UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – ProPEC CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS – CEJURPS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA: (DES)ENCONTROS ENTRE ECONOMIA E DIREITO
JULIO CESAR MARCELLINO JUNIOR
Itajaí (SC), dezembro de 2006.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – ProPEC CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS – CEJURPS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO E CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA: (DES)ENCONTROS ENTRE ECONOMIA E DIREITO
JULIO CESAR MARCELLINO JUNIOR
Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, a título de qualificação para o Mestrado Acadêmico em Ciência Jurídica.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa
Itajaí (SC), dezembro de 2006.
DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí
– UNIVALI, a Coordenação do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência
Jurídica – CPCJ/UNIVALI, a Banca Examinadora, e o Orientador de toda e qualquer
responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, 08 de dezembro de 2006.
Julio Cesar Marcellino Junior
Mestrando
Esta Dissertação foi julgada APTA para a obtenção do título de Mestre em Ciência
Jurídica e aprovada em sua forma final pela Coordenação do Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica - CPCJ/UNIVALI.
_________________________________
Professor Doutor ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
Orientador
__________________________________
Professor Doutor PAULO MÁRCIO CRUZ
Coordenador Geral/CPCJ
Apresentada perante a Banca Examinadora composta dos Professores:
_______________________________________
Doutor ALEXANDRE MORAIS DA ROSA (UNIVALI) - Presidente
________________________________________
Doutor JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO (UFPR) - Membro
_____________________________________
Doutor PAULO MÁRCIO CRUZ (UNIVALI) - Membro
Itajaí (SC), 08 de dezembro de 2006.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Alexandre Morais da Rosa, pela produtiva, paciente, e generosa orientação
acadêmica - que jamais impôs caminhos -, sempre privilegiando a escolha democrática de
possibilidades, tendo somente como prioridades a salva-guarda do pensamento crítico-filosófico, o
reconhecimento da alteridade, e o respeito à vida.
Ao Professor Doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho por oferecer-me, através de sua gigantesca
e rica obra acadêmica - que já denunciava os logros do modelo econômico vigente -, as idéias
centrais desta pesquisa, e pelas valorosas contribuições ao texto quando da defesa pública deste
trabalho. Rendo-lhe, ainda, minha gratidão pelo ‘novo despertar’ deflagrado a partir daquelas
contundentes palavras de reconhecimento que definitivamente giraram meus significantes,
significados... Daquela emocionante manhã de oito de dezembro não me esquecerei.
Ao Professor Doutor Paulo Márcio Cruz por generosamente acrescentar a este escrito como membro
da Banca Examinadora, e por conduzir com rigor e dedicação este qualificado Programa de Mestrado
onde, além de conhecermos o Direito a partir da necessária perspectiva crítica, aprendemos o mais
importante: fazer amigos. E foram muitos.
À Professora Msc. Elizete Lanzoni Alves, primeira e mais vibrante incentivadora deste projeto, que
jamais furtou-se em apoiar-me nas empreitadas da vida acadêmica. Meu carinho e agradecimento.
À Ivana, companheira de todos os dias, que se mostrou absolutamente incansável no apoio, estímulo
e dedicação, mesmo quando a falta de tempo nos privava dos mais preciosos momentos de conforto
e convivência.
Aos meus pais, Cesar e Lila, pelas mais importantes lições de caráter, coragem, perseverança e amor
pela vida.
Aos professores e funcionários do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UNIVALI, por todo o
auxílio e dedicação que a mim dispensaram ao longo
desta caminhada.
E a todas aquelas pessoas que de algum modo colaboraram para a concretização desta pesquisa. A
minha eterna gratidão.
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo o princípio da eficiência
administrativa, incorporado à Constituição da República através da Emenda
Constitucional n°19, de 04/06/1998, e que fixou a ‘ação eficiente’ como
parâmetro de atuação da Administração Pública brasileira. A teoria da
Constituição e a teoria da norma jurídica são re-visitadas a partir da teoria geral
do garantismo jurídico, de Luigi Ferrajoli, e das teorias contemporâneas que
formam o movimento denominado por ‘neoconstitucionalismo’, onde o Direito se
aproxima da moral e da política, e onde o ‘princípio’ assume condição de norma
cogente. A Constituição da República é analisada também a partir da
perspectiva hermenêutica, onde se enaltece a importância e vantagens
oferecidas pelos estudos da linguagem e da compreensão interpretativa,
especialmente com Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, para a aplicação
e efetivação dos Direitos Fundamentais. Repassando por teóricos como
Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, a Constituição da República é
contextualizada com o neoliberalismo, demonstrando-se aí o desprezo que esta
doutrina político-econômica nutre pelo Direito e pelo aparato estatal. Ao final,
denuncia-se o câmbio epistemológico operado pelos neoliberais quando da
inserção da ‘eficiência’ como meta-princípio constitucional, mostrando-se como o
discurso economicista-eficientista gira ideologicamente, confundindo
adredemente os significantes ‘eficiência’ e ‘efetividade’. As conseqüências
sociais deste câmbio epistemológico também são objeto de estudo neste escrito,
pugnando-se pela necessidade de uma mudança de atitude, no sentido de
assumir-se uma postura de resistência constitucional visando sempre a garantia
e efetivação dos Direitos Fundamentais.
ABSTRACT
The present research has as study object the Principle of the Administrative
Efficiency, incorporated in the Constitution of the Republic through the
Constitutional Emendation n.° 19, of 04/06/1998, and that fixed the efficient action
as parameter of performance of the Brazilian Public Administration. The theory of
the Constitution and the theory of the rule of law are revisited from the general
theory of the legal garantism, of Luigi Ferrajoli, and from the theories
contemporaries that they form the movement called ‘neoconstitucionalismo', where
the Right if approaches to the moral and the politics, and where `principle' assumes
norm condition cogente. The Constitution of the Republic is also analyzed from the
hermeneutic perspective, where if enaltece the importance and advantages offered
for the studies of the language and the understanding-interpretation, especially
with Martin Heidegger and Hans-Georg Gadamer, for the application and
effetivation of the Basic Rights. Repassing for theoreticians as Friedrich Von Hayek
and Milton Friedman, the Constitution of the Republic is contextualizada with the
neoliberalismo, having demonstrated itself there the disdain that this politician-
economic doctrine nourishes for the Right and the state apparatus. To the end, the
epistemologic exchange operated by ‘neoliberal’ when of the insertion of is
denounced the efficiency' as constitutional goal-principle, revealing as the
speeking economicista-eficientista speech ideologic way, confusing the significants
`efficiency' and `effectiveness'. The social consequences of this epistemologic
exchange also are object of study in this writing, fighting themselves for the
necessity of an attitude change, in the direction to always assume a position of
constitutional resistance aiming at the guarantee and efetivação of the Basic
Rights.
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................v
ABSTRACT................................................................................................................ vi
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
CAPÍTULO 1 ...............................................................................................................3
1 A CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO...........................3
1.1 A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E O GARANTISMO JURÍDICO..........................................3 1.1.1 O CONSTITUCIONALISMO E A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO.........................................3 1.1.2 FERRAJOLI E O GARANTISMO JURÍDICO ..............................................................11 1.1.3 O GARANTISMO JURÍDICO E A ÉTICA MATERIAL-LIBERTADORA DE DUSSEL ..............20 1.2 NORMA CONSTITUCIONAL: REGRAS E PRINCÍPIOS..................................................22 1.2.1 KELSEN E O ‘NORMATIVISMO LÓGICO’ ................................................................22 1.2.2 HART E A CONCEPÇÃO ANGLO-SAXÔNICA DE NORMA JURÍDICA .............................28 1.2.3 BOBBIO E A TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO................................................32 1.2.4 O NEOCONSTITUCIONALISMO E A PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA ........................36 1.2.4.1 HABERMAS: DISCURSIVIDADE COMUNICATIVA CONSENSUAL...............................37 1.2.4.2 ALEXY E A PRINCIPIOLOGIA PONDERATIVA........................................................39 1.2.4.3 DWORKIN E O DIREITO COMO ‘INTEGRIDADE’ ....................................................44 1.2.4.4 CANOTILHO: PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL................................................48 1.3 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL .......................................................................50 1.3.1 HERMENÊUTICA TRADICIONAL: O PARADIGMA ESSENCIALISTA-OBJETIVISTA ...........50 1.3.2 A VIRAGEM LINGÜÍSTICA E O RENASCER DA HERMENÊUTICA .................................55 1.3.2.1 HEIDEGGER E A GUINADA PARADIGMÁTICO-ONTOLÓGICA ..................................56 1.3.2.2 GADAMER: A COMPREENSÃO COMO ‘FUSÃO DE HORIZONTES’ ............................63 1.3.3 A HERMENÊUTICA E A ‘NATURALIZAÇÃO’ DA INEFETIVIDADE CONSTITUCIONAL ........70 1.3.4 HÄBERLE E A ‘ABERTURA INTERPRETATIVA’ CONSTITUCIONAL ..............................73
CAPÍTULO 2 .............................................................................................................75
2 O NEOLIBERALISMO E A CONSTITUIÇÃO........................................................75
2.1 O DISCURSO NEOLIBERAL COM HAYEK E FRIEDMAN...............................................75 2.1.1 HAYEK E O EVOLUCIONISMO SELETIVO DE MERCADO ...........................................79 2.1.2 FRIEDMAN E O ‘CAPITALISMO COMPETITIVO’ .......................................................88 2.1.3 O REDUCIONISMO ESTATAL COM NOZICK ............................................................94 2.2 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NA ORDEM NEOLIBERAL.......................................97 2.2.1 NEOLIBERALISMO: O ‘DESMONTE’ ESTATAL E O ‘DESPREZO’ PELO DIREITO ............97 2.2.2 NEOCAPITALISMO E O ‘FETICHE DISCURSIVO’ DA ‘VIA ÚNICA’...............................105 2.2.3 A EROSÃO DO DIREITO E A ANOMIA SOCIAL .......................................................109
2.2.4 NEOLIBERALISMO E ORDEM GLOBAL: O ESTADO E O DIREITO SOB RISCO .............110 2.2.5 A PERSPECTIVA ECONÔMICA DO DIREITO: A CONSTITUIÇÃO E SEUS CUSTOS ........116 2.3 PROCEDIMENTALISMO VERSUS SUBSTANCIALISMO .............................................118 2.3.1 PROCEDIMENTALISTAS: EIXO HABERMAS - GARAPON .......................................119 2.3.2 SUBSTANCIALISTAS: EIXO CAPPELLETTI - DWORKIN ..........................................125
CAPÍTULO 3 ...........................................................................................................138
3 O PRÍNCÍPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA ...........138
3.1 A DIMENSÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E O DISCURSO NEOLIBERAL .................138 3.1.1 A EMENDA CONSTITUCIONAL N.°19/98 E A ‘ADESÃO’ À AÇÃO EFICIENTE .............138 3.1.2 CÂMBIO EPISTEMOLÓGICO E COOPTAÇÃO NEOLIBERAL: A CONFUSÃO ENTRE
EFICIÊNCIA E EFETIVIDADE.......................................................................................144 3.1.3 A AÇÃO EFICIENTE E SEUS ALVOS....................................................................152 3.1.4 O EFICIENTICISMO INDIVIDUALISTA E A DEMOCRACIA: INCOMPATIBILIDADES .........155 3.2 A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA...........................................160 3.2.1A EFICIÊNCIA E A MANIPULAÇÃO ‘CÍNICA’ DO DIREITO..........................................160 3.2.2 A PRETENSÃO ‘MÍTICO-LIBERTADORA’ DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA ....................167 3.2.3 DISCURSO ECONÔMICO: MITOS E FANTASIAS ....................................................172 3.2.4 A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E A EFICIÊNCIA ALOCATIVO-FINANCEIRA ........177 3.2.5 O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E O PROCESSO EXCLUDENTE ..................................182 3.3 RESISTÊNCIA CONSTITUCIONAL E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....192
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS..............................................................209
INTRODUÇÃO
A presente dissertação trata do princípio constitucional da eficiência
administrativa, ‘positivado’ por meio da Emenda Constitucional n.° 19, de
04/06/1998, e que estabeleceu a ‘ação eficiente’ como parâmetro de atuação da
Administração Pública pátria. Partindo-se da ‘ontologia fundamental’ como método
de pesquisa (Heidegger) – que supera a epistemologia moderna da relação sujeito-
objeto lançando-se às vantagens da intersubjetividade1 -, e reconhecendo a
importância da interdisciplinariedade no estudo científico, que, neste caso, faz com
que o Direito dialogue com outras áreas do saber (filosofia, psicanálise, sociologia,
etc), procura-se ‘desvelar’ (Streck) a estrutura teórica, política e ideológica da
‘eficiência’ enquanto paradigma ético-estatal, e melhor compreender sua
repercussão e conseqüências para a sociedade.
Inicia-se tratando, no primeiro capítulo, da Constituição da República
considerada no âmbito do Estado Democrático de Direito. Aqui, a teoria da
Constituição é revisitada e analisada a partir do modelo proposto por Luigi Ferrajoli,
cunhado como ‘Garantismo Jurídico’, que é devidamente cruzado com a ética
material libertadora de Enrique Dussel. Nesta articulação teórica (Rosa) a vida e seu
desenvolvimento digno passam a serem vistos como conteúdo indisponível,
vinculante e paradigmático para o agir político-estatal. A construção teórica da
norma constitucional também é revista, especialmente a partir no
‘neoconstitucionalismo’ (Streck) contemporâneo, que abandona a concepção
tradicional juspositivista da regra (Kelsen/Hart), para trabalhar a possibilidade da
existência do ‘princípio’ como norma cogente. Neste capítulo, a Constituição da
República é ainda analisada a partir da perspectiva hermenêutica, mostrando-se os
avanços e ganhos que a linguagem - aliada à compreensão-interpretativa
(Heidegger e Gadamer) - podem oferecer para o estudo e aplicação da norma
constitucional, especialmente dos Direitos Fundamentais.
No segundo capítulo, a Constituição da República passa a ser
contextualizada com o modelo político e econômico que se tornou prevalente na
1 Vide item 1.3.2.1.
2
América Latina: o neoliberalismo. Para tanto, resgatam-se as raízes doutrinárias
deste modelo através de seus principais arautos Friedrich Von Hayek, que
representa o eixo europeu (Escola Austríaca), e Milton Friedman, representando os
Estados Unidos da América (Escola de Chicago). Este capítulo demonstra como o
Direito é encarado pelos neoliberais, procurando discutir também a relação que o
neoliberalismo globalizado estabelece com o Estado e com a democracia. Ao final,
pretendendo tratar da importância da atuação e do papel político do Poder
Judiciário, mormente no que toca à efetivação dos Direitos Fundamentais - tendo
sempre a Constituição da República como centro gravitacional -, visitam-se duas
notórias correntes que praticamente polarizam a discussão: o procedimentalismo, do
eixo Habermas-Garapon, e o substancialismo, da corrente Cappelletti-Dworkin.
Finalmente, já no último capítulo, aborda-se o tema central deste
estudo, qual seja, o princípio da eficiência administrativa. Preliminarmente procura-
se mostrar o verdadeiro câmbio epistemológico (Coutinho) que os neoliberais
operaram quando da inserção da ‘ação eficiente’ como parâmetro ético-estatal, e o
modo como gira o discurso economicista que permanentemente manipula e articula
os significantes ‘eficiência’ e ‘efetividade’ como se tratassem de sinônimos. Tratando
do aspecto subliminar do princípio da eficiência administrativa, procura-se denunciar
como o Direito passa a se tornar mecanismo a serviço do parâmetro epistêmico da
eficiência, e a manifesta alienação (Castoriadis) e desconhecimento (Carcova) da
maioria da sociedade diante deste fenômeno. Encerrando o capítulo, após
ponderação a respeito de todo o conteúdo discorrido, enaltece-se, sem a pretensão
de oferecer ‘a’ resposta ou ‘o’ caminho exclusivo, a importância de uma postura de
resistência constitucional (Coutinho) com critério material (Dussel), que garanta a
efetivação dos Direitos Fundamentais, e que priorize o conseqüente combate à
exclusão social.
CAPÍTULO 1
1. A CONSTITUIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E O GARANTISMO JURÍDICO
1.1.1 O Constitucionalismo e a Teoria da Constituição
O que normalmente se denomina ‘teoria da Constituição’ consolidou-
se como referencial teórico na era contemporânea, tendo, no entanto, suas
profundas raízes no período moderno. É com Canotilho que se constata que o
sentido moderno de Constituição não possui uma única e exclusiva gênese. Há,
como explica o autor, várias origens em momentos e lugares completamente
diferentes. Por isso, não se poderia tratar de um único ‘constitucionalismo’, mas sim
de ‘vários constitucionalismos’1 que, de certa forma, articulam-se entre si, havendo,
assim, de considerar o ‘constitucionalismo inglês’, o ‘constitucionalismo francês’ e o
‘constitucionalismo norte-americano’2.3
Anota o professor português que a expressão ‘constitucionalismo
moderno’ também é correntemente utilizada para designar o movimento político,
social e cultural que eclodiu na Europa em meados do séc. XVIII, e que teve como
marca registrada o questionamento do establischment4 político tradicional, ainda
1 Canotilho observou que talvez seja o caso de não falarmos em teoria da constituição ou constitucionalismo, mas sim de ‘teoria das Constituições’ ou ‘constitucionalismos’. CANOTILHO, J.J. Gomes. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 34 2 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina. 2002. p. 51. 3 Preferindo a expressão ‘movimentos constitucionais’ ao invés de ‘vários constitucionalismos’, por entendê-la mais apropriada, Canotilho define constitucionalismo como “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político social de uma comunidade”. De tal modo, em sua visão o constitucionalismo moderno representa uma “técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos”. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 51. 4 No sentido de status quo, aquilo que está instalado. STEIN, Ernildo. Epistemologia e crítica da modernidade. 2.ed. Ijuí: Unijuí, 1997, p. 19.
4
calcado no esquema estamental-feudal do ‘constitucionalismo antigo’5, que era
formado pelo conjunto de princípios e costumes que limitavam o poder do monarca
medieval. Tais princípios ainda seriam de forte influência até o século XVIII.6
Deste constitucionalismo moderno é que surge o que se conhece por
‘Constituição moderna’, entendida, pois, como “ordenação sistemática e racional da
comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as
liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político.”7 Segundo Canotilho,
em referência a Soares, este conceito de Constituição acabou por se tornar um dos
principais pressupostos da cultura jurídica ocidental, sendo elevado a condição de
“conceito ocidental de Constituição”8.
Canotilho, importante registrar, com base na construção moderna do
movimento constitucional, defende um ‘conceito histórico de Constituição’, propondo
que a Constituição deva ser concebida como “conjunto de regras (escritas ou
consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem
jurídico-política num determinado sistema político-social.”9 E neste sentido, o autor
julga indispensável articular o conceito de Constituição, especialmente na
perspectiva moderna, com todo o contexto histórico, político e cultural que
atravessou o medievo e a modernidade, para que seja possível compreender o
fenômeno do movimento constitucional ocidental.10
5 Canotilho elucida que “designa-se constitucionalismo antigo todo o esquema de organização político-jurídica que precedeu o constitucionalismo moderno. Caberiam neste conceito amplo o ‘constitucionalismo grego’ e o ‘constitucionalismo romano’.” CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 52. 6 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 52. 7 Conforme ensina o autor: “Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.” CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 52. Cabe ainda salientar, que este conceito deve ser considerado numa perspectiva ideal, pois, como sabemos, para os ingleses, não necessariamente tal ordenação precisaria estar concentrada em um único documento escrito. Assim como, para os norte-americanos, mesmo aceitando a constituição como documento escrito garantidor de direitos e regulador de um governo de ‘freios’ e ‘contrapesos’, não faria sentido encará-la como uma programação racional e sistemática da comunidade. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 52-53. 8 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 52. 9 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 53. 10 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 53.
5
O constitucionalismo, neste pensar, teria sua gênese relacionada não
somente com a idéia moderna contratualista, e com a concepção neo-aristotélica de
‘bem comum’, mas também com as vicissitudes jurídicas, filosóficas e religiosas
próprias do período de trânsito da era medieval à modernidade11. Muito da
construção teórica e filosófica da concepção ocidental de Constituição parte do
contratualismo clássico e de sua influência e importância para o estabelecimento do
Estado Moderno, notadamente das contribuições de Hobbes, Locke e Rousseau.
Como ponto comum, numa perspectiva anti-aristotélica12, defendiam todos estes
contratualistas a existência prévia de um ‘estado de natureza’ que precederia o
‘estado civil’ ou ‘civilizado’. São, contudo, as divergências entre tais teorias que
guardam maior riqueza teórica e reflexiva e que merecem ser re-visitadas.
Em Hobbes, a lei natural absoluta era o egoísmo radical do homem
ainda vivendo sob paixões, e o estado de natureza ou pré-social seria o estágio
caracterizado como ‘guerra de todos contra todos’. O ‘Estado-Leviatã’ absoluto
surgiria como instituição necessária à proteção coletiva e à sobrevivência13. Com
Locke, o Estado passa a representar o ente de manutenção e consolidação dos
direitos naturais como a propriedade, a liberdade de consciência e a tolerância
religiosa, próprios do estágio pré-social, fazendo-o através da pacificação de
conflitos14. Rousseau, por sua vez, entende que o homem é bom por natureza e
vivia, em seu estágio pré-social, em absoluta igualdade. A partir do surgimento da
propriedade privada, é que o homem se corromperia, e se estabeleceria entre os
11 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 53-54. 12 É que a visão contratualista discorda da posição clássica de Aristóteles de que o “o homem é um animal social por natureza”. Acreditam, que o homem é um animal social por convenção. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática: o Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n.21, 1994 p. 33. 13 Afirma Hobbes: “o fim último, causa final e desígnio dos homens [...] ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis da natureza [..].” HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p.141. 14 Afirma Locke: “[...] a única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros, desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade.” LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p.139.
6
homens a desigualdade. A idéia de ‘contrato social’ consiste em resgatar as
liberdades naturais na forma de liberdades civis e teria a finalidade de conservação
dos contratantes.15
Desta maneira, considerando a forte influência do pensamento
contratualista na formação do Estado, pode-se dizer que o constitucionalismo
moderno se consubstanciou de modo a “ordenar, fundar e limitar o poder político”, e
“reconhecer e garantir os direitos e liberdades do indivíduo”16. São, pois, para
Canotilho, os temas centrais do constitucionalismo a “fundação e legitimação do
poder político e a constitucionalização das liberdades”17, que figuram como
verdadeiros pilares do constitucionalismo moderno.
No entanto, em que pese toda a contribuição do pensamento
moderno, é no período contemporâneo que efetivamente floresce uma teoria da
Constituição propriamente dita18. E é a partir das décadas de 1920 e 1930, que
pioneiramente três destacados juspublicistas, Heller, Schmitt e Smend, com a
inquestionável contribuição de Kelsen e Triepel, desenvolveram na Alemanha uma
teoria da Constituição no sentido de uma “teoria normativa da política”.19
Procurando compreender a crise do constitucionalismo liberal e do
positivismo jurídico estatal, os mencionados juspublicistas defenderam a
necessidade de uma teoria da Constituição adequada à realidade constitucional e à
realidade política, econômica e social de então. Isto é, os teóricos do início do século
XX, além de uma teoria meramente normativa sobre o político intentaram
desenvolver uma teoria mais ajustada ao contexto social de seu tempo.20
15 Afirma Rousseau: “encontrar uma forma de associação que defenda e projete a pessoa e os bens de cada associação de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes”. Tal é o problema fundamental que o Contrato Social soluciona”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. Antônio de P. Machado. 17.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 35 16 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 54-55. 17 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 55. 18 Aqui leia-se ‘teoria da constituição’ no sentido lato. 19 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1319. 20 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1319. Canotilho relembra que: “Hermann Heller enfrenta a tensão entre estado-constituição e realidade constitucional através de uma teoria democrática do Estado. Carl Schmitt desenvolve uma teoria da constituição centrada em categorias nominalistas como ‘ordem total’, ‘ordem concreta’, ‘direito situação’, ‘constituição-decisão’, ‘constituição e lei-constitucional’, ‘amigo-inimigo’, que viriam servir de travejamento e suporte
7
Oliveira explica que Schmitt, em sua reconhecida obra sobre a
Constituição da República de Weimar – “Teoria de la Constituición” -, buscava um
estudo sistemático a respeito da Constituição, de modo a superar a então
predominante e consagrada teoria do Estado que abrangia os estudos no que dizia
respeito ao direito constitucional. A teoria da Constituição de Schimtt
buscava justamente impor-se como disciplina que se diferencia e até se oporia, em maior ou menor medida, às teorias do Estado desenvolvidas em torno das obras de Georg Jellinek e de Paul Laband, de Hans Kelsen e sua teoria lógico-positivista; de Hermann Heller e sua teoria partidária do Constitucionalismo Social nascente; e dos enfoques assumidos pelas críticas marxistas e por outras correntes ideológico-jurídicas presentes no debate em torno do Processo Constituinte e dos primeiros tempos de turbulenta vivência constitucional sob a Constituição de 1919.[...] Esta postura de ruptura, de superação do enfoque e dilemas da chamada Teoria do Estado, caracterizará o desenvolvimento da Teoria da Constituição enquanto disciplina autônoma, mesmo em autores que, a partir do segundo pós-guerra e antes disso, tais como Karl Loewenstein, irão divergir das concepções teorético-políticas schmittianas.21
A partir da década de 1950, especialmente após os horrores da
segunda guerra mundial e a derrocada do nacional-socialismo alemão, a teoria da
Constituição ganha novos rumos. Não há mais, como queriam os cultores da década
de ’30, uma excessiva concentração no desenvolvimento de uma ‘unidade da ordem
jurídica’ e da ‘unidade de Estado’. A nova teoria da Constituição passa a se
preocupar com o conteúdo político do Direito constitucional e suas repercussões
sócio-econômicas, procurando enaltecer o Estado de Direito democrático e
constitucional, de modo a melhor compreender a realidade constitucional a partir dos
preceitos da ciência política.22
dogmático à teoria do direito e do Estado nacional-socialista. Richard Smend, enfrentando o ‘virulento’ problema da homogeneidade política e social da República de Weimar, propõe a integração (teoria da integração) como modo de compreensão do direito constitucional e da realidade constitucional.” CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1319. 21 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 26-28. 22 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1320.
8
Ganha também importância, especialmente com Hesse, a
perspectiva jurídica e de força normativa da Constituição23 que, neste sentido,
deveria deixar de ser o ‘simples pedaço de papel’ a que se referia Lassalle24. Ou
seja, a Constituição passa a ser analisada não somente como carta política de um
país, mas também como documento jurídico cogente, que deixa de meramente
representar uma realidade sócio-política. Passa, agora, com eficácia normativa, a
conformar e modificar a realidade segundo seus pressupostos basilares, figurando
como verdadeira Constituição jurídica.25
Diante da flagrante insuficiência da teoria clássica da Constituição,
ainda calcada na perspectiva positivista que considerava a Constituição como mero
“complexo normativo hierarquicamente superior ao conjunto do sistema jurídico”26
passa-se ao desenvolvimento de uma ‘teoria material da Constituição’. Esta teoria
procura conciliar a concepção de Constituição com duas premissas básicas do
Estado democrático-constitucional, quais sejam a legitimidade material, “o que
aponta para a necessidade e a lei fundamental transportar os princípios materiais
informadores do estado e da sociedade”27; e a abertura constitucional, “pois a
constituição deve possibilitar o confronto e a luta política dos partidos e das forças
políticas portadores de projectos alternativos para a concretização dos fins
constitucionais”.28
Foi, segundo Canotilho, através do chamado “movimento crítico-
legal” que se denunciou as evidentes dificuldades da teoria clássica da Constituição
e do Direito constitucional em incluir as mudanças e inovações jurídicas, carreadas
pelas transformações sociais, políticas e econômicas da sociedade contemporânea. 23 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 09. 24 Araújo explica, “[...] Em outra concepção, podemos encontrar o sentido sociológico. Ferdinand Lassalle, em seu livro ‘O que é uma constituição?’, aponta a necessidade de ela ser o reflexo das forças sociais que estruturam o poder, sob pena de encontrar-se apenas uma ‘folha de papel’. Assim se inexistir coincidência entre o documento escrito e as forças determinantes do poder, não estaremos diante de uma Constituição.” ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 02. 25 Hesse ensina: “A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar ‘a força que reside na natureza das coisas’, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social.” HESSE, A Força Normativa da Constituição op. cit., p. 24. 26 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1322. 27 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1322. 28 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1322.
9
Isto é, a dificuldade em absorver o fenômeno da materialização do direito29, e de
superar a perspectiva individualista-universalizante liberal para lidar com os novos
atores coletivos e suas relações de comunicação autônomas em relação ao
Estado.30 Conforme afirma o autor lusitano,
A teoria da constituição revela dificuldades em compreender as lógicas da materialização do direito. Continua a considerar o direito constitucional – e sobretudo a constituição – como lugar do superdiscurso social a partir de uma concepção unilateralmente racionalizada e piramidal da ordem jurídica.31
A teoria da Constituição e o direito constitucional, desta forma, tem
nos últimos tempos se submetido a uma análise crítica que tenta superar a
‘desvalorização da Constituição e das teorias nelas encontradas’ rumo a um
conceito de Constituição constitucionalmente adequado32. Canotilho entende que a
erosão da teoria constitucional se deu pelo fato de esta ter-se dissolvido em outras
teorias, tais como a teoria da administração33, teorias da justiça34 (Rawls)35, e teorias
do discurso36 (Habermas)37. Mas insiste o autor português que tais teorias, apesar
29 Explica o autor, que “entende-se por materialização do direito o fenômeno de adequação da esfera jurídica aos diferentes âmbitos sociais (direito social, direito dos consumidores, direito do ambiente, direito biomédico)”. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1333-1334. 30 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1331-1333. 31 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1334. 32 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1334. 33 Com Canotilho: “Esta emergência da ‘teoria do direito administrativo’ como sub-rogação teórica da clássica teoria da constituição vai ser aproveitada, em termos jurídico-constitucionais e jurídico-políticos, pelos defensores do ‘poder administrativo democrático’. A administração deixa o estatuto humilhante de ‘poder não democrático’ ou apenas ‘indiretamente legitimado’ para invocar um estatuto de legitimação igual ao dos outros poderes do estado. Num segundo momento, a legitimação justifica a idéia de poder administrativo autônomo directamente vinculado à constituição mas tendencialmente livre da lei. Num terceiro momento, a teoria do direito administrativo e do poder administrativo autônomo passa a defender a existência de uma ‘teoria do estado administrativo em que o Governo é convertido a ‘defensor da constituição e guardião dos direitos fundamentais’.” CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1341. 34 Segundo Canotilho: “A teoria do liberalismo político de John Rawls procura recortar as instituições básicas de uma ‘democracia constitucional’ ou de um ‘regime democrático’. As concepções abstractas utilizadas por este autor – ‘justiça como equidade’, ‘sociedade bem ordenada’, ‘estrutura básica’, ‘consenso de sobreposição’, ‘razão pública’ – servem para aprofundar o ideal de democracia constitucional.” CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1343. 35 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 36 E ainda: “[...] a teoria da razão comunicativa aplicada por J. Habermas aos problemas do direito, da democracia e do estado de direito, tal como se pode observar nas suas duas últimas obras, é, no fundo, uma teoria da constituição. Ele próprio confessa que pretende clarificar os paradigmas do direito e da constituição e reabilitar os pressupostos normativos inerentes às práticas jurídicas existentes. Reagindo contra o próprio cepticismo dos juristas, Habermas reabilita o médium normativo do direito – sobretudo do direito constitucional – para percorrer os problemas clássicos [...] e fornecer uma compreensão do estado de direito democrático e da teoria da democracia, tentando fugir quer ao autismo da validade normativa quer à pura facticidade típica da objectivação sociológica”.
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de tentarem responder a alguns problemas do direito constitucional, de modo algum
substituem a teoria da Constituição propriamente dita.38
Contudo, contemporaneamente, as teorias chamadas de pós-
positivistas - ou que formam o que se costumou denominar por neo-
constitucionalismo ou novo constitucionalismo39 - , têm assumido cada vez mais
importância junto ao meio jurídico, especialmente por proporem o rompimento com a
visão clássico-positivista. Proporcionando verdadeiro câmbio paradigmático quanto
aos fundamentos do Direto, procuram reaproximar e melhor articular Direito, moral e
política. Neste sentido, destacam-se, além dos já citados, autores como Dworkin40 e
Alexy41.
Assim sendo, lançando mão da apertada síntese proposta por Dalla-
Rosa42, vê-se que a teoria da Constituição, em seu processo evolutivo, passou por
três marcantes estágios de desenvolvimento que consubstanciaram seus principais
pressupostos conceituais. Inicialmente a concepção de Constituição teve forte
influência do que se entendia por ação social. Nesta fase, se inclui o posicionamento
que entende a Constituição como retrato da ordem político-social (Lassale, Schmitt),
as doutrinas integracionistas (Smend, Krüger, e Frankl) e a discussão acerca da
programaticidade da Constituição. Num segundo estágio, a concepção de
Constituição foi diretamente relacionada ao fenômeno do poder, em atenção a
articulação entre o que se entende por Direito, por Estado e por política (Kelsen,
Canotilho, Häberle). Por último, a Constituição tem sido estudada e concebida como
CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1344. Neste sentido, conferir também OLIVEIRA, Direito Constitucional, op. cit.,p. 36 e seguintes. 37 Em HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Vol. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 38 CANOTILHO. Direito Constitucional, op. cit., p. 1345. 39 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. In: Direito, Estado e Democracia: entre a (in)efetividade e o imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol. 1, n.4, Porto Alegre, 2006. 40 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1989. 41 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. 42 DALLA-ROSA, Luiz Vergilio. O Direito como Garantia: pressupostos de uma Teoria Constitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.
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garantia. Garantia da prática da ação frente ao poder, enaltecendo seu aspecto
normativo.43
1.1.2 Ferrajoli e o Garantismo Jurídico
A partir desta concepção do ‘direito como garantia’, e diante da
manifesta erosão e esvaziamento das principais teorias clássicas da Constituição e
da norma, é que surge uma nova teoria jurídica que, calcada numa perspectiva
racional-positivista de matriz iluminista, procede a releitura da doutrina clássico-
positivista, resituando e revalorizando a Constituição, - especialmente em função
dos direitos fundamentais -, retirando-a da subutilização a que era submetida pela
visão tradicional. Tal teoria é denominada garantismo jurídico.
A teoria geral do garantismo foi desenvolvida na Itália, por Ferrajoli44,
e pensada inicialmente no âmbito da matriz penalística. Posteriormente, como
explica Cademartori, tal teoria evoluiu alcançando a condição de teoria geral do
Direito, com ‘enorme potencial explicativo e propositivo’45. Epistemologicamente,
pode-se dizer que a teoria garantista tem por base o pressuposto de vertente
43 Dalla-Rosa conclui que “[...] a acão social, o poder e o direito como garantia devem ser concebidos e conscientizados como pressupostos necessários constitutivos do fenômeno constitucional e, para tanto devem estar presentes, ao menos implicitamente, em qualquer teoria constitucional.” DALLA-ROSA, O Direito como Garantia, op. cit., p. 89-141. 44 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1995; FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías – La ley del más débil. Trad. Perfecto Andrés Ibanez. Madrid: Trotta, 1999; FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: a teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et all. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Trad. Perfecto Andrés Ibanez. Madrid: Trotta, 2001. De se registrar, com Cademartori, que Luigi Ferrajoli, desenvolveu sua teoria garantista através da obra Diritto e Ragione, publicada em 1989. O autor italiano foi magistrado, e na década de ’70 se tornou um dos expoentes da chamada ‘jurisprudência alternativa’, movimento que defendia a interpretação da lei em conformidade com a Constituição se objetando ao dogma da sujeição cega do juiz à lei. CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. p. 72. 45 Cademartori explica que: “Como modelo explicativo do Estado de Direito, a teoria garantista consegue dar conta desse aparato de dominação com extrema competência, eis que o apresenta como uma estrutura hierarquizada de normas que se imbricam por conteúdos limitativos do exercício do poder político. Propõe-se assim um modelo ideal de Estado de Direito, ao qual os diversos Estados Reais de Direito devem aproximar-se, sob pena de deslegitimação. Tem-se aqui então o aspecto propositivo da teoria, ao postular valores que necessariamente devem estar presentes enquanto finalidades a serem perseguidas pelo Estado de Direito, quais sejam a dignidade humana, a paz, a liberdade plena e a igualdade substancial.” CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 72.
12
liberal46 da centralidade da pessoa, considerando que o poder não somente se
constitui a partir do indivíduo, como também visa servi-lo47. E fiel ao preceito
iluminista-ilustrativo, referida teoria considera o Estado de Direito como criação
racional da sociedade, que figura como ente prévio e superior ao poder político.48
De se registrar, contudo, que muito embora se possa considerar o
garantismo de Ferrajoli como de forte influência liberal, sua proposta teórica desvela
um liberalismo não tradicional, um liberalismo, conforme menciona Cademartori com
referência a Guastini, sui generis, pelas seguintes razões:
a) de um lado, as preferências de Ferrajoli dirigem-se àquilo que ele chama de ‘Estado social de Direito’, ou seja, um ordenamento que confere e garante não somente direitos de liberdade, mas também direitos sociais (coisa estranha à tradição política liberal; em suma, ao liberalismo clássico); b) de outro lado, o garantismo de Ferrajoli é, por assim dizer, mutilado, dado que não se estende ao direito de propriedade e nem portanto às liberdades econômicas (de mercado, de iniciativa econômica) que a pressupõem.49
Dado este sintético panorama a respeito da matriz epistêmica da
teoria do garantismo jurídico, passa-se aos quatro principais e basilares desideratos
da proposta de Ferrajoli50. Inicialmente no plano da teoria do direito, propõe-se uma
revisão da teoria da validade, trabalhando as normas jurídicas com enfoque à
distinção validade e vigência na relação forma e matéria das decisões. O segundo
objetivo, no plano da teoria política, é o reconhecimento de democracia em sua
dimensão substancial, em superação ao seu caráter procedimental. Em terceiro
lugar, no plano da teoria da interpretação e aplicação da lei, tal teoria apresenta um
novo olhar quanto ao aspecto formal da lei quanto ao paradigma da ’sujeição à lei’,
especialmente do ponto de vista do magistrado, entendendo pela necessidade de
46 Cademartori elucida que “a liberdade, no entanto, não é concebida por Ferrajoli como um poder sobre alguma coisa, como por exemplo os direitos patrimoniais, mas é concebida num sentido rigorosamente negativo, isto é, como a ausência de interferência de um poder externo, seja ele o poder público-estatal ou o poder econômico privado.” CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 74. 47 Rosa lembra que “o garantismo jurídico baseia-se, desta feita, nos direitos individuais – vinculados a tradição iluminista – com o escopo de articular mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano [...]. Essa limitação do Poder Estatal não se restringe ao Poder Executivo, como pode transparecer no primeiro momento, mas vincula as demais funções estatais, principalmente o Poder Legislativo, que não possui (mais) um cheque em branco;”. ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Habitus: Florianópolis, 2002. p. 25. 48 CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 72. 49 CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 75. 50 FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 20.
13
articulação entre forma e conteúdo da norma jurídica. Por fim, cumpre à teoria
garantista, já no plano da meta-teoria do Direito, enaltecer a importância do Direito
enquanto Ciência, superando seu estatuto meramente descritivo, para erigi-la a
condição de saber crítico e projetivo.51
Pode-se ainda dizer, que desdobrando a expressão ‘garantismo’
encontram-se três diversos significados que, conexos entre si, traduzem a amplitude
e abrangência do seu conceito. Em primeiro lugar, garantismo consiste num modelo
normativo de direito, atrelado à ‘estrita legalidade’ própria do Estado de Direito, que
sob o plano epistemológico, “se caracteriza como un sistema cognoscitivo o de
poder mínimo”, sob a dimensão política, se caracteriza “como una técnica de tutela
capaz de minimizar la violencia y de maximizar la liberdad”, e sob o plano jurídico, se
caracteriza “como un sistema de vínculos impuestos a la postetad punitiva del
Estado en garantía de los derechos de los ciudadanos.”52 Em segundo lugar,
garantismo jurídico designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e da ‘efetividade’ como
categorias distintas entre si, contrapondo a ‘existência’ e ‘vigor’ das normas jurídicas.
Neste aspecto, a expressão garantismo “expresa una aproximación teorica que
mantiene separados el ‘ser’ y el ‘deber ser’ en el derecho”53. Em seu último
significado, garantismo consiste em uma filosofia política que “impone al derecho y
al Estado la carga de la justificación externa conforme a los bienes y los intereses
cuya tutela y garantía constituye precisamente la finalidad de ambos.”54 Neste
aspecto, o garantismo possui como premissa a “doctrina laica de la separación entre
derecho y moral, entre validez y justitia, entre punto de vista interno y punto de vista
externo [privilegiando este ponto de vista] en la valoración del ordenamiento, es
decir, entre ‘ser’ y ‘deber ser’ del derecho”.55
Tocante ao seu segundo significado, o de teoria jurídica da ‘validade’
e da ‘efetividade’, cumpre registrar que Ferrajoli realiza uma importante releitura dos
atributos tradicionais da norma jurídica provocando um verdadeiro giro teórico a
51 FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 20. 52 FERRAJOLI, Derecho y Razón, op. cit., p. 851-852. 53 FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 852. 54 FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 853. 55 FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 853.
14
partir da proposta positivista de Kelsen56. Ferrajoli rompe com a perspectiva clássica,
que sobrepõe forma ao conteúdo, e que entende ‘direito válido’ como ‘direito
positivado’57, e redefine as categorias da norma estabelecendo clara diferença entre
vigência, validade e eficácia. Explica que uma norma tem vigência quando se
submete a todo trâmite do processo legislativo previsto na Constituição58. Por outro
lado, tal norma somente será válida se, em cotejo com a Constituição, guardar
compatibilidade material, não afrontando nenhuma das garantias e direitos
previstos59. Aqui, o critério de avaliação de validade não é o mesmo que o de
vigência - que aplica a lógica binária do válido-inválido própria do paradigma
juspositivista60. A vigência, na proposta garantista, se submete a uma análise de
avaliação escalonável, gradual, que leva em consideração inúmeros fatores fáticos,
não se tratando, no entanto, de um juízo de justiça. ‘Justiça’ definitivamente não é
sinônimo de ‘validade’. Trata-se aqui de um juízo jurídico, realizado a partir do ponto
de vista interno61. Assim torna-se compreensível a existência de uma norma vigente
mas inválida, bastando que, ainda que respeitado o trâmite legislativo, tal norma
afronte alguma garantia ou direito fundamental constitucional62.
56 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 57 Ferrajoli afirma: “Según la concepción prevaleciente entre los máximos teóricos del derecho – de Kelsen a Hart y Bobbio – la ‘validez’ de las normas se identifica, sea cual fuere su contenido, com su existência: o sea, com la pertenencia a um cierto ordenamiento, determinada por su conformidad com las normas que regulan su producción y que también pertencen al mismo.” FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 20. 58 Serrano, enaltecendo a distinção entre vigência e validade da norma, explica que juízo de vigência “es aquel que va referido a la mera constatación de la existência de una norma en el interior de un sistema jurídico. Es un juicio de hecho o técnico, pues se limita a constatar que la norma cumple los requisitos formales de competência, prodecimiento, espacio, tiempo, materia y destinatário; y como tal juicio de hecho es suscetible de verdad y falsedad.” SERRANO, José Luis. Validez y Vigência: La aportación garantista a la teoria de la norma jurídica. Madrid: Trotta, 1999, p. 51. 59 Ferrajoli aduz que “la vigencia guarda relación con la forma de los actos normativos, es una cuestión de subsunción o de correspondência de las formas de los actos productivos de normas con las previstas por las normas formales sobre su formación; la validez, al referirse al significado, es por el contratio una cuestión de coherencia o compatibilidad de las normas producidas con las de caracter sustancial sobre su producción”. FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 21-22. 60 Com Serrano, vemos que o juízo de validade, por sua vez, “es aquel em virtude del cual se declara (si es positivo) que uma determinada norma (cuya vigencia formal se há comprobado como verdadera) se adecua además en su contenido a las determinaciones existentes en niveles superiores del ordenamiento, com independência de que estas determinaciones sean reglas o principios, valorativas o neutras, justas o injustas, eficaces o ineficaces.” SERRANO, Validez y Vigência, op. cit., p. 51. 61 Serrano ainda explica que “el juicio de validez se distingue del juicio de vigência por no ser binário, sino gradual y por no ser de hecho sino de valor. Y se distingue del juicio de justicia por no ser externo, sino interno. No ser social, político o moral, sino jurídico.” SERRANO, Validez y Vigência, op. cit., p. 54. 62 Ferrajoli diz que “todos los derechos fundamentals […] equivalente a vínculos de sustancia y no de forma, que condicionam la validez sustancial de las normas producidas y expressan, al miesmo
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Com tais pretensões garantísticas-constitucionais, a teoria geral do
garantismo jurídico, como bem anota Rosa, alcança foros de modelo de direito,
estando calcada
no respeito à dignidade da pessoa humana e seus Direitos Fundamentais, com sujeição formal e material das práticas jurídicas aos conteúdos constitucionais. Isto porque, diante da complexidade contemporânea, a legitimação do Estado Democrático de Direito deve suplantar a mera democracia formal, para alcançar a democracia material, na qual os Direitos Fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação paulatina da instituições estatais.63
Em sua raiz liberal, fiel ao projeto de limitação do poder estatal, o
garantismo jurídico pensa em um Estado de Direito cujos vínculos consubstanciam-
se de modo substancial/material, suplantando o modelo republicano da prevalência
da maioria sobre a minoria64. Trata-se, aqui, da esfera do indecidível65. Daquele
núcleo mínimo que não pode ser vilipendiado por maiorias eventuais e nem por
unanimidade, e onde se encontram os Direitos Fundamentais que, nesta
perspectiva, seriam invioláveis.66 Tais direitos não somente devem ser respeitados e
atendidos como também garantidos em sua máxima extensão.67
Deste modo, a teoria garantista propõe novo conceito de democracia,
que se pode denominar democracia substancial ou social. Segundo tal conceito,
Estado de direito mune-se de garantias específicas, não somente liberais como
também sociais. A democracia formal ou política, por sua vez, consistirá no Estado
tiempo, los fines a que esta orientado ese moderno artificio que es el Estado Constitucional de Derecho”. FERRAJOLI, Derechos y garantías, op. cit., p. 22. 63 ROSA, Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material, op. cit., p. 25. 64 Com Ferrajoli, vemos que “[...] los derechos fundamentales se configuran como otros tantos vínculos sustanciales impuestos a la democracia política: vínculos negativos, generados por los derechos de libertad que ninguna mayoría puede violar; vínculos positivos, generados por los derechos sociales que ninguna mayoria puede dejar de satisfacer”. FERRAJOLI, Derechos y garantias, op. cit., p. 20. 65 Ferrajoli afirma: “Precisamente, se a regra do estado liberal de direito é: nem sobre tudo se pode decidir, nem sequer por maioria, a regra do estado social de direito é aquela a qual nem sobre tudo se pode não decidir, nem mesmo em maioria.” FERRAJOLI, Direito e Razão, op. cit., p. 689 e 693. 66 ROSA, Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material, op. cit., p. 26. 67 CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 161.
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de direito representativo, calcado ainda no princípio da maioria como referencial de
legalidade.68
Enquanto teoria geral que eleva a compromisso social, político e
jurídico a garantia de efetivação dos direitos fundamentais, a proposta de Ferrajoli
procura consubstanciar um conceito formal de tais direitos, o fazendo nos seguintes
termos:
Propogno uma definición teórica, puramente formal o estructural, de ‘derechos fundamentales’: son ‘derechos fundamentales’ todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a todos os seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar.69
O jurista italiano, como visto, elenca como pressuposto de sua
definição teórica de direitos fundamentais o status de sujeito70, ou seja a necessária
condição de cidadão com capacidade de fato, consistindo em ‘pressuposto de sua
idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor de atos que são
exercícios destas’. E, assim, deixa claro que a idéia de ‘direito subjetivo’ se traduz
por ‘qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões)
em relação ao Estado’.71
São, segundo o autor, evidentes as vantagens e ganhos de uma
definição como esta. Isto porque, enquanto ‘prescinde de circunstâncias de fato’, isto
é, de estarem reconhecidas por normas internas, tal teoria é válida em qualquer
ordenamento jurídico, independentemente de os direitos fundamentais estarem ou
não previstos positivadamente, inclusive em regimes totalitários. Tem assim, status
de uma verdadeira teoria geral de direito, com o diferencial de ser ideologicamente
68 CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 161. 69 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 19. 70 Ferrajoli: “en nuestra definición, estas clases de sujeitos han sido identificadas por los status determinados por la identidad de persona y/o de ciudadano y/o capaz de obrar que, como sabemos, em la historia han sido objeto de las más variadas limitaciones y discriminaciones. Personalidad, ciudadania y capacidad de obrar, em cuanto condiciones lê la igual titularidad de todos los (diversos tipos) de derechos fundamentales, son consecuentemente los parametros tanto de la igualdade como de la desigualdad em droits fondamentaux.” FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 22. 71 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 19.
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neutra, sendo válida qualquer que seja a filosofia jurídica ou política que se adote
(positivista ou jusnaturalista, liberal ou socialista, antiliberal e antidemocrática).
Figuram, por decorrência, os direitos fundamentais como garantias indisponíveis e
inalienáveis, podendo-se neles, não obstante a estrutura formal de sua definição,
identificar a base da igualdade jurídica.72
Observe-se, que não se trata aqui de uma definição meramente
dogmática, ou seja, formulada em face de normas de um ordenamento jurídico
determinado. Trata-se de uma definição de teoria geral que estabelece a garantia
aos direitos fundamentas como condição de existência e validade de qualquer
ordenamento jurídico, alcançando todos os cidadãos de modo universal.73 De se
frizar, que Ferrajoli trabalha a perspectiva universal no ‘sentido puramente lógico e
a-valorativo da quantificação universal da classe dos sujeitos que são titulares dos
mesmos’. O autor cita como universais, e por conseqüência, fundamentais, a
liberdade pessoal, liberdade de pensamento, os direitos políticos, os direitos sociais
e direitos equiparados, bem como, as garantias processuais penais.74
Com base no cruzamento entre direitos da personalidade e direitos
do cidadão, parâmetros divisores que são dentro do conceito de direitos
fundamentais, Ferrajoli propõe uma divisão em quatro classes de direitos: a) direitos
humanos, enquanto direitos primários inerente a todos as pessoas (direito a vida,
liberdade pessoal, liberdade de consciência e pensamento); b) direitos públicos,
enquanto direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos (direitos de
residência e circulação no país, de reunião e associação, de trabalho, de
subsistência, assistência aos incapacitados); c) direitos civis, enquanto direitos
secundários adstritos a todas as pessoas capazes de trabalhar relativas a autonomia
privada (liberdade contratual e negocial, direito de ação) e; d) direitos políticos,
72 Ferrajoli ressalta: “[...] estos derechos no alienables o negociables sino que corresponden, por decirlo de algún modo, a prerrogativas no contingentes e inalterables de sus titulares y a otros tantos limites y vínculos insalvables para todos los poderes, tanto públicos como privados.” FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 21. 73 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 20. Rosa observa que “o diferencial desta formulação é justamente o fato de que mesmo que não estejam declarados por normas jurídicas, são válidos como formulação teórica, não se constituindo, assim, em definição dogmática. O fato de a Constituição ou as leis internas os reconhecerem os faz vigentes naqueles ordenamentos mas, todavia, não repercurte em sua formulação referencial teórica.” ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 88. 74 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 20.
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enquanto direitos secundários inerentes exclusivamente aos cidadãos com
capacidade laborativa, relativos a democracia representativa (direito ao voto, de
exercer cargo público, direitos potestativos que manifestam autonomia política).75
Partindo desta concepção, o professor italiano ainda detalha sua
proposta teórica apresentando quatro principais teses tocante aos direitos
fundamentais, que julga essenciais para uma teoria da democracia constitucional. A
primeira diz respeito a diferença de estrutura entre os direitos fundamentais e os
direitos patrimoniais, considerando que os primeiros tem vinculação com todos ou a
uma classe de sujeitos, e os patrimoniais excluem todos os demais que não sejam
titulares. Tal diferença, em nossa tradição jurídica, tem permanecido oculta com a
utilização do conceito de ‘direito subjetivo’, que tenta demonstrar uma falsa
homogeneidade diante das manifestas situações subjetivas heterogêneas, a
exemplificar: direitos inclusivos e exclusivos, direitos universais e singulares, direitos
indisponíveis e disponíveis76. A segunda tese é a de que os direitos fundamentais
consubstanciam o fundamento e o parâmetro da igualdade jurídica, no sentido de
estabelecer o que o autor chama de dimensão substancial da democracia, que seria
anterior à dimensão política ou formal, e que subverte a regra republicana da
maioria. Esta dimensão substancial/material seria, pois, a plêiade de garantias
75 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 22-23. 76 Ferrajoli ainda registra a importância em bem definir a relação e diferença entre ‘liberdade’ e ‘propriedade’, ou, entre ‘direitos fundamentais’ e ‘direitos patrimoniais’, que não raro ainda são por vezes confundidos por influência da doutrina contratualista-jusnaturalista de John Locke que equiparava a propriedade a direito natural (fundamental). Para o professor italiano, teríamos como principais diferenças: primeiramente, os direitos fundamentais são direitos universais, enquanto os direitos patrimoniais são singulares, com a exclusão dos demais; os primeiros estão reconhecidos a todos de igual forma e medida, e os segundos pertencem a cada um de maneira diversa, em função da quantidade e qualidade; os direitos fundamentais são inclusivos e formam a base da igualdade jurídica, e os patrimoniais são exclusivos/excludentes, dando base a desigualdade jurídica; a segunda marcante diferença nos mostra que os direitos fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis, personalíssimos. Os patrimoniais, por sua vez, são por sua própria natureza, negociáveis e alienáveis. Em terceiro lugar, temos que os direitos fundamentais, por decorrência da segunda diferença, são normas e os patrimoniais são predispostos por normas. Ou seja, os direitos patrimoniais são disponíveis, podendo ser modificados ou extintos por atos jurídicos. Os diretos fundamentais não podem ser objeto de modificação ou extinção, eis que, normalmente amparados por preceito constitucional. A quarta e última diferença está em que os direitos patrimoniais são horizontais e os fundamentais são verticais, em um duplo sentido. Isto é, as relações jurídicas mantidas entre titulares de direitos patrimoniais são relações intersubjetivas de tipo civilista (contratual, sucessória, etc), e as relações entre titulares de direitos fundamentais são do tipo publicista, ou seja, do indivíduo frente ao Estado. Além disso, os direitos patrimoniais correspondem a genérica proibição de não lesão de particulares, e os fundamentais, quando violados, acarretam invalidação do ato ofensor (lei), eis que sua preservação é condição de legitimidade dos poderes públicos. FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 30-35.
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asseguradas pelo Estado Democrático de Direito, que, enquanto modelo de Estado,
também traz consigo o projeto do Estado Social.
Como terceira tese, tem-se que grande parte dos direitos
fundamentais possuem pretensão supranacional, especialmente diante do fato de
que declarações e convenções internacionais impõem limites internos e externos
aos poderes públicos. A quarta tese, talvez, segundo o autor, a mais importante, diz
respeito às relações entre os direitos e as suas garantias. Os direitos fundamentais,
assim como os demais direitos, consistem em expectativas negativas ou positivas,
correspondentes a obrigações ou proibições. Neste sentido, garantias primárias
seriam tais obrigações e proibições, e garantias secundárias seriam as obrigações
de reparação ou sanção judicial das lesões aos direitos. A ausência de garantias
provoca uma indevida lacuna que põe em risco a efetivação dos direitos previstos.77
Os direitos fundamentais, como já visto com Ferrajoli, dão sentido à
dimensão substancial da democracia, em oposição à dimensão meramente política
da democracia formal. E como se observou, constituem condição sine qua non de
legitimidade do Estado de Direito e de suas instituições. O Direito, como um todo,
deve estar sujeito ao paradigma da democracia constitucional material, de modo a
reafirmar os liberdades e garantias que tal modelo proporciona. O garantismo
jurídico, assim, em tempos de constantes levantes neo-liberais, e de freqüentes atos
anti-garantistas que vilipendiam a Constituição e naturalizam a exclusão e a
marginalização social, serve de importante instrumental de contenção a ser
manejado dentro do próprio complexo normativo vigente. Como observado, tal
modelo, que parte de uma releitura necessária do juspositivismo clássico, oferece
imensas vantagens especialmente para o conturbado momento da complexa
sociedade contemporânea tomada de assalto pelo ‘Mercado’, e por sua liberdade
‘fundamentalista’.
Contudo, diante das várias possibilidades discursivas que a
linguagem proporciona, da reconhecida heterogeneidade dos jogos lingüísticos que
77 FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales, op. cit., p. 25-26.
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se afirmam intersubjetivamente de modo a legitimar o saber78, e do referencial
hermenêutico que ainda informa o imaginário dos juristas, marcado pela diretriz da
consciência79, o garantismo jurídico, enquanto teoria geral, pode ainda ser
distorcido, manipulado, e mitigado por quem faça, ao seu modo, uma releitura
conveniente do ordenamento jurídico vigente.
Isto porque, como se observará mais adiante, o sentido do texto não
é algo dado em si mesmo, essencial, imanente, ou verdadeiramente redentor, como
que se de alguma forma pudesse estar contido no núcleo do enunciado. É
proporcionado intersubjetivamente pelo sujeito-intérprete que, diante de si, do Outro
(Levinás) e de seu mundo da vivido80, constrói o seu sentido, sem qualquer pretensa
neutralidade a-valorativa. Procede a sua leitura e se relaciona com o texto a partir de
seus pré-juízos, pré-valores, de sua história, em plena fusão de horizontes
(Gadamer) - tudo ainda atravessado pelo inconsciente, que não se afasta81. Com a
viragem lingüística de nossos tempos, tudo isto ficou muito mais evidente. Os
tormentos e dualismos metafísico-essencialistas são afastados para enfrentar-se a
ontologia fundamental do ser-aí (Heidegger). E aqui, o sujeito se defronta consigo
mesmo, sem as intermediações fantasiosas próprias das crenças colonizadas.
1.1.3 O garantismo jurídico e a ética material-libertadora de Dussel
Por conta disso é que o garantismo jurídico enquanto útil instrumental
teórico, mas vulnerável como qualquer enunciado propositivo formal, necessita de
um referencial ético de conteúdo material que sirva de balizador ao sentido que se
pretenderá construir a partir de sua proposta teórica. Rosa propõe que o conteúdo
dos direitos fundamentais, visto como núcleo irredutível e inviolável, deva ser
78 Lyotard explica que “quando Wittgenstein, recomeçando o estudo da linguagem a partir do zero, centraliza sua atenção sobre os efeitos dos discursos, chama os diversos tipos de enunciados que ele caracteriza desta maneira, e dos quais enumerou-se alguns, de jogos de linguagem.” LYOTARD, Jean-Fraçois. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 9.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p.16. 79 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção Direito. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 80 Vide subcapítulo 1.3. 81 ROSA, Alexandre Morais da. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e Movimento AntiTerror. Florianópolis: Habitus, 2005. p. 55 e seguintes.
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preenchido pelo critério ético-material de Dussel82, que se preocupa prioritariamente
com a realização da vida83, sua produção, reprodução e desenvolvimento.84
Dussel propõe uma ‘ética libertadora’85 que estabelece a ‘garantia
digna da vida’ como parâmetro primeiro, irredutível, ao qual todas as interpretações
e práticas sociais devem se ajustar, a partir do necessário desvelamento que faz do
que denominou mito da modernidade. Tendo como referencial simbólico o ano de
1492 (descobrimento do Novo Mundo), explica o autor argentino que a modernidade
foi inaugurada por um sentimento emancipador/opressor/violento, que engendrou o
paradigma eurocentrista do ego conquistador, colonizador, o Conquiro (eu
conquisto), atrelado ao Cogito (eu penso). A Europa que antes era periferia, território
marginal do Oriente, torna-se centro, e projeta-se sobre os povos descobertos não
82 Conforme Enrique Dussel, “aquele que atua eticamente deve (como obrigação) produzir, reproduzir e desenvolver auto-responsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano, numa comunidade de vida, a partir de uma ‘vida boa’ cultura e histórica [...] que se compartilha pulsional e solidariamente, tendo como referência última toda a humanidade, isto é, é um enunciado normativo com pretensão de verdade prática e, em, além disso, com pretensão de universalidade”. DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Jaime A Clasen e Lúcia M. E. Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 77. 83
Importa registrar o que Dussel compreende por ‘vida humana’: “La subjetividad moderna (desde René Descartes, error criticado por la corriente francesa desde George Bataille hasta Michel Foucault o Emmanuel Levinas) tendió a definirse desde un ‘yo pienso/Ich denke’ descorporalizado, sin pulsiones, sin materialidad. Se trata no sólo de recuperar la subjetividad corporal, sino la subjetividad carnal como viviente (no hablamos ya del soma griego sino de la basar semita, la que resucita en el mito de Osiris tras un juicio ético con criterios de corporalidad). El ser humano no sólo es corporal (podría pensarse que una máquina tiene igualmente una posición en el espacio-tiempo físico) sino viviente. La ‘vida’ en este caso no coincide sólo ni principalmente con el cocepto moderno de ‘sobrevivencia’ (Selbsterhaltung) – usado entre otros por Habermas o Honneth -, como mera condición de posibilidad (el Leiba priori) de la argumentación, de la discursividad o la moral. La vida ‘humana’ concreta, de cada ser humano, es su ‘modo de realidad’. Ser real a modo de ‘viviente’ sitúa la subjetividad humana dentro de férreos límites sobre los que no puede saltarse facilmente. La ‘vida humana’ encuadra (pone un ‘marco’: enmarca) a la realidad natural siempre mediada discursivamente en referencia (Bezug) a la misma vida; el ser huma viviente constituye lo real como ‘possibilidad de vivir’. […] La ‘vida humana’ no es un horizonte ontológico. El horizonte ontológico se ‘abre’ desde el ‘modo de realiadad’ humano viviente: el ‘mundo’ (en sentido heideggeriano) es el horizonte que el ser humano-viviente ‘abre’ en la omnitudo realitatis de todo aquello que sirve para la vida humana. La ‘vida humana’ es transontológica (con E. Levinas la llamaríamos ‘etica’o ‘meta-fisica’).” DUSSEL, Enrique. Hacia una filosofia política crítica. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer S.A, 2001. p. 115-117. 84 ROSA, Alexandre Morais da. A vida como critério dos direitos fundamentais: Ferrajoli e Dussel. In: Direitos Fundamentais Reflexões Críticas: teoria e efetividade. Edihermes Marques Coelho (Org.). Uberlândia: IPEDI, 2005. p. 13-54. 85 Casara, apoiado em Arenhart, afirma que “a proposta essencial da filosofia da libertação é afirmar (para libertar) a realidade do excluído (exterioridade), aquela que fica para além do sistema de dominação imposta pela totalidade vigente (o ‘ser’). A proposta emancipatória passa pela escolha do excluído – o outro, o marginal, o pobre – como paradigma da alteridade inerente à democracia e objeto da fraternidade inscrita entre os objetivos constitucionais.” CASARA, Rubens R. R. Interpretação Retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p.159.
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os encarando como Outro, mas como si próprio. Estavam lançadas aí as sementes
da discriminação, espoliação, indiferença, e exclusão que até hoje florescem no fértil
solo do Sul.86
Diante da histórica transformação colonizadora-européia de
‘civilizações’ em ‘vítimas’, através da indevida apropriação de riquezas e da
‘canonização’ das mentes, Dussel propõe uma “ética da libertação”. Diferentemente
da mera superação da modernidade pretendida pelos pós-modernos87, o filósofo do
Sul visa o desvelar do mito moderno, trabalhando numa dimensão de
Transmodernidade88. Este projeto está comprometido com o critério material que
estabelece a preservação e desenvolvimento da vida como centro gravitacional das
práticas sociais. É nesta dimensão que, segundo Dussel, as vítimas buscam o
reconhecimento de sua condição.
E é lançando mão deste contra-discurso em relação às filosofias
centrais européia e norte-americana, no intuito de legitimar um ego latino americano
libertado e calcado na alteridade, que Rosa insiste na necessidade de
estabelecimento deste critério material de inspiração dusseliana para a interpretação
e manejo dos Direitos Fundamentais. Tal necessidade se torna premente
especialmente em países como o Brasil, onde as conquistas modernas ainda
figuram como meros simulacros, e onde o ‘Mercado’, sem limites e modo a-ético,
avança recrudescendo o processo erosivo da normatividade constitucional.
1.2 NORMA CONSTITUCIONAL: REGRAS E PRINCÍPIOS
1.2.1 Kelsen e o ‘normativismo lógico’ 86 Nas palavras ao autor: “A Europa tornou as outras culturas, mundos, pessoas em ob-jeto: lançado (-jacere) diante (ob-) de seus olhos. O ‘coberto’ foi ‘descoberto’: ego cogito cogitatum, europeizado, mas imediatamente ‘encoberto’ como Outro. O outro constituído como Si-mesmo.” DUSSEL, Enrique. 1492 O Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 36. 87 Neste sentido: LYOTARD, Jean-Fraçois. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 9.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. 88 Conforme explica Rosa, “a grande diferença, desde já indicada, é a de que os pós-modernos criticam a razão moderna por ser imbricada ao terror, enquanto a Transmodernidade (como projeto futuro) de Dussel pretende desvelar o Mito Irracional (encoberto) da base da Modernidade.” E ainda: “O projeto transmoderno é uma co-realização do impossível para a única Modernidade; isto é, é co-realização de solidariedade, que chamamos analética.” ROSA, A vida como critério dos direitos fundamentais, op. cit., p. 29 e 31. Conferir também: MENDONÇA, Rafael. (Trans)Modernidade e Mediação de Conflitos: pensando paradigmas, devires e seus laços com um método de resolução de conflitos. Florianópolis: Habitus, 2006.
23
A concepção de norma jurídica informadora do senso comum teórico
dos juristas (Warat)89, e ainda prevalente no discurso jurídico oficial90, é a proposta
por Hans Kelsen, a partir de sua mais notória obra, a Teoria Pura do Direito91, que
indubitavelmente representou um marco divisório não somente no aspecto
especulativo, como também na práxis cotidiana dos juristas.
Em sua teoria, denominada por muitos como normativismo lógico,
Kelsen expõe suas fortes influências Kantianas92, e, também por influência da
construção teórico-acadêmica promovida pelo chamado ‘Círculo de Viena’93 -
movimento do início do século XX que reuniu reconhecidos lógicos e filósofos
predispostos à construção de linguagens ideais científicas em rompimento com a
89 Warat explica que “[...] a expressão ‘senso comum teórico’ designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas. [...] Resumindo: os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto” WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral do Direito – Interpretação da lei, Temas para uma reformulação. Vol. I., Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 13 e 15. 90 O discurso oficial a que aqui se faz referência consiste no ‘dito autorizado’, na fala reconhecida pelos juristas como ‘legítima’, que diz ao meio jurídico o que fazer, como fazer e no que crer. Trata-se da interpretação do Direito realizada pela academia (especialmente transposta em manuais acadêmicos), pelos tribunais, etc. É ao que Warat se refere quando aborda sobre o ‘Monastério dos Sábios’, e com Pepe, sobre os ‘Patriarcas do Saber’. Como afirma Warat, trata-se de “um processo de produção autoritária da subjetividade quando as instituições criam a ilusão de um espaço social homogêneo, transparente e unívoco.” WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral do Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Vol. II, Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 66-68. WARAT, Luis Alberto. PÊPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do Direito: uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996. p. 17 e 18. 91 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 92 Em sua teoria, Kelsen traz os pressupostos filosóficos da chamada Escola Neokantiana. Conforme explica Warat: “Para Kant, a determinação racional da possibilidade e limite do conhecimento puro precede ao conhecimento ao real. Da mesma forma, para Kelsen a necessidade de uma teoria pura, que delimite o objeto de conhecimento jurídico e estabeleça as condições e possibilidades do mesmo, precede logicamente o conhecimento das ciências jurídicas positivas. Por isso, a tarefa prioritária da teoria pura é estabelecer as categorias jurídicas distintivas e determinantes, em última instância, do campo temático específico das ciências jurídicas, as categorias constituintes da normatividade. Para este trabalho teórico apelaríamos para o método transcendental kantista, que permitiria a Kelsen estabelecer a legalidade da ciência jurídica.” WARAT, Introdução Geral ao Direito, Vol.II, op. cit., p. 136-137. 93 Marques Neto elucida: “O positivismo científico e filosófico, a partir da formalização lógica que recebeu no início da década de 20, com os trabalhos produzidos em torno do assim chamado Circulo de Viena, passou a apresentar importantes diferenças em relação ao positivismo de índole acentuadamente indutivista que dominara toda a segunda metade do século passado, primeiro com as idéias de Conte e depois com a versão metodologicamente mais sofisticada que Durkheim lhe conferiu.” MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sobre a crise dos paradigmas jurídicos e a questão do Direito Alternativo. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, a.30, n.30, 1998. p. 91
24
metafísica94 -, procura dar rigor de pureza metodológica ao Direito, erigindo-o à
condição de Ciência95 e estabelecendo como seu objeto o estudo da ‘norma’ em seu
aspecto meramente descritivo. 96
Com a idéia de pureza97 teórico-metodológica, Kelsen procura
realizar um definitivo rompimento - já incipientemente iniciado no século anterior pela
Escola da Exegese98 - com a concepção jusnaturalista, negando quaisquer
abstrações morais, psicológicas, sociológicos ou religiosas para a fundamentação e
justificação de justiça99. Objetiva, também, diferenciar-se do positivismo tradicional
que, sob vários aspectos, se confundia com a sociologia jurídica100. Entende o autor
que o Direito, enquanto ciência, deve se ocupar tão somente do estudo da lei, da
norma em si, e nada mais. Operando verdadeiro corte epistemológico em sua obra,
separando ser e dever ser101, o professor vienense estabelece clara distinção entre
94 Entre eles, Schlick, Carnap, Nagel, Morris, Quine, Pierce, Frege, Russel e Wittgenstein. Cfe. WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 34. 95 Lembram-nos Warat e Pêpe que “a preocupação de Kelsen nunca esteve diretamente relacionada ao Direito, e sim à ciência jurídica”. WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 48. 96 KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 21. 97 Como afirma Warat, “a pureza metodológica recorda, por uma parte, a idéia (tomada das escolas neokantianas), de um conhecimento formal, categórico, a priori, e por isso puro e objetivo; e, por outra, supõe uma profissão de incontaminação ideológica, política e moral no estudo do direito.” WARAT, Introdução Geral ao Direito, Vol.II, op. cit., p. 131-301. Não por demais lembrar, que Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Pura, editada em 1781, é quem originalmente defende “[...] a possibilidade do uso puro da razão na fundamentação e desenvolvimento de todas as ciências que contém um conhecimento teórico a priori dos objetos. [...] Chama-se puro todo o conhecimento ao qual nada de estranho se encontra misturado. Porém, um conhecimento é denominado sobretudo absolutamente puro, quando não se encontra nele, em geral, nenhuma experiência ou sensação; quando é, por conseguinte, possível completamente a priori”. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4.ed. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. VI, 50, 52. 98 De não se olvidar da influência da Escola da Exegese neste processo de rompimento. Marques Neto explica: “É no alvorecer do século XIX, que o positivismo normativista começa a comparecer na literatura jurídico-filosófica, numa tentativa de dar conta teoricamente da positivação do Direito Natural. Esta tendência, cuja corrente mais importante passaria à história das idéia jurídicas com o nome de Escola da Exegese pretendeu resolver as aporias milenares que o embate entre as concepções monistas e dualistas intensificara ao longo dos séculos, de uma maneira quase brutal: identificando, pura e simplesmente, Direito e ordem jurídica positivada sob a forma escrita, isto é, Direito e lei escrita. […] O Direito fica reduzido à lei escrita em vigor. Daí, não há Direito, mas metafísica. Nada mais cômodo, pelo menos aparentemente.” MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos e a questão do Direito Alternativo, op. cit., p. 89-90. 99 Rosa explica que: “Dois corolários importantes se depreendem da compreensão kantiana da lei: o indivíduo não pode se interrogar acerca da sua origem, assim como o povo não pode se insurgir contra ela. Ora, sem esse saber não há, em relação à legalidade imanente, outra coisa senão crença.” ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 105. 100 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Sergio Fabris: Porto Alegre: 1994. p. 29. 101 Com Rosa, vemos que “Kelsen diferenciou o mundo do ser, próprio das ciências naturais, do dever-ser, no qual o Direito estava situado. A premissa de seu pensamento era a de que não existe possibilidade lógica de deduzir o dever-ser do ser, ou seja, descobrir as normas jurídicas dos fatos-natureza.” ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 105.
