilidades de civilização dos indígenas através do
trabalho nos ervais.
122
Observei na guarita que os Bugres tem bastante confiança na gente d’aquella visinhança, que tem tido bastante prudência p.ª os attrair, e não sei que até agora se lhes tenhão dado motivo de escandalo: assim he que se acostumão alugar p.ª trabalhos nos hervaes, e se estima seu trabalho a causa da facilidade que elles tem de trepar nas arbores p.ª desgalhar a herva. Isto poderia ser bom p.ª costuma.los ao trabalho, e ao tratto com os christãos; porem era preciso, que não se abusse da sua simplicidade, antes que a vista da recompensa de seu trabalho fosse hum estimulo, que os livrasse da sua natural priguiça.112
Como destacado no documento, a prestação de serviços a terceiros, por parte dos
indígenas, voltou a aparecer como instrumento civilizador. Poderia se criar uma
diferenciação entre a perspectiva dada ao trabalho dos índios em 1848 e as Cartas Régias de
D. João VI, que vigoraram nas primeiras décadas do século XIX, apenas pela sugestão de
uma recompensa material pelos serviços executados nos ervais.
Entretanto, importa destacar que o mercado ervateiro não era o único ramo de
atividade onde a mão-de-obra indígena, proveniente dos aldeamentos instalados no Rio
Grande do Sul a partir da década de 1840, aparecia empregada. Foi citado na documentação
o ajustamento do trabalho dos índios em estradas do norte da província, em roçados de
terceiros e, até mesmo, nas plantações dos diretores de índios.
No primeiro capítulo deste texto, quando foram descritas as atribuições feitas pelo
Regulamento das Missões aos Diretores de Índios, foi citada uma confusão existente entre a
antiga tutela dos Juízes de Órfãos e as dos sobreditos diretores sobre o trabalho dos
indígenas. Fazia parte das incumbências dos referidos Juízes ajustar acordos de trabalho, não
apenas para índios, mas para todos os seus tutelados. Já no caso dos Diretores de Índios, não
fazia parte de suas atribuições controlar e disponibilizar o trabalho dos mesmos para serviços
112 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 1848 – Maço 1. Grifos meus.
123
fora dos aldeamentos. Mesmo assim, os Diretores de Índios rio-grandenses não só ajustavam
contratos de trabalho para os indígenas aldeados, como também apresentavam propostas de
aplicação para a mão-de-obra reunida nos aldeamentos. Os documentos abaixo demonstram
que essa foi uma prática comum na província durante todo o período analisado nesta
pesquisa.
Consta que se vaê retirar a commissão empregada na estrada que vaê ao alto Uruguai; e, não estando a dita estrada ultimada, seria pois de summa vantagem para os Coffres da Provincia, e mesmo para os Indigenas, que estes fossem a li empregados para se ultimar aquelle serviço, que tantos contos de reis tem-se n’elle absorvido.113 Tenho a satisfação de participar a V.Ex.ª que dedicando-me este anno á plantação do trigo, contractei os Indios sob a minha direcção para esse serviço, dando-lhes durante o tempo do mesmo serviço o mantimt.º, e 440rs. diarios a cada um;114 Havendo eu licenciado alguns Indios deste Aldeamt.º para se justarem em serviço de roça, e outros, nas immediações do lugar denominado = Turvo = a distancia de 4 legoas ms. ou menos d’aqui, acontece que o Indio de nome Jacintho, com seu irmão de nome João Gangrê, e ms. 3 ou 4 com suas mulheres se juntarão com úm tal João Damasceno, e ali permanecerão ganhando por tempo de úm mez.115
Mesmo considerando a existência das roças de subsistência nos aldeamentos e as
rendas oriundas do comércio de erva-mate, da prestação de serviço a terceiros e da
esporádica comercialização de produtos cultivados pelos índios aldeados, não se poderia
afirmar uma auto-suficiência econômica nem dos indígenas e nem dos aldeamentos da
província no século XIX. Desde o início da intensificação na política de aldeamentos, os
diretores de índios do Rio Grande do Sul fizeram constantes pedidos de ferramentas,
vestuário, gêneros alimentícios e remédios ao governo provincial. Em doze dos documentos
113 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 27 de abril de 1863 – Maço 2. 114 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 15 de janeiro de 1865 – Maço 2. 115 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.
124
consultados, todos provenientes das diretorias de índios, apareceram solicitações de algum
tipo de bem ou produto essencial para a manutenção do trabalho de catequese. O primeiro
documento, desta série de doze, que dava conta da necessidade do Estado abastecer a um
estabelecimento de catequese e civilização de indígenas da província era um ofício do padre
Bernardo Pares ao presidente da província, de outubro de 1849.
Agora, Exmo Sñr, he preciso ayudar a manter esta pobre gente até a colheita, pel-o qe. acabo de comprar trinta alqueres de feijão, e quince de farinha de mandioca qe. comprei com preferencia ao milho, porqe. vulta de menos custo. A mais era necessário comprar algumas reses para comer, pois ficão somente dez das 27 qe. eu comprei em Agosto. Me parece qe. comprando a mais do Feijó e farinha qe. dice, tenho comprado, 20 reses e 200 mãos de milho, ou alguns alqueres mais de farinha, haverá sufficiente mantimento para 250 bugres qe. hé o numero qe. julgo serão los de este Aldeamento logo qe. se ajuntem os qe. estão caçando ou roçando e a gente do campo do Araxi qe. ya estão chegando.116
No ofício, o padre se referia a uma circunstância bastante comum onde a província era
chamada a prover os indígenas. A solicitação foi feita logo depois do início do trabalho de
preparo dos roçados para o ano seguinte em Nonoai. Portanto, apesar de terem sido feitas
roças, ainda não havia produção para consumo imediato da população reunida no
aldeamento.
Além da dificuldade trazida pela espera do tempo de maturação das plantações, era
necessário abastecer os índios que estavam envolvidos nos trabalhos das roças. Nesse caso, a
presença do Estado como provedor também renovava a face, anteriormente citada, da
pedagogia da civilização. Isso pois, o fornecimento dos gêneros alimentícios só era garantido
aos que estivessem realmente envolvidos com as atividades determinadas pelos diretores dos
estabelecimentos. Essa função “civilizadora” do abastecimento dos índios pela província
116 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1.
125
ficou exemplificada em outro trecho do ofício do padre Pares: “No qe. respeita este trabalho
estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo
qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião
gostosos;[...]”.117
Como demonstra o documento acima citado, a participação da província era
fundamental para a subsistência dos aldeamentos. Outros documentos, como o relatório do
padre Pares de janeiro de 1851, o ofício de José Joaquim de Oliveira de dezembro de 1854 e
o ofício do padre Branco de novembro de 1862, demonstram que a complementação dos
recursos dos aldeamentos pelo Estado não foi sazonal, ou conseqüência dos momentos de
instalação dos estabelecimentos. Os três documentos citados, além de não terem sido
encaminhados à presidência da província na mesma época, foram redigidos em locais
diferentes. O padre Pares fez seu relatório a partir de Passo Fundo, abordando vários
aldeamentos e toldos da região. O diretor Oliveira escreveu seu ofício em Nonoai, tratando
especificamente daquele local. O padre Branco, por sua vez, se referiu aos índios reunidos
sob sua direção na Colônia Militar de Caseros. As diferentes datações e locais de origem dos
documentos atestaram uma necessidade constante dos aldeamentos em serem abastecidos,
pela província, com mantimentos, ferramentas, animais de tração ou de corte, roupas e outros
gêneros.
Além das questões ligadas à subsistência dos índios aldeados, o fornecimento de
gêneros, por parte do Estado, era importante para a sedentarização das populações reunidas
nos aldeamentos. A garantia de uma relativa fartura de alimentos era utilizada como
117 Idem.
126
argumento para atrair os indígenas para os estabelecimentos de catequese no Rio Grande do
Sul.
Não se tendo podido conseguir que os Bugres que baixo do comãndo dos Chefes Capitão Dovre e Capitão Braga andão vagando pellos Mattos do Campo-do-Meio e Vaccaria se aldeassem no Pontão; os PP. Missionarios por ordem dos Exmõs. Sñres. Presidentes Sõr. Andrea e Sõr. Pimente Bueno passarão ao campo-do-meio que era o logar que os Indigenas preferião. No fim de Agosto estavão ja reunidos no dito campo o Capitão Dovre com umas 150 almas, inclusas mulheres e crianças, entre elles dois filhos e um irmão do Braga que mandou a dizer que elle se presentaria quando houvesse que comer.118
Como dito no segundo capítulo deste trabalho, a sedentarização das populações
indígenas nos aldeamentos nunca chegou a ser plena. Era comum grupos migrarem para
dentro e fora dos aldeamentos, ou entre um estabelecimento e outro. Conforme constatou-se
na documentação, nos momentos onde o abastecimento dos índios pela província sofreu
algum tipo de restrição, os grupos aldeados dirigiram-se a suas roças nos antigos Toldos, ou
passaram a vagar pelos matos em busca de caça. Essa relação, entre as remessas regulares de
gêneros alimentícios e de vestuário para os estabelecimentos de catequese da província e a
manutenção do sedentarismo dos indígenas neles reunidos, apareceu expressada de forma
direta cinco vezes em quatro dos documentos consultados neste trabalho. Os ofícios enviados
pelos diretores de índios José Joaquim de Oliveira e Antônio Moraes Branco,
respectivamente em 1854 e 1862, à presidência da província, exemplificavam essa
necessidade de abastecimento dos índios para mantê-los aldeados.
118 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
127
Actualmente tem cessado as continuas brigas em que vivião entre si estas tribus e por isso vae a sua população em progressivo augmento e com quanto vão se amoldando ao trabalho, plantando milho, feijão, e outros legumes; e empregando-se no cultivo de Erva, por veses ainda sahem partidas de Indios á caça, ja por que de prompto lhes custa abandonar antigos hábitos, e ja por que as veses lhes falta o necessario alimento.119 Os Indios ficárão summamente tristes, porque actualmente não tem para sua subsistencia mais que a caça, e essa em pouca abundancia, e dispostos a retirarem-se para outros lugares onde ela abunda, me tem sido mui penoso demove-los desse proposito: mas felizmente ainda aqui se conservão.120
Entretanto, depois da década de 1860, mesmo sob pena de os índios abandonarem os
aldeamentos, o governo da província passou a limitar as remessas de alimentos e roupas para
os indígenas. Principalmente nos documentos redigidos entre 1862 e 1868, apareceram
comentários dos diretores de índios indicando que apenas as crianças, os velhos e os
impossibilitados de trabalhar regularmente receberiam subsídios do Estado. Naquele período,
os indígenas considerados “aptos para o trabalho” parecem ter sido obrigados a garantir sua
alimentação e de sua família, além de arcar com despesas de vestuário.
