UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA COMUNICAO NVEL MESTRADO
ELISA HOERLLE
INDSTRIA CULTURAL E GRATUIDADE NA MIDIATIZAO DO CAMPO EVANGLICO
SO LEOPOLDO 2013
ELISA HOERLLE
INDSTRIA CULTURAL E GRATUIDADE NA MIDIATIZAO DO CAMPO EVANGLICO
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao, pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Orientador: Prof. Dr. Jairo Getlio Ferreira
SO LEOPOLDO 2013
H694i Hoerlle, Elisa
Indstria cultural e gratuidade na midiatizao do campo evanglico / por Elisa Hoerlle. -- So Leopoldo, 2013.
105 f. : il. color. ; 30 cm. Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao, So Leopoldo, RS, 2013.
Orientao: Prof. Dr. Jairo Getlio Ferreira, Cincias da Comunicao.
1.Comunicao de massa em religio. 2.Comunicao Aspectos
religiosos. 3.Indstria cultural. 4.Religio e sociologia. 5.Midiatizao Cultura evanglica. 6.Cultura gospel. I.Ferreira, Jairo Getlio. II.Ttulo.
CDU 659.3:2 316.7 2:316
Catalogao na publicao:
Bibliotecria Carla Maria Goulart de Moraes CRB 10/1252
Porque dele, e por meio dele, e para ele so todas as cousas.
Romanos 11:36
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pelos auspcios.
Ao meu orientador, por apostar na minha pesquisa, e por conduzi-la para muito alm
das minhas expectativas.
A Marisa Lobo, um exemplo de gratuidade, por tem me incentivado em relao aos
meus objetivos. E tambm aos amigos Rolf Jesse Frstenau e Brenda Bianca Fstenau.
A quem sempre ama: Graziella Granata, Priscilla Borges Ribeiro, Maciel Goelzer e
Juarez Bes.
Aos colegas que de alguma forma colaboraram com suas discusses: Carol Casali e Jos
Eduardo Mendona Umbelino Filho.
Aos irmos do Farol, principalmente a Jos Ulisses Garcia.
Essa pesquisa no teria sido imaginada sem as provocaes imaturas do amigo Flvio
Mendona da Rosa.
O mundo social se esfora, na medida do possvel, por ser considerado como uma coisa bvia. A socializao obtm xito na medida em que essa qualidade de ser aceita como coisa evidente
interiorizada. No basta que o indivduo considere os sentidos-chave da ordem social como teis, desejveis ou corretos. muito
melhor (...) que ele os considere como inevitveis, como parte e parcela da universal natureza das coisas. Se isso for
conseguido, o indivduo que se desgarra seriamente dos programas socialmente definidos pode ser considerado no s como um idiota
ou um canalha, mas como um louco.
Peter Berger
RESUMO
O objeto desta pesquisa a tenso entre o fenmeno mercantil, que movimenta
produo e consumo de materialidades na cultura evanglica, e as suas referncias
religiosas. Questionamos em que sentido podemos entender a emergncia de uma
indstria cultural evanglica como fenmeno de midiatizao da religio, e que funes
distintas so exercidas por seus produtos no campo religioso. Nossa hiptese de trabalho
manifesta uma tenso espiritual, fruto da insero de um grupo religioso no mundo dos
objetos. Teoricamente, mobilizamos proposies sobre a midiatizao e sobre a
industria cultural. Nessa situao o escopo ser verificar manifestaes do esvaziamento
kentico e das dialticas de sublimao e de dessublimao na esfera da cultura
religiosa. A metodologia da pesquisa empreende um esforo pela superao das visadas
sobre a dominao pela tcnica. O corpus rene produtos muito diversificados,
organizados em categorias que revelam aes especficas.
Considerando os processos de midiatizao da sociedade, percebemos a
autonomizao do gospel em relao ao campo religioso originrio. A produo cultural
evanglica aciona operaes de instituies distintas; eclesisticas, econmicas;
artsticas. Contudo, organizada pelo gospel, que centraliza todas as suas disposies.
Uma delas, em especial, bastante simples, e garante o contato de circularidade entre os
atores da indstria: evanglicos criam para evanglicos.
Nossa pesquisa delineia uma situao social indeterminada, fecunda para
produzir inferncias sobre a mudana de contextos das instituies pelos processos de
midiatizao da sociedade. Percebemos essa transformao pelo enfrentamento do
campo religioso com o miditico, histricos concorrentes no mister de explicao geral
do mundo.
PALAVRAS-CHAVE: cultura gospel; indstria cultural; religio midiatizada; gratuidade; heterogeneidade;
sublimao; dessublimao.
ABSTRACT
The object of this research is the tension between the market phenomenon, that
moves production and consumption of materialities in the evangelical culture, and its
religious references. We question in what ways can we understand the emergency of an
evangelical cultural industry as a phenomenon of midiatized religion, and which distinct
functions are performed by its products in the religious field. Our work hypothesis
manifests a spiritual tension, product of the insertion of a religious group in the world of
objects. Theoretically, we mobilize propositions about midiatization and cultural
industry. In this situation, the scoop will be to verify manifestations of kenotic deflation
and of the sublimation and desublimation dialetics in the sphere of religious culture.
The research methodology takes an effort to overcome the views about the domination
by technique. The corpus gathers very diverse products, organized in categories that
reveal specific actions.
Considering the midiatization processes in society, we perceive the
empowerment of the gospel movement in relation to its original religious field. The
evangelical cultural production covers operations from distinct institutions; religious,
economical, artistic. It is, nevertheless, organized by the gospel culture, that centralizes
all its dispositions. One of them, in particular, is pretty simple, and guarantees the
circularity contact among the actors in the industry: evangelicals create for evangelicals.
Our research delineates an undetermined social situation, fruitful for making
inferences over the context change of the institutions by the midiatization processes in
society. We see this transformation by the coping of the religious with the mediatic
field, historical competitors in the role of general world explanation.
KEYWORDS: gospel culture; cultural industry; midiatized religion; gratuity; heterogeneity;
sublimation; dessublimation.
ndice de Figuras Figura 1: Excerto convite Expocrist 2012 .......................................................................26 Figura 2: Asaph Borba na capa da revista Msica Crist e Sonorizao............................53 Figura 3: Antigo Testamento Poliglota.............................................................................57 Figura 4: Bblia Letra Grande...........................................................................................57 Figura 5: Bblia Tropa de Elite de Cristo.......................................................................58 Figura 6: Bblia decorada com plumas pink, e com hinrio em anexo...............................58 Figura 7: Bblia Personalizada..........................................................................................59 Figura 8: Diagramao interna de uma Bblia comum ......................................................60 Figura 9: Diagramao de uma Bblia de estudo...............................................................61 Figura 10: As estrelas me mostram voc - filme de romance nacional...........................63 Figura 11: Smilingido e sua turma - revista infantil nacional.......................................64 Figura 12: Garota perfeita - livro de autoajuda para mulheres .......................................65 Figura 13: Christafari - Soulfire ......................................................................................67 Figura 14: Christafari - WordSound&Power ....................................................................67 Figura 15: Warriors, Christafari integrantes da banda interpretam missionrios.............69 Figura 16: Warriors, Christafari Mike Mohr e a esposa .................................................69 Figura 17: Warriors, Christafari esposa de Mohr danando ao redor do fogo .................69 Figura 18: Warriors, Christafari lder da tribo, inimigo dos cristos...............................69 Figura 19: Warriors, Christafari lder da tribo, em xtase religioso ................................69 Figura 20: Warriors, Christafari lder da tribo, em xtase religioso ................................69 Figura 21: Carol Celico ....................................................................................................70 Figura 22: Carol Celico e Cludia Leitte ..........................................................................71 Figura 23: Carol Celico cantando com Kak ....................................................................71 Figura 24: Carol Celico com Ana Paula e Andr Valado ................................................72 Figura 25: Meme Deus no muda estilo ........................................................................74 Figura 26: Capa filme O Pastor.....................................................................................76 Figura 27: Capa filme O Seqestro do Metr 123 .........................................................76 Figura 28: Redesenho capa filme O Pastor....................................................................76 Figura 29: meme MKpia.............................................................................................77 Figura 30: Capa filme Daddy Day Camp, de 2007 ........................................................78 Figura 31: Capa filme Eaters, de 2010 ..........................................................................78 Figura 32: Creme de cabelo Gospel Line ......................................................................79 Figura 33: Loja de moda Gospel ......................................................................................79
ndice de Tabelas Tabela 1: Trs fases da cultura gospel ..............................................................................19 Tabela 2: Encontro de Dispositivos ..................................................................................45
Sumrio
1 Introduo ................................................................................................................12 1.1 Caracterizao do objeto ..................................................................................16
1.1.1 Iconoclastia e demonizao.......................................................................21
1.2 Perguntas ...........................................................................................................22 1.2 Objetivos............................................................................................................23 1.4 Contexto emprico: o campo evanglico ...........................................................24 1.5 Um lugar de fala ................................................................................................27
2 Perspectivas terico-metodolgicas .........................................................................29
2.1 Acerca da midiatizao .....................................................................................29 2.1.1 O dispositivo como lugar de condensao de formaes da cultura ...........32
2.1.2 Tentativas de apropriao dos dispositivos pela indstria ..........................34
2.1.3 A produo cultural evanglica enquanto dispositivo ................................36
2.1.4 Afetao das configuraes religiosas por formaes da cultura................38
2.2 A carne e o esprito: os movimentos dialticos do desenvolvimento de Eros ..40 2.2.1 A dialtica da sublimao .........................................................................40
2.2.2 A dialtica da dessublimao ....................................................................42
2.2.3 gape e Kenosis .......................................................................................44
2.2.4 O Eros perfeito .........................................................................................45
2.4 Movimentos em busca do objeto .......................................................................47 2.3.1 Referncia preliminar................................................................................48
2.3.2 Para alm da tcnica .................................................................................50
3 Exploraes empricas .............................................................................................52
3.1 Mercantilizao dos produtos originais............................................................52 Asaph Borba......................................................................................................53
Segmentao do mercado de Bblias ..................................................................55
3.2 Apropriao dos gneros da indstria cultural secular ...................................62 Christafari .........................................................................................................66
Carol Celico ......................................................................................................70
3.3 Referncia direta a produtos da indstria cultural secular .............................74 3.4 Bens no miditicos com apelo gospel ..............................................................78
3.5 Produo demonizadora ...................................................................................79 Edies Ferramenta ......................................................................................................84
4 Concluso .................................................................................................................94 Bibliografia...................................................................................................................103
12
1 Introduo
Um longo perodo de contato da pesquisadora com os materiais proporcionou
que se concebesse a produo de bens simblicos evanglicos como uma indstria
cultural. Isto porque, aquilo que antes era fruto da criao popular pelas igrejas passou a
ser produzido por empresas que no apresentam necessariamente vnculo institucional
com alguma instituio religiosa, e, quando apresentam, como, por exemplo, a Casa de
Publicaes da Assemblia de Deus (CPAD), orientam suas operaes para alm de
suas fronteiras, com o intuito de abranger a maior audincia possvel. Nesse caso, para
dar uma idea da dimenso pretendida, a coletnea de hinos religiosos mais tradicional
do Pas, a Harpa Crist, vendida pela CPAD no catlogo da Avon por R$ 4,00.