25
norma jurídica e norma de justiça102, e entre Direito e Política Jurídica103, cabendo a
esta as preocupações e estudo de como ‘devem ser’ as normas jurídicas104.
Considerando o Direito a partir de uma perspectiva descritiva,
calcada numa suposta neutralidade da norma jurídica que permitiria aos operadores
jurídicos, especialmente os juízes, aplicarem o ordenamento também de forma
neutra, isenta de seus (pré)juízos, (pré)conceitos e ideologias, Kelsen explica que
a norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do conteúdo de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso todo e qualquer conteúdo pode ser direito.105
Para Kelsen, o sistema jurídico seria formado por um conjunto
hierárquico de normas que teria como fundamento último o que ele denomina por
‘norma fundamental’ (Grundnorm)106 que, como pressuposto lógico-
transcendental107, estaria no topo da pirâmide da ordem normativa. No arcabouço
positivo-legal, a Constituição, entendida como norma posta, estaria respaldada por
uma norma hipotética, uma norma pressuposta ideal que serviria de balizador do
102 KELSEN, O problema da justiça, op. cit., p. 7 -16. 103 Afirma Kelsen: O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito [...] porém, tal problema é de importância decisiva para a política jurídica.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito...., p. XVIII. Neste sentido também: MELO, Fundamentos da Política Jurídica, op. cit., p. 29 e seguintes. 104 Com Warat, vemos que “dentro do projeto purificador manifestado pela teoria kelseniana, a Política Jurídica faz referência a uma complexa gama de atos institucionais, que, como instância criadora do direito, escapa ao quadro de preocupações de uma estrita ciência do direito. As atividades que Kelsen pretende invocar com a expressão ‘Política Jurídica’ por se referir ao âmbito exclusivo da vontade, do querer, do desejo, são negadas como questões suscetíveis de uma consideração metodológica, sistemática, no interior de uma ciência estrita. [...] a política jurídica estaria, na tentativa de pasteurização kelseniana, situada no terreno da doxa, quer dizer, no domínio das crenças, das opiniões premoldadas, fazendo parte da racionalidade que guia o fazer cotidiano dos juristas práticos. Transformada em doxa, a Política Jurídica passa a integrar a legião dos produtos simbólicos catalogados de irracionais pelo pensamento repleto de verdades imunizadas”. WARAT, Introdução Geral ao Direito, Vol II, op. cit., p. 254-255. 105 KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 221. 106 Afirma Kelsen: “A norma fundamental [Grundnorm] é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum”. KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 217. 107 KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 224 e seguintes.
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sistema jurídico108, e que figuraria como ponto de partida do processo monista de
criação do Direito Positivo109.
É a partir desta concepção monista de criação do Direito – para quem
o Estado figura como detentor do monopólio de produção normativa, rejeitando-se
qualquer tipo de pluralismo jurídico110 -, que o normativismo lógico kelseniano se
consolida, reduzindo o Direito à norma e defendendo que sua aplicação ocorra tão
somente através de recursos lógicos dedutivos111. Na aplicação e interpretação da
lei, o jurista jamais lançaria mão de qualquer juízo axiológico, sob pena de adentrar
na competência exclusiva do legislador. Poderia tão somente, através de silogismo
de inspiração aristotélica112, subsumir o fato à norma, como quem emoldura uma
tela de arte113.
Na formulação Kelseniana, o Direito é visto como recurso regulativo
de técnica social por representar um sistema de regras de caráter coercitivo que
delimita o disciplinamento, a convivência em sociedade e, lembrando Weber, a
dominação social114. Como bem afirma o próprio autor, “la técnica específica del
108 Afirma Kelsen: “Esta norma es la norma fundamental de un orden jurídico nacional. Dado que solo podemos hablar de un orden jurídico que obliga si presuponemos esta norma [...] podemos llamarla norma hipotética. Esta norma fundamental es el fundamento de todos los juicios de valor jurídicos posibles en el marco del orden legal de un Estado determinado.” KELSEN, Hans. Que es Justicia? Trad. Albert Calsamiglia. Barcelona: Ariel, 1982. p. 140. 109 KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 222. 110 Marques Neto, ainda explica: “o pluralismo jurídico, pelo contrário, parte precisamente não de uma presunção ou de uma hipótese, mas de uma constatação de que, paralelamente ao Direito oficialmente positivado, existem diversos outros ordenamentos jurídicos, que com ele concorrem em vigência e aplicabilidade às realidades sociais a que se destinam. O professor Roberto Lyra Filho, um dos pioneiros, entre nós, na sustentação da tese do pluralismo, costumava insistir na afirmação de que só um arraigado preconceito que impede a maioria dos juristas de distinguir entre o que é jurídico e o que é oficial, é que pode ter determinado que esses juristas não vejam o que de fato está diante de seus olhos.” MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos e a questão do Direito Alternativo, op. cit., p. 96. Neste sentido, conferir WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1997. 111 KELSEN, O problema da justiça, op. cit., p. 13. 112 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. 16.ed. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 30. 113 Explica Kelsen: “O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 390. 114 A construção teórica kelseniana também é herdeira da influência da obra de Max Weber, especialmente no que toca à racionalização lógica-metodológica do Direito enquanto legitimadora do poder de dominação [econômico] social: “[...] a ‘aplicação do Direito’ significa para nós a utilização daquelas normas estatuídas e das respectivas ‘disposições jurídicas’ (a serem deduzidas das primeiras pelo esforço do pensamento jurídico) a ‘fatos’ concretos que são a elas ‘subsumidos’. […]. A fusão de todas as demais associações que são portadoras de uma ‘criação de direito’ numa única instituição estatal coativa, que reivindica para si a condição de fonte de todo o direito ‘legítimo’,
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Derecho [...] consiste en atribuir determinadas medidas coactivas como
consequencia al cumplimiento de determinada condición”115. Seria dessa forma que
o Direito, como ordem coercitiva exclusivamente produzida pelo Estado que
monopoliza o uso da força, se consubstanciaria em sociedade.116
A Teoria Pura do Direito117 além de procurar construir uma proposta
teórica que retirasse o Direito das obscuridades metafísicas próprias das
concepções adeptas ao eixo do Direito Natural118, buscou estabelecer como critério
fundamental a estruturação lógico-científica do Direito, de modo a conceber que a
forma sempre deve preponderar sobre o conteúdo, independentemente de qual seja
este conteúdo119.
Para Kelsen, a validade e vigência da norma eram condições
inseparáveis. Desde que a norma posta obedecesse a todos os critérios e
procedimentos formais de criação por parte da autoridade estatal previstos em outra
norma (normalmente a Constituição)120, ela deveria ser considerada como
manifesta-se de forma característica na maneira como o direito se coloca a serviço dos interesses dos que têm a ver com ele, especialmente a serviço dos interesses econômicos.” WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociología compreensiva. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Vol. II. Brasilia: UNB, 1999. p. 09,13 e 14. 115 KELSEN, Hans. Que es Justicia? Trad. Albert Calsamiglia. Barcelona: Ariel, 1982. p.168. 116 Aduz o autor: “En este sentido, el Derecho es un orden coercitivo.” KELSEN, Hans. Que es Justicia?, p. 157,152 a 168. 117 Importante lembrar que Kelsen, na segunda edição de seu Teoria Pura do Direito de 1960 (Berkeley/Califórnia), apresenta algumas mudanças de pensamento em relação a primeira edição de 1934 (Genebra), afirmando que já não se contentava mais em “formular os resultados particularmente característicos de uma teoria pura do Direito”, procurando “resolver os problemas mais importantes de uma teoria geral do Direito de acordo com os princípios da pureza metodológica do conhecimento científico-jurídico e, ao mesmo tempo, precisar, ainda melhor do que antes havia feito, a posição da ciência jurídica no sistema das ciências.” KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. XI -XVIII. E, ainda nos relembra, que “a teoria pura do Direito limita-se a uma análise estrutural do Direito positivo, baseada em um estudo comparativo das ordens sociais que efetivamente existem e existiram historicamente sob o nome de Direito. Portanto, o problema da origem do Direito [...] ultrapassa o escopo desta teoria.” KELSEN, Hans. O que é justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 291. 118 KELSEN, O problema da justiça, op. cit., p. 80 e seguintes. De se lembrar, que à época, havia um predomínio do pensamento jusnatualista, conforme explica Warat e Pepe: “até o aparecimento, em 1911, do primeiro texto de Kelsen sobre a teoria geral do Direito, a ciência jurídica se encontrava sob o domínio absoluto de correntes jusnaturalistas. Em função disso, Kelsen foi amaldiçoado por uns e endeusado por outros. As cátedras de Filosofia do Direito eram dominadas por professores jusnaturalistas. Muitas gerações de juristas conheceram o pensamento de Kelsen através de professores que o odiavam e que deturpavam sua obra. [...] Alguns diziam, por exemplo, que Kelsen pregava a existência de um Direito sem moral; que a idéia de pureza jurídica era antidemocrática, porque colocava no mesmo nível as normas de um Estado democrático e as de um Estado totalitário, reconhecendo a validade de ambas. [...] Como já vimos, o objeto de sua reflexão sempre foi a Ciência do Direito e não o Direito.”. WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 61-62. 119 ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 106. 120 Com Kelsen vemos que “la razón es que la ‘validez’ de una norma es su modo específico de existir, la razón de la validez de una norma es también la base de su existencia. La razón de la
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inquestionavelmente válida para todos os efeitos, não importando qual fosse seu
conteúdo121. Não deveria, pois, ser preocupação do jurista a avaliação valorativa da
lei. Deveria, tão somente, verificar o atendimento dos requisitos formais de criação
da lei, e aplicá-la ao caso concreto exatamente nos termos que prescreve.122 Logo,
para Kelsen, somente a norma formalmente válida faz algo ser verdadeiramente123
jurídico124.
1.2.2 Hart e a concepção anglo-saxônica de norma jurídica
Também defendendo a completa desconexão entre Direito e moral,
Hart125, ao seu modo, e no contexto anglo-saxão do Comonn Law, também propõe
uma concepção jurídica positivista, objetivando o rompimento com o paradigma126
jusnaturalista, e objetivando oferecer ao Direito, especialmente quanto à
compreensão de seus fundamentos, uma base mais sólida e firme para o seu estudo
e aplicação127.
Preocupado em propor possibilidades de resposta à indagação ‘o que
é Direito?’, Hart procura construir não uma teoria de cunho crítico, mas sim uma
proposta teórica que, considerando o significado das palavras em face de um
contexto social128, possa esclarecer e clarificar “o quadro geral do pensamento
validez de una norma siempre es otra norma, nunca un hecho.” KELSEN, Que es Justicia?, op. cit., p. 137. 121 Afirmando seu relativismo axiológico, Kelsen, rejeita “a existência de um absoluto em geral e de valores absolutos em particular” apenas reconhecendo a validade de valores relativos “a validade do Direito positivo não pode ser posta na dependência de sua relação com a justiça.” KELSEN, O problema da justiça, op. cit., p. 69. 122 KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 11. 123 Calsamiglia nos lembra que, para Kelsen, “la única verdad intersubjetiva es la verdad científica. El conocimiento científico pretende descubrir la verdad.” CALSAMIGLIA, Albert. Estudio Preliminar. In: Que es Justicia?, op. cit., p. 31. 124 MELO, Fundamentos da Política Jurídica, op. cit., p. 29. 125 HART. Herbert L. A. O conceito do Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. 126 Tomas Kuhn, que parte de uma perspectiva histórica da ciência, entende que paradigmas são “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” Após alguns anos da edição do texto original, reconhecendo a estrutura circular do conceito, ressalta que paradigma seria “[...] aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham de um paradigma.” KUHN, Tomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 13 e 219. 127 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 5-7. 128 Hart sofre fortes influências da Escola Analítica Inglesa: “Paralelamente, o neopositivismo estabeleceu suas bases na Inglaterra com as formulações dos filósofos impulsionados pelos ensinamentos de Wittgenstein em Cambridge. O grupo se desenvolveu em torno da Universidade de Oxford (Austin, Hart, Strawson e outros). Tais estudiosos pesquisaram a linguagem cotidiana,
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jurídico” contraposto à sociedade e à conduta humana social, a partir de seus
principais pontos de especulação.129 Sustenta que o Direito pode se identificar com
um fato social, e que o núcleo do Direito estaria nas fontes sociais130.
Hart inicia sua análise insurgindo-se à proposta teórica de Austin -
que tanto influenciou a ciência do Direito inglesa. Austin defendia a tese de que o
Direito nada mais seria do que o conjunto de obrigações jurídicas traduzidas por
ordens e comandos baseados em ameaças, emanadas de uma autoridade soberana
(que não presta obediência a ninguém), ou por subordinados em obediência a
este131. Hart, contrapondo-se, afirma que por mais atraente que possa parecer esta
tese de redução do complexo fenômeno do Direito, constitui tal concepção uma
distorção reducionista que não responde à saciedade à pergunta ‘o que é o Direito?’,
nem mesmo na esfera penal, onde tal tese parece mais plausível.132
Considerando a incapacidade da tese austiniana em explicar de
modo adequado a abrangência do significado de regra, Hart propõe uma nova
concepção do Direito, o compreendendo como união entre regras primárias e
secundárias, conforme elucida:
Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas acções, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os serem humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a acções que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis actos que
oferecendo, através de Hart, uma importante contribuição para o estudo do discurso moral e do Direito”. WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 36. 129 Por isso, Hart, em relação à sua obra, afirma que “o jurista considerará o livro como um ensaio sobre teoria jurídica analítica.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 1-3 e 10. 130 Ou seja, para Hart, “el objeto principal del teoria del derecho es conocer, describir y explicar las convenciones del passado”. CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: Cuadernos de Filosofia del Derecho. Alicante (Espanha), v. 21, 1998. p. 211. 131 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 59. 132 Hart defende que o positivismo de Austin é insuficiente, pois o Direito não é composto somente por regras imperativas de comandos e ameaças, havendo ainda regras com origem nos costumes ou na moral. Como explica, a “[...] convergência de comportamentos entre membros de um grupo social pode existir (todos podem tomar chá regularmente ao pequeno almoço ou ir semanalmente ao cinema) e contudo pode não existir uma regra a exigi-lo.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 11, 14 e 31.
30
conduzem não só a movimento ou mudança físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações.133
Hart crê piamente que a chave da compreensão do fundamento do
Direito está no reconhecimento deste como fusão dos dois tipos de regras por ele
proposto. A compreensão a respeito da interação recíproca e necessária entre
regras primárias e regras secundárias seria a solução para as perplexidades e
dificuldades quanto ao ‘conceito de Direito’.134
O professor de Oxford defende que o fundamento último das regras
jurídicas, ou seja, o seu fundamento de validade, se encontraria no que denomina
como ‘regra de reconhecimento’135. Desta forma, segundo Hart, uma regra válida
seria uma regra faticamente reconhecida136, identificada pelos tribunais,
funcionários, particulares e consultores como autêntica regra de Direito137. Significa
dizer, que tal regra, para ser autêntica “satisfaz todos os critérios facultados pela
regra de reconhecimento.”138
Para que ocorra este exercício de ‘reconhecimento’ da regra como de
Direito, Hart entende como essencial que se leve em consideração o ponto de vista
interno e o ponto de vista externo139 em relação ao sistema jurídico. Conforme
explica,
133 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 91. 134 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 91-92. 135 Ensina Hart: “A regra de reconhecimento, que faculta os critérios através dos quais a validade das outras regras do sistema é avaliada, é, num sentido importante que tentaremos clarificar, uma regra ultima: e onde, como é usual, há vários critérios ordenados segundo a subordinação e a primazia relativa, um deles é supremo.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 117. 136 Com Calsamiglia, vemos que “la regla de reconocimiento de Hart consiste en una prática social que estabelece que las normas que satisfacen ciertas condiciones son válidas. Cada sistema normativo tiene su própria regla de reconocimiento y su contenido varia y es una cuestion empírica. Hay sistemas normativos que reconocen como fuente del derecho un libro sagrado, o la ley, o las costumbres, o varias fuentes a la vez. La regla de reconocimiento es el criterio que utiliza Hart para identificar un sistema jurídico y fundamenta la validez de todas las normas derivadas de ella.” CALSAMIGLIA, Albert. Prólogo in: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1989. p. 09. 137 Hart nos lembra que “[...] a regra de reconhecimento é diferente das outras regras do sistema. A asserção de que existe só pode ser uma afirmação externa de facto. Porque, enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido, ‘existir’, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários, e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de facto.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 121. 138 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 113-114. 139 Explica o autor: “Na verdade, um dos temas centrais do livro é o de que nem o direito, nem qualquer outra forma de estrutura social podem ser compreendidos, sem uma apreciação de certas
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O uso pelos tribunais e outras entidades de regras de reconhecimento não afirmadas, para identificar as regras concretas do sistema, é característico do ponto de vista interno. Aqueles que as usam deste modo manifestam através desse uso a sua própria aceitação das regras como regras de orientação e, relativamente a esta atitude, está associado um vocabulário característico diferente das expressões naturais do ponto de vista externo.140
Outro ponto bastante relevante da tese de Hart, e que reflete sua
preocupação com os preceitos de interpretação e de incertezas141 do Direito
positivo, é sua concepção tocante ao que denominou de ‘textura aberta do Direito’.
Para Hart, a quem “a subsunção e a extracção de uma conclusão silogística já não
caracterizam o cerne do raciocínio implicado na determinação do que é a coisa
correcta a fazer-se”142, o poder discricionário oferecido pela linguagem é muito
amplo, e precisa ser encarado como poder de verdadeira escolha entre possíveis
interpretações por parte do operador jurídico, especialmente o julgador.143
A discricionariedade, desta forma, entendida como a possibilidade de
escolha por parte do intérprete, seria, segundo o autor, uma condição inerente ao
ser humano, especialmente quando se procura regular a conduta social por meio de
padrões gerais. Neste exercício de tentativa de disciplinamento da convivência
social, o intérprete necessitaria do recurso discricionário diante da ignorância - que
lhe é inerente - de todas as possibilidades fáticas a serem consideradas frente a
uma regra.144 Desta forma, para Hart,
A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso [...] Em qualquer sistema jurídico, deixa-se em aberto um vasto e importante
distinções cruciais entre duas espécies diferentes de afirmação a que eu chamei ‘interna’ e ‘externa’ e que podem ambas ser feitas, sempre que são observadas regras sociais”. HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 01. 140 HART, O conceito do Direito, op. cit., 114. 141 Nos lembra Hart, que “os cânones de ‘interpretação’ não podem eliminar estas incertezas, embora possam diminuí-las; porque estes cânones são eles próprios regras gerais sobre o uso da linguagem e utilizam termos gerais que, eles próprios, exigem interpretação.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 139. 142 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 140. 143 Afirma Hart que, “seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamento, estes, não obstante a facilidade com que actuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuirão aquilo que foi designado como textura aberta.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 140 e 141. 144 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 141.
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domínio para o exercício do poder discricionário pelos tribunais ou por outros funcionários, ao tornarem precisos padrões que eram inicialmente vagos, ao resolverem as incertezas das leis ou ao desenvolverem e qualificarem as regras comunicadas, apenas de forma imperfeita, pelos precedentes dotados de autoridade.145
No entanto, mesmo reconhecendo a necessidade do recurso
discricionário por parte do intérprete do Direito, entende o autor que tal poder não é
ilimitado. Fazendo alusão ao ‘jogo de críquete’, Hart tenta explicar que o poder de
escolha do intérprete do Direito estaria limitado por um parâmetro mínimo de
interpretação, do qual não poderia se afastar, tal qual ocorre com um árbitro no seu
exercício de disciplinar e definir o resultado de um jogo.146
Assim, no seu entendimento, Hart sustenta que o conjunto normativo
de regras de um sistema jurídico figura ao juiz/intérprete como padrões a serem
seguidos em sua decisão, como parâmetros de limitação de seu poder discricionário
sem, no entanto, excluí-lo. Logo, o intérprete, em suas possibilidades de escolha,
não poderia afasta-se do preceito nuclear na regra positiva.147
Vista, então, a concepção de Hart quanto ao Direito e seu
fundamento, mais voltada evidentemente ao Comonn Law, também enaltecendo a
importância da norma em si, afastada de qualquer vinculação com a moral e sem
importar seu conteúdo valorativo - que apenas seria preenchido pela
discricionariedade do intérprete nos casos difíceis -, passa-se a outra forte influência
do paleopositivismo europeu: a teoria do ordenamento jurídico de Norberto Bobbio.
1.2.3 Bobbio e a Teoria do Ordenamento Jurídico
145 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 148 e 149. 146 Em suas palavras: “Podemos distinguir um jogo normal de um jogo de ‘discricionariedade do marcador’ simplesmente porque a regra de pontuação, embora tenha, como outras regras, a sua área de textura aberta em que o marcador deve exercer uma escolha, possui contudo um núcleo de significado estabelecido. É deste núcleo que o marcador não é livre de afastar-se e que, enquanto se mantém, constitui o padrão de pontuação correcta e incorrecta, quer para o jogador, ao fazer as suas declarações não-oficiais quanto ao resultado, quer para o marcador nas suas determinações oficiais. É isto que torna verdadeiro dizer que as determinações do marcador não são infalíveis, embora sejam definitivas. O mesmo é verdade quanto ao direito.” HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 157-158. 147 HART, O conceito do Direito, op. cit., p. 161.
33
Para Bobbio148, que se contrapôs em certa medida às concepções
juspositivistas que lhe antecederam149 por entendê-las insuficientes, torna-se
impossível uma definição do Direito a partir da norma jurídica considerada
isoladamente. No seu entendimento “uma definição satisfatória do Direito só é
possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico”.150 Isto,
porque jamais se poderia compreender o Direito tendo como ponto de partida a
norma em si, vista isoladamente do sistema de que faz parte. Neste sentido, o
estudo do Direito deve ocorrer a partir de um conjunto unitário, coerente e completo
de normas, que em seu todo seria o ordenamento jurídico.151
Em Bobbio vemos que o ordenamento jurídico, muito embora
formado por tipos de normas diferentes, apresenta-se como uma construção
escalonada e unitária. Isto é, aceitando a concepção Kelseniana da hierarquia entre
normas jurídicas, Bobbio defende que o ordenamento é estruturado de normas
superiores e inferiores que nascem da mesma e única fonte. Neste modelo, as
normas inferiores dependem das superiores, e em direção ascendente, chega-se a
uma norma última, a denominada por Kelsen, como já visto, como ‘norma
148 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1991. 149 No entanto, se manteve fiel em muitos pontos a Kelsen: “A teoria do ordenamento jurídico encontra a sua mais coerente expressão no pensamento de Kelsen.” BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 198. 150 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 22. Explica o autor: “Consideramos particularmente importante a teoria do ordenamento jurídico para efeito da caracterização do positivismo jurídico, porque através dela chega-se ao coração desta corrente jurídica. Enquanto algumas outras teorias juspositivistas – como a concepção coercitiva e a imperativista do Direito – surgiram anteriormente e o positivismo jurídico se via limitado a adequá-las e reelaborá-las, formulando-as com maior coerência, a teoria do ordenamento jurídico foi ‘inventada’, isto é introduzida ex novo pelo próprio positivismo.” BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 197 151 Afirma o autor: “o que comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos que de certas normas.” BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 28.
34
fundamental’152. Cada ordenamento jurídico teria a sua norma fundamental153, sendo
este o alicerce que oferece unidade a todas as outras normas.154
Pode-se pensar que, com esta concepção kelseniana de norma
fundamental, fazendo todo o sistema normativo depender do poder
originário/constituinte, estar-se-ia reduzindo o Direito à força. No entanto, Bobbio
explica que não podemos confundir o ‘poder’ com ‘força’, pois “falando em um poder
originário, falamos das forças políticas que instauraram um determinado
ordenamento jurídico.”155
O ordenamento jurídico, na concepção de Bobbio, é encarado como
uma unidade sistemática, compreendendo-se as normas que o compõem num
permanente relacionamento de coerência e compatibilidade entre si. Tal
relacionamento de compatibilidade entre as normas ocorre no sentido de que as
incompatibilidades são excluídas pelo próprio sistema. Ou seja, admitir-se-ia que
nem todas as normas produzidas pelo sistema seriam válidas, mas somente aquelas
normas que fossem compatíveis com outras.156
Assim, pode-se dizer que o sistema rejeita incompatibilidades entre
normas, ou como quer Bobbio, “o Direito não tolera antinomias”. O professor italiano
explica que se pode verificar antinomias nos seguintes casos:
1) entre uma norma que ordena fazer algo e uma norma proíbe fazê-lo (contrariedade); 2) entre uma norma que ordena fazer e uma que permite não fazer (contraditoriedade); 3) entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer (contraditoriedade);157
152 Explica Bobbio, que “a norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento”. Seria a norma fundamental um pressuposto de legitimidade que antecede à normas constitucionais: “dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa norma é a norma fundamental”. BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 28, 58 e 59. 153 Com a solução da ‘norma fundamental’, se pretende evitar com que o direito dependa exclusivamente do fato. BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 202. 154 De se lembrar, que “esta norma-base não é positivamente verificável, visto que não posta por um outro poder superior qualquer, mas sim suposta pelo jurista para poder compreender o ordenamento: trata-se de uma hipótese ou um postulado ou um pressuposto do qual se parte no estudo do direito.” BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 201. 155 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 65-66. 156 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 71-81. 157 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 85.
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Ainda que reconhecendo a dificuldade em eliminar todas as
antinomias de um sistema jurídico158, Bobbio propõe algumas regras fundamentais
para a uma tentativa de solução: a) o critério cronológico; b) o critério hierárquico; c)
o critério da especialidade. Considerando a primeira regra, de preceito temporal, no
caso de incompatibilidade entre duas normas, prevalecerá a norma posterior. No
critério hierárquico, em atenção à estruturação escalonada do sistema jurídico,
prevalecerá a norma hierarquicamente superior. E na regra da especialidade,
quando ocorrer incompatibilidade entre uma norma geral e uma norma específica
(ou excepcional), esta prevalecerá, por uma “exigência fundamental de justiça”.159
Explica Bobbio, retomando um postulado tradicional do
juspositivismo, que diante da insuficiência dos critérios para o solucionamento da
antinomia, “a solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete”, podendo-se
tratar de um poder discricionário do intérprete, ao qual caberia solucionar o conflito
“segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas
pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma
só regra.”160
Nestes casos, de completa insuficiência dos critérios cronológico,
hierárquico e de especialidade, o jurista teria ainda a sua frente três possibilidades
em relação às normas jurídicas em análise: “1) eliminar uma; 2) eliminar as duas; 3)
conservar as duas.” Bobbio afirma que a última possibilidade (conservar as duas) é
a que o intérprete mais freqüentemente recorre. Esta possibilidade traduz um
recurso hermenêutico nominado por Bobbio de interpretação corretiva. Neste
recurso haveria, por parte do intérprete, um esforço no sentido de conciliar duas
normas aparentemente incompatíveis, conservando-as no sistema.161
Por fim, além da unidade e coerência, a teoria do ordenamento
jurídico de Bobbio propõe a completude do sistema. Ao seu ver esta é a mais
importante característica, eis que “é a mais típica e representa o ponto central, o
158 Afirma Bobbio neste sentido: “[...] é necessário acrescentar logo que essas regras não servem para resolver todos os casos possíveis de antinomia.” BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 92. 159 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 92-97 160 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 100. 161 BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, op. cit., p. 100-103.
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coração do coração [...] do positivismo jurídico.”162 Este aspecto, que está
diretamente ligado ao princípio da certeza jurídica, que consiste na ideologia
fundamental deste movimento do Direito, tem por objetivo conciliar dois outros temas
juspositivistas fundamentais: “aquele segundo o qual o juiz não pode criar o direito e
aquele segundo o qual o juiz não pode jamais recusar-se a resolver uma
controvérsia qualquer”.163 Ou seja, afirmar que o ordenamento jurídico é completo
significa recusar a existência de lacunas na lei.164
Destarte, com este breve resgate histórico-conceitual a respeito de
norma jurídica, pôde-se observar que a visão positivista do Direito, que exerce forte
influência no âmbito jurídico - podendo-se até considerar como a concepção
prevalente que informa o senso comum teórico dos juristas165-, de modo geral, ainda
reduz o Direito à regra ou ao seu conjunto normativo-sistemático. Encontra-se, como
visto, apoiada na defesa da autonomia do Direito, tendo por base a teoria das fontes
sociais e a rígida separação entre Direito, moral e política166. Sem considerar o
conteúdo da norma jurídica, o Direito vale pelo que representa a norma em si, não
havendo preocupação ou cuidado em analisar se há consonância entre a lei e a
realidade social. A base operacional do sistema ainda continua sendo o apelo ao
recurso silogístico lógico-dedutivo, aliado à concepção tautológica de inspiração
kantiana de que ‘lei posta’ é ‘lei válida’, e que deve ser cumprida porque é a lei:
como diria Zizek, “a lei é a lei”167e isso basta.
1.2.4 O Neoconstitucionalismo e a perspectiva principiológica
162 BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 207. 163 BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 207. 164 BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 208. 165 Não por demais lembrar que, conforme explica Warat e Pêpe, “metaforicamente, poderíamos caracterizar o referido senso comum como a voz oculta do Direito; um conjunto de ecos legitimadores de um grupo de idéias a partir das quais é dispensado o aprofundamento das condições e das relações que tais idéias mitificam”. WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 87. 166 Calsamiglia nos lembra que a teoria das fontes sociais do Direito defende que as decisões do passado determina qual resposta que se deve dar juridicamente no presente. CALSAMIGLIA, Postpositivismo, op. cit., p. 210. 167 Explica Zizek: “de maneira mais precisa, poderíamos dizer que a fantasia ideológica vem tapar o buraco aberto pelo abismo, pelo cunho infundado da lei social. Esse buraco é delimitado pela tautologia ‘a lei é a lei’, fórmula que atesta o caráter ilegal e ilegítimo da instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino da lei”. ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 63.
37
Esta visão positivista-legalista, que ainda figura como predominante
no meio jurídico e social, além de ter se mostrado desastrosa na prática168, ainda
gera muitos problemas para a adequada compreensão do Direito. Com Kelsen, Hart,
Bobbio e outros positivistas, construiu-se uma teoria jurídica que, com o objetivo de
conferir estatuto de cientificidade ao Direito e de afastá-lo de vez por todas do
levante jusnaturalista de então, não assimilou a importante mudança de
paradigma169 que florescera com o segundo pós-guerra: o chamado novo
constitucionalismo170.
Este novo constitucionalismo, renovado em suas fontes, e também
decorrente da virada hermenêutica que se consolidava no século XX, exige uma
nova teoria de norma e uma nova forma de compreender o Direito. A partir deste
novo paradigma, a velha teoria da norma - calcada na construção positivista
tradicional que tem como ponto exclusivo de partida a norma enquanto regra positiva
compreendida num esquema subsuntivo de dedução lógico-racional -,
compreenderá a inserção de uma nova espécie normativa constitucional: o
princípio.171
Esta nova compreensão tem sido fruto de uma corrente de teorias
contemporâneas, também chamadas de pós-positivistas172 ou neoconstitucionalistas
168 Magalhães lembra que, com esta concepção da regra válida independentemente de seu conteúdo, o positivismo jurídico “passou a ser acusado por seus críticos de ser uma epistemologia legitimadora de ordens jurídicas totalitárias, passando a ser reputado responsável pelas mazelas que a humanidade conheceu em meados de nosso século.” MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. Interpretando o direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu e outro(Orgs.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 136-137. 169 Para Edgar Morin, “um paradigma impera sobre as mentes porque institui os conceitos soberanos e sua relação lógica (disjunção, conjunção, implicação), que governam, ocultamente, as concepções e as teorias científicas, realizadas sob seu império”. MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.114. 170 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito, op. cit. 171 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito, p. 224-225. Com Magalhães, vê-se que “na virada hermenêutica, tratou-se então de repensar a validade jurídica através do esquema princípios/regras. Aqui o paradoxo [direito e não direito] aparece na forma de princípios que, embora tenham força normativa, diferenciam-se das ‘normas’ em geral (regras).” MAGALHÃES, Interpretando o direito como um paradoxo, op. cit., p. 140. 172 Calsamiglia explica que “postpositivista es toda aquella teoria que ataca las dos tesis mas importantes del positivismo conceptual: la tesis de las fuentes sociales del derechos y la no conexión necesaria entre lo derecho y la moral. [...] y denominaré postpositivistas las teorias contemporaneas que ponen el acento en los problemas de la indeterminacion del derecho y la relaciones entre lo derecho, la moral y la política. [...] Lo postpositivismo cambia la agenda de problemas porque presta especial atención a la indeterminación del derecho. Se desplaza del centro de atención de los casos claros e faciles a los casos dificiles. Lo que interessa no es tanto averiguar las soluciones del passado
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- com destaque a autores como Alexy, Dworkin e Habermas -, que privilegiam e dão
especial atenção aos problemas de indeterminabilidade e incerteza do Direito
(encarando os casos difíceis ou hard cases não mais como casos excepcionais), e
às relações entre Direito, moral e política173.
1.2.4.1 Habermas: discursividade comunicativa consensual
Com Habermas, vê-se que a completa desconexão entre Direito e
moral, por um lado, e entre Direito e política, por outro, é inapropriada, e constitui
uma leitura equivocada da sociedade contemporânea174. O professor alemão explica
que diante da permanente tensão que sempre se constatou no Direito entre
indisponibilidade e instrumentalidade175, o juspositivistas preocupados em resgatar o
parâmetro de indisponibilidade do Direito representado pelo ‘sagrado’, e que o
legitimava para o Direito natural, primeiramente recorreram à autoridade soberana
(Austin), e posteriormente recorrem à autonomia racional-normativa sem conteúdo
(Kelsen), afastando por completo o Direito e seus pressupostos de justiça, perdendo,
por conseqüência, sua âncora de legitimação.176
Tal problema, explica o autor, já se observava na modernidade.
Hobbes, tentando afastar qualquer conteúdo moral para a justificação do Direito
positivo ou do poder político, achava que o Direito absoluto do soberano deveria se
impor mesmo sem um parâmetro equivalente ao ‘sagrado’. Kant, por sua vez, já
mais preocupado em fundamentar o ‘novo direito’ - o ‘direito positivo’ -, recorre à
razão prática177, desenvolvendo sua doutrina do Direito, na dimensão de uma teoria
moral; consolidando o ‘imperativo categórico’ como princípio geral do Direito. Tanto
sino resolver los conflitos que todavia no estan resueltos. [...] Lo postpositivismo no presta solo atención al passado sino tambíem al futuro [...]. El postpositivismo pone atención em la pregunta que se debe hacer ante um caso dificile. [...] El postpositivismo han desplazado el centro de la atención de la legislación a la adjudicación. El intérprete del derecho e el juez ocupan o lugar que antes era ocupado pelo legislador como objeto de analisis.” CALSAMIGLIA, Postpositivismo, op. cit., p. 209 e 211, 212, 215. 173 STRECK, A atualidade do debate da crise paradigmática do direito, op.cit., p. 224-225. 174 WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, p. 77 175 Trata-se aqui “da indisponibilidade do direito pressuposto na regulação de conflitos judiciais” e “da instrumentalidade do direito posto a serviço do exercício do poder”. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Vol.II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 232. 176 Habermas explica: “A partir do momento em que a validade do Direito é desligada dos aspectos de justiça, que ultrapassa as decisões do legislador, a identidade do direito torna-se extremamente difusa. Pois neste caso, desaparecem os pontos de vista legitimadores, sob os quais o sistema jurídico poderia ser configurado para manter determinada estrutura do médium do Direito”. HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 237. 177 Isto é, a razão de uma moral autônoma.
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a primeira quanto a segunda empreitada, na busca por um referencial de
legitimidade ao Direito, fracassaram. Com Hobbes o Direito se confunde com poder,
e com Kant o Direito se desfaz em moral.178 Nem mesmo a iniciativa alemã, friza o
autor, com Savigny e seus seguidores, de através da cientificidade tentar legitimar a
legalidade, alcançou êxito.179
Habermas defende que o entrelaçamento entre Direito, moral e
política é fator de gênese. Afirma que quando o Direito formava seus aspectos de
indisponibilidade e instrumentalidade, a consciência moral funcionou como uma
“espécie de catalisador no processo em que se mesclam Direito e Moral”180. Para
Habermas, a moralidade está “embutida no direito positivo” e “possui força
transcendente de um processo que se regula a si mesmo e que controla sua própria
racionalidade”181. Assim, segundo o herdeiro da Escola de Frankfurt, o Direito não
pode ser autônomo e legítimo por si próprio. Ele somente se torna autônomo e
legítimo na medida em que “os processos institucionalizados da legislação e da
jurisdição garantem uma formação imparcial da opinião e da vontade, abrindo assim
o caminho para a entrada da racionalidade moral procedimental no direito e na
política”182.
1.2.4.2 Alexy e a principiologia ponderativa
Também aproximando Direito e moral, mas sob outro enfoque183,
Alexy, através de sua Teoria de los Derechos Fundamentales184 foi dos primeiros
estudiosos a trabalhar a concepção de normas jurídicas divididas em espécies.
Nessa obra, o autor procura consolidar uma teoria geral dos direitos fundamentais
enquanto teoria jurídica, e não como uma pretensa filosofia dos direitos
178 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol.II., op. cit., p. 238-239. 179 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol.II., op. cit., p. 243. 180 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol.II., op. cit., p. 236. 181 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol.II., op. cit., p. 243. 182 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol.II., op. cit., p. 247. 183 Alexy enfrenta fortes críticas de Habermas, especialmente quanto a sua visão excessivamente valorativa do Direito e da Constituição. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 317. 184 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.
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fundamentais independente do direito positivo185. Sua teoria pode ser considerada
como “la parte general de la dogmática de los derechos fundamentales”.186
E para cumprir seu desiderato - o de fortalecer sua proposta teórica
acerca da dogmática dos direitos fundamentais187 - Alexy apresenta uma teoria dos
princípios, como uma “axiologia isenta de suposições insustentáveis”188. Isto é, o
autor alemão embasa sua teoria, ainda que muito criticado por isso, na combatida
axiologia dos direitos fundamentais, como única via possível de sustentação e
viabilização destes direitos.189 Alexy, em sua proposta teórica, equipara princípio a
valor190. O que hoje são os direitos fundamentais, na opinião do autor, é definido
principalmente sobre a base da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal
Alemão, a também chamada jurisprudência de valores191, que concebe a
Constituição como uma ordem concreta de valores192. 193
185 Afirma Alexy que “siempre que alguien posse un derecho fundamental, existe una norma válida de derecho fundamental que le otorga este derecho.” ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 47. 186 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 25. 187 O autor alemão procura fixar uma teoria geral dos direitos fundamentais, com status de teoria jurídica que considera os direitos positivamente válidos, enaltecendo três dimensões da dogmática jurídica: a analítica, a empírica e a normativa. ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 29. 188 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 25. 189 Aduz Alexy: “La teoria de los princípios es una axiologia exenta de suposiciones insustenibles. Habrá que mostrar que no es posible una dogmática adcuada de los derechos fundamentales sin una teoria de los principios. Por ello, uno de los objetivos de esta investigación es la rehabilitación de las tantas veces criticada axiología de los derechos fundamentales.” ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 25. 190 Neste sentido afirma: “Es fácil reconocer que los principios y los valores estan estrechamente vinculados enter si en un doble sentido: por una parte, dela miesma manera que puede hablarse de una colisión de principios y de una poderación de principios, puede tambíen hablarse de una colisión de valores y de ponderación de valores”. E mais a frente comenta: “El modelo de los principios y el modelo de los valores han demonstrado ser esencialmente iguales por lo que respecta a su estractura, con la diferencia de que el uno debe ser ubicado en el ámbito deontológico (el ámbito del deber ser) y el otro en el ámbito axiológico (el ámbito de lo bueno)”. ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit, p. 138 e 147. 191 Alexy enfrenta, neste sentido, as fortes críticas de Jürgen Habermas, que recusa-se a conceber a Constituição como ordem valorativa, diante da falta de caráter deontológico dos valores, defendendo uma visão procedimentalista do texto constitucional. Habermas afirma: “Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente. Valores expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinadas coletividades, podendo ser adquiridas ou realizadas através de um agir direcionado a um fim. Normas surgem com uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou inválidas. [...] Os valores, ao contrário, determinam relações de preferência, as quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 316-317. 192 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 23-24.
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Com sua teoria, Alexy parte da análise estrutural da norma de direito
fundamental, apresentando uma diferenciação entre regras e princípios,
considerando-os como espécies do gênero ‘norma’. Em sua opinião, tal
diferenciação constitui a base da fundamentação jusfundamental e uma chave para
a solução dos problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais194. Como
ele mesmo afirma, “sin ella, no puede existir una teoria adecuada de los límites, ni
una teoría satisfactoria de la colisión y tampoco una teoría suficiente acerca del
papel que juegan los derechos fundamentales en el sistema jurídico.”195 A distinção
entre regras e princípios constitui, demais disso,
el marco de una teoria normativo-material de los derechos fundamentales y, con ello, un punto de partida para responder a la pregunta acerca de la posibilitad y los límites de la racionalidad en el ámbito de los derechos fundamentales. Por todo esto, la distinción entre regras e principios es uno de los pilares fundamentales del edificio de la teoría de los derechos fundamentales.196
Tal distinção, ressalta o professor alemão, não constitui uma
novidade. Não obstante sua antigüidade e freqüente utilização, ainda prevalecem a
dúvida e a polêmica. Vários são os critérios de distinção entre regras e princípios,
sendo o mais freqüentemente utilizado o ‘da generalidade’, segundo o qual os
princípios são normas de um grau de generalidade relativamente alto, e as regras,
são normas com um nível relativamente baixo de generalidade.197
Alexy chama a atenção ao fato de que tanto as regras, como os
princípios são normas que dizem respeito ao ‘dever ser’, pois, “ambos pueden ser
formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la
permision y la prohibición.” Ressalta, que “los principios, al igual que las reglas, son
193 De se lembrar que Atienza e Manero, entendendo que princípios e regras articulam-se entre si, e comungando em parte com a posição de Alexy, crêem que o elemento justificativo dos princípios é o valor. Explicam: “El resultado al que hemos llegado en el anterior punto es que las reglas y los principios aparecen interrelacionados: la vocacion de los principios – si se puede hablas así – es dar lugar a reglas (legislativas o jurisprudenciales); y las reglas se justifican por su adecuación con los principios. [...] los principios en sentido estricto incorporan valores que se consideran – que el ordenamiento jurídico considera – como últimos. [...] las reglas regulativas pueden verse como el resultado de ponderaciones entre principios en sentido estricto y/o directrices, y su aspecto justificativo proviene precisamente de los valores (de la especificación de los valores) que acabamos de ver.” ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. Madrid: Trotta, 2000. p. 20-23. 194 Entende Alexy que com sua “teoria dos princípios dos direitos individuais”, pode-se melhor articular a complexa relação entre direitos individuais e bens coletivos. ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997. p. 184. 195 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 81. 196 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 81-82. 197 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 81-82.
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razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de um tipo
muy diferente”, e arremata dizendo que “la distinção entre reglas y principios es pues
una distinción entre dos tipos de normas.”198
Assim é que, para Alexy, os princípios são, e este é o ponto decisivo
de sua distinção estrutural, normas que ordenam que algo seja realizado na maior
medida possível dentro das possibilidades jurídicas reais existentes. Isto é, os
princípios constituem verdadeiros mandatos de otimização199, estando
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a
medida devida de seu cumprimento não somente depende das possibilidades reais,
como também das jurídicas.200
Diante do problema da tensão entre normas, Alexy explica que entre
princípios existe colisão, e entre regras existe conflito201. Afirma que em ambos os
casos, as normas aplicadas independentemente conduzem a resultados
incompatíveis, ou seja, a dois juízos de dever-ser jurídico contraditórios. O conflito
de regras somente pode ser solucionado através de duas formas: introduzindo numa
das regras uma cláusula de exceção que elimina o conflito, ou declarando inválida
uma das regras. Neste caso deve-se considerar que o conceito de validade de regra
não é gradual, e a decisão aqui é uma decisão de validade: “una norma vale o no
vale juridicamente”.202
Na colisão de princípios, a maneira de solucionamento é
completamente diferente. Aqui não se leva em consideração o parâmetro de
validade como visto com as regras, e sim a dimensão de peso entre os princípios
198 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 83. 199 Afirma o autor que, enquanto mandatos de otimização, “los principios ordenam que algo debe se realizado en la mayor medida posible, teniendo en cuenta las posibilidades jurídicas e fácticas”. ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 99. 200 Explica Alexy que “el ambito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienem determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio.” ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 86-87. 201 Afirrma Alexy: “[...] los principios han sido definidos como mandatos de optimização y las reglas, como normas que sólo pueden ser cumplidas o no. De esta diferencia surgió el diferente comportamiento de conflicto y colisión.” ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 98. 202 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 87-88.
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colidentes203. Como explica Alexy, quando dois princípios entram em colisão “[...]
uno de los dos princípios tiene que ceder ante el outro. Pero, esto no significa
declarar inválido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que
introducir una cláusula de excepción.”204 Para isso, na prática, uma vez constatada a
relação de tensão entre interesses opostos, lançar-se-ia mão do recurso da
ponderação205, avaliando-se qual das pretensões principiológicas teoria maior peso
no caso concreto206. 207
Outro aspecto importante, segundo Alexy, é que os princípios
carecem de conteúdo de determinação no que toca aos princípios contrapostos e às
possibilidades fáticas. Isto porque os princípios apresentam razões que podem ser
desprezadas por outras razões opostas. Assim, os princípios não determinam como
203 Rosa explica que: “enquanto o conflito de regras resulta em uma antinomia, a ser resolvida pela perda de validade de uma das regras em conflito, ainda que em um determinado caso concreto, deixando-se de cumpri-la para cumprir a outra, que se entende ser a correta, as colisões entre princípios resultam apenas em que se privilegie o acatamento de um, sem que isso implique o desrespeito completo do outro. Já na hipótese de choque entre regra e princípio, é curial que esse deva prevalecer, embora aí, na verdade, ele prevalece, em determinada situação concreta, sobre o princípio em que a regra se baseia. Não obstante a crítica que se possa fazer a essa concepção elástica dos princípios, capaz de propiciar a pretendida impressão de coerência e unicidade do sistema jurídico – positivismo jurídico -, como demonstra Magalhães, sua funcionalidade retórica é patente, até porque é de onde se desliza na cadeia de significantes para se construir um sistema, dentre eles o jurídico, ciente que é, ademais, um mito consensualmente aceito. No caso dos princípios constitucionais, estes devem nortear a atividade estatal em todas as esferas, impedindo a prevalência de normas infraconstitucionais desprovidas de pertinência material com a principiologia constitucional, conjugando-se os instrumentos teórico-práticos disponibilizados por Ferrajoli e Alexy. Este embate, contudo, será feito no campo da linguagem argumentativa e da hermenêutica, com suas manhas e estratégias próprias.” ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 115. 204 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 89. 205 Importante notar que o recurso da ponderação axiológica preconizado por Alexy não consiste em ponto pacífico entre os estudiosos do assunto, especialmente quanto ao fato de lhe faltar um conteúdo ético fundamental. Com Rosa observa-se que “essa ponderação não pode ser absoluta. Deve partir do caso concreto, cotejando-se argumentativamente qual dos princípios em tensão possui, na espécie, o maior peso, consoante afirma Alexy, sem que, contudo, acolha-se [...] a ponderação valorativa, mas a ético-argumentativa, a partir de Dussel (critério ético-material). ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 114. 206 Com o autor: “el conflicto debería ser solucionado a través de una ponderación de los intereses opuestos”. ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 90. 207 Na opinião de Atinenza e Manero, o resultado da ponderação entre princípios é precisamente uma regra. E explica: “Por eso, tiene pleno sentido decir que los principios no determinam directamente (es decir, sin la mediación de las reglas) una solución. Precisamente por lo anterior, puede decirse (desde otra perspectiva) que la distinción entre reglas e principios solo tiene pleno sentido en el nivel del análisis prima facie, pero no una vez establecidos todos los factores, esto es, a luz de todos los elementos pertenecientes al caso de que se trate, pues entonces la ponderación entre principios debe haber dado lugar ya a una regla”. Para Atienza e Manero, importante registrar, quando se está diante de um conflito entre regras e principios, onde haja prima facie uma regra que permite uma determinada conduta, mas esta afronta um princípio, teríamos um ilícito atípico. Explicam: “si los ilícitos típicos son, pues, consuctas contratias a una regla (de mandato), los ilícitos atípicos serian las conductas contrarias a principios de mandato”. ATIENZA, MANERO, Ilícitos atípicos, op. cit., p. 20 e 27.
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se pode resolver a relação entre uma razão e seu oposto. As regras, diferentemente,
contém uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Tal
determinação pode enfraquecer por impossibilidades jurídicas e fáticas, conduzindo
à invalidade. Mas, se isto não ocorrer, a determinação da regra será válida.208
E neste sentido, Alexy discorda do posicionamento de Dworkin209,
especialmente quando seu modelo se aproxima da idéia de que os princípios têm
sempre um caráter prima facie e que todas as regras tem um mesmo caráter
definitivo210. É que Dworkin211 defende a tese de que regras, quando valem, são
aplicadas de uma maneira de ‘tudo ou nada’, considerando que os princípios
somente contém uma razão que indica uma direção, mas que não tem como
conseqüência necessariamente uma determinada decisão.212
1.2.4.3 Dworkin e o Direito como ‘integridade’
Com Dworkin vemos que princípios estão inseridos em um outro
contexto teórico. O professor anglo-saxão, que escreve no âmbito do Comonn Law,
também entende que a proposta juspositivista de ‘norma’, especialmente em Hart,
tornou-se insuficiente, devendo-se compreender o Direito numa dimensão composta
de normas, diretrizes políticas e princípios. As diretrizes políticas dizem respeito aos
objetivos sociais que se pretendem alcançar, e os princípios, estão ligados ao que
entende por justiça e eqüidade213.
208 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 99. 209 Muito embora Alexy reconheça que sua teoria dos princípios possua aproximações com as propostas de Esser e Dworkin, entende que a tese do autor anglo-saxão possui excessos, tanto na perspectiva analítica, como normativa. Veja-se: “La teoria aquí sostenida se vincula con la distinction de Esser entre princípio y norma, y con la dicotomía de reglas y principios de Dworkin. Sin embargo, aquí se sostiene la tesis de que ambos autores han analizado correctamente algunas propriedades de las reglas y principios pero no han llegado ao nucleo de la distinción. […] La tesis de Dworkin según la cual los derechos serían ‘trumps over some background justification for political decisions that states a goal for the community as a whole’ implica que, en todo caso frente a bienes colectivos, tienen un character essencialmente definitivo. Se verá que esta tesis es demasiado basta, tanto desde el punto de vista analítico como normativo.” ALEXY, El Concepto y la Validez del Derecho, op. cit., p. 184-186. 210 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 99. 211 De se registrar que Dworkin sofre forte influência de Joseph Esser. Magalhães explica: “Desde Joseph Esser, na obra Grundstaz un Norm (Princípio e norma na elaboração jurisprudencial do direito privado), o argumento de princípio parece ser a chave para escapar dos dilemas do positivismo jurídico, que marcaram a ciência jurídica ao longo dos séculos XIX e XX.” MAGALHÃES, Interpretando o direito como um paradoxo, op. cit., p. 140. 212 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1989. p. 75. 213 CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 09.
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Partindo de uma critica ao modelo positivista214, especialmente ao
que denomina ‘teoria dominante’215, Dworkin, numa perspectiva liberal e
antiutilitarista216, procura construir uma teoria que de modo coerente possa
aproximar Direito e moral217, insurgindo-se ao parâmetro de validade do Direto
utilizado pelos positivistas mais estritos218. Pretende uma teoria que, por
conseqüência, ofereça respostas ao que chama de hard cases, ou casos difíceis219.
Especialmente nestas circunstâncias, o modelo positivista, calcado em seu dogma
lógico-normativista de subsunção do fato à norma, não mais consegue oferecer
soluções. Em casos em que não haja previsão legal, tal modelo desloca à
discricionariedade judicial a responsabilidade pela escolha entre as possíveis
decisões para o caso.220
214 Conforme Dworkin: “me propongo llevar un ataque general contra el positivismo y, cuando sea necesario dirigirlo contra un blanco en particular, usare como tal la version de H. L. A. Hart.” DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 72. Explica Calsamiglia, que “Dworkin toma como punto de referencia la teoria de Hart, porque considera que es la version mas depurada del positivismo juridico.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 8. 215 Segundo Dworkin, a ‘teoria dominante’ a que se insurge, “[…] tiene dos partes y mantiene la independencia entre ellas. La primeira es una teoria sobre lo que es el derecho; […] Esta es la teoria del positivismo jurídico, que sostiene que la verdad de las proposiciones legales consiste en hechos que hacen referencia a las reglas que han sido adoptadas por instituciones sociales especificas, y en nada más. La segunda es una teoria sobre lo que debe ser el derecho y sobre como deben ser las instituciones legales conocidas. Tal es la teoria del utilitarismo que sostiene que el derecho y sus instituciones han de servir al bienestar general y a nada más. Ambas partes de la teoria dominante se derivan de la filosofia de Jeremy Bentham.” DWORKIN, Derechos en serio, op. cit., p. 31. 216 Dworkin, explicando sua objeção ao utilitarismo, e saindo em defesa do liberalismo (ao seu modo), afirma que: “gran parte de la oposicion de la teoria dominante a los derechos naturais es consequencia de uma idea que promovió Bentam: que los derechos naturales no pueden terner lugar alguno en una metafísica que se precie de empírica.” DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 36. 217 Calsamiglia afirma que “Dworkin tem insistido en una leitura moral de la Constituicion poniendo de manifiesto el papel de la moral en el lectura de los problemas constitucionales y denunciando la hipocresia de lo pressupuesto de neutralidad propuesto por lo positivismo.” CALSAMIGLIA, Postpositivismo, op. cit., p. 213. 218 Calsamiglia esclarece que “Ronald Dworkin rechaza explicitamente las doctrinas positivistas y realistas que han dominado el pensamiento jurídico en los últimos tiempos. [...] La critica del pressuposto de la distincion rígida entre el derecho y la moral es el objetivo fundamental de su ‘ataque al positivismo’. [...] El modelo positivista es estrictamente normativo porque solo puede identificar normas y deja fuera del analisis las directrices y los principios. [...] El criterio de la identificacion de los principios y las directrices no puede ser el teste de origem.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 8. 219 Dworkin explica que “en el positivismo juridico encontramos una teoria de los casos dificiles. Cuando um determinado litigio no se puede subsumir claramente en una norma jurídica, estabelecida previamente por alguna institucion, el juez – de acuerdo con esta teoria – tiene ‘discrecion’ para decidir el caso en uno o outro sentido” DWORKIN, Los Derechos en serio, op. cit., p. 146. 220 Segundo Hart, na discricionariedade judicial, o julgador procede uma escolha dentre as várias posibilidades morais possíveis: “la decisión judicial, especialmente en temas de importancia constitucional, implica la elección entre valores morales y no meramente la aplicación de un solo principio moral.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 18.
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E é exatamente neste sentido que Dworkin denuncia o fracasso do
positivismo jurídico (ou teoria dominante). Tal modelo não poderia simplesmente
excluir do Direito tais casos problemáticos por não se enquadrarem no recurso
silogístico-subsuntivo. Entende o autor que em tais situações poder-se-ia lançar mão
de standards de conteúdo moral, construídos pela história da comunidade, para
‘preencher’ a lacuna da lei. Estes standards seriam os princípios, que para Dworkin
corresponderiam a
todo el conjunto de los estandares que no son normas. [...] Llamo principio a un estandar que ha de ser observado, no porque favorezca o asegure una situacion economica, política o social que considera deseable, sino porque es una exigencia de la justicia, la equidade o alguna outra dimension de la moralidad. 221
E é neste sentido que Dworkin defende o Direito como ‘integridade’.
Em sua teoria, descreve a integridade como “um ideal político distinto”, aceitando o
princípio da integridade na prestação jurisdicional como “soberano em todo o
Direito”. Afirma o autor: “queremos tratar a nós mesmos como uma associação de
princípios, como uma comunidade governada por uma visão simples e coerente de
justiça, eqüidade, e devido processo legal adjetivo na proporção adequada.” 222Seria,
então, esta dosada interação entre os valores (standards) da comunidade e o
ordenamento jurídico que guindaria o Direito à condição de um instrumento de
justiça social a serviço do desenvolvimento humano.
A distinção entre princípios e normas, segundo Dworkin - que em
alguns casos pode se tornar difícil tarefa223-, fica bastante evidente em problemas e
casos em que o ordenamento jurídico vigente não possua lei especifica para a
questão, ou que a norma vigente encontra-se em dissonância com a realidade
social224. Referida distinção, no entendimento do autor, é lógica, pois “ambos os
221 Dworkin, ressalta que é importante diferenciar, como já dito principios e diretrizes políticas, que também constituem standards de conteúdo moral: “Llamo diretriz o diretriz política al tipo de estandar que propone un objetivo que ha de ser alcanzado; generalmente, una mejora en algun rasgo econômico, politico o social de la comunidad.” DWORKIN, Los Derechos en serio, op. cit., p. 72. 222 DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 482-483. 223 Explica o autor que “en ocasiones, una norma y un principio puedem desenpenar papeles muy semejantes, y la diferencia entre ambos es casi exclusivamente cuestion de forma”. DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 79. 224 Dworkin cita como exemplo o caso Riggs versus Palmer, decidido pelo tribunal de Nova York em 1889. Conta que, em resumo, o herdeiro testamentário teria assassinado seu avô (testador), visando se beneficiar da herança. Como não havia legislação que previsse a deserção por atentado à vida do
47
conjuntos de standards apuntam a decisiones particulares referentes a la obligación
jurídica em determinadas circunstancias, mas diferen en el caracter de la orientación
que dan”225.
Outro relevante ponto do modelo normativo dworkiniano, é que os
princípios teriam uma dimensão que faltaria às normas: a dimensão de peso ou
importância226. No caso de conflito na aplicação de princípios, diferentemente do
conflito entre normas/regras em que somente uma delas será considerada válida
com exclusão da regra conflitante, o julgador deverá levar em consideração o peso
relativo de cada um deles. Avaliará a importância dos princípios conflitantes em
atenção ao caso em que ocorrem, considerando o princípio que tiver maior força de
convicção227. No caso de conflito entre princípios e normas, o julgador também
deverá proceder a uma avaliação quanto ao peso e importância do princípio em
questão. Inclusive, “la literalidade de la norma puede ser desatendida por el juez
cuando viola un principio que en esse caso especifico se considera importante.”228
Para Dworkin a distinção entre normas e princípios é o meio que
utiliza para rechaçar a regra de reconhecimento de Hart como critério para
identificação do Direito.229 Não poderia tal regra, segundo o autor, se tornar
fundamento de princípios, porque não se pode formular critérios que relacionem
princípios com atos legislativos. Os princípios, ainda que alguns positivistas pensem
em positivá-los, não poderia ser abarcado por todo o Direito escrito, diante de sua
grande variedade e dinamicidade230.
testador, o tribunal, com base no principio de que ‘ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza’ não concedeu ao assassino o direto de herança sobre os bens do testador assassinado. DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 73. 225 DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 75. 226 Calsamiglia explica que: “El contenido material del principio – su peso especifico – es el que determina cuando se debe aplicar en una situación determinada”. CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 9. 227 CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 19. 228 CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 9. 229 Dworkin afirma: “mi conclusión es que si tratamos los principios como derecho, debemos rechazar el primer dogma de los positivistas, que el derecho de una comunidad se distingue de otros estándares sociales mediante algún criterio que asume la forma de una regla mestra.” DWORKIN, Los Derechos en serio, op. cit., p. 99. 230 Com Calsamiglia, vemos que “Dworkin sostinene que los princípios son dinâmicos y cambian com gran rapidez y que todo intento de canonizarlos esta condenado al fracasso.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 9.
48
Deste modo, entendendo o Direito como ‘integridade’ e concebendo
função deontológica para os standards de conteúdo moral que reconhece como
princípios, Dworkin crê que os juízes - quando diante de casos difíceis - podem e
devem lançar mão do conjunto de princípios de uma comunidade para oferecer uma
resposta adequada às demandas que lhe são submetidas a julgamento. Fariam isto
através de um esforço hercúleo, concretizado através de um exercício racional que
levaria em consideração o peso e importância do princípio, a história231 da
comunidade, e a jurisprudência anteriormente firmada. Por conseqüência, dar-se-ia
ao caso uma única resposta, uma resposta correta que resolveria a lide.232
1.2.4.4 Canotilho: principiologia constitucional
Outro importante autor que se debruçou sobre o estudo da norma
jurídica foi o constitucionalista português Canotilho. Rompendo com a teoria da
metodologia jurídica tradicional - que fazia distinção deontológica entre normas e
princípios -, Canotilho parte seus estudos sobre a teoria da Constituição (ou teoria
das Constituições)233, entendida como sistema aberto de regras e princípios234, em
comunhão com as teses de Alexy, Dworkin e Zagrebelski235 (com seu Direito
Dúctil)236, das seguintes premissas: “1) as regras e princípios são duas espécies de
231 Neste aspecto, Dworkin reconhece a influência de Gadamer em sua obra: “Recorro mais uma vez a Gadamer, que acerta em cheio ao apresentar a interpretação como algo que reconhece as imposições da história ao mesmo tempo que luta contra elas.” DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 75. 232 A resposta única e correta seria alcançada, conforme Dworkin, por um ‘Juiz Hércules’, “[...] um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade.” DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 287. Dworkin “sostiene que los casos difíciles tienen respuesta correcta. Los casos insolubles son extraordinarios en derechos minimamente evoucionados.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 13. 233 Reconhecendo a existência de um constitucionalismo periférico conforme apontado por Marcelo Neves, Canotilho revê sua posição quanto a uma Teoria Constitucional universalizante/universalizada: “A certa altura, comecei a ter a sensação de que deveríamos estabelecer talvez um novo diálogo, que era de não falarmos em constitucionalismo, não falarmos em teoria da Constituição, falarmos talvez de teorias das constituições [...]” CANOTILHO, J.J. Gomes. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 234 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1.148. 235 Como afirma o próprio autor: “seguimos de perto, Alexy Theorie der Grundrecht [...]; Dworkin, Taking Rights Seriously [...]; e Zagrebelsky, Il sistema constituzionale delle fontti del diritto [...].”CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1.148. Canotilho reconhece, em especial, além de influências luhmanianas em seu pensamento, a forte presença da obra de Zagrebelski, que reforça sua visão principialista do Direito. CANOTILHO, Canotilho e a Constituição Dirigente. op. cit., p. 23-24. 236 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, Derechos y Justitia. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995.
49
normas; 2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies
de normas”.237
Diante da complexidade do conceito norma, e da necessidade da
existência de parâmetros objetivos para a adequada distinção entre regras e
princípios, Canotilho apresenta uma proposta esquemática de critérios. Segundo o
autor português, regras podem ser distinguidas de princípios pelo(a): a) ‘grau de
abstração’, considerando-se que princípios possuem um grau de abstração
relativamente elevado, e regras um grau de abstração relativamente reduzido; b)
‘grau de determinabilidade’ no caso concreto, considerando que os princípios são
vagos e indeterminados, e as regras são suscetíveis de aplicação direta; c) ‘caráter
de fundamentalidade no sistema das fontes de direito’, eis que os princípios
consistem em normas com papel fundamental no ordenamento jurídico por
decorrência de sua posição hierárquica no sistema das fontes, ou pela sua
importância estruturante no sistema jurídico; d) ‘proximidade’ da idéia de Direito, pois
os princípios correspondem a standards com poder vinculante radicados nas
exigências de justiça ou na idéia de Direito, e as regras podem ser vinculativas com
conteúdo meramente formal; e) ‘natureza nomogenética’, vez que os princípios são
fundamento de regras jurídicas, com função fundante.238
Assim, para Canotilho, que entende que os princípios são
multifuncionais podendo desenvolver uma função argumentativa ou apresentar-se
como norma de conduta deôntica239, a distinção entre regras e princípios exerce
função estratégica para os direitos fundamentais240. Para o autor, as regras “são
normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem, ou
proíbem) que é ou não é cumprida [...]”241. E, por sua vez, comungando com Alexy,
entende que princípios “são normas jurídicas impositivas de uma optimização,
compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos
fácticos e jurídicos”242. Em arremate, explica que os princípios, ao constituírem
237 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1146. 238 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1146-1147. 239 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1147. 240 Como afirma, tal distinção é “particularmente importante em sede de direitos fundamentais”. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. p. 1147. 241 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. p. 1147. 242 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. p. 1147.
50
exigências de optimização, “permitem o balanceamento de valores e interesses (não
obedecem, como as regras, à lógica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a
ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes”243.
1.3 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
1.3.1 Hermenêutica tradicional: o paradigma essencialista-objetivista
Além dos avanços e ganhos que o garantismo jurídico, devidamente
cruzado com a ética material-libertadora dusseliana, proporciona para a teoria da
Constituição, a Hermenêutica244, especialmente após o giro lingüístico-
pragmático245, também tem oferecido novos olhares e novas perspectivas ao Direito
Constitucional, permitindo o desvelamento e a desmitificação de núcleos dogmáticos
da concepção tradicional, que concebiam o Direito como um elemento ‘essencial’,
uma ‘verdade absoluta’ a ser capturada por habilidades metódico-normativas do
jurista-hermeneuta.
243 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. p. 1147. Canotilho propõe ainda como tipologia de princípios: a) princípios jurídicos fundamentais; b) princípios políticos constitucionalmente conformadores; c) princípios constitucionalmente impositivos; d) princípios-garantia; e como tipologia de regras: a) normas constitucionais organizatórias e normas constitucionais materiais; b) regras jurídico-organizatórias (que subdividem-se em regras de competência, regras de criação de órgãos, regras de procedimento); c) regras jurídico-materiais (que subdividem-se em regras de direitos fundamentais, regras de garantias institucionais, regras determinadoras de fins e tarefas do Estado, regras constitucionais impositivas. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 1151-1159. 244 A origem da palavra ‘Hermenêutica’ encontra-se no grego hermeneúein, derivado do deus Hermes (Mercúrio), o intérprete da vontade divina na mitologia grega. É na obra de Aristóteles, Organon, que se encontra o emprego mais remoto do vocábulo. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997; e STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit. p. 111-121. 245 Após o giro lingüístico iniciado por Wittgenstein – especialmente com o tardio, nesta fase já influenciado por Heidegger – com o seu Investigações Filosóficas, ocorre a ‘guinada pragmática’ apontada por Pierce, seguida por James e Dewey. Este movimento coloca ‘em xeque’ a verdade primeva, fundante do conhecimento (SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Trad. Fábio M. Said. Rio de Janeiro: DP&A, 2002). Mais tarde, também Rorty oferece contribuição ao pragmatismo, por romper de vez com a concepção tradicional, de inspiração platônica, de verdade como correspondência à realidade. Rorty promove o que chama de ‘deflacionismo da verdade’. Mostra que quando se fala em verdade, trata-se de uma convenção contextualizada. Conferir também: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril, 1979; RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
51
Sem maiores aprofundamentos quanto às origens da hermenêutica,
pode-se dizer que suas raízes são encontradas na antiguidade246, quando o sujeito
pela primeira vez permite-se refletir a respeito do exercício interpretativo, ainda
entendendo-o como processo que, mediado pela linguagem, possui a mera função
de transmitir ‘essências’. Na contemporaneidade, observa-se ainda, em âmbito
interpretativo, o forte e, poder-se-ia afirmar sem receio de errar, prevalente
entendimento de que o sentido constitui um elemento ‘imanente’, ‘uno’, ‘primevo’,
‘eterno’, que aguarda pela subsunção dedutiva que o desvendaria, o descobriria,
com fidelidade ‘espiritual’ ao emissor original.