Hontem chegou dessa cidade a esta Colônia o Sr. Alfs. Ajudante da mesma Leôncio José Barboza e hoje me entregou o Officio de VEx.ª de 4 do mez passado em que ordena que d’ora em diante so se abonará etapa aos Indios menores, e ás pessoas que não puderem de todo trabalhar, o que cumprirei.121
Esse redirecionamento na postura do Estado, em relação as suas obrigações como
provedor dos índios aldeados, foi acirrado nos últimos anos da década de 1860. O relatório
do diretor geral de índios do Rio Grande do Sul, enviado ao governo da província em 16 de
119 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2. 120 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 13 de novembro de 1862 – Maço 2. 121 Idem.
128
novembro de 1868, indicava o corte do fornecimento de gêneros de qualquer espécie, mesmo
aos indígenas considerados inaptos para o trabalho.
Em outros tempos os cofres da provincia fornecião o vestuario preciso aos velhos invalidos, porem ha algum tempo que tem sido interrompido tam necessário supprimento; e por espírito de humanidade tenho às minhas expensas supprido á alguns entre os maiz necessitados com o preciso vestuario.122
Nesse período de restrição do abastecimento, os índios e suas famílias recebiam
recursos do Estado apenas quando se ausentavam dos aldeamentos por convocação do
governo para prestarem serviços públicos. Um exemplo dessa circunstância foi a convocação
do Cacique Doble e mais trinta homens no aldeamento da Colônia Militar de Caseros para
perseguir grupos arredios nos campos do Turvo e de Cima da Serra, em 1863. As esposas e
filhos dos índios envolvidos na perseguição receberam alimentos que os subsidiassem
durante a ausência dos homens.
Tenho a saptisfação de participar a V.Ex.ª que em cumprimento no que V.Exª. declarou-me em Officio de 6 d’Outubro proximo preterito, partirão d’aqui no dia 3 do prezente mez, em companhia do digno Alfes. Vice Director desta Colonia, que me disse haver sido para isso authorizado por V.Exª., 30 Indios, no proposito de capturarem os Indios nômades que vivem errantes pelas mattas do Turvo, e de Cima da Serra. Estes Indios se prestarão, e principalmte. o Cacique Doble, de mto. bôa vontade, e me assegurarão que não voltarião sem que fossem satisfeitos os desejos de V.Exª., e destes povos, levando á prezença de V.Exª. todos os selvagens que por esses lugares vivem. Disse-me o Cacique Doble que lá andão alguns que são parentes d’outros aqui aldeados; que eu pedisse a V.Exª. para traze-los em sua companhia; e que os outros, principalmte. os menores, elle os deixaria a V.Exª. para aprenderem officios, Vª. Peço pois a V.Exª. que se digne attende-lo pois assim é necessário. Forão os Indios fornecidos na forma porque V.Exª. me ordenou no citado Officio, e fico fornecendo as Índias de carne, farinha, e sal, menos aquellas cujos maridos ficarão, e farei a menor despeza que for possivel; sendo do meu dever pedir a V.Exª. que os Indios se demorem pouco nessa Capital para evitar-se maior despesa durante a sua auzencia.123
122 Relatório do Diretor Geral Interino dos Índios no Rio Grande do Sul, Manoel Francisco de Oliveira, ao
Presidente da Província. AHRGS – Catequese dos Índios, 16 de novembro de 1868 – Maço 2 123 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 7 de dezembro de 1863 – Maço 2.
129
A postura do governo provincial ao diminuir sua participação na subsistência dos
índios aldeados indicava a existência de uma perspectiva de que, com o passar dos anos, os
indígenas estariam economicamente integrados à sociedade e não precisariam mais ser
tutelados pelo Estado. As constantes solicitações de roupas e alimentos feitas pelos diretores
de índios, principalmente nos períodos de entressafra, atestavam a incapacidade dos
aldeamentos de se auto-sustentarem. Mesmo assim, os documentos de 1862 e 1868, citados
anteriormente, demonstravam que no Rio Grande do Sul o governo levou a cabo o princípio
a partir do qual os indígenas se tornariam capazes de proverem a si e a suas famílias. Apesar
de as restrições ao abastecimento dos indígenas aldeados ter iniciado apenas em 1862, a Lei
provincial n.º274, de novembro de 1853, determinava, em seu artigo 6º, que seriam
fornecidas vestimentas apenas às crianças das aldeias e que aos índios adultos se remeteriam
apenas as ferramentas essenciais ao trabalho nas roças e derrubadas de matos.
Retomando as dificuldades encontradas na sedentarização dos indígenas, a
documentação apontou a segurança nos aldeamentos como uma questão fundamental para
convencer os caciques e seus seguidores a permanecerem reunidos nas áreas destinadas pelo
governo. Seis dos ofícios redigidos pelos diretores de índios tratavam da segurança no
interior dos estabelecimentos e na disposição dos aldeados em se retirarem para os matos em
função desse problema.
Os primeiros três documentos dessa série referiam-se a necessidade da presença de
uma Companhia de Pedestres para conter as divergências existentes entre os caciques nos
aldeamentos. Entre esses três documentos, o relatório do padre Pares, escrito em janeiro de
1851, pareceu o mais emblemático. Naquele texto, o missionário relatou ter ouvido dos
130
próprios índios o receio de conflitos entre diferentes grupos reunidos no aldeamento de
Nonoai.
[...] todos os mais acima expressados estiverão juntos no Aldeamento, ainda que não tivessem casas, ate que no mez de fevereiro do anno passado tendo sido dissolvida a companhia de Pedestres; o velho Nonohay pedio permisso para ir morar no seu antigo Toldo que està a duas legoas, dando por razão que tinha là as suas plantações està a duas legoas, dando por razão causa foi por medo deqe. a sua gente não brigasse com a de Nicafi, faltando a força que lhes impunha respeito. Tão bem e pela mesma causa quiserão retirar-se os Caciques Vutoro e Canhafé, mas se demorão com a esperança deqe. o Governo mandaria novo destacamento, he que no mês de Outubro ppdo. tendo havido uma desavencia entre as mulheres, esteve as gentes de Vuotoro e Canhafé para brigar com a do Condà e de Nicafi, o qe. affortunadamente conseguirão impedir os PP Cathequistas: porem de resultas se retirarão os dois ditos Caciques a morar com sua gente nas roças a distancia de ½ legoa do aldeamento, donde ficou só a gente do Condà e de Nicafi, e desde ese tempo não houve mais novidade.124
A necessidade de patrulhar as relações entre os próprios índios foi conseqüência da
reunião, em um mesmo espaço territorial, de grupos indígenas com longos históricos de
rivalidade. Em outro trecho, do mesmo documento, o padre coloca que os próprios indígenas
consideravam difícil a manutenção de um ambiente de tolerância mútua entre grupos rivais
sem a presença dos Pedestres.
Seria conveniente que os Directores pudessem exigir dos Indios que não saíssem do Aldeamento sem portaria que isto os costumaria a sujeição, isto seria facil se existisse em elles uma força de respeito; de outro modo não he posivel. Os mesmos Indios reclamão esta força e dizem que não he possivel sem ella morar juntos. Logo que em Fevereiro se retirou do Nonohay a companhia de Pedestres, se separou da aldeã o velho Nonohay.125
A relação direta entre a reunião de grupos rivais e os conflitos internos nos
aldeamentos foram destacados ainda pelas datas dos documentos. Os três documentos
124 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1. 125 Idem.
131
iniciais da série, que solicitavam a presença das Companhias de Pedestres para aplacar
conflitos entre grupos indígenas rivais, haviam sido redigidos pelo padre Pares nos anos
imediatamente posteriores a intensificação da política de aldeamentos na província do Rio
Grande do Sul. Essas amostras eram: um ofício de outubro de 1849, um ofício de abril de
1850 e o relatório de 1851.
Com o amadurecimento dos aldeamentos, os grupos aldeados foram se acomodando à
convivência com seus antigos rivais. Em 1854, o diretor José Joaquim de Oliveira dava
notícia de Nonoai ao presidente Sinimbu, dizendo que: “Actualmente tem cessado as
continuas brigas em que vivião entre si estas tribus e por isso vae a sua população em
progressivo augmento [...]”.126
Quanto ao problema da segurança nos aldeamentos, as Companhias de Pedestres
apareceram, na documentação, como a solução proposta para outros três tipos de problemas
dos estabelecimentos de catequese da província: os ataques de índios arredios, criminosos
escondidos próximos das residências dos índios e as invasões das terras reservadas aos
indígenas por portugueses e brasileiros.
Desde 1850, entre os distúrbios relatados pelos diretores de índios, estavam os
enfrentamentos entre índios aldeados e grupos arredios. O ofício do padre Pares ao governo
da província, em abril de 1850, dava conta do receio dos índios em serem atacados por
grupos que permaneciam vagando pelos matos, à margem dos aldeamentos.
126 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 28 de dezembro de 1854 – Maço 2.
132
Outra hora, E.S., não era eu de parecer, qe. houvesse soldados nos Aldeamentos; mas depois qe. vi as circunstâncias particulares d’estes indigenas, julguei d’outro modo, e muito mais quando ouvir aos Chefes principaes pedirem e exigirem huma força qe. os proteja, pois sabem por não remotas experiencias qe. o Bugre selvagem e sempre inimigo dos Aldeados.127
O relatório do padre Pares, de janeiro de 1851, continha observações explicando as
possíveis causas dos enfretamentos entre índios aldeados e arredios. Mesmo depois da
intensificação da política de aldeamentos pelo governo da província, segundo as observações
daquele relatório, encontram-se indícios da manutenção de uma política de vinganças entre
as lideranças indígenas, do sul do Brasil, no século XIX. No documento, o missionário fez
referência à memória que os grupos aldeados mantinham “das matanças” nos campos de
“Parmas” e de “Garupoaba”. A memória desses eventos, unida à ausência dos Pedestres, foi
o que mobilizou os seguidores do Pay-bang Nonoai a se retirarem do aldeamento dirigido
pelo padre Pares em 1850.
Logo que em Fevereiro se retirou do Nonohay a companhia de Pedestres, se separou da aldeã o velho Nonohay. A mais elles sabem que os Indios do matto são inimigos dos Aldeados e não se esquecem das maranças de Parmas e de Garupoaba.128
Os ataques de índios arredios aos índios aldeados pareceram ter se repetido com
freqüência, ao menos no período até 1868. Mais de uma década depois da solicitação de
segurança feita pelo padre Pares, a Colônia Militar de Caseros enfrentou um ataque de índios
arredios provenientes das matas da região do turvo. Segundo o relato do diretor do
127 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 08 de abril de 1850 – Maço 1. 128 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
133
aldeamento, o objetivo dos agressores era seqüestrar mulheres e crianças. Naquele evento, a
participação dos Pedestres pereceu definitiva para a defesa dos moradores de Caseros.