A indstria cultural evanglica um fenmeno que contemplaria o surgimento
de novas empresas que dirigem suas atividades ao pblico em questo, atuando tanto na
criao de bens simblicos originais quanto na traduo e importao de produtos
estrangeiros, majoritariamente norte-americanos. Editoras, gravadoras, estdios de
cinema, lojas segmentadas. No novo milnio, os evanglicos, alm de estarem presentes
nos meios tradicionais, possuem seus prprios recursos sobre produo, distribuio e
veiculao de seus produtos.
sabido que as empresas apresentam um resduo pr-industrial, a saber,
evanglicos preferencialmente contratam evanglicos. A profissionalizao do setor
significa que evanglicos se capacitam e so incorporados no mercado gospel.
Eventualmente algum profissional de outra orientao religiosa pode trabalhar para a
indstria, mas no como responsvel pela criao dos produtos.
Tomando o caso anterior, um produto como o hinrio Harpa Crist agrega
operaes religiosas (canes de louvor), operaes miditicas (impresso em massa) e
operaes econmicas (venda num catlogo direcionado ao pblico feminino das
classes B e C).
Observamos, nesse processo, uma transformao do estatuto da cultura gospel,
que se reconfigura com a midiatizao da religio. Quer-se dizer com isto que o gospel
transforma-se de expresso da religiosidade evanglica, produzida por operaes
estticas consagradas e facilmente reconhecveis em uma pluralidade de discursos,
produtos e formatos inerentes a indstria cultural. A penetrao da indstria em
13
mltiplos segmentos da religio evanglica (mulheres, crianas, negros, universitrios)
realizada a partir da incorporao de gneros e padres estticos da indstria cultural
secular. Assim, para cada produo dela, ser fcil encontrar um similar pela indstria
gospel: um filme de ao, um livro de romance, um lbum de rap.
Outro aspecto importante que ajudou na formulao das proposies e
questionamentos iniciais a oferta de produtos que extrapolam o campo miditico.
Afora as lojas tradicionais, as livrarias evanglicas, surgiro iniciativas curiosas, como
agncias de viagens, clnicas de sade, bares, empresas que produzem festas de
casamento, confeces masculinas e femininas, grifes de surfwear, etc. Negcios
similares ao da indstria secular, que focam suas atividades no pblico evanglico.
Alm disso, vale a pena reforar que a indstria secular apresenta-se como uma
mediao importantssima. Nesse ponto, no se trata apenas da indstria cultural incidir
sobre as prticas evanglicas, porque tambm o gospel se apropria de lgicas e aes da
indstria secular para estruturar atividades que correspondem determinadas funes
entre o pblico almejado. Por isso, o que acontece l (no mundo), acontece aqui (entre
os evanglicos).
Num determinado momento, porm, a pesquisa defrontou-se com um problema
de ordem metodolgica, quando a proposta sobre uma indstria cultural evanglica
demonstrou-se infrutfera para produzir novas descobertas sobre o fenmeno. Se na
perspectiva frankfutiana a indstria cultural subsume os processos criativos e
administrativos da cultura lgica econmica, apostamos que o processo no
homogneo, que a emergncia de mltiplas expresses simblicas pelos evanglicos
no pode ser explicada por aes econmicas somente. Uma anlise como essa
destituiria aspectos espirituais e comunitrios importantes, suprimindo a experincia de
transcendncia que vivida pelo fiel.
Por causa disso o desafio que se enfrenta por um lado conservar a idea de uma
indstria cultural, mas por outro lado super-la. Produzir um tensionamento que
contemple o que est para alm das processualidades de dominao. O mercado que
expomos se origina com a constituio do campo evanglico enquanto pblico,
ampliando-se pelo crescimento da religio, e tambm pela incorporao de lgicas de
midiatizao introduzidas pelos seus atores.
Este tensionamento considera os discursos e as prticas religiosas em interao
com as lgicas da indstria cultural. O cerne da proposta religiosa crist se apia a
partir de uma noo extrema de alteridade, cujo exemplo perfeito se materializa na
14
pessoa de Jesus Cristo. A doutrina da trindade ensina que ele um ser eterno, que
coexistia com o Pai e o Esprito Santo na glria celestial, e assim o apstolo Joo inicia
seu evangelho, declarando que No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus1. O cristianismo envolve uma forma de amor radical, que instiga um despojamento profundo.
Nesse sentido a trindade se divide, gerando entre os homens a encarnao de seu
Filho. E o Verbo se fez carne, e habitou entre ns, e vimos a sua glria, como a glria do unignito do Pai2. Este movimento de transformao de natureza, que descende da condio eterna vida comum humana, designado pela teologia crist como kenosis, palavra da lngua grega para esvaziamento. Para alm das distines de amor gape (incondicional, gratuito), e amor Eros (desejo por um objeto que preenche determinada falta no sujeito); o amor kentico incorpora o sofrimento. Em Jesus, este amor est
sempre presente, desde a encarnao at sua morte sacrificial. Sua vida no foi para si
mesmo, mas uma forma de culto, uma consagrao vontade do Deus Pai. O propsito
da vida de Jesus se cumpre integralmente na cruz, quando consuma sobre si mesmo o
castigo das ofensas humanas. Nesse enredo dramtico, o propsito da vida humana de
Jesus um propsito de mortificao, enfim, de esvaziamento.
O ritual da eucaristia, pelos catlicos, ou da ceia do Senhor, pelos protestantes,
a suma geral da teologia da crist, porque celebra o amor kentico derramado no
sacrifcio vicrio de Cristo, trazendo a todos alimento de vida e esperana de salvao.
Dessa forma, todo aquele que deseja seguir a Jesus convidado a assumir uma atitude
semelhante de esvaziamento, negando a si mesmo.
Pode-se perceber duas tendncias na interpretao do "negar-se a si mesmo" nas cincias humanas. Por um lado, ele visto como uma proposta aniquiladora da pessoa, e uma alienao do sujeito, onde a cruz aparece como a negao do homem. Por outro lado, h uma viso antropolgica e filosfica que defende a necessidade do "negar-se a si mesmo" como um descentramento da pessoa, para que ela possa aprender a ser com o outro" e "ser para os outros". (Cavalcanti & Ceballos 1999 p. 54) Para essa antropologia, o modelo seguir a Cristo: Ele no existe para si prprio, mas para o Pai e para os irmos. Na qualidade de modelo humano, a vida e o comportamento de Jesus est a nos dizer que "existir-para-os-outros" (Pai, irmos)
1 Joo 1:01 (ARA) 2 Joo 1:19 (ARA)
15
o caminho integral da humanizao do homem. Na determinao do que seja humano ou desumano, a antropologia teolgica crist tem uma criteriologia bem precisa: o modo de ser humano vivido por Jesus Cristo, a saber, "ser com" os outros e "para os outros". (Cavalcanti & Ceballos 1999 p. 57)
Quem ama a Deus no vive mais para si mesmo, e estar disposto, em ltima
instncia, a morrer pelo seu nome, tornando-se um mrtir. O amor kentico expressa
uma condio trgica, resultando sempre em alguma espcie de sofrimento e de
mortificao. Contudo, se algum quiser entender a tragdia, h que superar sua
aparncia de loucura, resgatando a prerrogativa existencial, que enche a vida humana de
significado, de forma que o sentido porque vivemos o mesmo sentido porque
morremos. A tragdia a realizao mxima do propsito e da natureza humana.
Vale ressaltar que, embora trgico, o amor kentico no uma expresso
masoquista, porque no se compraz no sofrimento, mas no resultado que este
proporciona. Uma vida abundante, transformada, acolhida. O esvaziamento , em ltima
anlise, o poder para transformao, a realizao da graa.
Na histria o mistrio da encarnao se nos apresenta como o encontro visvel, por excelncia, entre natureza e graa. Eis o esplendor do todo que se manifesta no fragmento da histria. A graa possibilita, enfim, o nascimento de uma casa do homem novo com (...) novos costumes, com um novo modo de agir em Cristo. (Burocchi 2011 p. 108-109) Neste sentido, o ser humano, mais que simples destinatrio passivo da graa de Deus tambm aquele que, livremente, acolhe o amor doado, agindo de acordo com o dom recebido, tornando-se, assim, partcipe do movimento gracioso da autocomunicao divina. A graa supe a natureza. A graa no destri a natureza, mas a plenifica. (Burocchi 2011 p. 108)
Esta breve exposio delineia o esprito cristo na sua forma mais pura. Seu
carter ideolgico pode causar estranhamento aos que no esto familiarizados com o
imaginrio referido. Podem inclusive, levantar questes legtimas. Quem um dia amou
com tanta intensidade? Que prticas dos atores religiosos testemunham esta obra de f?