Tal modus operandi de interpretação, especialmente no universo
jurídico - onde o texto normativo representa o centro gravitacional do processo de
produção de sentido -, ocorre por forte influência do projeto subjetivo
consubstanciado pela filosofia da consciência e pela tradição mecanicista-
cientificista moderna247, que bem se refletem na hermenêutica de ordem objetivista-
idealista de Betti248. O modelo Bettiano não somente influenciou os estudiosos do
Direito a partir de sua abordagem neo-kantiana249 de apreensão do saber, como
246 Casara explica que “a história da formação da hermenêutica (arte e técnica) se inicia com o esforço dos gregos para compreender e preservar os seus poetas e se desenvolveu na tradição judaico-cristã da exegese das escrituras sagradas, especialmente a partir do século XVI. Dentre os tipos básicos de interpretação surgidos no Renascimento, merece atenção a hermenêutica jurídica (júris), ‘um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito’”. CASARA, Interpretação Retrospectiva, op. cit., p. 104. 247 Com Bacon e, especialmente, Descartes - que abrem a percepção moderna quanto ao conhecimento e o saber científico -, a razão é eleita como ponto de partida da compreensão - que seria alcançada por regras e métodos de indução garantidores da objetividade dos resultados. CHALMERS, Alan F. O que é ciência, afinal? Trad. Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 23 e seguintes. Para Descartes, expoente desta concepção mecanicista, o universo era visto como uma grande ‘máquina’, e a ‘natureza’ funcionaria de modo mecânico (a ser dominada pela razão), segundo as leis lógicas da matemática. Tal visão, que praticamente se tornou o paradigma científico da modernidade (especialmente para as ciências naturais), estendeu-se à compreensão humana, e o homem também passou a ser visto como ‘máquina’, uma máquina diferenciada pela inteligência. Em suas palavras: “isso não se afigurará de modo algum estranho a quem, sabendo quão diversos autônomos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir [...] considerará esse corpo como uma máquina que, tendo sido construída pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens”. DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Elza Moreira Marcelina. Brasília: Editora UNB, 1985. p. 74-75. 248 Trata-se aqui do historiador e jurista italiano da Universidade de Roma, Emílio Betti. Conferir em BETTI, Emilio. Teoria Generale Delle Obbligazioni. Vol. I. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore. 1953; BETTI, Emilio. Cours de Droit Civil Compare Des Obligations. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore. 1958. 249 A chamada Escola Neokantiana exerceu forte influência sobre a concepção positivista, especialmente sobre Betti. Tal escola retoma princípios basilares da doutrina kantiana, entre eles o princípio de ‘pureza cognitiva’ que, visto a partir de uma perspectiva “científica”, tornava o Direito
52
também fortaleceu a concepção normativista e metódica da hermenêutica clássico-
cartesiana250.251
Para Betti, que parte de uma percepção subjetivista-transcendental
do conhecimento, a interpretação consiste em processo racional disciplinado,
regrado, de propósito essencialmente reprodutivo. A atividade hermenêutica, neste
sentido, se prestaria unicamente a reproduzir e retransmitir a intenção, a vontade de
uma outra mente responsável pela construção de representações submetidas a
análise do intérprete. Seria, em realidade, a interiorização (apriori) ou tradução para
a sua linguagem própria, de objetivações estabelecidas por outra pessoa.252
O desiderato, na concepção do jurista italiano, é o de garantir
normativamente a objetividade dos resultados da interpretação. E tal objetivo seria
alcançado através do tratamento que bem distingue e separa ‘atribuição de sentido’
e ‘interpretação’. Conforme elucida Streck, na concepção Bettiana “a interpretação é
um reconhecimento e uma reconstrução do significado que o autor foi capaz de
incorporar”; e a atribuição de sentido seria “o ato pela qual o autor incorpora o
significado”253. Isto é, a interpretação de vertente Bettina busca constatar, capturar,
apreender aprioristicamente o que o autor original quis dizer sobre algo, a partir de
métodos regrativos e da perspectiva de um eu puro universal que seria absoluto,
auto-determinante de si e do mundo-objeto que o circunda254.
acessível tão somente por meio de uma metodologia ‘pura’, ‘neutra’, ‘a priori’. WARAT, Introdução Geral do Direito, Vol. II, op. cit., p. 136-137. 250 A hermenêutica clássica calcada no rigor metodológico-normativista é decorrente, como visto, da forte influência de René Descartes que se guiava pelos seguintes princípios básicos: “o primeiro preceito era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal [...]. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos [...]. E o último, o preceito de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido.” DESCARTES, Discurso do Método, op. cit., p. 44-45. 251 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 94. 252 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 94 e 106. 253 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 107. 254 Também decorrência da premissa dogmática mitificada pelo cogito cartesiano “penso, logo existo”, que influenciou toda a epistemologia moderna.
53
A partir desta compreensão normativo-racional do processo
hermenêutico, herança das construções aristotélica, baconiana, cartesiana255 e,
também, kantiana, vê-se que a ação interpretativa deve submeter-se, para o revelar
objetivo do texto, a regras e métodos dos mais variados, entre eles, gramatical ou
literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico256. Tais técnicas ou
métodos oferecem uma ‘pseudo neutralidade’ rumo a busca de uma ‘verdade
fundante’ no núcleo da significação e, em realidade, segundo Warat, ocultam - por
meio do estabelecimento de crenças no imaginário dos operadores desavisados -
deslocamentos discursivos que travestem posicionamentos ideológicos do
intérprete.257 Representam, pois, referidos métodos258, instâncias retóricas que
primam por canalizar de modo aparentemente objetivo e científico, determinados
valores que se pretendem por alguma razão preservar259. E este modus
hermeneuticus, com todo o legado da construção espistemológica cientificista-
metodológica, transpôs-se para a hermenêutica jurídica, tornando-se ferramenta
prevalente de interpretação e aplicação da lei.
Esta forma de compreender e interpretar, própria, como se viu, do
senso de sentidos da ‘realidade moderna’260, estende sua penetrante influência aos
países periféricos, especialmente ao Brasil. Aqui, tem-se como referencial clássico o
posicionamento teórico de Maximiliano, que, seguido por um verdadeiro exército de
discípulos produtores dos mais ‘renomados’ manuais de Direito, se tornou (e ainda
é) tradicional e indispensável para o regime “bancário”261 do ensino jurídico pátrio262.
255 Observa-se a construção teórica mecanicista-metodológica do início da modernidade (com os legados da antiguidade grega), e sua influência para o modo de fazer ciência, e por conseqüência, de compreender o mundo, em CAPRA, Fritoj. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 49 e seguintes. 256 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980. p. 73-80. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonag, 1998. p. 138 e seguintes. 257 WARAT, Introdução Geral do Direito, Vol. I, op. cit., p. 89. 258 Explica Rosa: “[...] diante da verdade adrede existente, o intérprete irá, pelo método, reconfortar-se com a certeza de ter descoberto a verdade. É um universo epistemológico pensado de forma platônica e metafísica, hierárquico, piramidal, verticalizante e simplista, daí seu efeito cativante.” ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 117. 259 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 110. 260 Com Warat: “La modernidade estableció horizontes de sentido; que contituyeron a cada indivíduo de la época com un fragmento de esas significações. Los sentidos de la modernidad fueron los productores de la ‘realidad’ llamada moderna.”. WARAT, Luis Alberto. Por quien cantan las sirenas. Joaçaba: UNOESC/UFSC, 1996. p. 39. 261 Explica Freire: “Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção ‘bancária’ da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de
54
Em sua concepção a hermenêutica jurídica tem por objeto “o estudo e a
sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das
expressões do Direito”. Isto é,
As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, extrair da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.263
E esta ainda é, infelizmente, a visão predominante no meio jurídico.
Mantidos, como diria Legendre, sob crença264 através de mecanismos estratégicos
de ‘adestramento tradicional”265, os operadores do Direito seguem repetindo,
reproduzindo o discurso oficial266 que fervorosamente emana do ‘Monastério dos
receberem os depósitos, guarda-los e arquivá-los.” FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 36.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 58. 262 Tocante à precária situação atual do ensino jurídico, ainda pautado pela ‘enxurrada’ de manuais jurídicos a-críticos, e que somente reproduzem interpretações de conveniência, conferir a análise crítica e propositiva de: ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 54; STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 77-88; LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar Direito, Hoje? Brasília: Nair, 1984; BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. COPETTI, André. Ensino jurídico, transdisciplinariedade e Estado Democrático de Direito: possibilidades e perspectivas para o estabelecimento de um novo paradigma. In: Crítica à Dogmática: dos bancos acadêmicos à prática dos tribunais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol 1, n.3. Porto Alegre: IHJ, 2005. p.45-164; MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos e a questão do Direito Alternativo. op. cit., p. 69-99. BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas: uma recuperação de seus destinos para reconhecer Luis Alberto Warat. In: O poder das Metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. Oliveira Jr., José Alcebíades (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 311-328; WARAT, Luis Alberto. Democracia e Direitos Humanos: Fragmentos discursivos em torno aos impactos das novas tecnologias na educação de nossa época. In: Oliveira Jr., José Alcebíades (Org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 119-141; ALVES, Elizete Lanzoni. A interdisciplinariedade no ensino jurídico: construção de uma proposta pedagógica. In: ______; Mondardo, Dilsa; Santos, Sidney Francisco Reis dos. (Orgs.). O Ensino Jurídico Interdisciplinar: um novo horizonte para o Direito. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2005. p. 17-34. 263 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 01. 264 “A crença, eis para nós um termo chave, afim de convencer o leitor de que, na instituição social como na neurose, não estamos longe do fazedor de feitiços. O trabalho do jurista (depois, o de seus sucessores hoje na empresa dogmática) é exatamente a arte de inventar as palavras tranqüilizadoras, de indicar o objeto de amor, onde a política coloca o prestígio e de manipular as ameaças primordiais.” LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense-Universitária: Colégio Freudiano, 1983, p. 24. 265 LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 20. 266 O discurso oficial a que se refere consiste no discurso jurídico reconhecido como discurso válido, cogente. Neste sentido Legendre, ‘desvelando’ conceitos, esclarece em tom de advertência: “o discurso jurídico é o discurso do poder por excelência e o Direito se revela como a mais antiga
55
Sábios’ (Warat), com um tecnicismo a-crítico e irrefletido. Ainda interpretam o Direito
com base em recursos silogísticos-dedutivos de influência aristotélica267, se
utilizando de métodos e regras hermenêuticas como ferramentas que garantiriam a
desejada objetividade e neutralidade de suas constatações. Com uma leitura
objetiva268 - e na condição de crentes ardorosos - afanam pelo ‘sentido primevo-
fundante’ da norma, por sua essência fundamental269. Não raro, lançam mão de
jargões jurídicos como ‘espírito da lei’, ‘vontade do legislador’, ‘doutrina remansosa’,
‘jurisprudência pacífica’, e, até mesmo, por involuntária e inconsciente decorrência
histórica do adestramento canônico270, expressões como ‘assim reza a lei’ ou ‘prega
o decisum a quo”.
1.3.2 A viragem lingüística e o renascer da hermenêutica
No entanto, todo este posicionamento tradicional, que é, como visto,
um produto paradigmático da hermenêutica jurídica clássica, a partir do linguistic
turn (Rorty)271 ocorrido no século XX, passa a sofrer duros golpes. Golpes que
procuram romper com as bases epistemológicas e filosóficas do tradicional modo de
interpretar. Modo este que, como constatou-se, ainda se mostra refém do estigma
moderno de uma sujeição transcendental, indivisa, sobre-humana, que seria capaz
ciência para dominar e fazer marchar a humanidade. Dominar e marchar segundo as técnicas de fazer crer.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 07. 267 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. 16.ed. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 30. 268 Rosa explica: “o que o texto desperta é algo que joga com a estrutura do sujeito leitor, da qual ele, de fato, pouco sabe. Por isto a leitura não pode ser objetiva justamente porque existe um sujeito implicado no texto e na leitura, sem que o emissor da mensagem, como autor, possa segurar o sentido, sempre singular, que dele advém. E podem ser muitos. [...]. A empulhação universal da leitura objetiva desconsidera a singularidade e que cada resposta ao texto será única, de acordo com nossas necessidades, defesas (in)conscientes e valores, no tempo e espaço.” ROSA, Alexandre Morais da. O Estrangeiro, a Exceção e o Direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Direito e Psicanálise: intersecções a partir de “O Estrangeiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 53-54. 269 Lyra Filho denuncia: “Os juristas, de uma forma geral, estão atrasados de um século, na teoria e prática da interpretação e ainda pensam que um texto a interpretar é um documento unívoco, dentro de um sistema autônomo (o ordenamento jurídico dito pleno e hermético) e que cabe determinar-lhe o sentido exato, seja pelo desentranhamento dos conceitos, seja pela busca da fnalidade – isto é, acertando o que diz ou para que diz a norma abordada”. LYRA FILHO, Por que estudar Direito, Hoje?, op. cit., p. 18-19. 270 LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 20. 271 RORTY, Objetivismo, relativismo e verdade, op. cit.
56
de alcançar a redenção de uma ‘verdade exclusiva’272, de uma interpretação
absolutamente correta e exata, usando para isso a linguagem como ferramenta de
transmissão de convicções inatas. Tudo, como produto de uma atividade racional
pretensamente soberana, autônoma, neutra, infalível.
Através de um processo que atravessou os séculos XIX e XX, os
estudos sobre hermenêutica - aliados aos avanços proporcionados pela
linguagem273 -, evoluíram e gradualmente consubstanciaram o rompimento com os
dogmas pré-existentes da hermenêutica normativa, ainda atenta à idéia sujeito-
objeto. Passando por autores como Scheleiermacher e Dilthey, que tiveram o mérito
de trazer a hermenêutica da periferia para o centro das discussões de cunho
filosófico e científico274, foi, no entanto, efetivamente, com Heidegger e Gadamer
que o fenômeno hermenêutico ganhou força e importância. Com eles, especialmente
Heidegger, efetivou-se a ruptura com o paradigma metafísico-essencialista que, com
seus dualismos275 e aporias, atormentava a relação do sujeito com o conhecimento,
com o mundo ao seu redor e com os demais sujeitos. A relação humana, assim,
passa a ser considerada a partir de uma perspectiva intersubjetiva, isto é, entre
sujeito-sujeito.
1.3.2.1 Heidegger e a guinada paradigmático-ontológica
Heidegger, em quem a metafísica encontrou seu maior adversário276,
através da obra Ser e Tempo277/278, de 1927, impôs à filosofia, apesar de algumas
272 Rosa afirma: “A verdade verdadeira, a verdade que se esconde por detrás do texto, herança da Filosofia da Consciência, não se sustenta após o giro lingüístico.” ROSA, O Estrangeiro, a Exceção e o Direito, op. cit., p. 55. 273 Especialmente os contributos da filosofia analítica do eixo anglo-saxão. 274 CASARA, Interpretação Retrospectiva, op. cit., p. 105. 275 A exemplo: realismo e idealismo, realidade e aparência, etc. Quanto ao dualismo realismo e idealismo, Streck explica: “Como contraponto, tanto o idealismo platônico como o essencialismo realista aristotélico, embora discordantes entre muitos aspectos, convergem num ponto considerado por Platão e Aristóteles como fundamental: seja qual for a sua sede ou o seu lugar de origem, a verdade está enquanto tal preservada da corrupção e da mudança para sempre.” STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 119. 276 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 119. 277 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Petrópolis: Vozes, 1993; e HEIDEGGER, Martim. Ser e Tempo. Parte II. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1997. 278 Stein explica, que trata-se de “um livro de aforismos, uma coletânea de artigos de oitenta e três parágrafos de um tratado incompleto que foi entregue ao ministério da educação para Heidegger conseguir a cátedra de Marburgo.[...] o primeiro esboço de Ser e Tempo foi apresentado em 1924
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críticas e oposições279, uma verdadeira reviravolta paradigmática que alterou a
perspectiva de compreensão a respeito do método e da ontologia tradicionais, e
que, até então, ainda eram tributárias das teorias da subjetividade e da
representação280. Tais teorias, sob as quais subjazem não somente os dualismos
metafísicos281 como também a relação epistêmica entre consciência-mundo, são
diametralmente afrontadas pelas novas concepções de ‘temporalidade’ e ‘mundo
vivido’ de Heidegger.282
Com o manifesto objetivo de rompimento - ou, como o próprio
Heidegger se refere, de destruição283 - do paradigma da consciência-reflexiva, que
atinge seu auge na transcendentalidade kantiana, o filósofo alemão propõe um novo
método284 quanto à apreensão cognoscitiva, afrontando a tradição antropológica285
da época. E o faz a partir de uma analítica existencial voltada não mais para o ente
enquanto ente (como fazia a metafísica tradicional) ou para a redução
transcendental da fenomenologia Husserliana286. Mas sim voltada, e desde sempre
compreendida, para o ‘ser’. Em realidade, estabeleceu-se uma nova perspectiva de
compreensão, uma compreensão existenciária287. Uma compreensão concebida a
diante dos teólogos de Marburgo, numa conferência com o título: o conceito do tempo.” STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’: Martin Heidegger. Petrópolis: Vozes, 1990. p.13 e 35. 279 John D. Caputo procede advertências quanto ao excesso de apego de Heidegger à ‘pureza’ grega quando da concepção do ser, e da completa exclusão de qualquer perspectiva bíblica na analítica existencial, pondo em questão as influências de suas convicções e juízos éticos-políticos em sua filosofia. CAPUTO, John D. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. Também tratando do limiar ontológico entre a filosofia e a postura política de Heidegger, conferir: BOURDIEU, Pierre. Ontologia política de Martin Heidegger. Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1989. 280 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 50-54. 281 Tais como ‘idealismo platônico versus realismo aristotélico’. 282 Stein ressalta as seis teses centrais de Ser e Tempo: “1. no início da obra, Heidegger situa a questão da ontologia fundamental, do sentido do ser; 2. a clarificação desta questão somente pode resultar do recurso ao único ente que compreende ser – o homem (Dasein), o estar-aí; 3. o estar-aí é ser no mundo; 4. Ser-no-mundo é cuidado, cura (sorge); 5. cuidado é temporal (zeitlich); 6. a temporalidade do cuidado é temporalidade ecstática que se distingue do tempo linear, objetivado.” STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 11. 283 HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte I..., op. cit., p. 54. 284 O método é o hermenêutico ontológico-fenomenológico. Stein afirma que “a hermenêutica é justamente o método, o caminho que se desenvolve a partir da desconstrução” STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 57. 285 Sua recusa a um atropologismo humanista é reafirmado em HEIDEGGER¸ Martin. Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. 286 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit.,p. 14. 287 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 39.
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partir de uma estrutura ontológica centrada no sentido do ser, na hermenêutica do
‘sujeito existencial’, ou melhor, do estar-aí, do Dasein288/289. Com Streck, vemos que,
Nas palavras de Heidegger, a questão sobre o sentido do ser só é possível quando se dá uma compreensão do ser. O sentido se articula simbolicamente. Encontramos o Dasein na estrutura simbólica do mundo. O Dasein se comporta compreendendo. A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente que denominamos Dasein.290
Com o que denominou de ontologia fundamental291, fundamento
epistemológico da analítica existencial, Heidegger se liberta das amarras das teorias
da razão, provocando uma guinada quanto à perspectiva da compreensão e da
apreensão do conhecimento. Através de um mecanismo de circularidade
hermenêutica292, a compreensão passa a se dar como um processo prévio; como
condição prévia surgida da articulação do mundo não mais como um
estabelecimento do eu transcendental moderno, mas como um sistema do ser293. E
neste sistema, o estar-aí encontra-se desde sempre jogado em sua condição
existencial-mundana. Por esta nova investida hermenêutica, que trata da
‘compreensão da compreensão’294, e que procede revisão e releitura da relação
sujeito-objeto, desaparecem do campo da interpretação os ideais subjetivos de
288 A expressão estar-aí é utilizada para enaltecer uma neutralidade essencial, pois “a interpretação deste ente deve ser realizada antes de qualquer conereção fática. Esta neutralidade também quer dizer que o estar-aí, não é nenhum dos dois sexos. Mas este caráter assexuado não é a indiferença da nulidade vazia, a negatividade fraca de um nada ôntico indiferente. O estar-aí, em sua neutralidade, não é indiferente a ninguém e qualquer um, mas é a positividade originária e a condição poderosa de manifestar-se em seu ser.” STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit.,p. 22. 289 Zizek também anota que “es por esto por lo que Heidegger habla del ‘Dasein’ y no del hombre ni del sujeto, el sujeto está fuera del mundo y posteriormente se relaciona con él, generando los seudoproblemas de la correspondencia de nuestras representaciones con el mundo externo, de la existencia del mundo, etc; el hombre es un ente dentro del mundo.” ZIZEK, Slavoj. Amor sin piedad: hacia una política de la verdad. Trad. Pablo Marinas. Madrid: Síntesis, 2004. p. 17-18. 290 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 187. 291 Com Heidegger: “Interpretando a compreensão como um existencial fundamental, mostra-se que esse fenômeno é concebido como modo fundamental do ser da pre-sença.” HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte I, op. cit., p. 40 e 198. E com Streck, vemos que a ontologia fundamental consiste na “interrogação explícita e teórica pelo sentido do ser. [...] compreender não é um modo de conhecer, mas é um modo de ser, isto porque a epistemologia é substituída pela ontologia da compreensão (o homem já sempre compreende o ser).” STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 195. 292 Stein afirma que “a idéia do círculo hermenêutico introduz elementos radicalmente novos – que se devem, em parte, a uma releitura da tradição da escola histórica particularmente -; em lugar da consciência põe-se uma hermenêutica do ser-aí.” STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 28. 293 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 43. 294 STEINER, George. Heidegger. Trad. João Paz. Lisboa: Dom Quixote, 1990. p. 16.
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transparência, espelhamento, re-flexão, introspecção295, próprios do universo
racional-subjetivo. E é por isso que Heidegger afirma:
Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e concepção prévia. No momento em que, enquanto interpretação, se torna tarefa explícita de uma pesquisa, então o conjunto dessas ‘pressuposições’, que denominamos situação hermenêutica, necessita de um esclarecimento prévio que numa experiência fundamental, assegure para si o objeto a ser explicitado. Uma interpretação ontológica deve liberar o ente na constituição de seu próprio ser. Para isso, vê-se obrigada, numa primeira caracterização fenomenal, a conduzir o ente tematizado a uma posição prévia pela qual se deverão ajustar todos os demais passos da análise. Estes, porém, devem ser orientados por uma possível visão prévia do modo de ser dos entes considerados. Posição prévia e visão prévia, portanto, já delineiam, simultaneamente, a conceituação (concepção prévia) para a qual se devem dirigir todas as estruturas ontológicas.296
Tal concepção prévia, que sempre antecipa a compreensão - pois o
Dasein já desde sempre possui uma compreensão de si próprio e do mundo que o
envolve -, estabelece-se para a existência numa relação anterior à teoria e a práxis.
Aqui, é bom que se registre, a consciência é considerada não a partir do auto-
determinismo de uma razão transcendental (Kant)297, mas sim, concebida em meio a
um fenômeno existencial como pilar da estrutura ontológica do ser-aí. Heidegger
radicaliza a transcendentalidade kantiana298 para resituar a consciência fora do
apriorismo racional-genuíno299, mas dentro de uma construção compreensiva que se
antecipa a partir do próprio modo de ser do sujeito, (a partir de sua historicidade300 e
de seus pré-juízos).301
295 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 28. 296 HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte II, op. cit., p. 10. 297 HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte I, op. cit., p. 85-87. 298 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p.10. 299 “É impossível sustentar um sentido puro; por isso para Heidegger nunca se dá uma compreensão pura; sempre se dá uma compreensão ligada às condições e ao modo de ser-no-mundo.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p. 61. 300 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte II, op. cit., p. 193. 301 Heidegger explicita que: “de início, é preciso perseguir os fundamentos e estruturas existenciais da consciência, tornando-a visível como fenômeno da existência, com base na constituição ontológica desse ente até aqui obtida. Esta análise ontológica da consciência antecede toda descrição psicológica de suas vivências e sua classificação, estando também fora de uma ‘explicação biológica’, ou seja de uma dissolução do fenômeno. Também não é menor a distância que a separa de uma interpretação teológica da consciência moral ou mesmo da sua consideração com vistas a provar a existência de Deus ou uma consciência ‘imediata’ de Deus. [...] Como fenômeno da pre-sença, a consciência não é um fato que ocorre e que, por vezes, simplesmente se dá. Ela é e está
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Seu método provoca o que Stein chama de encurtamento
hermenêutico302. Nesta perspectiva ocorre o afastamento absoluto em relação à
teologia (que sempre de algum modo permeou as teorias do conhecimento
especialmente a partir da idade média), e a rejeição do mundo em sua concepção
natural. Isto é, ocorre o rompimento com as ‘verdades eternas’, com as ‘certezas
redentoras’ que, tendo por base a ‘natureza’303 ou a ‘divindade’, sempre figuraram
como um mastro de apoio304 ao sujeito em seu permanente temor e instabilidadade
existencial. Superou-se qualquer concepção que se pretendesse além do
conhecimento finito. O método heideggeriano oferece, em realidade, um desvelado
caminho de acesso à coisa mesma305, sem intermediações de uma consciência-
reflexiva que se julga soberana e determinante da diretriz humana.
Na concepção Heideggeriana, a ontologia clássica de tradição greco-
cristã-moderna, que se calcou nas quatro tradicionais teses sobre o ser – de
Aristóteles, de Hobbes e Mill, de Descartes, e de Kant306 - se atendo ao ente e
confundindo-o com o ser307, deixou de interrogar o ser enquanto ser. Isto é, velando,
encobrindo, omitindo o próprio ser308. Assim, para que o sujeito pudesse se
redescobrir, se desvelar, tornou-se fundamental e premente retomar a ontologia sob
apenas no modo de ser da pre-sença e, como fato, só se anuncia com e na existência do fato.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte II, op. cit., p. 54. 302 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 28. 303 Refere-se aqui à ‘natureza das coisas’ de Aristóteles, que diz: “a natureza é o real fim de todas as coisas”. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 14. 304 Faz-se, aqui, referência à passagem mitológica em que Ulisses, para resistir ao canto sedutor e hipnótico das sereias, amarrava-se ao mastro do navio. Tal passagem foi citada por Zizek nos seguintes termos: “A conduta de Ulisses diante das sereias comprova o elo entre a dominação da natureza e as relações de dominação entre os próprios homens, a divisão de trabalho: os remadores têm os ouvidos tapados, enquanto Ulisses fica apenas atado ao Mastro [...]”. ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op. cit., p. 40. 305 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p 41. 306 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 40. 307 Heidegger afirma: “o ser dos entes não é em si mesmo um outro ente”; e ainda explica: “chamamos de ente muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo aquilo que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado (Vorhandenheit) no teor e recurso, no valor e validade, na pre-sença, no ‘há’”. HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte I, op. cit., p. 32. 308 “É por isso que Heidegger vai fazer o que ele chama de crítica da metafísica, porque a modernidade é a ultima etapa da metafisica. [...] a modernidade é o lugar máximo de encobrimento do essencial.” STEIN, Epistemologia e crítica da modernidade, op. cit., p. 74.
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uma nova perspectiva, sob uma concepção hermenêutica309 que erigisse a uma
condição filosófica mais sólida o sentido do ser, distinguindo-o do ente310. Por isso o
constructo ser-aí (Dasein) considerando o sujeito como existência, como poder-
ser311, que reflete o existencial humano enquanto si mesmo, longe da visão turva
dos modernos, que por conta da crença em uma subjetividade ‘salvadora’ e em uma
transcendência de gênese teológica312, esqueceram-se do ser e de seu real sentido
para o existencial humano313.
Em sua proposta teórica, Heidegger situa o ‘tempo’ e o ‘mundo vivido’
no centro gravitacional de sua tese. A concepção de mundo tradicional, vinculado às
leis naturais, ao cosmos, ou visto a partir de uma perspectiva criadora-racional,
ganha tratamento diferenciado. O conceito de mundo da vida próprio da perspectiva
fenomenológica de Husserl, ainda refén do paradigma reflexivo da mente, passa a
ser compreendido como ser-no-mundo prático-existencial, como mundo vivido314. O
tempo, também central na obra do professor alemão, é retomado sob nova
percepção, como elemento que respalda a hermenêutica da facticidade315,
representando o fio condutor de uma ontologia que redescobre o ser, o seu sentido
309 “Ao escolher a saída hermenêutica para sua concepção global da filosofia, o filósofo revela os veios da escola histórica, sobretudo Dilthey, trazendo-lhe as questões do mundo da vida, da historicidade, que, radicalizadas lhe serviriam de apoio para a crítica da teoria tradicional”. STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 19. 310 É o que se denomina ‘diferença ontológica’. STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 11. 311 Heidegger afirma que “determinamos a idéia de existência como o poder-ser que compreende, e onde está em jogo seu próprio ser.” HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte II, op. cit., p. 11. 312 Heidegger explica: “a idéia de transcendência, segundo a qual o homem é algo que se lança para além de si mesmo, tem suas raízes na dogmática cristã, da qual não se pode querer dizer que tenha chegado sequer uma única vez a questionar ontologicamente o ser do homem.” HEIDEGGER, Ser e Tempo. Parte I, op. cit., p. 85. 313 “É por isto que a tarefa da filosofia, através do método fenomenológico, consiste em desvelar o que está velado. Em apontar para aquilo que vela o que está velado. O velado é o ser. O que vela é o ente. O que se fala é o ente. O que está entre as linhas do que se fala é o ser.” STEIN, Epistemologia e crítica da modernidade, op. cit., p. 75. 314 Com Stein: “[...] se a questão do mundo vivido se tornou tão central na filosofia e nas ciências humanas, foi por causa desta revolução paradigmática que, de um lado, delimitou a tarefa da filosofia e, de outro, suprimiu a questão da fundação última, introduzindo a idéia da boa circularidade.” E ainda explica que “a questão do ‘mundo’ entra na analítica existencial como questão nuclear: como vimos ‘mundo’ passa a ser um existencial, um elemento fundamental na estrutura do estar-aí; ‘mundo’ se articula no horizonte da compreensão; ‘mundo’ que pode ser pensado, entendido, deve entrar no horizonte do sentido.” STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p. 15,16 e 21. 315 STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p.13.
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na pre-sença316. A interpretação do tempo como horizonte possível de toda e
qualquer compreensão do ser em geral é sua meta provisória317.
Heidegger, assim, radicalizando o preceito hermenêutico, e
oferecendo um novo olhar ao mundo ao abrir uma ‘clareira de luz’318 sobre o
universo da compreensão, propõe um inédito modo de interpretá-lo, como bem
explica Stein
Com isto Heidegger inventa uma outra hermenêutica. Por que desenvolveu o método fenomenológico, próprio do seu tipo de trabalho filosófico, Heidegger inventa o que podíamos chamar de hermenêutica que é capaz de expor o desconhecido. [...] e este desconhecido é para Heidegger propriamente aquilo que nunca se aceitou, nunca foi conhecido, porque sempre foi encoberto. E é justamente na compreensão do ser que nós, sempre, e toda a tradição metafísica, usamos mal, na medida em que na compreensão do ser sempre se pensava na compreensão do ente: a idéia, a substância, Deus, o saber absoluto, etc. [...] e o método hermenêutico, enquanto hermenêutico existencial, pretende exatamente trazer este novo. Mas este novo depende do fato de o homem existir. Heidegger dirá que não existe verdade sem o ser humano, não existem verdades eternas.319
Enfim, com sua obra, Heidegger revolucionou o pensamento
filosófico contemporâneo tirando a compreensão da pseudo soberania racional de
316 Heidegger esclarece: “o fundamento ontológico originário da existencialidade da pré-sença é a temporalidade. A totalidade das estruturas do ser da pre-sença articuladas na cura só se tornará existencialmente compreensível a partir da temporalidade.[...] O projeto de um sentido do ser em geral pode-se realizar no horizonte do tempo.” Quanto à expressão pre-sença, ainda explica: “a pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser.” E arremata: “A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da presença”. HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte II, op. cit., p. 13, 14 e 38. 317 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 24. 318 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 230. Heidegger algures ainda explica: “Com o nascer do sol vem a claridade, tudo se torna visível; as coisas brilham. Em certos ritos fúnebres vira-se o rosto para o leste: a orientação da igreja leva isso em consideração. – Aliás, quando se apaga a luz, o que acontece com a clareira? [...] Ser aberto significa clareira. Há clareira mesmo no escuro. Clareira [Lichtung] não tem nada haver com luz [Licht], mas vem de ‘leve’ [Leicht]. Luz tem haver com percepção. No escuro ainda se pode esbarrar. Isto não necessita de luz, mas de clareira. Luz – claro; clareira vem de leve, tornar livre. Uma clareira no bosque está aí mesmo quando está no escuro. Luz pressupõe clareira. Só pode haver claridade onde foi feita uma clareira, onde algo está livre para a luz. O escurecer, o tirar a luz não toca a clareira. A clareira é o pressuposto de que pode haver claridade e escuridão, o livre, o aberto.” HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zolikon. Trad. Gabriella Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado. São Paulo: EDUC, Petrópolis: Vozes, 2001. p.41-42. 319 STEIN, Epistemologia e crítica da modernidade, op. cit., p. 77-78.
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um ‘eu puro’ que julgava-se capaz de determinar a si e o mundo ao seu redor,
resituando-a no próprio modo de ser do ‘homem’320. Compreender, que antecipa o
interpretar321, antes de uma maneira de conhecer, é um modo de ser no mundo, é
um modo de estar e de se defrontar com sua finitude322 no mundo vivido. A
consciência, neste processo sempre chega tarde, sempre mostra-se insuficiente ao
todo da compreensão. A interpretação é resultado não de uma descrição do sujeito
transcendente - senhor de si -, do alto de sua onipotência reflexiva, que estabelece a
representação do mundo, mas sim da facticidade em que está imerso desde sempre
o sujeito com suas limitações.
Heidegger mergulha o processo compreensivo-interpretativo na
linguagem, e a escolhe como morada do ser323. A linguagem deixa de ser
transmissora de imanências humanas para se tornar condição de possibilidade do
ser, condição de possibilidade de manifestação do sentido. Com ela, que respalda o
existencial como abertura à compreensão, rompe-se com a ‘verdade subjetiva’, para
reconhecer-se uma ‘verdade inter-subjetiva’ “que pertence à constituição
fundamental da pre-sença”324. Superam-se, assim, ‘verdades absolutas’ em nome de
320 Na analítica existencial heideggeriana o ‘homem’ ocupa lugar privilegiado. Considera-se como entificação privilegiada. Ou seja, para heidegger, somente o homem existe. A pedra ‘é’, o carro ‘é’, mas não existem. Deus ‘é’ mas não existe.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, Nota do Tradutor. op. cit., p. 310. 321 Heidegger pontua: “A compreensão enquanto abertura do pre sempre diz respeito a todo o ser-no mundo. Em toda compreensão de mundo, a existência também está compreendida e vice-versa. Toda interpretação, ademais, se move na estrutura prévia já caracterizada.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 209. 322 Stein nos lembra que “o pensamento filosófico persegue histericamente a infinitude do conhecimento. A finitude é, de certo modo, algo que a filosofia aceita como o início da negação da própria filosofia. É por isso que muitas vezes a modernidade é apresentada como uma espécie de época do fim da filosofia. [...]o segundo filósofo [o primeiro foi Marx] que anunciou o fim da filosofia foi Martin Heidegger quando fala, até num texto um pouco mais extenso, do fim da filosofia e do começo do pensamento, dizendo que a filosofia se consuma no fim do pensamento da modernidade como saber absoluto.” STEIN, Epistemologia e crítica da modernidade, op. cit., p. 33-34. 323 Heidegger, com a máxima que se tornou símbolo de sua teoria, afirma que “[...] a linguagem é a casa do ser manifestada e apropriada pelo ser e por ele disposta. [...] O homem, porém não é apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras faculdades, também possui a linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ex-siste enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a” HEIDEGGER, Carta sobre o Humanismo, op. cit., p. 58. 324 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit.,p. 295. Heiddeger elucida que “três teses caracterizam a apreensão tradicional da essência da verdade e a opinião gerada em torno de sua primeira definição: 1. o ‘lugar’ da verdade é a proposição (o juízo). 2. A essência da verdade reside na ‘concordância’ entre o juízo e seu objeto. 3. Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o juízo como o lugar originário da verdade, como também colocou em voga a definição de verdade como ‘concordância’”. E, rompendo com a concepção tradicional, arremata: “Verdade como abertura e ser-descobridor, no tocante ao ente descoberto, transforma-se em verdade como concordância entre seres simplesmente dados dentro do mundo.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 294-295.
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‘verdades relativas’325. O sentido deixa de ser elemento de reprodução interpretativa,
para se transformar naquilo que dá sustentação ao compreender326. Isto é,
compreensão que sempre antecipa qualquer interpretação e que se dá como
abertura lingüística a partir de um projeto. Neste, o ente se abre em sua
possibilidade, e provoca o desvelar prévio, o porvir, a transparência327 num contexto
intersubjetivo de ser-com, viver-com328. O compreender se torna modo de existir na
relação sujeito-sujeito.329
1.3.2.2 Gadamer: a compreensão como ‘fusão de horizontes’
A revolucionária obra de Heidegger irradiou influência sobre vários
estudiosos, tendo sido não somente decisiva para o segundo Wittgenstein330, que
após sua leitura reconhece os avanços ontológicos em face da linguagem331, como
também para Gadamer332, que aprimorando a transição entre razão epistêmica
325 “Toda verdade é relativa ao ser da presença na medida em que seu modo de ser possui essencialmente o caráter de pre-sença.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 296. 326 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 208. 327 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 33. 328 Heidegger explica: “Na base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da pre-sença é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros.” HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 170. 329 HEIDEGGER, Ser e Tempo, Parte I, op. cit., p. 200, 209, 218-220, 204-207. 330 Manfredo Araújo de Oliveira explica a relação entre Heidegger e Witgensttein: “apesar das diferenças fundamentais, Heidegger e Wittgenstein são considerados por muitos hoje, como a chave para uma compreensão profunda da estrutura espiritual do tempo em que vivemos. Heidegger e Wittgenstein são iniciadores de correntes de pensamento que, pelo menos numa consideração primeira e rápida, se mostram inteiramente antagônicas. O interessante nesta problemática atual da filosofia é que nomes como filosofia da existência, fenomenologia, ontologia fundamental, de um lado, filosofia analítica, positivismo lógico, semântica, de outro exprimem não somente orientações diversas nos métodos e no objeto do conhecimento filosófico, mas são oposições tidas como expressões de mentalidades de culturas diferentes. Explicitando isto na geografia cultural do nosso tempo, teríamos de separar o mundo de cultura anglo-saxã (inglaterra, Estados Unidos), com irradiações para os países escandinavos, do mundo cultural francês-alemão, com irradiações no sul da Europa e na América Latina.” OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A Filosofia na crise da Modernidade. São Paulo: Loyola, 1989. p. 85-86. 331 “Wittgenstein ao ler Ser e Tempo dissera: ‘Heidegger joga-se contra os limites da linguagem’ com sua analítica existencial, anos antes da elaboração das Investigações Filosóficas. E é nesta obra que se pode observar uma tradução paralela de categorias heideggerianas para a terminologia wittgensteiniana: assim as formas da vida de Wittgenstein correspondem aos modos-de-ser do estar-aí de Heidegger. O lingüisticismo fenomenalista do Tractactus foi superado graças à leitura do Ser e Tempo e é esta obra que preparou a virada para as Investigações. Trata-se, entretanto, também aqui, de dois universos paradigmáticos diferentes.” STEIN, Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’, op. cit., p.15-16. 332 Ludwig aduz: “A filosofia de Hans-Georg Gadamer pode ser situada no contexto do chamado ‘giro linguístico’. A mudança paradigmática recepcionada pela filosofia para classificar sua própria história, chega ao paradigma da linguagem, na segunda metade do século XX, após ter passado pelos paradigmas do ser (o paradigma ontológico) e do sujeito (o paradigma da consciência). O desdobramento do paradigma da linguagem indica a presença de uma tipologia que poderia, creio,
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moderna e racionalidade hermenêutica333, através de seu Verdade e Método334,
conseguiu estabelecer os fundamentos de uma hermenêutica filosófica, dando um
salto de qualidade335 em relação à fenomenologia hermenêutica e à hermenêutica
da facticidade336/337. Seu objetivo não é apresentar uma nova questão de método.
Com Gadamer não está em questão o que fazemos ou devemos fazer (método),
mas sim aquilo que é comum a toda maneira de compreender, o que efetivamente
recai sobre a possibilidade da compreensão338.
A tese gadameriana trabalha a hermenêutica a partir de uma
historicidade339 do ser que não representa mais uma delimitação restritiva da razão e
de seu postulado de verdade, e sim uma condição positiva para o conhecimento da
ser classificada da maneira seguinte: 1) como razão comunicativa (Apel/Habermas), 2) como razão sistêmica (a la Luhmann) e, 3) como razão hermenêutica (Gadamer).” LUDWIG, Celso. Gadamer: a racionalidade hermenêutica – contraponto à modernidade. In: Crítica da Modernidade: diálogos com o Direito. FONSECA, Ricardo Marcelo. (Org.). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. p. 145. 333 Gadamer faz a crítica da modernidade através desta passagem da Epistemologia à Hermenêutica. 334 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Trad. Ênio Paulo Gichini. Petrópolis: Vozes, 2002. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Metodo. Trad. Ana Agud Aparício y Rafael de Agapito. Salamanca: Ortega, 1977. 335 Stein afirma: “O impulso fundamental foi dado por Heidegger pondo um novo fundamento ontológico para a hermenêutica. Não era mais ontologia fundamental. Gadamer faz uma ontologização da hermenêutica no sentido novo. Nesse ponto deu mais perspectiva falar de uma hermenêutica filosófica.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p. 70. 336 Quanto à construção da hermenêutica da facticidade heideggeriana, Gadamer explica: “Foi quando Heidegger formulou o conceito de uma ‘hermenêutica da facticidade’, impondo – em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl – a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão ‘imemorial’ (Schelling) da ‘existência’ e inclusive a própria existência como ‘compreensão’ e ‘interpretação’, ou seja, como um projetar-se para possibilidade de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. ‘Compreender’ não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz à mobilidade de fundo da existência humana.” GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 125. 337 Nota-se com Stein, que a hermenêutica filosófica de Gadamer possui relação forte com a obra de Heidegger, especialmente o segundo Heiddeger: “Isso foi o segundo Heidegger, a partir de 1929-30, quando começou a preparar o seu trabalho que tomaria forma em seu livro Contribuições para a filosofia de 1936-38. Vimos que Gadamer se liga com sua hermenêutica filosófica à chamada analítica existencial de Heidegger ou à ontologia fundamental ou à fenomenologia hermenêutica. Existe aí ligação estreita. Mas os autores em geral quando examinam Gadamer não fazem uma distinção com suficiente clareza, pois apesar de Gadamer ter-se orientado bastante na idéia da compreensão do primeiro Heidegger, entretanto, se conduz mais, no desenvolvimento da sua reflexão na fundamentação de uma hermenêutica filosófica, no segundo Heidegger.” De se explicar que, “o primeiro Heidegger é o da compreensão do ser”, e “o segundo Heidegger é o da história do ser.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p.68-69. 338 LUDWIG, Gadamer, op. cit., p. 148. 339 Ludwig afirma: “O verdadeiro transcendental, condição de possibilidade, não é o das formas e/ou categorias a priori, nem a autonomia da vontade (Kant), a ‘comunidade de comunicação’ ideal ou transcendental (Habermas e Apel, respectivamente), a ‘posição originária’ (Rawls), ou a autopoiesis de sistemas dirigidos auto-referencialmente (Luhmann), mas a historicidade, afirmação da finitude e temporalidade do ser.” LUDWIG, Gadamer, op. cit., p. 150.
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verdade340. E o faz sempre sob a perspectiva central da experiência. Com isso, ele
pretende demonstrar que existe um universo fundamental do ser humano,
representativa de sua totalidade, e que pode ser descrito pela experiência. Esta
experiência hermenêutica, ressalta o autor, nada tem haver com a experiência
sensorial das ciências empíricas341. A experiência a que se refere é aquela
experiência humana de mundo que, desde sempre na linguagem, deixa de ser
considerada como elemento simplesmente dado, para se tornar construção vivencial
consubstanciada ao longo do tempo.342
Resgatando em análise toda a longa história da hermenêutica e da
linguagem, que vai do Crátilo de Platão, passando por Agostinho, Tomás de Aquino,
até Humboldt, a quem julga “criador da moderna filosofia da linguagem”343, Gadamer
retoma a questão da temporalidade, já exaustivamente discutida por Heidegger,
para enaltecer a ‘finitude existencial’ e sua influência delimitadora para o processo
compreensivo-interpretativo. É o reconhecer da impotência do juízo humano diante
da distância temporal, que está “em constante movimento e ampliação”, sendo este,
segundo o autor, “o lado produtivo que ela oferece à compreensão”344.
Neste sentido, explica o autor, há necessidade de se reconhecer a
importância de uma inevitável consciência histórico-efeitual345, enquanto consciência
formada e hermeneuticamente calcada nesta distância temporal que é preenchida
pela continuidade da origem e da tradição346. Assumir tal consciência histórica
340 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 124 341 “Experiência não é primeiramente sensação.” GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 98. 342 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 588-589. 343 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 524-588. e GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 111-142. 344 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 80. 345 “A consciência histórica efetual será como que o contraponto da situação hermenêutica. Não há situação hermenêutica que se desenvolva como ponto de partida para considerar determinados temas, não há consciência hermenêutica, situação hermenêutica, se não existe uma consciência histórica efetual, quer dizer uma consciência de que nós somos determinados pelos fatos históricos. Esses fatos históricos, por um lado, são um peso que limita a nossa compreensão, mas, de outro lado, explicitados, analisados e interpretados passam a ser a própria alavanca do desenvolvimento da compreensão.” Stein ainda explica que esta consciência histórica é propriamente uma consciência crítica, ou seja, “aquela que não está inteiramente de acordo com o seu tempo, cuja situação hermenêutica nunca está parada, é uma consciência que procura dar conta das mudanças e saber que essas mudanças são produzidas em boa parte pelas circunstâncias presentes, que essas mudanças são entravadas por circunstâncias históricas passadas e muitas vezes entravadas por causa de falsos projetos feitos em função das circunstâncias históricas passadas.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p. 71-72 e 76-77. 346 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 79.
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representa tornar-se ciente dos preconceitos que regem a compreensão, “a fim de
que a tradição se destaque e se imponha com uma opinião diversa”347/348. Tal
encontro com a tradição349 engendra uma necessária suspensão fundamental dos
próprios preconceitos, e esta suspensão de juízos é o que permite a pergunta a que
somos interpelados a compreender350. Isto é, para Gadamer, o compreender é um
processo histórico-efeitual, que rompe com a ingenuidade do ‘objetivismo histórico’
que se auto-exclui na compreensão.351
Fica claro que, deste modo, a compreensão deixa de ser um mero
‘entendimento histórico’352 que reconstruiria exatamente o que representa o texto.
Não se trata de transferir-se para o outro e reproduzir suas vivências, ou pretender
entrar na vida e nos sentimentos do autor original. Compreender é, antes de mais
nada, um processo em que o intérprete se inclui353, e onde ocorre o que Gadamer
denomina por ‘fusão de horizontes’354. Nas palavras do autor:
[...] no redespertar o sentido do texto já se encontram sempre implicados os pensamentos próprios do intérprete. Nesse sentido o próprio horizonte do intérprete é determinante, mas também ele não como um ponto de vista próprio que se mantém ou se impõe, mas como uma opinião e possibilidade que se aciona e coloca em jogo e
347 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit. p. 80. 348 Ludwig explica que “Gadamer afirma a condição pré-conceitual de toda compreensão. A historicidade de toda compreensão decorre da condição originária do homem como “ser-no-mundo”. Esta condição de ser-no-mundo une o ser humano à tradição de forma irrefutável. A historicidade do homem é vista como condição de possibilidade de toda compreensão: o homem compreende a partir de pré-conceitos produzidos na história. [...]. Isto significa dizer que a tradição não está a nosso dispor, como objeto ‘dado’, manipulável pela condição do querer do sujeito. Ao contrário, o homem originalmente está sujeito a ela. Toda compreensão se dá no horizonte de uma tradição de sentido, registra suas marcas, e mais ainda, torna-a possível”. LUDWIG, Gadamer, op. cit., p. 149. 349 “É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece ‘por si’.” GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 94. 350 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit. p. 80. 351 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 81. 352 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 502. 353 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 497,499 e 502. 354 Na opinião de Habermas, em atenção à perspectiva comunicativa: “La objetividad del mundo, esta objetividad que suponemos en el habla y en la acción, está tan fuertemente imbricada com la intersubjetividad del entendimiento sobre algo en el mundo que no podemos burlar ni ir más allá de este nexo, es decir, no podemos escapar del horizonte de nuestro mundo de la vida intersubjetivamente compartido, un horizonte que se os abre a través del lenguage. Esto no excluye, sin embargo, una comunicación que pueda superar los limites de los mundos de la vida particulares. Podemos superar reflexivamene nuestras diferentes situaciones hermenêuticas de partida y llegar a concepciones intersubjetivamente compartidas sobre la materia discutida. Es lo que Gadamer describe como ‘fusión de horizontes’”. HABERMAS, Jürgen. Acción comunicativa y razón sin transcendencia. Trad. Pere Fabra Abat. Barcelona: Paidós, 2002. p. 44.
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que ajuda a apropriar-se verdadeiramente do que se diz no texto. Acima descrevemos isso como fusão de horizontes.355
Para seu juízo, o interpretar deixa de ser visto como processo distinto
da compreensão. A crítica gadameriana supera a velha tradição hermenêutica que
procedia a cisão entre compreensão (subtilitas intelligendi), interpretação (subtilitas
explicandi), e aplicação (subtilitas aplicandi). Afirma o autor alemão que todas estas
etapas, em realidade, ocorrem numa só: a aplicatio356. Isto, porque seria impossível
reproduzir sentidos. No compreender-interpretar, o processo é sempre produtivo357.
A aplicação é, pois, momento constitutivo da própria compreensão e não um
possível efeito seu. Em suas palavras: “compreender é sempre também aplicar”.358
Amparado, como visto, em uma historicidade ontológica de vertente
heideggeriana, Gadamer reafirma a interpretação-compreensiva359 como
decorrência do existencial humano. A faticidade se projeta360 ao intérprete que
desde sempre compreende a partir de seu próprio ‘mundo vivido’. Não sem razão, o
filósofo alemão verbera que “quem quiser compreender um texto deverá realizar um
projeto.”361 E explica dizendo que
ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto.362
355 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 503. 356 Streck afirma que o sentido “não exsurge porque o intérprete utiliza este ou aquele método. Tampouco o intérprete interpreta por partes, como que a repetir as fases da hermenêutica clássica: primeiro, a subtilitas intelligendi, depois a subtilitas explicandi e, por último, a subtilitas applicandi. Claro que não! Gadamer vai deixar isto muito claro, quando diz que esses três momentos ocorrem em um só: applicatio. É neste ponto que reside o maior contributo de Gadamer à hermenêutica jurídica.” STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 208-209. 357 Afinal, como bem lembra Streck, em alusão a Heráclito, “nós nunca nos banhamos na mesma água do rio”. STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 209. 358 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 461. 359 Gadamer é taxativo: “A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 459. 360 Referindo-se ao denominou ‘projeto projetado’, Stein afirma que “nós nunca somos um puro projeto, porque já sempre somos projetados. Isso é facticidade que já está determinada, por condições anteriores à compreensão do ser, ao projeto da compreensão.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p. 71. 361 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 75. 362 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit.,p. 75.
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De fato o texto, objeto por excelência da hermenêutica363,
proporciona a construção do sentido pelo intérprete a partir de si mesmo364, de seu
modo de ser e de compreender o mundo, desde sempre numa perspectiva
lingüística. Não por acaso o catedrático alemão afirmou que ‘ser que pode ser
compreendido é linguagem’. Em Gadamer a linguagem, já em franco processo de
generalização365, alcança foro universal366 e se transforma num médium em que se
realiza a compreensão367. A linguagem é reafirmada como condição de possibilidade
do modo de ser, do compreender e, por conseqüência, do interpretar.
O paradigma lingüístico, que para Gadamer ocupou o centro da
discussão filosófica das últimas décadas, não deve e não pode ser pensado como
um projeto prévio do mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de
uma consciência individual ou do espírito de um povo. Para ele, tudo isso são
apenas “mitologias”368. A linguagem, em realidade, representa a “interpretação
363 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 511. 364 Gadamer explica que “o horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário para quem o texto foi originalmente escrito.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 511. 365 Streck, apoiado em Blanco, acentua que “o giro lingüístico generalizou-se no conjunto das demais tradições filosóficas deste século propiciando, desse modo, conceituar (e localizar) o movimento que se tem produzido na filosofia nos últimos anos, onde o tema da Linguagem se põe como tema de reflexão comum às diferentes tradições do pensamento, tendo tido impacto dentro do campo de algumas ciências humanas e sociais. [...] a fenomenologia, que ao estar voltada sobre o sentido de mundo ante a consciência, estava em condições ótimas para valorar o tema da linguagem, mormente a partir da hermenêutica proposta por Heidegger. Desse modo, produzia-se uma nova relação com a reflexão hermenêutica do século passado, porém elevando-se à categoria filosófica, e não somente metódica, conforme se pode ver na hermenêutica de Gadamer. Outras fontes e outros nomes, não obstante, permitiram novas investigações hermenêuticas, como Peirce, para o caso de Apel, ou Freud, no caso de Ricouer. Também uma parte do pensamento de inspiração marxista deste século, a Escola de Frankfurt deu especial ênfase à linguagem, especialmente com a teoria da ação comunicativa de Habermas. Não se devem olvidar as análises lingüísticas feitas pelo estruturalismo ou ‘pós-estruturalismo’, onde a linguagem é vista como ‘discurso’, em Foucault, e como ‘escritura’ em Derrida. O balanço que Rorty faz acerca da invasão da filosofia pela linguagem (giro lingüístico), esclarece Blanco, reside em haver contribuído a substituir a referência à experiência como meio de representação pela referência à linguagem como tal meio, porque ele supôs a mudança que, na medida em que ocorreu, tornou mais fácil abrir mão da noção mesma de representação. Enquanto Rorty afirmava isto, a própria linguagem havia entrado já em outra consideração, e o próprio giro lingüístico do primeiro momento foi se modificando e se transformando em um ‘giro pragmático’.” STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 165-166. 366 Stein aduz que “a maneira de salvar a pretensão de universalidade da hermenêutica, que todo ser que pode ser compreendido é linguagem, consistia em dar ao fenômeno hermenêutico um substrato lingüístico.” STEIN, Aproximações sobre Hermenêutica, op. cit., p. 75. 367 Nas palavras do autor: “agora estamos em condições de compreender que essa cunhagem da idéia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta para uma estrutura ontológica universal, a saber, para a constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 503 e 612. 368 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 88, 92-93.
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prévia pluriabrangente do mundo e por isso insubstituível. Antes de todo pensar
crítico, filosófico-interventivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa
interpretação feita pela linguagem.”369
É por isso que Gadamer defende que não pode haver uma
interpretação correta ‘em si’, pois, desde sempre na linguagem, em cada
interpretação está em questão o próprio texto. Segundo o autor, “a vida histórica da
tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre
novas”370. Para ele, uma interpretação correta ‘em si’ seria “um ideal desprovido de
pensamento, que desconhece a essência da tradição. Toda interpretação deve
acomodar-se à situação hermenêutica a que pertence.”371.
Isto é, na análise do processo hermenêutico constata-se a obtenção
do horizonte de interpretação e se reconhece a compreensão como uma ‘fusão de
horizontes’, agora confirmada pela linguagem da interpretação. O processo
interpretativo, que realiza a própria compreensão, e que com ela está sempre
imbricada372, na linguagem não somente faz surgir o seu acontecer, como também
projeta seu alcance ao outro. Sem pretender uma falsa neutralidade373, a
interpretação parte da compreensão para fazer o “texto falar”, de modo a relacioná-
lo, sempre na linguagem, com o mundo que o circunda em meio a todos os seus
pré-juízos e pré-conceitos.
Assim, com Gadamer, vê-se que a hermenêutica jurídica tradicional
(bem representada pelo objetivismo-idealista de Betti) se mostra como projeto
esgotado e insuficiente374, pois, ainda informada pelos dogmas de uma filosofia da
369 GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p. 97. 370 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit.,p. 514. 371 GADAMER, Verdade e Método I, op. cit.,p. 514. 372 “A forma de realização da compreensão é a interpretação.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 503. 373 Gadamer lembra que: “querer evitar os próprios conceitos na interpretação não só é impossível como também um absurdo evidente.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 514, 374 Gadamer denuncia: “o historiador E. Betti fez uma síntese da tradição idealista da hermenêutica desde Schleiermacher, chegando à Dilthey e seguindo mais adiante. [...] mesmo a brilhante dialética com que E. Betti procurou justificar o legado da hermenêutica romântica conjugando o subjetivo e o objetivo mostrou-se insuficiente depois que Ser e Tempo demonstrou o caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e sobretudo quando o Heidegger tardio fez ruir o âmbito da reflexão filosófico-transcendental com a idéia da ‘virada’.” GADAMER, Verdade e Método II, op. cit., p.121 e 126.
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consciência e fiel ao metodologismo científico375, lida com o texto como objeto a ser
apreendido, subsumido pelo sujeito. Crê-se, ainda, na razão, como já dizia Hobbes,
“em si mesma sempre certa”376, infalível. Busca-se, com ardorosa fé (Legendre)
neste poder mental transmissor, reproduzir com objetivismo histórico a vontade
original do legislador, do constituinte, algo que, como se viu ocorre no imaginário dos
desavisados ou crentes.
1.3.3 A Hermenêutica e a ‘naturalização’ da inefetividade constitucional
Tal modo de fazer hermenêutica, especialmente no Brasil, ainda
ocorre prevalentemente segundo os preceitos clássicos, resistindo-se à guinada
lingüística (Habermas)377 própria de nossos tempos. Por meio de um ensino jurídico,
como já dito, ainda calcado num sistema bancário (Freire) de transmissão do saber,
os ‘donos da fala autorizada’ - sempre escudados pelos manuais jurídicos que
reproduzem a granel a interpretação dos patriarcas do saber (Warat/Pepe) -,
colonizam378 o imaginário social no qual atuam os operadores do Direito. A busca
ainda é aquela por verdades ‘redentoras’, ‘absolutas’, que já foram até mesmo
rechaçadas pelo processo especulativo das ciências naturais379. Sacraliza-se o
poder de modo a torná-lo inalcançável, inatingível, sagrado380. É o fazem por meio
de uma pseudo transparência que se sustenta em ‘falsas noções claras’. A
obviedade, aqui, se torna recurso de velada manipulação381.
375 Ainda com Gadamer: “assim, apesar de toda metodologia científica, ele comporta-se da mesma maneira que todos aqueles que, filho do seu tempo, é dominado acriticamente pelos conceitos prévios e pelos preconceitos do seu próprio tempo.” GADAMER, Verdade e Método I, op. cit., p. 513. 376 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Esclesiástico e Civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 31. 377 Com afirma Habermas: “a guinada lingüística colocou o filosofar sobre uma base metódica mais segura e o libertou das aporias das teorias da consciência.” HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p.16. 378 ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 117 e seguintes. 379 Na física, por exemplo, não se trabalha mais com verdades absolutas, e sim com probabilidades. CAPRA, O ponto de mutação, op. cit. 380 LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 119. 381 Legendre aduz: “Também o jurista dispõe de uma chave universal (clavis universalis) que permite aceder à ordem institucional por uma única via que conduz a classes de conceitos, depois, as relações entre essas classes, tomando emprestado, aliás, mais de uma vez, o viés de falsas noções claras tais como eqüidade (aequitas), a natureza das coisas (natura rerum), a justiça (justitia), etc.; tantas denominações flácidas que são, na realidade, significantes rituais chamados como reforço quando falha o silogismo.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 85.
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O objetivo é claro: uniformizar e padronizar a-criticamente e de modo
irrefletido o sentido da norma dentro do establischment jurídico382, fazendo com que
a máquina judiciária e especialmente seus funcionários (juízes, promotores,
advogados, etc) atuem em fila, como meros dentes de engrenagem (Arendt)383,
reproduzindo e retransmitindo ‘sábias, pacificadas e remansosas’ doutrinas e
jurisprudências. Por meio do que Bourdieu chamou de poder de violência
simbólico384, se pretende colonizar significações e posicionamentos interpretativos,
ocultando as verdadeiras relações de força e poder que se encontram por de trás
dos deslocamentos discursos (Warat). Tal como se fazia (e ainda se faz) com a
‘doutrina canônica”, mantendo estrategicamente os sujeitos em fé (Legendre) para, é
claro como ‘bons pastores’, ‘cuidarem’ e ‘protegerem’ o ‘rebanho do senhor’. Das
ácidas e contundentes indagações de Marques Neto e Castoriadis, respectivamente,
não se escapa sem reflexão: “quem nos protege da bondade dos bons?”385 e “quién
cuidará de los cuidadores?”.386
Este modo de interpretação jurídica no país - chamado por Bonavides
de ‘Velha Hermenêutica’387 -, falsamente sustenta-se na ilusão de que as ‘palavras
da Lei’ seguram ‘o’ sentido388, alimentando-se sempre do argumento final tautológico
“It’s the law”389. Como não poderia deixar de ser, tal modus também atinge em cheio
382 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 85. 383 Hannah Arendt explica: “Quando descrevemos um sistema político [...] é inevitável falarmos de todas as pessoas usadas pelo sistema em termos de dentes de engrenagem e rodas que mantêm a administração em andamento. Cada dente de engrenagem, isto é, cada pessoa, deve ser descartável sem mudar o sistema, uma pressuposição subjacente a todas as burocracias, a todo o serviço público e a todas as funções propriamente ditas.” ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 91-93. 384 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 07. Vide subcapítulo 3.2. 385 Marques Neto pondera: “do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, a priori, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. Como também nada nos garante em relação aos políticos, ao Legislativo, ao Executivo.” MARQUES NETO, O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática, op. cit., p. 50. 386 CASTORIADIS, Cornelius. Una Sociedade a la deriva: Entrevistas y debates. Trad. Sandra Garzonio. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 282. 387 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 231. 388 Coutinho mostra que “as palavras da lei, porém não são desprovidas de um valor que já antes se aceitava, razão porque foram utilizadas – em detrimento de outras -, sempre na doce ilusão de terem a capacidade de segurar o sentido. Nada seguram, todavia, como demonstram os infindáveis exemplos.” COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em países periféricos. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 229. 389 Warat explica: “En un reciente viaje a América do Norte pude observar como los americanos tienen un encanto desmusurado por la eficiencia de la ley. ‘It’s the law’ es la frase que termina com
73
a norma constitucional. Por certo, é tal maneira de interpretar que responde por
grande parcela de responsabilidade do histórico problema de inefetividade
constitucional.
Infelizmente, e isto já se vê com Streck, vive-se imerso numa séria (e
até certo ponto despercebida) crise de duplo paradigma390 que não permite com que
a Constituição da República exista como dispositivo cogente e efetivo: de um lado,
informados pela essencialista filosofia da consciência, os operadores do Direito
ainda continuam presos a um esquema sujeito-objeto, buscando no texto uma
verdade sacralizada que lhes transmita a perseguida voluntas legis e a voluntas
legislatoris; de outro, por conta do paradigma ainda prevalente (mas insuficiente) do
modo de produção do Direito liberal-individualista-normativista, não conseguem lidar
com os direitos transindividuais e com as questões da complexa sociedade
contemporânea391.
Também por isso, nossa Constituição da República fenece lenta e
gradualmente, sonegando ao povo (ainda não compreendido como ‘povo’ na
acepção própria do termo)392 as promessas modernas, e fazendo do almejado
Estado social um sonho, uma utopia inalcançável393. Isto para falar o mínimo. E os
‘patriarcas do saber’ (Warat/Pepe), ainda continuam apropriando-se de uma
interpretação ‘exclusiva’ da Constituição, ditando à sociedade, através de seus
‘manuais’, que, por exemplo, direitos sociais constituem ‘normas programáticas’ sem
cogência, que os direitos fundamentais devem ser analisados a partir de seus
custos394, etc.
cualquer argumentación. Si lo dice la ley no hay nada más que discutir. El imperio absoluto de la ley, sumado al encanto por una tecnologia que la torno absolutamente eficiente. En el fondo, una versión sinestra del Estado de Derecho, que provoco efectos cancerígenos, como una célula excedida en sus funciones. La falta o el excesso confucen al mismo resultato totalitário. La ley como poder sin limites y no como limite al poder.” WARAT, Por quien cantan las sirenas, op. cit., p. 35. 390 Também em análise à crise dos paradigmas jurídicos, conferir MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos e a questão do Direito Alternativo, op. cit., p. 72 e seguintes. 391 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit. 392 Conferir: MÜLLER, Friederich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 1989. 393 É exatamente este o propósito ideológico neoliberal: fazer do Estado Social algo irrealizável, utópico. Conferir: HINKELAMMERT, Franz Josef. Crítica da Razão Utópica. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. p. 47-94. 394 Vide subcapítulo 2.2.
74
1.3.4 Häberle e a ‘abertura interpretativa’ constitucional
Rompendo, pois, com esta concepção de produção única do sentido
da norma constitucional, nota-se com Häberle395 que a interpretação da Constituição
não pode se consubstanciar em privilégio de uma casta dotada de uma sabedoria
‘pura’, ‘ilibada’ e ‘autorizada’. Häberle, propõe uma “sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição”396, onde estariam potencialmente vinculados, tocante ao processo
interpretativo constitucional, todos os órgãos públicos, segmentos da sociedade e
cidadãos. Seria, conforme pensa o autor, um equívoco restringir aos juristas e às
partes interessadas no processo a tarefa hermenêutica. A interpretação da
Constituição jamais poderia se limitar à esfera estatal397, tendo de ser aberta à maior
parte possível da comunidade política, tornando-se efetivo processo público.
Häberle combate o hermetismo na interpretação constitucional, e
amplia a concepção de ‘intérprete’ da Constituição com o conceito de “participante
do processo constitucional”398. Assim, se romperia com a prerrogativa ‘exclusiva’ de
interpretação de determinados segmentos, abrindo-se a possibilidade de conjugação
de outras fontes hermenêuticas, e, por conseqüência, democratizando o processo
interpretativo. Aliás, é exatamente de uma ‘teoria constitucional democrática’ que
Häberle fala: “a teoria constitucional democrática aqui enunciada tem também uma
peculiar responsabilidade para a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição”399.400
395 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997. 396 HÄBERLE, Hermenêutica Constitucional, op. cit., p. 25. 397 Segundo Häberle, “a interpretação constitucional não é um evento exclusivamente estatal, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático”. HÄBERLE, Hermenêutica Constitucional, op. cit., p. 23. 398 HÄBERLE, Hermenêutica Constitucional, op. cit., p. 41. 399 HÄBERLE, Hermenêutica Constitucional, op. cit., p. 55. 400 Rosa arremata: “adotando-se esta compreensão aberta da Constituição, além da interpretação pode-se invocar justamente essa frente democrática para defender, com maior vigor, a aderência de normas internacionais de Direitos Humanos, cotejando-se o impacto no ordenamento jurídico interno, impulsionando, de qualquer sorte, a construção de uma democracia material, fulcrada nos Direitos Fundamentais.” ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 95.
75
Somente com uma ‘nova’ hermenêutica constitucional que parta da
intersubjetividade, da alteridade, e do ‘dirigismo’ (Canotilho)401 visando (re)situar a
Constituição da República como ponto central a partir do qual se estabeleça - a
partir da interpretação402 - a compreensão normativa pátria (como verdadeiro topos
hermenêutico), será possível atribuir-lhe efetividade e cogência. Isso tudo, ainda
aliado - especialmente para um país periférico como o Brasil, massacrado pelos
simulacros sociais que se sucederam ao longo da história403, e marcado pelo
esgotamento de um sistema representativo inoperante e fracassado404, - a uma
postura ‘aberta’, ‘pluralista’ (Häberle) e democrática de interpretação, de modo a
proceder a permanente ‘oxigenação constitucional’ (Rosa)405 da legislação produzida
pelo Legislativo, visando sempre a efetivação dos Direitos Fundamentais.
401 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. 402 Com Magalhães: “A hermenêutica jurídica, por sua vez, procura construir, no contexto do reconhecimento da positividade do direito, ou seja, onde já não é possível indicar Deus, a Natureza, Razão e tampouco a Ciência, uma referência não mais externa ao Direito. Não mais metajurídica, mas agora interna. No centro da discussão coloca-se a noção de interpretação. [...] O direito é, ele mesmo, descrito como uma prática interpretativa.” MAGALHÃES, Interpretando o direito como um paradoxo: op. cit., p.138. 403 Neste sentido conferir: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia: uma contribuição ao estudo da política internacional. Porto Alegre: UFRS/Contraponto, 1999. 404 Streck, neste sentido, é taxativo: “A velha democracia representativa já se nos afigura em grande parte perempta [...]”. STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 49. 405 ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 25.
CAPÍTULO 2
2 O NEOLIBERALISMO E A CONSTITUIÇÃO
2.1 O DISCURSO NEOLIBERAL COM HAYEK E FRIEDMAN
Para uma adequada compreensão da Constituição da República e da
(in)efetividade de seu conteúdo normativo à luz de aspectos principiológicos e
hermenêuticos, torna-se indispensável uma maior aproximação ao modelo político e
econômico no qual está inserida. Por mais que a Constituição da República traga
consigo uma proposta de Estado do Bem Estar Social, seu acolhimento, em 1988,
pelo establishment deu-se de maneira “simbólica”1, isto é, sabendo-se da
impossibilidade de cumprimento. É que a ‘Constituição Cidadã’ ocorreu-nos
tardiamente, nascendo em ‘berço nada esplêndido’. A tão almejada Constituição
surge no país quando já se estruturavam as bases de um modelo econômico que
‘asfixiaria’ as suas pretensões sociais. Trata-se, pois, do modelo neoliberal.
O neoliberalismo consiste numa corrente de pensamento político-
econômico que, segundo Anderson2 surge no segundo pós-guerra - na Europa e
América do Norte - onde predominava o capitalismo. Com o intuito de combater o
Estado de bem-estar e o Keynesianismo3, já bastante desgastado e cada vez mais
rejeitado pelas classes dominantes de então, o neoliberalismo surge como uma
‘nova ortodoxia’ de cunho econômico tendo como preceitos básicos a liberdade
econômica, o individualismo e a contenção da intervenção estatal.
1 NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994. 2 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p.09. 3 Doutrina econômica que teve por base as idéias de John Maynard Keynes. Conferir: KEYNES, John Maynard Keynes. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Trad. Mário R. da Cruz. São Paulo: Nova Cultural, 1983.
77
Tem-se como marco doutrinário o texto O Caminho da Servidão4, de
Friedrich August Von Hayek, de 1944, que constituiu um verdadeiro manifesto contra
os Estados totalitários e contra qualquer limitação estatal dos mecanismos de
mercado5. O alvo imediato, no entanto, era outro. Anderson explica que, em
realidade, às vésperas da eleição geral de 1945, vencida pelo partido trabalhista,
Hayek pretendia o atacar pela postura deste em face do movimento sindical e
operário.6 O conteúdo do texto consistia num forte ataque ao movimento dos
trabalhadores, já tradicional na Inglaterra, e que representava um obstáculo ao
sistema de acumulação, bem assim por provocar o aumento de gastos públicos.
Considerava isto um dos ‘caminhos da servidão’ moderna.7 Mas não pararia por aí
sua ofensiva.
Objetivando organizar uma frente de ataque às bases do Estado de
bem-estar, principalmente no pós-guerra, Hayek, em 1947, convoca teóricos e
estudiosos que comungavam de suas idéias para um encontro na estação de Mont
Pèlerin, na Suíça, consolidando o primeiro grande movimento organizado da Nova
Direita8. Dentre os presentes encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel
Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi,
Salvador de Madariaga9. Forma-se, então, a Sociedade de Mont Pèlerin10, “uma
espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com
reuniões internacionais a cada dois anos”11. A intenção, segundo Anderson, era
clara: combater não somente o Keynesianismo, mas qualquer tipo de ‘coletivismo
4 HAYEK, Friedrich August Von. O Caminho da Servidão. Trad. e revis. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle, e Liane de Morais Ribeiro. 5.ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. 5 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.09. 6 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.09. 7 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.09. 8 Conforme afirma LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: ______. (Org.). Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo. Trad. Rodrigo Leon Contrera. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 161. 9 Além dos ferrenhos opositores ao modelo de Estado de bem-estar, faziam parte da sociedade opositores do modelo do New Deal norte americano, entre eles o destacado Milton Friedman, que via em tal programa nítidas características intervencionistas e pró-sindicatos. ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.10. 10 Com Nunes vê-se a proclamação máxima fundacional da Societé du Mont Pélérin, que foi subscrita por Friedman: “sem o poder difuso e a iniciativa associada a estas instituições [a propriedade privada e o mercado de concorrência], é difícil imaginar uma sociedade em que a liberdade possa ser efectivamente salvaguardada”. NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 10. 11 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p. 09-10.