[...] ha dias fomos vizitados por grande numero d’Indios que pretendião atacar este aldeamet.º naturalmte. para raptarem as Índias e as crianças que ficarão aqui durante a auzencia dos Indios que seguirão em demanda dos que prenderão nas mattas do Turvo, e forão conduzidos á prezença de V.Ex.ª = Este Aldeamt.º foi = bombeado = por essa horda de selvagens, e pr. fim atacado ao escurecer; mas felizmente não pereceo, nem faltou pessoa alguma. Grande foi a minha tribulação nestes dias aziagos. Deprequiz força ao Captãº. Director desta Colonia; elle me a prestou, e com esta unida aos Colonos paizanos, e Indios que ficarão, a quem chamei ás armas, conseguimoes fazer retirar esses barbaros assassinos. Os Indios que estavão no Aldeamtº., e bem assim as Índias não conhecerão a nenhum dos agressores; mas dizem que deve ser gente, ou de Nonohay, ou do Cacique Victorino, que, só, e sem Director, pr. que é feroz, vive no campo de Palmas Província do Paraná, e costuma fazer destas excursões.129
Os Pedestres também foram solicitados pelos diretores de índios para defender os
aldeamentos contra possíveis agressores brancos. Nesse caso, chamou a atenção o argumento
utilizado por José Joaquim de Oliveira, diretor de Nonoai em 1866, para justificar a
necessidade de soldados ou policiais naquele aldeamento. Segundo o diretor Oliveira, os
matos em torno de Nonoai estavam repletos de criminosos e desertores das forças armadas
que, por sua vez, só não estariam cometendo “atrocidades” contra os indígenas por medo da
força policial existente no aldeamento.
Exm.º Senr, esta aldeã não póde prescindir de ter n’ella húa Força, que fassa esta indiada conter-se em respeito; tanto mais hoje, que se achão estas mattas aquém, e alem do rio Goyoen inside de desertores e outros criminósos; os quais temendo-se do destacamento, the esta dacta se conservão sem cometerem atrossidades.130
129 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 14 de fevereiro de 1864 – Maço 2. 130 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 01 de abril de 1866 – Maço 2
134
As Companhias de Pedestres também foram solicitadas para defender os índios
aldeados contra outro tipo de invasor: os posseiros portugueses ou brasileiros que se
instalavam entre os indígenas e depois reclamavam direitos sobre as terras por eles habitadas.
Esse tipo de invasão dos terrenos reservados aos índios apareceu, na documentação
consultada durante esta pesquisa, imediatamente após o início do registro das posses imposto
pela Lei de Terras de 1850. Essa sucessão cronológica sugeriu uma relação direta entre os
efeitos da Lei de Terras e a existência de conflitos interétnicos nos aldeamentos. Dois
documentos do padre Pares exemplificaram essa relação entre a Lei de 1850 e os conflitos
entre índios aldeados e posseiros. No primeiro dos documentos mencionados, o missionário
abordou as dificuldades de manter a ordem nas relações entre indígenas e invasores,
comentando que: “Não he facil regulamentar os Aldeamentos sem uma força que imponha
respeito aos Bugres e aos Portugueses que morão entre elles”.131
No segundo documento, a relação entre a tomada de posse dos terrenos e distúrbios
envolvendo os indígenas que habitavam os campos de Nonoai ficou mais explícito:
Tendo sabido que com o fim de prevenir as desordens que ameação no Aldeamento de Nonohay e expulsar d’aquelles campos os intrusos que estão tomando posses, tinha VE ordenado ao Capitão Comandante da Guarda Nacional de Passo Fundo de mandar um destacamento da mesma Guarda, e ao Subdelegado d’aquelle districto de ir com a dita força a executar as providencias prescriptas[...]132
Como indicaram os documentos citados nas últimas páginas, a intensificação da
política de aldeamentos reuniu nos estabelecimentos mantidos pela província boa parte dos
131 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1. 132 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 05 de agosto de 1851 – Maço 1.
135
índios remanescentes que habitavam o norte do Rio Grande do Sul. Entretanto, os conflitos
entre grupos indígenas, bem como entre eles e os habitantes brancos da região, não foram
solucionados com a concentração das populações nativas nos territórios a eles reservados
pelo Estado. Bem pelo contrário, os aldeamentos apareceram na documentação coma áreas
de constantes conflitos interétnicos, onde estavam em questão a liderança dos grupos
aldeados, a subsistência da população ali reunida e a posse da terra.
Como dito anteriormente, as Companhias de Pedestres eram a proposta dos diretores
de índios para impor a ordem aos habitantes dos aldeamentos. Mesmo tendo sua presença
justificada pela necessidade da existência de força armada para manter a segurança da
população aldeada, os Pedestres foram citados como envolvidos em enfrentamentos diretos
contra os indígenas apenas uma vez na documentação. Tratava-se da narrativa feita pelo
padre Antônio de Moraes Branco sobre os eventos ocorridos durante um baile no aldeamento
de Caseros, em 1863, onde ocorreu o assassinato de um dos índios sob direção do padre
Branco.
[...] havendo no dia 26 do presente, varios soldados desta Colonia instaurado úm baile em caza de úm dos ditos soldados, convidarão para elle varios Indios [...]; ahi se entregarão á bebida tanto aquelles, como estes, e quando eu menos pensava, por que tudo ignorava, eis que ouço tocar a reunir e que dous Indios chegão a minha caza, [...] dando-me parte que se estavaão assassinando seus companheiros. Corri immediatam.te ao lugar do conflicto, e deparei com úm dos Indios mais briosos mortalmente ferido no craneo [...] Vendo os outros Indios o seu companheiro neste estado, correrão ao aldeamt.º; armarão-se [...] e estavão dispostos á vingança, enquanto o Cap.tão Director também se preparava para a lide.133
Além os eventos do baile na Colônia Militar de Caseros, não houve narrativas de
enfrentamentos regulares dos Pedestres com os índios reunidos nos aldeamentos, ficando
133 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 28 de julho de 1863 – Maço 2.
136
suas funções restritas a sustentar a ordem estabelecida pelos diretores dos estabelecimentos
de catequese e civilização dos indígenas.
Também chamou a atenção que as Companhias de Pedestres raramente eram
invocadas para perseguir grupos indígenas fora dos aldeamentos. Tanto nas ocasiões onde os
grupos arredios atacaram os índios aldeados, quanto nos assaltos a fazendas e casas de
portugueses e brasileiros, normalmente os próprios indígenas eram chamados para perseguir
os atacantes. Nas poucas perseguições onde foi narrada a presença de Pedestres, eles
formavam pequenos destacamentos de quatro ou cinco soldados acompanhando os indígenas
encarregados da perseguição. Assim sendo, ficou ressaltada a presença e atuação de soldados
apenas como agentes de manutenção da ordem nos aldeamentos estabelecidos ao norte do
Rio Grande do Sul depois de 1848.
Mesmo com a presença desses corpos regulares de soldados encarregados de manter a
ordem social, os documentos consultados não traziam relatos da aplicação de punições aos
indígenas, pelo menos não ligadas a sublevações ou desordens causadas por indígenas. As
poucas situações onde foram propostas punições aos índios aldeados, pelos diretores dos
aldeamentos, diziam respeito à não submissão deles aos padrões propostos pelo Regulamento
de 1845 para a inserção dos indígenas no convívio com o restante da sociedade.
Esses casos, em geral, demonstravam uma resistência dos indígenas em abandonar
seus antigos hábitos de subsistência, como as migrações em busca de caça. Diante disso, os
diretores de índios normalmente cortavam o fornecimento de gêneros alimentícios, roupas ou
ferramentas para os indivíduos que persistiam nos antigos hábitos tribais. O ofício do padre
137
Pares ao presidente da província, datado de outubro de 1849, exemplifica esse tipo de
punição contra a resistência dos índios em aceitar o trabalho nos aldeamentos.
No qe. respeita este trabalho estou plenamente satisfeito dos Bugres, qe. ainda qe. no principio recusabão o trabalho, logo qe. ouvirão e vierão praticado qe. quem não trabalha não come, todos se offerecião gostosos [...] Os Bugres qe. tem reusado trabalhar, o melhor, qe. por não trabalhar se tem ido a caçar, pois nenhum tem reusado positivamente, são só os tres Irmãos chamados Portellas e Pedro Nicafi com seu Irmão o capitão Chico, este anteontem me prometeo qe hoje ia a principiar a sua roça. A todos elles lhes neguei o mantimento. [...] 134
Somente em um ofício, enviado pelo padre Branco ao presidente da província, em
1866, foi solicitada uma punição a um dos indígenas não relacionada à resistência contra os
novos padrões de produção propostos para os índios aldeados. Na ocasião narrada pelo padre
Branco, o índio Jacintho Doble teria se envolvido em uma relação amorosa com a filha de
um fazendeiro brasileiro na região do Turvo, indispondo-se com a família da moça e com a
população vizinha da Colônia Militar de Caseros. Como já comentado no item 3.2 deste
capítulo, para resolver a questão, o padre Antônio de Moraes Branco propôs ao governo
provincial que Jacintho e seu irmão João fossem banidos do aldeamento e compulsoriamente
engajados na marinha imperial.
Este Indio Jacintho não deve ms. morar neste Aldeamt.º, por que com o seu exemplo incita os outros a actos semelhantes, e alem disso acarreta sobre a Tribu a odiosidade do povo, que naturalmte. almeja a sua punição. Todos os Indios repreovárão o acto deste; só foi elle acompanhado do irmão João Gangrê, que tambem, por perverso, e vadio, deve acompanhar a Jacintho ao destino que V.Ex.ª der aos dous. Sou portanto d’opinião que devem estes dous sujeitos sentar praça na mairnha [...]135
134 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de outubro de 1849 – Maço 1. 135 Ofício do Padre Antônio Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 12 de outubro de 1866 – Maço 2.
138
Estranhamente, apesar da repetida presença de religiosos na direção dos aldeamentos,
a pregação de doutrinas religiosas entre os indígenas foi parcamente abordada nas
correspondências e relatórios das diretorias de índios. Normalmente, quando o tema era
citado, resumia-se a reclamações pela ausência de catequistas nos estabelecimentos
destinados à civilização de indígenas, ou ainda, a breves relatos do andamento da construção
de capelas e residências para os padres que dirigiam os indígenas aldeados. Apenas dois
documentos abordavam mais profundamente a questão. O primeiro deles foi enviado por
Bernardo Pares a um destino desconhecido e em data imprecisa, mas provavelmente nos
anos iniciais da intensificação da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul. Trata-se de
um pequeno bilhete do missionário explicando a razão de terem sido feitos poucos batismos
entre os índios já reunidos por ele.