No Brasil, a religio crist evanglica ocupa um espao importante na sociedade
civil. Entretanto, marcada pela fragmentao, por disputas doutrinrias e por
diferenas de costumes, redundando numa multiplicidade de denominaes distintas.
No lugar em que o amor kentico parece se esvair, a emergncia de um mercado de
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bens simblicos religiosos assume uma dimenso paraeclesistica, reunindo atores de
um campo disperso.
Nosso projeto trabalha com um fenmeno mercantil, que movimenta produo e
consumo de materialidades na cultura evanglica. Enquanto proposio, enfrenta-se
com uma tenso espiritual, manifesta pelo deslocamento de significado da noo de
esvaziamento. A dissertao, em seu primeiro captulo, profere a caracterizao deste
objeto, contextualizando um fenmeno miditico no mbito das prticas que o campo
religioso organiza em relao aos signos.
No segundo captulo, delineiam-se os pilares da nossa fundamentao terica.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento da midiatizao da sociedade, e a visada do
dispositivo como processo condensador de determinadas interaes. Em segundo lugar,
a leitura que Marcuse faz da teoria freudiana sobre os movimentos de ascenso e
descenso de Eros na sociedade industrial. Comparamos estas dinmicas do desejo ao
esvaziamento sagrado.
No terceiro captulo, fazemos a anlise dos observveis, retomando alguns
conceitos propostos pela teoria crtica. Separamos uma seo especfica para contrastar
determinadas interaes de antagonismo do campo religioso com os meios de
comunicao de massa. A concluso tenta responder e reproblematizar as questes
postas no decorrer da pesquisa.
1.1 Caracterizao do objeto Entende-se que a produo simblica evanglica transformou-se de uma
expresso de cultura popular para um carter industrial-massivo. A dissertao estrutura
sua descrio do fenmeno de midiatizao da cultura gospel pela diviso do processo
em trs etapas:
O termo gospel significa evangelho, ou boas novas do Reino de Deus No seu
sentido estrito, corresponde a msica de igrejas negras do sul dos Estados Unidos.
Entretanto, a pesquisa trabalha o termo gospel no sentido amplo, designando a
expresso cultural do campo religioso correspondente, que existe desde a reforma
protestante.
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O gospel em sua primeira fase corresponde produo de canes executadas
nas congregaes, bem como por uma incipiente produo de livros doutrinrios, pela
criao de eventos com execuo de cantatas3, de peas de teatro e outras prticas
comunitrias de cultura popular. Ele emerge de instituies do campo evanglico, mas
sofre uma metamorfose, tornando-se o que Cunha (2004) sistematiza como cultura
hbrida, adquirindo caractersticas especficas, concretizando-se como estilo de vida.
As igrejas evanglicas herdaram da Reforma Protestante o iconoclasmo, o
repdio s imagens. A fase iconoclasta corresponde a uma produo incipiente, em que
existem somente bens simblicos originais. incorreto afirmar com isso que no havia
imagens, pois, na verdade, alguns materiais apresentavam ilustraes bblicas que
exerciam uma funo pedaggica. Por iconoclasmo designamos um perodo em que a
religio no elaborava formas de espetculo prprias da sociedade industrial.
Nessa etapa, o canto congregacional das igrejas negras do sul dos Estados
Unidos demonstra uma inovao esttica, que introduz o espetculo no cenrio
evanglico. Ento o gospel surge como o germe discursivo daquilo que, em anos
seguintes, constituir uma cultura hbrida. Uma transformao que comea no incio do
sculo XX nos Estados Unidos, mas que, no Brasil, s inicia na fase seguinte, pela
dcada de sessenta.
O surgimento de uma sociedade de massas propulsionou a quebra da
transcendncia das imagens com a reprodutibilidade tcnica4. As imagens perdem o
carter religioso com os procedimentos de indstria cultural. Com isso, a contemplao
esttica deixa de ser sinnimo de adorao ou idolatria. As posturas iconoclastas
tornam-se obsoletas, e aberta a possibilidade de transformao das prticas sobre a
imagem, inclusive entre os evanglicos.
A proibio de idas ao cinema e de audincia da televiso naturalmente
representam um resduo iconoclasta, em que os evanglicos se posicionam de forma
arredia inovao tcnica. um discurso apocalptico, que perdura at hoje em squitos
mais conservadores da religio. Por outro lado, entendemos que a reconciliao dos
evanglicos com as imagens inicia com a insero de programao das igrejas no rdio
e na televiso, usando os meios como suporte a servio das mensagens proselitistas.
3 Cantata uma encenao musicada de histrias bblicas, muito comum em datas especiais, como a pscoa e o natal. 4 Esse argumento elaborado por Benjamin em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcinica, e revisto por Arlindo Machado em o quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges.
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Ento o gospel sofre uma primeira metamorfose, quando deixa de ser uma
expresso de louvor das igrejas negras, configurando-se como um movimento cultural
adaptado aos meios de massa. Na fase da igreja eletrnica, o gospel constitui uma
formao esttica especfica, identificvel por caractersticas marcantes no jeito de
pregar, de vestir e de danar durante os cultos.
Na segunda fase, ainda que no se valendo de fins lucrativos, o gospel incorpora
tcnicas industriais. As igrejas ampliam seu espao de atuao, tornando-se presentes
nos meios de comunicao de massa. o incio da religio midiatizada, situada na
passagem da Grafosfera Midiosfera (estgios especficos de seu desenvolvimento, que
sero explicados no captulo seguinte). Entende-se que o protestantismo, na sua
dimenso comunicacional, sempre foi caracterizado como uma religio da palavra
escrita. Nesse sentido a mudana do suporte tambm uma mudana de paradigma, que repercute em transformaes das lgicas prprias da religio, por exemplo, quando na
igreja eletrnica os cultos so conduzidos como programas de auditrio.
Consideramos que a terceira fase quando surgem as condies para que o
gospel se descole de suas instituies religiosas de origem. Tal autonomizao foi
percebida pela pesquisadora primeiramente em sua interseco com o campo
econmico, pelo surgimento de empresas sem vnculo institucional que produzem para
o pblico religioso.
Mas um aprofundamento da questo esclareceu que a cultura gospel ampliou seu
escopo de atuao, resultando ao mesmo tempo em produes de consumo cultural e em
expresses midiatizadas sem fins lucrativos. Nesse mrito, a internet farta em
exemplos: surgiro redes sociais, blogs de opinio, aplicativos de Bblia para celular,
memes para facebook com mensagens que incentivam a santificao. Enfim, produes
simblicas que alimentem a formao de uma identidade comum, o gospel.
Nosso objeto descreve um fenmeno produo de bens simblicos; entretanto,
entendemos que o gospel nem sempre produto, e que quando produto, nem sempre
miditico. Feita essa ressalva, continuamos nossas proposies sobre um fenmeno de
consumo cultural, que, segundo Canclini:
[O consumo ] o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriao e os usos dos produtos. [O consumo cultural ] o conjunto de processos de apropriao e usos de produtos nos quais o valor simblico prevalece sobre os valores de uso e de cmbio, ou onde ao menos estes ltimos se configuram subordinados dimenso simblica. (apud Cunha 2004 p. 231)
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A incorporao de gneros de indstria cultural pelos evanglicos modifica
significativamente a cultura gospel, quando apropria formaes estticas de grupos
seculares, dando origem a manifestaes inditas. Ento uma msica evanglica pode
ser um hino religioso, uma balada sertaneja ou uma cano de choro. Pode falar sobre a
graa redentora de Jesus, sobre como vestir-se adequadamente ou sobre como manter as
finanas em ordem. Assim, para cada produo feita pela indstria cultural secular, ser
fcil encontrar um similar pela indstria gospel: um filme de ao, um livro de romance,
um lbum de rap. A proposta sobre o gospel que ele no mais um segmento cultural
especfico, o que Magali Cunha (2004) denomina por uma cultura hbrida que
converte diversos discursos sociais s suas prticas.
Entendemos que o gospel designa uma materialidade, que na sua origem est
vinculada a instituies eclesisticas, mas que se autonomiza com a midiatizao da
religio. Na terceira fase, entra no circuito da indstria cultural pela produo e
consumo em massa de bens miditicos. Esse novo mercado rene operaes de
instituies distintas: empresariais, religiosas, artsticas. uma zona de passagem, um
espao heterogneo da cultura, que, no entanto, organizado pelo gospel em suas aes,
formaes estticas e discursividades.
Referencias de trabalho para anlise do gospel
1 Fase Reforma
2 Fase Anos 60
3 Fase Anos 90
Marco cultural Msica negra do sul dos EUA no incio do sc XX
Cultos conduzidos como programas de auditrio
Incorporao dos gneros da indstria cultural secular
Prticas em relao aos signos
Iconoclasmo protestante; grafosfera
Reconciliao com as imagens; ingresso na midiosfera
Fetiche da mercadoria
Produes
Somente os produtos originais: Bblias, livros doutrinrios, hinos religiosos, eventos comunitrios
Programas de rdio e televiso com mensagens proselitistas
Similares s da indstria cultural secular em todos seus bens e servios: filmes de romance, festivais de rock, livros de auto-ajuda, etc.
Tabela 1: Trs fases da cultura gospel (fonte: a autora)
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A partir desse quadro inferimos que, em contextos especficos, determinadas
prticas so desenvolvidas, resultando em produes que podem ser agrupadas
conforme as fases descritas. Essas produes remetem a contextos tcnicos e
tecnolgicos que atualizam os dispositivos, criando processos que incidem sobre o
marco cultural em novos usos, interaes e apropriaes. Uma formulao objetiva
destes conceitos ser feita no captulo dois, com base nas proposies de Ferreira e
Braga.