78
solidário’, estruturando, assim, as bases de um novo tipo de capitalismo que,
segundo seus membros, deveria ser liberto de quaisquer amarras de origem
estatal.12
Outra frente de altíssima relevância, e que ocorria em paralelo à
formação da Sociedade de Mont Pèlerin, foi a criação da chamada Banca de Bretton
Woods. Em 1944, já antevendo a estratégica vitória bélica, os Estados Unidos
mobilizaram 44 países para, em conferência em New Hampshire, transmitir as novas
orientações e diretrizes político-econômicas, lançando as bases do neoliberalismo
global, e, por conseqüência, para ‘legitimar’ a criação, que ocorreria logo depois, do
Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Estas instituições assumiriam
papel de fundamental importância para a expansão planetária do neoliberalismo. 13
Com a fragilização econômica decorrente da crise do modelo
econômico do Estado de bem-estar em 1973 – que atingiu todo o mundo capitalista
avançado e numa longa recessão combinou baixo crescimento com alta de inflação
– a década de ’70 ofereceu terreno fértil ao avanço do levante neoliberal14. Ao longo
desta década o ideário neoconservador foi ganhando mais e mais adeptos, até
‘emplacar’ em 1979 e 1980, respectivamente, Margareth Tatcher na Grã-Bretanha, e
Ronald Reagan nos Estados Unidos, que chegaram ao poder imprimindo novo modo
de governar: adotaram políticas econômicas monetaristas que objetivavam combater
12 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.10. 13 Borón explica que: “difícilmente se poderia exagerar a importância do papel jogado na história econômica do último meio século pelos acordos de Bretton Woods. No verão boreal de 1944 e diante da iminência de uma segura vitória militar, os aliados convocaram (na realidade, obedecendo a uma forte pressão norte-americana) uma conferência monetária e financeira para estabelecer as orientações do ‘liberalismo global’ que havia de prevalecer na emergente ordem mundial pós-guerra. A reunião teve lugar em Bretton Woods, New Hampshire, quando as notícias triunfais do desembarque da Normandia renovavam as esperanças de um pronto desenlace nas frentes de batalha. Temas fundamentais da conferência – a que assistiram 44 países, incluindo a União Soviética – foram a elaboração das novas regras do jogo que devia reger o funcionamento da reconstituída economia mundial e a criação das instituições encarregadas de assegurar sua vigência.” E as instituições gêmeas de Bretton Woods nasceriam destas deliberações: “o Banco Mundial em 1945 e o Fundo Monetário Internacional um ano depois”. BORÓN, Atilio. A Sociedade Civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 91-93. 14 É nesse período (anos ’70) que surge o pioneiro do ciclo neoliberal da história contemporânea: o Chile. Sob a dura ditadura de Pinochet, e seguindo as orientações econômicas de Milton Friedman, o Chile pôs em prática a primeira experiência ocidental do modelo econômico neoliberal. Cfe: ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.19-20.
79
a inflação através do equilíbrio orçamentário, privilegiando a liberdade de Mercado, e
contrapondo-se ao Estado de bem-estar que prevalecia na Europa.15
Neste período de transição entre as décadas de ’70 e ’80, assume
também importante papel no processo de consolidação do projeto neoliberal – já em
sua ‘etapa estatal’, conforme aponta Ezcurra16 - a forte atuação das ‘Agências de
Bretton Woods’. Tais instituições, que como lembra Nunes foram fundamentais para
a ascenção do movimento monetarista17, através do que chamaram de ‘ajustes
estruturais’, implementaram um conjunto programas de ‘condicionamento de
políticas’ com o objetivo de efetivar o projeto macro-global financeiro neoliberal. Com
grande enfoque aos países do Sul, foi aqui que começaram as medidas de ajustes
financeiros que condicionaram o derrame de dinheiro pela periferia através de
‘salvadores’ empréstimos e financiamentos18. Mas é a partir de 89, com a queda do
Muro de Berlim, que o neoliberalismo ganha fôlego e avança a passos largos, livre
dos ‘fantasmas’ vermelhos que lhe obstruíam o caminho – salvo, é claro, raras
exceções.
Assim sendo, para que se possa melhor compreender as bases
filosóficas e econômicas deste modelo ultraliberal, faz-se necessário revisitar as
obras dois representantes das duais mais renomadas escolas neoliberais: Friedrich
August Von Hayek, representante da Escola Austríaca, que ofereceu ao
neoliberalismo a mais completa e bem elaborada tese filosófica, e Milton Friedman,
15 De se lembrar também: em 1982 a ascenção de Khol na Alemanha, em 1983 a eleição de Schluter na Dinamarca, além de outros países que seguiram a onda de ‘direitização’ neoliberal. ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, op.cit., p.11-12. 16 Ezcurra propõe duas etapas básicas no processo de surgimento do neoliberalismo: a ‘etapa fundacional’, com início em 1947 e se prolongando por aproximadamente trinta anos, onde se consolidou a ‘ortodoxia neoliberal’, com a elaboração de corpo sistemático-doutrinário; e a ‘etapa estatal’, que iniciou nos fins da década de ’70, e se consolidou com a ascenção do neoliberalismo ao Estado – iniciando com Tatcher e Reagan – e com a hegemonia das agências de Bretton Woods no cenário internacional. É na transição da primeira para a segunda fase que ocorre o que Ezcurra denomina de ‘reordenação ideológica’, onde o projeto neoliberal passa a ser integral, global e homogêneo. EZCURRA, Ana María. Qué es el Neoliberalismo? Evolución y límites de un modelo excluyente. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2002. p. 14-18. 17 NUNES, Neoliberalismo e Direitos Humanos, p. 10. 18 Salinas explica que o ‘empréstimo’ foi o recurso mais arcaico e perverso de acumulação que a Nova Direita lançou mão. Foi por meio deste derrame financeiro sobre os países pobres que os países centrais saldaram o custo de sua crise. Ou seja: como sempre pagando a conta. Cfe: SALINAS, Dario. O Estado latino-americano: notas para a análise de suas recentes transformações. In: LAURELL, Asa Cristina (Org.). Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo. Trad. Rodrigo Leon Contrera. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 131.
80
da Escola de Chicago, que foi o responsável pela consolidação teórico-econômica
do neoliberalismo, especialmente sobre a América Latina.19
2.1.1 Hayek e o evolucionismo seletivo de Mercado
Hayek, através de sua obra Direito, Legislação e Liberdade20, objetiva
propor o que chama de ‘equipamento intelectual de emergência’21 para o
enfrentamento das doutrinas e teorias sociais coletivistas22 de ordem econômica e
política que tem por base as premissas do utilitarismo e mais tarde do
Keynesianismo. Rediscutindo o regime democrático e os rumos que tal modelo
tomou a partir das revoluções burguesas, o autor afirma pela necessidade premente
de inversão de paradigmas, abandonando-se o “embuste” da busca utópica de uma
“justiça social igualitarista”23, em nome de uma economia de Mercado que
privilegiaria a liberdade, a igualdade24, e o fomento de desenvolvimento das
capacidades individuais. Hayek combate a forte influência da “crença num Estado
Social igualitário e capaz de proporcionar felicidade a todos” que se instalou no
19 Toledo bem explica: “A Escola de Chicago, do ponto de vista epistemológico, define-se como positivista, dado o fato de Friedman considerar que, exceto a matemática e a lógica, a linguagem da ciência deve ser observacional, diferenciando também claramente fatos e valores.[…] Se a Escola de Chicago é a que mais tem influído em políticas econômicas concretas, a austríaca é a mais sofisticada epistemologicamente e, à diferença da de Chicago, define-se como dedutiva e compreensiva.” TOLEDO, Enrique de la Garza. Neoliberalismo e Estado. In: LAURELL, Asa Cristina (Org.). Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo. Trad. Rodrigo Leon Contrera. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 77-78. 20 HAYEK, Friedrich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política – Normas e Ordem. Trad. Ana Maria Capovilla e José Ítalo Stelle. Vol I. São Paulo: Visão, 1985; HAYEK, Friedrich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política – A Miragem da Justiça Social. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Vol II. São Paulo: Visão, 1985; HAYEK, Friedrich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política – A Ordem Política de um Povo Livre. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Vol III. São Paulo: Visão, 1985. 21 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 158. 22 Hayek explica o uso e alcance da expressão coletivismo: “o significado do termo tornar-se-á mais preciso se deixarmos claro que por ele entendemos a espécie de planejamento necessário à realização de qualquer ideal distributivo”. E continua mais adiante: “Os vários gêneros de coletivismo – comunismo, facismo, etc. – diferem entre si quanto ao fim para o qual pretendem dirigir os esforços da sociedade. Todos eles porém, se distinguem do liberalismo e do individualismo por pretenderem organizar a sociedade inteira e todos os seus recursos visando a essa finalidade única e por se negarem a reconhecer esferas autônomas em que os objetivos individuais são soberanos.” HAYEK, O Caminho da Servidão, op. cit., p. 57 e 74. 23 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 108. 24 Com Hayek: “o grande mérito do mercado é atender tanto às minorias quanto às maiorias.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 53.
81
imaginário coletivo25. Afirma, que o retorno a preceitos básicos do liberalismo
clássico seja a saída para evitar o colapso da democracia.26
O conceito de ‘Justiça Social’ considerado um dos pilares estruturais
do paradigma do Estado Social e que foi também fortemente trabalhado a partir da
construção teórica de Keynes27, segundo Hayek, consiste em “mera retórica
discursiva de conteúdo vazio”, uma “vazia fórmula mágica” que fadaria ao fracasso
qualquer projeto estatal que o tivesse como premissa político-econômica.28 Isto, por
que o Estado não deveria estar voltado para a satisfação de todos – o que
normalmente se intenta fazer com intervencionismos29 - mas sim para preservar a
espontaneidade do Mercado que se encarregaria de oportunizar a satisfação mútua
dos interesses entre os indivíduos. Neste sentido, Hayek rediscute o próprio conceito
de bem-estar:
O bem-estar geral a que o governo deve visar não pode consistir no somatório das satisfações particulares dos diferentes indivíduos, pela simples razão de que nem estas nem todas as circunstâncias que as determinam podem ser conhecidas pelo governo ou por quem quer que seja. [...] O mais importante bem público a requerer a ação do governo não é, portanto, a satisfação direta de quaisquer necessidades particulares, mas a garantia de condições em que os
25 Afirma Hayek: “Não é agradável ter de argumentar contra um superstição sustentada com o maior entusiasmo por homens e mulheres frequentemente considerados a nata de nossa sociedade, contra uma crença que se tornou quase uma nova religião de nosso tempo [...] e passou a ser marca registrada do homem bom.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. XII. 26 Importante registrar, que Hayek reconhece, ainda que com algumas divergências, os avanços dos trabalhos de Rawls quando propõe uma teoria da justiça, e de Nozick, quando defende um Estado Mínimo. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. XIII. 27 A justiça social é um conceito que é fortalecido em muito pelo projeto econômico de Keynes, especialmente quanto à sua proposta de rompimento com a ortodoxia econômica clássica vigente à época (fim do século XIX e início do século XX), onde defende um modelo mais racional de distribuição de renda, calcado no que chama de ‘teoria do pleno emprego’. KEYNES, Teoria Geral do Emprego, op. cit., p. 43-52. 28 Hayek procura explicar que “a expressão [justiça social] não significa coisa alguma e que empregá-la é ou uma irreflexão ou uma fraude”. E ainda registra: “O que quero ter deixado claro é que a expressão ‘justiça social’ não é, como a maioria das pessoas provavelmente o supõe, uma expressão ingênua de boa vontade para com os menos afortunados [...]”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. XII e 118. 29 Hayek, especialmente quanto à sua contrariedade ao intervencionismo estatal, é fortemente influenciado por seu professor e destacado intelectual da Escola Austríaca Ludwig Von Mises. Von Mises além de lançar as bases de um novo liberalismo, afirmando que “o capitalismo envelheceu, e consequentemente deve render-se ao novo”, era crítico ferrenho do intervencionismo estatal: “Nenhum decreto governamental pode criar coisa alguma que já não tenha sido criada antes. Apenas os inflacionistas ingênuos acreditam que o governo pode enriquecer a humanidade através de emissão de dinheiro. [...] O governo não é capaz de tornar o homem mais rico, mas pode emprobecê-lo.” MISES, Ludwig Edler Von. Uma crítica ao intervencionismo.Trad. Arlette Franco. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1977. p. 21-22.
82
indivíduos e grupos menores tenham oportunidades favoráveis à satisfação mútua de suas respectivas necessidades.30
Deste modo, insurgindo-se contra a fé de herança socialista que se
criou quanto a indispensabilidade da máquina estatal31, o autor afirma que o Estado
não poderia voltar-se para necessidades particulares de seu conhecimento. Deveria
direcionar-se no sentido de gerar condições propícias à preservação de uma ordem
espontânea32 que permitisse aos indivíduos satisfazer suas próprias necessidades
de formas e maneiras desconhecidas pela autoridade. E este, segundo Hayek, foi o
erro do utilitarismo construtivista: não reconhecer a incapacidade humana de
previsibilidade, ou melhor, não reconhecer a ignorância humana da maior parte dos
fatos e acontecimentos.33
Diante da falibilidade humana na previsão dos resultados possíveis,
os meios, para Hayek, devem sobrepor-se aos fins. Considerando a inviabilidade de
um possível acordo a respeito dos fins particulares, vê-se que um consenso a
respeito dos meios torna-se possível, e pode ser mais facilmente obtido, pois não se
sabem a que fins particulares servirão. Desta forma, segundo o autor, ‘os fins não
justificam os meios’.34 E esta análise serviria também para a compreensão a respeito
das normas de conduta, pois, seria por conta de nossa ignorância diante de todas as
possibilidades futuras que poderíamos supor que tais normas seriam capazes de
aumentar, igualmente, as oportunidades de todos.35
30 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 02. 31 Hayek nos lembra que esta idéia de um Estado indispensável é decorrência do ‘mito socialista’, e questiona tal indispensabilidade: “Convém lembrar que, bem antes de o governo ter ingressado nesses setores [prestação de serviços públicos], muitas das necessidades coletivas, hoje de reconhecimento geral, eram satisfeitas graças aos esforços de homens ou grupos dotados de espírito público para proporcionar meios para a consecução de objetivos públicos que julgavam importantes. Escolas e hospitais públicos, bibliotecas e museus, teatros e parques não foram originalmente criados pelos governos.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 53. 32 Quando Hayek se refere a ‘ordem espontânea’, uma dos pilares de sua tese, pretende tratar de ‘ordem autogerada’. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 03. 33 Segundo o autor, “a falha de toda a abordagem utilitarista reside no fato de que, sendo uma teoria que pretende explicar um fenômeno que consiste num corpo de normas, elimina por completo o fator que as torna necessárias, a saber, nossa ignorância”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 22. 34 Com Hayek: “[…] O que possibilita o consenso e a paz em tal sociedade é que não se exige dos indivíduos consenso quanto a fins, mas somente quanto aos meios capazes de servir a uma grande variedade de propósitos, meios que cada um espera o auxiliem na busca de seus objetivos.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 04. 35 Assim, “uma norma [de conduta] é adotada e transmitida, em vez de outra, porque o grupo que a adotou provou ser de fato o mais eficaz, e não em decorrência de os seus membros anteverem os efeitos que teria tal adoção. O que se preservaria seriam somente os efeitos das experiências
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Para o vencedor do prêmio nobel de economia de 1974, tocante às
normas e ao próprio Direito, o grande problema foi a intenção do construtivismo
positivista - tanto do positivismo lógico de Carnap, quanto o positivismo jurídico de
Kelsen - , de tentar estabelecer o Direito como uma construção racional direcionada
aos propósitos conhecidos36. Assim sendo, na opinião do autor, o Direito estaria a
serviço de uma ordem espontânea social37. E nesta ordem, as normas de conduta –
de regulação das relações privadas – figuram como instrumentos hábeis a enfrentar
a ignorância que é imposta ao homem pelas limitações da própria mente.38
A justiça social, segundo esta concepção, figura como uma
‘superstição’, um ‘mito’ a ser desvendado, superado, especialmente porque de
‘forma enganosa’ teria provocado uma verdadeira inversão nos conceitos de
‘interesse coletivo’ e ‘interesse geral’. As teses de cunho social, explica o autor,
sugerem sempre uma confusão entre tais conceitos. Sugerem que todos os
interesses coletivos se apresentam como ‘interesses gerais’. Mas, segundo Hayek,
em muitas circunstâncias, a satisfação de interesses coletivos diz respeito ao
atendimento de interesses de grupos específicos e determinados.39
Hayek explica que este é exatamente o vício que permeou os
regimes democráticos contemporâneos. Com a falsa idéia de que todos poderiam
ser satisfeitos, de que a ‘vontade comum’ estaria sendo atendida, a democracia de
bases utilitaristas frustou o próprio projeto político em que estava inserida. A
democracia original, de bases liberais, foi distorcida, deturpada. A liberdade
moderna foi mal compreendida, e isso acarretou sérios problemas a democracia.
Pensou-se, como explica o autor, na época do constitucionalismo, que limitando o
passadas na seleção das normas, não as experiências em si.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 04. 36 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 186-187. Afirma o autor: “O sistema de normas em sua totalidade nunca poderá, portanto ser reduzido a uma construção intencional voltada para propósitos conhecidos; deve antes, continuar sendo para nós o sistema herdado de valores que orientam aquela sociedade.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 06. 37 Aduz o economista: “Conquanto a ordem espontânea abrangente a que serve o direito é uma precondição para o êxito da maioria das atividades privadas, os serviços que o governo pode prestar, além da aplicação de normas de conduta justa, não são apenas suplementares ou subsidiários, às necessidades básicas atendidas pela ordem espontânea.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 07. E ainda: “A abordagem evolucionista do direito (e de todas as demais instituições sociais) aqui defendida tem, pois, tão pouca relação com as teorias racionalistas do direito natural, quanto com o positivismo jurídico. Rejeita não só a interpretação do direito como criação intencional de qualquer mente humana.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 76. 38 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 08. 39 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 07.
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poder através de procedimentos democráticos seria o suficiente para garantir a
liberdade. O princípio de ‘soberania do povo’, de ‘soberania parlamentar’ – criações
do construtivismo positivista40 - transformaram o parlamento numa autoridade tão
ilimitada quanto o rei absoluto que se pretendeu eliminar41. Isso tudo, teria levado ao
surgimento de um tipo de democracia não idealizado pelos revolucionários: uma
democracia totalitária, a uma ‘ditadura plebiscitária’.42
Com isso, aponta o autor, o parlamento – onde, em sua opinião, se
confundem os poderes de ‘legislar’ e de ‘governar’ - acaba se tornando um ‘balcão
de negócios’, onde a chantagem e a barganha43 se tornam as ferramentas de
trabalho mais freqüentes, em busca do apoio de grupos que visam o consenso44.
Pelo princípio da maioria, leva-se a crer que tudo que for resultado do consenso
majoritário será justo. E para Hayek, aqui está o maior problema: a crença do que é
‘utilitariamente justo’. Para ele, é incorreto pensar que este modo corrupto de
governar é inato ao homem.45
A solução do autor seria o retorno aos pilares-base do liberalismo
clássico. Resgatar um constitucionalismo que limite46, inclusive, o poder ilimitado
transferido ao parlamento pelo princípio de soberania popular próprio da construção
positivista47. Com regras gerais claras e cogentes, com a separação, dentro do
parlamento, entre as funções legislativas e funções de governo, e com um tribunal
40 Explica o autor: “Foi a superstição construtivística-positivista que deu lugar à crença de que precisa haver um poder supremo único e ilimitado, do qual derivam todos os outros poderes.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 134. 41 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 23. 42 Importante registrar, que para Hayek democracia consiste em mero ‘método’, um ‘meio‘, um ‘instrumento utilitário’ para salvaguarda da paz interna, da liberdade individual (leia-se mercado) e da própria propriedade privada. HAYEK, O Caminho da Servidão, op. cit., p. 84. 43 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 104-105. 44 “Devido a sua estrutura, o que hoje chamamos de governo democrático está a serviço não da opinião da maioria, mas dos vários interesses de um conglomerado de grupos de pressão cujo apoio é obrigado a comprar por meio da concessão de benefícios especiais [...]”.HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 134. 45 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 134. 46 Pois, “limitar esse poder foi o grande objetivo dos fundadores do governo constitucional nos séculos XVII e XVIII.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 133. 47 Vê-se que a crença na soberania popular “é produto da falsa interpretação construtivística sobre a formação das instituições humanas, que procura atribuí-las todas a um planejador inicial ou a algum ato deliberado de vontade. [...] A concepção da soberania baseia-se numa construção lógica enganosa que parte da premissa de que as normas existentes e as instituições são fruto de uma vontade uniforme que pretendeu criá-las. [...] A idéia de que deve existir uma vontade ilimitada como fonte de todo poder é uma invenção dos construtivistas – uma ficção tornada necessária pelos falsos pressupostos factuais do positivismo jurídico, mas sem relação com as causas reais do reconhecimento da autoridade.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 37-38.
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constitucional independente48 que garanta os princípios liberais, a democracia
poderia, no entendimento do autor, ser salva e preservada contra a tirania de
poderes ilimitados que colocam em risco a liberdade, a ‘riqueza’, a ‘moral’ e a ‘paz.49
Isto também se tornou conseqüência, explica Hayek, do flagrante
rompimento operado pelos contemporâneos com o princípio liberal clássico da
‘igualdade de todos perante a lei’. Com o intuito distributivista, e movido por
intenções ‘benévolas’ – que pretenderam oferecer compensações aos ‘menos
privilegiados’ -, os governos provocaram, afirma o autor, grave discriminação aos
ricos50. Com o conceito de “igualdade material” de influência germânica51, ter-se-ia
distorcido o princípio de igualdade formal liberal52. Em realidade, tal concepção
material da lei, segundo Hayek, aliada a idéia ‘fraudulenta’ e ‘caridosa’ de justiça
social, serviram para encobrir a corrupção, a parcialidade, e a extorsão.53 Houve,
segundo o autor, uma banalização do que era entendido por ‘lei’. Tudo que passou a
ser votado no parlamento foi designado por ‘lei’, rompendo com a posição clássica
original representada por Locke, de que as leis propriamente ditas sempre
representariam normas gerais54. Conforme Hayek, acabou por prevalecer o
casuísmo, o primado da segmentação em grupos de apoio, a arbitrariedade55.
Hayek, em realidade, sustenta toda a sua tese de resgate ao
liberalismo clássico com base num ‘evolucionismo’ de ordem Darwinista. Fortemente
48 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 113-115. 49 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 07-20 e 37-39 e 135. 50 Afirma Hayek: “Discriminação para auxiliar os menos afortunados não parecia discriminação. Mais recentemente, chegamos a inventar a absurda expressão ‘os menos privilegiados’ com o intuito de ocultar esse fato.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 108. 51 Atribuído a Carl Schmit, por influência de Laband e da construção teórica anterior de Kant. 52 Com Hayek: “Ao cabo de longas discussões, em que os juristas alemães, em particular, tinham por fim, elaborado esta definição do que chamaram de ‘lei no sentido material’, esta acabou sendo subitamente relegada em virtude de uma objeção que hoje parece quase cômica. Nos termos desta definição, as normas de uma constituição não seriam lei no sentido material”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 106. 53 Assim, “o rompimento do princípio de igualdade de tratamento perante a lei, mesmo a bem da caridade, abriu inevitavelmente as portas à arbitrariedade. Para disfarçá-la, recorreu-se ao embuste da formula de ‘justiça social’; ninguém sabe ao certo o que significa, mas, por isso mesmo, funcionou como uma varinha de condão para derrubar todas as barreiras que impediam as medidas parciais.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 108. 54 Explica: “o pretenso legislativo já não se restringia (como John Locke o prescrevera) à formulação de leis no sentido de normas gerais. Tudo que o legislativo decidisse passou a ser chamado de ‘lei’ e o órgão já não era chamado de legislativo por que estabelecia leis, e sim ‘lei’ passou a ser a designação de tudo o que emanasse do ‘legislativo’. A consagrada palavra ‘lei’ perdeu, assim, seu antigo significado. [...]”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 107. 55 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 108.
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influenciado pela ‘sócio-biologia norte-americana’56, Hayek passa a defender que as
complexas estruturas culturais se submetem a um desenvolvimento por meio de um
processo de ‘evolução seletiva’, e que
a idéia de evolução cultural é, sem dúvida, anterior ao conceito biológico de evolução. É mesmo provável que sua aplicação à biologia por Charles Darwin derivasse, por meio de seu avô Erasmus, do conceito de evolução cultural de Bernard Mandeville e David Hume, se é que não tenha sido derivada, mais diretamente, das escolas históricas do direito e da linguagem da época.57
O autor é taxativo ao revelar que a ordem social não teria surgido
propositadamente por um esforço racional do homem, e sim, pela “preponderância
das instituições mais eficientes num processo de concorrência”58. E por decorrência
disso, conclui que a cultura não seria algo natural, nem artificial, nem geneticamente
transmitida, nem racionalmente forjada. A cultura consistiria, nada mais nada menos,
em uma tradição de normas de conduta aprendidas que nunca foram inventadas e
cujas funções não são, em geral, compreendidas pelos agentes.59
Assim, segundo Hayek, as estruturas decorrentes das práticas
tradicionais do ser humano não seriam naturais, no sentido de geneticamente
determinadas, nem seriam artificiais, no sentido de produtos da consciência. Seriam
“o fruto de um processo de seleção ou triagem guiado pelas vantagens diferenciais
proporcionadas aos grupos pelas práticas adotadas por razões desconhecidas e
56 Hayek menciona sua admiração pela obra The Biological Origin of Human Values, do norte americano G. E. Pugh, muito elogiada por Edward O. Wilson da Universidade de Harvard, e que relaciona os valores humanos aos preceitos biológicos-genéticos. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 159-160. 57 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 160-161. Hayek insiste em afirmar que uma das razões da antipatia de muitos cientistas pelo racionalismo evolucionista é o entendimento de que tal conceito teria sido tomado pelas ciências sociais das ciências biológicas. Aduz que “o que de fato ocorreu foi o contrário, e se Charles Darwin conseguiu aplicar à biologia um conceito que em grande parte aprendera das ciências sociais, isso não o torna menos importante em seu campo de origem.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. 21. 58 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 162. 59 Com Hayek: “Foi nesse ponto que a abordagem construtivística cartesiana induziu os pensadores por muito tempo a só aceitar como ‘boas’ normas que fossem inatas ou deliberadamente escolhidas, vendo todas as formações resultantes da evolução como meros produtos de acidente ou capricho.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 162. E mais: “Começa talvez a se generalizar a consciência de que a evolução cultural não é fruto da criação consciente de instituições pela razão humana, mas um processo em que cultura e razão se desenvolveram concomitantemente. É provável que a afirmação de que a cultura criou a razão humana seja tão pouco verdadeira quanto a de que o homem pensante criou sua cultura.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 162-163.
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talvez puramente acidentais”.60 Em sua opinião a linguagem, a moral, o Direito e a
moeda, denominadas por ele como “ferramentas básicas da civilização”, seriam
todas decorrência de evolução espontânea, e não de criação racional, como querem
os construtivistas.61
E é neste sentido que Hayek privilegia a ordem espontânea de um
Mercado que jamais poderia ser contido, limitado, assediado pelo Estado. Sendo
intervencionista, a máquina estatal estaria, pois, interferindo num processo ‘natural
de evolução’. A busca por uma igualdade ‘igualitarista’ seria, como dito, uma utopia.
Até mesmo a propalada ‘igualdade de oportunidades’ seria inviável de ser
estabelecida pelo Estado62. Somente a espontaneidade do Mercado poderia
oferecer ao sujeito, através da competição, da concorrência, as condições ideais
para o seu desenvolvimento na busca de seus propósitos. Qualquer ingerência
estatal prejudicaria este processo. Furtaria do sujeito sua iniciativa, sua postura
ativa.
Hayek, desde sempre inspirado no liberalismo clássico também em
Smith, encara a ordem social-econômica como um ‘jogo’63. Não como um jogo de
soma zero, mas um ‘jogo da catalaxia’64 voltado ao aumento do fluxo de bens e ao
aumento da riqueza. Neste jogo, haverá sempre vencedores e perdedores. Os mais
aptos, capazes, talentosos, eficientes, e por assim dizer ‘superiores’, resistiriam,
alcançariam sucesso65 e venceriam. Os incapazes, despreparados, menos aptos,
60 Afirma: “Compreendemos hoje que todas as estruturas duradouras de nível superior ao dos átomos mais simples, inclusive o cérebro e a sociedade, são fruto de processos de evolução seletiva, só explicáveis a partir deles, e que as mais complexas se mantêm por meio da constante adaptação de seus estados internos às modificações ambientais.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 163, 166-167. 61 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 173. 62 Hayek afirma: “Para tornar as oportunidades de diferentes indivíduos substantivamente iguais, seria necessário compensar aquelas diferenças de circunstâncias individuais sobre as quais o governo não tem como exercer controle direto [...]”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 11. 63 Explica: “É um processo que – como o percebeu Adam Smith (e, ao que parece, antes dele, os antigos estóicos) -, em todos os aspectos importantes (exceto por não ser, em regra, praticado apenas como diversão) é inteiramente análogo a um jogo, isto é um jogo em parte de habilidade e em parte de sorte.” E ainda: “Mesmo num jogo com oportunidades iguais para todos os participantes, haverá alguns vencedores e alguns perdedores. Num tal jogo, em que os resultados alcançados pelos indivíduos dependem em parte da sorte e de sua habilidade, evidentemente não tem sentido qualificar os resultado de justo ou injusto”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 89-90 e 151. 64 A expressão catalaxia é de inspiração grega e significa ao mesmo tempo ‘trocar’, ‘admitir na comunidade’, ‘fazer de um inimigo um amigo’. 65 Hayek aduz: “A tradição não é algo constante; é o produto de um processo de seleção orientado não pela razão mas pelo sucesso.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 177.
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‘inferiores’, seriam excluídos e, com o passar do tempo, eliminados (pelo seletivo
Mercado). Hayek lembra que, por se tratar de um jogo regido por normas, jamais se
poderia exigir justiça de tratamento66. Nem sempre há honestidade ou ‘bondades’67,
pois o que importa são efetivamente os meios e não os fins (estes seriam sempre
desconhecidos). Neste contexto de jogo, o Mercado se torna a-ético, a-moral68.
Assim, para Hayek, o Estado - e sua natural tendência de expansão
do gasto público69 - deve sucumbir diante da sociedade, tendo o indivíduo e sua
liberdade como valores máximos do convívio social. Restaria ao Estado, além das
funções de defesa e de produção de normas gerais, garantir uma ‘renda mínima’
àqueles que perdessem sua ‘capacidade de consumo’70. O tratamento aos
indivíduos deve ser igual para todos, mesmo se excluídos, pois não interessam as
razões pelas quais chegaram a esta condição: a pobreza, segundo o neoliberalismo,
é sempre conseqüente e circunstancial71. Deve, pois, prevalecer a ordem
66 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 147. 67 Hayek é contudente ao afirmar que “não existe, contudo, no que diz respeito à sociedade vigente, uma ‘bondade natural’, visto que, com base em seus instintos inatos, o homem jamais poderia ter construído a civilização de que depende hoje a sobrevivência da humanidade. Para ser capaz disso, teve de abandonar muitos sentimentos que eram bons para a pequena horda e se sujeitar a sacrifícios que odeia, mas que são exigidos pela disciplina da liberdade.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 180. E ainda explica: “Mesmo que a posição inicial seja determinada pelas circunstâncias acidentais da história prévia, ao longo da qual o jogo pode não ter sido sempre jogado com honestidade, se o objetivo é fornecer o máximo de oportunidades aos homens tal como são, sem nenhuma coerção arbitrária, só podemos alcançá-lo tratando-os segundo as mesmas normas, independentemente de suas diferenças factuais, e deixando que o resultado seja decidido pelas constantes reestruturações da ordem econômica, determinadas por circunstâncias que ninguém pode prever”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 148. 68 Claro, pois para Hayek, seríamos incapazes de criar racionalmente uma ‘moral’ ou uma ‘ética’. Como ele mesmo diz, “a ética não é uma questão de escolha. Não a inventamos e não somos capazes de inventá-la”. E continua: “as sucessivas modificações da moral não constituíram, por conseguinte, uma deterioração, ainda que muitas vezes tenham ferido sentimentos herdados, mas, ao contrário, uma condição necessária da ascensão da sociedade aberta de homens livres.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 1179. 69 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 57. 70 Hayek admite que o Estado arque com um programa de Renda Mínima visando uma reserva de consumo e de trabalhadores: o Mercado para funcionar bem precisa de consumidores e de excedente de trabalhadores para contenção de alta de salários. Em suas palavras: “Combinada à precaução de amortecer o risco mediante a provisão de uma renda mínima uniforme à margem do mercado para todos os que, por algum motivo, fossem incapazes de ganhar ao menos isso no mercado, não deixa nenhuma justificativa moral para o uso da força pelo governo ou qualquer outro grupo organizado com o objetivo de determinar rendimentos relativos”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 147-148. 71 Explica: “os rebaixamentos imerecidos das posições materiais de grupos inteiros dão origem a uma das principais críticas ao sistema de mercado. Não obstante, tais rebaixamentos da posição relativa, e muitas vezes absoluta de alguns será um efeito necessário [...]. Numa ordem espontânea não se podem evitar as frustrações imerecidas. [...] A pobreza, no sentido relativo, continuará existindo, é claro, em toda sociedade que não seja completamente igualitária: havendo desigualdade, sempre haverá alguém no patamar mais baixo da sociedade.”. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p.145, 151 e 166.
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espontânea do Mercado que, com sua ‘mão invisível’ (Smith)72, conduz os indivíduos
e sua produção por caminhos ‘neutros’ calcados na igualdade formal e na ação livre
e desimpedida. Somente a competição e a concorrência, próprios dos “impulsos
monetários”73 que instintivamente movem o ser humano, segundo o autor,
proporcionariam o desenvolvimento social, fomentando a eficiência na prestação de
serviços e na produção. Enfim, mergulhado na liberdade da ordem espontânea do
Mercado e no ambiente de uma ‘sociedade aberta’74, o sujeito poderia, longe da
‘falácia solidária’75 e sem precisar acordar com os demais quanto aos fins, maximizar
suas potencialidades, e alcançar a paz e a felicidade ‘individual’ segundo seus
próprios propósitos76.
2.1.2 Friedman e o ‘capitalismo competitivo’
Também fiel às idéias de Smith, pai da economia moderna,
Friedman, da Escola de Chicago e considerado o maior divulgador das idéias de
Hayek, é quem, ao seu modo, defende o necessário e premente ressurgimento do
liberalismo clássico. Considerando que a política de modo algum está dissociada da
organização econômica de Mercado, e considerando o ‘capitalismo competitivo’
como sistema mais eficaz de organização econômica, Friedman propõe um forte
ataque às políticas voltadas à promoção do bem-estar social por entender que
tratam-se de sérias e inquestionáveis violações às liberdades individuais. Com sua
72 SMITH, Adam. La riqueza de las naciones. Buenos Aires: Longseller, 2002. Conferir HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 133. 73 “O que torna os homens membros da mesma civilização e lhes permite viver e trabalhar juntos em paz, na busca de seus fins individuais, é o fato de os impulsos monetários particulares que motivam seus esforços em direção a resultados concretos serem orientados e restringidos pelas mesmas normas abstratas.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit.,p. 12. Aliás, para Hayek, a razão é capaz de produzir ‘impulsos específicos’ que moveriam o sujeito sem compreender o porquê. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. 32. 74 Encontra-se em Hayek, também a influência da obra A Sociedade Aberta e seus inimigos, escrita durante a Segunda Grande Guerra e lançada em 1945, de Karl Popper que distinguia a “sociedade fechada” ou “coletivista” – a que comparava com um organismo biológico, a um regime tribal -, da “sociedade aberta ou democrática” onde livremente “os indivíduos são confrontados com decisões pessoais”. E com o radicalismo sentenciou: “Não podemos retornar às bestas. Se quisermos permanecer humanos, então só existe um caminho, o caminho para a sociedade aberta.” POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte. São Paulo: USP, 1974. p. 188 e 217. 75 Afirma: “Uma Grande Sociedade nada tem a ver com a solidariedade no verdadeiro sentido de união de busca de metas comuns conhecidas, sendo de fato incompatível com ela.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 134. 76 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol II, op. cit., p. 131.
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obra, ‘Capitalismo e Liberdade’77, considerada ‘livro-síntese’ de seu pensamento,
Friedman, com o que chamou de ‘monetarismo’, resgata para a política e,
principalmente, para a economia, os princípios básicos do liberalismo original, com o
intuito de desmitificar a concepção coletivista-social, e de enaltecer o individualismo
e a liberdade de Mercado como modelo ideal de desenvolvimento humano.
Friedman oferece em sua obra especial atenção ao papel do Estado,
e sua relação com a sociedade civil. Explica que o governo é necessário para a
preservação da liberdade e, bem utilizado, se torna útil instrumento por meio do qual
se exerce tal liberdade ao alcance de interesses individuais78. No entanto, o
governo, segundo ele, também consiste na maior ameaça a esta mesma liberdade.
Partindo desta premissa, Friedman traça dois fundamentais pontos de sua tese:
primeiro que a atuação do governo deve ser controladamente limitada, e que o
poder político-estatal deve ser o mais desconcentrado e distribuído possível79.
Para o vencedor do prêmio nobel de economia de 1976, o governo
não deve somente restringir-se às funções de defesa e à edição de normas gerais.
Também compreendendo o contexto de espontaneidade do Mercado livre como um
‘jogo’, o autor acredita que o governo deve atuar como verdadeiro ‘árbitro’, com a
função de determinar e fazer valer as regras deste jogo. Mas para que tal jogo
ocorra de modo bem sucedido, torna-se necessário que a sociedade concorde com
as condições e regramentos circunstanciais. Somente assim poderia o Estado estar
destinado a proteger a liberdade dos indivíduos, preservar a lei e a ordem, reforçar
os contratos privados, promover Mercados competitivos, etc.80
77 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. Trad. Luciana Carli. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Esta obra é resultado de um conjunto de palestras proferidas em 1957. 78 Afirma o autor: “Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedades; sirva de meio para a modificação de direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária; envolva-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 39. 79 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 12. 80 Afirma Friedman: “O papel do governo, até aqui considerado, é o de fazer alguma coisa que o mercado não pode fazer por si só, isto é, determinar, arbitrar e pôr em vigor as regras do jogo.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 33.
91
Quanto à descentralização do poder, Friedman reconhece as
dificuldades: para ele há uma tendência natural à centralização do poder81. Acredita
ser mais producente o poder estatal quando distribuído em unidades administrativas
menores tais como os ‘condados’. Entende que somente assim o poder estatal se
torna menos nocivo às liberdades individuais, abrindo aos cidadãos a possibilidade
de escolha entre lugares diferentes e com regras administrativas diferentes. O
indivíduo poderá escolher o local onde ele pode melhor desenvolver suas
capacidades.82 Isto é, a preservação da liberdade política requer a maior eliminação
possível de concentração de poder e a dispersão de todo o poder que não puder ser
eliminado83. O poder político seria, assim, melhor controlado pelo poder
econômico.84
Friedman aponta que grande parte das intervenções estatais
revelam-se verdadeiros atos de violação de direitos individuais e que, pela larga e
difundida ‘ética coletivista’, quase passam despercebidos pela sociedade. Cita, como
exemplo, o caso do ‘seguro social’. Diz que, apesar de quase ninguém reconhecer
isto, o ‘seguro social’ compulsório é das mais evidentes afrontas à liberdade
individual. Neste caso o cidadão vê-se obrigado, por meio da coerção estatal, a
aderir a um programa de seguro tendo que direcionar compulsoriamente parte de
sua renda para resguardar a velhice. Friedman afirma que é absurda tal cobrança,
pois o indivíduo deveria poder escolher entre pagar este seguro, ou economizar este
dinheiro em banco, ou adquirir imóvel, etc... Ainda cita outros exemplos de ataques à
liberdade: exigência de licenciamento para exercício de profissão, autorização para
comerciar, controle de preços...85
Deste modo, Friedman, como autêntico liberal, mostra-se contrário a
qualquer forma de coerção. Para ele, somente através da ‘cooperação voluntária’
entre os membros da sociedade é que se pode alcançar aos propósitos individuais 81 O autor explica que “o poder econômico pode ser amplamente dispersado. Não há leis de conservação que forcem o crescimento de novos centros de poder econômico às custas dos centros já existentes. O poder político, de outro lado, é mais difícil de descentralizar”. FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 24. 82 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 12. 83 Como diz: “O liberal teme fundamentalmente a concentração do poder”. FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 44. 84 Com o economista: “[…] se o poder econômico for mantido separado do poder político e, portanto, em outras mãos, ele poderá servir como controle e defesa contra o poder político.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 24. 85 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 18.
92
livremente. O ideal é que tal cooperação partisse de uma unanimidade entre
indivíduos que se julguem responsáveis e que pudesse ser voltada à discussão livre
e completa. E é neste sentido, que Friedman vê o Mercado como instrumento hábil a
permitir tal “unanimidade sem conformidade”, tornando-se um verdadeiro sistema de
efetiva representação proporcional.86 Como a unanimidade figura como algo ideal, o
autor lembra que devemos reconhecer e aceitar a ‘regra da maioria’ como o
expediente útil para a tomada de decisões. No entanto, tal regra não deve ser
absoluta. Dependendo do assunto em pauta, a decisão da maioria não poderia
prevalecer ou sobrepor-se à minoria.87
Outra forma de manifestação estatal que o autor considera, por regra,
extremamente nociva é o monopólio. Entende Friedman que o monopólio, em
substituição ao livre regime de ‘troca’, implica ausência de alternativas, inibindo a
liberdade e espontaneidade do Mercado. Contudo, haveria exceções. Em casos
como o de haver somente um produtor ou uma só empresa, o monopólio pode surgir
como alternativa tecnicamente eficiente. A exemplo deste ‘monopólio técnico’, pode-
se, com o autor, citar o caso de prestação de serviços de telefonia. Mas Friedman
alerta que, caso seja possível e viável, o monopólio privado é sempre preferível
como ‘mal menor’, pela maior facilidade de adaptação ao dinamismo da sociedade.88
Quando, porém, o autor trata de liberdade em sociedade, não se
refere a todo os seus membros. Considera somente aqueles membros
‘responsáveis’, com capacidade de exercê-la. Logo os ‘insanos’ e as ‘crianças’
estariam fora desta categoria, entendendo como inevitável traçar esta linha entre
cidadãos ‘responsáveis’ e ‘não-responsáveis’. E para estes sujeitos ‘irresponsáveis’,
a atuação estatal, através do que o autor chama de ‘paternalismo’, se torna
imprescindível. Mas Friedman registra grande diferença entre a própria categoria
dos ‘irresponsáveis’: os ‘insanos’, por não terem capacidade de consumo, devem
convenientemente serem ‘cuidados’ pelo Estado; e as crianças, já consideradas por
86 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 29. 87 Friedman reconhece que alguns casos não podem ser decididos nem por maioria: “se a questão é de pequena importância e a minoria não se importar muito de ser derrotada, uma simples pluralidade será suficiente. De outro lado, se a minoria estiver muito envolvida na questão em foco, mesmo uma maioria simples não será suficiente. Poucos concordariam em que um assunto como a liberdade de palavra, por exemplo, seja decidido por maioria simples.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 30-31. 88 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 33-34.
93
Friedman como ‘responsáveis em potencial’, com reconhecida potencialidade para o
consumo, devem “ter suas liberdades protegidas e preservadas”.89
O professor da Escola de Chicago procura, em sua obra, desvendar
alguns ‘mitos’ que se construíram em torno dos conceitos de ‘Mercado’ e de
‘capitalismo’. Contrariando os ‘coletivistas’ e suas alegações tocante a um
capitalismo que gera discriminações e desigualdades, o autor ressalta a importância
libertária do capitalismo no mundo. Explica que a partir da idade média o surgimento
do capitalismo se deu com base numa iniciativa de libertação dos servos e judeus
que eram sufocados e discriminados pelo Estado/religião oficial. Somente através do
capitalismo tornou-se possível a eliminação da discriminação, pois, o que é
realmente levado em consideração é a eficiência econômica do individuo, e não
suas características pessoais (se é judeu, negro, etc). Quem no Mercado discriminar
consumidores por conta de credo ou raça será punido pelo próprio Mercado, eis que,
diminuídas sua capacidade de escolha e alternativas. Friedman, deste modo,
entende que o capitalismo, especialmente o que chama de ‘capitalismo competitivo’,
num ambiente de economia livre, consiste no melhor método para não somente
eliminar a discriminação e o preconceito como também para preservar os interesses
de minorias.90
Outro mito que Friedman pretende desconstituir a respeito do
capitalismo, é a tendência da sociedade em considerar a competição no sentido
pejorativo de ‘rivalidade pessoal’. O autor esclarece que, por não haver
discriminação, “não há rivalidade pessoal no Mercado competitivo. Não há disputas
89 Entende o autor: “O caso mais claro é talvez o dos insanos. Estamos dispostos a não permitir que desfrutem de liberdade, mas, ao mesmo tempo, não podemos permitir que os eliminem. [...] podemos achar mais conveniente deixar que sejam cuidados pelo governo. [...] as crianças são ao mesmo tempo, consumidoras de produtos e membros responsáveis, em potencial, da sociedade.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 37-38. 90 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 101-102. E ainda explicita: “[...] um dos paradoxos da experiência consiste no fato de os grupos minoritários, apesar da evidência histórica, fornecerem, com freqüência, os partidários mais entusiastas e convictos de alterações fundamentais na sociedade capitalista. Têm a tendência de atribuir ao capitalismo a responsabilidade pelas restrições que sofrem – em vez de reconhecerem que o mercado livre tem sido o fator mais importante na redução dessas restrições.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 101-102. E ainda: “[...] os grupos de nossa sociedade que têm mais razões para preservar e fortalecer o capitalismo competitivo são os minoritários – que podem mais facilmente tornar o objeto de desconfiança e hostilidade da maioria: os negros, os judeus, os estrangeiros, para mencionar somente os mais óbvios. Entretanto, e paradoxalmente, os inimigos do mercado livre – os socialistas e comunistas – foram recrutados numa proporção bem grande nesses próprios grupos.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 28.
94
pessoais [...] A essência de um Mercado competitivo é o seu caráter impessoal”91.
Para o autor é evidente que somente o Mercado livre movido pela espontaneidade
das forças de oferta e demanda pode oferecer este ambiente de impessoalidade. O
Estado, afirma ele, com sua tendência monopolizante, é quem discrimina
privilegiando sempre grupos determinados de interesses, normalmente os mais
desfavorecidos, relegando a um segundo plano, numa postura discriminatória, os
mais favorecidos.92
Friedman ainda trata da propalada ‘responsabilidade social’ que
freqüentemente exige-se do empresariado e dos capitalistas. Para ele, o conceito
que se tem a respeito de ‘responsabilidade social’ é anacrônica e incompatível com
os preceitos de um Mercado livre e espontâneo. Como ele mesmo afirma, há
somente uma responsabilidade por parte dos capitalistas: a “responsabilidade social
do capital”93. A única responsabilidade que um empresário tem é com seus
acionistas e consumidores, maximizando os lucros e qualificando o produto ou
serviço oferecido. Para Friedman, a responsabilidade social não passaria de
“doutrina fundamentalmente subversiva”94.
Friedman também julga importante analisar a alegação feita pelos
‘coletivistas’ de que o capitalismo é responsável pela imensa desigualdade em
nossa sociedade. Discordando desta assertiva, o autor argumenta que se trata do
contrário: somente o capitalismo é o único método capaz de viabilizar a igualdade de
tratamento entre os homens95. Para isso, o sistema operacional do Mercado deve se
pautar não em um esquema ‘distributivo’, mas sim ‘partilhado’, de acordo com a
produção de uma sociedade, respeitadas as diferenças de capacidades, talentos,
91 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 111. 92 Friedman adverte, no entanto, que “evidentemente, a competição é um tipo ideal. [...] não existe o que chamamos de competição ‘pura’”. FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 111-112. 93 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 122. Para Friedman a responsabilidade social do capital importa em “usar seus recursos e dedicar-se a atividades destinadas a aumentar seus lucros até onde permaneça dentro das regras do jogo, o que significa participar de uma competição livre e aberta, sem enganos ou fraude.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 122. 94 Em suas palavras: “Há poucas coisas capazes de minar tão profundamente as bases de nossa sociedade livre do que a aceitação por parte dos dirigentes das empresas de uma responsabilidade social que não a de fazer tanto dinheiro quanto possível para seus acionistas. Trata-se de uma doutrina fundamentalmente subversiva”. FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 123. 95 Com Friedman: “Outro fato notável – e contrário à concepção popular – é que o capitalismo leva a menos desigualdade do que os sistemas alternativos de organização, e que o desenvolvimento do capitalismo diminui sensivelmente a extensão da desigualdade.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 154.
95
riquezas adquiridas, etc. Somente o “pagamento de acordo com o produto”96 pode
ser considerado como “eticamente justo”97.
Enfim, para o representante da Escola de Chicago, todas as medidas
voltadas ao que se denomina ‘bem-estar’, de modo flagrante, vilipendiam o direito à
liberdade individual. Providências como o ‘seguro-social’, ‘salário-mínimo’98,
‘programas de habitação’, ‘subsídios à agricultura’, ‘programas especiais de ajuda’,
‘assistência médica para grupos particulares’ e todas as demais iniciativas de
redistribuição coercitiva de renda - sempre direcionada aos mais desfavorecidos -,
somente servem para desequilibrar o Mercado, provocando desigualdade, e
agravando os abismos sociais99.
A pobreza, afirma Friedman, é uma dessas conseqüências que
acabou sendo minorada pelo crescimento econômico dos países ocidentais nos
últimos séculos. Reconhecendo a importância para o consumo da parcela pobre da
população, Friedman propõe que a saída para a ‘redução da pobreza’ não seria a
intervenção estatal, e sim a ‘caridade privada’, deixando para aqueles de boa
vontade tentar resolver o problema100. O autor defende, assim, que os mais sérios
problemas dos indivíduos devem ser resolvidos pela iniciativa privada, e para isso
precisaríamos de um Estado reduzido, mínimo.101
2.1.3 O reducionismo estatal com Nozick
Tocante ao conceito de ‘Estado Mínimo’, sempre muito relacionado
às concepções neoliberais, torna-se relevante, para os objetivos deste escrito,
96 Explica o autor: “Um sistema capitalista envolvendo pagamento de acordo com o produto pode ser, e na prática é, caracterizado por considerável desigualdade na renda e na riqueza. Esse fato é frequentemente mal interpretado e considerado como demonstração de que o capitalismo e a livre empresa produzem desigualdade maior do que sistemas alternativos e que, como corolário, a extensão e o desenvolvimento do capitalismo implicou crescente desigualdade. Tal interpretação errônea é estimulada pela característica enganadora da maioria dos números publicados sobre a distribuição da renda, principalmente por não permitir distinguir a desigualdade a curto prazo da desigualdade a longo prazo.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 153. 97 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 151-152. 98 Para ele, “o efeito do salário mínimo é, portanto, o de tornar o desemprego maior do que seria em outras circunstâncias”. FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 163. 99 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 161-171. 100 Com Friedman: “Fico angustiado com o espetáculo da pobreza, e sou beneficiado com o alívio de tal situação. Mas sou igualmente beneficiado, quer seja eu quer seja outra pessoa que contribua para tal alívio.” FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 173. 101 FRIEDMAN, Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 173-177.
96
mencionar a contribuição teórica de Nozick - também reconhecida pelos neoliberais
mais importantes102. Nozick, com seu mais conhecido livro Anarquia, Estado e
Utopia103, defende que somente o ‘Estado mínimo’, limitado às funções restritas de
proteção contra a força, o roubo, a fraude, voltadas à fiscalização do cumprimento
de contratos, entre outras, pode ser justificado. Qualquer proposta, segundo o autor,
de um Estado mais amplo - violador, por conseqüência, das liberdades pessoais,
torna-se injustificável.104
Avançando mais em sua tese, percebe-se que, em realidade, Nozick
propõe um ‘arranjo social intermediário’ entre o que chama de ‘Estado guarda-
noturno’, modelo próprio da teoria liberal clássica, e o plano de associações de
proteção privadas.105 Chama este modelo intermediário de ‘Estado ultramínimo’, e
explica:
O Estado ultramínimo mantém o monopólio do uso de toda força, exceto a necessária à autodefesa imediata e dessa maneira exclui a retaliação privada (ou de alguma agência) por lesões cometidas e exigência de indenização. Mas proporciona serviços de proteção e cumprimento de leis apenas àqueles que adquirem suas apólices de proteção e respeito às leis. Pessoas que não adquirem ao monopólio um contrato de proteção nenhuma proteção recebem. O Estado (guarda-noturno) mínimo equivale ao Estado ultramínimo, combinado com um plano de cupões (claramente redistributivo) friedmanesco, financiado pela receita de impostos.106
Explica Nozick que, ainda que a defesa de um Estado mínimo ou
ultramínimo pareça, num primeiro momento, incoerente, trata-se em realidade de
uma declaração de defesa e legítima proteção aos direitos individuais contra a
violação estatal.107Qualquer proposta diferente dessa, especialmente voltada a
102 O próprio Hayek, como já dito, reconhece a importância e os avanços proporcionados pela obra de Robert Nozick. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. XIII. 103 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Ruy Julgmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. Publicada originalmente em 1974, nos Estados Unidos. 104 Nozick argumenta que: “duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros ou para proibir atividades a pessoas que desejam realizá-las para seu próprio bem ou proteção. A despeito do fato de que são excluídas apenas medidas coercitivas, com vistas à concretização desses objetivos, permanecendo voluntárias, numerosas pessoas rejeitarão imediatamente nossas conclusões, tendo certeza de que não querem acreditar em algo aparentemente tão desumano em relação às necessidades e sofrimentos dos demais.” NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 09. 105 NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 42. 106 NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 42. 107 NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 43. E afirma: “a alegação de que o proponente do Estado ultramínimo é incoerente, vemos agora, supõe que ele é um ‘utilitarista de direitos’. Presume que seu objetivo é, por exemplo, minimizar o volume ponderado de violação de direitos na
97
coletivismos sociais seria, segundo o autor, um despropósito, pois as pessoas
devem sempre ser consideradas em si mesmas, e não vinculadas a qualquer bem
coletivo. Para ele, nenhuma compensação de ordem moral visando bondades ou
caridades pode ser justificável. Todas estas iniciativas violam a liberdade
individual.108 Isto é, como o próprio autor expressa, além de ser o mais apropriado e
compatível com o ser humano109, o Estado mínimo “é o mais extenso que se pode
justificar.”110
Esta perspectiva reducionista de Estado foi decisiva para a
consolidação doutrinária do neoliberalismo de Hayek e Friedman. Muito embora
apresentem algumas divergências teóricas no que toca ao papel do Estado nesta
‘sociedade aberta’ a que propugnam, têm tais teóricos em comum a contrariedade a
intervencionismos que de algum modo possam interferir na espontaneidade das
relações humanas ou vilipendiar direitos individuais. Neste ‘método neoliberal’ a
sociedade estaria entregue a si mesma, e aos meios que elegessem como
necessários para o alcance de seus propósitos individuais, independentemente de
preceitos éticos. Mas, neste modelo, nem todos estariam contemplados. Os
incapazes de competir e consumir estariam relegados à exclusão, e isso, segundo
tais teóricos, seria, como visto, um ‘efeito necessário’ e ‘circunstancial’111.
sociedade e que ele deve perseguir esse objetivo, ainda que através de meios que em si violem direitos de pessoas.” NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 45. 108 Nozick explica: “[…] mas não há entidade social com um bem que suporte algum sacrifício para seu próprio bem. Há apenas pessoas individuais, pessoas diferentes, com suas vidas individuais próprias. Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usá-la e beneficiar os demais. Nada mais. O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros. Conversas sobre bem social geral disfarçam essa situação.” E mais adiante: “[...] nenhum ato de compensação moral pode ocorrer entre nós. Não há uma compensação moral a cargo de outros em nossa vida que leve a um bem social global maior. Nada justifica o sacrifício de um pelos demais.” NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 48. 109 Nozick entende o Estado mínimo não como utopia, mas como projeto viável, e define: “O Estado mínimo trata-nos como indivíduos invioláveis, que não podem ser usados de certas maneiras por outros como meios, ferramentas, instrumentos ou recursos. Trata-nos como pessoas que têm direitos individuais, com a dignidade que isso pressupõe. Tratando-nos com respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou em conjunto com aqueles que escolhermos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e nossas concepções de nós mesmos, na medida em que sejamos capazes disso, auxiliados pela cooperação vonluntária de outros indivíduos possuidores da mesma dignidade.” NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 324, 357-358. 110 NOZICK, Anarquia, Estado e Utopia, op. cit., p. 170. 111 Nunes explica que onde há capitalismo e propriedade privada há desigualdade: “o capitalismo surgiu como a ‘civilização das desigualdades’. Os fisiocratas já caracterizaram a desigualdade provocada pelo capitalismo nascente como ‘desigualdade natural’ (Dupont de Nemours).” NUNES, Neoliberalismo e Direitos Humanos, op. cit, p.29.
98
Esta corrente teórica, especialmente a partir da década de 1970 e
1980, passou também a ‘cooptar’ muitos dos economistas latino-americanos,
inclusive economistas brasileiros112. Com seu discurso sedutor e habilmente
trabalhando valores como a ‘liberdade individual’, o neoliberalismo conseguiu
avançar e se estabelecer com grande profundidade no imaginário coletivo.
Especialmente a partir de 1989, com a ‘queda do muro de berlim’, quando
espertamente preencheram o ‘vazio ideológico’ que surgira com a derrocada dos
socialismos reais, através da poderosa e messiânica figura do ‘Mercado’.
Sorrateiramente, e contando com a desatenção de muitos, o neoliberalismo
permeou-se no poder e, por conseqüência, no próprio ordenamento jurídico: não por
acaso trata-se nesse escrito de um princípio constitucional que transfere à
administração pública um dos mais basilares preceitos neoliberais, qual seja, a
eficiência.
2.2 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NA ORDEM NEOLIBERAL
2.2.1 Neoliberalismo: o ‘desmonte’ estatal e o ‘desprezo’ pelo Direito
Para os cultores do neoliberalismo não somente a ‘razão’ deve ser
expungida e deixada de fora do caminho113, mas também o Direito. O Direito,
segundo tal concepção, figura como ordem artificial e injusta, eis que, não
espontâneo e natural como a lei que rege o Mercado (esta sim, segundo os
neoliberais, uma verdadeira Grundnorm).114 Neste sentido o Direito, assim como o
Estado, passam a ser encarados como ‘estorvo’, como obstáculo a ser suplantado,
como garantia a ser afastada. Com Hayek, vê-se que
112 Conferir em: IORIO, Ubiratan J. Economia e Liberdade: a Escola Austríaca e a Economia Brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. 113 Com Hayek: “A ilusão que leva os racionalistas construtivistas usualmente a uma entronização da vontade consiste na crença de que a razão pode transcender o reino do abstrato, sendo capaz por si mesma de determinar que ações específicas são ou não desejáveis. [...] A ilusão de que a razão é por si só capaz de nos revelar o que devemos fazer, e que, portanto, todo homem sensato deveria ser capaz de aderir ao esforço pela consecução de fins comuns como membro de uma organização, dissipa-se rapidamente quando tentamos pô-la em prática. [...] A razão é somente uma disciplina, uma apreensão das limitações das possibilidades de ação eficaz, que muitas vezes nos dirá apenas o que não fazer” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol III, op. cit., p. 32. 114 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O devido processo legal (penal) e o poder judiciário. In: Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, AVELÃS NUNES, Antonio José (Orgs.). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 291 e seguintes.
99
Entre as normas que comumente chamamos ‘leis’, mas que são normas de organização e não de conduta justa, estão em primeiro lugar todas aquelas relativas à distribuição e à limitação dos poderes governamentais compreendidas no direito constitucional. São comumente consideradas a ‘mais elevada’ espécie de lei, a que se confere uma dignidade especial ou a que se deve maior referência do que a qualquer outra. Mas, embora isso possa ser atribuído a razões históricas, seria mais apropriado considerar tais normas uma superestrutura erigida para garantir que o direito seja mantido, e não a origem de todos os outros direitos, como geralmente se pretende. [...] mais que em qualquer outra área do direito público, encontra-se no direito constitucional grande resistência à afirmação de que ele não possui os atributos das normas de conduta justa. A maioria dos estudiosos da matéria parece julgar simplesmente abusivo e indigno de consideração o argumento de que o direito constitucional não é direito no mesmo sentido em que assim chamamos o conjunto das normas de conduta justa115.
O direito constitucional, deste modo, jamais poderia arvorar-se em
pretensões ‘materiais’ ou ‘positivas’116, devendo adstringir-se às mínimas funções
liberais de generalidade e programaticidade. Qualquer pretensão ‘dirigista’117 que
reforce ou enalteça o projeto social ou ‘coletivista’ da Constituição é sumariamente
rejeitada pelos neoliberais. Uma Constituição que defina o agir político-estatal com
base nos direitos fundamentais - individuais e sociais -, e respaldada por um
Judiciário forte que a efetive e a garanta, é sempre vista como empecilho a ser
superado. As palavras de ordem, neste sentido, são: flexibilização,
desregulamentação, privatização, etc118. Os neoliberais são flagrantemente
intolerantes com qualquer normatização social interventora que ameace o livre fluxo
115 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. 157-159. 116 Segundo Hayek: “[...] o direito constitucional teria de ser classificado junto com o direito no sentido puramente formal, e não com o direito no sentido material.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p.159. 117 E aqui estamos com Canotilho. Conferir: CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, op. cit. 118 Arruda Jr, com apoio de Romero afirma: “[...] a política econômica do neoliberalismo tem como ‘estratégia’: privatização, desregulamentação, flexibilidade, dívida externa, ajuste, sem protecionismo e, como ‘finalidade’ essencial, a adjudicação de recursos da sociedade e do poder, favorecendo a transnacionalização da economia, da política e da cultura, com rápidos padrões de acumulação.” ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Neoliberalismo e Direito: Paradigmas na Crise Global. In: Direito e Século XXI: conflito e ordem na onde neoliberal pós-moderna. Rio de Janeiro: Luam, 1997. p. 61.
100
do Mercado ou que atrapalhe seus propósitos de acumulação de riquezas119. No
neoliberalismo, como afirma Coutinho, “há um evidente desprezo pelo Direito”120.
Isso, porque para neoliberais do quilate de Hayek os fundamentos do
Direito – em sua construção moderna - são absolutamente questionáveis. Hayek,
como visto, apesar de negar sua tendência jusnatural121, insurge-se com veemência
à ‘racionalidade construtivista’ que sedimenta o positivismo jurídico - e suas criações
míticas de um ‘legislador supremo’, e de ‘vontade da lei’ -, a substituindo pela
‘racionalidade evolucionista’122 de inspiração darwiniana123. Entende que para o
estabelecimento e concreção da ‘Grande Sociedade’ ou da ‘Sociedade Aberta’124, o
que hoje se denomina, mutatis mutandis, de ‘sociedade global’ ou ‘ordem global’,
não se poderia ficar a mercê de meros ‘desígnios humanos’, de ‘decisões arbitrárias
volitivas’ que interferissem na espontaneidade do Mercado. Somente admitir-se-ia,
um constitucionalismo125 de regras gerais e abstratas126 que disciplinassem e
garantissem o ambiente de liberdade necessário para tal espontaneidade127. Por
119 Com Arruda Jr. vê-se que: “a grande burguesia monopolista tem absoluta consciência de que o neoliberalismo jurídico, político e econômico constituem ‘teorizações’ apropriadas à acumulação.” ARRUDA JR., Paradigmas na Crise Global, op. cit., p. 64. 120 Coutinho ainda explica: “sempre foi princípio elementar, na modernidade, a impossibilidade de regresso ao status quo ante, quando a matéria em pauta fossem conquistas constitucionais. Até pouco tempo atrás, por sinal, ninguém arriscaria fazer um discurso de tal porte, sob pena de escárnio público, como sucedia com os conhecidos ditadores, de plantão. Agora, não obstante, é o discurso da ribalta.” COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996. p. 69. 121 Arnaud explica: “Hayek afirma todavia que a sua teoria não é direito natural. Mas ele pertence, assim mesmo, a uma geração de filósofos políticos e juristas de cultura germânica que reagiram aos horrores do nazismo optando por perspectiva jusnaturalista.”. ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização. Trad. Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 131. 122 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. 19 e seguintes. 123 Rosa anota que “a partir do pensamento evolucionista - tal qual Lombroso – de Hayek, que o neoliberalismo ganhou estatuto forte no combate às idéias do Estado do Bem-Estar, eis que as considera prejudicial ao ‘Mercado’, a verdadeira (e ilusória) fonte de Democracia, justificando, portanto, a sua diminuição. ‘Ordem natural’ e ‘Mercado’ são os slogans difundidos.” ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 30. 124 De se registrar: a expressão ‘Grande Sociedade’ é inspirada em Adam Smith, e ‘Sociedade Aberta’ em Karl Popper. Ambas são utilizadas por Hayek para se referir a ‘ordem espontânea’ global. HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. xli. 125 Dahrendorf se refere ao constitucionalismo hayekiano como ‘constitucionalismo extremo’, e explica que Hayek “apresenta a infeliz tendência de transformar toda política, e certamente, a maior parte da política econômica em constitucional.” DAHRENDORF, Ralf. Reflexões sobre a Revolução na Europa. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991. p. 48 e 53. 126 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op. cit., p. 52. 127 Os neoliberais, por exemplo, acham um absurdo a previsão constitucional de garantias de futuro que disciplinem regras interventivas a respeito de previdência social. COSTA, José Ricardo Caetano. Previdência e Neoliberalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001.
101
isso a sua insistente defesa no sentido da dispensabilidade do Direito e do Estado
como, respectivamente, mecanismo e ente de regulação social.128
Esta visão de completo ‘desmonte do Estado’129 e de suas estruturas
de Justiça, antes reconhecidos como estratégicos pelo liberalismo clássico, torna-se
a base fundamental da ideologia neoliberal130, o que justifica, segundo Coutinho, o
prefixo neo131. Não obstante os ardorosos defensores do novo liberalismo tentem
enganosamente, através de deslocamentos retóricos, ligar sua nova ideologia aos
preceitos basilares e democráticos do liberalismo clássico – igualdade, liberdade -
como puro golpe de marketing, em realidade não é isto o que exatamente ocorre na
prática, notando-se uma imensa diferença entre os discursos132. Marques Neto bem
elucida:
Mas debrucemo-nos antes, por um momento, sobre a própria palavra neoliberalismo. Há nela, ao mesmo tempo, uma idéia de continuidade e uma idéia de ruptura. Trata-se, afinal, de liberalismo, de algo que permanece, ou de algo ao qual se volta. Por outro lado, esse liberalismo é neo, é novo com o que se diz implicitamente que algo do liberalismo clássico não mais subsiste nele. [...]. No terreno político, princípios e conceitos cruciais, como os de democracia, Estado, Nação, soberania e cidadania, fundados no princípio ético da dignidade da pessoa humana, vão se transfigurando e mesmo, num sentido limite, se dissolvendo133.
Torna-se evidente, e isso já se via com Hayek em seu pioneiro
manifesto do novel liberalismo, que a democracia em seu sentido político-liberal
apresenta-se como algo absolutamente incompatível com o radicalismo do
liberalismo contemporâneo134. Para ele, a democracia - e toda a estrutura
128 ARNAUD, O Direito entre Modernidade e Globalização, op. cit., p. 34-35 e 121. 129 Coutinho explica que: “A racionalidade neoliberal despreza o homem, mas assim o faz não só porque tende a admitir despreocupadamente os excluídos, mas porque, operando um desmonte do Estado, furta-lhe a possibilidade de exercer a função paterna, apondo aí o seu ‘eu’, ou seja, o mercado”. COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 68. 130 Grau afirma taxativamente: “O neoliberalismo é uma ideologia”. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 45. 131 COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 67. 132 Grau explica: “Nessa versão, o discurso neoliberal se afasta inteiramente, e mesmo o confronta, do discurso liberal, que viabilizou o acesso da generalidade dos homens não apenas a direitos e garantias sociais, mas também aos direitos e garantias individuais. É contra as liberdades formais, no extremo, que, em tal versão, o discurso neoliberal investe.” GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 91. 133 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo: o direito na infância. In: Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Anais do Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões: Trata-se de uma criança. Tomo II. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. p. 231. 134 Afirma Hayek que a democracia “[...] constitui um obstáculo à supressão da liberdade exigida pelo dirigismo econômico.” HAYEK, O Caminho da Servidão, op. cit., p. 84.
102
dogmático-constitucional que lhe dá sustentação -, não passa de mero
procedimento, de mero método135. A democracia jamais representou valor central no
projeto neoliberal, tal qual representou a competitividade, a concorrência e a
eficiência136. A democracia e sua normatização constitucional, vítimas que são do
premeditado esvaziamento político137 de nossos tempos devem, pois, sucumbir,
segundo os neoliberais, ao econômico e ao Mercado, de modo a não atrapalhar o
verdadeiro projeto que subjaz nesta ideologia: ‘lucrar e ganhar dinheiro’, como já
idealizava Smith138.