Observações Quando os Bugres começarão a amançarse tanto n’este como na Provincia de S. Paulo, os moradores dos Sertões a Cuias casas iaô pedir algumas coisas, para mais os attrair, e accreditando que assim propagarão a Religião, os costumavão bautizar sem os instruir, nem fazer-lhes entender outra coisa, se não que terião compadres e padrinhos. São muitos os que para ter compadres e padrinhos se tem feito bautizar, duas, tres e mais vezes, sem fazer do baptismo outra estimação ou apreço que a do interesse que lhes podia resultar de terem compadres e padrinhos. Desde a primeira vez qe cheguei entre elles, se me presentarão muitos para que os baptizasse; mas como tive occajião de me informar d’estas circunstancias, e de duvidar até se olharão o baptismo como coisa religiosa, mesmo os mais civilizados, e que se chamão christãos por ter sido baptizados no modo dito, fixei estas reglas que até agora temos observado: 1º não baptizar aos adultos, fora do perigo de morte sem a necessaria instrucção, conforme a capacidade d’elles, e sem que dem provas de estimar o bautismo e ley cristão. 2º Não bautizar as crianças sem consentimento dos pais, e isto só havendo esperanças de que poderão ser educados na Religião, e a mais sempre que houver algum perigo da morte. Este he o motivo de ser poucos ainda os que temos bautizado, a pesar de não haver repugnância de parte d’elles.136
136 Correspondência do Padre Bernardo Pares. AHRGS – Catequese dos Índios, 1848 a 1852 – Maço 1.
139
Como menciona o missionário, até aquele momento os indígenas ainda percebiam a
conversão ao catolicismo através de uma lógica intragrupal, onde o batismo estava sendo
encarado, por eles, como uma possibilidade de estabelecer vínculos com os cristãos que
estavam se instalando no interior de seus territórios tradicionais. Entretanto, os documentos
analisados neste estudo não permitiram determinar que tipos de benefícios os indígenas
esperavam alcançar com a construção de tais vínculos. Assim mesmo, foi possível fazer uma
associação entre o apadrinhamento católico que os índios buscavam através do batismo e as
tradicionais alianças políticas feitas pelos Kaingang através de casamentos. Esses casamentos
criavam laços de parentesco entre caciques de grupos tribais diferentes e expandiam as redes
de influência das lideranças grupais por vastos territórios.
A doutrina religiosa no interior dos aldeamentos voltou a ser referida diretamente
somente em mais um documento. Foi em um ofício do padre Bernardo Pares ao presidente
da província tratando das despesas feitas no aldeamento da Guarita, em 1849. No ofício, o
missionário menciona a presença de um menino índio na residência dos padres, que estaria
trabalhando como pajem em troca de comida e dos ensinamentos da doutrina católica.
[...] somente me sorprendo achar no documento nº11. a quantia de 28$000 de aluguer de hum pagem, qe. não atino possa ser outro qe hum Indio botocudo de 12 a 13 annos a quem criamos facermos favor com dar-lhe a comida e insimorar a doutrina, e qe. não tínhamos pedido, nem d’elle precisabamos.137
Como demonstram os fragmentos acima, mesmo sendo comum a ação de missionários
na direção dos estabelecimentos de catequese e civilização de indígenas, a atividade de
doutrina foi pouco referida na documentação. A ação dos religiosos como diretores de índios,
137 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 28 de junho de 1849 – Maço 1.
140
descrita nos documentos, aparece muito mais ligada à questão da administração de
problemas temporais. Apesar de o Regulamento das Missões descrever detalhadamente os
profissionais que deveriam estar disponíveis nos aldeamentos, bem como as atribuições de
cada cargo138, eram os missionários quem cumpriam as funções de Diretor, Tesoureiro,
Almoxarife e, em alguns momentos, aplicavam receitas homeopáticas na tentativa de
substituir os Cirurgiões.
3.4 A Reação dos Indígenas Aldeados
O último dos eixos temáticos, emergido da documentação durante o processo de pré-
análise, orbitava as reações dos grupos Kaingang ao processo de intensificação da política de
aldeamentos no Rio Grande do Sul. Essas reações139 dos indígenas contatados ou tutelados
pela província aparecem dispersas, em breves narrativas, por treze dos documentos
consultados, sendo identificadas em dois formatos básicos: a resistência e a associação.
Como resistência estão sendo consideradas as ações dos indígenas, efetivadas em
grupo ou individualmente, que se oponham aos padrões de produção e convívio social
difundidos pelos agentes do Estado no interior dos aldeamentos, ou ainda, a política
indigenista do Império.
138 Os cargos que compunham a administração dos aldeamentos e suas atribuições, segundo o Regulamento das
Missões, foram descritos nos item 1.5, do primeiro capítulo deste trabalho. 139 Importa destacar aqui as dificuldades de apreender, com precisão, a percepção que os indígenas tinham da
política imperial de aldeamentos. Como as sociedades indígenas do planalto gaúcho eram ágrafas, os relatos disponíveis ao trabalho de pesquisa foram redigidos por agentes do Império Brasileiro e, portanto, estão distorcidos pelas representações prévias que esses agentes tinham dos índios. Ricardo Salvatore, em seu texto sobre as representações do índio no governo argentino de Rosas, atentava para essas dificuldades. Segundo o autor: “Esto complica nuestras historias y nos lleva, irremediablemente, a prestar atención a lo que he llamado el problema de la representación y, en particular, a las formas por las cuales el estado construyó el sujeto que llamamos “indio” y silenció o deformó sus voces” (SALVATORE, 1996, p. 70). Assim, as formas de reação do indígena à política imperial de aldeamentos foram recuparedas das entrelinhas da documentação produzida pelos próprios agentes civilizadores do Império.
141
A oposição, principalmente aos modelos de produção, foi uma forma de resistência
bastante referida nos ofícios e relatórios das diretorias dos aldeamentos. Esse modo de
resistir aos padrões culturais que deveriam ser implantados nos estabelecimentos provinciais
de civilização de indígenas, apareceu ligada a forma tradicional de concepção do trabalho
dos Kaingang. Segundo ela, o trabalho se distribuía sexualmente no interior do grupo, sendo
o trabalho nas roças reservado às mulheres. O padre Pares, em ofício enviado ao presidente
da província em 1848, fez referência às dificuldades trazidas por essa diferença cultural.
[...]a repugnância que tem elles pe.lo trabalho não provem somente da antural preguiça e da falta de costume, mas tambem da portuasão em que estão de que o trabalho he coisa propria só dos escravos e das mulheres, e como temam a escravidão mais do que a morte, por isso he que detestão o trabalho, e que o considerão como coisa degradante.140
O modelo produtivo implantado nos aldeamentos previa a integração dos indígenas ao
restante da sociedade capitalista preferencialmente através da agricultura, o que degradava o
modelo culturalmente estabelecido como estereótipo masculino pelos indígenas. Segundo
esse modelo cultural indígena, a derrubada do mato nas áreas onde seriam feitos os roçados e
a busca de alimentos através da caça seriam as atividades produtivas desenvolvidas pelos
homens141.
140 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 141 A resistência dos indígenas em abandonar os antigos padrões de produção do grupo representa uma tentativa
de manutenção do grupo como uma sociedade étnica e culturalmente diferenciada. Em seu texto sobre as relações entre folclore, antropologia e história social, Thompson coloca a resistência dos hindus em abandonar seus modelos culturais de caridade e mendicância como uma tentativa de sobrevivência social daquele grupo. Segundo o autor: “A los ojos de los dirigentes británicos la resistencia de estos pobres aparecia, con frecuencia, como passividad o “fatalismo”. Pero dentro de este fatalismo puede que se escondiera la sabiduria de la supervivencia”. (THOMPSON, 1992, p. 76) Aplicando a observação do autor sobre as populações hindus ao caso dos Kaingang do planalto gaúcho, a negação dos modelos produtivos apresentados pelo Regulamento das Missões de 1845 representaria uma tentativa de sobrevivência dos índios enquanto grupo social portador de uma identidade diferenciada dos demais.
142
Já no modelo produtivo dos aldeamentos do século XIX, o patriarca do núcleo familiar
monogâmico era o responsável por prover a subsistência de seus dependentes, que, pelas
orientações do Regulamento das Missões de 1845, deveria se originar prioritariamente da
atividade agrícola.
Em 1854, José Joaquim de Oliveira voltou a referir diretamente a resistência dos
índios ali reunidos em abandonar seus antigos modelos culturais para se submeter ao regime
produtivo implantado pela diretoria de índios. dizendo que: O então diretor de Nonoai
afirmou que “[...] por veses ainda sahem partidas de Indios á caça, ja por que de prompto
lhes custa abandonar antigos hábitos [...]”. 142
Na década de 1860, os grupos de caçadores índios voltaram a ser referidos pelos
diretores dos aldeamentos. Naquele período, as caçadas não apareciam somente como uma
forma de resistência, mas também como uma possibilidade de complementação das reservas
alimentares dos aldeamentos.
Uma outra forma de resistência indígena, que pôde ser identificada na documentação
consultada para este trabalho, foram os conflitos envolvendo indígenas e posseiros alojados
nas terras reservadas para os aldeamentos. Nesse caso, não mais uma oposição à
intensificação da política imperial de aldeamentos, mas uma resistência ao processo de
capitalização da terra no planalto rio-grandense que se desenvolveu na metade do século
XIX.
142 Ofício de José Joaquim de Oliveira ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 2.
143
O ofício do padre Antônio de Moraes Branco, remetido ao governo da província em
novembro de 1864, exemplifica a existência de disputas pelos terrenos dos índios mesmo
depois do estabelecimento dos aldeamentos. No documento, o padre pedia providências ao
presidente da província sobre a invasão das terras dos índios, na tentativa de evitar um
confronto entre posseiros e os Caciques Chico e Jacintho Doble, aldeados na Colônia Militar
de Caseros.