Explicitaremos tambm que, em Marcuse, o problema central da cultura se
articula a partir da questo da tcnica, que, pela dominao da natureza, garante ao
homem o prolongamento e melhoria da sua existncia. Em seu pensamento, a tcnica
est atrelada a uma ideologia subjugadora, que produz na sociedade a hegemonia dos
homens pelos homens, caindo na dessublimao. Todo esse processo atravessado por
linguagens, que mediam a produo dos significados, infringindo-lhes suas valoraes.
Consideramos que o caminho de investigao pelo aporte dos dispositivos no
o mesmo forjado por Marcuse, pois este sugere que a tcnica dominante. No esquema
acima, a tcnica est atravessada pelo marco cultural e pelas prticas sobre os signos.
Somente quando realizada em materialidades, atravessando produtos, ela agencia suas
determinaes sobre os processos culturais de usos e interaes. Por um lado,
reconhecimento que as inovaes tcnicas da era industrial produziram uma
transformao dos interpretantes, abrindo caminho para autonomizao da cultura
gospel do campo religioso que a originou. Mas, por outro lado, compreendemos a
incidncia da cultura e das prticas sobre as tcnicas e tecnologias.
Em nossas proposies sobre a emergncia de um mercado de bens simblicos
religiosos anlogos aos produtos da indstria cultural secular, a midiatizao da
sociedade vista como uma transversalidade, presente em todas as dimenses do
fenmeno: scio-antropolgica, semio-discursiva e tcnica-tecnolgica. Consideramos
que essas trs dimenses esto em processo, repercutindo exaustivamente umas sobre as
outras. Embora no seja dominante no processo dos dispositivos, a tcnica adquire um
poder agenciador, realizando aspiraes sociais que esto latentes na sua forma de
desejo. Este poder se manifesta em sua disposio quantitativa, pela escala que
consegue determinar em relao a algum determinado fenmeno.
21
1.1.1 Iconoclastia e demonizao Na esfera da cultura e das prticas, como j foi dito, a quebra da aura da imagem
na era industrial gera condies para que os evanglicos se desloquem em termos de
meios, incorporando tcnicas de produo prprias de grupos seculares que geram uma
circulao de produtos inditos.
A midiatizao da cultura gospel transforma a sua relao com as igrejas
evanglicas, suas instituies de origem, gerando um espao novo de atuao. O
processo carrega uma ambiguidade, posto que os evanglicos se midiatizam, mas
reproduzem um resduo ideolgico iconoclasta em relao aos meios de comunicao
de massa. A pesquisa prope que resduos no so somente sobras de processos
anteriores, so atualizaes destes mesmos processos, engendrando lgicas e valores
que lhes garantem permanecer em circulao.
A observao preliminar dos observveis pela pesquisadora destacou um grupo
de bens simblicos que merecia ser salientado em relao aos demais. Trata-se de
produtos miditicos que cumprem uma funo especfica dentro da indstria gospel:
demonizar a produo cultural secular. So produtos apocalpticos, no no sentido
bblico, mas no sentido da formulao proposta por Umberto Eco: discursos alarmistas
que repugnam a cultura de massas. So mensagens que carregam um resduo do
iconoclasmo protestante.
Os produtos apocalpticos da indstria gospel so uma forma de resistncia
industria cultural secular. Mas ento estabeleceu-se uma controvrsia, porque os
mesmos produtos que demonizam as instituies miditicas apresentam operaes
idnticas em seus processos. Os evanglicos, alm de estarem presentes nos meios de
massa tradicionais, apropriam-se de lgicas de indstria cultural, mas alguns de seus
produtos so destinados a denegrir essas mesmas instituies. Os produtos
demonizantes nem existiriam, no fossem as instituies que tanto criticam. O discurso
pode ser apocalptico, mas a prtica integrada em relao cultura de massas. Ento o
que acontece l (no mundo), acontece aqui (entre os evanglicos), mas h resistncias,
e, sobretudo, contradies.
Em suma, prope-se que os produtos da indstria cultural evanglica que
demonizam a indstria cultural secular carregam um discurso ideolgico em relao aos
meios, assim o fazem porque esto imbricados com resduos do iconoclasmo
22
protestante. So produtos que carregam uma contradio interna: so integrao e
apocalipse, articulao e resistncia.
Quando os evanglicos tomam parte dos dispositivos interacionais da sociedade,
torna-se inquietante resolver a contradio que faz alguns grupos do campo religioso
demonizar estes processos. Nesse cenrio complexo, muitas perguntas podem ser
propostas. De que forma os evanglicos pensam essas transformaes? Que repertrios
mobilizam para isso?
Em se tratando de um campo fragmentado, um consenso sobre estas questes
torna-se invivel. A pesquisa tomar como recorte apenas um objeto do gnero, que
fortuitamente fornea indcios de algumas das posies religiosas em torno da
comunicao e da cultura humana.
Esta questo e as demais perguntas da pesquisa foram estruturadas em duas
instancias; a primeira se move para interpretao antropolgica de um fenmeno de
natureza miditica. A segunda rene um conjunto de questes parciais, que orienta a
caracterizao do objeto enquanto situao social indeterminada.
1.2 Perguntas A pergunta geral em relao s nossas investigaes foi desenvolvida em contato
com tenses percebidas na interpretao do nosso objeto. Essa questo pode ser
resumida pela seguinte proposta:
De que forma o esvaziamento kentico e as dialticas de sublimao e dessublimao se articulam em aes, formaes estticas e discursividades entre os atores da indstria cultural evanglica, compreendida no ambito dos processos de midiatizao?
Para tentar responde-la, precisaremos de algumas questes auxiliares, que
contextualizam a problematizao. So elas:
Em que sentido podemos entender a emergncia de uma indstria cultural
evanglica como fenmeno de midiatizao da religio?
23
Considerando a heterogeneidade da cultura, que funes distintas so cumpridas
por estes materiais da industrial cultural no campo religioso?
Que motivos justificam a ocorrncia simultnea de midiatizao e de resduos
iconoclastas pela indstria cultural evanglica?
Que propostas do campo evanglico sobre a comunicao humana se relacionam
com o fenmeno estudado?
1.2 Objetivos
Como foi dito anteriormente, o projeto caracteriza uma situao social
indeterminada, que demanda novas regras interpretativas para sua compreenso.
Apresentamos o fenmeno como uma indstria cultural, relativizando a acepo do
termo, considerando sua ocorrncia em imbricaes heterogneas com outras
disposies. Esse primeiro objetivo ser realizado pelo acionamento de duas referncias
tericas distintas: o aporte do dispositivo interacional e o ensaio marcusiano dos
movimentos dialticos da cultura.
O objetivo seguinte, ainda no mbito descritivo, trabalhar o gospel como uma
instituio que se inscreve em processos de midiatizao da sociedade. Esta questo
contextualiza as demais perguntas de pesquisa, um escopo desenvolvido no captulo de
caracterizao de nosso objeto. A midiatizao ocasiona a quebra da aura da imagem, e
esta quebra abre caminho para a reconciliao do campo evanglico com a
contemplao esttica, proporcionando o surgimento de um mercado de bens simblicos
e miditicos. Todavia essa anuncia s imagens no ocorre na cultura gospel sem
tenses. Nesse sentido, estudaremos a ocorrncia dos resduos da ideologia iconoclasta,
levando em considerao as propostas do campo religioso sobre a comunicao
humana.
Faremos, em nossas exploraes empricas, um mapeamento do nosso objeto
por categorias que organizam os materiais segundo indcios de processualidades
especficas. Relacionamos a esse esforo nosso prprio conceito de indstria
evanglica, que precede todas as questes posteriores. Quer dizer, um espao de
circulao de produtos direcionados ao segmento, gerado por empresas que no
apresentam vnculos denominacionais imediatos, e que se apropriam dos gneros da
24
indstria cultural secular em suas criaes. Consideramos a heterogeneidade da cultura,
e objetivamos salientar que funes distintas so cumpridas por estes materiais no
campo religioso, e como este ltimo se posiciona frente s tenses em anlise. Nosso
captulo de anlise emprica realizar esses dois objetivos com o auxlio de autores que
comentam a teoria crtica da comunicao.
Superado os aspectos descritivos, a problematizao da pesquisa se estrutura no
espao de tenso entre sublimao e dessublimao em aes, formaes estticas e nos
discursos dos produtos evanglicos. Interpe-se a esses dois processos um espao de
crena prprio do campo religioso, o esvaziamento kentico. O objetivo nessa etapa
verificar as dinmicas dialticas destes trs dispositivos nas materialidades da indstria.
Como questo de pesquisa, foi formulada no desenvolvimento do referencial terico e
em relao com a entrada da religio evanglica no mundo dos objetos.
A realizao desses objetivos deve permitir, por inferncias, visitar as discusses
da linha Midiatizao e Processos Sociais sobre as relaes entre midiatizao,
indstria cultural, heterogeneidade e gratuidade, tomando como referncia para esta
ltima um conceito de alteridade religiosa radical, a kenosis.