E para que isso ocorra, o Direito não é poupado. O neoliberalismo
investe fortemente contra a instância jurídica que, como bem lembra Warat,
enquanto instância de garantia, é gradativamente minada e vulnerabilizada, com o
argumento sempre falacioso de que as garantias constitucionais comprometem
governabilidade139. A estratégia, assim como faz contra o próprio poder judiciário, é
atribuir ao Direito uma enorme sobrecarga de descrédito frente à sociedade. Com
métodos que em muito lembram Goebbels140 em sua missão de persuasão em
massa ao nacional-socialismo, os neoliberais, com o incondicional apoio da mídia141,
135 Vide subcapítulo 2.1. 136 MARQUES NETO, Neoliberalismo: o direito na infância, op. cit., p. 232. 137 Warat afirma: “Há que se levar em conta, que a expansão do capitalismo multinacional (o capitalismo real de livre mercado) precisa de uma fórmula de governabilidade sem política, e de uma simbologia meramente retórica da democracia. No fundo, uma negação da idéia de democracia, com mediação da cidadania e do direito de todos a uma vida conforme a gramática jurídica instituída e respeitada pelo Estado.” WARAT, Luis Alberto. O outro lado da dogmática. In: Teoria do Direito e do Estado. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1994. p. 93. 138 Em seu clássico já afirmava: “todo consiste en ganar dinero. Con él se pueden hacer las adquisiciones que se quieran.” SMITH, La Riqueza de las Naciones, op. cit., p.109. 139 Warat explica que “[...] a condição transmoderna da expansão do capital está tentando impor a crença em torno a uma incompatibilidade estrutural entre o desenvolvimento do capital e a radicalização da democracia, através do exercício do Estado de Direito. Fala-se que o acatamento sem restrições ao direito e suas garantias constitucionais criaram condições desastrosas de ‘ingovernabilidade’. A exigência que os círculos de poder querem impor, é a de ignorar os direitos reconhecidos pelo ordenamento vigente (ou atenuar as suas exigências), quando esse reconhecimento ponha em risco a governabilidade desejada, para impor essa sinistra forma de dominação que está sendo chamada de nova ordem internacional.” WARAT, O outro lado da dogmática, op. cit., p. 93. 140 Gobbels era o chefe da propaganda do III Reich alemão. 141 Bourdieu argumenta que a mídia, especialmente a mídia televisiva, opera a “violência simbólica”, que seria “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.” E ainda afirma que todo poder de violência simbólica equivale a “todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força”. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Trad. Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 18 e 22. Rosa explica bem como funciona este tipo de violência sobre o imaginário coletivo: “seu pensamento
103
fazem com que a população encare o Direito e o Judiciário como algo superado e
obsoleto, algo pré-histórico142. E enquanto a população é entretida por estes
joguetes retóricos, as conquistas constitucionais e legais vão ecoando lentamente
pelo ralo. Marques Neto bem explica a escalada neoliberal e suas principais frentes
contra o Direito:
1) Há uma crescente internacionalização das normas jurídicas, sobretudo as de caráter negocial, que vigem, de fato acima das ordens jurídicas estatais e às quais os Estados, cada vez mais, se limitam a aderir, incorporando seus preceitos ao direito interno. [...]. Esse fenômeno repercute sobre o Poder Judiciário, cuja atuação tende a limitar-se a questões ‘menores’ [...]. A apregoada extinção próxima da Justiça do Trabalho, quer venha ou não a ocorrer de fato, é um eloqüente exemplo do que estou afirmando; 2) Assiste-se, também a uma drástica redução dos direitos, sobretudo sociais, trabalhistas e previdenciários, ou seja, direitos coletivos de igualdade de segunda geração [...]. A desconstitucionalização e a desregulamentação desses direitos, assim como da própria relação entre empregados e empregadores, é o caminho usado para essa redução [...]; 3) Assiste-se, ainda, à realização do que Hayek preconizava já na década de 40: um direito que não implicasse necessariamente em garantias para o futuro. Com isso, vão se dissolvendo aos poucos a eficácia e o próprio conceito de direitos adquiridos [...], de atos jurídicos perfeitos e coisa julgada. Nesse processo, as garantias jurídicas vão sendo substituídas pelas garantias de mercado: em última instância, é o interesse do empresário que garante o consumidor!143
De fato, com Grau, vê-se que o neoliberalismo é flagrantemente
incompatível com o Direito e especialmente com a Constituição da República
brasileira de 1988. Esta mesma Constituição que, apesar de todas as tentativas de
‘sabotamento’ por parte dos setores ligados ao ideário neoliberal, a duras penas foi
promulgada trazendo consigo todo o plus normativo (Streck) que projeta a realização
de um Estado Social. E é aí que reside a maior incompatibilidade com este novel
hegemômico simbolicamente homogênio, coloca em risco diversas esferas do saber, dentre elas o Direito e, em última escala, a Política e a própria Democracia, principalmente numa sociedade capitalista no qual o objetivo é o lucro, sem ética. Em nome da audiência, então, são exploradas as paixões mais primárias dos telespectasores: sangue, sexo, drama e crime [...]”. ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 47. 142 A doutrina neoliberal cria para o senso coletivo a imagem de que os defensores do Direito e do Poder Judiciário são pessoas retrógradas, atrasadas, verdadeiros ‘Dinossauros’. Só que, como aponta Rosa através das oportunas palavras de Veríssimo, “os dinossauros ‘foram grandes criaturas. Já os bichos que se adaptam a tudo, que estão aí desde o começo do mundo e sobreviverão até o fim, todos sabem quais são: as baratas, os ratos...”. ROSA, Direito Infracional, op. cit., p. 32. 143 MARQUES NETO, Neoliberalismo: o direito na infância, op. cit., p. 234-235.
104
liberalismo. Os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro,
afirmados no art. 3° da referida Constituição não se coadunam em nada com
políticas de ordem radicalmente liberal144. A incompatibilidade entre o modelo
apregoado pela nossa Constituição e qualquer outro modelo econômico, segundo o
autor, se “consubstancia em situação de inconstitucionalidade institucional e/ou
normativa”145.
Para Grau, toda e qualquer concessão ao neoliberalismo constitui
uma temeridade, dado o imenso descrédito em que está mergulhado este modelo.
Como explica, o neoliberalismo fracassou na implementação de suas promessas de,
através do ‘capitalismo competitivo’ e do Mercado, melhor distribuir as riquezas na
sociedade. Em realidade, o neoliberalismo, se mostrou um modelo essencialmente
“anti-social, gerando conseqüências que unicamente as unanimidades cegas não
reconhecem”146. Neste sentido, Anderson é taxativo:
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativa para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, tem de adaptar-se a suas normas.147
Conforme ensina Bonavides, qualquer concessão institucional ao
modelo que aí está, é desaperceber (ou fingir desaperceber) o flagrante “golpe de
Estado Institucional”148 a que o país está se submetendo com estas políticas que
144 Afirma: “Esse modelo, desenhado desde o disposto nos seus arts. 1° e 3°, até o quanto enunciado no seu art. 170, não pode ser ignorado pelo Poder Executivo, cuja vinculação pelas definições constitucionais de caráter conformador e impositivo é óbvia.” GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988, op. cit., p. 36-37. 145 E ainda enfatiza: “A substituição do modelo de economia de bem-estar consagrado na Constituição de 1988 por outro, neoliberal, não poderá ser efetivada sem a prévia alteração dos preceitos contidos nos seus artigos 1°, 3° e 170. Em outros termos: essa substituição não pode ser operada sub-repticiamente, como se os nossos governantes pretendessem ocultar o seu comprometimento com a ideologia neoliberal.” GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988, op. cit., p. 37. 146 GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988, op. cit., p. 39. 147 ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, p. 23. 148 Com Bonavides: “O golpe de Estado institucional, ao contrário do golpe de Estado governamental, não remove governos mas regimes, não entende com pessoas mas como valores, não busca direitos mas privilégios, não invade poderes mas os domina por cooptação de seus titulares; tudo obra em discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público declarar suas intenções, que vão fluindo
105
tem por base o receituário neoliberal. Trata-se, segundo o autor, de um perverso
processo de colonização através do econômico, uma verdadeira neo-colonização.
Em suas palavras:
Na mesa verde das bolsas – que é o cassino das finanças – os direitos de terceira geração, como o direito dos povos ao desenvolvimento, são friamente imolados. Hecatombes financeiras desabam sobre os chamados países emergentes por obra de um cálculo de especuladores que vêem o lucro e não o homem, o capital e não nação, o interesse e não o trabalho. [...]. Socialmente, o Brasil é o País mais injusto do mundo; por um paradoxo, sua riqueza fez seu povo mais pobre e suas elites mais ricas numa proporção de desigualdade que assombra cientistas sociais e juristas de todos os países. Mas não pára aí o infortúnio desse povo cuja queda maior deriva de a classe dominante empenhar-se em aprofundar a injustiça social, em governar unicamente para as elites e em perpetuar um status que de iniqüidade e violência, que é a desonra de uma nação. De país constitucional se converte em país neocolonial, em ‘colônia de banqueiros’, praça de ‘negócios da China’ e mercados de especuladores internacionais, que lhe sugam as riquezas, lhe empobrecem o povo e criam a mais injusta dívida externa e interna já contraída, neste século, por um Estado. [...] O golpe está em curso. O tempo urge. O Brasil precisa dizer não aos golpistas se quiser sobreviver, tolhendo assim a transição do país constitucional ao país neocolonial.149
Mesmo diante de seus aclarados propósitos ‘golpistas’, os neoliberais
seguem ampliando e fortalecendo a penetração de seus ideais na sociedade,
aumentando a adesão social de maneira a ganhar dia a dia mais aliados contra os
seus principais inimigos: o Estado, o Direito, e a Constituição social. Estes
‘aderentes’ ao modelo, infelizmente, continuam fingindo não se darem conta deste
verdadeiro, nas palavras de Souza Neto, ‘neoconstitucionalismo econômico’ que se
opõe diamentralmente ao ‘constitucionalismo político’150. Fingem não se
de medidas provisórias, privatizações, variações de política cambial, arrocho de salários, opressão tributária, favorecimento escandaloso da casta de banqueiros, desemprego, domínio da mídia, desmoralização social da classe média, minada desde as bases, submissão passiva a organismos internacionais, desmantelamento de sindicatos, perseguição de servidores públicos, recessão, seguindo, assim, à risca, receita prescrita pelo neoliberalismo globalizador, até a perda total da identidade nacional e a redução do País ao status de colônia, numa marcha sem retorno.” BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 23. 149 BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 21-31. 150 Com Souza Neto: “O neoconstitucionalismo econômico se caracteriza pela neutralidade econômica do Estado”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em países periféricos. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 127.
106
aperceberem dos nefastos reflexos e impactos deste novo modelo econômico
especialmente nos países periféricos151. E para tanto, os neoliberais exploram
habilmente, lançando mão dos mais avançados recursos de persuasão e
propaganda152, seu mais forte e impactante argumento: ‘somos a única alternativa
possível!’.
2.2.2 Neocapitalismo e o ‘fetiche discursivo’ da ‘via única’
Especialmente após a simbólica queda do ‘Muro de Berlim’, e com o
conseqüente desaparecimento da ‘ameaça vermelha’, muitos passaram a pensar e a
defender - entre eles Fukuyama com seu apocalíptico “O fim da história”153 - que o
‘jogo teria chegado ao seu fim’, e que a ‘economia de cassino’154 marcante na
década de ‘80 representaria a irreversível vitória do ‘capital’ frente ao ‘social’. Talvez
até mesmo por influência de Popper, que dizia que não teríamos outra alternativa a
não ser escolher entre a ‘sociedade aberta’ (liberdade) ou a ‘sociedade fechada’
(bestialização)155, engendrou-se no ideário neoliberal que o capitalismo competitivo,
151 Quais sejam, segundo Arruda Jr.: “a privatização, tomada como panacéia conduziu à criação de crescentes monopólios privados; o confisco dos direitos trabalhistas, segundo revisão constitucional pretendida sob a ótica patronal; eliminação da estabilidade relativa dos funcionários públicos, a título de nova racionalidade menos patrimonialista [...]; ajuste fiscal para equilibrar as receitas e as despesas do governo. Isso para que de forma mais urgente e dinâmica, os interesses banqueiros (nacionais e estrangeiros) possam ser satisfeitos, e assim, receber a dívida do governo federal, inclusive interna (saldo ultrapassando a 100 US$ bilhões); concepção de que as cargas tributárias e o número de tributos no país, sendo as maiores do mundo, exigem a minimização de ambos; privatização dos serviços públicos, estradas, presídios, previdência e saúde”. ARRUDA JR., Neoliberalismo e Direito, op. cit., p. 62. 152 Seus métodos de propaganda e persuasão, sempre a serviço da manipulação e do adestramento, em muito lembram o que Legendre chama de “Ciência do Sorriso”: “nesse terreno, a Publicidade manobra admiravelmente com sua ‘Ciência do Sorriso’, que recria, para uso dos bons sujeitos submissos, uma fantasmagoria do bem-educado e do mal-educado, do louco e do não louco. Assim uma doutrina do Poder perfeito encontra seu ajustamento, ao qual é conferido (como em uma das mais antigas doutrinas da chave) atar e desatar o vínculo humano fundamental”. LEGENDRE, O Amor do Censor, op. cit., p. 171. 153 Francis Fukuyama era funcionário do Departamento de Estado norte-americano e publicou em 1989 um artigo com o título “O Fim da História” que deu origem ao seu livro. Defendeu que “la democracia liberal podia constituir el punto final de la evolución ideológica de la humanidad, la forma final de gobierno, y que como tal marcaría el fin de la história.”. FUKUYAMA, Francis. El fin de la Historia y el último hombre. Trad. P. Elias. Barcelona: Planeta, 1992. p 11. 154 Usando uma expressão de Avelãs Nunes quando se refere a este capitalismo que gera riqueza a partir da usura e não da produção. Cfe: NUNES, Neoliberalismo e Direitos Humanos, op. cit., p. 75. 155 “Não podemos retornar às bestas. Se quisermos permanecer humanos, então só existe um caminho, o caminho para a sociedade aberta.” POPPER, A Sociedade Aberta, op. cit., p. 217. Dahrendorf enaltece que o objetivo de Popper com sua obra, especialmente diante dos horrores da segunda guerra mundial, era claro: defesa absoluta da liberdade contra qualquer totalização. Apesar de muito referido pelos neoliberais, Dahrendorf entende que Popper teria sido mal compreendido, especialmente por Hayek. Dahrendorf denuncia os equívocos de se confundir Hayek e Popper. Em suas palavras: “apesar de parecerem irmãos, são na verdade muito diferentes. Hayek apresenta a tendênia fatal de sugerir outro sistema em oposição ao socialismo. [...] Popper, ao contrário, é um
107
concorrente, descomprometido com as bases do liberalismo clássico, seria eterno,
inabalável, inatingível, enfim, infalível.
O triunfo de uma ‘idéia única’, de uma ‘única ideologia’ - ou de
‘ideologia alguma’ como defendem alguns pós-modernos quando denunciam o fim
dos metarrelatos, das metateorias que estabeleciam as visões de mundo
prevalentes (liberalismo, marxismo,...)156 - , naturalizou-se com facilidade e pouca
resistência no imaginário coletivo, consubstanciando seu velado projeto de
dominação com todo o apoio da estrutura dissimulada e ‘oculta’ oferecida pelo
Direito157. Os neoliberais, como aponta Rosa158, souberam bem se aproveitar da
função ideológica do desconhecimento de que falava Zizek. A falta de alternativas
impôs a inevitável e conseqüente ausência de limites, conforme explica
Hinkelammert:
No presente – desde 1989 – a sociedade capitalista emerge como a sociedade absolutamente determinante do mundo inteiro e se projeta como uma sociedade para a qual não existe alternativa. O socialismo, como sociedade alternativa, parece derrotado, e os próprios movimentos socialistas que existiam dentro da sociedade capitalista, estão extremamente debilitados. Em conseqüência disso, este capitalismo ‘sem alternativa’ se impõe como um capitalismo sem limites.159
O argumento de ‘via única’ do discurso neoliberal acaba por implicar
a defesa de um ‘Mercado ideal’ que preencheria por completo o vazio imaginário
deixado pela figura do Estado-social – e que segundo os neoliberais teria sucumbido
com a queda dos socialismos reais. No entanto, tal discurso, de forma falaciosa,
tentou transformar o seu ‘Mercado ideal’ em ‘Mercado real’160 acarretando o
defensor radical da liberdade, da mudança sem sangue [...]”. DAHRENDORF, Reflexões sobre a Revolução, op. cit., p. 38-39. 156 O principal deles é sem qualquer dúvida Jean-François Lyotard. Conferir em LYOTARD, A condição pós-moderna, op. cit., p. 28, 58 e seguintes. 157 Explica Cárcova que além da legitimação Weberiana a ideologia tem “un segundo modus operandi de la ideologia es la disimulación. Muchas veces las relaciones de dominación pueden estabelecerse porque son ocultadas como tales. Esse ocultamento es, frequentemente, el resultado de un juego discursivo de la resenmantización e un término, que es sacado de un contexto de uso habitual e inscrito en outro, para transferir sus connotaciones positivas e negativas a un objeto o persona diversa.” CÁRCOVA. Carlos María. La opacidad del derecho. Madrid: Trotta, 1998. p. 157. 158 ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 212. 159 HINKELAMMERT, Franz J.Pensar em alternativas: capitalismo, socialismo e a possibilidade de outro mundo. In: PIXLEY, Jorge (Org.). Por um mundo diferente: alternativas para o Mercado Global. Trad. Orlando dos Reis. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 10. 160 ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Direito, Marxismo e Liberalismo: ensaios para uma sociologia crítica do Direito. Florianópolis: CESUSC, 2001. p. 53.
108
estabelecimento de um ‘Mercado totalizante’, que pretensamente objetiva alcançar o
‘Todo’. E este é o principal equívoco de toda construção mítico-teórica em torno da
figura do ‘Mercado livre’161. No intuito de servir como um manifesto contra a
totalização dos regimes socialistas ditatoriais (nazismo, facismo)162, e arvorando-se
como única fórmula de defesa da liberdade universal, a doutrina neoliberal acabou
por beber do próprio veneno que combatia: forjou o ‘sistema’ mais total e mais
ilimitado já visto na história recente.163 Tal sistema, como já alertara Rosa, utiliza-se
do ‘mito da ausência de opções’ para mascarar seu propósito dominador, autoritário
e excludente164.
Mesmo assim, e ainda considerando aqueles que de algum modo
oferecem resistência165, tal discurso de ideologia única foi recebido com uma
naturalidade espantosa pela maioria da sociedade166, e, principalmente, pela
esmagadora maioria dos operadores do Direito que, por ingenuidade ou esperteza,
submeteram-se ao giro discursivo167, passando a repetir e difundir o ideário
161 GRAU, O direito posto e o direito pressuposto, op. cit., p 92. 162 Dieterich aduz: “A diferença entre esta ideologia e prática neoliberal e a ideologia e prática da extrema direita e de determinadas correntes neonazistas na Alemanha, na Áustria, na França, etc, que substituíram a ‘guerra total’ de Adolf Hitler pelo ‘mercado total’ é simplesmente marginal. No capitalismo a guerra é a continuação do mercado com outros meios, e vice-versa. Ambos estão a serviço do grande capital”. DIETERICH, Heinz. Teoria e Práxis do Novo Projeto Histórico. In: Fim do Capitalismo Global: o novo projeto histórico. Trad. Eliéte Ávila Wolff. São Paulo: Xamã, 1998. p 133. 163 Dahrendorf explica: “se o capitalismo é um sistema, então ele precisa ser combatido tão vigorosamente como o comunismo teve que ser enfrentado. Todos os sistemas significam servidão, incluindo o sistema ‘natural’ da ‘ordem de mercado’ total, na qual ninguém tenta fazer coisa nenhuma, salvo observar regras do jogo, descobertas por uma seita misteriosa de conselheiros econômicos.” DAHRENDORF, Reflexões sobre a Revolução, op. cit., p. 55. 164 ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 213. 165 Ocorre-me neste momento o brado de Plauto Faraco de Azevedo: “Não há o que Fukuyama denominou ‘fim da história’! O fato de que até agora ninguém tenha sido capaz de ver além não significa que a História tenha acabado.” AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 110. Entre tantos outros que resistiram (e resistem): Paulo Bonavides, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Agostinho Ramalho Marques Neto, Alexandre Morais da Rosa, Lenio Luis Streck, Edmundo Lima de Arruda Jr., António José Avelãs Nunes, Luiz Alberto Warat, Antonio Carlos Wolkmer, Sérgio Cademartori, etc. 166 Com Coutinho: “Pasma, mesmo, verificar como tudo está sendo consumido com tamanha naturalidade, como se fosse um objeto que se pudesse degustar. Difícil, porém, é ter presente o porquê.” COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 69. Ou ainda: “não convivemos, por ex., salvo os ingênuos, com a chegada aos tanques em Praga mas, em compensação, estamos convivendo tranqüilamente com as pessoas que foram presas – e da forma como foram – em Guantánamo; e não nos preocupamos com a situação porque ninguém diz nada a respeito, tudo como se estivéssemos – todo mundo – dormindo um sono eterno.” COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. O Estrangeiro do Juiz e o Juiz é o Estrangeiro?. In: Direito e Psicanálise: intersecções a partir de “O Estrangeiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 72. 167 Tal constatação remete-nos à absurda indiferença e ‘banalidade do mal’ descritas por Arendt quando do julgamento de um oficial nazista: “Eichmann contou que o fator mais potente para acalmar a sua própria consciência foi o simples fato de não ver ninguém, absolutamente ninguém, efetivamente contrário à Solução Final.” ARENDT, Eichmann em Jerusalém, op. cit., p. 133.
109
neoliberal no âmbito do Judiciário. Tal naturalidade, segundo Marques Neto, é, entre
outras razões, decorrente de uma velada manipulação de linguagem que geram
efeitos de “eficácia simbólica e identificação imaginária”168. Segundo este autor, o
perigo desta banalidade frente à ideologia única está no fato de o neoliberalismo se
conceber plenamente justificado, sem precisar oferecer justificativas éticas ou
filosóficas como o liberalismo clássico necessitou fazer169. Assim, as conquistas
constitucionais vão sendo gradativamente, num silêncio sibérico170, engolidas pelo
novo modelo econômico-político, e poucos são aqueles que se insurgem, na feliz
expressão de Maris, contra a ‘Voz do Dono’171.172
A nova ordem mundial imposta por este ‘liberalismo renovado’ se
apresenta, e disso já não resta mais qualquer dúvida, flagrantemente incompatível
com uma ordem social justa, legal, e democrática. E tal constatação é bem
demonstrada por Dieterich, que com clareza enaltece alguns pontos principais que
justificam tal incompatibilidade: primeiramente, porque o princípio universal da
cultura humana de alimentação e moradia, girando em torno da reprodução
adequada da vida, choca-se com a lógica capitalista que gira em torno do lucro e do
valor; segundo, porque o ideário que legitima o neoliberalismo tem por base as
‘piores tradições’ do utilitarismo173, do malthusianismo174, do social-darwinismo e do
totalitarismo metafísico; e por último, porque a mitificação metafísica da figura
168 MARQUES NETO, Neoliberalismo: o direito na infância, op. cit., p. 235. 169 MARQUES NETO, Neoliberalismo: o direito na infância, op. cit., p. 235. 170 É assim que Edmundo Lima de Arruda Jr. se refere à incompreensível naturalidade e passividade da sociedade diante do levante neoliberal. ARRUDA JR., Neoliberalismo e Direito, op. cit., p. 51. 171 MARIS, Bernard. Carta aberta aos gurus da economia que nos julgam imbecis. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p.16. 172 Coutinho denuncia: “Estupefato, o mundo assiste aos neoliberais engolirem as chamadas conquistas constitucionais da humanidade, nos países periféricos (veja-se o que se está fazendo com a Constituição do Brasil);”. COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 69. 173 Com destaque a Jeremy Bentham. 174 Com as palavras de Malthus, em texto de 1803, pode-se ter uma noção de sua influência para o neoliberalismo: “Minha intenção é meramente mostrar que, enquanto sistema geral, as leis de amparo aos pobres estão fundamentadas em erro grosseiro; e a declamação comum sobre o tema dos pobres, que vemos tão frequentemente impressa e ouvimos continuamente em conversa, a saber, que o preço de mercado da mão-de-obra deve sempre ser suficiente para manter decentemente uma família e que todos os desejosos de trabalhar devem encontrar emprego, equivale a dizer que os fundos para a manutenção da mão-de-obra neste país não apenas são infinitos como também não estão sujeitos a variação. [...] Essas fortes indicações da ineficiência das leis de amparo aos pobres podem ser consideradas não apenas como provas incontrovertidas do fato de que elas não cumprem o que prometem, mas também como suporte da suposição mais poderosa de que elas não o podem fazer. [...]. O que realmente tenho proposto é uma medida muito diferente. É a abolição gradual e muito gradual das leis de amparo aos pobres.” MALTHUS, Tomas Robert. Sobre a Lei de Amparo aos Pobres. In : SZMRECSANYI, Tamás (org.) Maltuhs: Economia. São Paulo: Ática, 1982. p. 85, 86 e 94.
110
mercadológica como entidade superior, divina, pretendendo-se substituidora da
soberania popular, oculta uma perversa lógica de divisão e exclusão social.175
2.2.3 A erosão do Direito e a anomia social
Como bem lembra Dahrendforf, um liberal alemão que reconhece os
excessos deste atual modelo econômico176, o capitalismo ‘pós industrial’ –
fetichizado como via única - não mais consegue dar conta do que chama de
‘enquadramento do círculo’ de harmonização entre o que considera os pressupostos
de uma sociedade democrática: “bem-estar econômico, coesão social e liberdade
política” 177. E isto se reflete com clareza na manifesta inefetividade das normas,
especialmente as constitucionais. Em sua opinião, além de algumas conquistas do
liberalismo clássico, as políticas neoliberais provocam enormes ‘anomias’178 na
sociedade, que traduzem exatamente esta ausência de eficácia das normas e das
instituições sociais. É através destas ‘anomias’ que o autor denuncia os duros
golpes sofridos pelo Direito e pela Constituição diante do levante neoliberal,
enaltecendo o declínio da efetividade da lei como decorrência das ‘contradições da
modernidade’179 – percebendo-se um verdadeiro princípio de “erosão da lei e da
ordem” -, o que fragiliza e desestabiliza o conjunto de conquistas históricas tocante à
cidadania.180 E o que agrava tal situação de anomia é a impunidade diante do
descumprimento de normas, que acaba por provocar uma sensação de descrédito
em relação ao Direito e ao Estado. Por conseqüência, somos lançados a um
175 DIETERICH, Teoria e Práxis do Novo Projeto Histórico, op. cit., p. 135. 176 Além de Dahrendorf, Arruda Jr. também menciona John Rawls como outro exemplo de destacado liberal que, com enorme penetração acadêmica, tem se insurgido aos “descaminhos da barbárie do novo liberalismo”. ARRUDA JR., Direito, Marxismo e Liberalismo, op. cit., p. 131. 177 COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 59. 178 Cárcova anota que “el concepto de anomia fue recuperado de sus usos antiguos por E. Durkhein para referirse a la falta relativa de normas en una sociedad o un grupo. [...] E. Durkhein usó el concepto de anomia por primera vez en Sobre la división del trabajo social (1893), pero lo desarrolló especialmente en sus estudios sobre El Suicidio (1897)”. CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op. cit., p. 61. 179 Dahrendorf afirma: “[...] o declínio da eficácia da lei pode ser descrito como uma das contradições da modernidade, onipresente no mundo atual desde o Welfare State, que na verdade cria uma nova pobreza, até a ameaça nuclear, que diariamente nos recorda da ambivalência da razão humana. Queríamos uma sociedade de cidadãos autônomos e criamos uma sociedade de seres amendrontados e agressivos. Buscávamos Rousseau e encontramos Hobbes.” DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem. Trad. Tâmara Barile. Brasília: Instituto Tancredo Neves e Fundação Friedrich Naumann, 1987. p. 13-14. 180 DAHRENDORF, A Lei e a Ordem, op. cit., p. 11-15, e 33.
111
universo hobbesiano, onde ocorre um deslocamento da tensão, passando o
conflito/disputa a ser de todos contra todos.181
O professor alemão explica que os efeitos desta anomia
generalizada, bem retratada pelo estado de ‘decomposição’ das normas
constitucionais, são perversos: criminalidade desmedida com grande envolvimento
de jovens sem perspectivas de futuro, e com o surgimento de reais ‘áreas de
exclusão’; retorno à autotutela e autodefesa impulsionada pelo surgimento de
estruturas de segurança e de ‘justiceiros’ na esfera privada, com ampliação cada vez
maior de manifestações violentas como motins, levantes, etc;182 E, reflexivamente,
temos ainda como conseqüências deste ‘liberalismo obsessivo’183e conservador a
destruição dos aspectos importantes da vida comunitária, minimização dos serviços
públicos, e aumento da sensação de desconfiança e insegurança. De fato, como
insinua o autor, o ‘inimigo’ da liberdade não está exatamente onde se pensava
estar184.
2.2.4 Neoliberalismo e ordem global: o Estado e o Direito sob risco
Tudo isso ainda sendo flagrantemente radicalizado em enormes
proporções pela ‘globalização’, que mundializa um discurso essencialmente
econômico e que relega a um segundo plano – ou plano algum – as questões
sociais e os direitos fundamentais. Muito embora reconheça-se que a expressão
globalização admita várias interpretações e possa ser vista sob vários aspectos185, é
no aspecto econômico-financeiro que se constata talvez sua mais perversa faceta.
Com Vieira, vê-se a globalização
181 DAHRENDORF, A Lei e a Ordem, op. cit., p. 26-28. Explica: “Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas onde as violações de normas não são punidas. Este é um estado de extrema incerteza. Onde ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas situações.” DAHRENDORF, A Lei e a Ordem, op. cit., p. 31. 182 DAHRENDORF, A Lei e a Ordem, op. cit., p. 35-46 e 130-131. 183 ARRUDA JR., Neoliberalismo e Direito, op. cit., p. 60. 184 Explica o autor: “Pode-se ainda dizer que ‘o inimigo’ – ou seja, o inimigo efetivo da liberdade – ‘situa-se junto à direita’. DAHRENDORF, A Lei e a Ordem, op. cit., p. 14. 185 Santos, apoiado em Giddens, diz que globalização consiste na “intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa [...]”. Santos afirma que a globalização, além do aspecto financeiro, também se revela nos aspectos políticos e culturais. SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 26.
112
como um processo de homogeneização, isto é, de padronização e estandardização das atitudes e comportamentos em todo o mundo, colocando em risco a diversidade cultural da humanidade. A globalização é aqui compreendida principalmente em sua dimensão econômica dominante de interligação mundial de mercados. [...] A globalização é em geral vista como um fenômeno econômico que deve ser combatido, pelas suas conseqüências nocivas para os países pobres em vias de desenvolvimento. É apresentada ainda como um fenômeno que se contrapõe aos laços de solidariedade social existentes nos planos local e nacional.186
Ainda com Vieira, nota-se que a globalização, fazendo preponderar o
econômico frente ao político, apresenta novos atores mundiais que não mais os
Estados ou governos. Estes são substituídos pelos grandes conglomerados e
empresas transnacionais que acabam por dominar a maior parte da produção, do
comércio e das finanças internacionais. Este processo, explica o autor, situou o
Mercado como “matriz estruturadora da vida social e política da humanidade,
sobrepondo-se às fronteiras nacionais”187. E a economia global acaba sendo
comandada e dirigida efetivamente pelo mercado financeiro e pelos interesses de
mega investidores e especuladores.188
A atuação destes novos atores do Big Business189, que
transformaram o capitalismo produtivo num ‘capitalismo de cassino’, eminentemente
especulativo e financeiro, segundo Nunes, além de arrebentarem as barreiras
soberanas nacionais, tornaram muitos países190 (especialmente os periféricos), com
todo o apoio da banca de Bretton Woods, em verdadeira “reserva de caça”191,
fazendo da chantagem e da extorsão suas principais ‘estratégias’ especulativas. E
neste levante ‘parasitário’, ninguém é poupado. Ninguém. A falta de limites, neste
186 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 70 187 VIEIRA, Cidadania e globalização, op. cit., p. 81. 188 VIEIRA, Cidadania e globalização, op. cit., p. 81. 189 É como Nunes se refere aos especuladores e mega capitalistas que atuam no Mercado. NUNES, Neoliberalismo e Direitos Humanos, op cit., p. 54. 190 Nunes também demonstra preocupação em relação ao levante neoliberal global na Europa, especialmente quanto ao assédio de um monetarismo fundamentalista universalizante que poderia comprometer os objetivos iniciais da ‘União Européia’. Cfe: NUNES, António José Avelãs. Notas sobre o chamado modelo econômico-social europeu. In: ______; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.). Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 01-14. E ainda: NUNES, António José Avelãs. A Constituição Européia. A Constitucionalização do neoliberalismo. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 63 e seguintes. 191 NUNES, Neoliberalismo e Direitos Humanos, op cit., p. 74-75.
113
caso, revela a desmedida e permanente alta da ‘taxa de ganância’, para usar-se
uma expressão de Ezcurra192. Esta é a lógica da acumulação material.
Sem dúvida, o neoliberalismo foi imensamente impulsionado pelo
processo de globalização dos últimos tempos. E, como já se pôde perceber, os mais
tragicamente atingindos foram o Direito e o Estado. Conforme explica Arnaud, o
Direito e o Estado sucumbem diante da internacionalização financeira, eis que a
soberania fica mais e mais fragmentada, e lentamente as formas tradicionais de
regulação social vão sendo substituídas, suplantadas. É exatamente assim que
Arnaud se refere aos reflexos e impactos no Direito: fala respectivamente em direito
estatal substituído, suprido, e suplantado.193
Afirma Arnaud que, por força da globalização, o direito estatal acaba
sendo ‘substituído’, ‘suprido’ e ‘suplantado’ pelas incontidas forças do Mercado que
se impõem ao Estado. Tais investidas se manifestam: em acordos regionais
firmados entre os Estados – muitas das vezes até mesmo como um recurso de
defesa ao mercado internacional; no aumento de autonomia de corporações internas
que impõem ao Estado suas pretensões de normatização de condutas privadas; no
fenômeno da descentralização administrativa do poder público, onde se fragmenta
mais e mais o poder; no surgimento de novas alternativas de resolução conflitiva,
como as mediações, e as conciliações privadas; e finalmente, na maciça presença
de organismos internacionais que, afetando o equilíbrio financeiro nacional, exercem
enorme ‘lobby’ junto às instituições na busca de flexibilização das normas
estatais.194
Assim, a globalização acaba por consubstanciar, e este por certo é
seu aspecto mais nocivo, uma racionalidade - a reboque das teses neoliberais – que
estabelece um ideário exclusivo, oferecendo uma única alternativa de normatividade:
a lei do Mercado.195 A ‘localidade’ estatal e sua soberania - que desde a
modernidade se atribuía ao poder popular, ao “Estado-pessoa”196 - são substituídas
192 EZCURRA, Qué es el Neoliberalismo?, op cit., p. 38. 193 ARNAUD, O Direito entre Modernidade e Globalização, op. cit., p. 155. 194 ARNAUD, O Direito entre Modernidade e Globalização, op. cit., p. 155-172. 195 ARNAUD, O Direito entre Modernidade e Globalização, op. cit., p. 233-234. 196 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Trad. Carlo Coccioli. Martins Fontes: São Paulo, 2002. p. 27 e seguintes.
114
pelo global, pelo universal197. O Direito, como já se constatou com Hayek, perde o
papel que lhe fora atribuído pela racionalidade construtivista, cedendo lugar à
racionalidade e lógica do Mercado, este mito que nos oferece como única
legitimação, como único fundamento, a ‘invisibilidade’ de uma espontaneidade sem
conteúdo – ou de conteúdo questionável. Cabe à sociedade aceitá-lo ou rejeitá-lo
conforme explica o autor:
O primeiro efeito da globalização é, portanto, o de dividir o mundo entre aqueles que se dobram a sua lei ou que, bem ou mal, se conformam e se acomodam a ela, e aqueles que a recusam e são tachados de cegos, de reacionários, e de irresponsáveis.198
Importa registrar, no entanto, as advertências que Beck faz em
relação ao processo de globalização. Para este autor, a globalização até aqui
descrita trata-se, em realidade, segundo seu neologismo, de ‘globalismo’, que acaba
por defender a “ideia del mercado global, es decir, las virtudes del crecimento
neoliberal y la utilidad de mover sin obstáculos el capital, los productos y los
hombres a no y outro lado de las fronteras”199. E por isso, segundo o autor, torna-se
necessário entender que o processo de mundialização das relações humanas é
muito anterior ao projeto neoliberal, sendo um processo histórico e inevitável que
acompanha o sujeito humano desde a modernidade200. Neste sentido, o autor
defende uma nova percepção quanto a este processo. Pugna por uma “globalização
diferente”, uma globalização que se coadune com a garantia e efetivação de direitos
197 Neste sentido, Santos fala de dois conceitos: localismo globalizado e globalismo localizado. Em suas palavras: “A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual, de patentes ou de telecomunicações promovida agressivamente pelos EUA. [...]. À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados. Para responder a esses imperativos transnacionais, as condições locais são desintegradas, desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusão subalterna. Tais globalismos localizados incluem: a eliminação do comércio de proximidade; criação de enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa [...]”.SANTOS, Os processos da globalização, op. cit., p. 65-66. 198 ARNAUD, O Direito entre Modernidade e Globalização, op. cit., p. III. 199 BECK, Ulrich. La mirada cosmopolita o la guerra es la paz. Barcellona: Paidós, 2005. p. 19. 200 Já tratando tal processo de mundialização a partir de nova perspectiva cosmopolita, Beck explica que “el cosmopolitismo de la realidade no es el resultado de una conjura artera por parte de los ‘capitalistas globales’ ni de una ‘manobra americana para hacerse con el domínio mundial’, sino la imprevista consecuencia social de acciones encaminadas a obtener otros resultados, por parte de personas que actúan dentro del entramado de riesgos de interdepencia globales.” BECK, La mirada cosmopolita o la guerra es la paz, op. cit., p. 71.
115
fundamentais, o que chama de ‘cosmopolitização’. E nesta “mirada cosmopolita”, os
pressupostos são outros, conforme elucida o autor:
[...] por cosmopolitización debe entenderse un processo multidimensional que ha modificado de manera irreversible la ‘naturaleza’ histórica de los mundos sociales y la relevância de los Estados en estos mundos. Así entendida, la cosmopolitización supone el surgimiento de multiples lealtades, así como el aumento de multiples formas de vida transnacionales, el ascenso de actores políticos no estatales (desde Amnistia Internacional hasta la Organización Mundial del Comercio) y el auge de movimientos de protesta globales contra el globalismo (neoliberal) y en pro de una globalización diferente (cosmopolita). Se propugna el reconocimiento internacional de los derechos humanos, el derecho al trabajo, la protección del médio ambiente, la supressión de la pobreza, etcétera.201
De fato, neste processo globalizante mercadológico-financeiro - a que
Habermas bem denominou “integração em rede”202-, as normas jurídicas
constitucionais, os direitos fundamentais e, principalmente o Estado, foram os
principais alvos. Essa excessiva mundialização das relações econômicas, fortalecida
pelas metas neoliberalizantes, acaba por diluir, por fazer desaparecer a distinção
entre o público e o privado, atingindo em cheio a cidadania que se torna
‘desreferenciada’ com a mitigação da soberania.203
201 BECK, La mirada cosmopolita o la guerra es la paz, op. cit., p. 19. 202 Explica o filósofo: “Em lugar de normas que são efetivas e que também obedecem a pontos de vista como soberania popular e direitos humanos, surge agora – sob a forma de uma ‘lógica da integração em rede’ – a mão invisível de processos regulados de maneira pretensamente espontânea. Mas esses mecanismos insensíveis a custos externos deixam justamente de suscitar confiança.” HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002. p. 144. 203 Com Habermas vê-se que: “Mais do que evidente revela-se o cerne neoliberal dessa visão helenista [onde as ‘novas’ pessoas desfazem-se da auto-compreensão ilusória da modernidade]. A autonomia dos cidadãos é prontamente diminuída na proporção do componente moral da autodeterminação ligada à cidadania reconhecida pelo Estado e re-alocada para o fundamento de uma autonomia privada: ‘assim como o cidadão romano na época de Caracalla, o cidadão da era da integração em rede define-se cada vez menos por seu compartilhamento do exercício de soberania e cada vez mais pelo fato de poder desenvolver uma atividade em um âmbito no qual todos os procedimentos obedeçam a regras claras e previsíveis. Deixará de ter importância se uma norma foi estabelecida por uma empresa privada ou por um funcionário da administração pública. A norma não será mais expressão da soberania, mas tão somente um fator de redução da incerteza, um meio para a diminuição de custos operacionais, à medida que se aprimorar a transparência’. Em alusão renitente à polêmica de Hegel contra o ‘Estado de exceção e o Estado do entendimento’, o Estado democrático é substituído por um ‘Estado do direito privado’ sem qualquer remissão filosófica ao direito natural, reduzido a um código de regras e legitimado apenas pela comprovação diária de sua capacidade funcional.” HABERMAS, A inclusão do outro, op. cit., p.143-144.
116
O Estado, como bem lembra Bauman204 é vulnerabilizado pelo
incontrolável movimento transnacional do capital financeiro - que necessita de cada
vez mais fragmentação política - e, por conseqüência, despido daquelas funções
básicas tão afetas ao Estado liberal205. Com Bauman, por inspiração em um autor
mexicano, vê-se que
No cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação–estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas...Os novos senhores do mundo não têm necessidade de governar diretamente. Os governos nacionais são encarregados da tarefa de administrar os negócios em nome deles.206
Com esta perspectiva ‘privatizante’ da ‘coisa pública’, o Estado passa
a ser encarado como ‘entidade privada’, como ‘empresa’207, que não pode
apresentar prejuízo ou ineficiência. Os agentes políticos não são mais tratados como
mandatários do povo, e sim como gestores, ‘managers’ da coisa pública208. Por
conseqüência os ‘gastos públicos’, aqueles destinados ao cumprimento dos direitos
fundamentais, passam a ser trabalhados a partir de uma perspectiva de ‘custos’, 204 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999. 205 Bauman afirma que: “O tripé da soberania foi abalado nos três pés. Claro, a perna econômica foi a mais afetada. [...] No veredito incisivo do radical analista polítco latino americano, graças à nova ‘porosidade’ de todas as economias supostamente ‘nacionais’ e à condição efêmera, ilusória, e extraterritorial do espaço em que operam, os mercados financeiros globais ‘impõem suas leis e preceitos ao planeta. A ‘globalização’ nada mais é que a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida. Os Estados não tem recursos suficientes nem liberdade de manobra para suportar a pressão – pela simples razão de que ‘alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso’. [...] Por sua independência de movimento e irrestrita liberdade para perseguir seus objetivos, as finanças, comércio e indústria de informação globais dependem da fragmentação política – do morcellement (retalhamento) – do cenário mundial. Pode-se dizer que todos têm interesses adquiridos nos ‘Estados fracos’ – isto é, nos Estados que são fracos mas mesmo assim continuam sendo Estados.” BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 73-75. 206 BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 74. Conforme explica o autor, o referido texto é extraído de um artigo assinado pelo ‘Subcomandante Marcos’ e é proveniente do território de rebelião rural em Chiapas, México. 207 Não por acaso se observa na administração pública em geral, com cada vez mais força e freqüência, a importação de modelos de gestão privada que sempre prometem o ‘enxugamento da máquina’, ‘a restauração do equilíbrio orçamentário-financeiro’, ‘o corte de despesas públicas’, sempre em detrimento da prestação dos serviços públicos e dos direitos fundamentais. 208 Com Melman vê-se que “a vida política está desértica, não há a menor concepção ideológica ou mesmo utópica, nem palavra de ordem, nem projeto. Não há mais programa político. Nossos políticos se transformam em gestores, a ponto de, muito logicamente, um grande povo como o povo italiano colocar no poder aquele que é apresentado como homem de negócios. Tudo isso parece muito razoável: se ele soube gerir bem os seus negócios, por que não saberia gerir os de seu país?” MELMAN, Charles. O Homem sem Gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freude, 2003. p. 26.
117
com a frieza e a indiferença dos cálculos econômico-matemáticos. A vinculação ao
‘Orçamento estatal’ passa a ser o ponto de partida de análise para concessão de
tais direitos, pois, como afirma Galdino - parecendo não se dar conta do caos social
em que se vive - “os direitos não nascem em árvores”209.
2.2.5 A perspectiva econômica do Direito: a Constituição e seus custos
Esta concepção contemporânea do Direito vista a partir de sua
repercussão econômica (de custos), tem a forte influência norte-americana de
Holmes e Sustein com sua obra ‘The cost os rights’ de 1999210. Neste trabalho
discordam da tipologia estabelecida entre ‘direitos negativos e direitos positivos’,
defendendo que os direitos sempre seriam positivos, independentemente de sua
geração, pois sempre exigiriam do Estado uma atitude comissiva de proteção e/ou
concreção do direito. Isto é, os direitos sempre implicariam um custo ao erário; a
sociedade sempre seria onerada com os direitos, e por isso os direitos fundamentais
deveriam sempre ser analisados sob esta ótica.211
A nova lógica, com a conseqüente e inevitável subordinação do
Direito ao econômico, é que as normas constitucionais que declaram e garantem
direitos fundamentais passem a ser interpretadas sob a égide da relação ‘custo-
benefício’. Considerando a escassez de recursos, Galdino defende que a
racionalidade econômica é a que deve preponderar como parâmetro de
proporcionalidade e razoabilidade para a busca do equilíbrio das contas públicas e
alcance da justiça social212. O Direito, nesta perspectiva, passa a ser reduzido a
‘instrumental’ do econômico.
Apesar da imensa dificuldade que se encontra em aceitar o
argumento de que o Direito subordinado à racionalidade econômica possa continuar
preservando a cidadania plena e o Estado Democrático, Galdino insiste em pugnar
com veemência por um Direito - enquanto instrumental do econômico - que poderia
verdadeiramente pôr em prática a transformação social almejada por todos. E, por
209 GALDINO, Flávio. Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 210 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 299. 211 Galdino cita como exemplos o direito à vida, à liberdade, à propriedade, que exigem segurança por parte do Estado. GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 218. 212 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 218.
118
evidente, que a Constituição de 1988 - que segundo Galdino foi pródiga em aumento
de despesas públicas213-, por representar o texto máximo do ordenamento pátrio e
direcionador da atividade estatal, também deveria ser submetida a esta nova
compreensão. Mesmo com a aparente inviabilidade da proposta, alguns membros
do Judiciário, direta ou indiretamente, já se mostram favoráveis à idéia de julgar
sobre direitos fundamentais a partir da perspectiva de custos.
Com a utilização de conceitos como o da ‘Reserva do Possível’214,
alguns membros de nossos tribunais superiores têm assumido, com apoio de parte
da doutrina, uma postura de consideração dos direitos fundamentais em relação aos
seus custos frente ao erário, utilizando o argumento de “limitações orçamentárias do
Estado” para sonegar alguns direitos à sociedade. Especialmente diante de casos
de concessão de direitos sociais, algumas decisões do Supremo Tribunal Federal
têm se manifestado pela possibilidade de o Estado negar o cumprimento de norma
constitucional com base em limitações de sua Lei Orçamentária.215 Em outras
palavras, trata-se do ‘econômico’ inviabilizando a garantia de direitos sociais, e
tornando inefetivas as normas constitucionais fundamentais. Esta é outra frente do
pensamento neoliberal que precisa ser objeto de cuidadosa reflexão e resistência216.
213 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p.275. 214 Conforme Scaff, “o conceito de ‘reserva do possível’ é oriundo do direito alemão, fruto de uma decisão da Corte Constitucional daquele país, em que ficou assente que ‘a construção de direitos sujetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Neste sentido, a disponibilidade desses recursos estaria localizada no campo discricionário das decisões políticas, através da composição dos orçamentos públicos. A decisão do Tribunal Constitucional Alemão menciona que estes direitos a prestações positivas do Estado (os direitos fundamentais sociais) ‘estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. A decisão recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar uma quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos.” SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 152-153. 215 A exemplo: “A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao STF. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘Reserva do Possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (Direitos Constitucionais de segunda geração)”. RTJ 139/67, Rel. Min. Celson de Mello, de 29/04/2004. 216 Scaff explica que “a teoria da Reserva do Possível é condicionada pelas disponibilidades orçamentária, porém os legisladores não possuem ampla liberdade de conformação, pois estão vinculados ao Princípio da Supremacia Constitucional, devendo implementar os objetivos
119
Neste sentido, o poder judiciário assume papel de altíssima
relevância, especialmente diante da inoperância de um poder executivo que
descumpre a Constituição da República com a anestesiada/anestesiante alegação
de ‘falta de recursos orçamentários’. A questão da (in)efetividade constitucional (que
é bem refletida pelo quadro desolador de manifesta anomina social) em grande parte
provocada, como visto, pelo levante neoliberal que se estabelece fortemente a partir
da década de 90 no Brasil, passa a se tornar centro das discussões jurídicas,
voltando-se especial atenção à importância da atuação do poder judiciário no
sentido de contribuição ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito. É lá, no
Judiciário, especialmente num país periférico como o Brasil, que se lança toda a
metafísica da esperança (Warat) de revitalização de uma Constituição que se
denomina ‘cidadã’.
2.3 PROCEDIMENTALISMO VERSUS SUBSTANCIALISMO217
Para uma análise que trate das possibilidades de efetivação dos
preceitos constitucionais através do âmbito do Direito, e que discuta o papel do
poder judiciário quanto a uma postura intervencionista e quanto à sua alegada falta
de legitimidade e representatividade política (pondo, assim, em análise as possíveis
conexões entre o ‘Direito’ e a ‘política’), torna-se de fundamental importância
conhecer, na divisão teórica proposta por Vianna, duas correntes: o
procedimentalismo (Habermas-Garapon) e o substancialismo (Cappelletti-
Dworkin).218
2.3.1. Procedimentalistas: eixo Habermas-Garapon
estabelecidos na Constituição de 1988, que se encontram no art. 3°, dentre outras normas objetivo. Esta teoria somente pode ser argüida quando for comprovado que os recursos públicos estão sendo utilizados de forma proporcional aos problemas enfrentados pela parcela da população que não puder exercer sua liberdade jurídica, e de modo progressivo no tempo, em face de não conseguir a liberdade real necessária para tanto (Robert Alexy), ou não puder exercer suas capacidades para exercer tais liberdades (Amartya Sem). Tal procedimento não implica a judicialização da política ou ativismo judicial, pois se trata apenas de aplicação da Constituição brasileira.” SCAFF, Reserva do possível, op. cit., p. 161-162. 217 Este item foi desenvolvido com base no escrito: MARCELLINO JR., Julio Cesar. A jurisdição constitucional e o papel do poder judiciário no Brasil: procedimentalistas ‘versus’ substancialistas. In: ROSA, Alexandre Morais da. (Org.). Para um Direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006. p. 25-57. 218 VIANNA, Luiz Werneck. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 23 e seguintes.
120
Os procedimentalistas, liderados por Jürgen Habermas e Antoine
Garapon, se posicionam de modo a serem contrários à penetração da política e da
sociedade pelo Direito. O procedimentalismo, especialmente em Habermas,
pretende superar a crise do Estado de Direito e o dualismo paradigmático entre o
Estado liberal-burguês e o Estado Social de Direito, através do princípio
democrático-deliberativo219. Com tal princípio, a ação comunicacional legitima a
formação política da vontade, substituindo-se, assim, o paradigma220 contratual pelo
paradigma discursivo221. É por isso que para Habermas, as teorias e correntes de
pensamento que defendem a completa desconexão entre Direito e moral, de um
lado, e Direito e política, de outro, estão absolutamente equivocadas. Salienta o
autor que o fato de o Direito ter se submetido ao processo de positivação não
implica necessariamente a ruptura de suas relações internas com a moral e a
política.222
Com uma crítica de cunho epistemológico que retoma o projeto
inacabado da modernidade, Habermas substitui a ‘razão instrumental’ técnica
moderna por uma ‘razão comunicativa-emancipatória’223/224. E a partir desta
concepção, defende que a democracia, entendida num modelo constitucional, não
se fundamenta em valores compartilhados, legitimando-se através da interação
219 É proposto, pela teoria discursiva, um novo conceito de democracia que supera as visões esgotadas e insuficientes do modelo liberal e republicano. É a “democracia deliberativa procedimental”. HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 25. 220 Habermas, por sua vez, entende que “um paradigma jurídico é deduzido, em primeira linha, das decisões exemplares da justiça, sendo geralmente confundido com a imagem implícita que os juízes formam da sociedade.” E mais adiante, fala que “paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de Direito ao contexto da sociedade como um todo. Eles lançam luz sobre as restrições e as possibilidades para a realização de Direitos fundamentais, os quais enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 128 e 181. 221 Explica: “Com isso, o modelo do contrato é substituído por um modelo do discurso ou da deliberação: a comunidade jurídica não se constitui através de um contrato social, mas na base de um entendimento obtido através do discurso.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 309. 222 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 230-247. E também, WARAT, PÊPE, Filosofia do Direito, op. cit., p. 77.Com já visto no item 1.2.4.1, para Habermas a moralidade está “embutida no direito positivo” e “possui força transcendente de um processo que se regula a si mesmo e que controla sua própria racionalidade”. HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 236 e 243. 223 STEIN, Epistemologia e crítica da modernidade, op. cit., p.29. 224 Habermas explica: “[...] após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem sucedidas. [...] Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 19-20.
121
comunicativa estabelecida por meio de procedimentos legislativos que garantam a
formação democrática das manifestações opinativas populares225.
Habermas utiliza sua ‘teoria do discurso’, tratando de um ‘agir
comunicativo’226 legitimador da vontade coletiva, como referencial teórico para
sustentar a defesa de um novo paradigma, o ‘procedimental-deliberativo’, que atribui
ao poder legislativo a função central227 do Estado Democrático de Direito228. O poder
judiciário, neste caso, ficaria relegado às funções garantidoras dos procedimentos
legislativos de formação majoritária da vontade.
Em sua tese, o filósofo de Frankfurt pressupõe a existência de uma
comunidade ideal de sujeitos que viabilizaria a ocorrência de ações articuladas de
comunicação - após satisfeitos alguns pressupostos idealizantes229. Explica, que na
prática a relação de comunicação intersubjetiva e o decorrente entendimento desta
relação, são medidos por pretensões de validade que levam a tomada de decisão
em termos binário de sim/não. Neste sentido, o agir comunicativo acena para um
processo de argumentação em que os sujeitos que interagem justificam suas
pretensões de validade perante uma comunidade ideal que, segundo Apel230, deve
ser considerada dentro de sua situação social real.231
225 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p. 308. 226 Explica que “o conceito ‘agir comunicativo’, que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. [...] O conceito elementar ‘agir comunicativo’ explica como é possível surgir integração social através de energias aglutinantes de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 35-36, 46. 227 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. II, op. cit., p.125. 228 Quanto ao conceito de Estado Democrático de Direito, Cruz explica “[...] entendido como aquele [Estado] que intervém nos domínios econômico, social e cultural, obedecidos os parâmetros mínimos de cidadania política, justiça, representatividade, legalidade e legitimidade” CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. 3.ed. Curitiba: Juruá Editora, 2003. p. 153. 229 Tais pressupostos idealizantes são: “[...] la suposición - común a todos nosotros – de un mundo de objetos que existen independientemente; la suposicón recíproca de racionalidad o ‘responsabilidad’; la incondicionalidad de las pretensiones de validez que, como la verdad o la rectitud moral, van más allá de cualquier contexto particular; y las exigentes presupociones de la argumentación que obligan a los participantes a descentrar sus perspectivas interpretativas”. HABERMAS, Jürgen. Acción comunicativa y razón sin transcendencia. Trad. Pere Fabra Abat. Barcelona: Paidós, 2002. p. 20. 230 Karl-Otto Apel, preocupado em fundamentar filosoficamente uma ‘ética da responsabilidade solidária-intersubjetiva’, trata, a partir de uma visão pragmático-transcendental (de influência Kantiana) de uma comunidade de comunicação (lingüística) real. E este é o ponto de convergência com a perspectiva de uma comunidade ideal em Habermas. Explica Apel: “É que agora se manifesta que, de um lado, o sujeito do possível consenso de verdade da ciência não é ‘pura consciência’
122
O procedimentalismo habermasiano discorda, insurgindo-se aos
posicionamentos de Alexy, da denominada “jurisprudência de valores”232 adotada
por algumas cortes européias, especialmente a alemã. Defende que a única e
legítima forma de considerar justificações de conteúdo moral é através do processo
legislativo, por inspiração do ‘princípio democrático-discursivo’233. Por isso,
Habermas entende que no Estado Democrático de Direito, os Tribunais
Constitucionais devem assumir uma postura de compreensão procedimental da
Constituição. 234
Neste sentido, o Judiciário, mormente o ‘Tribunal Constitucional’,
dever-se-ia libertar da visão ‘autoritária’ que entende a Constituição como “ordem
concreta de valores” 235, para concebê-la como instrumento dotado de “condições
processuais da gênese democrática das leis que asseguram a legitimidade do
Direito”.236 O poder judiciário, nesta percepção, deveria apenas “zelar pela garantia
de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a
natureza dos seus problemas e a forma de sua solução.”237
extramundana, mas a sociedade histórico-real; e, de outro lado, que a sociedade histórico-real só pode ser adequadamente entendida, quando encarada como sujeito virtual da ciência, incluindo-se as ciências sociais, e quando sua realidade histórica for sempre reconstruída, ao mesmo tempo, de maneira empírica e normativo-crítica, em vista do ideal da ilimitada comunidade de comunicação, a ser concretizado na sociedade”. APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994. Não por demais registrar que, muito embora Apel e Habermas convirjam neste ponto, ambos os autores partem de lugares diferentes em suas análises: Apel parte de uma transcendência ‘apriori’, de influência Kantiana, e Habermas parte de uma perspectiva ‘aposteriori’ mediada pela linguagem. Conferir em STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 231 HABERMAS, Direito e Democracia,Vol. II, op. cit., p. 50-51. 232 Discorda por entender que os valores carecem de caráter deontológico, e porque “normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 317. 233 OLIVEIRA, Direito Constitucional, op. cit., p. 69. 234 Diz o autor: “[...] o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema de legitimidade do controle jurisdicional da constituição.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 326. 235 “Diferenciando Direito e Moralidade, Habermas afirma que o Direito é duas coisas ao mesmo tempo: um sistema de conhecimento e um sistema de ação. Podemos compreendê-lo simplesmente tanto como um texto que consista de proposições normativas e interpretações, quanto podemos vê-lo como uma instituição, isto é, como um complexo de ação normativamente regulado”. OLIVEIRA, Direito Constitucional, op. cit., p. 69. 236 HABERMAS, Direito e Democracia, Vol. I, op. cit., p. 321 e 326. 237 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 44.
123
Na mesma senda, Garapon acredita ser negativa a ingerência
interventora do poder judiciário sobre a sociedade e a política, considerando que
este processo causa o inevitável enfraquecimento da democracia representativa.
Para ele,
O excesso de Direito pode desnaturalizar a democracia; o excesso de defesa, paralisar qualquer tomada de decisão; o excesso de garantia pode mergulhar a justiça numa espécie de adiamento ilimitado. De tanto ver tudo através do prisma deformador do Direito, corre-se o risco de criminalizar os laços sociais e de reativar o velho mecanismo sacrificial. A justiça não pode se colocar no lugar da política; do contrário, arrisca-se a abrir caminho para uma tirania das minorias, e até mesmo para uma espécie de crise de identidade. Em resumo, o mau uso do Direito é tão ameaçador para a democracia como seu pouco uso.238
Constata o magistrado francês, com certa preocupação, que ao longo
dos últimos tempos o centro gravitacional da democracia tem sofrido um manifesto
deslocamento para um lugar externo ao poder legislativo239. Tem havido, segundo
ele, uma forte articulação entre os pressupostos de justiça e de democracia,
especialmente com a ampliação da participação do Judiciário na vida pública, de
modo que a ‘justiça’ tem fornecido à democracia seu referencial de idoneidade,
marcadamente registrado em expressões como imparcialidade, processo,
transparência, contraditório, neutralidade, etc.240
A primazia do Direito sobre a ação política, explica Garapon, que
personifica nos juízes a figura de ‘guardiões da moral pública’, ou ‘guardiões das
promessas’, se mostra equivocada e nociva à sociedade, especialmente porque a
magistratura não estaria preparada para desempenhar tal papel. O ativismo jurídico
que prega uma ‘pseudojustiça redentora’ e transmite a imagem de um juiz ultra-
238 GARAPON, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. 2.ed.Rio de Janeiro: Renavan, 2001. p. 53. 239 Não por demais lembrar, que na França o poder judiciário não é forte, ocupando o Legislativo posição central na cultura político-democrática daquele país. Por isso, diante da forte tradição liberal, e da permanente desconfiança no Estado, a dificuldade em se defender uma posição substancialista no contexto francês. 240 Diz Garapon: “O espaço simbólico da democracia emigra silenciosamente do Estado para a Justiça. Em um sistema provedor, o Estado é todo-poderoso e pode tudo preencher, corrigir, tudo suprir. Por isso, diante de suas falhas, a esperança se volta para a justiça. É então nela, e portanto fora do Estado, que se busca a consagração da ação política. O sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e pela perda do espírito público.” GARAPON, O juiz e a democracia op. cit., p. 45, 47-48.
124
independente e desvinculado da instituição a que pertence, tão somente poderá
acarretar sérias fissuras às bases da democracia .241
É preciso romper, alerta o autor, com a crença de que através do
poder judiciário poder-se-ia alcançar um acesso direto e redentor a uma verdade
sacralizada judicialmente, que a todos ‘libertaria’ frente à ‘escravidão’ proporcionada
por um Legislativo em crise, e um Estado insuficiente, inefetivo e esgotado. Não
seria o juiz, com os riscos de súbitos ‘desvios populistas’ e de pretensões
messiânicas, normalmente impulsionadas pelas artimanhas da mídia televisiva242,
que salvaria a democracia. Crê o autor, que somente com procedimentos
deliberativos livres de formação da opinião pública, sem interferência de ativismos
judiciários e de uma mídia monopolizadora da informação - aliados ao fortalecimento
da cidadania através de uma tomada de consciência política -, poder-se-ia
restabelecer um padrão racional e coerente de democracia.243
Assim sendo, como visto, entendem os procedimentalistas que a
invasão da política pelo Direito, mesmo que em nome de pretensões igualitárias,
provocariam conseqüências indesejadas, tais como à perda de liberdade, ao gozo
passivo de direitos, à privatização da cidadania, e ao paternalismo estatal,
conduzindo a uma cidadania passiva, em nada propícia a uma cultura cívica e às
instituições da democracia. 244
Para o eixo procedimentalista, segundo Vianna, a crescente
presença do Direito na política “seria apenas um indicador, que deveria encontrar
reparação a partir de uma política democrática que viesse a privilegiar a formação
de uma cidadania ativa”245. O autor atribui o problema ao predomínio por décadas do
241 No seu entendimento o juiz não pode ser visto jamais como figura desatrelada à instituição ou corporação a que pertença. O que existe, diz ele, é o protagonismo judiciário e não judicial. GARAPON, O juiz e a democracia op. cit., p. 55-56. 242 Não por demais lembrar que, em Bordieu, “os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito do real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também grupos.” BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 28. 243 Completa: “o enfraquecimento do Estado e a fantástica tribuna que a mídia oferece despertam uma mentalidade de Cruzadas numa parte da magistratura [...].”GARAPON, O juiz e a democracia op. cit., p. 66-67, 70, 148. 244 VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 23-24. 245 VIANNA, Luiz Weneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 24.
125
paradigma da igualdade próprio do modelo do Estado de bem-estar, que teria
engendrado um “cidadão-cliente’ dependente do aparato estatal. Na busca
incessante pela igualdade em detrimento da liberdade, se ampliou cada vez mais o
Estado e sua estrutura burocrática, favorecendo a “privatização da cidadania”246.
As pretensões igualitárias, que reclamam ampliação do Estado em
nome de uma justiça distributiva, implicariam a perda de democracia, acarretando a
“estatalização dos movimentos sociais, a decomposição da política, erosão da lei
como expressão da soberania popular, politização da razão jurídica e sua contra-
face necessária: judicialização da política”247. Para os procedimentalistas, a invasão
da política e da sociedade pelo Direito decorrente do agigantamento do poder
judiciário provoca um perigoso desestímulo para uma ação voltada para fins cívicos,
fazendo sucumbir a proposta de uma cidadania ativa. 248
Deste modo, o poder judiciário deveria, segundo tal corrente de
pensamento, restringir-se ao mero papel de garante do circuito ‘sociedade civil –
partidos – representação – formação da vontade majoritária’249, assumindo uma
postura de total ‘neutralidade política’250. Tal posição, no entanto, é diametralmente
objetada pelos defensores do substancialismo que, como se poderá constatar, re-
situam o Judiciário ao centro da estrutura político-democrática.
2.3.2 Substancialistas: eixo Cappelleti-Dworkin
O eixo substancialista é capitaneado por Mauro Cappelletti e Ronald
Dworkin251, e representado no Brasil por autores como Paulo Bonavides, Celso
Antônio Bandeira de Mello, Eros Grau, Fabio Comparato, Lenio Luiz Streck,
Alexandre Morais da Rosa, Luiz Werneck Vianna, entre outros. Todos eles se
246 VIANNA, Luiz Weneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 24. 247 VIANNA, Luiz Weneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 24. 248 VIANNA, Luiz Weneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 24. 249 VIANNA, Luiz Weneck et al. A judicialização da política, op. cit., p. 24. 250 Souza Neto, tratando o eixo procedimentalista como “Constitucionalismo Democrático” que se opõe ao “Constitucionalismo Social-Dirigente”, explica que “uma teoria da constituição restrita ao âmbito da neutralidade política entende que o papel da constituição é garantir apenas as condições para a instauração de um contexto democrático. Qualquer restrição às decisões majoritárias deve ser justificada a partir da própria democracia.” O autor ainda menciona que o conceito de ‘neutralidade política’ ganhou “centralidade no debate filosófico político atual através da obra de John Rawls.” SOUZA NETO, O dilema constitucional contemporâneo, op. cit., p. 120 e 123. 251 Considera-se Dworkin ‘em parte’ substancialista por decorrência do ‘lugar’ que o poder judiciário ocupa no âmbito jurídico do Common Law. Nos países anglo-saxões, como se sabe, o Judiciário já é culturalmente muito forte.
126
posicionam, cada qual ao seu modo, de maneira a entenderem que o poder
judiciário não deve assumir uma postura passiva diante da sociedade, constituindo-
se em verdadeiro guardião/garantidor da efetividade constitucional.
Cappelletti252 corrobora a tese substancialista ressaltando a
importância do poder judiciário através do que denomina ‘Direito Judiciário’253, que
fora construído pela jurisprudência interpretativa e que seria resultado de um longo e
gradual processo de expansão deste poder. Expansão esta, impulsionada pelo
agigantamento do Direito legislativo no Estado moderno, que fora estendido a
domínios antes ignorados pela lei254.
Esta expansão do poder judiciário em relação ao poder legislativo255,
resultado do próprio e paralelo crescimento do Estado frente à sociedade, pode ser
em grande parte também atribuída ao avanço do papel interpretativo-criador do
juiz256. Conforme Cappelletti, “encontra-se implícito, em outras palavras, o
reconhecimento de que na interpretação judiciária do Direito legislativo está ínsito
certo grau de criatividade”257.
Crendo numa função criativa dos magistrados em sua missão
judicante, que se torna mais visível no preenchimento de lacunas legais, ou de
insuficiências da lei positiva, Cappelletti identifica como elemento fundamental desta
função a discricionariedade, pois, criar, segundo o autor, corresponderia à ‘decisão
de escolha’. Contudo, adverte que discricionariedade não consiste necessariamente
252 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris Editor, 1999. 253 Explica Cappelletti, que a expressão Direito judiciário ou judiciary law, “foi usada há mais de século e meio pelo grande filósofo e jurista Jeremy Bentham para definir (e condenar) o fato de que, no ordenamento inglês, ‘embora o juiz, como se diz, nominalmente não faça senão declarar o Direito existente, pode-se afirmar ser em realidade criador do Direito’.” CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 17-18. 254 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 20. 255 Cittadino já fala em um ‘Direito judicial’ frente a um ‘Direito legal’, diante da produção interpretativo-construtivista por parte dos tribunais. CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002, p. 18. 256 Crê o autor, contudo, que “a maior intensificação da criatividade da função jurisdicional constitui típico fenômeno do nosso século.” CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 31. 257 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 20.
127
em arbitrariedade, e que a atividade judicial deve ser limitada de modo a preservar a
juridicidade das interpretações (criações) judiciais.258
A função interpretativa do juiz, neste contexto, é vista como resultado
de um processo complexo que exige a devida articulação entre Direito, moral,
política, e dosada eqüidade, aliada a uma postura interdisciplinar, que faça o Direito
dialogar com outras áreas do conhecimento humano. Bem explica Cappelletti:
Desnecessário acentuar que todas essas revoltas conduziram à descoberta de que, efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, e de que o juiz, moral e politicamente, é bem mais responsável por suas decisões do que haviam sugerido as doutrinas tradicionais. Escolha significa discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração e ‘balanceamento’; significa ter presentes os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha; significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise lingüística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da política e da ética, da sociologia, e da psicologia.259
Desta forma, segundo o autor, o magistrado não poderia mais atuar
com base numa concepção clássico-positivista do Direito, crendo ainda numa norma
sem conteúdo e numa neutralidade sobre-humana de sua interpretação e de sua
decisão final260. Tal postura se tornaria incompatível com a abertura proporcionada
pelo Direito para que realize escolhas discricionárias. Nestas circunstâncias, seriam
envolvidas “tanto sua responsabilidade pessoal, moral e política, quanto
jurídica[...]”261.
O que se percebe, nas últimas décadas, é uma expressiva
intensificação do ativismo judicial, que Cappelletti atribui à proporcional insuficiência
do ordenamento dogmático existente, ampliando-se sobremaneira a atividade
discricionária do juiz em sua função interpretativa e criadora. Tal atividade visa
258 Explica: “[...] o juiz, embora inevitavelmente criador do Direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais.” CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 24. 259 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 33. 260 Fortemente marcada pela influência do normativismo lógico de Hans Kelsen. 261 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 33.
128
aproximar o Direito da realidade social, tentando oferecer respostas mais
condizentes com os anseios da população.262
Ressalta ainda, que, apesar de todo o significativo avanço e
crescimento deste ‘terceiro gigante’263, não se poderia de modo algum equiparar
juízes a legisladores com o pretenso argumento de que a função jurisdicional
terminaria por se igualar à legislativa, ou que os juízes acabariam por invadir o
domínio do poder legislativo. Na sua opinião, estes são papeis que não se
confundem. Explica:
[...] os juízes estão constrangidos a serem criadores do Direito, ‘law-makers’. Efetivamente, eles são chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o Direito. Isto não significa, porém, que sejam legisladores. [...] Mas diverso é o modo, ou se se prefere o procedimento ou estrutura, desses dois procedimentos de formação do Direito, e cuida-se de diferença que merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz bem pode ser criativo, dinâmico, ‘ativista’ e como tal manifestar-se; no entanto apenas o juiz ruim agiria com as formas e as modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz.264
Contudo, Cappelletti aduz que este processo de interpretação criativa
por parte dos juízes é considerado por muitos como indevida ingerência no âmbito
político, por entenderem que tal postura de criação afigura-se “inaceitável”, eis que
“antidemocrática”265. O autor discorda deste posicionamento, afirmando, neste
contexto, que a noção de democracia não pode ser reduzida a “uma simples idéia
majoritária”266/267, e afirma:
262 O autor ressalta que “[...] quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do Direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes.” E completa: “vimos que a criatividade constitui um fator inevitável da função jurisdicional, e que existem, por outro lado, importantes razões para o acentuado desenvolvimento de tal criatividade em nosso século, correspondendo a características e exigências fundamentais de nossa época, econômicas, políticas, constitucionais e sociais.” CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 42 e 73. 263 É assim que Cappelletti se refere ao ‘emergir do poder judiciário’. CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 49. 264 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 73-74. 265 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 92-93. 266 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 107.
129
Democracia como vimos, significa também participação, tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria, pode dar uma grande contribuição à democracia; e para isso em muito pode colaborar um judiciário suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de assegurar a preservação do sistema de checks e balances, em face do crescimento dos poderes políticos, e também controles adequados perante os outros centros de poder (não governativos ou quase-governativos), tão típicos das nossas sociedades contemporâneas.268
Destarte, entende o autor italiano que o Judiciário pode contribuir em
muito para o aumento da capacidade de incorporação do sistema político, e
necessita assumir uma nova postura diante da sociedade. Deve, sendo ativo,
dinâmico e criativo, oferecer respostas às demandas crescentes de nossa complexa
sociedade, viabilizando o tão almejado acesso à justiça269, especialmente aos mais
necessitados. Deve aproximar o Direito da realidade social e, na medida do possível,
suprir as carências do poder executivo, e de um legislativo270 que tornou-se
“particularmente lento, obstruído e pesado”271.