Sendo os dous Indios Cacique Doble e Chico senhores de dous campos, e faxinais sitos nas margens do Rio por elles denominado = Gôy = a seis leguas mais ou menos de distancia deste Aldeamt.º e no centro das mattas, de há muito reclamão por meu intermedio ao Exm.º Gov.º Proval. providencias a fim de que seus campos, que de tempo immemorial são o deposito dos restos mortaes de seus maiores, não sejão invadidos por individuos de nossa sociedade que delles tem querido apossar-se, e extorquir herva de mate contígua aos mesmos campos. Os dous Cacique já de ha muito haverião por meios violentos feito desoccupar os seus terrenos, se não os obstassem os meus conselhos, e a confiança que lhes foi inspirado, de que, o Exm.º Governo proveria de forma, que elles continuarião a usofruir o que por direito sagrado lhes pertence.143
A ocorrência desse tipo de conflito entre posseiros e índios não apareceu com
freqüência na documentação diretores de índios da província, sugerindo um relativo respeito
às áreas demarcadas como terrenos reservados para a colonização de indígenas. No entanto,
as esporádicas citações de atritos entre os índios aldeados e seus vizinhos demonstram que a
defesa dos limites dos aldeamentos, quando não se deflagravam em um enfrentamento direto,
permaneciam em um estado latente.
A manutenção de toldos por alguns grupos de indígenas poderia ser citada como uma
tentativa desses índios de resistir à intensificação da política imperial de aldeamentos. Como
mencionado anteriormente, neste capítulo, os Toldos foram freqüentemente citados pelos
143 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 8 de novembro de 1864 – Maço 2.
144
diretores de aldeamentos como sendo redutos de índios já contatados, mas, que nem sempre
viviam pacificamente ou segundo os modelos propostos pelo Regulamento das Missões. No
relatório do padre Pares, enviado à presidência da província em 1851, portanto três anos
depois da instalação do aldeamento de Nonoai, foram mencionadas cerca de setenta e oito
famílias vivendo em Toldos espalhados pelo campo. Mesmo sendo consideradas dependentes
do estabelecimento de catequese e civilização localizado em Nonoai, essas famílias não
puderam ser concentradas nas proximidades do posto da diretoria, em torno do qual apenas
25 famílias estavam reunidas.
O numero de Indigenas existentes n’este campo, me parece que aproximadamente se pode calcular como segue: No aldeamento que se estabeleceo quase no fundo do dito campo a meia légua do rio Passo-fundo e 1½ da barra d’este no Uruguay que é o passo denominado Ngoi-u-em – Gente do Condá e do Nicafi. 25 familias com umas ----------------------------------------------------- 150 almas No toldo do velho Nonohay a uma legoa do Aldeamento 50 familias com umas ------------------------------------------------------------------------- 250 almas No toldo do velho Vuotoro a ½ legoa do aldeamento 8 familias com umas ------------------------------------------------------------------------------------- 40 almas No toldo do Canhafé a ½ legoa do aldeamento 8 familias com umas --------------------------------------------------------------------------------------------- 30 almas
Total 470 almas [...] Fora do campo de Nonohay na banda oriental do Passo-fundo e a umas 6 legoas sE n’um campestre, que chamão Arechi, existem umas dez a doze familias da gente de Nicafi que se considerão como dependencia do Aldeamento.144
Em outro trecho do mesmo documento, tratando dos grupos chefiados pelos Pay-bang
Braga e pelo Pay Doble, habitantes das regiões do Campo do Meio e de Vacaria, o
missionário comenta ter sido necessário mudar o local do aldeamento que seria estabelecido
para as áreas onde os índios estavam. Tal mudança foi necessária, pois as lideranças daqueles
144 Relatório do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese
dos Índios, 14 de janeiro de 1851 – Maço 1.
145
grupos indígenas se recusaram a reunir-se no Pontão, local inicialmente designado pela
província para o aldeamento.
Não se tendo podido conseguir que os Bugres que baixo do comãndo dos Chefes Capitão Dovre e Capitão Braga andão vagando pellos Mattos do Campo-do-Meio e Vaccaria se aldeassem no Pontão; os PP. Missionarios por ordem dos Exmõs. Sñres. Presidentes Sõr. Andrea e Sõr. Pimente Bueno passarão ao campo-do-meio que era o logar que os Indigenas preferião.145
Com o aumento do número de grupos envolvidos na tentativa de concentração dos
indígenas promovida pelo Império os Toldos tornaram-se maiores e, em alguns casos,
ganharam uma organização própria. Em ofício remetido à presidência da província, ainda no
ano de 1851, o padre Pares reclamou da formação de um núcleo habitacional fora dos limites
do aldeamento, onde os preceitos da catequese indígena estariam ficando sem efeito.
Todos os dias estão chegando Bugres de Palmas, que são da gente do Victorino com suas familias e animaes; e como dizia eu n’outra minha, pertendem levantar seus ranchos no campo por separado e não aqui no Aldeamento, para, (disem elles) criar melhor seus animaes; e effectivamente apesar meu estão executando seu plano. Alguns Brasileiros lhes dão o máo exemplo: Manoel Fernandes levantou ja sua chacara no campo e outros tres ou quatro, forão a fazer seus ranchos perto d’elle, de modo que vaê formando-se povoação separada. Isto he uma desordem, pois assim se diminui a Aldeã e ficão sem effeito os nossos Ministerios espirituaes por falta de concurrentes.146
Como destacado pelo missionário, nesse caso, a resistência indígena se daria pelo
afastamento da presença vigilante do diretor do aldeamento. Os representantes do Estado,
mesmo tendo os Toldos sob sua alçada administrativa, não tinham como manter um controle
efetivo do número de indígenas neles reunidos, nem de suas movimentações ou de seus
145 Idem 146 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 1 de junho de 1851 – Maço 1.
146
modelos produtivos. No documento, aparece, também, a dificuldade das diretorias de índios
para controlar as relações entre indígenas e intrusos que estivessem vivendo infiltrados nos
Toldos.
Por outro lado, a manutenção desses Toldos em regiões bastante próximas dos
aldeamentos e os freqüentes contatos dos índios ali arranchados com os diretores de índios
da província indicam que, se os Toldos representavam uma resistência dos indígenas a idéia
de fixarem-se nos locais determinados pelas diretorias de índios, ela não era nem muito
organizada e nem muito arraigada. Na realidade, essa proximidade dos Toldos sugere o
interesse de seus habitantes na segurança e em outros possíveis benefícios trazidos pela
vizinhança com os representantes do Estado.
Com o desenvolvimento dos estabelecimentos de catequese e civilização da província
reduziu-se expressivamente, na documentação consultada, a descrição de grupos arranchados
fora dos limites dos aldeamentos. A existência de Toldos nos arredores dos aldeamentos
parece ter sido uma característica específica dos anos iniciais da intensificação na política de
aldeamentos no Rio Grande do Sul.
Além das formas de resistência descritas acima, a associação de grupos indígenas ao
governo provincial aparece descrita em cinco dos documentos emitidos pelos diretores dos
aldeamentos em períodos e locais diferentes. Para identificar esse tipo de reação dos índios
aldeados no século XIX foram consideradas como associação as relações entre indígenas e
membros, ou instituições, da sociedade imperial, para a prestação de serviços ou para a
colaboração em algum empreendimento. Em geral, essas associações se davam mediante o
recebimento, por parte dos indígenas, de benefícios, suprimentos ou numerários. As
147
variações de local e data nos levam a crer que esse era um tipo de reação relativamente
freqüente dos grupos aldeados diante da política indigenista aplicada na província do Rio
Grande do Sul.
O primeiro exemplo de associação entre os índios aldeados e as diretorias de índios,
que aparece citada na documentação, foi no ofício remetido pelo padre Bernardo Pares ao
governo da província em novembro de 1848. Nele, o missionário menciona a apresentação
do Pay-bang Vitorino Condá em Nonoai, que se ofereceu para reunir ali os índios sob sua
liderança. Sobre o contato com Condá o padre Pares relatou o seguinte: “Os do Nonohay faz
ja tres annos se apresentarão baixo do commando de seu Chefe Victorino (Condá) que pedio
seguridade, e offereces, que procuraria reunir a gente toda de sua nação nos campos ditos de
Nonohay [...]”147
Em seu texto sobre a atuação das lideranças Kaingang no sul do Brasil, Luís Fernando
Laroque (2000, p. 112) fez referência à atuação de Condá, em colaboração com o governo da
província, para reunir indígenas em Nonoai mediante remuneração. Em 1850, outro ofício do
padre Pares confirma o pagamento de soldos ao Pay-bang Condá.
Recebi a de VS de Abril com a quantia de 80$000 reis pertencentes aos soldos do Cap.㺠Victorino, a quem já a-mandei entregar. O dito Victorno fica muy descontento porqe. dice qe. hé major quantia qe. se lhe-debe, pois qe. no passado Agosto cumpriu hum anno recebeo huma quantia qe. foi a primeira qe. tem recebido y depois não tem recebido mais até a de agora, e he por isso qe. quer ir a Porto Alegre a queixarse ao Sr. Presidente.148
147 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 6 de novembro de 1848 – Maço 1. 148 Ofício do Padre Bernardo Pares ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS – Catequese dos
Índios, 29 de maio de 1850 – Maço 1.
148
Essa prática de utilizar indígenas aldeados para atrair outros grupos para os
aldeamentos foi constante nas décadas iniciais da aplicação do Regulamento das missões.
Com o desenvolvimento dos aldeamentos, os índios passaram a ser chamados não apenas
para o trabalho de atração, mas também, para a perseguir grupos hostis. Merece destaque,
nesse caso, os serviços prestados pelo cacique Doble enquanto esteve aldeado na Colônia
Militar de Caseros. O padre Antônio de Moraes Branco, no ano de 1863, deu um exemplo da
atuação de Doble como colaborador do governo rio-grandense. O missionário, em ofício ao
presidente da província, anunciou a disposição de Doble em perseguir um grupo arredio na
região do Turvo em troca de mantimentos e gratificações.
Perguntei aos aqui aldeados se se prestavão a bater, e capturar essa gente, e lhes fiz conhecer que isso mto. agradaria a V.Exª.; elles me responderão que estão promptos para isso, mandando V.Exª. dar-lhes carne, farinha e sal, e tambem algum mantimento para suas mulheres, que ficão sem elle durante a auzencia dos homem por não terem quem para ellas cace; assim mais uma gratificação para o Cacique Doble.149
Outros documentos do padre Branco, emitidos imediatamente depois do ofício de
agosto de 1864, indicaram que a perseguição dos índios do Turvo foi realmente efetuada pelo
cacique Doble e seus seguidores. Outros documentos dessa série, redigidos em 1864 nos
aldeamentos de Caseros e do Campo do Meio, tratando dos índios liderados por Doble e pelo
Cacique Chico, davam outros exemplos da colaboração de índios aldeados na perseguição de
grupos arredios.
As diferentes datas e locais indicados nos documentos ressaltam a importância dos
serviços prestados pelos líderes indígenas aldeados na condição de bugreiros. Nos ofícios e
149 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 4 de agosto de 1863 – Maço 2.
149
relatórios consultados durante este trabalho, existem mais referências a índios aldeados
sendo utilizados na perseguição de grupos arredios do que a Companhias de Pedestres
destacadas para essa função.