1.4 Contexto emprico: o campo evanglico A proposta da pesquisa investiga a autonomizao da cultura gospel como uma
transversalidade que perpassa diversas instituies, e por isso o trabalho no cita
nenhuma igreja especfica. No entanto, para esclarecer o que a pesquisa define como
campo religioso evanglico no Brasil, reproduz-se aqui a categorizao da pesquisadora
Magali Cunha (2004 p. 17-18), que organiza uma sntese denominando seis grupos
principais:
Protestantismo Histrico de Migrao, que tem razes na reforma do sculo XVI, chegou ao Brasil com o fluxo migratrio estabelecido a partir do sculo XIX, sem preocupaes missionrias conversionistas. representado pelas igrejas Luteranas, Anglicana e Reformada;
Protestantismo Histrico de Misso, tambm originado da Reforma
do sculo XVI, veio para o Brasil trazido por missionrios norte-americanos no sculo XIX. Corresponde s igrejas Congregacional, Presbiterianas, Metodista, Batista e Episcopal;
25
Pentecostalismo Histrico, (...) veio para o Brasil no incio do sculo
XX com objetivo missionrio. caracterizado pela doutrina do Esprito Santo (...), caracterizado pela glossolalia (o falar em lnguas estranhas). Composto pelas Igrejas Assembleia de Deus, Congregao Crist do Brasil e Evangelho Quadrangular;
Protestantismo de Renovao ou Carismtico, que surgiu a partir de
expurgos e divises no interior das chamadas igrejas histricas, em especial na dcada de 60, caracterizado por posturas influenciadas pela doutrina pentecostal. (...) formado pelas Igreja Metodista Wesleyana, Presbiteriana Renovada e Batista de Renovao, entre outras;
Pentecostalismo Independente, que, sem razes histricas na Reforma
do sculo XVI, surgiu (e surge ainda hoje) de divises teolgicas ou polticas nas denominaes histricas a partir da segunda metade do sc. XX. Tem como especificidade sua composio em torno de uma liderana carismtica, a pregao da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual, a prtica constante de exorcismos e curas milagrosas e o rompimento com o ascetismo pentecostal histrico. Sua enumerao dificlima dada a profuso constante de novas igrejas: entre outras, Deus Amor, Brasil para Cristo, Casa da Bno e Universal do Reino de Deus.
Pentecostalismo Independente de Renovao (...) Possui as
caractersticas do Pentecostalismo Independente (...) mas diferem dele por terem como pblico-alvo as classes mdias e a juventude, estruturando seu modo de ser para alcan-los. Esse modo de ser atenua a nfase no exorcismo e nos milagres e ressalta a prosperidade e a guerra espiritual. Grupo de igrejas compostas pela Renascer em Cristo, Comunidades (Evanglicas, da Graa), Sara Nossa Terra e Bola de Neve, entre outras.
As grandes empresas da indstria evanglica no costumam apresentar vnculo
institucional, nem restringir o pblico-alvo a igrejas especficas. A exceo disto o
protestantismo histrico de migrao, que ainda produz somente bens simblicos
originais (ver o captulo 2.1.4) e no participa expressivamente do fenmeno descrito.
Fundado por tentativas estrangeiras, o campo evanglico brasileiro se desenvolve entre
disputas de sentido. Uma dinmica sectria, conseqente das tentativas de
estabelecimento de coeso interna, ou ortodoxia. Em relao a esse assunto, Cunha
(2004 p. 74) explica que:
Os missionrios que implantaram o Protestantismo histrico de misso no Brasil adotaram uma espcie de uniformidade na propagao desses elementos da f protestante (teologia, costumes, forma do culto) mas, ao mesmo tempo, mantiveram o esprito divisionista. No Brasil, isso se configurou e se consolidou por meio da converso de uma cultura religiosa para outra, o que significou que o fato de ser minoria levava
26
os grupos protestantes a reforarem sua coeso interna, com base em racionalidades religiosas. Dessa forma, a caracterstica cismtica e divisionista do protestantismo encontrou espao no Brasil e provocou muitos conflitos. Havia concorrncia entre as denominaes, agravada pela passagem de fiis e pastores de uma para outra e pelas polmicas, como por exemplo, em relao aos batistas, que rebatizavam os fiis que se transferiam de outras igrejas protestantes.
Em 2012, poucos meses antes da divulgao das caractersticas gerais da
populao do Censo Demogrfico de 2010, uma organizao paraeclesistica chamada
Sepal (Servindo Pastores e Lderes) divulgou uma estimativa ousada, que previa 26,8%
em 2011 e com uma expectativa de crescimento estimando 46,7% at 2020. A Sepal
usou o censo de 2000 e uma pesquisa da Datafolha de maro de 2007.
A estimativa da organizao foi replicada no convite da Expocrist, uma feira de
negcios que rene produtores e distribuidores da indstria no mega centro de
exposies Anhembi, em So Paulo5.
Figura 1: Excerto convite Expocrist 2012
Entretanto os resultados do censo de 2010 mostraram uma realidade aqum da
expectativa do setor: os evanglicos atualmente representam 22,2% da populao
5 Em 2013 a Expocrist no foi realizada, porque a empresa responsvel contraiu vrias dvidas, deixando de pagar o aluguel do parque de eventos. Concomitantemente, uma empresa do grupo Globo lanou uma verso concorrente, a Feira Internacional Crist (FIC). Ainda no podemos interpretar o significado dessa interface da indstria secular com um fenmeno mercadolgico criado por e para evanglicos.
27
brasileira, o que corresponde a 42,3 milhes de indivduos. De uma forma ou de outra
os evanglicos emergem como uma potncia mercadolgica, pois mesmo dispersos em
milhares de denominaes com posicionamentos doutrinrios especficos, so unidos
enquanto consumidores em potencial.
Essa insero dos evanglicos no circuito industrial de produo e consumo
expressa uma tenso sensvel, quando as transformaes da sociedade penetram nos
significados das instituies, mudando sua maneira de agir no mundo. Nesse sentido
nos interessa trabalhar uma noo especfica de cultura, elaborada a partir das dinmicas
entre desejo e plenitude. Dessa forma, considerando a midiatizao da sociedade, ser
possvel delimitar o objeto de pesquisa; uma situao social indeterminada, que emerge
num espao de disputas de sentido da cultura.
1.5 Um lugar de fala
Sobre o lugar de fala que ocupa e que motiva as formulaes e questionamentos
presentes no projeto, cabe nesse ponto relatar brevemente sua situao nos processos
descritos. A pesquisadora foi criada em uma grande igreja evanglica6, que de vrias
formas promovia interao entre os jovens, atravs de festas, retiros, cultos e outros
eventos que geram uma rede de relacionamentos separada de interferncias exgenas,
sustentando contedos especficos. O posicionamento apocalptico em relao aos
produtos miditicos seculares era um contedo recorrente, que ganhava destaque nas
pregaes direcionadas aos adolescentes. Alguns lderes de jovens no somente
desaprovam o consumo de msica secular, como tambm fazem campanha entre seus
discpulos, incentivando-os a quebrarem seus discos, ou a fazerem uma varredura em
seus computadores, eliminando qualquer distrao que os desvie do propsito.
Fundada ou no na realidade, esse tipo de preocupao demonstra que os atores
do campo religioso reconhecem nos media um grande poder de agenciamento. Ento o
ingresso da pesquisadora na faculdade de comunicao gerou um desconforto sobre esse
este discurso apocalptico, porque despreza conhecimentos estabelecidos de um campo
6 Da qual foi desvinculada no incio da fase adulta. Hoje congrega num movimento emergente, que prope uma tolerncia em relao a posies doutrinrias, privilegiando a orao como forma de comunho com o divino.
28
de conhecimento em relao aos processos comunicacionais. Entretanto, a produo de
pesquisa sobre mdia e religio apresenta empecilhos semelhantes, ignorando
processualidades necessrias para um entendimento mais preciso do objeto. Dessa
forma, a pesquisadora encontra-se numa zona de passagem, que lhe permite construir o
objeto a partir de transversalidades, articulaes e resistncias.
29
2 Perspectivas terico-metodolgicas 2.1 Acerca da midiatizao
O processo de midiatizao da sociedade se caracteriza pela subsuno dos
processos sociais s lgicas dos meios. Enquanto fenmeno scio-histrico, permite
vrias formas de localizao. Faremos nossa exposio no mbito da linha de pesquisa
Midiatizao e Processos sociais do programa de cincias da comunicao da
Unisinos. Introduzimos o assunto a partir de um grfico elaborado por Pedro Gilberto
Gomes (2011b p.2). De acordo com essa formulao, possvel perceber a evoluo
dos dispositivos de comunicao em relao com a complexidade da sociedade. A
diviso por estgios condensa caractersticas de eras especficas, em relao aos seus
processos interacionais de referncia, que tambm podem ser entendidos como modos
de produo dominantes.
30
Pedro Gilberto Gomes introduz o processo de midiatizao da sociedade pelo
universo simblico que veio a existir com a inveno da palavra pelo homem. Nessa
esfera, a criao da linguagem concomitante ao surgimento da conscincia. Ainda que
intencionalidade e pensamento sejam anteriores inveno da fala, no difcil concluir
que ela modifica de forma definitiva a mente humana.
A palavra pela inveno de uma tcnica fontica cria um universo semio-
discursivo, um mundo de significados, que existem atravs de convenes, permitindo
que uma coisa esteja em lugar de outra. A palavra sol toma o lugar do astro,
permitindo a comunicao. logosfera corresponde um modo de produo, que da fala
humana convenciona interpretantes. Tudo isso produz uma nova sociedade, capaz de
compartilhar imaginrios. Esta sociedade est em proximidade espacial, no contato da
fala e na produo do ritual.
O estgio seguinte da evoluo da midiatizao remete a consolidao dos tipos
mveis. Um novo dispositivo, que redunda mais uma vez numa transformao profunda
da vida humana. A inveno do alfabeto e a produo de livros manuscritos j estavam
Logosfera Grafosfera Midiosfera Ciberesfera
Conscincia
Universo Simblico
Palavra Falada
Ideografia
Alfabeto
Prensa de Gutenberg
Televiso Homem simbitico
Rdio Internet 2.0
Internet 1.0 Telgrafo
Complexidade
Evoluo
31
presentes na logosfera. Mesmo assim a prtica social da palavra escrita demorou a se
consolidar, porque por milnios foi relegada a classes especficas, de forma que poucas
pessoas dominavam a tcnica. A inveno de tipos mveis propulsionou uma
transformao miditica, quando a produo em massa de livros impressos amplia a
comunidade de leitores, gerando uma demanda de alfabetizao.