Dworkin, em sua posição liberal-contratualista272 (em grande parte
por influência de John Rawls273), e escrevendo no âmbito do ‘common law’, também
267 No entendimento de Cappelletti, portanto, a idéia ou o conceito que se tem de democracia não pode ser reduzida a uma simples noção de consensos em maiorias, vez que, “como se comprovaria na experiência contemporânea, não se pode entender a criação da lei como resultado de um procedimento substancialmente democrático.” VIANNA, A judicialização da política, op. cit., p. 34. 268 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 107. 269 Segundo o autor a expressão acesso à Justiça “serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus Direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. [...] Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.” CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 2002. p. 08. 270 Em verdade, Cappelletti, não aceita a tese de que o Poder Executivo e o Poder Legislativo representem instituições capazes de canalizar a vontade popular, eis que, funcionariam como estruturas políticas vulneráveis, em que grupos variados buscariam vantagens, “manobrando entre vários centros de poder, [e] o que daí resulta não é necessariamente a enunciação da vontade da maioria [...] e sim, freqüentemente, o compromisso entre grupos com interesses conflitantes”. VIANNA, A judicialização da política, op. cit., p. 34. 271 CAPPELLETTI, Juízes Legisladores?, op. cit., p. 131. 272 Importante registrar que o liberalismo em Rawls e Dworkin não se identifica com o liberalismo clássico, especialmente o trabalhado por John Locke que, diferente dos demais contratualistas como Hobbes e Rousseau, entende que o Estado surge como necessidade de manter e consolidar os Direitos naturais existentes no estado de natureza. LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Editora, 1973. p. 35 e seguintes. Calsamiglia explica que “algunos autores ham interpretado la obra de Dworkin como una nueva versión del jusnaturalismo. [...] Sin embargo, Dworkin no es un autor jusnaturalista porque no cree en la existencia de un derecho natural que está constituido por un conjunto de principios unitarios, universales y inmutables. [...] El autor americano intenta construir
130
se aproxima da tese substancialista por conceber a função judicial e a jurisprudência
por ela produzida, como importante instrumento de concretização da comunidade
política, sempre atrelado aos ditames constitucionais-pactuais.
A tese dworkiniana procura romper com a tradição positivista do
Direito, e tem como ponto de partida o ataque ao projeto teórico de Hart,
combatendo a visão do Direito como conjunto de proposições cuja verdade estaria
atrelada a padrões convencionais de reconhecimento. O Direito, segundo Dworkin,
seria muito mais do que meras regras cuja validade dependeria da aceitação da
comunidade como um todo.274
Insurge-se, o autor anglo-saxão, contra qualquer posicionamento
(mais especialmente o positivista), que afaste ou desarticule por completo o Direito e
a moral. Intenta, assim, construir um novo paradigma do Direito275, uma terceira via
entre as propostas das correntes jusnaturalistas e juspositivistas, que se
fundamentaria no modelo reconstrutivo de Rawls.276 Trata-se de sua teoria da
integridade do Direito que, como já visto anteriormente277, pretende um Direito
aplicado através da conjugação de regras e de princípios (standards de conteúdo
moral) que se consolidariam na comunidade ao longo da história sempre
considerando seus valores, costumes e tradições.
Concebendo os princípios como normas deontológicas, que não
teriam somente caráter axiológico, o professor anglo-saxão propõe um novo modelo
una tercera via – entre el jusnaturalismo y el positivismo – fundamentada en el modelo reconstructivo de Rawls.” CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 11. Nas palavras do próprio autor, que defende um novo tipo de liberalismo: “los capítulos que siguem definem e defiedem una teoria liberal del derecho. Sin embargo, critican severamente otra teoría, a la que en general se considera liberal; una teoría que ha sido tan popular e influyente que la llamaré la teoria jurídica dominante.” DWORKIN, Los Derechos en Serio, op. cit., p. 31-37. 273 John Rawls, no intuito de romper com o pensamento tradicional utilitarista e de elevar a um nível mais alto de abstração o conceito tradicional do ‘contrato social’ de Locke, Rousseau e Kant, entende a justiça como ‘eqüidade’, e pensa numa sociedade bem ordenada que possibilitaria uma cooperação justa entre os sujeitos de Direito, iguais e livres. Explica Rawls: “A justiça como eqüidade começa com a idéia de que, quando princípios comuns são necessários e trazem vantagens para todos, eles devem ser formulados a partir do ponto de vista de uma situação inicial de igualdade, adequadamente definitiva, na qual cada pessoa é representada de maneira eqüitativa.” RAWLS, Uma teoria da justiça, op. cit., p. 214. 274 Vide Subcapítulo 1.2. 275 Quanto aos paradigmas, Dworkin explica: “[...] os paradigmas serão tratados como exemplos concretos aos quais qualquer interpretação plausível deve ajustar-se, e os argumentos contra uma interpretação consistirão, sempre que possível, em demonstrar que ela é incapaz de incluir ou explicar um caso paradigmático.” DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 88. 276 CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 11. 277 Vide Capítulo Primeiro, item 1.2.4.3.
131
de função judicial que contrasta em muito com as modalidades tradicionais. Trata-se
da polêmica tese da ‘resposta correta’ frente ao que ele denomina de ‘hard
cases’278.279 Com a teoria da ‘resposta correta’, Dworkin objetiva desconstruir a tese
hartiana da ‘textura aberta’ do Direito que entende que, diante de casos difíceis280, o
juiz teria uma discricionariedade, limitada e não muito afastada da lei, para decidir
num ou noutro sentido.281 Pretende Dworkin, que a interpretação do Direito não
esteja, como quer o convencionalismo, presa ao passado, ou como quer o
pragmatismo, presa ao futuro282.
Afirma o autor, que o juiz, num esforço hercúleo283 para encontrar a
única resposta certa à demanda que lhe é submetida à apreciação, deve levar em
consideração os princípios da comunidade em questão e a historicidade de modo a
justificar a sua decisão para o que seria melhor possível naquele caso. E nesta
função judicial, estreita-se a relação entre o Direito e a política. Afirma Dworkin que
[...] a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou partidária, e uma crítica do Direito que não compreenda essa diferença fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda.284
278 Os hard cases seriam os casos difíceis, aqueles casos em que não haja previsão na legislação para o solucionamento de determinada demanda judicial. Dworkin cita, entre outros, como exemplo, o caso Elmer, onde conta: “Elmer assassinou o avô por envenenamento em Nova York, em 1982. Sabia que o testamento deixava-o com a maior parte dos bens do avô e desconfiava que o velho, que voltara a casar-se havia a pouco, pudesse alterar o testamento e deixa-lo sem nada. O crime de Elmer foi descoberto; ele foi declarado culpado e condenado a alguns anos de prisão. Estaria ele legalmente habilitado a receber a herança que seu avô lhe deixara no último testamento?” DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 20. 279 CALSAMIGLIA, Prólogo, op. cit., p. 20. 280 Streck entende como inapropriada a separação entre hard cases e easy cases: “Casos fáceis e casos difíceis partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes é condição de possibilidade: a pré-compreensão. Esse equívoco de distinguir easy e hard cases é cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teorias discursivo-argumentativas, que vão desde Habermas e Gunther até Alexy e Atienza, para citar apenas estes. [...] Também Dworkin faz indevidamente essa distinção entre casos fáceis e casos difíceis. Mas o faz por razões distintas.” STRECK, A atualidade do debate da crise, op. cit., p. 251 e 232. E também conferir: STRECK, Verdade e Consenso, op. cit., p. 197 e seguintes. 281 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiz Carlos Borges. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 180. 282 DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p.271. 283 A resposta única e correta seria alcançada, como já visto, por um ‘Juiz Hércules’, de capacidades sobre-humanas. DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 287. 284 DWORKIN, Uma Questão de Princípio, op. cit., p. 217.
132
Para Dworkin, o sentido do Direito, reconhecido como prática
argumentativa285, se daria, como já visto, através de um processo hermenêutico-
reconstrutivista resguardado pela jurisprudência principiológica que manteria viva e
legítima a estrutura política da comunidade. Neste processo, o juiz, em analogia ao
processo interpretativo literário, figuraria como um romancista, que interpretando de
modo a não criar o Direito, escreveria a cada decisão um capítulo de um romance
em cadeia286 já iniciado por outros, guardando coerência com o que já fora escrito
no passado, apenas atualizando-o.287
Pelo processo hermenêutico de Dworkin, que rejeita uma visão
historicista do Direito, o juiz não estaria atrelado à intenção do legislador quando da
aprovação de determinada legislação, e sim estaria comprometido, com
responsabilidade política288, em interpretá-las, pelo princípio da integridade289, no
sentido de torná-las melhores e atualizá-las290. Adentraria, por óbvio, no aspecto
político daquela decisão legislativa, eis que, por insuficiência ou omissão, não
estaria tal diploma legal conseguindo oferecer resposta ao caso concreto291.
Andariam, pois, Direito e política, de braços dados neste processo democrático de
interpretação reconstrutivista. O juiz figura como garante dos ideais e meta-valores
285 DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 17. 286 DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 275. 287 DWORKIN, Uma Questão de Princípio, op. cit., p. 235 e seguintes. 288 Afirma Streck: “Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma ‘responsabilidade política’ dos juízes. Os juízes têm obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os Direitos fundamentais e sociais [...]”. STRECK, A atualidade do debate da crise, op. cit., p. 250. 289 Este princípio prega que, “[...] até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas.” DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 261. 290 DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 378. 291 Dworkin, conta que o Juiz Hércules, tendo diante de si o caso snail darter, precisando decidir se a Lei das Espécies Ameaçadas concede ao Ministro do Interior o poder de barrar um grande e quase concluído projeto federal para preservar um peixe pequeno, e do ponto de vista ecológico, nada interessante, “[...] tratará o Congresso como um autor anterior a ele na cadeia do Direito, embora um autor com poderes e responsabilidades diferentes dos seus e, fundamentalmente, vai encarar seu próprio papel como o papel criativo de um colaborador que continua a desenvolver, do modo que acredita ser o melhor, o sistema legal iniciado pelo Congresso.” Mas, faz a seguinte ressalva: “[...] Hércules respeita a integridade do texto legal, de modo que não irá pensar que aprimora uma lei só por projetar nela suas próprias convicções; respeita a equidade política, por isso não irá ignorar totalmente a opinião pública tal como esta se revela e exprime nas declarações ligadas ao processo legislativo”. DWORKIN, O Império do Direito, op. cit., p. 17, 377 e 409.
133
da comunidade – e neste sentido, percebe-se certa convergência entre Dworkin com
o garantismo jurídico.292
É claro que, conforme adverte Dworkin, deve-se atentar às objeções
tradicionais ao poder de criação jurídica por parte do magistrado. A primeira objeção,
é a de que os juízes não possuiriam legitimidade democrática para adentrar no
campo político, eis que não eleitos pela comunidade. E a segunda objeção é a de
que os juízes, em criando o Direito, estariam retroagindo efeitos de uma previsão
normativa que, à época dos fatos, inexistia. No entanto, Dworkin afirma que tais
objeções perdem o sentido quando o juiz julga pautado por princípios. Utilizando os
princípios como embasamento normativo, os juízes estariam justificando
adequadamente suas decisões, de modo a engendrar soluções corretas frente às
demandas de sua comunidade.293
No Brasil, entre os representantes do substancialismo temos
Bonavides, que trabalha na perspectiva de uma constituição ‘aberta’, e defende
como necessário o processo de judicialização da política - e, em certa medida, da
politização do Judiciário -, especialmente em países periféricos marcados pela
exploração, pela alienação, e pela manipulação por parte das elites dominantes.
Explica o autor:
A Constituição aberta levanta, entre outras, a questão medular da validade da democracia representativa clássica e tradicional ao modelo vigente na América Latina, de natureza presidencialista. [...] Sem meios de produzir legitimidade capaz de manter os titulares do poder no exercício de uma autoridade efetivamente identificada com os interesses da cidadania, o bem-estar, a justiça e a prosperidade social, a velha democracia representativa já se nos afigura em grande parte perempta, bem como desfalcada da possibilidade de fazer da Constituição o instrumento da legítima vontade nacional e popular. A Constituição aberta, que põe termo a uma ordem constitucional assentada sobre formalismos rígidos e estiolantes, somente se institucionalizará, a nosso ver, em sociedade por inteiro franqueada à supremacia popular. De tal sorte que a politização da juridicidade constitucional dos três poderes possa fazer assim
292 Luiz Henrique Cademartori, em análise a posição de Dworkin, afirma: “[...] a idéia de democracia desse autor é convergente com a concepção garantista. Isto porque, para ele nenhuma comunidade é democrática, nem decisões e eleições majoritárias são legítimas, se a comunidade e suas decisões não respeitarem os Direitos fundamentais de todos os cidadãos.” CADEMARTORI, Luiz Henrique. Discricionariedade Administrativa. Curitiba: Juruá, 2003. p. 106. 293 DWORKIN, Los Derechos em serio, op. cit., p. 150-152.
134
legítimo o sistema de exercício da autoridade, com o funcionamento dos mecanismos de governo transferidos ao arbítrio do povo.294
Subscrevendo, em parte, o modelo substancialista, Streck295 é
taxativo ao dizer que os posicionamentos procedimentalistas devem ser fortemente
combatidos, pois ao refutarem o paradigma do Estado Social, deixam de lado a idéia
de Estado Democrático de Direito, que consiste num “plus normativo” em relação ao
paradigma promovedor do Welfare State. E este plus normativo, que representa
implicitamente a perspectiva constitucional de realização do Estado social, afirma o
autor, não está exaurido, como querem muitos procedimentalistas.296
Streck ainda observa uma flagrante aproximação e convergência
entre a teoria garantista de Luigi Ferrajoli e o substancialismo, pela importância e
valor que os autores e pensadores substancialistas estabelecem à Constituição,
“entendida em seu todo principiológico, e pela rejeição das posturas sistêmicas.” O
autor, ainda explica:
Ferrajoli fala de uma democracia constitucional, fruto de uma mudança radical de paradigmas do Direito, mudança para a qual não tomamos ainda suficiente consciência. Esse câmbio paradigmático que fez com que a Constituição fosse alçada a posição de garantia da divisão de Poderes e dos Direitos fundamentais, se tem produzido como uma verdadeira invenção do século XX, através da rigidez das constituições e, portanto, da sujeição ao Direito de todos os Poderes, incluindo o Poder Legislativo, tanto no plano do Direito interno como do Direito internacional; portanto, sua sujeição ao imperativo da paz e dos princípios de justiça positiva, os primeiros dentre todos os Direitos fundamentais assim estabelecidos nas constituições dos Estados, assim como naquele embrião de constituição do mundo, que é a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem.297
294 BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 9-10. 295 Importante registrar que Lenio Streck, atualmente, passa a defender a possibilidade de uma única resposta correta quando do julgamento de casos difíceis, em parte, por inspiração Dworkiniana. Afirma Streck: “[...] é possível dizer, sim, que uma interpretação é correta, e a outra é incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa ordem”. STRECK, A atualidade do debate, op. cit., p. 247. E ainda alhures: “É possível alcançar respostas hermeneuticamente adequadas (corretas). Em outras palavras, o intérprete não pode, por exemplo, atribuir sentidos despistadores da função social da propriedade, do direito dos trabalhadores à participação nos lucros da empresa, etc. Não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.”. STRECK, Verdade e Consenso, op. cit., p. 203. 296 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 19. 297 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 46-47.
135
O poder judiciário, inserido no modelo de Estado Democrático de
Direito, passa a assumir função de grande importância, especialmente no que diz
respeito à jurisdição constitucional. Deve, diferentemente da postura absenteísta
própria do modelo liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática
jurídica brasileira, ser intervencionista e atuar no sentido de fazer efetivo os Direitos
sociais inscritos na Constituição da República.298
No Brasil, como bem adverte Vianna, “uma república que nasce sem
cidadãos, onde o Estado é tudo porque a sociedade é nada”, a iniciativa de restaurar
e revalorizar a sociedade não pode ficar adstrita a métodos usuais de formação da
opinião pública, dominados que estão pelo ‘clientelismo’ e pela ‘patronagem’. Deve
sim, o Judiciário, sem se substituir à política, preencher o imenso vazio deixado
pelos demais poderes da república, de modo a “conceder ‘consistência democrática
a [um] excedente de soberania popular que escapa à expressão do sufrágio.”299
Calcado em parte no aporte garantista de Luigi Ferrajoli, e também
defensor do substancialismo300, Rosa explica que com o deslocamento do foco de
decisão para o poder judiciário, a esfera judicial assume papel de mediadora na
realização dos Direitos fundamentais, fazendo desaparecer os ‘feudos decisórios’ no
âmbito do Estado Democrático de Direito, passando a legitimidade a ser aferida “no
processo hermenêutico realizado no controle de validade, formal e material, do
ordenamento jurídico”. 301
Neste pensar, o Judiciário, sem ser encarado, com diz Rosa, como
panacéia dos males sociais302, deve assumir, mormente nos países periféricos,
papel de incansável guardião da Constituição, especialmente, contra maiorias
298 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 49-50. 299 VIANNA, A judicialização da política, op. cit., p. 258. 300 A visão substancialista de Alexandre Morais da Rosa, como já visto, articula a proposta de Luigi Ferrajoli a respeito de Direito Fundamentais, com a ‘Ética da Libertação’ de Enrique Dussel, de modo a preencher o conteúdo nuclear da Teoria do Garantismo com um critério material que priorize e garanta a “vida, sua reprodução e desenvolvimento”, especialmente quando se considera a realidade sócio-econômica dos países periféricos. Conferir em ROSA, A vida como critério dos Direitos fundamentais : Ferrajoli e Dussel. op. cit., p. 13-54. 301 ROSA, Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material, op. cit., p. 128. 302 Insiste Rosa: “Não é verdade – e nem se está defendendo – que o Poder judiciário é a salvação de toda a situação social. Todavia, exigir o fazer acontecer do Poder Legislativo, dos administradores públicos e dos próprios membros do Poder judiciário é o grande papel do ator jurídico, consciente de sua função democrática.” ROSA, Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material, op. cit., p.109.
136
eventuais. Maiorias estas que, especialmente no Brasil onde o Legislativo funciona
calcado num sistema representativo esgotado e fadado ao fracasso, são tão
freqüentes para atender anseios que nem sempre representam o interesse público
coletivo.
Logo, como visto, a concepção substancialista oferece novo olhar e
estabelece novo paradigma sobre a lógica da divisão de poderes própria do
referencial liberal do Direito303. E com este novo olhar, com vistas ao projeto ‘social’
preconizado pelo modelo do Estado Democrático de Direito, deve o poder judiciário
representar verdadeiro mecanismo de transformação social, de modo a garantir e
efetivar os Direitos fundamentais inscritos em nossa Constituição da República.
Mas vale lembrar, como anota Streck, que no cotidiano brasileiro dos
operadores jurídicos vive-se o “dilema” de, lamentavelmente, não se praticarem nem
as diretrizes procedimentalistas, nem as substancialistas. Prova disto é, por um lado,
a manifesta e quase absoluta inefetividade da Constituição da República aliada à
postura ‘passiva’ de gigantesca parte do poder judiciário, e por outro, a submissão
do poder legislativo ao ‘decretismo’ do poder executivo que, em total desvio de
finalidade, usa de modo abusivo e despropositado as famigeradas Medidas
Provisórias304. 305
303 Vê-se com Tomas Kuhn que o novo paradigma só se consubstancia com o definitivo rompimento com o velho paradigma: “A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma”. E os operadores jurídicos devem ver o ‘novo’ com uma nova percepção: “[...] em períodos de revolução [científica], quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma em algumas situações com as quais já está familiarizado (Gestalt). [...] Entretanto, sendo os manuais veículos pedagógicos destinados a perpetuar a ciência normal, devem ser parcial ou totalmente reescritos toda vez que a linguagem, a estrutura dos problemas ou as normas da ciência normal se modifiquem.” Mas adverte: “[...] talvez tenhamos que abandonar a noção, explícita ou implícita, segundo a qual as mudanças de paradigma levam os cientistas e os que com eles aprendem a uma proximidade sempre maior com a verdade. [...]” KUHN, A estrutura das revoluções científicas, op. cit., p. 116,146,175, 213 e seguintes. 304Afirma Scaff: “Enfim, as Medidas Provisórias foram desenhadas para ser um instrumento mais democrático que os Decretos-leis, refletindo bem o contexto democrático em que surgiam, mas não foi o que aconteceu em sua prática.” SCAFF, Fernando Facury. Quando as Medidas Provisórias se transformam em Decretos-Leis ou Notas sobre a reserva legal tributária no Brasil. In: NUNES, Antônio José Avelãs. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.). Diálogos Constitucionais Brasil/Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 240-241. Sérgio Cademartori comenta que “com a expansão de ações do Executivo, criando novos campos de atuação e interferência na vida dos cidadãos – e conseqüentemente com um incessante aumento da capacidade normativa de conjuntura da Administração, que se evidencia pelo incremento incessante de Medidas Provisórias editadas e reeditadas, com a conseqüente normatização da vida cotidiana através de portarias ministeriais, decretos e outras normas de origem do Executivo – é colocado em xeque o princípio da legalidade,
137
Além de não se adotarem práticas substancialistas, também não se
poderia dizer que se adotam práticas procedimentalistas, pois, num regime de
verdadeira ‘democracia delegativa’, herança do ranço autoritário de outrora, não
temos as garantias de um processo democrático de produção normativa. O que se
observa, não raras vezes, é um poder executivo que se usurpa na função de legislar,
exclusiva por óbvio do poder legislativo, através de reiteradas edições de Medidas
Provisórias que desconsideram as necessárias ‘relevância’ e ‘urgência’, usadas
sempre num pretensioso decretismo autocrático306.
Diante deste contexto, deste verdadeiro ‘dilema brasileiro’ como
denomina Streck, mais do que nunca faz-se necessária uma postura substancialista
de nosso Judiciário, para que, objetivando a implementação das promessas da
modernidade, faça-se com que a Constituição da República seja levada a sério.
Deve-se desconstituir a retórica tradicional que, através do giro discursivo e do golpe
de cena (Coutinho), usa as propaladas ‘normas programáticas’ como subterfúgio
justificativo para inaplicabilidade constitucional, transportando habilmente à uma
gravidade utópica e fictícia o verdadeiro projeto constitucional de implementação do
Estado Social.
Há de se reconhecer, por conseqüência, que uma concepção
procedimentalista da Constituição da República, ainda que enalteça a necessidade
de acordos intersubjetivos consensuais, torna-se incompatível com a realidade
sócio-econômica-cultural de países periféricos como o Brasil. Como se vê com
Dussel, a posição doutrinária eurocêntrica, que traz consigo a lógica de um mito
moderno calcada na ‘falácia desenvolvimentista’, ainda se projeta com pretensões
dando origem a uma crise do Estado e Direito a qual arrasta até o próprio Poder Judiciário.” CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 175-176. Também neste sentido, conferir NIEBUHR, Joel de Menezes. O novo regime constitucional da Medida Provisória. São Paulo: Dialética, 2001; CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas Provisórias. 2.ed. Curitiba: Max Limonad, 1999. MÜLLER, Friedrich. As Medidas Provisórias no Brasil, diante do pano de fundo das experiências alemãs. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 337-355. 305 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 52. 306 STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 52.
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universalizantes307 sobre a ‘periferia’, encobrindo-a308, desconsiderando, pois, sua
identidade cultural e sua condição social309.
Num país como o nosso, onde não se socializaram as promessas
modernas, e onde o povo (massa ignara e faminta)310 é relegado à condição de
consumidores descartáveis diante do levante neoliberal de nossa atualidade311 - que
revela um outro dilema, contrapondo um ‘neoconstitucionalismo econômico’ a um
‘constitucionalismo político’312 - faz-se necessária a existência de um Judiciário
atuante e interventor, que legitime e consuma o Estado Democrático de Direito, e
que, numa postura garantista, diminua a distância abissal existente entre a ‘Lei’ e a
sociedade.
307 Com Ludwig: “O consenso, produzido a partir dos pressupostos da razão comunicativa, implica em reciprocidade universal a ser reconhecida: todo participante é livre e autônomo para levantar as pretensões que julgar convenientes; apresentar razões que justifiquem suas pretensões, livre para se posicionar frente às proposições levantadas por outros.” LUDWIG, Celso. Razão Comunicativa e Direito em Habermas. In: A Escola de Frankfurt no Direito. Curitiba: UFPR, 1997. 117. 308 Rosa adverte que: “[...] na perspectiva democrática os acordos intersubjetivos são importantes, sem que se caia, por evidente, nos universalismos ilusórios habermasianos.” ROSA, O Estrangeiro, a Exceção e o Direito, op. cit., p. 54-55. 309 Dussel, que parte, num projeto de comunicação intercultural, de uma proposta filosófica libertadora calcada na alteridade, denuncia a existência de um “[...] componente mascarado, sutil, que jaz em geral debaixo da reflexão filosófica e de muitas outras posições teóricas do pensamento europeu e norte-americano. Trata-se do eurocentrismo – e seu componente concomitante: a falácia desenvolvimentista”. DUSSEL, 1942, op. cit., p. 17. 310 Afirma Müller: “Quando o termo ‘povo’ aparece em textos de normas, sobretudo em documentos constitucionais, deve ser compreendido como parte integrante plenamente vigente da formulação da prescrição jurídica (do tipo legal), deve ser levado a sério como conceito jurídico e ser interpretado lege artis”. MÜLLER, Quem é o povo? op. cit., p. 83. Ressalta Canotilho: “[...] como se diz no notável livro de Friedrich Müller, sobre o que é o povo [...], o povo é uma grandeza real que engloba, afinal de contas, todas as pessoas, inclusive aquelas que estão excluídas do povo, que nem sequer têm consciência política, que não participam na dinamização democrática.” CANOTILHO, Canotilho e a Constituição Dirigente, op. cit., p. 25. 311 Capella, neste sentido, diz que grande parte da humanidade foi reduzida à condição de servidão: “Os cidadãos-servos são os sujeitos dos Direitos sem poder. Da delegação no Estado e no mercado. Da privatização individualista. Os cidadãos se dobraram em servos ao ter dissolvido seu poder, ao confiar só ao Estado a tutela de seus ‘Direitos’, ao tolerar uma democratização falsa e insuficiente que não impede o poder político privado modelar a ‘vontade estatal’, que facilita o crescimento, supra-estatal e extra-estatal, desse poder privado.” CAPELLA, Juan Ramón. Os Cidadãos-Servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 146-147. 312 Para Souza Neto, “o dilema com o qual o constitucionalismo brasileiro realmente se depara hoje não é optar entre uma teoria constitucional democrática e uma teoria social-dirigente. O verdadeiro dilema atual é o embate entre uma teoria constitucional democrática e uma teoria constitucional de cunho neoliberal, ainda que mitigada pelos artifícios simbólicos da terceira via. [...] Na verdade, sobrou pouco do projeto constitucional original. Em seu lugar, passaram a integrar a Constituição diversos conteúdos normativos vinculados ao liberalismo econômico, impondo à soberania popular diversas restrições tendentes à garantia de um arranjo institucional subjugado pelo livre mercado.” SOUZA NETO, O dilema constitucional contemporâneo, op. cit., p. 127.
CAPÍTULO 3
3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA
3.1 A DIMENSÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E O DISCURSO NEOLIBERAL
3.1.1 A Emenda Constitucional n.° 19/98 e a ‘adesão’ à ação eficiente
Especialmente a partir da década de ’90, o cenário político-
governamental brasileiro foi tomado por diretrizes políticas neoliberais que não se
restringiram ao âmbito econômico. Além de medidas de abertura de mercado ao
capital estrangeiro e de ‘enxugamento’ da máquina administrativa por meio das
‘privatizações’, tais políticas também permearam e se enraizaram na estrutura
burocrático-estatal, imprimindo a lógica da nova ordem mundial capitalista que
avançava com força em países periféricos como o Brasil.
Em realidade, o neoliberalismo brasileiro, ou como quer Oliveira, o
‘neoliberalismo à brasileira’1, consiste num projeto específico2 e feito ‘sob medida’
para a América Latina. Tal projeto foi capitaneado pelos dirigentes das instituições
de Bretton Woods3 e impulsionado pelo ‘Consenso de Washington’4 que pretendia
1 Oliveira afirma que após a eleição de Collor, “surgiu o neoliberalismo à brasileira. Sempre avacalhado e avacalhador: em vez de austeridade britânica – um tanto desmentida, hoje, pelos escândalos da monarquia, hélas! – a Casa da Dinda, uma farsa grotesca, florestas amazônicas em pleno cerrado.” OLIVEIRA, Francisco de. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p .25. 2 Feijóo ressalta o aspecto cambiante do paradigma do neoliberalismo, afirmando que, uma das significações do termo neoliberalismo é: ‘padrão de acumulação’ vigente num ‘aqui e agora’. E que existe um ‘padrão de acumulação específico para a América Latina’. FEIJÓO, José Carlos Valenzuela. O Estado neoliberal e o caso mexicano. In: LAURELL, Asa Cristina (Org.). Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo. Trad. Rodrigo Leon Contrera. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002. p.14-15. 3 Inclusive com a participação do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, que exerce papel estratégico para a banca de Bretton Woods junto à América do Sul. Com Ezucurra: “la incidência del Banco Mundial sobre otras agencias, es sumamente ilustrativa la evolución del Banco Interamericano de Desarrollo (BID) en los ‘90s. En efecto, a partir de 1990 y con la conducción de Enrique Iglesias […] el BID se sumó a la era del ajuste, por presiones de Estados Unidos y bajo la supervisión directa del Banco Mundial.” EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op cit., p. 71. 4 Ezcurra explica que “em 1990, John Williamson – el Institute for Internacional Economics (EUA) – preparó una lista que identificaba las principales ‘reformas’ impulsionadas en América Latina y, además, apodó al inventario: lo llamó ‘Consenso de Washington’.” EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op cit., p. 56. Este encontro entre economistas e funcionários das instituições de Bretton Woods no Institute for Internacional Economics – também conhecido por Consenso de
140
uma reformulação político-econômica para o continente, ajustando as estratégias em
conformidade, é claro, com as ‘peculiaridades’ de cada país. Tal reformulação tinha
como foco a readequação das políticas de ‘ajustes estruturais’ e de
‘condicionamento de políticas’5 que já vinham sendo sistematicamente
implementadas desde a década de ’70 e ’80. Com isso, possibilitariam a
recuperação da crise e a ampliação do programa monetarista na América do Sul,
com a conseqüente redução de barreiras nacionais6 ao capital transnacional.
No entanto, no Brasil, apesar de toda a abertura e condescendência
verificada em âmbito econômico, o neoliberalismo ainda encontrava duras
resistências por parte de setores legalistas que entendiam que a nova lógica do
discurso economicista (cada vez mais político) carecia de legitimidade. Alegavam os
legalistas que não havia no ordenamento pátrio previsão normativo-constitucional
que respaldasse a ideário neoliberal, especialmente no que dizia respeito à
administração pública. Uma forte e articulada tentativa de positivação constitucional
dos princípios neoliberais já tinha ocorrido quando da ‘Constituinte de 1988’, mas,
apesar de toda a pressão para o ‘boicote’, tal empreitada restou frustrada. Entretanto
era sabido que os neoliberais não desistiriam tão facilmente, e voltariam a contra-
atacar.
Mesmo diante de todas as dificuldades e resistências apresentadas
por segmentos legalistas, e especialmente pelo perfil welfariano de nossa
Constituição da República - que propunha um modelo estatal (social-democrático)
que era alvo do neoliberalismo em todo o mundo - , os neoliberais, mudando desta
vez a estratégia, encontraram um meio profícuo de combater o Estado e suas
Washington – objetivava estabelecer as novas diretrizes econômicas para a crise da América Latina que se arrastava ao longo da década de ’80. Após a aplicação de doses amargas, constatou-se que foram ineficazes: permanecia ou tinha agravado o desemprego, desvalorização monetária, a pobreza, etc. 5 O programa de ajustes estruturais, de clara inspiração neoliberal, consistia, em realidade, no estabelecimento de uma agenda de crescimento para a América Latina que, para a liberação de recursos das entidades de Bretton Woods, os países do sul deveriam acatar a ‘recomendações’ estratégicas que passavam: por políticas férreas de estabilização monetária, reforma do Estado com sua drática redução, corte nos gastos públicos, abertura de mercado ao capital externo, etc. Conforme EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op cit., p. 40-43 e 61. 6 Fernandes também denuncia nosso tratamento diferenciado: “o neoliberalismo aqui, se apresenta inimigo do nacionalismo, diferentemente do que ocorre na Europa e EUA”. FERNANDES, Luis. Neoliberalismo e reestruturação capitalista. In: SADER, Emir; GENTILLI, Pablo. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p .25.
141
estruturas burocrático-administrativas. Além do ataque frontal que já praticavam por
meio da mídia sempre reputando à máquina estatal descrédito e desesperança7, os
neoliberais passaram a atacar o Estado ‘por dentro’, permeando seus ideais em sua
própria estrutura basilar.
Sorrateiramente, apoiados pelo silêncio perverso da imprensa e sob
a égide de uma proposta de ‘Reforma Administrativa’ que manifestava pretensões
messiânicas de ‘salvação’ da pátria, os neoliberais, contando também com todo o
apoio do Governo de então8, de parlamentares adeptos e dos incautos de ocasião,
apresentaram e promulgaram a Emenda Constitucional n.° 19, de 04/06/1998. Esta
Emenda, além de outras importantes modificações, alterou substancialmente o
consagrado rol de princípios da administração pública brasileira9, ‘coração’ da
estrutura pública pátria, que fora atingido com duro e cruel golpe.
Trata-se do Princípio da Eficiência Administrativa, que foi inserido no
art. 37 da Constituição da República10 por meio do poder constituinte derivado, e que
7 Com Salinas: “[...] o Estado é apresentado como a causa dos males de que sofrem as sociedades da América Latina”. SALINAS, O Estado latino-americano:, op. cit., p. 141. 8 Bresser Pereira explica que “uma das principais reformas a que se dedica o governo Fernando Henrique Cardoso é a reforma da administração pública, embora não constasse dos temas da campanha eleitoral de 1994. Entretanto, o novo presidente decidiu transformar a antiga e burocrática Secretaria da Presidência, que geria o serviço público, em um novo ministério, o da Administração Federal e Reforma do Estado. Ao acrescentar a expressão ‘reforma do Estado’ ao nome do novo ministério, o presidente não estava apenas aumentando as atribuições de um determinado ministério, mas indicando uma prioridade do nosso tempo: reformar ou reconstruir o Estado.” BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. In: Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. ______. et alli (Orgs.). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 21. E nas palavras do próprio Presidente da República de então: “É imperativo fazer uma reflexão a um tempo realista e criativa sobre os riscos e as oportunidades do processo de globalização, pois somente assim será possível transformar o Estado de tal maneira que ele se adapte às novas demandas do mundo contemporâneo. [...] Reformar o Estado não significa desmantelá-lo. [...] Mudar o Estado significa, antes de tudo, abandonar visões do passado de um Estado assistencialista e paternalista, de um Estado que, por força de circunstâncias, concentra-se em larga medida na ação direta para a produção de bens e serviços. Hoje, todos sabemos que a produção de bens e serviços pode e deve ser transferida à sociedade, à iniciativa privada, com grande eficiência e com menor custo para o consumidor.” CARDOSO, Fernando Henrique. Reforma do Estado. In: Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos et alli (orgs.). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 16. Conferir também: VIANNA, Luiz Werneck. Esquerda Brasileira e Tradição Republicana: Estudos de conjuntura sobre a era FHC – Lula. Rio de Janeiro: Revan, 2006. 9 Com Galdino: “Assim é que, no plano jurídico, a novidade da Emenda Constitucional n.° 19 de 1998 foi justamente destacar a eficiência como princípio geral da administração pública brasileira.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 257. 10 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”. BRASIL – Constituição [1988] I. Pinto, Antonio Luiz de Toledo. II. Windt, Márcia Cristina Vaz dos Santos. III. Céspedes, Lívia. São Paulo: Saraiva, 2006.
142
foi decorrência de uma reforma administrativa de caráter eminentemente
‘gerencial’11. Sem qualquer discussão nacional mais apurada a respeito do tema12,
tornou-se não apenas mais um princípio da administração pública, mas sim, o
principal e paradigmático princípio que acabou por vincular todos os demais,
constituindo praticamente uma perigosa ‘metanorma’13. O Estado brasileiro passou,
a partir de então, a se legitimar em tal princípio14, de sorte que todas as práticas no
âmbito na administração pública passaram a ser pautadas pela lógica da relação
custo-benefício eficiente15.
Os neoliberais, aproveitando-se da fragilidade e da curta tradição
democrática de um país que tentava a duras penas consolidar um processo de
redemocratização pós-ditadura, e com o irrestrito apoio da mídia - que com seu
formato yanke tipo ‘me engana que eu gosto’, sempre deslocando o foco para o
telejornalismo de fachada e para a dramaturgia novelística acrítica -, com certa
facilidade, e debaixo dos narizes dos ‘intelectuais’ da área, conseguiram aderir ao
texto constitucional sua principal marca e base de sua ideologia: a ‘ação eficiente’.
O que mais surpreendeu, no entanto, - e esta é uma questão que
precisa ser enfrentada com seriedade e clareza -, foi a festejada e calorosa
recepção do referido princípio constitucional por parte da esmagadora maioria dos
11 Segundo Bresser Pereira a “democracia deveria ser aprimorada para se tornar mais participativa ou mais direta, e a administração pública burocrática devia ser substituída por uma administração gerencial. [...] Algumas características básicas definem a administração pública gerencial. É orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados; pressupõe que os políticos e os funcionários públicos são merecedores de grau limitado de confiança; como estratégia, serve-se de descentralização e do incentivo à criatividade e à inovação; e utiliza o contrato de gestão como instrumento de controle dos gestores públicos.” BRESSER PEREIRA, Gestão do setor público, op. cit., p. 25 e 28. 12 Com Coutinho: “os administrativistas (a quem tanto respeito e admiro), por exemplo, de modo geral não conseguiram compreender que não se fez uma mera mudança para incluir a eficiência no art. 37 da Constituição. Não! Era, por elementar, muito mais do que incluir o princípio da eficiência. Afinal, eficiência é o ponto central; é a marca epistêmica do pensamento neoliberal; é a base da estrutura da competição; da selvageria; é aquilo que propicia que irmão, em ser Saturno, engula irmão; que irmão mate irmão. Na Bósnia, na Macedônia, na periferia de São Paulo. Mas a gente da aldeia global tupiniquim não se importa.” COUTINHO, O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado Social, op. cit., p. 54. 13 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 260. 14 Galdino afirma que “a eficiência promove a releitura da administração pública, passando a funcionar como parâmetro de legitimação do Estado de Direito – para ser realmente legítimo, um Estado e a sua respectiva agenda administrativa devem ostentar padrões de eficiência.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 258. 15 “[...] a eficiência implica a verificação de que os resultados alcançados por uma medida são representativos de uma relação custo-benefício favorável em relação aos meios empregados e aos sacrifícios impostos [...]”.GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op. cit., p. 259.
143
administrativistas brasileiros. O que se produziu na literatura de Direito
Administrativo após a promulgação da Emenda Constitucional n.° 19/98 representa
irrefutável prova da rendição de muitos dos doutrinadores ao sedutor discurso
neoliberal-eficientista. Com um breve passeio entre alguns manuais pátrios, é
possível constatar o fato.
Mello, reconhecendo a inoperatividade estatal, de modo breve afirma
que “quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele. Trata-se,
evidentemente, de algo mais do que desejável”.16 Gasparini, por sua vez,
relacionando o princípio da eficiência com o tradicional instituto italiano do ‘dever de
boa administração’ – assim como o fez Meirelles17 – afirma que tal princípio “impõe à
Administração Pública, direta e indireta, a obrigação de realizar suas atribuições com
rapidez, perfeição e rendimento, além, por certo, de observar outras regras, a
exemplo do princípio da legalidade”. Insiste o autor em defender que “qualquer ação
ou decisão deve ter essa preocupação, evitando-se as que não as têm ou que não
atendam a esse princípio”; sentenciando: “É pois a relação custo-benefício que deve
presidir todas as ações públicas.”18
Bastos, na mesma senda, pensa que a eficiência na administração
pública é algo absolutamente indispensável, pois “não seria razoável pensar em
atividades da Administração Pública desempenhadas com ineficiência e sem o
atingimento dos resultados dentro do seu objetivo maior, qual seja, a realização do
bem comum”. Para o autor a preocupação da Emenda Constitucional n.° 19/98
concentrou-se “no desempenho da Administração Pública”, voltando-se para a
busca de “melhores resultados em suas atividades, com a substituição dos
obsoletos mecanismos de fiscalização dos processos de controle de resultados
[...]”19. Em análise à reforma administrativa de 1998, Pereira Jr. entende que a
eficiência já estava implícita no texto constitucional e que o princípio da eficiência
surgiu meramente “como uma figura de estilo, um reforço de linguagem para
16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 109. 17 Meirelles foi quem propôs esta articulação entre o princípio da eficiência e o ‘dever de boa administração’ do Direito italiano. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28.ed.atualizada por AZEVEDO, Eurico de Andrade et alli. São Paulo: Malheiros, 2003; 18 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 19-20. 19 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Celso Bastos Edtora, 2002. p. 79-80.
144
enfatizar o que é inerente à Administração Pública e é dela reclamado pelos
administrados, justificadamente”. Acredita, assim, que “ser eficiente é dever
elementar da Administração Estatal [...]”20.
Explicando que o referido princípio, a partir de sua positivação
constitucional, passou a ‘nortear’ toda a atuação da Administração Pública, Medauer
crê que “o vocábulo [eficiência] liga-se à idéia de ação, para produzir resultado de
modo rápido e preciso”. Assim, no seu pensar, “eficiência contrapõe-se à lentidão, a
descaso, a negligência, a omissão – características habituais da Administração
Pública brasileira, com raras exceções.”21 Carvalho Filho, na mesma direção, e
entendendo oportuna a concretização do ‘dever constitucional da eficiência’ em
âmbito administrativo, diz que o mencionado princípio “pelo menos prevê para o
futuro maior oportunidade para os indivíduos exercerem sua real cidadania contra
tantas falhas e omissões do Estado.”22 Este autor, assim como outros23, pensa o
princípio da eficiência como cura salvadora para os problemas do Estado. Como se
todos os problemas do aparato estatal pudessem ser resumidos à aplicação a-crítica
de rotinas, procedimentos e métodos.
Sem se darem conta do perverso giro epistemológico a que estavam
submetidos24, ou entregando-se à cômoda e reconfortante posição de conivência e
cumplicidade, muitos dos administrativistas deste país - com seus manuais de
grande penetração acadêmica - acabaram por docilmente servir ao projeto
eficientista, difundindo no âmbito do ensino jurídico a marca epistêmica neoliberal. O
resultado disso: juízes, advogados e promotores absolutamente colonizados e 20 PEREIRA JR., Jessé Torres. Da Reforma Administrativa Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 42-43. 21 MEDAUER, Odete. Direito Administrativo. 8.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 151. 22 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 21. 23 Conferir ainda: GABARDO, Emerson. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa. São Paulo: Dialética, 2002; GABARDO, Emerson. Eficiência e Legitimidade do Estado: uma análise das estruturas simbólicas do direito político. Barueri, SP: Manole, 2003; e FARIA, Edimur Ferreira. Curso de Direito Administrativo Positivo. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 24 Coutinho aduz: “Claro, o que nós temos hoje é um grande nevoado, um grande velamento e distorção, marcada lá no ponto central da coisa pelo pensamento economicista, o qual é denominado pelo pensamento neoliberal. Mas, o mais importante é que há um pensamento neoliberal imposto; é que o pensamento neoliberal se impôs ao mundo estruturando uma nova ordem, como disse o Caetano Veloso, como sempre lembra Agostinho Ramalho Marques Neto: algo está fora da ordem, algo está fora da ordem mundial. É isso aí. Por que? Porque o pensamento neoliberal impôs um câmbio epistemológico, embora as pessoas, com muita freqüência, não se dêem conta disso.” COUTINHO, O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado Social, op.cit., p. 54.
145
seduzidos pelo discurso econômico que possui como meta o drástico
desmantelamento estatal. Reconheça-se que, com todo este apoio, a missão dos
neoliberais tornou-se muito mais leve e fácil. Estava, pois, rebatizado com ‘pompas’
e ‘aplausos’ pelo jurídico o eficientismo-economicista neoliberal.
3.1.2 Câmbio epistemológico e cooptação neoliberal: a confusão entre
eficiência e efetividade
Provocando o que Coutinho denominou de verdadeiro ‘câmbio
epistemológico’, os neoliberais conseguiram, agora constitucionalmente, substituir a
histórica relação causa-efeito - que desde os gregos antigos se apresentava como
parâmetro epistêmico -, pela ação eficiente, confundindo, não por acaso, efetividade
(que visa fins), com eficiência (que está atrelada aos meios)25. Como bem ressalta
Rosa, os neoconservadores com muita habilidade ‘grudaram’ falsamente os
significantes efetividade e eficiência, como se tivessem o mesmo significado, na
tentativa de legitimar o seu discurso de erosão do ordenamento e da estrutura
estatal26. A gênese deste câmbio epistemológico, em que se substitui o paradigma
de causa-efeito pela ação eficiente, é tributada a Hayek, que assim justifica a
necessidade de tal substituição:
[...] simplesmente não é verdade que nossas ações devem sua eficácia apenas ou sobretudo ao conhecimento que somos capazes de verbalizar e que pode, portanto, constituir as premissas explícitas de um silogismo. Muitas instituições da sociedade que são condições indispensáveis para a consecução de nossos objetivos conscientes resultaram, na verdade, de costumes, hábitos ou práticas que não foram inventados nem são observados com vistas a qualquer propósito semelhante. Vivemos numa sociedade em que podemos orientar-nos com êxito, e em que nossas ações têm boas probabilidades de atingir seu objetivo, não só porque nossos semelhantes são norteados por objetivos conhecidos ou por relações conhecidas entre meios e fins, mas porque eles são também limitados por normas cujo propósito ou origem muitas vezes desconhecemos e das quais, freqüentemente, ignoramos a própria existência.27
O objetivo do mencionado câmbio era o de, abandonando o princípio
de falibilidade humana na previsão dos fins próprio da relação causa-efeito,
25 COUTINHO, O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado Social, op.cit., p. 54. 26 ROSA, Decisão Penal, op.cit.,p. 214. 27 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op.cit.,p. 05-06.
146
combater fortemente o ‘construtivismo’, isto é, as instituições criadas
deliberadamente por meio da razão28. Como já visto, tudo deveria, inclusive o
Direito, ser pautado por ordens naturais espontâneas sem as ingerências de atos e
decisões volitivas que pudessem gerar ‘desordem’. Com o giro provocado, deixa-se
de ater aos fins, passando-se a importar única e exclusivamente com os meios.29 Eis
porque, como explica Coutinho, “os holofotes voltaram-se às ações, que devem ser
eficientes, tudo de modo a projetar os melhores fins.” E os que se opuseram, foram
chamados de neobobos e/ou neoburros30. Veja-se:
[...] É sem dúvida uma guinada sem precedentes, pela qual se pode compreender a desenfreada competitividade, assim como a deificação do mercado que, pelo eficientismo, rende glórias ao consumidor (objeto de disputa) transformado em cliente, homo economicus, acabando por deslocar o eixo da disputa capital/trabalho. Quando em questão está a eficiência (dos meios), não é que o trabalho não importe, mas ele ganha um lugar secundário quando, estrategicamente, tem-se um exército de reserva laboral e digladiam-se todos pelos postos de trabalho que sobram. A velha concepção de homo faber perde, como tal, o seu sentido; e o direito, que antes de tudo o protege, passa a ser um obstáculo, acusado de burocrático, ou melhor, burocratizante.31
É justamente neste sentido que o câmbio se revela perverso: o
instrumentalista homo faber32, aquele sujeito criativo, fazedor, fabricador através do
trabalho, sempre com suas ações voltadas aos fins, ao “para quê”33, é condenado
sumariamente à morte. Em seu lugar, forja-se a figura do homo economicus, sempre 28 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op.cit.,p. 24. 29 HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, Vol I, op.cit.,p. 40 e seguintes. 30 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In: JURISPOIESES – Revista Jurídica dos Cursos de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro, ano 4, n.5, 2002. p. 34. 31 COUTINHO, Efetividade do processo penal e golpe de cena: op. cit., p. 34. 32 Explica Arendt: “a palavra latina faber, que provavelmente se relaciona com facere (‘fazer alguma coisa’, no sentido de produção), aplicava-se originariamente ao fabricante e artista que trabalhava com materiais duros, como pedra ou madeira; era também usada como tradução do grego tekton, que tem a mesma conotação. A palavra fabri, muitas vezes seguida de tignarii, designava especialmente operários de construção e carpinteiros. Não pude determinar onde e quando a expressão homo faber, certamente de origem moderna e pós-medieval, surgiu pela primeira vez. Jean Leclercq [...] sugere que foi Bérgson quem ‘lançou o conceito de homo faber na circulação das idéias’”. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 149. 33 Ainda com Arendt: “o homo faber é realmente amo e senhor, não apenas porque é o senhor ou se arrogou o papel de senhor de toda a natureza, mas porque é senhor de si mesmo e de seus atos. [...] os utensílios e instrumentos do homo faber, dos quais advém a experiência fundamental da noção de ‘instrumentalidade’, determinam todo trabalho e toda fabricação. Sob este aspecto, é realmente verdadeiro que o fim justifica os meios; mais que isto, o fim produz e organiza os meios. [...] Durante o processo de trabalho, tudo é julgado em termos de adequação e serventia em relação ao fim desejado, e nada mais. [...] É em nome da serventia em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de ‘para quê’.” ARENDT, A Condição Humana, op. cit., p. 157-166-167.
147
pautado por meios. Reificam o sujeito, e o transformam em consumidor, objeto do
Mercado. E é este ‘ser-consumidor’ que acaba por se tornar um dos principais alvos
de todo o assédio eficienticista.
Incorporado o parâmetro da ação eficiente ao ordenamento pátrio, os
legalistas de então, quase sempre ‘teleguiados’ por seus ‘impulsos positivistas’,
apresentavam-se ‘hipnoticamente’ satisfeitos, e rendidos ao cativante giro discursivo
proporcionado pelo liberalismo tardio que erigia à condição constitucional sua base
epistêmica. Agora, a crença instalada no imaginário social34 era a de que a ação
eficiente consistia em panacéia para os problemas da administração pública.
Sempre carreado pelos brados e queixas de moralização da máquina pública, o
discurso da eficiência se incorporou rapidamente aos pronunciamentos dos agentes
políticos, especialmente em períodos eleitorais. Com a manipulação discursiva de
sempre, tornou-se quase ‘pecado’35 não defender uma máquina pública ‘eficiente’.
O problema - e é aqui que se encontra a chicana deste câmbio -, é
que a grande maioria da sociedade sempre pensou, com expressão ‘eficiência’,
estar falando em efetividade estatal, no sentido de efetividade social, de melhora da
qualidade e ampliação dos serviços públicos, de garantia e implementação de
direitos fundamentais. E o propósito da ideologia individualista que sustenta o
paradigma da ação eficiente é exatamente o contrário: é nos legar um Estado
mínimo, sonegador de direitos e garantias. Com esta inversão lingüística, este
verdadeiro ‘golpe de cena’ (Coutinho)36, os neoliberais, apropriando-se das
estratégias de marketing dos oficiais nazistas, fazem com que todos queiram e
peçam o que realmente não querem37. Como bem explica Coutinho, “o câmbio, aqui,
34 Castoriadis afirma que “falamos de ‘imaginário’ quando queremos falar de alguma coisa ‘inventada’- quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (‘uma história imaginada em todas as suas partes’), ou de um deslizamento, de um descolamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’ (‘o que você está imaginando’, diz a mulher ao homem que recrimina um sorriso trocado por ela com um terceiro). Nos dois casos, é evidente que o imaginário se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance)”. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Trad. Guy Reynaud. 3.ed. Rio de Janeio: Paz e Terra, 1982. 35 No sentido atribuído por Pierre Legendre. 36 COUTINHO, Efetividade do processo penal e golpe de cena: op. cit. 37 Melman explica que: “O sujeito, assim, perdeu o lugar de onde podia fazer oposição, de onde podia dizer “Não!, não quero!”, de onde podia se insurgir: ‘as condições que me são apresentadas não são aceitáveis, não concordo’. Este sujeito não tem, em todo caso, o lugar de onde podia surgir a contradição, o fato de poder dizer não. Ora, nos dias de hoje, o funcionamento social se caracteriza pelo seguinte: os que dizem “Não!” em geral o fazem por razões de categoria, corporativistas. A
148
não é mero jogo retórico. Paulatinamente incorporado ao cotidiano, projeta-se como
um raio no fundamento ético da sociedade”.38
E este, talvez seja o seu mais nefasto efeito ‘social’. Tornando-se
verdadeiro paradigma a partir do qual toda a atuação estatal deve estar pautada, a
eficiência, sempre ancorada nos demais parâmetros neoliberais como a
‘concorrência’, ‘produtividade’ e ‘competitividade’, se reveste de caráter ético-
universal como se fosse a única alternativa para a resolução dos problemas da
pátria39. Naturaliza-se no imaginário coletivo, como já visto, sem muita resistência, a
‘falácia desenvolvimentista’ que, desde a modernidade, tem por base uma
racionalidade dominadora, excludente e que encobre a diferença, a alteridade40.
Agora o adestramento41 não é somente da atuação do corpo estatal e de seus
funcionários, mas sim do comportamento de todos os membros da sociedade que
são sutilmente – ao som do brado eficientista - postos a ‘marchar’ no melhor estilo
taylorista42. E isto se consolidou, como visto, com um perspicaz trabalho de
manipulação lingüístico-discursiva43.
Lançando mão de já conhecidos mecanismos de persuasão em
massa - mas extremamente aperfeiçoados com a tecnologia de imagem televisa44
posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia a um sujeito orientar seu pensamento diante do jogo social, diante do funcionamento da Cidade, pois bem, esse lugar parece notavelmente faltar.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 39. 38 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-americano de Direitos Humanos (2001-2002). Rio de Janeiro, 2002, p. 194. 39 Marques Neto adverte: “o problema está em deixar que tudo seja resolvido por esta via. A competição pode ser saudável, se sujeita à Lei. Mas é perversa se substitui a Lei, se ela, a competição, se torna a própria Lei. O primeiro e mais perverso efeito da competição no lugar da Lei é a exclusão social [...]”. MARQUES NETO, Neoliberalismo, op.cit., p. 233. 40 DUSSEL, 1942, op.cit., p. 17 e seguintes. 41 LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 20. 42 Taylor é considerado o ‘pai’ do eficientismo industrial do final do século XIX e início do século XX. TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios da administração científica. Trad. Arlindo Vieira Ramos. 8.ed. São Paulo: Atlas, 1990. Neste sentido vide item 3.1.3. 43 Melman elucida que: “[...] Temos a felicidade de estar liberados das ideologias mas para deixar lugar a quê? Como o sujeito é obrigado, entretanto, a se referir a um sistema Outro, o que tem lugar hoje são as informações. É aí que se situa o poder. Segundo as informações que você dá, você manipula inteira e perfeitamente os receptores, você os faz pensar, experimentar e decidir como você quiser. [...] é o que garante a eficácia dessa manipulação mental: o sujeito não tem mais afastamento possível diante do discurso que a ele é apresentado, está aprisionado, preso na teia, cercado.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 94-95. 44 Marques Neto se refere à mídia como o “grande soberano”, e diz: “Ela é que, efetivamente, faz a nossa cabeça mesmo, literalmente”. MARQUES NETO, O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática, op.cit., p. 49.
149
que subliminarmente transmitem as mensagens de conveniência45-, os neoliberais
trabalham fortemente no âmbito da doxa, da crença, procurando fazer com que
todos passem a amar e idolatrar o Mercado46. A prática dessa verdadeira confissão
de fé47 neoliberal se revela no consumo. E quanto mais, melhor. Esta é a lógica.
Através do giro discursivo, o neoliberalismo bem trabalha a psiquê humana,
especialmente através do desejo e da falta humana simbólica48, transformando
cidadãos, em selvagens competidores em busca de um sucesso, no todo,
inalcançável49.
Repetindo os modernos, que no lugar de Deus puseram a razão, os
neoliberais substituem a racionalidade humana da autonomia e da liberdade, pela
racionalidade do ‘Mercado-Deus’. Só que a grande diferença é que nesta troca
suprimiram-se os limites. Aquelas limitações e interdições que de alguma forma
eram representadas pela figura da ‘divindade’ ou da ‘consciência-Estado’, agora
desaparecem em nome de uma idealidade imaginário-projetiva-mercadológica50.
Deslocando os fins coletivos e os substituindo por meios a-éticos e a-morais, este
liberalismo fundamentalista submete os sujeitos a uma insana e bárbara51 realidade
de competição, importando não somente vencer: mas mostrar ostensivamente a
todos que venceu! O que importa, enfim, é chegar a um lugar que nem mesmo se
45 Conferir: KEY, Wilson Bryan. A Era da Manipulação. Trad. Iara Biderman. São Paulo: Página Aberta, 1993. 46 LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 67. 47 Não por acaso Mises certa feita falou: “o liberalismo é uma visão de mundo, uma espécie de religião, uma fé”. MISES, Uma crítica ao intervencionismo, op.cit., p. 85. 48 MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 35. 49 Com Melman vemos que a nova economia psíquica tem como fundamento a exibição ilimitada do gozo, e que, como bem afirma, a “excesso tornou-se norma”. MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 127. 50 Por meio de mecanismo da projeção imaginária, o neoliberalismo manobra o simbolismo do Mercado-Instituição ao seu bel prazer: “Ela [a instituição] projeta sobre o conjunto da história uma idéia tomada de empréstimo não propriamente da realidade efetiva das instituições do mundo capitalista ocidental (que sempre foram e são, apesar do enorme movimento da ‘racionalização’, só parcialmente funcionais), mas aquilo que esse mundo gostaria que suas instituições fossem. Visões ainda mais recentes, que só querem ver na instituição o simbólico (e o identificam como o racional) representam também uma verdade somente parcial e sua generalização contém igualmente uma projeção”. CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op. cit., p. 159. 51 Quanto à compreensão da expressão ‘barbárie’ em nossos tempos, Melman elucida: “O que se chama barbárie pode se destacar de uma definição muito estrita, muito rigorosa, não é apenas uma metáfora para designar vagamente o estrangeiro ou o ‘barbaro’, aquele que simplesmente fazia bar-bar-bar! A barbárie consiste numa relação social organizada por um poder que é estabelecido e se apóia – tem por referência – em sua própria força e só busca defender e proteger sua existência como poder, seu estatuto de poder, pois bem, estamos na barbárie.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 64.
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sabe qual é.52 A sensação, nesta ‘espontaneidade’ de Mercado, é de desordem e
descontrole. E isso não ocorre sem razão.
A desordem e o descontrole, conforme explica Legendre53, fragilizam
e vulnerabilizam o sujeito humano. Sem o ‘mastro do navio’54 que representava a
segurança numa ‘entidade divina’ ou na ‘razão autodeterminadora do ser’, o sujeito é
lançado ‘ao mar’, ao incerto, ao desconhecido, e sua existência é a todo o tempo
colocada à prova. Sobreviver é questão, agora, de competir e vencer, sem importar
o custo. Desestabilizado e inseguro, o sujeito torna-se presa fácil55 do receituário
neoliberal. Através do que Marques Neto, citado por Coutinho, chamou de
‘cooptação’56, este sujeito é ‘abduzido’ pela instituição, e passa a render
homenagens ao Mercado e a sua lógica de consumo.
A estratégia é a manutenção de um permanente ‘estado de crise’
como denominou Legendre57. O caos contemporâneo, assim, não está aí instaurado
por acaso. Há sempre quem fature com isso58. A sociedade torna-se cada vez mais
refém de uma ‘Cultura do Medo’59. Basta ler os jornais ou assistir os telejornais para
52 Melman explica este fenômeno como resultado da “nova economia psíquica” e afirma: “Estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. Não é mais possível hoje abrir uma revista, admirar personagens ou heróis de nossa sociedade sem que eles estejam marcados pela estado específico de uma exibição do gozo. Isso implica deveres radicalmente novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes. [...] o céu está vazio tanto de Deus quanto de ideologias, de promessas, de referências, de prescrições, e que os indivíduos têm que se determinar por eles mesmos, singular ou coletivamente.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 16. 53 LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 118. 54 Aqui me refiro à fábula mitológica de Ulisses. Conferir: ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 40. 55 Como afirmou Hölderlin, citado por Jean-Pierre Lebrun: “Mas, onde o perigo cresce, cresce também o que salva”. LEBRUN, Jean-Pierre. In: MELMANN, Charles. O Homem sem Gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. p. 14. 56 COUTINHO, O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado Social, op.cit., p. 56. 57 Explica o autor: “Esta ordem geral, como já mostrei, divide-se segundo duas regulamentações distintas, duas representações opostas e complementares, constitutivas de um estado de crise (os componentes fundamentais do estatuto canônico), e cada uma dessas regulamentações particulares, tecnicamente especializadas, propõe sua versão insubstituível pela dialética do adestramento do homem a seu conflito de outro modo sem remédio;” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 118. 58 Com Legendre: “a instituição regula e mede o medo”. LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 113. 59 Segundo Rosa: “Acrescente-se, como conseqüência, bem ao gosto capitalista, a diminuição do Estado e a privatização do pânico (Galeano), apanágio da vertente neoliberal, com o aumento das empresas de segurança privadas, de vigilância, mudança de hábitos – viva aos Shopping Centers, onde há mais segurança – construção de condomínios fechados, dentre outras mudanças comportamentais [...] “. ROSA, Direito Infracional, op.cit., p. 50 e seguintes. Conferir neste sentido: PASTANA, Débora Regina. Cultura do Medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e
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se ter uma rápida noção do quadro de terror e violência (não somente física, mas
também e principalmente simbólica (Bourdieu)) em que se vive. O sujeito humano,
‘docilmente corporificado’60, passou a ser permanentemente controlado, vigiado
durante vinte e quatro horas, sem qualquer respeito ao direito de intimidade,
refletindo o que Foucault já denominava como panoptismo social61, ou, na versão
globalizada de Bauman, sinopticismo social 62. Todos passam, como na odisséia de
Orwell, a serem ‘cuidados’ e involuntariamente a ‘amar a instituição’, a prestar
submissão a quem só está preocupado em manter o poder tal qual o “grande
irmão”63. E o que mais espanta, é a inescondível alienação da sociedade diante
deste cenário desolador.
cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003; VIRILIO, Paul. Ciudad pânico: El afuera comienza aquí. Trad. Lair Kon. Buenos Aires: Libros del Zortal, 2006. 60 Os ‘corpos dóceis’ são o resultado desta ‘sociedade de controle’ conforme explica Foucault: “O Homem-máquina de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de ‘docilidade’ que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 126. 61 Conforme explica Foucault “o panopticon era um edifício em forma de anel no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. [...] O panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos – utopia que efetivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo.” FOUCAULT, Michael. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: PUC – Departamento de Letras, 1996. p. 87. Também por inspiração em Bentham. Conferir BENTHAM, Jeremy. El Panóptico. Trad. Fanny D. Levit. Buenos Aires, Quadrata, 2005; e FOUCAULT, Vigiar e Punir, op.cit., p. 177 e seguintes. 62 Considerando as alterações no relacionamento social provocado pela globalização, especialmente sua face cibernética, Bauman afirma que está-se diante, “junto com o Panóptico, de outro mecanismo de poder que chama, em mais um achado, de Sinóptico. O Sinóptico é, por sua natureza global; o ato de vigiar desprende os vigilantes de sua localidade, transporta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no lugar. Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de ser os vigiados e passaram a ser os vigilantes, se movam ou fiquem parados. Onde quer que estejam e onde quer que vão, eles podem ligar-se – e se ligam – na rede extraterritorial que faz muitos vigiarem poucos. O panóptico forçava as pessoas à posição e que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa de coerção – ele seduz as pessoas à vigilância. E os poucos que os vigilantes vigiam são estritamente selecionados. [...] Muitos observam poucos. Os poucos que são observados são as celebridades. [...] No Sinóptico, os habitantes locais observam os globais. A autoridade destes últimos é garantida por seu próprio distanciamento”. BAUMAN, Globalização, op.cit., p. 60-61. 63 ORWELL, George. 1984. Trad. Wilson Velloso. 29.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003. p. 18.
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Mas a alienação, como bem se sabe, enquanto produto do imaginário
simbólico na relação sujeito-instituição64, também é trabalhada pelos estrategistas
neoliberais. Reconhecidamente, nunca se pensou tão pouco65. Nunca se viu na
história recente um esvaziamento político e ideológico de tamanhas proporções66,
mesmo diante de todos os riscos que aí estão67 – o que leva Castoriadis a afirmar
que a sociedade contemporânea encontra-se ‘à deriva’68. Mas isto, também não é
obra do acaso. O que se mostra intrigante é que, por outro lado, também nunca se
viveu numa fase de tanta disponibilidade de informações, e a internet está aí para
provar isso.
Aliás, não somente a internet, mas todo o aparato cibernético
existente hoje em dia está, segundo Virilio, sob sérias suspeitas69. Segundo o autor,
os indivíduos estão sendo dia a dia cada vez mais ‘cooptados’ pelo que chama de
‘economia da velocidade’70. Com um propositado descompasso engendrado entre o
tempo real e o tempo histórico, o Mercado utiliza a revolução tecnológica para se
estabelecer através do fenômeno da velocidade, apresentando-se como panacéia
para caos71. É a velocidade, explica Virilio, quem tiraniza e manipula a sociedade,
tentando submeter a todos à visão de mundo que ela mesma forja. Velocidade, em
64 Castoriadis explica: “A alienação não é nem a inerência à história, nem a existência da instituição como tal. Mas a alienação surge como uma modalidade da relação com a instituição e, por seu intermédio, da relação com a história. [...] Tudo que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissocialmente entrelaçado com o simbólico. [...] Uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados.” E mais adiante: “A alienação é a autonomização e a dominância do momento imaginário na instituição que propicia a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade.” CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 139,142 e 159. 65 Melman exclama que nunca tivemos tanta liberdade, “uma formidável liberdade, mas ao mesmo tempo absolutamente estéril para o pensamento. Também nunca se pensou tão pouco! Essa liberdade está aí, mas ao preço da desaparição, da afânise do pensamento.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 29. 66 ARENDT, Eichmann em Jerusalém, op.cit., p. 60. 67 Conforme Beck, vive-se numa ‘sociedade de risco’, sendo “el concepto de riesgo un concepto moderno. Pressupone que se toman decisiones e intenta hacer y controlables las imprevisibles conseqüências de las decisiones que se toman como civilización. […] Agora bien, lo novedoso en la sociedad del riesgo mundial es que nuestras decisiones como civilización desatan uns problemas y peligros globales que contradicen radicalmente el lenguaje institucionalizado del control, la promesa de controlar las catástrofes patentes a la opinión pública mundial.” BECK, Ulrich. Sobre el terrorismo y la guerra. Trad. R.S. Carbó. Barcelona: Paidós, 2003. p. 17. 68 CASTORIADIS, Una Sociedade a la deriva, op.cit., p. 281 e seguintes. 69 VIRILIO, Paul. La Bomba Informática. Trad. Mónica Poole. Madrid: Cátedra, 1999. p. 74 70 VIRILIO, Paul. Velocidad Y Política. Trad. Víctor Goldstein. Buenos Aires: La marca, 2006. p. 120. 71 VIRILIO, Pau. El Cibermundo, la política de lo peor. Trad. Mónica Poole. Madrid: Cátedra, 1999. p.14-15.
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suas palavras, “é poder”, “é meio” a serviço da acumulação de riquezas72. Arvora-se
em representar um “Deus-máquina” que salvará a sociedade após o declínio do
monoteísmo e da transcendência. É ela quem manobra e coloniza, especialmente
através da permanente renovação tecnológica e televisiva.
E a estratégia é exatamente esta. Como bem apontou Bourdieu, em
referência à mídia televisa, a grande façanha contemporânea deste liberalismo
renovado é o “ocultar mostrando”73. Por meio deste “quarto poder”74, na oportuna
expressão de Habermas, bombardeia-se velozmente a sociedade com informações
retaliadas, fragmentadas e de forma a-crítica, irrefletida, sem dar chances ao
‘pensamento’75. Torna-se o sujeito um mero depositário de dados, de informações
que não lhe permitem enxergar ou se insurgir ao esquema manipulativo a que está
submetido. Torna-se, em realidade, refém deste emanharado discursivo.
3.1.3 A ação eficiente e seus alvos
Dois são os alvos dos neoliberalis quando trabalham o paradigma da
ação eficiente na perspectiva da alienação coletiva. Primeiro os membros da
máquina estatal: os funcionários públicos. Estes são adestrados e postos em fila76,
72 Afirma o autor: “La velocidad es una cuestión primordial que forma parte del problema de la economia. La velocidad es, a su vez, una amenaza tiránica, según el grado de importancia que se le dé, y, al mismo tiempo, ella es la vida misma. No se puede separar la velocidad de la riqueza. […] Se puede incluso llegar más lejos y decir que la velocidad es un medio.” VIRILIO, El Cibermundo, op.cit., p.16-17. 73 Nas palavras do autor: “desejaria dirigir-me para coisas ligeiramente menos visíveis mostrando como a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade.” BOURDIEU, Sobre a televisão, op.cit., p. 24. 74 Habermas reconhece que de fato está-se diante “de uma nova espécie de poder, ou poder da mídia, o qual não é controlado suficientemente pelos critérios profissionais. Porém, já se começa a submeter esse ‘quarto poder’ a uma regulação jurídica.” HABERMAS, Direito e Democracia, Vol II, op.cit., p. 110. 75 Tais informações, como anota Rosa, da forma como são transmitidas, não permitem “a compreensão do todo, o que atrapalha o raciocínio de quem assiste, pois as respostas estão prontas, confundindo realidade e ficção, movimentadas pela ‘urgência’ do ‘furo de reportagem’. Os substratos de sentido (poder) maquiados sob diversas formas (reportagens, tele-jornais, programas, músicas, filmes, decisões judiciais, argumentos retóricos, etc) são repetidos pela ‘cultura de massa’ e pelo senso comum teórico sem maiores pudores, sonegando-se as diferenças e negando-se a singularidade e a exclusão social que campeia os próprios excluídos que se sentem menos excluídos ao verem reproduzidos na TV o seu modo de vida.” ROSA, Direito Infracional, op.cit., p. 48. 76 Nas oportunas palavras de Legendre: “o funcionariado é acomodado como regime de propriedade e essa captura dos sujeitos permitiu garantir pela Lei o amor dos chefes.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 198.
154
funcionando, em lembrança a Arendt, como “dentes de engrenagem”77. Imaginando-
se excelentes e exemplares servidores públicos, juízes, advogados, promotores,
técnicos judiciários, assistentes administrativos cumprem suas funções e ordens
administrativas de modo irrefletido, a-crítico, muitas vezes, inconscientemente,
vilipendiando direitos fundamentais78.
A eficiência torna a relação de trabalho no serviço público em
atividade matematizada. O que importa não são os fins que um serviço público
efetivo poderia alcançar (por exemplo: redução do analfabetismo, da exclusão
social, etc.), mas sim a produtividade numérica e estatística que se poderia verificar.
Como lembra Rosa, pela eficiência busca-se um padrão de ‘qualidade total’ em
nome da melhor satisfação não mais do cidadão, mas sim do consumidor-cliente,
transformando as unidades administrativas e jurisdicionais “em objeto de ‘ISOs’, ‘5ss’
e outros mecanismos articulados para dar rapidez às demandas.”79 E quem atinge as
metas de eficiência é honrosamente prestigiado através de premiações como o
‘Prêmio Inovare’80.