As habilidades dos índios aldeados durante as perseguições na mata merece ser
destacada em pelo menos mais uma ocasião. Em 1865, o padre Branco ofereceu os serviços
dos indígenas aldeados na Colônia Militar de Caseros para perseguir, expulsar ou capturar
desertores da Guarda Nacional que estivessem escondidos nas matas circunvizinhas ao
aldeamento. No ofício, o padre dizia que:
Havendo-se dado na prezente reunião da Guarda Nacional destes lugares muitos cazos de deserção, achando-se já pelos Mattos grande numero desses Guardas, o que é, alem d’um crime por falta de patriotismo, de sinistro agouro para os habitantes, que, d’istante ficão expostos ás violencias que em semelhantes conjuncturas saem por-se em pratica por semelhante gente, deliberei consultar os Indios sob minha direcção, e saber, se, em occazião preciza, elles se prestão á captura desses rebeldes ao serviço da Patria; me responderão todos que farião qualquer deligencia que eu lhes mandasse fazer, e sem violencia, porque não querem Mattar portuguezes, (como nos chamão) mas que = desertor é gente brava = e que, se lhes fizessem fogo, tambem mattarião com suas flexas; me prometherão somente acossar essa gente de tal forma que desamparasse as mattas, ou fosse por sua estrategia por elles preza, e entregue a mim, para, clausurada no xadrez desta Colonia, seguir depois o seu destino. Podem os Indios nos prestar relevantissimo serviço na epoca calamithosa em que nos achamos; e contando V.Ex. com meus debeis esforços neste sentido, se dignará deliberar como julgar mais conveniente. Tenho jà sido convidado para semelhantes deligencias; mas já mais me prestarei sem ordem previa de V.Ex.ª, salvo cazo urgentissimo, visto que marchando para a Fronteira qualquer força, nos veremos por aqui a braços com esses maus cidadãos, e teremos então de repellir suas afrontas.150
Não há indícios, na documentação, de que a iniciativa do padre Branco tenha sido
concretizada, mas, como mencionado no ofício acima, a proposta de utilização dos indígenas
na perseguição de proscritos não era uma novidade para o missionário.
150 Ofício do Padre Antônio de Moraes Branco ao Presidente da Província do Rio Grande do Sul. AHRGS –
Catequese dos Índios, 6 de setembro de 1865 – Maço 2.
150
A presença de formas de associação descritas nos documentos do padre Pares, de 1848
e 1850, bem como nos do padre Branco, de 1863 e 1865, indicam que as relações entre
índios aldeados e representantes do Estado nem sempre foram conflitivas. Além disso,
ressaltam o papel ativo das populações indígenas no processo de intensificação da política de
aldeamentos no Rio Grande do Sul durante o século XIX.
151
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da documentação produzida pelos Juízes de Órfãos do Rio Grande do Sul
entre 1834 e 1845 demonstrou a inexistência de qualquer tipo de política provincial para a
inserção social dos indígenas durante aquele período. A única ação efetiva do governo da
província foi estender a tutela orfanológica, determinada por decreto imperial, aos índios
remanescentes das antigas reduções jesuíticas. Ainda assim, as iniciativas tomadas pelos
tutores legais dos indígenas apontavam para uma preocupação exclusiva em garantir, para si,
o direito de administrar o patrimônio formado pelos prédios, estâncias e gado das antigas
reduções.
Nesse sentido, as iniciativas dos agentes oficiais encarregados da política indigenista
rio-grandense, até 1845, se alinhavam às determinações legais dadas à Questão Indígena pelo
Império, bem como às práticas tradicionais daqueles magistrados, descritas na bibliografia
consultada sobre o período.
A mudança institucional trazida pelo Regulamento de 1845 não alterou o
posicionamento do governo rio-grandense, que continuou a desenvolver uma política
indigenista regional em acordo com as orientações estabelecidas pelo Império. Assim, pelas
diretrizes estabelecidas no Regulamento das Missões, os indígenas gaúchos deveriam ser
economicamente inseridos na sociedade imperial do século XIX. Seguindo a essa orientação,
foram criados aldeamentos para reunir os grupos Kaingang que transitavam nas áreas de
152
mato ao norte e nordeste da província, sendo perceptível, no formato com o qual se criaram
esses aldeamentos, a manutenção dos dois princípios freqüentemente reafirmados na política
indigenista brasileira: Civilizar pela fé e converter os índios em agricultores sedentários
capazes de garantir sua própria subsistência.
A manutenção da política de sedentarizar indígenas em aldeamentos, durante o século
XIX, indica uma relação bastante direta entre as práticas indigenistas e o projeto estatal de
ocupação das “terras vazias” do Império. Observando a Questão Indígena, a partir dessa
perspectiva, percebe-se que o Regulamento das Missões não veio apenas suprir a necessidade
histórica de uma legislação geral que organizasse as relações entre índios e brancos. Ele foi
editado para, também, resolver os problemas decorrentes da invasão dos territórios
tradicionalmente ocupados por grupos de índios arredios. Esse processo foi acirrado pelo
aumento no volume de terras apossadas depois da suspensão das sesmarias em 1822 e pela
conversão da terra em mercadoria através da Lei de Terras de 1850.
A intensificação da política de aldeamentos na província do Rio Grande do Sul, a
partir de 1848, foi a conseqüência direta do apossamento dos campos do planalto, contexto
no qual o espaço de trânsito dos grupos indígenas, que habitavam aquela região, havia sido
reduzido as áreas de mato ao norte e nordeste da província. Além disso, a concentração dos
índios nos aldeamentos possibilitou a expansão do projeto imperial de estabelecer colônias
de imigrantes europeus nos vales e nas encostas, povoando aquelas regiões com gente
“branca e laboriosa”.
Ao analisar narrativas feitas pelos diretores de índios, buscando conhecer o cotidiano
dos aldeamentos instalados pelo governo rio-grandense durante o século XIX, percebe-se,
porém, que o cumprimento dos objetivos da política indigenista imperial foi apenas parcial.
Nelas, há a menção constante a grupos de índios transitando entre os aldeamentos ou
habitando áreas fora dos estabelecimentos de catequese e civilização mantidos pela
153
província. Esse contínuo entrar e sair dos aldeamentos, impulsionado umas vezes pela
resistência dos índios à política indigenista oficial e, outras, por necessidades de subsistência,
demonstra que a fixação dos indígenas nos terrenos determinados pelo Estados nunca se
completou.
Pode-se observar ainda, nos relatos dos diretores de índios do Rio Grande do Sul, a
ineficiência das iniciativas por eles tomadas para garantir a auto-sustentação dos
aldeamentos. As freqüentes solicitações de gêneros alimentícios ao governo da província e as
constantes referências a índios garantindo o sustento de suas famílias a partir da caça
indicam que os roçados dos aldeamentos raramente atingiam níveis de produção capazes de
sustentar a população neles reunida.
A análise da documentação da Diretoria de Índios demonstrou também uma inserção
apenas parcial dos indígenas na economia regional. Foram poucos os relatos do engajamento
de indígenas em atividades produtivas remuneradas fora dos serviços regularmente prestados
ao Estado. Além disso, as deficiências de produção nos aldeamentos raramente permitiram a
formação de excedentes comercializáveis, impossibilitando a participação dos índios, como
fornecedores, no mercado agrícola rio-grandense. A única atividade produtiva onde os
indígenas aldeados figuraram com relativa expressão foi a de coleta de erva-mate.
Essas características do tratamento dado à Questão Indígena no Rio Grande do Sul,
entre 1834 e 1868 indicam que a política indigenista aplicada pelo governo da província não
apenas se alinhava às diretrizes estabelecidas pelo Império para ela, mas também atendia às
exigências contextuais do processo de expansão capitalista da ocupação da terra que
caracterizou o Brasil do século XIX.
154
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ANEXOS
ANEXO A – Regulamento das Missões de 1845 24/07/1845: Decreto n. 426 – contém o Regulamento ácerca das Missões de catechese, e civilisação dos Índios Hei por bem, tendo ouvido o Meu Conselho d’Estado, mandar que se observe o Regulamento seguinte: Art. 1º. Haverá em todas as Provincias hum Director Geral de Índios, que será de nomeação do Imperador. Compete-lhe: § 1º. Examinar o estado, em que se achão as Aldêas actualmente estabelecidas; as ocupações habituaes dos Índios, que nellas se conservão; suas inclinações, e propensões; seu desenvolvimento industrial; sua população, assim originaria, como mstiça; e as causas, que tem influido em seus progressos, ou em sua decadência. § 2º. Indagar os recursos, que offerecem para a lavoura, e comercio, os lugares, em que estão collocadas as Aldêas; e informar ao Governo Imperial sobre a conveniencia de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em huma só. § 3º. Precaver que nas remoções não sejão violaentados os Índios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bom comportamento, e apresentem hum modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste ultimo caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufruto do terreno, que estejão na posse de cultivar. § 4º. Indicar ao Governo Imperial o destino, que se deve dar ás terras das aldêas, que tenhão sido abandonadas pelos Índios, ou que sejão em virtude od §2º deste Artigo. O proveito, que se deve tirar da applicação dessas terras, será empregado em beneficio dos Índios da Provincia. § 5º. Indagar o modo, por que grangeão os Índios as terras, que lhes tem sido dadas; e se estão occupadas por outrem, e com que título. § 6º. Mandar proceder ao arrolamento de todos os Índios aldeados, com declaração de suas origens, suas linguas, idades, e profissões. Este arrolamento será renovado todos os quatro annos. § 7º. Inquirir onde há Índios, que vivão em hordas errantes; seus costumes e linguas; e mandar Missionarios, que solicitará do Presidente da Provincia, quando já não estejão á sua disposição, os quaes lhes vão pregar a Religião de Jesus Christo, e as vantagens da vida social. § 8º. Indagar se convirá fazê-los descer para as Aldêas actualemente existentes, ou estabelecê-los em separado; indicando em suas informações ao Governo Imperial o Lugar, onde deve assentar-se a nova Aldêa. § 9º. Diligenciar a edificação de Ugrejas, e de casas a habitação assim dos empregados da aldêa, como dos mesmos Índios. § 10º. Distribuir pelos Directores das Aldêas, e pelos Missionarios, que andarem nos lugares remotos, os objectos, que pelo Governo Imperial forem destinados para os Índios, assim para a agricultura, ou para o uso pessoal dos mesmos, como amtimentos, roupas, medicamentos, e os que foram proprios para attrair-lhes a attenção, excitar-lhes a curiosidade, e despertar-lhes o desejo do trato social; requisitando-os do Presidente da Provincia, segundo as Instruções, que tiver do Governo Imperial.