A criao da escola foi a soluo inventada para socializar as geraes seguintes
na leitura. Durante grafosfera a escrita foi o que Braga (2007) denomina processo
interacional de referncia, um modo de interao dominante, que impe suas lgicas aos
demais processos. Dessa forma o perodo no caracterizou uma supresso completa da
oralidade, mas uma subsuno escrita como parmetro de legitimidade.
midiosfera corresponde um estgio de pluralizao dos dispositivos em
circulao. Rdio e televiso resgatam o contato imediato produzido pela fala,
provocando o que McLuhan chama de retribalizao. Na imagem, os interpretantes
sero transformados pela reprodutibilidade tcnica. Cai a aura, sobe o espetculo. Na
anlise de Gomes, a midiosfera a era mais curta, compreendendo aproximadamente
um sculo. Caracteriza principalmente uma sociedade de massas (e miditica), inclinada
ao fetiche de mercado.
A criao da internet desencadeia o ltimo estado conhecido de midiatizao da
sociedade. Ela rene ante si todos os dispositivos anteriores, fazendo emergir uma
ambincia pela interconexo das mentes humanas em uma nova forma perceptiva. um
processo incompleto e em muitos sentidos desigual, porque nem todos desenvolvem
competncia necessria para serem inseridos nas interaes virtuais.
Braga explica que no estgio presente ainda no existem claras articulaes entre
as interaes midiatizadas e aquelas da cultura escrita e da presencialidade. Isso
significa que em determinadas situaes sociais a oralidade permanecer como
interao de referncia, como na socializao primria das crianas, momento de
aquisio da fala. De maneira semelhante, o mbito acadmico combina a sala de aula
(dispositivo de oralidade) com um programa de leituras prprio da cultura escrita.
A cibercultura caracteriza uma sociedade em que vrios modos de produo
coabitam, um processo cuja diversidade inerente aos dispositivos. um momento de
transio de uma dominao anterior a uma dominao posterior, em que ainda no fica
claro o processo interacional dominante.
Embora a midiatizao da sociedade seja um processo em andamento Fausto
Neto salienta que j esto presente indcios de uma transformao que subsume os
32
processos sociais s lgicas dos meios. Na cieberesfera o prprio conceito de meio
modificado:
Ou seja, seus papis so transformados, uma vez que, da condio de suportes passam a ocupar uma centralidade da vida cotidiana, como fonte de informao e de entretenimento, como fonte de construes de imaginrios. Temos a a passagem da sociedade miditica para a midiatizao, uma vez que graas a crescente complexidade da cultura dos meios que se d origem, em tempos depois, algo que o prprio Martn-Barbero chamaria de um entorno comunicativo. No se trata mais da problemtica dos meios subordinados s mediaes, mas da emergncia de novos e complexos objetos tcnico-comunicacionais arquitetando uma nova ambincia e os padres de funcionamento de novas interaes sociais. (2011 p. 8-9)
Feita uma introduo sobre o conceito de midiatizao, importa agora falar mais
sobre o conceito de dispositivo nela incorporado.
2.1.1 O dispositivo como lugar de condensao de formaes da cultura
Braga o toma o termo emprestado de Foulcault, que o elabora como um sistema
de relaes sociais, um tipo de formao que abre possibilidades de contato e
participao. Braga elucida que dispositivos so processos sociais que podem ser
repetveis, reconhecveis e nomeveis, como, por exemplo, uma conversa de pai para
filho. Os dispositivos tambm podem ser pensados como matrizes socialmente
elaboradas e em constante reelaborao, que a sociedade aciona para poder interagir.
Dessa forma, estar dentro da cultura socializar-se nos dispositivos que ela oferece.
At aqui dispositivos representam uma categoria ampla, que no
imediatamente relacionada s interaes comunicacionais. Braga insere o conceito de
dispositivo como uma alternativa ao conceito de meios, que foi historicamente
esvaziado por sua falta de especificidade. Se, por um lado, o conceito de meio abrange
uma sociedade massificada, pautada pelas lgicas industriais; o dispositivo uma
perspectiva epistemolgica que permite verificar uma condensao de formaes da
cultura, por critrios que nem sempre correspondem dominao do homem pela
tcnica. O dispositivo interacional uma entrada para entender a circulao,
33
problematizando os processos comunicacionais. Para entendermos seu funcionamento,
Braga (2010 p. 78-79) prope uma srie de perguntas:
quais so os processos normatizados e qual o grau de abertura das regras? como o dispositivo lida com suas margens especficas de impreciso e probabilismo? que tentativas sociais transcendem as metas comunicacionais singulares dos participantes? O que a sociedade encaminha, nos processos do dispositivo? que competncias interacionais so solicitadas dos participantes para assegurar que o desenvolvimento de uma interao (no mbito de determinado dispositivo) apresente boas probabilidades de realizao, com adequada preciso? como explicitar o risco de autonomizao dos cdigos e sistemas de regras, que lhes retira a flexibilidade para ajustes sensveis s situaes vividas?
Jairo Ferreira complementa o argumento de Braga, abordando o dispositivo a
partir de uma trade de operaes scio-antropolgicas, semio-lingusticas e tcnico-
tecnolgicas. Os dispositivos so produzidos em usos, apropriaes e interaes que,
quando estabilizadas, se autonomizam e retroagem sobre os contextos, organizando
agendas e processos sociais.
Este processo ocorre na histria, requisitando duraes especficas. Sobre esse
assunto, Ferreira (2013 p.4) explica:
Compreendemos que as interaes reguladas por prticas [processos de longo prazo] so aquelas em que se observa uma estabilizao de narrativas, o que significa uma estabilizao do valor simblico de determinados signos que a constituem (bandeiras, objetos, atos, etc.). J no processo regulado pelos usos [processos de curto prazo], h uma instabilidade sobre o lugar e espao ocupados pelos signos, gerando-se uma sobrevalorizao das interaes.
As formaes estabilizadas em um determinado dispositivo da cultura podem
mover novos discursos e interaes, exigindo inclusive apropriaes de competncias
tcnicas em proporo massiva na sociedade. Isso aconteceu na grafosfera, quando a
implementao da prtica escrita requisitou, em ltima instncia, a criao de um
sistema pblico de ensino.
Nesse exemplo, a sedimentao de um dispositivo retroagiu sobre seu contexto
de formao. O processo de midiatizao da sociedade em seu ltimo estgio se
caracteriza por mediaes ditas midiatizadas, que, atravs dos dispositivos scio-
34
semio-tecnolgicos quebram as lgicas de produo-consumo, fazendo emergir uma
circulao que prope novas formas de engajamento. Nesse ponto h uma mudana de
paradigma, quando os dispositivos comunicacionais geram interaes distintas das
lgicas da ideologia industrial e de subsuno ao valor econmico.
Essa perspectiva do dispositivo abrange circularidades das formaes da cultura.
Atravs dela, percebemos que a tcnica no neutra, porque se desenvolve em relaes
com aspiraes preexistentes na sociedade. Antes que se inventasse o telefone celular,
por exemplo, a fico j fabricara o seu conceito. Um dispositivo bem-sucedido captura
o sonho de uma formao da cultura humana. A simples oferta da indstria no significa
que os processos sociais sero transformados em usos e apropriaes compatveis com
as suas estratgias. Os dispositivos no se instalam necessariamente de acordo com as
lgicas industriais, porque estas, por mais inteligentes que possam ser, sempre se
enfrentam com formaes, usos e interaes que se autonomizam e se condensam em
termos de prticas.
2.1.2 Tentativas de apropriao dos dispositivos pela indstria
A proposta de uma indstria cultural evanglica como fenmeno de midiatizao
religiosa tenciona dois aportes tericos distintos. Em nossas proposies, a tese de uma
sociedade em vias de midiatizao no extingue a carga factual de uma indstria
cultural como ela trabalhada na teoria crtica e na economia poltica da comunicao.
Entretanto, a teoria da midiatizao estruturada a partir de uma nova perspectiva
epistemolgica, um vis diferente para entender a comunicao. Nessa perspectiva d-se
uma importncia maior processualidades outras que tomam lugar indito na
sociedade. H, por exemplo, uma ampliao nas formas de participao e resistncia.
Por causa disso Ferreira aponta que
Os dispositivos, os processos miditicos e as disposies das instituies miditicas, no miditicas e dos indivduos se transformam, incidindo inclusive sobre a indstria cultural. (Ferreira 2011a p.12)
35
Para Ferreira a indstria cultural no deixa existir, mas ser transformada pelas
processualidades em jogo. A midiatizao amplia o campo de interao, mas continuam
a atuar foras vinculadas aos capitais pertinentes.
No nosso caso de estudo, a indstria se forma em contato com o campo
religioso. Evanglicos criam para evanglicos num processo que reduz a defasagem
entre produtores e receptores. Essa circularidade delineia uma indstria com
caractersticas prprias, que foge do paradigma clssico. Na indstria frankfurtiana, os
consumidores eram abstrados no processo. No nosso fenmeno, produtores esto em
relao de familiaridade, quando participam dos mesmos rituais e instituies. Podemos
imaginar, em um culto de domingo, um cantor de sucesso partilhando o po da ceia do
Senhor com um consumidor em potencial. claro que essa situao celebra um outro
tipo de relao, uma interao que no tem nada a ver com objetivos mercadolgicos.
Mesmo assim entendemos que este contato e circularidade reduzem
ambigidades, garantindo o sucesso da interao. Uma indstria em contato contempla
usos, interaes e apropriaes que se auto-regulam, estruturando a cultura gospel. Essa
circularidade pode ser trabalhada como um macro-dispositivo que organiza os micro-
dispositivos: bens simblicos em produo e recepo.
Entendemos que o fenmeno se origina pela mercantilizao de produes
originais do campo religioso, pela apropriao industrial de uma fortuna criativa que
prpria de um grupo determinado da cultura. Entretanto, uma indstria evanglica
propriamente dita se caracteriza pela apropriao dos gneros da indstria cultural
secular. Dessa forma entendemos que a indstria cultural evanglica se constitui na
tentativa de captura de dispositivos da cultura secular, que so potencializados pela
midiatizao da sociedade. Formaes da cultura, apropriadas pelo campo religioso.