Nesta perspectiva, enquadram-se os servidores e funcionários num
modelo de inspiração taylorista, em que prevalece o eficienticismo técnico-produtivo
calcado na celeridade e na produtividade – sempre a qualquer preço. Para Taylor,
considerado o ‘mestre da organização científica laboral’, trabalho producente e
lucrativo era aquele que era obtido com o menor custo e atingindo os melhores
resultados possíveis. Isto é, realizar com “140 homens o trabalho que antes
necessitava de 400 a 600”81. O que importa é, de fato, “o aproveitamento dos
77 ARENDT, Responsabilidade e julgamento, op.cit.,p. 91-93. 78 Neste sentido, tais servidores atuam de maneira similar aos oficiais nazistas que cumpriam irrefletidamente suas ordens, achando que estavam procedendo de modo correto e fazendo um grande bem para a pátria. Isso foi o que se observou em Eichmann, um militar nazista que simplesmente não tinha a real noção do que fazia. ARENDT, Eichmann em Jerusalém, op.cit., p. 60. 79 Rosa ainda lembra que a “Reforma do Judiciário foi perigosamente na linha consumidor-eficiência.” ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 213. E em outra obra, diz que “a situação brasileira segue o vácuo do modelo americano de exclusão, bastando que se veja a dimensão do Bolsa-Escola, cadastramento de famílias, ‘Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, dentre outras iniciativas – mesmo de governo que se dizem democráticos – que escondem para os incautos os mesmos mecanismos americanos de ‘normatização’ [...]”. ROSA, Direito Infracional, op.cit.,p. 33-34. Neste sentido, vide item 3.2.5. 80 Quem defende preceitos neoliberais como ‘eficiência’ e ‘celeridade’ no âmbito do Judiciário chega a ser ‘honrosamente’ premiado a exemplo do ‘Primeiro Prêmio Innovare’. Conferir: ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. A Reforma Silenciosa da Justiça: I Prêmio Innovare O Judiciário do Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2006.. 81 TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 15.
155
homens de modo mais eficiente”82. Aqui o sujeito é somente encarado, como já dizia
Arendt, como mais um dente da grande engrenagem.
Garantias e condições dignas de trabalho não são consideradas por
Taylor. Para aumentar a produtividade vale tudo: sobrecarga de trabalho, baixos
salários, condições insalubres, etc83. Os que não se enquadram neste formato são
coroados com o título de ‘vadios’84, cuja “indolência natural”85 há de ser sempre
combatida em nome da preservação do lucro. E este eficienticismo laboral, pasmem,
nem estaria restrito ao âmbito privado segundo explica Taylor. Ele ‘poderia’ e
‘deveria’ ser estendido a qualquer atividade social: “na direção de nossos lares, [...]
na administração de igrejas, de institutos filantrópicos, de universidade e de serviços
públicos”86. Mas, apesar de toda esta engenhosa proposta ‘científica’, Taylor tem ao
menos um mérito. Apresenta um único argumento coerente e realista quando explica
sobre os efeitos de seu eficienticismo administrativo:
Não apresentamos aqui panacéia para resolver todas as dificuldades da classe obreira e dos patrões. Como certos indivíduos nascem preguiçosos e ineficientes e outros ambiciosos e grosseiros, como há vício e crime, também sempre haverá pobreza, miséria e infelicidade.87
O segundo alvo da ‘ação eficiente’ é sem dúvida o sujeito humano,
agora visto e analisado a partir de uma relação não mais de cidadania, mas de
consumo. Mergulhados no grande vazio ideológico e político de nossos tempos os
sujeitos, reféns que são das ilusões produzidas pelo imaginário coletivo88, tornam-se
incapazes de resistir à lógica capitalista do Mercado. Os mais desafortunados, sem
tempo para pensar, trabalham (aqueles que conseguem trabalho) jornadas
82 TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 24. 83 Em suas palavras: “Tenho grande simpatia por aqueles que trabalham em excesso, mas, maior ainda, por aqueles que são mal pagos.” TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 29. 84 Taylor demonstra preocupação com “esse assunto tão amplo e importante da vadiagem no trabalho, que diretamente afeta o salário, a prosperidade e a vida de quase todos os trabalhadores, bem como a prosperidade das indústrias nacionais.” TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 27. 85 TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 30. 86 TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 23. 87 TAYLOR, Princípios de Administração Científica, op. cit. p. 36. 88 O recurso de condução e manobra sempre foi o senso coletivo e seu conjunto de ilusões: “[...] a consciência mistificada dos capitalistas é a condição do funcionamento adequado da economia capitalista, em outras palavras, que as leis só podem realizar-se ‘utilizando’ as ilusões dos indivíduos, ele mostra ainda num imaginário específico uma das condições de funcionalidade." CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 160.
156
absurdamente excessivas - somente testemunhadas durante o período espoliante
da Revolução Industrial -, visando à sobrevivência. E os que possuem algum recurso
para estudar, são entregues a um sistema de ensino do tipo ‘bancário’ (Freire),
armazenando informações e aprendendo habilidades sem qualquer senso crítico.
A eficiência, especialmente após sua positivação constitucional, é
habilmente trabalhada para ir além da Administração Pública. Quer-se, efetivamente,
atingir a sociedade e individualmente os sujeitos. Como propôs Taylor, a ação
eficiente seria a solução não somente para a relação laboral, mas também para
todas as relações humanas. E os neoliberais souberam muito bem aproveitar isso. A
eficiência hoje é exigida para educação dos filhos89, para as relações conjugais, para
o ensino de formação, para obter sucesso e prosperidade na vida pessoal, enfim,
para quase tudo. Basta se ver os incontáveis manuais de orientação e de auto-ajuda
que circulam em sociedade com seu infinito rol de métodos e regras ‘neutras’ e
‘objetivas’, sempre voltados ao mito ‘sucesso’ (sucesso no trabalho, sucesso no
amor...).90
3.1.4 O Eficienticismo individualista e a democracia: incompatibilidades
A democracia, por óbvio, também não escapa ilesa. Na percepção
neoliberal, a democracia está pautada em procedimentos frios e dotados de uma
pseudo neutralidade. A concepção clássico-liberal de democracia não mais atende
aos propósitos do projeto neoliberal, que rejeita sua condição de regime político
voltado para garantias e direitos. Isto, por uma evidente incompatibilidade com a
construção racional da instituição Mercado que, totalizando seu alcance, exige, para
seu pleno e ‘ordenado’ funcionamento, um ambiente ‘absolutamente’ espontâneo,
próprio de um processo evolucionista. 89 Exemplo disto é o programa televisivo ‘Super Nani’ do SBT, apresentado em rede nacional pela argentina Nani Venâncio, voltado para a educação e ‘disciplinamento’ dos filhos. 90 Com Jeanine Philippi: “Em um tempo no qual o projeto ultraliberal apresenta como expressão definitiva de um mundo sem limite, o ufanismo publicitário que valida o consenso em torno dessa ordem sinistra nos faz acreditar no anacronismo desse grito de alerta. Marcados pela lógica dessa deriva, os juristas – entendendo que o direito deve acompanhar os costumes – se empenham na produção de um manual qualquer de felicidade, certo de que, com método, chegarão à fórmula final para a distribuição das liberalidades necessárias à saciedade dos sujeitos úteis à reprodução das democracias de mercado.” PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A forma e a força da Lei – reflexão sobre um vazio. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.) Direito e Psicanálise: Interseções a partir de ‘O Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 107.
157
Esta concepção ‘procedimental’ de democracia, como bem lembra
Castoriadis, tem sua gênese na ‘crise das significações imaginárias’ concernentes
às finalidades da vida coletiva91. Logo, abandonando-se o parâmetro gregário dos
fins coletivos, para assumir o novo paradigma dos meios, a Democracia somente
pode existir na condição de método, de técnica organizativa de procedimentos
‘neutros’ e a-valorativos92 absolutamente descomprometidos com qualquer
funcionalidade coletivista. Esta funcionalidade passa a ser fortemente combatida
como algo retrógrado, como uma herança das sociedades tribais que ainda viam na
solidariedade93 e na relação comum a melhor fórmula de convivência social.
Por evidente que este posicionamento erigido pela doutrina
neoliberal, com seu histórico e radicalizado individualismo libertário, encontra-se
maculado por um sério vício de origem. Segundo Castoriadis, esta “filosofia política
contemporânea”, bem como “o essencial do que passa por ciência econômica”, são
fundadas “nesta ficção incoerente de um indivíduo-substância, bem definido em
suas determinações essenciais fora ou antes de toda sociedade [...]”. Para o autor,
“é sobre este absurdo que se apóiam necessariamente tanto a idéia da democracia
como simples ‘procedimento’, como o pseudo-individualismo contemporâneo”.94
Como se observa, o neoliberalismo trabalha com uma nova e
perniciosa racionalidade: a perspectiva agora não é mais aquela de um sujeito
‘autoreferenciado’, ‘autodeterminante’ de si, autônomo, que tem a razão absoluta e
infalível como guia, mas sim um sujeito ‘reificado’, considerado como ‘peça’ num 91 CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto: a ascenção da insignificância. Vol IV. Trad. Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 255. 92 Explica o autor: “[...] o ‘liberalismo’ extremo retorna a uma afirmação de substância: o que os ‘mecanismos de mercado’ ou a ‘livre iniciativa individual’, etc. produzem é ‘bom’ ou ‘menos ruim possível’, ou então: aqui não cabe nenhum julgamento de valor. (As duas afirmações, contraditórias evidentemente, são simultaneamente ou sucessivamente defendidas por F. Von Hayek, por exemplo). Dizer que não cabe nenhum julgamento de valor sobre o que a sociedade ‘espontaneamente’ produz leva ao niilismo histórico total e significa afirmar que qualquer regime (stalinista, nazista, ou outro) vale o mesmo que qualquer outro”. CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op. cit., p. 267. 93 Quanto à solidariedade em tempos neoliberais, Coutinho, citando Assmann, explica que vivemos um “boqueio básico de solidariedade humana’ produzido pela lógica de mercado. E é fácil compreender que a messianização do mercado irrestrito funciona como cobertura ideológica, extremamente eficiente, para aquela insensibilização profunda de inúmeros seres humanos diante das necessidades de seus semelhantes, que – com o devido perdão dos brutos – chamo de embrutecimento burguês.” COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op.cit., p. 57. 94 CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 257.
158
jogo de xadrez. Esta reificação, já denunciada por Marx no passado, desumaniza e
‘coisifica’ o sujeito humano, o que permite ao neoliberalismo operar o ‘feitiço’ que
transforma o homo faber, em homo economicus;95 que transforma o cidadão -
metamorfoseado no melhor estilo Kafkaniano96 - antes sujeito racional de direitos,
em mero, consumidor, cliente.
O sujeito torna-se entidade numérica, agora visto em face dos modos
de produção. Suprimem, neste liberalismo extremado, a substância racional e
essencial que os racionalistas clássicos cultuavam, e no lugar deixam o vazio, o
vácuo, a ser preenchido quando e com o conteúdo que melhor lhes aprouverem. O
sujeito volta a ser visto através do ‘olhar biológico’, como uma mera espécie em
evolução. As prioridades do sistema não são mais os sentimentos e as convicções
racionais do indivíduo, mas sim seus instintos, impulsos e necessidades (a serem
sedutoramente atendidas pelo Mercado).
Por isso é que a ‘tautologia darwiniana’97 encontra aqui fértil e
fecundo terreno de aplicação. Com a tese evolucionista, os neoliberais encontraram
a fórmula precisa para lançar o homem contra sua própria falibilidade, jogá-lo ao
desconhecido de uma ordem espontânea, serrando-lhe o mastro de sustentação que
representava a ‘razão transcendental’ de inspiração Kantiana. Sem razão
trascendente, sem autoafirmação, e voltando a crer numa instituição, agora não
mais centralizada mas diluída nas forças econômicas, o sujeito se vulnerabiliza e se
95 Castoriadis explica que a reificação do sujeito operada pelo capitalismo, trata-se, mais genericamente “de ‘dezumanização’ dos indivíduos das classes exploradas em certas fases históricas: um escravo é visto como ‘animal vocal’, o operário como ‘parafuso de máquina’ ou simples mercadoria. [...] Um escravo não é um animal, um operário não é uma coisa. [...] A reificação é uma significação imaginária (inútil salientar que o imaginário social, tal como o entendemos, é mais real do que o ‘real’). [...] o que está em questão na reificação - no caso da escravidão ou no caso do proletariado – é a instauração de uma nova ‘significação operante’, a captação de uma categoria de homens por uma outra categoria como assimilável em todos os sentidos práticos, a animais ou coisas.” CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 170-171. E esta reificação é sempre totalizante: “A pseudo-racionalidade ‘analítica e reificante’ tende a ceder lugar a uma pseudo-racionalidade ‘totalizante’e ‘socializante’ não menos imaginária”. CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 191. 96 A lógica desse liberalismo desmedido submete o sujeito humano a um processo de transformação tão radical e intenso que nos remete à Gregor Samsa, personagem criado por Kafka, que passa por processo de metamorfose real onde as mudanças não ocorreram somente para ele, o metamorfoseado, mas sim ocorreram para todo o mundo ao seu redor, alterando as relações de convivência e o status quo de sua própria existência mundana. KAFKA, Franz. A Metamorfose. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2001. 97 CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 257-258.
159
emaranha nas teias do ideário mercadológico.98O sujeito, agora sem ‘gravidade’99,
passa a ser possuído pela própria instituição (Mercado)100.
Evidentemente que, segundo Castoriadis, este modelo ‘fraudulento’
de democracia neoliberal101 propositadamente esquece que os ‘procedimentos’
devem ser aplicados por seres humanos. Não os seres humanos vistos a partir de
uma perspectiva ‘indivíduo-substância’, mas sim por aqueles serem humanos
‘efetivos’, autônomos, dotados de uma almejada ‘liberdade efetiva’. Precisar-se-ia
abandonar aquela idéia enganosa de que a aplicabilidade dos ‘procedimentos’
democráticos caberia a sujeitos-operadores do Direito com capacidade sobrenatural
– tal qual o ‘juiz Hércules’ de que fala Dworkin -, a partir de sua sabedoria
‘extramundana’, neutra e pura.102
Outro ponto importante anotado pelo filósofo grego, é que se tem de
romper definitivamente com a idéia já instaurada em nosso imaginário de
‘negatividade’ e ‘formalidade’ de direitos e liberdades individuais que, segundo o
autor, acabam por respaldar uma visão procedimental da democracia. Os neoliberais
sempre utilizam os preceitos democráticos como enunciados negativos de modo a
98 Castoriadis explica que o sujeito humano “é presa de um campo sócio-histórico, é colocado sob o domínio ao mesmo tempo do imaginário coletivo instituinte, da sociedade instituída e da história, da qual esta instituição é o resultado provisório”. CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 258. 99 Melman com seu neologismo, diz que “o homem liberal” é “um sujeito novo, ‘sem gravidade’, cujo sofrimento, é claro, vai ser diferente. Observamos novas expressões clínicas do sofrimento, pois este, apesar da felicidade que a nova economia psíquica é suposta nos assegurar, vem nos lembrar que sempre, em algum lugar, há um impossível, que há sempre em algum lugar algo que capenga.” MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 96. 100 LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 109 e seguintes. 101 CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 264. 102 Castoriadis afirma: “mas todo o ‘procedimento’ deve ser aplicado por seres humanos. E estes devem poder aplicar e se limitar a aplicar este procedimento segundo o seu ‘espírito’. Quem são estes seres, e de onde eles vêm? Somente a ilusão meramente metafísica – aquela de um indivíduo-substância, pré-formado em suas determinações essenciais, para o qual o seu pertencer a um meio sócio-histórico definido seria tão acidental quanto a cor de seus olhos – permitiria evitar esta pergunta. Postulamos aqui a existência efetiva (estamos na política efetiva, não nas ‘ficções’ ‘contrafactuais’), a existência de átomos humanos, já dotados não apenas de ‘direitos’ etc., mas de um conhecimento perfeito das disposições do Direito (sem o que seria necessário legitimar uma divisão do trabalho estabelecida, uma vez por todas, entre ‘simples cidadãos’ e juízes, administradores, legisladores, etc.), os quais tenderiam por si mesmos, inelutável e independentemente de toda formação, histórica singular, a se comportarem como átomos jurídicos-políticos. Esta ficção do homo juridicus é tão irrisória e inconsistente quanto a do homo oeconomicus, e a metafísica antropológica que os dois pressupõem é a mesma. Para a visão ‘procedimental’, os seres humanos (ou uma boa parte deles) deveriam ser puros entendimentos jurídicos. Mas os indivíduos efetivos são bem diferentes”. CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 268.
160
compatibilizar a necessidade de espontaneidade do Mercado, e no intuito de
consolidar a figura de um sujeito de substância vazia que poria em prática a ação
eficiente.
O problema disto tudo é, sem dúvida - e quanto a isto já alertava
Rosa -, o rompimento desejado pelos liberais extremados com as regras do jogo
democrático em nome deste paradigma de eficiência103, que desertifica a política104,
e coloca a economia como prioridade pseudo-ideológica. A democracia
definitivamente não é procedimento. Não constitui conjunto frio e calculista de regras
e métodos a serviço dos ‘meios’ humanos conduzidos numa espontaneidade
natural-mercadológica de fim incerto. Procedimentos, e isso deve-se reconhecer,
são úteis para o funcionamento do mecanismo democrático ancorado num
arcabouço positivo-constitucional posto. Mas admitir a viragem discursiva pretendida
pelos neoliberais que joga o significante procedimento para o seio do significado de
democracia é inconcebível! Miglino, em sua verdadeira ‘cruzada’ em defesa da
democracia pontua:
A democracia não é apenas procedimento. Antes de tudo, o mesmo princípio dialético procedimental é já um valor que pressupõe a operatividade de outros princípios: liberdade de opinião e de expressão; liberdade de obtenção de informação imparcial e correta; publicidade dos fatos que se referem à esfera pública. Já que um momento essencial da democracia é a escolha dos governantes, como poderia, de maneira eficaz, o povo fazer uma escolha do gênero sem gozar da liberdade intelectual e sem poder dispor de informações sobre a realidade? Além disso, todos os direitos subjetivos públicos são o meio através do qual a democracia tutela o desenvolvimento da pessoa humana. Isso se dá, como é particularmente evidente no caso dos direitos sociais, mediante a solidariedade que existe em nível coletivo. Trata-se de garantir valores que estão para além do procedimento e mesmo assim o condicionam às decisões. A desconcentração e difusão do poder (Tocqueville falava de ‘esfacelamento’ do poder), que é a base necessária para o gozo dos direitos do homem, serve para garantir um mundo mais igual. Por isso o procedimento é um dos elementos que caracterizam a democracia, talvez o mais importante, mas certamente não é o único.105
103 ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 218. 104 CASTORIADIS, As Encruzilhadas do Labirinto, op.cit., p. 273. 105 MIGLINO, Arnaldo. Democracia não é apenas procedimento. Trad. Erica Hartmann. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p .20.
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O que se percebe, e até com certa facilidade, é que a vertente
neoliberal ‘fetichiza’, para o senso social, o discurso eficientista-economicista106
através deste argumento despolitizado de uma ‘democracia procedimental’. Desta
forma, desreferenciando o cidadão, antes sujeito de direitos e agora sujeito
‘constitucional’ da eficiência (do Mercado-consumo), o neoliberalismo combate o
inimigo (o Estado) partindo de dentro de sua própria ‘fortaleza’: a Constituição da
república. E o Direito, que antes protegia, resguardava e preservava a democracia,
agora encontra-se a serviço deste inegável ‘golpe institucional’ (Bonavides)107.
3.2 A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA
3.2.1 A eficiência e a manipulação ‘cínica’ do Direito
O movimento neoliberal, com sua estratégia de atacar o Estado e
suas estruturas administrativas e judiciárias “por dentro” - através da rebatizada
‘Constituição eficiente’ -, e contando sempre com a alienação social e com a
estrutura dominante do establishment jurídico vigente, procedeu, de modo velado e
sorrateiro, uma viragem inimaginável por muitos dos juristas pátrios: tornou Direito a
seu propósito, transformando-o, subliminarmente, em mecanismo e instrumental a
serviço de seu projeto ideológico-econômico.
Jogando com os significantes ‘eficiência’ e ‘efetividade’ como se
sinônimos fossem, e amparando-se na ‘legitimação’ dada pelo texto constitucional
que autoriza o discurso eficientista em âmbito público, os neoliberais ludibriaram (e
ainda ludibriam) grande parte do corpo judiciário e dos cidadãos, aproveitando-se do
endêmico ‘desconhecimento’ e ‘pouca percepção’ da lei em sociedade, o que
Cárcova denomina de ‘opacidade do Direito’108. Isso evidencia que muitos seguem
repetindo e praticando o discurso eficientista sem se darem, ao certo, conta do que
realmente estão fazendo.
106 Já diria Castoriadis: “[...] o fetichismo capitalista do ‘gesto eficaz’, ou do indivíduo definido por testes, determina a vida real do mundo social”. CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 191. 107 BONAVIDES, Do país constitucional ao país neocolonial:, op. cit., p. 23. 108 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit.
162
Sendo o Direito ‘opaco’, de ‘difícil compreensão’ e por muitos
‘desconhecido’, ficou muito mais fácil ‘violentar simbolicamente’ (Bourdieu) a norma,
impondo as significações de conveniência neoliberal. Há, como registra Cárcova, um
manifesto ‘desconhecimento do Direito’, isto é, um desconhecimento por parte da
sociedade quanto ao seu verdadeiro alcance, e quanto às significações que implica
para o imaginário social109. E esta é uma das formas que o Direito serve ao
liberalismo extremado: é utilizado como técnica social de controle e sistematização
das relações humanas, fazendo com que a maioria, sempre em ‘fila’, reproduzam os
ritos ditados em nome da eficiência, de modo absolutamente irrefletido. Cárcova
afirma:
Existe, pues, uma opacidad de lo jurídico. El derecho, que actúa como una lógica de la vida social, como un libreto, como una partitura, paradójicamente, no es conocido o no es comprendido por los actores en escena. Ellos cumplen ciertos rituales, imitan algunas conductas, reproducen ciertos gestos, con escasa o nula percepción de sus significados y alcances. Los hombres son aprehendidos por el derecho desde antes de nacer y, por intermedio do derecho, sus voluntades adquiren ultraactividad, produciendo consecuencias aun después de la muerte. El derecho organiza, sistematiza y otorga sentido a ciertas relaciones entre los hombres: relaciones de producción, relaciones de subordinación, relaciones de apropriación de los bienes.110
E como o discurso jurídico oficial refuta categoricamente a alegação
de ‘desconhecimento da lei’, o cidadão/servidor, como lembra Rosa, afanando ser o
‘bom sujeito’ ou um ‘bom funcionário’ cumpridor de suas obrigações111, obedece e
pratica a lei que lhe é ditada, agora, de modo ‘eficiente’, sem compreendê-la, sem se
dar conta das conseqüências de sua prática112, ou sem conhecer absolutamente
nada do ordenamento113. Cumpre a lei como um imperativo categórico moral (Kant):
109 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 18. 110 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 18-19. 111 ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 337. 112 Com Cárcova: “El problema – formulémoslo ahora de forma elemental y detallada – consiste en que los hombres, sujetos de derecho, súbditos que deben adecuar sus conductas a la ley, desconocen a ley o no la comprenden. Esto es, desconocen el estatuto jurídico de los actos que realizam o no lo perciben con exactitud o no asumen los efectos generados por tales actos o tienen confusión respecto de unos o de otras. Son formas distintas de este fenómeno que venimos llamando ‘no compreensión’ o ‘efecto de desconocimiento’ o ‘opacidad’ del derecho, que obedece a múltiples y heterogenias razones y que se manifiesta de diversa manera según las características de cada formación histórico-social y, obviamente, de las condiciones concretas, sociales y personales, de cada individuo o conjunto de individuos.” CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 20-21. 113 Rosa aduz que “tal situação é agravada contemporanemente pelo desenvolvimento científico e tecnológico e suas redes de informação que investem diuturnamente sobre a possibilidade de
163
‘cumpro por que devo cumprir!’. E isto ocorre porque, desde a modernidade, trata-
se de uma das pilastras de sustentação do Direito114. A eficácia e validade do Direito
estão ancoradas na negação ao ‘desconhecimento da lei’. É assim que se trabalha
simbolicamente o Direito enquanto artifício de ficções, pressupondo-se sempre, de
forma neutra e imparcial, é claro, que todos, por serem iguais perante a lei, têm
capacidade e condições de conhecê-la, de dominá-la.115
Evidentemente que esta não (ou má) compreensão do Direito por
parte do cidadão é habilmente utilizada com propósitos de manipulação e
ocultamento116. O desconhecimento sistematizado da lei mascara e oculta as
relações de poder que conduzem e direcionam o Direito, além de oferecer campo
fértil para a homogeneização e naturalização da ideologia economicista. Por isto o
fomento à anomia, à falta exacerbada de efetividade das leis e da Constituição da
República. A opacidade, como lembra Cárcova, “se alimienta, también, de variadas
formas de anomia”117.
Este é o “modus operandi” da dissimulação ideológica118 que, através
deste ‘obscurecimento do jurídico’- tornando a lei indisponível, inacessível, e
secreta119 - procura velar as relações de poder que ocorrem no momento de
‘fabricação’ da lei. Com um Direito distante, inefetivo, burocrático, e de gênese e
funcionamento desconhecidos, abrem-se as portas para os deslocamentos
simbólicos no imaginário ideológico. Com o uso ideológico do ‘desconhecimento da
lei’, procura-se cristalizar e padronizar o discurso do Direito - que é, em realidade,
absorção racional do indivíduo, bastando, para tanto, perceber-se a pletora de leis em vigor, cujo conhecimento sistemático se mostra como absolutamente inviável.” ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 337. 114 Rosa explica que “a opacidade do Direito, portanto, constitui-se em pedra de toque da manutenção do fantasma da coerção estatal”. ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 339. 115 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 18-19. 116 Cárcova afirma que “la no comprensión, que tiene que ver con la profusión normativa, con las complejidades técnicas de los institutos, con factores socio-estruturales, con mecanismos de manipulación y ocultamiento que juegam un papel el la constitución y en la reproducción de las hegemonias sociales, con los contenidos ficcionales del derecho, con la variedad y cruce de pautas culturales que constituyen las visiones sociales fragmentadas de nuestras grandes urbes de fin de siglo, etc.” CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 43. 117 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 61. 118 CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 157. 119 Com Warat: “A ciência juridica, como discurso que determina um espaço de poder, é sempre obscura, repleta de segredos e silêncios, constitutivo de múltiplos efeitos mágicos e fortes mecanismos de ritualização, que contribuem para a ocultação e clausura das técnicas de manipulação social. Respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches, a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os, assim, menos visíveis.” WARAT, Introdução Geral do Direito, Vol. I, op.cit., p. 57.
164
como se sabe, um discurso de poder120. Por isso ser necessária a permanente
‘reprodução do efeito do desconhecimento’. Mantendo-se o desconhecimento,
mantém-se o poder.121 Esta é a lógica.
Mas para isto - para mantença do poder - é preciso uma estrutura
logística: e é aí que a burocracia assume papel importante. Através do que Legendre
denomina de ‘transplantação da burocracia privada’, os neoliberais - assim como os
canônicos - também utilizam o aparato burocratizante do Direito estatal para ‘manter
todos sob crença’, em total e resignada submissão ao poder122. No entanto,
substituem a ‘burocracia estatizante’ pela ‘burocracia privada’ com a técnica do
‘fazer-funcionar’ através do ‘fazer-crer’123, sempre carreadas por todas as premissas
da ação eficiente: competitividade, a produtividade, a qualidade total, o atingimento
de metas estatísticas, etc.124 Ou seja, giram o discurso manipulando simbolicamente
o sentido125, mas a fé permanece intacta.
Usando a mesma estratégia dos medievais em relação à estrutura
burocratizada da instituição igreja-Estado, o neoliberalismo ‘sacralizou’ o Mercado
120 O autor fala que “el derecho como discurso de poder se despliega entonces con el sentido que los miembros de la relación implicada, individuos, grupos o clases, consiguen imponerle, en el dessarrollo de suas proprias y contracditórias estrategicas históricas.” CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 162. 121 Com Cárcova: “[...] el poder asentado en el conocimiento del modo de operar des derecho se ejerce, en parte, a través del desconocimiento generalizado de ese modo de operar. La preservación de ese poder requiere la reproducción el efecto de desconocimiento. Requiere, en fin, opacidad.” CÁRCOVA, La opacidad del derecho, op.cit., p. 164. 122 De não se afastar a influência do pensamento de Max Weber neste sentido. Conferir: WEBER, Economia e Sociedade, Vol. II, op.cit., p. 187 e seguintes. 123 Com Legendre, vê-se que o que vale é “a submissão política aos oráculos investidos do encargo supremo do fazer-funcionar e do fazer-crer. Do ponto de vista da totalidade simbólica, o espírito proprietário, e o espírito hierárquico são uma única e mesma coisa.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 200. 124 Legendre explica que se procura “fazer crer que as Administrações públicas vão se tornar simples empresas fundadas sobre o rendimento. [...] Observemos isto: há duas burocracias, a do Estado e a do setor privado. Esse distinguo, histórica e sociologicamente fundamental, atrai a atenção para dois modos diferentes de tratamento do desejo pela instituição. Aqui têm importância o Estado e seu Direito, dos quais trataremos principalmente. É aí que se vê claramente que a primeira função de uma burocracia é produzir lugares, fazer entrar, proteger, mediante a submissão. [...] Desse modo, o Direito Administrativo continua sendo um veículo privilegiado dos lugares comuns da tradição latina e principalmente no que diz respeito a essa questão da nutrição dos sujeitos pela instituição.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 194-195. 125 De se salientar que “o discurso não é independente do simbolismo, e isso significa uma coisa bem diferente de uma ‘condição externa’: o discurso é tomado pelo simbolismo. Mas isso não quer dizer que lhe seja fatalmente submetido. E, sobretudo, o que o discurso visa é outra coisa que o simbolismo: é um sentido que pode ser percebido, pensado ou imaginado; e são as modalidades dessa relação, com sentido que fazem um discurso ou um delírio.” CASTORIADIS, A Instituição Imaginária da Sociedade, op.cit., p. 169.
165
tornando um mero fenômeno econômico como a relação ‘oferta-procura’ em ‘lei’, em
lugar do sagrado (do segredo). Não por acaso falam sempre que a atuação pauta-se
pela ‘Lei do mercado’. Estava, assim, substituído o sustentáculo da submissão e do
amor ao poder126. Substituindo-se o desejo pela Lei127, os neoliberais passam a
servir-se do Direito e do discurso jurídico para legitimar seu ideário, de modo a
naturalizar – como ‘passe de mágica’ - o individualismo radical, e a pacificar a
sociedade em torno da ‘ação eficiente’ fazendo com que todos cumpram
irrefletidamente os ‘procedimentos’.128
E o que mais impressiona em toda esta manietação ideológica
praticada pelos eficientistas é que aquela ‘certa ingenuidade’ própria dos tempos de
um liberalismo clássico tornou-se coisa do passado. Lamentavelmente não se pode
mais, a exemplo de Marx, dizer que “disso eles não sabem, mas o fazem”129. A nova
lógica liberal contemporânea, que conscientemente utiliza o Direito a seus
propósitos, se reveste do que Sloterdijk, citado por Zizek, chamou de ‘razão
cínica’130. Para Zizek, “eles sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim
continuam fazendo”131. A dissimulação e o cinismo são as marcas fortes deste
liberalismo sem limites.
Aquela ‘consciência ingênua’, em que a ideologia desconhecia “suas
condições, suas pressuposições efetivas, e seu próprio conceito”, e que “implicava
uma distância entre o que efetivamente se fazia e a ‘falsa consciência’”132 que se
126 “A Lei se tornou um lugar inacessível onde reside o poder”. LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 177. 127 Em suas palavras: “Trata-se de aprofundar o papel do sábio no jogo da instituição para colocar sob crença os sujeitos da Lei. A tarefa do doutor é esta: conduzir cada um a se conformar à verdade do semblante, classificar magistralmente o erro, e relançar a Lei em um universo luminoso.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 90. 128 Ainda Legendre: “A crença, eis para nós um termo chave, a fim de convencer o leitor de que na instituição social como na neurose, não estamos longe do fazedor de feitiços. O trabalho do jurista (depois, o de seus sucessores hoje na empresa dogmática) é exatamente a arte de inventar as palavras tranqüilizadoras de indicar o objeto de amor onde a política coloca o prestígio e de manipular as ameaças primordiais.” E mais adiante: “O sistema jurídico funciona para peneirar, descolorir e recolorir, destruir e reconstruir tendo em vista a grande obra: adestrar para o amor do Poder.” LEGENDRE, O Amor do Censor, op.cit., p. 24 e 34. 129 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, p. 59. 130 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 59. A obra é “Crítica da Razão Cínica” de Peter Sloterdijk, lançada na Alemanha. Também conferir: SLOTERDIJK, Peter. Experimentos con un mismo: una conversación con Carlos Oliveira. Trad. Germán Cano. Valência: Pre-Textos, 2003. 131 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 59. 132 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 59.
166
tinha disso, desapareceu133. No eficienticismo neoliberal não há inocência ou
desconhecimento por parte de seus animadores. Talvez haja, por parte dos incautos
que insistem em prosseguir praticando esta nova ética mercadológica sem se darem
conta de seus verdadeiros efeitos. Zizek explica:
A razão cínica já não é ingênua, é o paradoxo de uma ‘falsa consciência esclarecida’: estamos perfeitamente cônscios da falsidade, da particularidade por trás da universalidade ideológica, mas, ainda assim, não renunciamos a essa universalidade... [...] O cinismo é justamente a resposta da cultura vigente à subversão cínica: reconhecemos o interesse particular por trás da máscara ideológica, mas mesmo assim conservamos a máscara. O cinismo não é uma postura de imoralidade direta, mas, antes a própria moral colocada a serviço da imoralidade: a ‘sabedoria’ cínica consiste em apreender a probidade como a mais rematada forma de desonestidade, a moral como a forma suprema da devassidão e a verdade como a forma mais eficaz da mentira.134
Este permanente logro, esta incessante dissimulação135 que respalda
a racionalidade eficientista é habilmente utilizada para ‘escravizar’136, e
conseqüentemente legitimar o imenso abismo social de nossos tempos. Por isso “a
coisa mais insuportável para a postura cínica é ver transgredir a lei abertamente”137.
O que vale é seduzir, enganar, fazendo a todos quererem o que realmente não
querem, consumirem o que não precisam, desejarem o que não almejam. Aí está o
gozo138. A manipulação oferece aos neoliberais esse doce sabor que o
133 Com Zizek: “Tomemos um exemplo clássico que, ele mesmo, não deixa hoje de dar a impressão de uma certa ingenuidade: a universalidade ideológica, a noção ideológica da ‘liberdade’ burguesa compreende, inclui uma certa liberdade – a que tem o trabalhador de vender sua força de trabalho -, liberdade esta que é a própria forma de sua escravidão; do mesmo modo, a relação de troca funciona, no caso da troca entre a força de trabalho e o capital, como a própria forma de exploração”. ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 59. 134 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 60. 135 Zizek afirma que “[…] es muy facil mentir con el ropaje de la verdad. […]. La forma más notable de ‘mentir con el ropaje de la verdad’ hoy es el cinismo: con una franqueza cautivadora, uno ‘admite todo’ sin que este pleno reconocimiento de nuestros intereses de poder nos impida en absoluto continuar detrás de estos intereses.” E ainda: “[…] la lógica misma de la legitimación de la relación de dominación debe permanecer oculta para ser efectiva.” ZIZEK, Slavoj. El espectro de la ideologia. In: ZIZEK, Slavoj (comp.). Ideologia: um mapa de la cuestión. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 1994. p.15. 136 Com Zizek: “[…] la ideologia es la forma precisa em que nos volvemos sus esclavos.” ZIZEK, El espectro de la ideologia, op.cit.,p. 13. 137 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 60. 138 Tocante à expressão ‘gozo’, com Melman vê-se que: “quando o termo é empregado por analistas, não se deve entendê-lo em sua acepção usual, ainda que nem por isso esteja dissociado dela. Com efeito, comumente o terno ‘gozar’ remete ao gozo sexual e, a esse título, deixa entender que parcialmente tem uma ligação com o prazer. Mas, simultaneamente, o gozo está além do prazer. Aliás, Lacan indicou que o prazer era uma maneira de se proteger do gozo. Da mesma forma que Freud indicava que havia um ‘além do princípio do prazer’. Assim beber um vinho de qualidade pode
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enfrentamento declarado não proporcionaria. Além do mais, desse modo, tudo se
torna muito mais lucrativo e rentável. Sempre.
Não obstante, como bem adverte Zizek, “eles ainda não sabem
‘exatamente’ o que fazem”139. Ocorre, que apesar de toda a falta de ingenuidade e
toda a maledicência que permeia a lógica economicista/eficientista - tornando o
sujeito como dado reificado no novo formato, anotado por Rosa, de ‘consumidor-
cliente’140 -, a racionalidade neoliberal pensa ser capaz, com suas intenções
universalizantes e totalizantes, de ‘controlar’ todo o funcionamento e efeitos de seu
modelo. Vã pretensão. Conforme explica Zizek, o cinismo de que se tratou
anteriormente pauta-se numa fantasia ideológica marcante, que acaba por estruturar
e construir a própria ‘realidade’ social141. E isto não pode ser ignorado, face aos seus
perversos e inescusáveis efeitos.
Muitos daqueles “que sabem o que fazem”, ainda assim “não
acreditam no que fazem”142. São, assim, movidos por uma fantasia, por fetiches que
preenchem a lacuna da falta de significado aos significantes impostos. Um exemplo,
segundo Zizek, é o próprio ‘fetichismo do dinheiro’143. Como se sabe, o dinheiro não
passa de instrumento útil de troca nas relações (econômicas) humanas. No entanto,
também é visto (e por vezes trabalhado neste sentido) como um símbolo forte que
‘encarna o desejo de riqueza’, e de acumulação material144. Isto é, o sujeito diante
deste fetiche é movido pela fantasia apreendida pelo seu imaginário, e que tem
implicações (seríssimas) para a realidade.
ser qualificado de prazer, mas o alcoolismo transporta o sujeito para um gozo do qual ele seria, sobretudo, o escravo. Por extensão, a palavra pode ser utilizada para designar o próprio funcionamento de um sujeito enquanto aquele que repete infatigavelmente tal ou qual comportamento sem de modo nenhum saber o que o obriga a assim permanecer – como um rio – no leito desse gozo”. MELMAN, O Homem sem Gravidade, op.cit., p. 204. 139 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 61. 140 ROSA, Decisão Penal, p.213. 141 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 61. 142 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 61. 143 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 62. 144 Como afirma Zizek, “en este preciso sentido, el dinero, para Marx, es un fetiche: yo finjo ser un sujeito racional, utilitarista, perfectamente consciente de cómo son las cosas realmente – pero encarno mi creencia denegada en el dinero-fetiche... -.En ocasiones la línea entre ambos es casi indiscernible: un objeto puede funcionar como síntoma (de un deseo reprimido) y casi simultáneamente como un fetiche (personificando la creencia a la que renunciamos oficialmente).” ZIZEK, Amor sin piedad, op.cit., p. 22-23.
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Forja-se uma descontrolada “fábrica da mentira”145 com o predomínio
de aparências e visões ficcionistas do mundo. Mesmo com cinismo e com
‘esperteza’ concorrente-eficiente, o Mercado acaba por se tornar um fabricante de
ilusões fetichistas, que cegam e alienam a maioria das pessoas. Coloniza-se o
imaginário coletivo146, gira-se o discurso a todo o tempo, e a extravagante maioria
pensa ter consciência do que está fazendo ou a quem está servindo. Mas, em
realidade, não tem. São guiados por um emaranhado de crenças que alimentam
permanentemente o ‘inconsciente coletivo’, e que a todo o tempo estabelecem
novos valores, novos princípios, que não param de mudar e girar. Esta também é
outra astuta estratégia dos neoliberais: ‘a velocidade’, como já denunciou Virilio147.
Desta forma, para Zizek, o axioma passa a ser: “eles sabem muito
bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas, mesmo assim,
continuam fazê-lo”148. Sabem que “a liberdade que pauta sua atividade dissimula um
interesse particular da exploração e, no entanto, continuam a se pautar por ela...”149.
Essa é a dura e crua realidade. A nova lógica liberal, servindo-se da estrutura
enigmática da lei, usa de um conjunto de ilusões e ficções para ocultar seu
verdadeiro projeto, qual seja, o de fazer corroer o próprio Estado e vulnerabilizar o
Direito, tornando-o mero conjunto normativo de ‘condutas gerais’. Somente assim,
este instituto estaria devidamente coadunado com a espontaneidade que o Mercado
exige. Vale, pois, o que efetivamente legitima o ‘reino da lei’: a lei é a lei, e ponto
final150.
3.2.2 A pretensão ‘mítico-libertadora’ do Princípio da Eficiência
145 Com Zizek: “Así pues, el ‘budismo occidental’ es perfectamente equiparable al modo de ideología fetichista en esta época nuestra supuestamente ‘post-ideológica’, como opuesto a su modo tradicional sintomático, en el cual la mentira ideológica que estrutura nuestra percepción de la realidad se ve amenazada por síntomas en forma de ‘retornos de lo reprimido’, en forma de grietas en la fábrica de la mentira ideológica. El fetiche es, efectivamente, una suerte de envés del síntoma. [...] el fetiche es la personificación de la mentira que nos permite mantener la verdad insuportable.” ZIZEK, Amor sin piedad, op.cit., p. 21-22. 146 ZIZEK, Amor sin piedad, op.cit., p. 78. 147 VIRILIO, El cibermundo, op.cit., p. 16-17. Vide subcapítulo 3.1. 148 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 63. 149 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 63. 150 ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 64.
169
E é neste exato sentido que talvez o Direito preste seu ‘melhor’ e
‘mais eficiente’ serviço: fornece o instrumental necessário para o ‘fazer-crer’. Não por
acaso os neoliberais articularam com sabedoria o que Ost chamou de “mito da lei
perfeita”151. Através do princípio da eficiência, erigido à condição positivo-
constitucional, fizeram simplesmente o rodopio discursivo, deixando a crença intacta.
Aproveitaram-se da secular submissão social à lei, e procederam a indisfarçável
‘colagem’ de significado aos significantes autocraticamente impostos.
Com o referido ‘mito da lei perfeita’, que estabelece a lei como um
mandamento ‘bíblico-sagrado’ vindo de um lugar secreto, divino, inalcançável,
consubstancia-se a submissão incondicional ao texto legal152. Descumprir,
questionar ou tentar melhor compreender a lei passa a constituir ‘pecado capital’.
Nesta perspectiva, a legitimidade e a validade da lei são vistas, tão somente, a partir
de sua forma independentemente de seu conteúdo153. Com este artifício, procuram
fazer todos amarem devotamente a lei, passando a servi-la e a obedecê-la a-
criticamente154. Não é sem motivo que, após a emenda constitucional n. 19/98, os
neoliberais pátrios se reconfortam num positivismo jurídico de cunho neo-
kantiano/kelseniano155.
151 OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005. p. 62. 152 Ost explica: “Veremos que um estudo atento do Gênesis – que é ao mesmo tempo um texto sagrado, literário e jurídico – conduz a um deslocamento significativo do mito da lei perfeita. Em primeiro lugar, a idéia de heteronomia que acompanha esse mito (a representação de uma lei vinda de fora, imposta do alto) combina-se aqui com uma forte dose de autonomia: com efeito, é apenas sobre o fundo da aliança proposta e livremente aceita que a lei se faz entender, e mesmo assim é somente graças ao infalível talento mediador de Moisés que, finalmente, o trabalho de escrita dialógica da lei dará seus frutos.” OST, Contar a lei, op. cit., p. 62-63. 153 Com Ost, vê-se que “o conteúdo da lei (referimo-nos ao objeto das prescrições: a proibição do assassinato, do roubo, do adultério...) conta muito menos que as condições de recepção da lei”. OST, Contar a lei, op. cit., p. 63. 154 Explica o autor: “O importante, em última análise, como já sabia Platão, é ‘encantar’ as leis, mobilizar em proveito delas o imaginário fundador e o afeto político – para que essas leis sejam amadas (o que é bem mais importante que sua compreensão e mesmo que seu conhecimento) e, sendo amadas, sejam obedecidas.” OST, Contar a lei, op. cit., p. 62. 155 Nesse sentido, Ost afirma que “o direito positivo, com todo formalismo, esbarra no problema de seus próprios limites: o que garante a validade (jurídica) da norma jurídica superior? Em resposta a essa questão, H. Kelsen, líder do positivismo jurídico, pretende produzir uma ‘norma fundamental’ à qual confere o estatuto de hipótese lógico-transcendental: condição de possibilidade da validade da ordem jurídica inteira. Mais tarde ele reconhecerá, porém, que esta é uma ficção; e, a despeito do estatuto exclusivamente formal que atribui a essa grundnorm, nós mesmos pudemos mostrar sua estreita dependência a uma teologia implícita. Portanto, a suposta ‘teoria pura’ do direito revela-se tributária, ela também, de uma grande narrativa fundadora.” OST, Contar a lei, op. cit., p. 42.
170
Este, por certo, se tornou o aspecto mais importante da positivação
constitucional da eficiência: revestiram-na de um ‘sobrenatural’ poder principiológico,
para contarem com toda a abstração normativa daí advinda. Quanto mais abstrata a
norma, mais indisponível, menos acessível e mais manipulável o seu conteúdo. Daí
a facilidade de justificar (se é que precisaram justificar alguma coisa) a legitimidade
da eficiência, que não somente se tornou o princípio-referência da ‘boa
governança’156 administrativa, como também conseguiu a façanha de fixar um novo
padrão ‘sacro-ético’ de comportamento social. A ação eficiente, segundo os
neoliberais, por estar devida e ‘religiosamente’ justificada, deve ser obrigatoriamente
praticada, mesmo que ao preço democracia.157
Aliás, esta faceta ‘sobrenatural’ e ‘abstrata’ do princípio da eficiência
(e das normas de conduta) é condição sine qua non para os evolucionistas. Hayek é
quem melhor defende tal entendimento158. O arauto do neoliberalismo usa
estrategicamente o mito da ‘abstração’ para justificar sua fragilizada tese de
racionalismo. Mesmo reconhecendo a limitação e precariedade da consciência –
usando isto inclusive frontalmente para desconstituir o construtivismo racional – e
negando o inconsciente como categoria psicanalítica159, Hayek astutamente
156 OST, François. Em busca da boa governança: a aposta de Protágoras. In: BARRET-DUCROCQ. (Org.). Globalização para quem? Uma discussão sobre os rumos da globalização. Trad. Joana Angélica D’ávila Melo. São Paulo: Futura, 2004. p. 276-284. 157 Ost explica: “A lembrança que geralmente se guarda do episódio do Sinai é a dos antigos manuais de ‘História Sagrada’: num estrondo de trovão e em meio às nuvens, um Deus todo-poderoso profere a lei diante do povo reunido e trêmulo ao pé da montanha. Essa lembrança alimenta a idéia de um direito autoritário e unilateral; sugere um verbo jurídico integral, intangível, inalterável; remete a uma transcendência saturadora: a figura de um deus castrado cuja imagem onipotente aniquila a personalidade dos sujeitos”. OST, Contar a lei, op. cit., p. 69. 158 Hayek afirma: “O racionalismo evolucionista, por outro lado, reconhece as abstrações como o meio indispensável à mente para enfrentar uma realidade que ela é incapaz de compreender por completo. Isso está relacionado ao fato de que, na perspectiva construtivista, a ‘abstração’ é concebida como uma propriedade restrita ao pensamento consciente, ou aos conceitos, quando, na verdade, ela é uma característica de todos os processos que determinam a ação, muito antes que surjam no pensamento consciente ou que se expressem na linguagem. [...] a abstração não é algo que a mente produz por processos de lógica a partir de sua percepção da realidade, e sim uma propriedade das categorias com as quais opera – não um produto da mente, mas o que constitui a mente.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, op. cit., p. 30. 159 Ainda com o autor: “a outra possível interpretação errônea de nossa posição é a de que a ênfase por nós conferida ao caráter não consciente de grande parte das normas que regem nossa ação está relacionada à concepção de uma mente inconsciente, ou subconsciente, subjacente às teorias da psicanálise ou ‘psicologia da profundidade’. Mas, conquanto até certo ponto ambas as perspectivas possam pretender uma explicação dos mesmos fenômenos, na verdade são totalmente diversas. Não usaremos, e de fato a julgamos injustificada e inteiramente falsa, a concepção de uma mente inconsciente que difere da mente consciente apenas por ser inconsciente, mas que, sob todos os outros aspectos, opera da mesma maneira – racional e voltada para objetivos – que a mente consciente. [...] a psicanálise parece ter tão somente criado outro fantasma, do qual, por sua vez, se
171
transfere para o âmbito metafísico da ‘abstração’ o fundamento de seu racionalismo
evolucionista. É ali, por mais incrível que pareça, no emaranhado das ficções, que
vão se justificar (pelos menos tentar se justificar) seus mitos: o Mercado, a ‘mão
invisível’, a ‘espontaneidade’, o ‘equilíbrio’, etc. É ali que se ‘legitimará’ a liberdade
(libertária) frente à ‘servidão’ de que falava Hayek.
E é neste sentido que o discurso economicista ‘vende’ – através da
mídia, e de seus cooptados - o princípio constitucional da eficiência como uma
norma ‘salvadora’, uma ‘lei que liberta’, na feliz expressão de Ost160. ‘Lei que
liberta’161, porque é livremente assumida por todos. Este é o jogo. Faz-se a todos
pensarem que através da ação eficiente, como um milagre messiânico, os
problemas da administração pública e do poder judiciário estariam resolvidos, e por
conseqüência - libertando-se do ‘burocrático’ e ‘obsoleto’ Estado e entregando-se ao
‘bondoso’162 Mercado -, todos seriam mais livres e mais felizes. Lembrando Lyra
Filho, slogans desta ordem como ‘lei que liberta’, ‘Mercado que liberta’, são tão
fraudulentos quanto aquele ‘Nacional-Socialismo’ que se ‘colou’ sobre o nazismo163.
Partindo de toda esta mitificação que existe no imaginário coletivo em
relação à instituição, que sempre ‘possui’ os sujeitos (Legendre) - alimentada pelo
discurso fantasioso e ilusório do binômio pós-moderno capitalismo/neoliberalismo164-
fortalece-se cada vez mais o conjunto de crenças e fetiches que circundam a figura
do Mercado e do universo econômico em que está inserido. Este sim, o Mercado,
tem poder simbólico165 devastador. Especialmente porque é estabelecido, rotulado,
afirma que rege o ‘espírito no interior da máquina’ do dualismo cartesiano.” HAYEK, Direito, Legislação e Liberdade, op. cit., p. 31. 160 OST, Contar a lei, op. cit., p. 71. 161 Ost afirma: “a ‘lei que liberta’ é uma mistura instável; poder-se-ia dizer, à maneira de Atlan, que ela oscila entre ‘o cristal e a fumaça’: às vezes, evocada por um Deus solipsista, ameaça cristalizar-se sob a forma de mandamentos imperativos, outras vezes, ao contrário, corrigida pelas veleidades do povo, arrisca-se a se dissolver na evanescência da fumaça. A primeira deriva, poderíamos dizer, e a tentação de Deus: vimos de que maneira o obstáculo, afinal, foi superado. Resta ver agora, do lado do povo, a tentação oposta ilustrada pelo episódio do bezerro de ouro.” OST, Contar a lei, op. cit., p. 90. 162 No sentido dado por Agostinho Ramalho Marques Neto. MARQUES NETO, O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática, op.cit., p. 50. 163 LYRA FILHO, Por que estudar Direito, hoje? op.cit., p. 11. 164 COELHO, Luiz Fernando. Saudade do Futuro: Transmodernidade, Direito, Utopia. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001. p. 15. 165 Segundo Bourdieu “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. [...] O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma
172
e ‘amado’ como uma entidade divina que nos conduz com ‘sua mão invisível’166
rumo ao (des)encontro de nossos desejos.
Esta perspectiva ‘teológica’ dos mitos neoliberais tem também outra
razão de ser. Além de justificar e legitimar o necessário e permanente ‘sacrifício
social’ para que todos alcancem no futuro o ‘paraíso’167, tem o objetivo de neutralizar
os opositores ao projeto político-econômico que defendem. Aqui, mais uma vez, os
neoliberais mostram toda sua frieza. Trabalhando com esta ‘sacralização’ e com a
dualidade ‘paraíso’ (céu) e ‘inferno’ (caos)168, os neoliberais transformam, como num
truque de mágica, questões fictícias e ilusórias em questões religiosas (de fé).
Equiparando o Mercado a Deus – por entenderem de características coincidentes:
entidade abstrata, de origem desconhecida e que conduz a todos ao caminho do
bem e da libertação169 -, os neolibertários tratam os contrários como revoltosos,
como verdadeiros ‘lúcifers’170. Isso mesmo. Os que não engolem a eficiência e o
ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. [...] Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’ [...].” enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. a análise durkeimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’. [...] É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ [religião, Mercado, língua...] cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’” BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 07-11. 166 Como bem lembra Maris: “A ‘mão invisível’, astúcia de cunho hegeliano para uma razão acima da razão dos homens, é um avatar do Espírito Santo. Idem o Mercado (seu outro nome) onipotente, onipresente e ubiqüitário, ser de razão superior, substância imanente e princípio dos seres – ‘você não passa de um raciocínio custo/benefícios’ – causa transcendente que cria o mundo e que tem todos os atributos da divindidade, incluso o destino: ninguém pode escapar do Mercado”. MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 157-158. 167 Hinkelammert fala deste ardil neoliberal (especialmente na economia e na política) que faz com que todos pacientemente esperem as ‘dificuldades’ passarem para no futuro as coisas melhorarem. E enquanto isso, a acumulação permanece intacta: “Assim, maiores salários amanhã, menores salários hoje. O mesmo raciocínio serve para qualquer reivindicação atual: amanhã sim, mas hoje menos. E assim por diante. Essa é a dialética maldita que sacrifica o presente por algo que está muito além - e que, no caso do neoliberalismo, é o eterno amanhã”. HINKELAMMERT, Franz Josef. Crítica da Razão Utópica. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. p. 90. 168 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 78. 169 Para o neoliberalismo: “Liberdade é mercado. [...] Liberdade é a submissão do homem às leis do mercado [...].” HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 77. 170 A figura do anjo Lúcifer é usada para se referir aos revoltosos. Lúcifer, para a teologia, foi o anjo que se rebelou contra Deus e contra o seu sistema de submissão. Como ‘castigo’ deixou o paraíso para habitar o caos, o inferno. HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 109-110.
173
neoliberalismo, são consternados à condição de ‘orgulhosos’ e soberbos171 por
acharem que ‘tudo sabem’ e por não se submeterem humildemente às suas
diretrizes ideológicas. E o pior, é que este argumento falacioso foi festejado numa
cerimônia de recebimento do prêmio nobel de economia172.
3.2.3 Discurso econômico: mitos e fantasias
Maris173 é quem com objetividade e contundência denuncia os
perigos e os logros das crenças economicistas que respaldam o simbolismo
poderoso do Mercado. O autor defende a necessidade de se desconstituir alguns
mitos ‘inocentes’174 próprios da doutrina econômico-mercadológica. O primeiro
deles, é o de que o Mercado por si só levaria a um equilíbrio estável, e constituiria
um mecanismo eficaz. Torna-se evidente que, para o autor, um Mercado com
pretensões totalizantes como o defendido pelos neoliberais175, pouco se difere de
uma economia planificada176. O Mercado, e isso já se evidenciou com o fracasso de
171 Para o autor: “Onde há milagre há força superior. Ao homem resta somente calar, reconhecer e adorar. Mas o orgulhoso não reconhece o milagre. Então, aparece a virtude central e chave da ética neoliberal, derivada de seu quadro de categorias de interpretação do mundo: a humildade. Onde existe orgulho do utopista, que se lança em prol da justiça social e contra o mercado, não existe humildade diante do milagre, que somente os corações simples podem reconhecer.” HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 75. 172 Hinkelammert explica: “Deus é aquele que sabe tudo. A partir daí, torna-se visível onde é que está o diabo. Desde o paraíso, ele está insinuando ao homem que, comendo da árvore do conhecimento, pode ser igual a Deus. O diabo seduz o homem na ‘pretensão do conhecimento’, título da conferência de Hayek ao receber o Prêmio Nobel. O título é uma simples alusão ao pecado do Paraíso, que é precisamente o pecado do orgulho, da sublevação do homem contra Deus. Deus é o sabe-tudo. Assim, quem pretender o conhecimento total quer ser como Deus. Mas, para assegurar a justiça social desafiando o mercado, é preciso saber tudo. Assim, a reivindicação da justiça social é igual pretensão de ser como Deus. E, contra ele, Deus recorre ao arcanjo Miguel, que grita: ‘Quem é como Deus?’ Ora, quem pretendia ser como Deus era Lúcifer.” HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 93. 173 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit. 174 Com Maris: “Será que vocês são realmente ingênuos? Ou são falsários sartrianos, conscientes de seu papel, de sua ignorância? Se simples tolos, no caso de uns, ou guardiães da mentira, como aqueles que guardam os cofres dos bancos, então, confessem isso: ninguém jamais pensou em incriminar um policial por seu tipo de trabalho, e até um capo da máfia pode vir a ser perdoado pelos sobreviventes. Ou são os Pôncio Pilatos que embromam os outros pela TV? Talvez acreditam de fato no que dizem, mas, francamente e por vocês mesmos, esperamos que não.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 12. 175 Assim, “se é possível estabelecer algum paralelo entre Walras e o liberalismo, a única coisa que se pode dizer é que o mercado, e portanto o liberalismo, é um totalitarismo. Ainda tínhamos alguma dúvida. Mas basta ver a cabeça dos stalinistas do mercado. Note bem: Hayek (Prêmio Nobel de 1974) está certo. Hayek diz que toda intervenção do Estado, mesmo quando quer encaminhar no sentido de mais mercado, é funesta.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 32. 176 Maris afirma: “[...] um estudante de primeiro ano sabe que um sistema de mercado total e um sistema de planificação total se equivalem. Queremos sempre ‘mais socialismo’, os ‘planificadores’
174
Walras, não conduz eficazmente ao melhor equilíbrio estabilizador, ou à melhor
distribuição de renda177. Basta dar-se conta dos números da pobreza. O equilíbrio de
Mercado, insiste Maris, “é a pior das soluções”178. Por isso já se fala, em rompimento
com este mito do ‘equilíbrio natural’, em ‘equilíbrio estratégico’.179
Outro mito muito difundido é a clássica teoria dos jogos180. Através
dela, por inspiração em Smith, persevera-se em crer que a espontaneidade e
naturalidade da ordem econômica - e de seus participantes/jogadores - podem levar
felicidade a todos, pois calcada na sorte e habilidade individuais. Pensa-se, através
desta teoria, que poderia haver um equilíbrio com absoluta neutralidade, como se
todos os jogadores ‘jogassem o jogo’ espontaneamente sem conluios, sem
diferenças, como se todos partissem do mesmo ponto, das mesmas oportunidades.
Com Maris, constata-se que isso não passa de uma “quimera”181. A concorrência do
jogo não leva a equilíbrio algum. Isso não passa de uma fantasia para entorpecer os
‘jogadores’ e fazê-los acreditar que com tal sistema todos ganhariam mais. Que
priorizando somente meios, e tendo postura aética quanto aos fins, poder-se-ia ser,
através da salvadora ‘mão invisível’182, mais feliz. Só os acometidos, como enfatiza
Maris, de “cegueira voluntária”183 é que acreditam nesta história de ‘aprendiz de
feiticeiro’.
Os cálculos, teoremas e estatísticas econômicas184 também
constituem estratégico ardil utilizado pelos economistas neoliberais. Mitificam os
socialistas, que aplicavam igualmente o teorema do optimum, assassinaram seus países. Os liberais, hoje, estão fazendo o mesmo.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 32. 177 Conclusão de Maris: “os sitema de Walras não é harmonioso e estável, é totalmente instável. Totalmente catastrófico. Explosivo ou implosivo. [...] o mercado é um imenso bordel.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 26. 178 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 29. 179 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 34. 180 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 33. 181 Maris explica que: “o que é fascinante é que todo economista um pouco mais curioso – não vamos nem falar mais em ‘destaque’ – sabe, a partir daí, que o equilíbrio da concorrência é uma quimera, que a concorrência tem virtudes explosivas e destruidoras, e que, além disso, se vier a haver equilíbrio, será o pior! Ou de modo algum será o melhor! E faz 20 anos que os economistas sabem disso!.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 34. 182 Maris faz importante observação: “De certo modo foi Walras quem estabeleceu o ‘teorema da mão invisível’. Esse teorema que o Sr. Camdessus menciona a cada cinco minutos, citando Smith [e enganando-se].” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 20. 183 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 35. 184 “A estatística é uma forma de apolitismo. Ela perverte a política com o eterno jogo de palavras a que o poder se entrega. [...] A estatística, com o jargão econômico, realiza o velho sonho do poder: tender à elocução vazia. ‘Todas as teodicéias políticas tiraram partido do fato de que a capacidade
175
números, respaldam-nos em fórmulas ‘codificadas’, para forjar a crença de que o
Mercado-instituição é quem realmente, com neutralidade ‘divina’, conduz os sujeitos
a sua ‘salvação’. Segundo Maris, não passam de uma “racionalidade vazia”, de
“tautologias”185. Teriam como função primordial animar a fantástico Grand Circo que
representa o Mercado em nossa sociedade. Suas previsões insuficientes, sempre
atreladas a ficções tal qual ‘humor do Mercado’ ou ‘confiança do Mercado’, só fazem
tornar a sociedade refém dos interesses de momento186. Sem contar as perversas
previsões aterradoras de eventuais ‘fuga de capitais’ que mantém adredemente um
permanente ‘estado de pânico’, utilizado, como bem se sabe, até mesmo para
interferir no curso de processos eleitorais em países periféricos. Esse, afinal de
contas, é o que Maris, utilizando uma categoria de análise do discurso, chama de
‘discurso da autoridade’187: basta que obedeçamos suas profecias e advinhações, e
estaremos no caminho certo (moral, político, econômico, divino...). 188
generativa da língua pode exceder os limites da intuição, ou da verificação empírica, para produzir discursos formalmente corretos, mas semanticamente vazios. O uso da economia e da estatística permite realizar sistematicamente esse abuso de poder: é algo complicado e impossível de ser verificado. Sempre. Ouça, não entenda nada e cale-se.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 1114. 185 Maris aduz: “Vocês são bons lógicos. Sabem que o cálculo proposicional é um sistema consistente (não contendo contradições) e completo (toda proposição pode ser reduzida por um teorema): mas sabem também que todos os teoremas desse cálculo são tautológicos. É isto que vocês alinham, com seus belos ‘teoremas’ de quatro vinténs, embrulhados em papel alumínio para parecer algo brilhante: uma série de tautologias. No máximo isso”. MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 44. 186 “Caros estatísticos... Vocês não têm um certo escrúpulo em apregoar, dia após dia, que a riqueza está crescendo, em um mundo de pobreza, de incrível indigência cultural, de uma feiúra deprimente, em que forçados arrastam sua ‘riqueza’ (seus carros) para matar o tempo em meio aos engarrafamentos de cidades poluídas? [...] Não vamos censurar por seus erros, que chegam a ser comicamente repetitivos. Mas será que vocês só existem para justificar o poder, para garantir a verdade da mentira, para demonstrar que a realidade é falsa ou que a verdade política não existe? Neste caso seu papel nada tem de invejável. Mas nem assim os podemos reprovar: uma sociedade não pode existir sem magia ou fantasias; e as fantasias estatísticas têm a qualidade de parecer científicas. É impressionante o fato de não se poder dispensar os números e neles acreditar: é esse o caráter religioso da economia e da estatística.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 116. 187 Na tipologia de Orlandi, tal discurso “é aquele em que a reversibilidade tende a ser zero, estando o objeto do discurso oculto pelo dizer, havendo um agente exclusivo do discurso e a polissemia contida. O exagero é a ordem no sentido militar, isto é, assujeitamento ao comando.” ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 154. E conferir: GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Trad. Bethânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. 188 Maris explica que “a estatística eufemiza o discurso político. A ‘neutralidade’ do número remete à autoridade científica, ao discurso ‘competente’. O discurso de autoridade não é feito para ser compreendido e sim para obter reconhecimento. Para meter medo.” MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., 113.
176
Hinkelammert, outro economista que não se rendeu à sedução do
neoliberalismo, é quem desmitifica alguns dogmas do discurso econômico oficial -
que tem a doutrina de Hayek como sua espinha dorçal. O autor toca com
propriedade e aprofundamento no ‘calcanhar de aquiles’ da teoria econômica
dominante: o mito da ‘concorrência perfeita’. Explica que esta tese é absolutamente
improcedente e frágil por algumas simples razões. Primeiro, porque se trata de um
conceito transcendental, não-empírico e que errônea e perigosamente serve de
parâmetro de interpretação de uma realidade empírica (o Mercado). Segundo,
porque essa ‘concorrência perfeita’ ou ‘equilíbrio concorrencial’ somente seria
possível se todos os participantes tivessem “conhecimento perfeito de todos os
acontecimentos que nele ocorrem a cada momento e capacidade ilimitada de
adaptação dos fatores à situações cambiantes”189. Sem tal pressuposto, o equilíbrio
de que fala Hayek é irrealizável190.
Mas já reconhecendo as dificuldades em justificar a factibilidade
deste equilíbrio ilusório, Hinkelammert explica que Hayek passa, de modo
estratégico, a falar em ‘tendência ao equilíbrio’ que, na prática, pouca coisa muda. É
por isso que Hinkelammert afirma que tal tese (da concorrência perfeita) não passa
de “afirmação dogmática”191, constituindo um dos principais vícios de origem da
doutrina neoliberal192. Assim, pode-se inferir que na ‘concorrência perfeita’ ninguém
concorre. Segundo Hinkelammert, se houvesse concorrência perfeita não haveria
razão de se concorrer. Tal equilíbrio, em realidade, é o contrário da concorrência193.
E este é o paradoxo mais intigrante. Isso porque o equilíbrio concorrencial, na
prática, constitui-se de conflitividade, de disputa. E segundo Hinkelammert, ele
somente poderia ser atingido através de acordo mútuo, de consenso, e não por meio
189 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 50. E ainda afirma que “Hayek resiste a dizer que o modelo de equilíbrio efetivamente pressupõe tal conhecimento perfeito. No entanto, não há dúvida de que, enquanto modelo, possui tal pressuposto”. HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 50. 190 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 50. 191 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 52. 192 Com Hinkelammert: “Hayek teria que demonstrar que, por suas adaptações sucessivas, o mercado se aproxima de situação de equilíbrio idealizado de adaptações simultâneas. Mas, como não pode fazê-lo, também não o faz. Suas condições gerais da tendência para o equilíbrio são simples fixações dogmáticas”. HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 52. 193 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 54-55
177
da discórdia194. Para nosso lamento, é esse no sense que procura legitimar o
discurso econômico dominante e a lógica de Mercado.
Dessa forma, fica claro e evidente que o Mercado, esse mito
construído pelo discurso econômico à altura de um ‘Espírito Santo’195, foi idealizado
para figurar como um significante-Mestre196, como uma entidade abstrata, instável,
inexplicável, espontânea, com o único propósito de ocultar, mascarar, e até mesmo,
justificar as relações e interesses escusos de seus defensores. A ação eficiente
passa a se legitimar em toda esta racionalidade alimentada pelas fantasias e
crenças de que se tratou anteriormente. É ela quem instrumentaliza e factibiliza a
submissão e a ‘servidão voluntária’197, já apontada por La Boétie. E, sem qualquer
sombra de dúvida, com o respaldo de um texto constitucional que positiva e impõe a
ação eficiente como princípio-meta, como ‘norma perfeita’ que ‘liberta’ e ‘salva’, tudo
fica muito mais fácil. Que o digam os especuladores financeiros de plantão.
3.2.4 A Análise Econômica do Direito e a eficiência alocativo-financeira
É com essa conjunção ‘mágica’, que une a racionalidade
mercadológico-financeira da doutrina econômica contemporânea às hábeis técnicas
‘canônicas’ de submissão e amor à lei, que se institui e bem articula talvez a maior
ameaça ao jurídico: a ‘Análise Econômica do Direito’. É esta teoria instrumental que
sistematiza e organiza de modo ‘metodológico’ e ‘científico’ a ascendência do
econômico sobre o jurídico. Que provoca declarada e abertamente, a viragem
perversa que torna o Direito, aquela instituição garantidora da democracia e da 194 HINKELAMMERT, Crítica da Razão Utópica, op.cit., p. 70. Hinkelammert entende que a saída deste paradoxo é o ‘equilíbrio planejado’. 195 MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op.cit., p. 11. 196 É Zizek, em análise de uma instituição total, quem se refere à ‘significante-mestre’ como um ‘significante-sem-significado’, que funciona de forma dissimulada de modo a consubstanciar um ‘dogmatismo amoroso’. ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, op.cit., p. 28. 197 A voluntariedade da servidão ao Mercado é o traço de análise talvez mais perverso e intrigante. Como se viu, lançando mão de todas as técnicas historicamente manipuladoras, o neoliberalismo coopta o sujeito, o faz ‘amar’ a submissão, obedecer com ‘devoção’, chegando ao absurdo estágio de esquecer do real valor da liberdade. Com apoio da mídia e do controle das informações, vão-se colonizando gerações e gerações. Esta é a meta. La Boétie explica: “Digamos, portanto, que ao homem todas as coisas parecem naturais, nas quais é criado e nas quais se habitua, mas isso só o torna ingênuo, naquilo que a natureza simples inalterada o chama; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume”. E ainda: “[...] jamais aconteceu que os tiranos, para se assegurarem, não se tenham esforçado a acostumar o povo com eles, não somente à obediência e à servidão, mas ainda à devoção”. LA BOÉTIE, Étienne De. Discurso sobre a servidão voluntária. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 37 e 45.
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liberdade, em mera técnica de vinculação ao custo. Esta é a nova lógica de um
‘Direito econômico’. E, aqui, o paradigma da eficiência volta a ser o cerne de
operacionalização, e volta a emprestar sua racionalidade em favor de uma
justificação do ‘fazer-crer’ no sistema de Mercado.
A Análise Econômica do Direito, de forte origem acadêmica norte
americana198 e pioneiramente deflagrada por Posner199, se consubstanciou, segundo
Forgioni, como “teoria positiva do sistema jurídico” que privilegia o “paradigma do
mercado e da eficiência econômica”, decretando morte ao intervencionismo estatal e
condicionando todo o funcionamento do Direito à eficiência200. Esta nova perspectiva
do Direito abandona por completo a tradição de busca por justiça com base em
valores constitucionalmente reconhecidos. Para os teóricos desta nova corrente,
‘direito justo’ é ‘direito eficiente’201, é ‘direito condicionado ao orçamento’202. O
critério de justiça é, aqui, o da relação custo-benefício.