161
§ 11. Ptopor ao Presidente da Provincia a demarcação, que devem ter os districtos das Aldêas, e fazer demarcar as terras, que, na fórima do § 15 deste artigo, e do § 2º do Art. 2º, forem dadas aos Índios. Se a Aldêa já estiver estabelecida, e existir em lugar povoado, o districto não se entenderá além dos limites das terras originariamente concedidas á mesma. § 12. Examinar quaes são as Aldêas, que precisão ser animadas com plantações em commun, e determinar a porção de terras, que deve ficar reservada para essas plantações, assim omo a porção das que possão ser arrendadas, quanto, attenta ainda a pequena população, não possão os Índios aproveita-las todas. § 13. Arrendar por trez annos as terras, que para isso forem destinadas, procedendo ás mais miudas investigações sobre o bom comportamento dos que ás pretendem, e sobre as posses, que tem. Nestes arrendamentos não se comprhende a faculdade de derrubar matos, para o que será necessário o consenso do Presidente que será expresso no contracto, com declaração dos lugares, onde os possão derrubar. § 14. Examinar quaes são as aldêas, onde, pelo seu adiantamento, se passão aforar terras para casas de habitação; informar ao Governo Imperial com o quabtitativo do fôro; e aforal-as segundo as Instruções que receber. Não são permitidos aforamentos para cultura. § 15. Informar ao Governo Imperial ácerca daquelles índios, que, por seu bom comportamento, e desenvolvimento industrial, mereção se lhes concedão terras separadas das da Aldêa para suas gragearias particulares. Estes índios não adquire, a propriedade dessas terras, senão depois de doze annos, não interrompidos, de boa cultura, o que se mencionaria com especialidade nos Relatorios annuaes; e no fim delles poderão obter Carta de Sesmaria. Se por morte do Concessionario não se acharem completos os doze annos, sua viuva, e na falta de seus filhos, poderão alcançar a Sesmaria, se além do bom comportamento, e continuação de boa cultura, aquella prehencher o tempo que faltar, e estes a grangearem pelo duplo deste tempo, contanto que este nem passe de oito annos, e nem seja menos de quinze o das diversas posses. § 16. Dar licença ás pessoas, que quizerem ir negociar nas Aldêas novamente creadas, com estabelecimento ou fixo, ou volante; e retiral-as, quando o julgar conveniente. Quanto ás que já estão estabelecidas, examinará quaes as que estão nas circunstâncias de precisarem desta protecção, e as declarará sujeitas a esta disposição, com dependencia de aprovação Imperial. § 17. Representar ao Presidente da Provincia a necessidade que possa haver de alguma força Militar, que proteja as Aldêas, a qual poderá ter hum Regulamento especial. § 18. Propor á Assembléa Proincial a creação de escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino. § 19. Empregar todos os meios licitos, brados, e suaves, para attrair Índios ás Aldeas; e promover casamentos entre os mesmos, e ente elles, e pessoas de outra raça. § 20. Esmerar-se em que lhes sejão explicadas as maximas da Religião Catholica, e ensinada a doutrina Christã, sem que se empregue nunca a força, e violencia; e em que não sejão os pais violentados a fazer baptisar seis filhos, convido attrahi-los à Religião por meios brandos, e suasorios. § 21. Cuidar da introducção da Vaccina das Aldêas, e facilitar-lhes todos os soccorros nas epidemias. § 22. Corresponder-se com os missionarios, de quem receberá todos os esclarecimentos para a catechese, e civilisação dos Índios, providenciando no que conhecer em suas faculdades; e com todas as Authoridades, por quem possa ser auxiliado. § 23. Vigiar na segurança, e tranquilidade das Aldêas, e seus districtos, requerendo, ou constituindo procurador para requerer perante as Justiças, e requisitando das Authoridades competentes as providencias necessarias. § 24. Indagar se nas Aldêas, e seus districtos, morão pessoas de caracter rixoso, e de máos costumes, ou que introduzão bebidas espirituosas, ou tenhão enganado aos Índios com lesão enorme; e fazê-las expulsar até cinco leguas fóra dos limites dos districtos. § 25. Informar-se dos meios de subsistência, que tem as Aldêas, para providenciar que não sobrevenha alguma fome, que seja causa de que os Índios avalem para os mattos, ou se derramem pelas Fazendas e Povoações. § 26. Promover o estabelecimento de officinas de artes mechanicas, com preferencia das que se prestão ás primeiras necessidades da vida; e que sejão nellas admitidos os Índios, segundo as propensões que mostrarem. § 27. Indagar qaes as producções do lugar de mais facil cultura, e de mais proveito; esmerando-se em fazer adoptar aquelle genero de traalho, e modo de vida que offereça mais facilidade, e a que os Índios mais promptamente se acostumem. § 28. Exercer toda a vigilancia em que não sejão os Índios constrangidos a servir a particulares; e inquirir se não pagos por seus jornaes, quando chamados para o serviço da Aldêa ou qualquer serviço publico, e em geral que sejão religiosamente cumpridos de ambas as partes os contractos, que com elles se fizerem.
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§ 29. Vigiar que não sejam os Índios avexados com exercicios militares, procurando que se lhes dê aquella instrucção, que permitir o seu estado de civilisação, suas occupações diarias, e seus habitos, e costumes, os quaes não devems ser aberta e desabridamente contrariados. § 30. Fiscalisar as tendas das Aldeas, quaesquer que sejam suas fontes; e exercer vigilante inspecção sobre as producções das lavouras, pescas, e extracções de drogas, e de outro qualquer ramo da industrua , e em geral sobre todos os objectos destinados para o uso, e consumo das Aldêas. § 31. Applicar os dinheiros, e outros quaesquer, segundo as necessidades das Aldêas, e na conformidade das ordens do Governo Imperial, dando huma conta circumstanceada todos os annos, e todas as vezes que huma urgente necessidade o obrigue a fazer alguma despeza extraordinaria da applicação, que houver resoluto. § 32. Servir de Procurador dos Índios, requerendo, ou nomeando Procurador para requerer em nome dos mesmos perante as Justiças e mais Autoridades.
§ 33. Propor ao Presidente da Provincia o director da aldêa, o Thesoureiro, Almoxarife e o Cirurgião, preferindo-se para estes empregos os casados aos solteiros; suspender os trez ultimos, e em geral a todos os que estão a serviço das Aldêas, nomeando interinamente quem substitua, e dando parte immediatamente ao Presidente, ou ao director da Aldêa, segundo pertencer a nomeação ao primeiro, ou ao segundo.
§ 34. Organisar a Tabella dos vencimentos dos pedestres, e dos salarios dos Officiaes de officios, que estiverem ao serviço das Aldêas; e leva-la ao conhecimento do Governo Imperial para sua approvação.
§ 35. Approvar, e mandar por em execução provisoriamente a Tabella, organisada pelos Directores das Aldêas, dos jornaes que devem ganhar os Índios, que forem chamados para o serviço ds mesmas, ou qualquer outros serviço publico; levando-a ao conhecimento do Governo Imperial para sua final approvação.
§ 36. Propor ao Governo Imperial os Regulamentos especiaes para o regimen das Aldêas, e as instrucções convenientes para o desenvolvimento de sua industria; tendo attenção ao estado de civilisação dos Índios, sua indole, e caracter; as necessidades dos lugares, em que se acharem ellas estabelecidas; as producções do Paiz, e as proporções, que o mesmo offerece para o seu adiantamento moral e material.
§ 37. Apresentar todos os annos ao Governo Imperial o Orçamento da receita e despeza das aldêas, e hum Relatorio circustanceado do seu estado em população, instrucção, e industria, com huma exposição miúda da execução das disposições deste Regulamento; exigindo dos Directores ds Aldêas outros iguaes, que habilitem a esclarecer o Governo sobre os progressos ou decadencia ds mesmas, e as causas, que para isso tem concorrido; e apontando as providenciais que convenha ser adoptadas.
§ 38. Expor ao Governo Imperial os incovenientes, que tenha encontrado na execução deste Regulamento, e de outros, que houver de fazer; indicando as medidas, que julgar apropriadas para se conseguir o grande fim da catechese, e civilisação dos Índios.
Art. 2º. Haverá em todas as Aldêas hum Director, que será de nomeação do Presidente da provincia, sobre proposta do Director Geral. Compete-lhe:
§ 1º. Informar ao Director Geral a necessidade, que possa haver de trabalhos em commum, e a natureza destes; assim como sobre a parte dos productos desses trabalhos, que deva ser reservada para o uso commum dos Índios.
§ 2º. Designar as terras, que devem ficar reservadas pra as plantaçõies em commum, depois de determinada a porção, que deve ser pelo Director Geral; assim como as que devem ficar para as plantações particulares dos Índios, e as que possão ser arrendas, art. 1 § 12.
§ 3º. Inspeccionar essas plantações, ou outros quaesquer trabalhos da Aldêa; e procurar consummo aos seus productos, depois de feitas as reservas necessarias.
§ 4º. Nomear quem substitua o Thesoureiro, ou Almoxarife, nos inpedimentos imprevistos, e de caso repentino.
§ 5º. Nomear os Índios para as plantações ou outros trabalhos em commum, ou para qualquer serviço Publico; procurando repartir o trabalho com igualdade, e ir de accordo, quanto ser possa, com o Maioral dos Índios.
§ 6º. Fazer entregar ao Thesoureiro, ou Almoxarife, os productos dos trabalhos dos Índios, os objectos obtidos em trocados que forem vendidos, o dinheiro pertencente á aldêa, qualquer que seja sua origem, e em geral todos os objectos destinados para a Aldêa.
§ 7º. Distribuir os objectos, que forem applicados pelos Director Geral para os trabalhos communs, e particulares dos Índios; e os que forem destinados para animar, e premiar os Índios já aldeados, e atthair os que ainda o não estejão.
§ 8º. Applicar os dinheiros, e mais objectos, segundo as determinações do director geral; podendo, em casos urgentes, gastar, sob uma responsabilidade, do dinheiro, que houver em caixa, até a quantia de cem mil réis, de que dará conta ao mesmo Director para sua approvação.
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§ 9º. Nomear, suspender, e despedir os Pedestres, e Officiaes de officios, que estiverem ao serviço da Aldêa, e determinar o serviço, que devem fazer.
§ 10. Vigiar sobre a segurança, e tranquilidade da aldêa, e seu districto; podendo, em casos menores, reter em prisão, até seis dias, o que a perturbar, sendo Índio; e não sendo, fazel-o expulsar para fóra da Aldêa, e até do seu districto; e em casos menores, prender, e remeter ás Justiças ordinarias com todas as indicações, que esclareção a verdade.