Neste processo se atravessam prticas de valor cultural-econmico.
A midiatizao evanglica atualizada pela indstria cultural proporciona pistas
de dinmicas em trnsito que so simultneas a processos estabelecidos. Esse tipo de
processualidade indicia uma mudana dos contextos das instituies. Referenciada
nessa tenso entre prticas, usos e interaes, compreendemos que a produo cultural
evanglica articula diversos usos, mas a ele se interpe e atravessa uma prtica de um
campo outro, da economia strictu sensu.
No queremos inferir com isso que o processo redunde naquilo que Marcuse
conceitua enquanto dessublimao homognea de resultados, uma subsuno de todos
os processos ideologia de dominao pela tcnica. Inferimos somente que a religio
36
ainda no consolidou nenhuma prtica prpria em relao a circulao de tais produtos
em sua vivncia interna, e que o prprio campo muito fragmentado em relao a essas
questes. Um exemplo disso est nas interaes iconoclastas, que so mais ou menos
incorporadas de acordo com o posicionamento dos atores. Ao mesmo tempo em que
algumas igrejas apresentam uma postura severa, proibindo inclusive o consumo de
produtos da indstria gospel que apropriam os gneros da indstria secular;
denominaes religiosas emergentes promovero seus artistas, reconhecendo seu
trabalho como ministrio.
Finalmente, entendemos que a iconoclastia strictu sensu foi superada enquanto
formao pelo campo religioso. Em seu lugar, ocupam disposies de resgate da
oralidade e de reformulao do estatuto visual.
2.1.3 A produo cultural evanglica enquanto dispositivo
Se a perspectiva da indstria cultural permite verificar uma prtica estabelecida
do campo econmico atravessando processualidades da religio, o aporte do dispositivo
na midiatizao da sociedade problematiza este posicionamento, avaliando outras
mltiplas interaes da esfera da cultura, que engendram novas possibilidades.
A instituio religiosa basicamente fechada em relao ao controle de seus
contedos de salvao (soteriolgicos). Mas, ao mesmo tempo, h uma evidente
interao com outras instncias. Nosso objeto de estudo se estrutura a partir de
mltiplos usos de formaes da cultura no cumprimento de funes variadas do campo
religioso. So bens simblicos dispostos para diversas finalidades: cuidado da famlia,
satisfao matrimonial, orientao financeira, entretenimento, evangelizao, etc. Trata-
se de uma produo que atualiza diversos dispositivos em estado potencial, tanto do
campo religioso, nos materiais que suportam aconselhamento pastoral, profecias e
ensinos da doutrina como em formaes de outras esferas da cultura, como, por
exemplo: biografias, convertidas em testemunho das obras da f; pedagogia,
redirecionada a formao de princpios cristos na criao dos filhos; moda e
tendncias, a servio de uma determinada valorao sobre o corpo feminino.
Disposies mltiplas, que apresentaro um relativo grau de sucesso em sua
ativao. As confeces evanglicas de moda feminina (saias abaixo do joelho, blusas
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sem decote) e masculina (ternos populares) no costumam ultrapassar a barreira
denominacional que sugere o cdigo vesturio especfico. No o caso de outras
produes, amplamente aceitas pelos evanglicos e at mesmo apropriadas por
consumidores que no praticam a religio.
Usos, que constituem interaes especficas na construo de um imaginrio de
um estilo de vida gospel. Enquanto dispositivo, ainda no sedimentam uma prtica
determinada, todavia orientam uma srie de tentativas que esto relacionadas com os
movimentos de sublimao da cultura humana, quando, em suas interaes, incentivam
determinados comportamentos de santificao.
Em relao ao funcionamento do dispositivo, a pesquisa se aproveita de algumas
questes articuladas por Braga. A primeira delas sobre os processos que esto
normatizados no dispositivo, e o grau de abertura das suas regras. Entendemos que as
operaes industriais sedimentam prticas do processo, entretanto o dispositivo
apresenta vestgios de uma lgica pr-industrial, prprios de um setor incipiente. Isso
ocorre quando se d preferncia a contratao de evanglicos em relao a profissionais
qualificados para uma determinada funo.
H tambm uma ortodoxia implcita em relao infalibilidade das Escrituras
Sagradas, que inibe possibilidades de discusso de interpretaes concorrentes. As
produes da cultura gospel costumam abafar questes profundas da f, reproduzindo
posies estandardizadas sobre o problema do sofrimento ou da constituio do cnon.
O grau de abertura a essa norma se verifica em disputas de sentido em materiais que
discutem no a autoridade da Palavra, mas a validade de correntes doutrinrias e de
movimentos da religio evanglica, por exemplo, da teologia da prosperidade. A
indstria contempla posicionamentos teolgicos divergentes, disponibilizando obras de
apologia e de refutao. No entanto, esse tipo de produo corresponde a uma parcela
pouco significativa no montante de bens simblicos em circulao pela indstria. Os
produtos que alcanam mais sucesso passam longe desse tipo de preocupao.
Outro questionamento de Braga se refere a como o dispositivo lida com suas
margens especficas de impreciso e probabilismo. A normatividade das operaes
industriais ameaada pela pirataria e pela concorrncia de produtos seculares. O
consumo de ambos pode ser trabalhado como pecado pelos grupos alarmistas.
O livro A Cabana exemplifica uma produo direcionada ao pblico
evanglico que tenciona a ortodoxia doutrinria fundamentalista. Ele foi distribudo no
Brasil pela Sextante, uma editora secular, mas, por causa do seu grande sucesso, teve
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sua venda disponibilizada por lojas especializadas ao segmento. A polmica se
instaurou, e a tentativa de reduo da improbabilidade constituda deu-se pela produo
de publicaes de refutao obra. Dessa forma, em uma mesma loja poderiam ser
encontrados o livro A Cabana e seu rival No Entre Nessa Cabana.
Em terceiro lugar, consideram-se as tentativas sociais que transcendem as metas
comunicacionais singulares dos participantes. Em outras palavras, O que a sociedade
encaminha, nos processos do dispositivo. Essa questo de difcil verificao. Uma
suposio possvel que a segmentao do mercado pode recrudescer a fragmentao
do campo religioso ao invs de unir todos abaixo do guarda-chuva da cultura gospel.
Entretanto esse tipo de inferncia s pode ser confirmada por uma imerso no campo
religioso propriamente dito, verificando as prticas de consumo especficas das
denominaes.
A penltima questo que apropriamos de Braga preocupa-se com as
competncias interacionais que so solicitadas dos participantes para assegurar que o
desenvolvimento de uma interao apresente boas probabilidades de realizao. De
maneira geral os produtos da indstria cultural evanglica exigem um conhecimento
superficial em relao s Escrituras. Mas h tambm os produtos que fazem referncias
diretas produes da indstria secular. Casos de pardia, que exigem um
conhecimento prvio dos sucessos da indstria secular para adequada compreenso.
Finalmente, se questiona como explicitar o risco de autonomizao dos cdigos
e sistemas de regras, que lhes retira a flexibilidade para ajustes sensveis s situaes
vividas. Essa questo bastante sensvel ao nosso caso. A indstria cultural evanglica
constitui-se como um investimento da religio no mundo dos objetos, veiculando
diversos contedos que integram tentativas de ascenso. So tentativas que geralmente
no do cabo de si, porque produzem um amlgama discursivo que nem sempre se
transforma em aes de esvaziamento por parte de seus atores. Verifica-se um risco de
reverso dos valores evanglicos aos valores industriais. Entretanto a questo da
gratuidade no pode ser dada como encerrada, ela merece ser devidamente avaliada nas
tenses da cultura.
2.1.4 Afetao das configuraes religiosas por formaes da cultura
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Entendemos que as religies sempre construram mediaes e se dinamizaram
em articulaes e resistncias com os dispositivos dominantes em determinados modos
de produo ou formaes. A igreja catlica durante a maior parte da sua existncia se
estabeleceu no contato da fala, transmitindo suas tradies sem a mediao da palavra
escrita. Nessa esfera, as imagens nos templos e a prpria liturgia da igreja funcionavam
como bblia para iletrados. Na logosfera, as palavras sagradas eram recitadas em
prticas mnemnicas que constituam uma forma de meditao. Exerccios de orao.
Por causa disso, os prprios textos sagrados encontraram empecilhos para o seu registro
em forma escrita.
A escrita , ao contrrio da fala, uma modalidade de interao diacrnica, que
permite registros duradouros e de alcance significativamente mais amplo. No campo da
religio, a reforma protestante se assenta como prtica correlata da palavra escrita,
quando reivindica uma relao direta com as Escrituras, dispensando a tradio catlica
na formulao de suas doutrinas.
A introduo do trabalho descreve uma fragmentao do campo religioso
evanglico, salientando que os protestantes histricos de misso ficam de fora do
fenmeno proposto pela pesquisa. Os luteranos, por exemplo, figuram inseres
discretas em rdio e televiso, mas, em geral, no produzem mais que bens simblicos
originais. Enquanto permanecem no paradigma da palavra escrita, outros grupos
evanglicos modificam suas atividades em processos de midiatizao.
Na atualidade o campo religioso defronta-se com o miditico em concorrncia
pela circulao de suas mediaes, suas prticas, seus contedos. A midiatizao da
sociedade sugere uma prevalncia das mediaes midiatizadas, onde tecnologias
convertidas em meios produzem uma forma de vida cognitiva. Em relao a esse
assunto, Gomes comenta em um projeto de pesquisa:
Nossa hiptese [...] que as religies crists, ao se aventurarem no mundo das mdias, ainda permanecem na antiga ambincia. Idilicamente, elas olham o mundo miditico apenas como dispositivo tecnolgico ignorando o seu projeto de totalidade. Existem dois projetos de compreenso da sociedade, ambos com pretenso de totalidade (o religioso e o miditico), que no se encontram. Levantamos a possibilidade de o segundo sobrepor-se ao primeiro, condicionando o modo como as pessoas vivem e projetam a sua religio. (Gomes 2007a p. 84)
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Em relao a nossas proposies, nos importa colocar que a cultura gospel se
autonomiza do campo de origem, produzindo expresses de indstria cultural, e tambm
muitas outras, que circulam pela web. Expresses sem fins lucrativos, criaes de
amadores; veiculao oficial de instituies; e-commerce; pirataria gospel; enfim, uma
mirade de objetos em circulao, mas que no figuram em nossas questes de pesquisa.
Em nossa problematizao, a midiatizao da religio se origina na passagem da
grafosfera para a midiosfera. Inserimos nosso objeto em outra passagem, da midiosfera
ciberesfera. Entendemos que a sociedade tambm participa de uma transio
semelhante, em que modos de produo em concorrncia ainda no estabeleceram
prticas consolidadas. Uma sociedade cujos processos so marcados por usos e
interaes, em detrimento das formaes de longo prazo. 2.2 A carne e o esprito: os movimentos dialticos do desenvolvimento de Eros
O desenvolvimento da tcnica na cultura ocidental marca uma tenso entre duas
dialticas, entre dois dispositivos que, em tese, so contrrios entre si, mas que so
imbricadas perpetuamente nos materiais que produz. Dois princpios, que so fruto da
pulso de vida da alma humana. A evoluo de um desejo que, elevado na sua ltima
potncia, se tornaria completo em si mesmo. Nessa etapa faremos uma breve
apropriao da leitura que Herbert Marcuse produz da teoria freudiana sobre o Eros na
sua constituio da civilizao e da sociedade industrial. Em seguida, a pesquisa
problematizar o encontro das duas dialticas com um terceiro, o esvaziamento sagrado
kentico. Dessa forma pretende-se problematizar as suas incidncias no fenmeno
caracterizado neste trabalho por produtos da indstria cultural evanglica.
Vale salientar que tanto Freud quanto Marcuse, e tambm a prpria pesquisadora
se originam de um imaginrio judaico-cristo, que particularmente fecundo para
pensar os movimentos ascendentes e descendentes, de preenchimento e de esvaziamento
do esprito humano.
2.2.1 A dialtica da sublimao
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Marcuse l em Freud uma noo bastante ampla sobre o conceito de
sexualidade, tomando a libido por pulso vital que move o homem, tanto contra como a
favor dos seus instintos. Esse instinto de vida chamado por Freud de Eros.
Eros desejo, e, portanto, falta. Ele inicia sua trajetria guiado pelo princpio do
prazer, da livre gratificao das necessidades instintivas. Mas logo surge um impasse,
quando o homem percebe que a satisfao desenfreada dos objetivos carnais gera morte.
O Eros incontrolado to funesto quanto a sua rplica fatal, o instinto de morte. Sua fora destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma gratificao que a cultura no pode consentir: a gratificao como tal e como um fim em si mesma, a qualquer momento. Portanto, os instintos tm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios. A civilizao comea quando o objetivo primrio - isto , a satisfao integral de necessidades - abandonado. (Marcuse 1972 p. 33)
O apstolo Paulo, maior telogo da cristandade, expressa um pensamento
praticamente idntico:
Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Esprito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis. (Romanos 8:13 ARA)
No necessrio partir de um princpio moral para constatar que a submisso
aos interesses carnais, levada s ltimas conseqncias, gera destruio, isolamento e
morte. Mas Eros pulso pela vida, que se contrape ao medo da morte. Da se insere o
princpio da realidade, que substitui o prazer imediato pelo prazer mediato; a satisfao
instantnea pela satisfao adiada. Num movimento idealizador, de dialtica
ascendente, Eros produz a sublimao.
Para Freud, o conceito de sublimao refere-se ao destino da sexualidade sob um princpio da realidade repressivo. Assim, a sublimao significa uma alterao na finalidade e objeto do instinto, "em vista do qual os nossos valores sociais entraram em jogo". (Marcuse 1972 p. 180)
Lev-Strauss indicou precisamente que a instituio do tabu do incesto e a
emergncia da civilizao so concomitantes. Nesse sentido entendemos pela dialtica
da sublimao que a cultura fruto da represso dos instintos sexuais, gerando
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disposies duradouras de deslocamento da libido - inveno da linguagem, estruturas
de parentesco, diviso social do trabalho - que permitem a socializao e o progresso.
Freud acusa a cultura humana de coagir a existncia social e biolgica do
homem, mudando sua estrutura instintiva. A felicidade no um valor cultural, se no
estiver sujeita a expresses socialmente teis, como a jornada de trabalho integral e a
reproduo monogmica. primeira vista, tanto a teoria psicanaltica como a tradio
crist paulina parecem trabalhar a sublimao como um conceito essencialmente
negativo:
A carne milita contra o Esprito, e o Esprito, contra a carne, porque so opostos entre si; para que no faais o que, porventura, seja do vosso querer. (Glatas 5:17 ARA)
Entretanto, incorporado o princpio da realidade na nova estrutura instintiva, o
prprio querer do homem transformado pela cultura, gerando uma nova forma de vida.
Na dialtica ascendente de Eros, o homem se esvazia para se encher. O poder criador da cultura de Eros sublimao no-repressiva: a sexualidade no desviada nem impedida de atingir seu objetivo; pelo contrrio, ao atingir o seu objetivo, transcende-o em favor dos outros, buscando uma gratificao mais plena. (Marcuse 1972 p. 184)
O progresso da tcnica, como vimos, resultado da sublimao na cultura. Na
sociedade industrial, o homem pobre verifica um aumento significativo da sua
qualidade de vida, tanto pelas condies de higiene quanto pelo aumento da segurana
no trabalho, da quantidade de alimentos, de bens de consumo disponveis, e,
principalmente pela reduo de horas dedicadas ao trabalho braal.
A era industrial problematiza as categorias iniciais, das dinmicas ascendentes e
descendentes, do princpio do prazer e do princpio da realidade.
2.2.2 A dialtica da dessublimao
O sonho iluminista de uma sociedade administrada, que com a automao
eliminaria a necessidade de trabalho braal, enfadonho e repetitivo; e que pela reduo
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da jornada de trabalho geraria espao para a contemplao artstica, s manifestaes
ldicas e atividade criativa foi trado pela realidade da era industrial.
Apesar das melhorias implementadas pela tcnica, o homem comum no
conseguiu livrar-se da necessidade do trabalho rotineiro. Para piorar a situao,
verificou-se na ideologia da indstria cultural uma inclinao pela valorao dos
objetos. A cultura de massa caracteriza-se pelo fetiche da mercadoria, em que os objetos
tomam a forma sucednea das relaes sociais. Ele um engodo de duas faces, uma
confuso perceptiva, que trata as pessoas como coisas, e as coisas como valores de
vinculao. A fetichizao anula qualquer possibilidade de transcendncia, porque
regida pelo princpio do prazer. Ela redunda numa reificao do outro, impedindo a
comunho.
A dialtica de dessublimao caracteriza-se pelo movimento descendente de
Eros, em que o desejo regride s coisas, em detrimento das relaes. No campo das
artes, a sociedade industrial gera uma ruptura que nivela seus produtos de acordo com a
ideologia do mercado, de maneira que as produes culturais demonstram-se a servio
de discursos e valores fetichizados.
Alienao artstica sublimao. [...] Agora essas imagens mentais esto invalidadas. Sua incorporao cozinha, ao escritrio, loja; sua liberao para os negcios e a distrao , sob certo aspecto, dessublimao - substituindo satisfao mediata por satisfao imediata. Mas dessublimao praticada de uma "posio de vigor" por parte da sociedade, que est capacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interesses se terem tornado os impulsos mais ntimos de seus cidados e porque os prazeres que ela concede promovem a coeso e o contentamento sociais. (Marcuse 1969 p. 82)
Em Marcuse, a dessublimao o movimento predominante, gerando uma
sociedade unidimensional, em que o desejo fica retido nas materialidades. Com isso ele
prope que a civilizao no alcana a dimenso do esprito humano, geradora de
cultura, porque essa realizao do desejo nos objetos bloquearia o processo de ascenso.
Uma vez que a dominao dos homens sobre os homens decorre da dominao
sobre a natureza, a tcnica passa a dominar o cenrio das realizaes, e a sublimao
no se completa em termos ideais, restringindo-se na realizao das coisas. A tcnica
produz uma civilizao regida por uma ideologia correlata. Por causa disso, o desafio
proposto pelo autor seria pensar uma tcnica que funcionasse no pela dominao, mas
pela comunho com a natureza, liberando o processo de ascenso.
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Em ltima anlise, a dessublimao da cultura gera a circulao, a produo e
consumo de bens variados; mas essa multiplicao da oferta de objetos no alcana a
satisfao do esprito humano. A abundncia no plenitude, de maneira que o homem
tenta se encher, mas continua vazio.
2.2.3 gape e Kenosis
O seio da eternidade, pleno por definio, no contempla nenhuma falta. Esse
estado, querido com ansiedade pelo esprito humano, chamado pela psicanlise de
princpio do Nirvana. Prope-se que a tradio crist carrega um conceito anlogo, do
amor gape. O amor gape tem carter esttico, imutvel, sublime. Ele
incondicional, de forma que as falhas dos homens no mudam a natureza de Deus.
O amor gape um conceito idealizado, uma formao absoluta, inexprimvel.
A sua existncia santa, separada da existncia humana, de forma que no pode ser
entendido, ainda que desejado com ardor pela alma devota.
Por causa disso o amor gape se d a conhecer a partir de um movimento de
esvaziamento, a kenosis. O movimento descendente pelo qual Deus se faz homem na
pessoa de Jesus Cristo realiza toda a graa que existe no Pai. Este esvaziamento
sagrado, movido pelo esprito de Deus a salvao dos homens. Como foi dito no incio
dessa dissertao, Jesus
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