§ 11. Requerer ás Autoridades policiaes contra os que, tendo sido expulsos em virtude do § antercedente, ou do § 24 do artigo 1º, se estabelecerem dentro dos limites declarados no Mandado de despejo, ou não queirão obedecer a este.
§ 12. Ter abaixo das suas ordens a força Militar, que se houver de mandar collocar na Aldêa e seu districto; representando a necessidade, que della possa haver, ao Director Geral, conformando-se com as instrucções, que receber, e com o Regulamento especial do § 17 do art. 1.
§ 13. Alistar os Índios, que estiverem em estado de prestar algum serviço militar, e acostumal-os a alguns exercicios; animando com dadivas aos que mostrarem mais gosto, e zelo pelo serviço, e tendo todo cuidado em que não se desgostem por excesso de trabalho. Dará huma conta circunstanciada ao Director Geral das disposições, que encontrar, para ser levada ao conhecimento do Governo Imperial, que resolverá sobre a oportunidade de se crearem algumas Companhias, as quaes poderão ter huma organização particular.
§ 14. Procurar que sejão demarcadas as terras dadas aos Índios, proceder a demarcação das porções das mesmas, que, em virtude deste Regulamento, tenhão de ser demarcadas dentro dos seus limites.
§ 15. Esmerar-se em que as Festas tanto, Civis, como Religiosas, se fação com a maior pompa, e apparato, que ser possa; procurando introduzir nas Aldêas o gosto da musica instrumental.
§ 16. Servir de Procurador dos Índios, podendo nomear quem faça as suas vezes para requerer perante as Justiças, e outras Autoridades.
§ 17. Dar parte todos os trimestres ao Director Geral dos acontecimentos mais notaveis na Aldêa, e fazer hum Relatorio annual do estado, em que ella se acha, com declaração da execução, que tem tido as disposições deste Regulamento, e com o Orçamento da receita e despeza para o anno seguinte.
§ 18. Exercer as funções do art. 1°, desde o § 1 até o § 9º, e desde o § 19 até o § 30; entendendo-se que suas faculdades serão restrictas á Aldêa, de que he Director; e que em lugar do Presidente, ou Governo Imperial, deve dirigir-se ao Director Geral da provincia.
Art. 3º Ao Thesoureiro compete: § 1º. Receber os dinheiros pertencentes á Aldêa, qualquer que seja a origem d’onde provenha,
recolhendo-os em huma caixa, de que o Director da Aldêa terá huma chave; assim como receber todos os objectos, que forem destinados para o serviço, e uso da Aldêa.
§ 2º. Ter a seu cargo a escripturação, e contabilidade, para o que terá os livros proprios fornecidos pela Fazenda Publica.
§ 3º. Ajudar ao Director da Aldêa na sua correspondencia, particularmente na confecção dos Mappas Estatísticos.
§ 4º. Fazer os pagamentos, e entregar os objectos, que estiverem debaixo da sua guarda, segundo as ordens, que receber do Director Geral, e as determinações do Director da Aldêa.
§ 5º. Dar todos os annos huma conta circunstanciada ao Director Geral de todos os dinheiros, e objectos, que houver recebido; dos empregos, que fez; e das ordens, que os autorisárão.
§ 6º. Escrever em todos os actos, que houverem de ser remetidos ás Justiças, e nos termos da demarcações das porções de terras, a que houver de proceder o Director da Aldêa dentro dos limites das terras da Aldêa.
§ 7º Substituir ao Director da Aldêa em seus impedimentos imprevistos, e de caso repentino; dando parte immediatamente ao Director Geral para prover interinamente.
Art. 4º. Quando o estado da Aldêa não exija hum Thesoureiro, hum Almoxarife receberá todos os objectos, que forem destinados para a Aldêa, e os entregará segundo as ordens do Director da mesma, dando annualmente conta ao Director Geral; e o Director da Aldêa receberá os dinheiros, que á mesma pertebcerem.
Art. 5º. O Cirurgião tem a seu cargo a botica, e os isntrumentos Cirurgicos; e cuidará da Enfermaria com hum Enfermeiro, que será hum dos Pedestres, que proporá ao Director da Aldêa.
Art. 6º. Haverá hum Missionario nas Aldêas novamente creadas, e ns que se acharem estabelecidas em lugares remotos, ou onde conste andão Índios errantes. Compete-lhe:
§ 1º. Instruir aos Índios nas maximas da Religião Catholica, e ensinar-lhes a Doutrina Crhristã. § 2º. Servir de Parocho da Adêa, e seu Districto, emquanto não se crear Parochia. § 3º. Fazer o arrolamento de todos os Índios pertencentes a Aldêa, e seu Districto com declarações dos
que morão nas Aldêas, e fora dellas; dos baptizados, idades, e profissões; e dos nascimentos, e obitos, e casamentos; para o que lhe serão fornecidos os livros pelo bispo Diocesano, pela caixa de Obras Pias.
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§ 4º. Dar parte ao Bispo Diocesano, por intermedio do Director Geral da Provincia, do estado espiritual da Aldêa; representando as necessidades, que encontrar, e apontando as providencias, que lhe parecem mais proprias para occorrer a ellas.
§ 5º. Representar ao Director Geral, por intermédio da Aldêa, e necessidade, que possa haver outro Missionario, que ajude, principalmente se houver nas visinhanças Índios errantes, que seja nistér chamar á Religião, e a Sociedade.
§ 6º. Ensinar a lêr, escrever, e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que sem violencia se disposerem a adquirir essa instrucção.
§ 7º. Substituit ao Director da Aldêa, quando esteja impedindo o Thesoureiro, e nos casos, em que este o pode substituir.
Art. 7º. A creação de Thesoureiro, Almoxarife e Cirurgião, dependerá do estado em que se achar a Aldêa, e da sua importancia; e do lugar, em que estiver collocada; sobre o que o Director Geral informará ao Governo Imperial para resolver. O Cirurgião poderá servir de Thesoureiro, se as circunstancias o permittirem. Seus vencimentos, e os dos Missionarios, serão fixados segundo as informações dos Directores Geraes.
Art. 8º. A creação dos Pedestres, e Officiaes de officios; seu numero, salario, organisação, e a natureza dos officios, dependerão das circunstancias locaes, segundo as informações dos Directores Geraes.
Art. 9º. As informações, de que trata o art. Antecedente, as do art. 7º, e as do art. 1º, §§ 2, 4, 8, 14, 15, 16, 34, 35, 36 e 37, serão transmittidas ao Governo Imperial por intermedio do Presidente da Provincia, que as acompanhará com as observações convenientes.
Art. 10. Nos impedimentos do Director Geral o Presidente da provincia nomeará quem o substitua; e nos impedimentos do Director da Aldêa, que não sejão imprevistos, e de caso repentino, fará a nomeação o Director Geral.
Art. 11. Em quanto servirem, terão a graduação Honoraria, o Director Geral de Brigadeiro, o Director da Aldêa de Tenente Coronel, e o Thesoureiro de Capitão; e usarão uniforme, que se acha estabelecido para o Estado Maior do Exercito.
José Carlos Pereira de Almeida Torres, Conselheiro d’Estado, etc.
Palacio do Rio de Janeiro em 24 de Julho de 1845, vigesimo quarto da Independencia e do Imperio. – Com a Rubrica de sua Majestade o Imperador. – José Carlos Pereira de Almeida Torres. Fonte: RODRIGUES, Cíntia Régia. Os Índios e Imigrantes: Aspectos Legislativos na
Província de São Pedro(1800 – 1850). São Leopoldo: Unisinos, 1999. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura Plena em História) Centro de Ciências Humanas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999. p. 33-41.
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ANEXO B – Excertos da Lei de Terras de 1850
LEI N.º 601 DE 18 DE SETEMBRO DE 1850
Dispõem sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuidas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de Colônias de nacionais, e de estrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara. Don Pedro Segundo, por Graça de Deus, e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional
e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Súditos que a Assembléia Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte.
[...] Art. 2°. Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derribarem matos, ou lhes
puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitoras, e demais sofrerão a pena de dois a seis anos de prisão, e multa de cem mil réis, além da satisfação do dano causado. Esta pena porém não terá lugar nos atos possessórios entre heréus confinantes.
[...] Art. 3°. São terras devolutas: § 1°. As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2°. As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por
sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
[...] § 4°. As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal,
forem legitimadas por esta Lei. Art. 4°. Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se
acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.
Art. 5°. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente, guarda- das as regras seguintes:
[...] § 4°. Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais Freguesias, Municípios ou Comarcas
serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, enquanto por lei não se dispuser o contrário.
Art. 6°. Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva, e morada habitual exigidas no Artigo antecedente.
[...] Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1°, para a colonização
dos Indígenas; 2°, para a fundação de Povoações, abertura de estradas, e quaisquer outras servidões, e assento de Estabelecimentos públicos; 3º, para a construção naval.
[...] Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro, certo número de
colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em Estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de Colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem.
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Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do Artigo antecedente. Art. 19. O produto dos direitos de Chancelaria e da venda das terras, de que tratam os Arts. 11 e 14
será exclusivamente aplicado, 1°, à ulterior medição das terras devolutas, e 2°, à importação de colonos livres, conforme o Artigo precedente.
[...] Art. 21. Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessário Regulamento, uma Repartição
especial que se denominará - Repartição Geral das Terras Públicas - e será encarregada de dirigir a medição, divisão, e descrição das terras devolutas, e sua conservação, de fiscalizar a venda e distribuição delas, e de promover a colonização nacional e estrangeira.
[...] Art. 23. Ficam derrogadas todas as disposições em contrário. Mandamos portanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento, e execução da referida Lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente, como nela se contêm. O Secretário de Estado dos Negócios do Império a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos dezoito dias do mês de Setembro de mil oitocentos e cinqüenta, vigésimo nono da Independência e do Império.
Imperador Com Rubrica e Guarda Visconde de Mont’alegre. Carta de Lei, pela qual Vossa Majestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que
houve por bem sancionar, sobre terras devolutas, sesmarias, posses e colonização. Para Vossa Majestade Imperial Ver. João Gonçalves de Araújo a fez. Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Câmara. Selada na Chancelaria do Império em 20 de Setembro de 1850. Josino do Nascimento Silva. Publicada na Secretaria de Estado dos Negócios do Império em 20 de Setembro de 1850. José de Paiva
Magalhães Calvet. Registrada a fl. 57 do Lv. 1° de Atos Legislativos. Secretaria de Estado dos Negócios do Império em 2
de outubro de 1850. Bernardo José de Castro. Fonte: Extraídos da Lei de Terras reproduzida In: IOTTI, Luiza Horn. Imigração e
Colonização – Legislação de 1747 a 1915. Caxias do Sul: EDUCS, 2001. p. 112-116.