A nova lógica que passa a vigorar tem como ponto de partida os
paradigmas modernos do utilitarismo de Bentham, e do racionalismo maximizador
que enaltece o sujeito dominador, conquistador, egoísta203 e solipsista. É com esta
198 Galdino explica que “foi nos Estados Unidos da América que se desenvolveu a mais vigorosa e influente escola voltada para a análise econômica do direito, denominada Law and Economics, expressão que, sem embargo da escassez de obras no Brasil tratando do tema, já mereceu várias versões diferentes, como interpretação econômica do direito, teoria econômica do direito, e análise econômica do direito.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 239-240. Quanto à construção histórica do Direito norte-americano conferir: CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de. Introdução à História do Direito: Estados Unidos x Brasil. Florianópolis: IBRADD, CESUSC, 2001. 199 Com Galdino: “Seus próprios cultores sustentam que a escola surgiu entre 1958, quando foi criada a publicação Journal of Law and Economics da Universidade de Chicago, e 1973, quando é lançado o livro Law and Economics, de Richard Posner. Antes da revista não se poderia falar na existência de algo como um ‘movimento teórico’; depois do aludido livro, já não se poderia negar a sua existência.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 240. Mas o autor, ainda nos lembra que antes de Posner, podemos tributar a gênese embrionária de tal teoria a Jeremy Benthan e sua doutrina utilitarista. 200 FORGIONI, Paula A. Análise econômica do Direito: Paranóia ou mistificação? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 420. 201 Com Galdino: “De certo modo, eficiência torna-se sinônimo de justiça. Noutras palavras: a decisão mais justa será aquela que se mostrar mais condizente com os critérios escolhidos de eficiência, preferencialmente no sentido de aumentar a riqueza social global.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 244. 202 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 253. 203 Galdino afirma que “o conceito egoísta do homem – o tal maximizador ‘racional’ – é visto como o único meio de racionalizar os modelos teóricos econômicos, uma vez que as muitas variáveis axiológicas que influenciam as escolhas humanas não são passíveis de serem quantificadas com a
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conjunção que se constrói o homo economicus na sua versão ‘sujeito-consumidor’, a
quem a ação eficiente sempre assediará, sempre disputará. Galdino, neste sentido,
explica:
Dizer que os indivíduos são maximizadores racionais de seus próprios interesses ou utilidades significa afirmar que as suas escolhas estão vinculadas ao maior proveito individual que possam obter delas. Este é um conceito operacional, pois visa permitir a análise das relações econômicas numa dada sociedade.204
A partir desta nova concepção, conforme anota Galdino, a questão
central e primordial na Análise Econômica do Direito passa a ser a ‘eficiência
econômica’ ou, como o próprio autor diz, mais precisamente, “a maximização da
eficiência econômica das instituições sociais e, dentre estas, também o Direito”205.
Trata-se, aqui, de busca da alocação dos recursos da sociedade com a maior e
melhor eficiência possível. Tal teoria tem como principais postulados:
[i] Dada a escassez de recursos em face das necessidades humanas, sua alocação mais eficiente gerará o incremento do bem-estar e do fluxo de relações econômicas. [ii] A alocação mais eficiente, por sua vez, é identificada com o chamado ótimo paretiano, segundo o qual uma sociedade não se encontra em situação ótima se houver pelo menos uma modificação capaz de melhorar a posição de alguém, sem prejudicar a de outrem. Uma escolha eficiente é aquela tomada quando não há outra alternativa que seria preferida por todos os envolvidos, levando em conta os seus objetivos e as suas preferências individuais. [...]. [iii] A forma de alocação mais eficiente dos recursos é determinada pelo funcionamento do livre mercado e não pela intervenção estatal. [iv] Esse funcionamento do livre mercado pressupõe o maior grau possível de concorrência entre os agentes que nele atuam. [v] A formulação ou a interpretação/aplicação de textos normativos não podem ser influenciadas por considerações desestabilizadoras e não-uniformes, tal como a busca do ideal de justiça [...]. [vi] O escopo [determinável e uniforme] do direito é a busca da eficiência alocativa acima referida, atrelada sempre ao bem estar do consumidor [...]. [vii] É legítimo que o foco do ordenamento jurídico repouse na eficiência alocativa [objetivamente determinável] porque resultante da consideração global das preferências individuais.206
precisão necessária, o que se afigura essencial para a análise matemática e estatística própria de uma determinada corrente de pensamento econômico, pois os instintos, as ações morais, as paixões, os motivos estéticos e religiosos, por exemplo, não são passíveis de avaliação precisa.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 241. 204 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 240. 205 GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 240-241 206 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p.422-425.
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No entanto, esta concepção reconhece que no Mercado existem
falhas (externalidades, monopólio, bens coletivos) que acabam por exercer
influência direta no grau de eficiência da referida alocação de recursos. Nestes
casos, entende-se que o Estado teria uma função estratégica: a de intervir, através
do ordenamento, para corrigir ou compensar tais falhas. O objetivo seria o de
neutralizá-las, permitindo que o Mercado ‘espontaneamente’ atingisse de volta o seu
‘equilíbrio natural’.207
Assim o Direito assumiria um ‘útil’ papel: o de garantidor das
condições de absoluta liberdade e segurança do tráfego mercantil e, quando da
ocorrência de ‘falhas’ do Mercado, o de reduzir a existência dos obstáculos,
“reduzindo os custos de transação”208. O Direito teria, pois, como função “atuar como
um mercado simulado”209, um mercado paralelo emprestando todo o seu
instrumental normativo aos interesses do capital. Novamente vê-se que o paradigma
de justiça a que deveria estar atrelado o Direito simplesmente inexiste: a justiça
agora é ‘divinamente’ ditada pelo Mercado-Deus210. Na Análise Econômica do
Direito não se fala em fins, somente em meios. E quanto a isso, já se compreende o
porquê.211
Com Forgioni já se observa a imprestabilidade de tal teoria. Segundo
a autora, há inescondível incompatibilidade da indigitada teoria com nossa
sociedade - que é pautada por valores (os principais foram inclusive erigidos à
condição de princípios constitucionais) que não poderiam ser descartados no
207 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 425. 208 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p.426. 209 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 426. 210 Newton de Lucca, citado por Forgioni, lembra que: “Frases comuns como ‘deixe por conta do mercado’, venderei a preços de mercado’, ‘não se interfere no mercado’, ‘tem-se direito a um preço justo de mercado’ dão, por si sós, uma clara idéia de que o mercado passou a ser invocado com uma espécie de ênfase ‘teológica’, como se ele – o mercado – fosse capaz de determinar naturalmente a própria noção de preço justo. No entanto, (...) ‘o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores.” FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 433-434. 211 Forgioni explica: “o raciocínio desenvolvido pela AED é simples: as decisões individuais dos agentes econômicos são marcadas pelo desejo egoístico de satisfação de suas necessidades; a solução ‘geral e natural’ encontrada pelo mercado corresponde à consideração global dessas preferências. Em vez da hercúlea e impossível tarefa de buscar o ‘justo’ ou o ‘adequado’, o normal funcionamento do mercado trará a resposta a ser adotada em cada situação. É admitida mais de uma solução [=decisão] correta desde que todas [e cada uma delas] levem ao mesmo resultado.” FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 430.
181
processo de produção legislativa212. Além do mais, o Direito estaria “voltado a outros
escopos que não, simplesmente, a busca da eficiência alocativa”213. E afirma:
Portanto, o postulado máximo da AED [Análise Econômica do Direito], que prega o fim único do sistema, não pode ser admitido pelos juristas que acreditam que o direito – posto e pressuposto – não existe apenas para corroborar os determinismos econômicos. Há situações em que o mais fraco merece proteção; ainda se acredita que gente é feita para brilhar e não para passar fome. Há coisas [como a vida humana e a liberdade] que ainda não foram transformadas em mercadorias e não podem ser submetidas à lógica de mercado. [...] É evidente que a eficiência paretiana não pode ser simplesmente transposta para o mundo jurídico, porque o direito abarca outros valores, transformados em premissas implícitas do ordenamento. Como se vê, o afastamento da lógica puramente econômica não é uma questão de ojeriza ou preconceito, mas uma imposição a ser atendida tendo em vista o funcionamento do ordenamento, desde seu fundamento jurídico, visando ao dinamismo do mercado de acordo com uma lógica também jurídica [e não apenas econômica]. A sociedade civil não se resume ao mercado.214
Na mesma senda, Ballesteros215 denuncia a insuficiência e
inadequação da Análise Econômica do Direito, por conta do que denomina de
“reduccionismo economicista”216, que acarreta conseqüências indesejadas como
“una visión distorsionada de la realidad social y de las instituciones jurídicas cuya
naturaleza y función no es [...] de caráter econômico o mercantil”, oferecendo
também uma “visión unilateral e insuficiente” do Direito, “al reducir el sistema jurídico
a un mero instrumento técnico, a una ingeniería social”, cuja função seria a
“transformación de todo problema o conflicto jurídico en un problema econômico de
calculo y ajuste de costes y benefícios, y asignación eficiente de recursos 212 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 433. 213 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 433. 214 FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 434 e 440. 215 BALLESTEROS, Alberto Montoro. Incidencia del analisis economica del derecho en la teoria jurídica: la reducción del derecho a regla técnica. In: Persona y Derecho Revista de fundamentación de las Instituciones Jurídicas y de Derechos Humanos – Estudios en homenaje al Prof. Javier Hervada (I). n.40. Pamplona: Universidade de Navarra, 1999, p. 425-444. 216 Ballesteros afirma que “desde los supuestos del Análisis Económica del Derecho, éste se constituye como un sistema de reglas técnicas al servicio de la eficiencia economica (satisfacción del mayor numero de interesses o necesidades con el menor coste). El Derecho se configura así como un instrumento técnico de control social (como una tecnología o ingenieria social).” E mais adiante: “La cruz o aspecto negativo del Análisis Económico del Derecho viene constituido por el ‘reduccionismo economicista’ que implican los supuestos y la finalidad misma a la que se orienta dicho estudio, al tratar de comprender, explicar y valorar la estructura y funcionamiento de la sociedad y del Derecho en función de las categorías proprias de la Teoría económica y, de modo especial, de acuerdo con las exigencias del princípio de ‘eficiencia econômica”. BALLESTEROS, Incidencia del analisis economica del derecho en la teoria jurídica, op. cit., p. 440.
182
escasos.”217 Ballesteros também discorda da equivalência, pretendida pelos
‘economicistas do Direito’, entre justiça e eficiência, enxergando aí um sério
problema ético218.
Como visto, torna-se absolutamente descabida a teoria da Análise
Econômica do Direito, especialmente para a realidade de um país periférico como o
Brasil. Sem qualquer sombra de dúvida, aqui os efeitos desta teoria são
devastadores. O Direito não pode ser visto como mero neutralizador de ‘falhas’ de
mercado, ou como instrumental a serviço de uma ‘eficiente alocação’ de recursos.
Nem mesmo Dworkin concebe isso como possível219.
O Mercado, mais uma vez - respaldado por um ‘individualismo
metodológico’220 no seu melhor estilo Robinsoniano221-, é utilizado como figura
mítica que encobre os reais propósitos de uma proposta ‘econômica’ do Direito. As 217 BALLESTEROS, Incidencia del analisis economica del derecho en la teoria jurídica, op. cit., p. 434 e 440. 218 Para o autor a solução justa, eficaz e humana dos conflitos humanos “exige una prudente tarea de mediar y armonizar princípios y valores encontrados, para la cual resulta insuficiente e inadecuado el planteamiento economicista que atiende el Derecho como un sistema de reglas técnicas al servicio de la eficiencia económica. El adecuado plateamiento y solución de dichos conflictos exige previamente ver en los mismos, no un problema puramente técnico sino, fundamentalmente, un problema ético.” BALLESTEROS, Incidencia del analisis economica del derecho en la teoria jurídica, op. cit., p. 444. 219 Dworkin observa em seu escrito: “[...] rejeito uma teoria política sobre o Direito muitas vezes chamada de análise econômica do Direito. [...] O conceito de riqueza está no centro tanto dos aspectos descritivos como dos normativos da teoria.” E mais adiante: “Esta é a teoria de que vale a pena buscar a riqueza social por alguma razão que não a justiça”. DWORKIN, Uma Questão de Princípio, op.cit., p.351. 220 Forgioni explica que a AED “é baseada no individualismo metodológico, que pressupõe ser o comportamento econômico global a agregação das decisões individuais; o comportamento individual é o ponto de partida da análise e encerra a racionalidade procedimental, no sentido de adequação de meios e fins e de ordenar os objetivos dos agentes econômicos de acordo com suas preferências. Assim, o agente sempre decidirá por um resultado ‘mais preferido’, em relação a um ‘menos preferido’, buscando maximizar seus interesses individuais. Em suma, o comportamento do mercado globalmente considerado é função da somatória das preferências individuais [e, portanto, ‘democraticamente justificável’]”. FORGIONI, Análise econômica do Direito, op.cit., p. 424-425. 221 Em referência ao personagem literário ‘Robinson Cruzoé’, de Daniel Defoe, que representou o mito moderno do individualismo burguês, Ost afirma que: “É um mesmo utilitarismo egocêntrico, com base no cálculo de custos/benefícios, que caracteriza o ‘individualismo possessivo’ de Robinson, que busca sempre, como indivíduo moderno, maximizar suas preferências pessoais, fundamentando-se, de resto, na convicção (na ilusão?) que percorre toda a teoria econômica clássica de A. Smith e M. Friedmann, segundo a qual o interesse geral resulta da soma dos interesses particulares. [...] Uma ilusão extremamente operatória, contudo, pois esse indivíduo separado, cidadão de parte alguma, para falar como M. Sandel, tornou-se, de certo modo, nosso contemporâneo. Na base de uma certa hipertrofia dos direitos humanos, há de fato, como explica M. Gauchet, esse indivíduo ‘separado-em-sociedade’, átomo do estado de natureza, isolado entre seus semelhantes. É ele também que reencontramos na base da teoria política liberal, hoje mundializada sob a forma da ‘democracia de mercado’: um indivíduo-substância, sempre já livre e racional, que nada deve à sua comunidade de origem e capaz de negociar para sua vantagem as condições, sempre reversíveis, de sua entrada em sociedade.” OST, Contar a Lei, op.cit., p. 277-278.
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razões e a lógica de tais ‘falhas’ e ‘inconsistências’ estão estrategicamente ocultadas
na abstração mercadológica. Ninguém precisaria entender mesmo. Basta servir-se
do Direito – e isto se faz muito bem através do Princípio da Eficiência - para corrigi-
las. Guiam-se pelas conseqüências e não pelas razões. Esquecendo (ou fingindo
esquecer), no entanto, daquela conseqüência que surge como decorrência direta
desta lógica perversa e que tenta equivaler justiça à eficiência: a exclusão social.
3.2.5 O Princípio da Eficiência e o processo excludente
De fato, o capitalismo em sua versão neoliberal tem empurrado a
sociedade para uma realidade de tamanha exclusão e indiferença somente vista na
fase pré-moderna222 - mas com requintes de crueldade que somente a revolução
tecnológica-cibernética poderia proporcionar. Submetida a um verdadeiro ‘regime
imperial’, como bem definiu Hardt e Negri223, a sociedade contemporânea neo-
capitalista encontra-se em momento sui generis – mormente com o extremado
individualismo pró-eficiência, sempre voltado para a maximização dos propósitos
individuais a qualquer preço -, similar ao período de declínio do Império Romano
durante a era medieval. As semelhanças, guardadas as devidas proporções, são
estarrecedoras, e Thurow224 demonstra bem isso:
Considere o deslizamento do pico do Império Romano até o fundo da Idade Média. Com o início da Idade Média (476 a 1453), as rendas reais per capta caíram drasticamente em relação ao pico da Roma imperial. [...] . O demônio surgiu na forma de desorganização e desintegração sociais. A ideologia, não a tecnologia, iniciou o
222 Especialmente no Brasil: Coutinho afirma que o problema “é que vivemos num país em que, não raro, fica extremamente difícil falar de pós-modernidade quando em largos setores estamos vivendo na Idade Média.” COUTINHO, Canotilho e a Constituição Dirigente, op.cit., p.27. 223 Hardt e Negri defendem que esta nova ordem mundial a que estamos submetidos não pode ser denominada por ‘Imperialismo’ como muitos os fazem. Entendem que este novo modelo deve ser apropriadamente chamado de ‘Império’, e explicam: “Esta nova forma global de economia é o que chamamos de Império. [...] Entendemos ‘Império’, entretanto, como algo complemente diverso de ‘imperialismo’. [...] O imperialismo era, na realidade, uma extensão da soberania dos Estados-nação europeus além de suas fronteiras. [...] A transição para o Império surge do crepúsculo da soberania moderna. Em contraste com o imperialismo, o Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho de descentralização e desterritorialização do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão. O império administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras. As distintas cores nacionais do mapa imperialista do mundo se uniram e mesclaram, num arco-íris imperial global.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Imperio. Trad. Berilo Vargas. 6.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 11-13. 224 THUROW, Lester C. O futuro do capitalismo: como as forças econômicas moldam o mundo de amanhã. 2.ed. Trad. Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
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longo deslizamento para baixo. [...]. Considere os paralelos entre aquela época e a nossa. Imigrantes estão inundando o mundo industrializado, mas ninguém está disposto a incorrer nos custos que irão transformá-los em cidadãos do primeiro mundo. Tanto o império soviético como as alianças americanas se desfizeram. As nações fracas estão sucumbindo a senhores feudais [...] e até mesmo as fortes estão entregando seus poderes a líderes locais. [...] Na Idade Média, o público foi espremido pelo privado. O banditismo generalizou-se e era visto como uma vingança contra os defensores da ordem política e social (daí a lenda de Robin Hood). [...]. Em nossas sociedades, assim como ocorreu na Idade Média, o privado está gradualmente espremendo o público. [...]. Quase por definição, feudalismo é poder público em mãos privadas. Aqueles que haviam sido cidadãos livres gradualmente se renderam à servidão para obter segurança [...]. A Idade Média viu grandes números de pessoas sem-teto vaguearem de um lado para outro pelos campos. Hoje as pessoas sem-teto são contadas aos milhões [...]. Na Idade Média a pena capital era a resposta a todo e qualquer problema. Na Grã-Bretanha [...] a pena capital é igualmente exigida – e também usada em um de cada 100 casos. O fundamentalismo religioso surgiu naquele época como agora. [...] Na Idade Média, como hoje, não havia uma visão de como ter uma vida melhor. [...]. Hoje existe a mesma falta de visão. Alguma coisa está errada, mas ninguém sabe como revertê-la.225
Por tudo que foi dito, torna-se cristalina a incompatibilidade entre este
modelo de capitalismo-monetarista e a democracia226. Esta mesma democracia que
se vê verdadeiramente traída por um Direito ‘eficientista’ e que se tornou o ‘troféu’ da
façanha neoliberal de conseguir “colar” sua marca epistêmica em nossa Constituição
da República. Este Direito ‘eficientista’ somente faz permitir o avanço desmedido do
acúmulo de riqueza ao preço dos Direitos Fundamentais. Estes direitos, que quase
sempre foram tratados com indiferença, agora são frontalmente vilipendiados pelo
Princípio da Eficiência que, através dos próceres conservadores, lança mão de um
recurso milenar-imperial: ‘a exceção’.
Através do mencionado princípio constitucional, legitima-se e agrava-
se o manifesto ‘Estado de Exceção’ em que se vive em muitos países da periferia,
225 THUROW, O futuro do capitalismo, op. cit., p. 335-342. 226 Thurow corrobora, afirmando que “democracia e capitalismo têm crenças muito diferentes a respeito da distribuição adequada de poder. A primeira acredita numa distribuição completamente igual de poder político, ‘um homem, um voto’, enquanto o segundo acredita que é dever dos economicamente aptos empurrar os ineptos para fora dos negócios e para a extinção econômica. ‘Sobrevivência do mais ‘apto’ e desigualdades em poder de compra são a essência da eficiência capitalista. Indivíduos e empresas tornam-se eficientes para serem ricos. Colocando em termos claros, o capitalismo é perfeitamente compatível com a escravidão. O sul dos Estados Unidos teve esse sistema por mais de 200 anos. A democracia não é compatível com a escravidão.” THUROW, O futuro do capitalismo, op. cit., p. 312.
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especialmente o Brasil. Como observou Agamben227, no Estado de Exceção
suspende-se o ordenamento estando dentro e fora ao mesmo tempo, criando-se um
campo de anomia permanente228. Isto é, usa-se do próprio ordenamento jurídico
para tornar inefetivas as garantias fundamentais do cidadão229. E, lamentavelmente,
este quadro é vivido hoje em sociedade como regra e não mais como exceção230. É
neste sentido que um permanente ‘estado de emergência’231 passa a ser alimentado
para justificar a implementação de um salvador ‘Estado eficiente’, mesmo que em
detrimento do direito à vida digna, à liberdade, etc. E é isso exatamente o que
provoca tal princípio: uma ‘ditadura constitucional’232 aterradora que homogeniza e
padroniza a eficiência como paradigma estatal.
Não resta, assim, mais qualquer dúvida: este ‘neoconstitucionalismo
econômico’233, com seu projeto de eficiência, gera e conserva enorme exclusão
social. Mais que isso, precisa de exclusão social para funcionar em plenitude. As
vítimas (excluídos), como se vê no ‘Homo Sacer’ de Agamben, são sempre o alvo,
“matáveis e não sacraficáveis”234. E é aí, precisa-se reconhecer, na ‘margem’, no
227 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. 228 Com o autor: “Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.” AGAMBEN, Estado de Exceção, op. cit., p. 39. 229 Rosa oportunamente esclarece: “Agamben sustenta que o paradoxo da soberania encontra-se no sentido de que se está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema. Isto porque ao mesmo tempo que garante as normas decorrentes, tem o poder de suspender o sistema. Está, portanto, dentro e fora. Pode proclamar o ‘estado de exceção’ e suspender o ordenamento.” ROSA, O Estrangeiro, a Exceção e o Direito. op.cit.,p. 62-63. 230 Agamben aponta que “[...] a partir do momento em que ‘o estado de exceção tornou-se regra [...], ele não só sempre se apresenta mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica.” E ainda adverte: “um exercício sistemático e regular do instituto leva necessariamente à liquidação da democracia”. AGAMBEN, Estado de Exceção, op.cit., p. 18 e 19. 231 AGAMBEN, Estado de Exceção, op.cit., p. 13. 232 AGAMBEN, Estado de Exceção, op.cit., p. 21. 233 Souza Neto afirma: “É nesse sentido que se pode falar em um neoconstitucionalismo econômico, que passa a ter lugar com a ‘privatização do governo público’. Esse é o constitucionalismo acuado pelo ‘terror econômico’, pelo ‘estado de exceção econômica’, que caracteriza nosso contexto”. SOUZA NETO, O dilema constitucional contemporâneo, op.cit.,p. 122. 234 O autor italiano explica que: “Aquilo que é capturado no bando soberano é uma vida humana matável e insacrificável: o homo sacer. Se chamamos vida nua ou vida sacra a esta vida que constitui o conteúdo primeiro do poder soberano, dispomos ainda de um princípio de resposta para o quesito benjaminiano acerca da ‘origem do dogma da sacralidade da vida’. [...] A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 91.
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âmbito da pobreza e da miséria que se encontra o ‘exército de reserva’; que se
encontram os ‘perdedores do jogo’ a que se referia Smith (ou Walras, como insiste
Maris), os ‘inaptos’ e ‘incapazes’ a que se referia Hayek, e os ‘não-competitivos’ de
que falava Friedman. Apesar disto, ainda querem persuadir a todos de que a
pobreza é circunstancial, inevitável, sem solução. Resta, a estes, o ‘eficiente’
sistema penal, relegitimado em instrumento do poder235.
‘Todo o sacrifício é válido para tornar o Estado mais eficiente!’236,
assim bradam os neoliberais – como já demonstrado por Ost e Himkelammert. No
entanto, omitem que tal sacrifício será necessariamente permanente. No Brasil, país
já cansado de sucessivos ‘sacrifícios’, agora temos o jugo da aplaudida Lei de
Responsabilidade Fiscal237 que, com mais um giro discursivo – fazendo todos
crerem que se trata de uma lei que salvará a sociedade da crônica improbidade
administrativa -, impõe aos agentes políticos um eficientista controle fiscal-
orçamentário não voltado para ações sociais, mas para uma ‘gestão gerencial’ com
vinculação orçamentária. E a prioridade, por exemplo, entre outros compromissos,
passa a ser o pagamento de operações de crédito com instituições financeiras. Por
esta lei, o chefe de poder executivo deixa de investir mais e melhor em saúde e
educação, para priorizar acordos com o Fundo Monetário Internacional, v.g. E disso
pouco (ou quase nada) se fala.
Esse discurso ‘técnico-doutrinário’ - próprio dos economistas
neoliberais - da naturalização da pobreza (e do bíblico sacrifício que ‘liberta) visa tão
somente conformar, entorpecer, anestesiar, fomentando, através da ‘euforia de
mercado’ a crença de que não existem alternativas238. E como gostam tanto de
235 Conferir: ROSA, Decisão Penal, op.cit., p. 255 e seguintes; ROSA, Direito Infracional, op.cit., p. 55 e seguintes; e SÁNCHES, Jesús-Maria Silva. Eficiência e Direito Penal. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004. 236 Tal qual na odisséia de Orwell, devemos sofrer até amarmos o Grande Irmão, e assim libertarmos: “Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.” ORWELL, 1984, op.cit., p. 54. 237 Galdino afirma com empolgação: “As mais vibrantes cores em tema de eficiência da administração da coisa pública foram acesas pela promulgação da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n, 101 de 04.05.2000), que incorpora entre nós princípios e procedimentos da gestão orçamentária responsável, concretizando a exigência constitucional.” GALDINO, Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos, op.cit., p. 266. 238 Warat explica que “La senal de alerta contra una euforia de mercado que estremece el mundo, anticipando la ‘solución final’ de la ‘burguesia tardía’: el hombre de los vínculos desgarrados,
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números e estatísticas, torna-se oportuno utilizar Sachs239 para desconstituir esta
falácia. Este autor, de modo fundamentado e devidamente ‘calculado’ demonstra
que a pobreza240 não constitui fenômeno insolúvel como querem fazer crer os
neoliberais. E faz isso sem qualquer truque de mágica. Mas primeiramente, como
gostam os experts, o problema deve ser ‘quantificado’:
Atualmente, mais de 8 milhões de pessoas em todo o mundo morrem a cada ano porque são pobres demais para permanecer vivas. Nossa geração pode tomar a decisão de acabar com a miséria até 2025. Todas as manhãs, nossos jornais poderiam anunciar: ‘mais de 20 mil pessoas morreram ontem de miséria’. As matérias poriam os números em contexto: até 8 mil crianças mortas pela malária, 5 mil mães e pais mortos de tuberculose, 7.500 adultos jovens vítimas de aids e outros milhares mortem de diarréia, infecção respiratória e outras doenças mortais que atacam corpos enfraquecidos pela fome crônica. Os pobres morrem em hospitais que não tem medicamentos, em aldeias que carecem de mosquiteiros, em casas que não possuem água potável. Morrem sem nome, sem comentário público. É triste, mas essas matérias raramente são escritas. A maioria das pessoas não tem consciência das lutas cotidianas pela sobrevivência e da enorme quantidade de gente pobre em todo o mundo que perde essa luta.241
Diante desse quadro desolador, Sachs propõe uma premente e
necessária readequação na transferência de recursos entre norte e sul. Sem
fórmulas mirabolantes, Sachs mostra com números o que talvez já fosse imaginado
por muitos. Considerando que, no modo de acumulação neoliberal, a riqueza
cresceu desproporcionalmente em relação à pobreza242, bastaria uma pequena
porcentagem do produto nacional bruto dos Estados Unidos243, em torno de 15
magnetizado por el vacío significativo de cuerpos transformado en excusa.” WARAT, Por quiem cantan las sirenas, op.cit., p. 13. 239 SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos 20 anos. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 240 O autor esclarece a expressão ‘pobreza’: “Em termos de definição, é importante distinguir três graus de pobreza: pobreza extrema (ou absoluta), pobreza moderada e pobreza relativa. A pobreza extrema ou miséria significa que as famílias não podem satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência. [...] A pobreza moderada refere-se, em geral, a condições de vida em que as necessidades básicas são satisfeitas, mas com muita dificuldade. A pobreza relativa é, em geral, interpretada como sendo uma renda familiar abaixo de uma determinada proporção da renda média nacional.” SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 46-47. 241 SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 27. 242 Sachs explica que “[...] o mundo rico de hoje é imensamente rico. Um esforço para acabar com a pobreza extrema que pareceria fora de cogitação há uma ou duas gerações está agora ao alcance porque os custos são uma fração mínima da renda enormemente expandida do mundo rico.” SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 332. 243 Sachs indaga: “Os Estados Unidos podem doar 0,7% do PNB?”. E nos faz ponderar: “À primeira vista a pergunta é tola. Podem os Estados Unidos suportar um alvo de ajuda que cinco outros países
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bilhões de dólares, para amenizar a asfixia proporcionada pela miséria. Em suas
palavras:
A partir do 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos iniciaram uma guerra contra o terror, mas esqueceram as causas mais profundas da instabilidade global. Os US$ 450 bilhões que o país gastará neste ano com suas forças militares jamais comprarão a paz apenas 15 bilhões, e cerca da trigésima parte disso, for destinadas aos mais pobres dos pobres do mundo [...]. Esses 15 bilhões representam uma porcentagem minúscula da renda dos Estados Unidos, apenas US$ 0,15 de cada US$ 100 do produto nacional bruto americano (PNB).244
E ainda querem os neoliberais, especialmente os norte-americanos,
convencerem a sociedade de que o Mercado por si só ‘corrige’ e ‘equilibra’ a
distribuição de riqueza, e a distribuição de oportunidades245. Não faz o menor
sentido. O neoliberalismo eficientista é autofágico, e não percebe que as
conseqüências que geram se tornarão as causas de sua ruína246. Não mais se pode
conceber um modelo tão indiferente à vida humana. Enquanto os cegos ou
doadores já alcançaram, outros seis prevêem atingir e todos os doadores – inclusive os Estados Unidos – prometeram ‘esforços concretos’ para alcançar? Claro que podem, em especial porque estou falando de muito menos de 1% de renda. Pensem nisso. Para ir do nível de assistência de hoje de 0,15% para 0,7% do PNB, seria preciso uma taxa extra de 0,55% do PNB. Como o PNB per capta americano aumenta cerca de 1,9% ao ano, a quantia extra representa menos de um terço do crescimento do PNB em um único ano. Assim, se os Estados Unidos estivessem a caminho de atingir uma renda disponível de US$ 40 mil em, digamos, primeiro de janeiro de 2010, em vez disso, chegariam à mesma renda em primeiro de maio de 2010, um terço de ano depois. Esse atraso de quatro meses em atingir um nível mais alto de consumo significa que 1 bilhão de pessoas ganhariam um futuro econômico de esperança, saúde e melhoria, em vez de uma espiral de desespero, doença e declínio.” E mais adiante: “Todo o incessante debate sobre a assistência ao desenvolvimento, e se os ricos estão fazendo o suficiente para ajudar os pobres, diz respeito, na verdade, a menos de 1% da renda do mundo rico.” SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 331 e 348. 244 SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 27-28. 245 Sachs demonstra a falácia da ‘distribuição equilibrada de oportunidades’: “O problema fundamental para os países mais pobres é que a própria pobreza pode ser uma armadilha. Quando a pobreza é muito extrema, os pobres não têm a capacidade – por eles mesmos – de sair da enrascada. Eis o porquê: pensemos no tipo de pobreza causado pela falta de capital por pessoa. As aldeias rurais miseráveis não têm caminhões, estradas pavimentadas, geradores de energia, canais de irrigação. O capital humano é muito baixo, com moradores famintos, doentes e analfabetos lutando para sobreviver. O capital natural está esgotado: as árvores foram cortadas e os nutrientes do solo exauridos. Nessas condições, há necessidade de mais capital – físico, humano, natural - , mas isso exige poupança. Quando as pessoas são pobres, mas não totalmente destituídas, precisam de toda a renda, ou mais, apenas para sobreviver. Não há margem de renda acima do exigido para a sobrevivência que possa ser investida para o futuro”. SACHS, O fim da pobreza, op. cit, p. 85. 246 Maris usa como metáfora o lendário Titanic: “A economia mundial é o barco que navega o oceano das mercadorias, a bruma da euforia não permite ver o iceberg. [...]. O Titanic é uma metáfora do capitalismo, não há dúvida”. MARIS, Carta aberta aos gurus da economia, op. cit., p. 134.
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nefelibatas247 falam laisser faire, laisser passer248, os excluídos - quase sempre
silenciados249 -, sussuram (quando sussuram) “exijo justiça, tenho fome!”250. Existe
sim saída desta cruel ‘fábula da eficiência’, rumo à uma sociedade mais ‘justa’ –
rompendo com este espiral de angústia e miséria - e isso já se constata com
Galbraith251.
O professor de Harvard reconhece que hoje se vive numa
‘democracia de afortunados’252, e que está em curso uma séria substituição do
‘pensamento’ pela ‘disciplina’ neste modelo eficientista que transforma indivíduos em
‘bons soldados’253. No entanto, defende – em boa hora -, o que chama de
democracia ‘genuína’ e ‘inclusiva’, que se mostra absolutamente incompatível com o
atual modelo neo-capitalista e com seu discurso que finge não perceber as suas
nefastas conseqüências. Galbraith admite: “Na maior parte da África, em grande
parte da Ásia e boa parte da América Latina, a pobreza absoluta ainda é endêmica.
247 É Lyra Filho que propõe esta oportuna tipologia quanto aos conservadores: “Estes se dividem em três grupos principais: os cegos, que servem à dominação por burrice e ignorância; os catedr’áulicos, que a ela servem por safadeza; e os nefelibatas, que acabam fazendo a mesma coisa, por viverem nas nuvens.” LYRA FILHO, Por que estudar Direito, hoje?, op. cit., p. 23. 248 Significa ‘deixe passar, deixe circular livremente’. 249 Como explica Orlandi, o silêncio também diz muito: “Se a linguagem implica silêncios, contudo, sempre dizem. Sustenta do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante.” ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997. p. 23. Neste sentido, conferir também: VIRILIO, Paul. El procedimiento silencio. Trad. Jorge Fondebrider. Buenos Aires: Paidós, 2005. 250 Dussel é quem melhor esclarece: “En la ‘exterioridad’ – considerada por Lévinas, por Marx y por la filosofía de la liberación – está el ‘pobre’, como individuo, como marginal urbano, como etnias indígenas, como pueblos o naciones periféricas destinadas à la muerte. [...] En efecto, la filosofia del lenguaje debería igualmente hacerse cargo de ciertos enunciados (speech acts) que se expresan, por ejemplo, en el angustioso ‘Tengo hambre, por ello exijo justicia!’.” DUSSEL, Enrique. La introducción de la transformación e la filosofia de K.O. Apel y la filosofia de la liberación: Reflexiones desde una perspectiva latinoamericana. In: DUSSEL, Enrique; APEL, Karl-Otto. Ética del Discurso, Ética de la Liberación. Madrid: Trotta, 2004. p. 117-118. 251 GALBRAITH, John Kenneth. A Sociedade Justa: uma perspectiva humana. 7.ed. Trad. Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1996. 252 Explica Galbraith: “Os ricos e os bem-situados são agora, muito mais numerosos e diversificados do que a classe capitalista anterior, além de serem também muito mais articulados politicamente. [...]. Os menos favorecidos são as vítimas da pobreza nas grandes cidades [...]. Eis, em síntese, a dialética da política moderna. É uma competição desigual: os ricos e os bem situados têm influência e dinheiro. Além disso eles votam. Os preocupados e os pobres são em grande número, mas muito dos pobres infelizmente não votam. Existe democracia, mas ela é, em grande medida, uma democracia dos afortunados.” GALBRAITH, A Sociedade Justa, op. cit., p. 09. 253 Afirma o autor: “ao mesmo tempo, não há dúvida de que o pensamento criativo é suprimido e, muitas vezes, substituído pelo processo disciplinador. O homem ou a mulher de visão independente – que identifica a fraqueza ou o erro e que vê ou antevê a necessidade de mudança – pode perfeitamente ser considerado não-cooperador, irresponsável, excêntrico. Em uma expressão favorita do governo, ele ou ela ‘não é útil’”. GALBRAITH, A Sociedade Justa, op. cit., p. 120.
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A sociedade justa não pode se isolar dessa pobreza.”254 E ainda sentencia: “O
Estado-nação não deve tentar escapar à responsabilidade aceitando a mais
comumente usada fórmula de egoísmo próprio: ‘É um outro país; não é nosso
problema”255.
Na América Latina, não por demais relembrar, a aguda exclusão que
hoje se presencia é decorrência direta de um específico e direcionado projeto de
manutenção da pobreza ‘importado’ da Banca de Bretton Woods. E o programa
neoliberal de ‘políticas sociais’, apresentado como ‘pacote’ de medidas políticas e
econômicas no velho esquema de ‘condicionamento de empréstimos’, é um bom
exemplo disto. Desde a década de ’90, quando as instituições de Bretton Woods
passam a reconhecer que os ‘ajustes estruturais’ implementados na década anterior
causam efeitos “desfavoráveis”, constata-se que o neoliberalismo no continente sul
foi um inquestionável fracasso256.
Diante na enorme pressão dos países periféricos para superar a crise
de pauperização herdada principalmente dos anos ’80, os neoliberais mudam a
estratégia. Como sentiam o grande apelo continental por mais políticas de bem-estar
– normalmente pensadas para a implementação universal -, os neoliberais, através é
claro das agências de Bretton Woods, lançam um programa que apresenta para a
América Latina uma ‘novo regime de políticas sociais’257. Enquanto a mídia fazia a
grande massa pensar que se tratavam de medidas ‘de ajuda’ aos pobres latino-
americanos, em verdade, tratava-se de mais um importante giro para o
fortalecimento do neoliberalismo e para o enfraquecimento das políticas de ‘bem-
estar’. É que através do que Ezcurra chama de ‘focalização’, os banqueiros do norte
apresentaram um pacote de programas com o objetivo de selecionar e reduzir os
beneficiários através de critérios próprios (de metodologia duvidosa) de classificação
254 GALBRAITH, A Sociedade Justa, op. cit., p. 150. 255 GALBRAITH, A Sociedade Justa, op. cit., p. 150. 256 Ezcurra afirma que, depois de muita pressão, os dirigentes de Bretton Woods “admiten que los ajustes estructurales pueden inducir efectos desfavorables en los pobres y, en general, en los trabajadores”. E com base em texto oficial do Banco Mundial, registra que: “Por su parte, el Informe sobre el Desarrollo Mundial 1995: El mundo del trabajo en una economía integrada, proclama que la ‘reforma económica’ ‘puede tener consecuencias devastadoras para ciertos trabajadores, provocando una disminución de los salarios reales, un aumento del desempleo y un desplazamiento de la mano de obra del sector formal hacia el informal. […] Concluye que el examen de los datos disponibles ciertamiente indica que los trabajadores pagan un alto precio durante el ajuste.” EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op.cit., p. 78. 257 EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op.cit., p. 101 e seguintes.
191
da pobreza258. Assim, rompendo com o princípio universal de assistência do Estado,
os neoliberais conseguiram reduzir sobremaneira o gasto público social.
É daí que surgem programas assistenciais consagrados como o Peti
– Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Bolsa Família, Fundos de
Erradicação da Pobreza, etc. Isto é, normatiza-se, seleciona-se, e reduz-se o
número de beneficiários. Por conseqüência, diminui-se o gasto social. Afinal de
contas, este é o objetivo central do neoliberalismo. Além disso, tal projeto presta um
outro primordial serviço: mantém, com ‘eficiência social’259 e com todo o apoio do,
agora, ‘Estado eficaz’260 (do Estado árbitro, de que falava Friedman), o exército de
reserva de trabalhadores paupérrimos. Claro. É sempre isto que é visado. É esta
perversa lógica que sempre mantém ou amplia os lucros através da redução de
custos com salários. Isso mesmo. Enquanto muitos pensavam que tais programas
sociais eram uma certa forma de resistência latino-americana à voracidade deste
neocapitalismo contemporâneo, trata-se, nada mais nada menos do que mais um
instrumento de avanço do neoliberalismo na América do Sul. De avanço do
Mercado-Deus, que nunca erra, que nunca falha. Afinal, a ‘culpa’ da pobreza no Sul,
como querem os neoliberais, é sempre de los latino-americanos.
De fato precisa-se romper com esta lógica excludente da
racionalidade eficientista que, transferindo para o Mercado a decisão sobre vida e
morte dos sujeitos261, impede com que se crie um ambiente propício para o
florescimento de uma democracia inclusiva, como já disse Galbraith. Em tempos de
258 Com Ezcurra: “La arquitectura neoliberal en la materia se organiza en torno a una nota distintiva prominente, estructurante y especifica: la focalización. El vocablo ha concitado una señala difusión en América Latina durante los ’90. Básicamente, alude a que las prestaciones sociales provistas por el Estado procedan a una selección y redcción de los destinatários. […] Por qué? Es que la concentración de fondos en un volume limitado y menor de recptores trae consigo una caída de los costos fiscales.” EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op.cit., p. 102. 259 EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op.cit., p. 111. 260 EZCURRA, Que es el neoliberalismo?, op.cit., p. 87. 261 Com Hinkelammert: “Quem não consegue acesso à subsistência está condenado à morte. Ao distribuir os valores de uso produzidos, o mercado distribui oportunidades de vida. Quem não se integra no mercado, ou não pode fazer isso, é uma pessoa que sobra e está condenada à morte. Adam Smith sustenta que, por meio da oferta e da demanda de força de trabalho, o mercado decide sobre a vida e a morte. Se o salário sobe acima da subsistência, haverá operários em excesso, e estes se multiplicarão demais. Por conseguinte, o salário deve cair abaixo da subsistência para que os sobrantes possam ser eliminados. [...]. Esta é a outra face da ‘mão invisível’”. HINKELAMMERT, Franz. Pensar em alternativas: capitalismo, socialismo e a possibilidade de outro mundo. In: PIXLEY, Jorge. Por um mundo diferente: alternativas para o Mercado Global. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 12.
192
plena ‘Turboglobalizão’262- que provoca a ‘dispensabilidade’ dos pobres263, e que os
impõem condições inferiores às dos escravos antigos264- , mais do que nunca
precisa-se de um Direito autônomo e de um Judiciário independente, que não
estejam a serviço de um paradigma epistêmico, tal qual o eficienticista, que
despreza a democracia.
Esta postura recalcitrante impede com que, no Brasil, por exemplo,
se implemente e concretize o Estado Democrático de Direito que, previsto
formalmente em nossa Carta Magna, ainda figura como modelo distante da
realidade face a sua manifesta e perseverante inefetividade. Enquanto permanece
inefetiva, negligenciam-se à sociedade as promessas modernas265 e nos condenam
a uma intolerável realidade de espoliação, miséria e exclusão266.
3.3 RESISTÊNCIA CONSTITUCIONAL E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Denunciada toda a situação anterior, e considerando a necessidade
premente de que se assuma em sociedade, mormente no âmbito jurídico, uma
postura de resistência no sentido de reafirmação e proteção dos Direitos
Fundamentais constitucionalmente garantidos, torna-se de vital importância partir-se
das seguintes constatações diante do estudo até aqui desenvolvido:
262 Friedrich Muller utilizou esta expressão quando se referiu à excessiva e excludente ‘monetarização global’. MÜLLER, Friedrich. O futuro do Estado – A nação e a luta contra a Turboglobalização. In: Palestra proferida no Auditório do CCJ da UFSC, 2006, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2006. 263 Com Bauman: “A criação de riqueza está a caminho de finalmente emancipar-se das suas perpétuas conexões – restritivas e vexatórias – com produção de coisas, o processamento de materiais, a criação de empregos e a direção de pessoas. Os antigos ricos precisavam dos pobres para fazê-los e mantê-los ricos. Essa dependência mitigou em todas as épocas o conflito de interesses e incentivou algum esforço, ainda que débil, de assistência. Os novos-ricos não precisam mais dos pobres. Finalmente a bem-aventurança da liberdade total está próxima.” BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 80. 264 Marques Neto é quem nos abre os olhos para este absurdo: “E aliás talvez em relação aos excluídos do Brasil, o escravo grego até seja um privilegiado, porque, pelo menos, ele é incluído e é necessário. Uma sociedade escravocrata pressupõe o escravo como uma condição de possibilidade sua e como uma necessidade. Os excluídos, no Brasil, qual a sua necessidade? Na verdade, não serão tido muito mais como algo que atrapalha, se nenhuma necessidade?”. MARQUES NETO, O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática, op. cit., p. 33. 265 STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., p. 21 e seguintes. 266 MÜLLER, Friederich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?. Trad. Peter Naumann. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2000.
193
1 – Observou-se que a concepção tradicional-positivista do Direito,
pioneiramente construída por Kelsen, Austin, Hart e Bobbio, e de mesmo modo a
teoria clássica da Constituição da República, apesar de ainda muito difundidas entre
os juristas por oferecer alento e conforto na acomodação de recursos silogísticos de
aplicação da norma ao caso correto, se mostram cada vez mais incompatíveis e
insuficientes diante de toda a complexidade da sociedade contemporânea – ainda
refém de um modo de produção liberal, em que o Direito encontra dificuldades em
dar respostas às questões atuais que envolvem interesses da coletividade.
Recusando-se em aceitar a conjugação entre Direito, moral e política, os positivistas
clássicos reduzem o Direito à norma/regra (ou conjunto de normas/regras)
considerando-a em seu aspecto eminentemente formal, em detrimento de seu
conteúdo. Para Kelsen, por exemplo, a norma jurídica válida - isto é, submetida a
todos os procedimentos formais-legislativos constitucionais -, poderia possuir
qualquer conteúdo, e não seria papel do jurista aferir, na aplicação da norma,
questões de ordem axiológica, sociológica, psicológica, etc. Haveria, segundo os
positivistas, sempre uma boa regra para o caso concreto. Em caso de lacuna, o juiz
teria discricionariedade limitada para sua aplicação. A legitimidade do Direito para
Kelsen estaria numa ‘norma fundamental’ hipotética, e para Hart numa ‘regra de
reconhecimento’ que levaria em conta a aceitação da regra jurídica por parte da
comunidade do Direito. O apelo, aqui, especialmente em Kelsen e Bobbio, versão
mais aceita entre os juristas pátrios, ainda é a uma razão com pretensões
transcendentais (neo-kantianas) e com caráter absoluto e infalível.
2 – Com o objetivo de oferecer novos olhares ao Direito - que em sua
concepção clássico-positivista foi negativamente marcado pelos excessos cometidos
em seu nome nos regimes fascista e nazista -, surge, a partir do pós-guerra, o
movimento que se denominou de ‘neoconstitucionalismo’ ou ‘pós-positivismo’
(Streck/Calsamiglia) e que, aproveitando-se dos avanços hermenêuticos que já
floresceriam à época, propôs uma teoria jurídica mais adequada, rompendo-se com
a visão clássico-legalista. Agora, o Direito não é mais visto em desconexão com a
moral e com a política, como queriam os positivistas clássicos. Pelo contrário. Para
os teóricos deste ‘neoconstitucionalismo’, entre eles Alexy, Dworkin, Habermas, e
Canotilho (cada qual ao seu modo), o Direito está desde sempre articulado com a
moral e com a política; e ignorar isto é retroceder na compreensão contemporânea
194
do que representa o jurídico. A norma deixa de ser considerada na condição
exclusiva de ‘regra’, para ser aceita numa tipologia que erige o princípio ao status de
norma. A Constituição, nesta nova concepção, passa a assumir novo papel: deixa de
ser mero documento que encarta normas e princípios gerais e abstratos sem
imperatividade, para se constituir em verdadeiro instrumento vinculante do agir
político-estatal (Canotilho). Nesta visão, normas programáticas passam a ter força
cogente, especialmente aquelas que digam respeito ao rol de Direitos Fundamentais
Sociais.
3 – Em âmbito hermenêutico, pôde-se constatar que as práticas
interpretativas da esmagadora maioria dos juristas ainda estão apegadas a uma
concepção ‘essencialista’ (Betti) do Direito. Entende-se, aqui, ser possível alcançar
um sentido ‘exclusivo’, ‘primevo’ da norma jurídica. O senso comum teórico dos
juristas (Warat) é ainda informado pela filosofia da consciência, que se recusa
aceitar os avanços da linguagem e da psicanálise (Coutinho/Rosa). Acredita-se,
nesta hermenêutica tradicional, ser factível identificar e transmitir/reproduzir através
da interpretação objetiva do texto legal, a ‘vontade do legislador’, a ‘vontade da
norma’ (No Brasil, destaca-se o pioneirismo e larga aceitação da obra de
Maximiliano). E tal desiderato seria alcançado com a utilização de métodos
normativos-hermenêuticos que constituiriam os meios adequados para o alcance de
resultados ‘objetivos’ e ‘neutros’ de interpretação. No entanto, este modus de
interpretar o Direito foi, a partir da viragem lingüístico-pragmática de nossos tempos,
ferido de morte. Com os avanços proporcionados pelos estudos da linguagem, e
especialmente com os contributos das obras de Heidegger e Gadamer, rompeu-se
com a forma tradicional de interpretação jurídica. A relação antes marcada pelo
binômio objetivista-metafísico ‘sujeito-objeto’, passa a ser intersubjetiva, isto é,
‘sujeito-sujeito’ (Heidegger). A compreensão deixa de ser uma mera construção
histórica como queriam os clássicos, para se constituir numa verdadeira ‘fusão de
horizontes’ (Gadamer). O sentido, antes ‘imanente’, ‘fundante’ e racionalmente
‘reproduzido’, agora é ‘produzido’ pelo intérprete a partir de sua história vivencial, de
suas experiências, de seus pré-juízos, pré-conceitos, valores, etc. A interpretação,
desde sempre na linguagem, passa a ser ‘interpretação-compreensão’ (Gadamer).
Por conta disso é que Heidegger afirmou que ‘a linguagem é a Casa do ser’, e
Gadamer que ‘ser que pode ser compreendido é linguagem’.
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4 – O modelo político-econômico neoliberal - radicalizado pelo
processo de ‘globalização’ financeira que simplesmente faz desaparecer as
fronteiras territoriais e que ‘encobre’ gradativamente as identidades nacionais
(Bauman) -, elege como seu alvo principal o Estado, servindo-se do Direito para
desmantelá-lo. Para que a movimentação de capital das empresas transnacionais
seja livre e desembaraçada, maximizando ao extremo a lucratividade e a
acumulação de riqueza, torna-se necessário eliminar quaisquer barreiras protetivas,
e por isso, o Direito, segundo os neoliberais, necessita ser flexibilizado, e o Estado
precisa ser diminuído, privatizado. Entre o senhor-Mercado e seus súditos-
consumidores não deve haver interferência estatal. O giro discursivo se dá aqui
(sempre de modo astuto) sobre o significante ‘liberdade’, e o significado é sempre
‘grudado’ (Rosa) por conveniência. A conclusão torna-se evidente, como apontou
Coutinho: o neoliberalismo ‘despreza o Direito’, e considera a máquina judiciária
como um ‘estorvo’, como um empecilho que precisa ser afastado, eliminado. No
neoliberalismo, o Direito e o Estado devem estar a serviço do ‘econômico’ e do
Mercado, que segundo os neoconservadores, ‘libertará’ a sociedade e a conduzirá
ao alcance da máxima felicidade coletiva. Esta é a promessa.
5 – O neoliberalismo, com sua racionalidade ‘fria’ e ‘calculista’, e
justificando o prefixo ‘neo’ (Coutinho), abandona por completo os preceitos basilares
do liberalismo clássico para transformar os sujeitos-cidadãos em sujeitos-
consumidores, ao preço, é claro, da Democracia (Rosa). Reificados (Castoriadis)
através da construção mítica da ‘relação de consumo’, e com todo o apoio do
aparato da mídia - que opera a permanente violência simbólica (Bourdieu)267 -, a
figura do ‘cidadão’ (sujeito de direitos) vai gradativamente dando lugar ao objetivado
e coisificado ‘consumidor’ (sujeito de desejos) (Marques Neto). A relação deixa de
ser a de livre cidadania democrática, para se tornar uma relação de ‘servidão
voluntária’ (La Boétie) ao Mercado e à lógica economicista. O excesso e a exibição
passam a ser a regra (Melman). O que importa não é mais aquele sujeito racional-
267 Vale, neste sentido, a análise de Bourdieu: “Se for verdade que a violência simbólica é forma branda e enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-se abertamente, compreende-se que as formas simbólicas da dominação tenham-se deteriorado progressivamente à medida que se constituíam os mecanismos objetivos que, tornando inútil o trabalho de eufemização, tendiam a produzir as disposições desencantadas exigidas por seu desenvolvimento”. BOURDIEU, Pierre. A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. 2.ed.Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Zouk, 2004. p. 213.
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pensante que contribuía para a construção do futuro e da democracia, como
idealizado pelos liberais clássicos. O que realmente vale são os ‘corpos docilizados’
(Foucault) que são apropriados pela instituição-Mercado – sempre objeto de
adoração e amor (Legendre). O individualismo exacerbado (com manifestos ares
egoísticos) figura como a mola propulsora de todo o processo; e a competitividade
selvagem, em busca da satisfação inalcançável do desejo (permanentemente
trabalhado, aguçado, provocado...), impõe-se como novo preceito ético-social
(Melman). E a democracia? Esta se torna mero procedimento, mero método, para
não atrapalhar a ascensão dos vencedores, dos mais aptos, dos mais hábeis, dos
mais ‘sortudos’, enfim, dos mais capazes, como ‘profetizaram’ Hayek e Friedman.
6 – Com o objetivo manifesto de cooptar (Marques Neto) os legalistas
pátrios, os neoliberais, sob o pálio de uma ‘reforma administrativa’ de Estado que
esboçou pretensões messiânicas de solução dos problemas nacionais, operaram um
verdadeiro (e pouco percebido pela maioria) câmbio epistemológico (Coutinho),
apondo no texto constitucional, através da Emenda n.° 19/98, a ‘eficiência’ como
princípio-meta da Administração Pública. A ‘ação eficiente’ estava, pois,
devidamente ‘rebatizada’ pelo jurídico, e agora muitos legalistas (os incautos)
passavam a defender um ‘Estado eficiente’, pensando estar defendendo um ‘Estado
efetivo’. O golpe institucional (Bonavides) se deu com sutis requintes de crueldade:
com a arguta estratégia de se atacar ‘por dentro’ da estrutura estatal (através da
própria Constituição da República), os neoliberais usaram habilmente da mitificação-
perfeição (Ost) e da abstração principiológica da lei para naturalizar a eficiência
como novo e ‘legítimo’ parâmetro de atuação estatal. Tal paradigma, como visto, traz
consigo o referencial teórico yanke da Análise Econômica do Direito que, como
sabido, visa tornar o Direito a serviço do econômico e da eficiente alocação de
recursos em sociedade. O Direito passa, assim, a ser analisado e considerado única
e exclusivamente em função de seus custos (Galdino) – e nisso, como já se notou
com Zizek, não há qualquer inocência.
7 – O neoliberalismo, enquanto modelo que impõe sua marca
epistêmica (a ‘ação eficiente’) como paradigma ético-constitucional (e social),
acarreta como conseqüência flagrante o desrespeito aos Direitos Fundamentais - o
197
que agrava a já massificada exclusão social. A pobreza, a miséria e a fome268
passam a ser conseqüências circunstanciais e necessárias para a novel lógica
neoliberal. Sem um ‘exército de reserva’, não há como manter os salários baixos e a
lucratividade alta – este é o referencial de ‘equilíbrio’ do Senhor-Mercado. Os
sujeitos deixam de interessar como ‘cidadãos’, para serem incessantemente
assediados na ‘nobre’ condição de ‘consumidores’. Os que não conseguem
consumir – os ‘consumidores falhos’ na expressão de Rosa269 -, estão
‘bondosamente’ (Marques Neto) ‘liberados a la muerte’ (Hinkelammert). E os que
sobrevivem, habitam a ‘margem’ de exclusão, onde se encontram os ‘perdedores’ do
jogo que não se enquadraram à lógica de amor do Mercado (pois para amá-lo, é
preciso pagar o preço do consumo). Mais que isso. É a pobreza e a exclusão que
dão sentido a toda a fantasia e fetiche de adoração da riqueza e da acumulação
material (Bauman)270.
8 – O discurso economicista, especialmente o acadêmico, como se
teve oportunidade de ver, é permeado por um conjunto absurdo de mitos e fantasias
que respaldam as práticas neoliberais em busca de seus exclusivos propósitos
acumulativos. Com a mitificação e sacralização da figura do ‘Mercado’ (Legendre),
mantém-se a sociedade sob a fé de que somente ele poderia conduzir a todos para
a libertação e o alcance da felicidade (Hinkelammert). Mas com recursos
tecnológicos e com a velocidade (Virilio), fazem com que os desejos jamais sejam
268 Como lembra Bauman, a conseqüência ‘fome’ é freqüentemente utilizada para encobrir a grandeza do problema social, que vai além dos famintos: “o que a equação ‘pobreza=fome’ esconde são muitos outros aspectos complexos da pobreza – horríveis condições de vida e moradia, doença, analfabetismo, agressão, famílias destruídas, enfraquecimento dos lanços sociais, ausência de futuro e de produtividade -; aflições que não podem ser curadas com biscoitos superprotéicos e leite em pó. Kapuscinski lembra que perambulou por vilas e aldeias africanas, encontrando crianças ‘que imploravam não pão, água, chocolate ou brinquedos, mas uma esferográfica, pois iam à escola e não tinham com que escrever as lições’.” BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 81-82. 269 ROSA, Alexandre Morais. Aplicando o ECA: felicidade e perversão se limites. In: Revista dos Tribunais. Ano 14. n. 58. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 21. 270 Usando a expressão ‘vagabundos’ para os ‘consumidores frustrados’ ou os excluídos, e ‘turistas’ para os consumidores bem sucedidos, e que são a todo o tempo assediados pelo ‘Mercado’, Bauman afirma: “E assim o vagabundo é o pesadelo do turista, o ‘demônio interior’ do turista que precisa ser exorcizado diariamente. A simples visão do vagabundo faz o turista tremer – não pelo que o vagabundo é mas pelo que o turista pode vir a ser. [...] Um mundo sem vagabundos será um mundo no qual Gregor Samsa jamais passará pela metamorfose em inseto e os turistas jamais acordarão um dia na pele de vagabundos. Um mundo sem vagabundos é a utopia da sociedade dos turistas. [...] O problema, é que a vida dos turistas não teria nem a metade do prazer que tem se não fossem os vagabundos à sua volta para mostrar como seria a alternativa a essa vida, a única alternativa que a sociedade dos viajantes torna realista.” BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 106.
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satisfeitos, que a felicidade seja sempre ‘quase’ alcançável271. É por isso que o
discurso dos economistas neoliberais procura se manter sob dogmas que, como
visto com Maris, simplesmente não passam de empulhação. ‘Equilíbrio de Mercado’,
‘teoria dos jogos’, ‘teorema da mão invisível’, e ‘cálculos estatísticos’ que respaldam
a atividade econômica de adivinhação charlatã (previsões econômicas), são
habilmente utilizadas para ‘explicar’ e naturalizar a aceitação das leis de Mercado
como se fez com as ‘fervorosas’ e ‘libertadoras’ ‘leis de Moisés’ (Ost). Assim é que
tal mitificação de números econômicos - que só fazem legitimar os fetiches ilusórios
retratados nas máximas ‘humor do Mercado’, ‘seleção de Mercado’, ‘reação do
Mercado’ - não passam de racionalidade vazia ou tautologias (Maris).
9 – As universidades também são alvo deste levante. O ensino
jurídico, não muito diferente do ensino de outras áreas do saber, continua, na feliz
expressão de Freire, submetido a um ‘regime bancário’, resumindo-se, salvo raras
exceções, a transmitir habilidades estéreis e deixando em segundo plano (ou plano
algum) o pensamento crítico. O ‘Monastério dos Sábios’ (Warat) ainda dita a
interpretação exclusiva para o universo jurídico, o que se testemunha com a
enxurrada de manuais a-críticos que se reproduzem a granel, e que se tornam
matéria prima de primeira classe para os acadêmicos de graduação (e até de
mesmo pós-graduação em alguns casos). E com o tema ‘eficiência administrativa’ a
situação não é diferente. Também no âmbito do Direito Administrativo, disseminam-
se os manuais que prestam culto à ‘ação eficiente’, sem saberem (ou sabem?) ou se
darem conta do câmbio epistemológico (Coutinho) que subjaz na já mencionada
reforma administrativa da Emenda Constitucional n. 19/98. Os aplausos, para nossa
surpresa, são cada vez mais efusivos e entusiasmados.
10 – Há uma naturalidade (Marques Neto) e banalidade (Arendt) de
tudo que ocorre ao redor, e que reflete um ambiente de majoritária alienação social
(Castoriadis). A indiferença em relação a todos os problemas vividos, ao risco
permanente que se vive em sociedade (Beck), e em relação principalmente ao ser
humano - com freqüente desprezo pela vida (Dussel) -, é simplesmente
surpreendente. Como bem afirmou Coutinho, nesta nova lógica o que importa é
271 É bem como descreve Bauman: “As iscas que os levam a desviar a atenção precisam confirmar a suspeita prometendo uma saída para a insatisfação: “Você acha que já viu tudo? Você ainda não viu nada!” . BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 91-92.
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‘gozar’, e dane-se o Outro. A toda evidência que também aqui a mídia exerce papel
decisivo. Com o excesso de informações quase sempre fragmentadas às
escâncaras, ocultam o ‘real’ e projetam, introjetam no sujeito uma realidade
fetichizada e sempre de conveniência (Bourdieu): ora aguçam o medo e o terror com
o telejornalismo de fachada, ora ‘docilizam’ o telespectador com entretenimento
novelístico, ora apelam aos ‘instintos’ sexuais e agressivos dos adolescentes..., e no
intervalo comercial (a melhor parte, é claro), sempre assediam o sujeito - sua
excelência ‘o Consumidor’ - com o bombardeio subliminar (Key) dos recursos
propagandísticos. O mote é conhecido: ‘faturar, é preciso!’. Sempre.
Tomando-se consciência (inconsciência) de toda esta situação, e
considerando o estigma arraigado em sociedade de que não se teria outra opção –
com a crença generalizada de que todos estariam fadados a rederem-se a este
‘Mercado salvador’-, depara-se com o desafio de assumir-se uma nova postura: a da
‘ação de resistência’. Desafio porque a tarefa não é das mais fáceis, e exige o
esforço próprio de quem procura enxergar o diferente, o impossível272; de quem
ousa sonhar com possibilidades de mudança. E existem alguns caminhos já
apontados por quem há muito tempo resiste, e não se resigna com tudo o que foi
visto273. A alternativa é, pois, constitucional. E neste sentido, Streck propõe:
Por isto a necessária resistência constitucional que se impõe. O Constitucionalismo não morreu. Afinal, para que serve o Direito? Somos juristas para quê? Proponho, assim, o que Garcia Herrera magnificamente conceitua como ‘resistência constitucional’, entendida como o processo de identificação e detecção do conflito entre princípios constitucionais e a inspiração neoliberal que promove a implantação de novos valores que entram em contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, programação frente à competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direção pública frente a procedimentos pluralistas. O novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade alcançável com a integração das novas necessidades e a
272 Hinkelammert explica que a condição do possível e do impossível é uma condição eminentemente humana e que precisamos pensar o impossível para ultrapassarmos o marco do possível. HINKELAMMERT, Crítica à Razão Utópica, op.cit., p. 256. 273 Me refiro a Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Alexandre Morais da Rosa, Sérgio Cademartori, Lenio Luis Steck, Luis Alberto Warat, Paulo Bonavides, Agostinho Ramalho Marques Neto, Edmundo Lima de Arruda Junior, entre tantos outros.
200
resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação constitucionais. 274
Nesta senda o garantismo jurídico oferece uma excelente proposta
teórica que além de superar a teoria jurídica tradicional-positivista, resitua a
Constituição como referencial interpretativo em função dos Direitos Fundamentais, e
isto já se viu com Ferrajoli e com Cademartori275. No garantismo jurídico, por se
realizar uma releitura das categorias tradicionais da norma como ‘vigência’,
‘validade’ e ‘eficácia’, propõe-se uma nova forma de democracia, o que se poderia
denominar de democracia substancial ou material. Neste aspecto, ‘norma válida’ não
é somente uma norma que tenha se submetido aos trâmites legislativos formais - ou
seja, norma positivada. Norma válida é aquela que atende aos referenciais
constitucionais basilares diretamente ligados ao rol de Direitos Fundamentais. E
estes, para esta nova proposta, constituem um núcleo mínimo inviolável, o núcleo do
indecidível, que não poderá ser mitigado ou vilipendiado por maiorias eventuais
(nem unanimidade). A Constituição e seu núcleo de garantias fundamentais
vinculam todo o ordenamento jurídico. Assim, lei ou decisão judicial para terem
validade ‘constitucional’ devem coadunar-se e estarem voltadas para a máxima
garantia e efetivação dos Direitos Fundamentais.
Por isso é que, em tempos neoliberais como os nossos - de
freqüentes práticas neo-absolutistas e anti-garantistas276 -, o modelo de Ferrajoli se
apresenta como relevante instrumental de contenção a ser manejado e utilizado
dentro do próprio complexo normativo vigente. Como bem anota Coutinho, para
resistir, não se precisa e nem se deseja descartar a dogmática jurídica. O que se
necessita é de uma dogmática crítica que esteja descomprometida com os erros do
passado e que esteja voltada para a maximização e efetivação dos Direitos
Fundamentais277. Por conta disso é que, segundo este autor, o avanço democrático
do Direito imprescinde de ‘sotaque constitucional’:
274 STRECK, Lenio Luiz. Constituição ou Barbárie? A Lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito. A Resistência constitucional como compromisso ético. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001/2002). Rio de Janeiro, 2002. p. 208-209. 275 Sérgio Cademartori. 276 CADEMARTORI, Estado de Direito e Legitimidade, op. cit., p. 73. 277 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs). Diálogos Constitucionais:
201
Encastelados em um saber marcado pelo senso comum teórico, na feliz expressão de Warat, impressiona a imensa dificuldade de se romper com o erro. Falta, como parece sintomático, humildade. Sabe-se sobre o erro, não raro grosseiro, mas se persiste nele sem razão, por pura força do inconsciente, numa luta que pelo sintoma faz-se ver como interna, mas que se projeta para fora, sustentando – e às vezes eternizando – o sofrimento. [...]. A dogmática, então precisa ser crítica (do grego Kritiké, na mesma linha de Kritérion e Krisis), para não se aceitar a regra, transformada em objeto, como uma realidade. Isso só é possível, por evidente, porque se tem presente que o real é impossível quando em jogo a sua apreensão e, com muito custo, à parcialidade que se chega depende, no seu grau (embora difícil mensurar o quantum), de muitos saberes que não aquele jurídico. O avanço democrático do Direito reclama um sotaque constitucional e, mais uma vez, a dogmática crítica pede o seu lugar. Transformar, no caso, é se ter um parâmetro, porque a insegurança de que se tem tanto medo é, sobretudo, a falta dele. Eis a razão porque se faz mister arriscar um passo adiante, compatibilizando o que pode ser compatibilizado.278
No entanto, diante das várias possibilidades discursivas
proporcionadas pela linguagem279, e que ainda poderiam manietar uma teoria do
Direito como a teoria do garantismo jurídico por conveniência, torna-se de vital
importância, como acertadamente propôs Rosa, fundamentar tal teoria com o
conteúdo ético-material dusseliano, que possui como premissa a realização da vida,
sua produção, reprodução e desenvolvimento.280 Isto é, toda a vinculação
constitucional do ordenamento jurídico a ser produzido, ou a ser interpretado, terá
como diretriz material/substancial a busca pela concretização da dignidade da
pessoa humana e da preservação digna da vida humana. Com essa proposta, todo
e qualquer ato legislativo ou judicial que atente ou que deixe de preservar e garantir
o desenvolvimento da vida se torna inconstitucional e, por conseqüência, inválido.
E o Poder Judiciário, neste sentido, assume novo papel, nova
missão, muito diferente daquela idealizada pelos positivistas clássicos: deixa de ser
mera instância de checks and balances (Werneck Vianna) para se assumir como um
Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 225. 278 COUTINHO, Dogmática crítica e limites lingüísticos, op. cit., p. 225, 226 e 231. 279 Pois, como observa Coutinho, “não é preciso saber muito sobre ‘viragem lingüística’ para se ter presente que a palavra não segura nada (não permitindo ‘o’ sentido, mas tão só ‘um’ sentido entre tantos possíveis; tampouco ‘a’ verdade – Toda! – sempre demais para um humano), justo porque desliza em giros produzidos pelas freudianas condensações e deslocamentos (ou metáforas e metonímias, como queria Lacan), motivo bastante para ser levada mais a sério no Direito, o que, de fato, não ocorre.” COUTINHO, O devido processo legal (penal) e o poder judiciário, op. cit., p. 293. 280 ROSA, A vida como critério dos direitos fundamentais, op. cit., p. 13-54.
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verdadeiro e independente Poder da República. Uma democracia substancial e que
funcione pautada por uma Constituição dirigente (Canotilho) e garantista (Ferrajoli),
somente existirá com um Judiciário que assuma uma postura substancialista, e que
refute o procedimentalismo constitucional europeizante (Habermas-Garapon)
absolutamente anacrônico e incompatível, como visto, para uma realidade como a
do Brasil.
No substancialismo, fortemente influenciado, como se pôde perceber,
pelo eixo Cappelletti-Dworkin, - e que no Brasil encontra adesão em autores como
Coutinho, Rosa, Streck, Bonavides, Comparato, Grau, Werneck Vianna, entre outros
(cada qual ao seu modo) -, o Judiciário passa a ser instrumento de transformação
social, no sentido de concretização do Estado Democrático de Direito e de
efetivação dos Direitos Fundamentais. E é exatamente disso que o Brasil precisa.
Como lamentavelmente não se pode esperar pela quebra da insistente inércia do
Executivo e do Legislativo – afinal de contas, como se viu, existem milhões de
vítimas que gritam ‘tenho fome, exijo justiça!’ (Dussel) -, o Judiciário, sem constituir a
panacéia de todos os males que afligem a nação (Rosa), é quem oferece, neste
momento, talvez a única (metafísica da) esperança (Warat) de alcance de dias
melhores.
Evidentemente, que se gostaria neste escrito de defender um
procedimentalismo à moda alemã (Habermas), que estabelece como centro
republicano o poder legislativo e todo o seu conjunto de procedimentos
democráticos. Mas infelizmente, por todas as razões já discutidas neste texto,
reconhece-se que inexiste na realidade latino-americana uma ‘comunidade ideal de
comunicação’ (Habermas), pautada numa universalidade que teria como premissas
a sinceridade e o parâmetro equilibrado de comunicação. Com fome, miséria,
analfabetismo em números estapafúrdios, falta de dignidade, - e isto já se vê com
Coutinho e com Wolkmer281 -, inexiste ‘comunidade ideal’; inexiste equilíbrio no
mútuo entendimento e compreensão; enfim, inexiste democracia. A prioridade,
281 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
203
desse modo, não pode ser uma ‘ética discursiva’ (Habermas) e sim uma ‘ética da
vida’ (Dussel).282
Não menos importante é reconhecer, também, que nesta postura
substancialista se supera toda a crença dogmatista de ‘neutralidade ideológica’ de
quem confere a interpretação jurídica final: o Juiz. Esse verdadeiro dogma,
juntamente com o da ‘objetividade’ jurídica, como se sabe, são heranças da ‘pureza’
positivista (Kelsen) - de influência kantiana - que pretendeu dar estatuto de
cientificidade ao Direito. Não passam de uma fantasia, de uma fé que por muito
tempo permeou (e ainda permeia) o imaginário dos juristas. As decisões judiciais
sempre têm motivações ideológicas283 porque o intérprete, no caso, o magistrado,
de modo algum encarna o mítico Juiz-Hércules sobrenatural, sobrehumano, único
capaz de, com seus ‘poderes’, dar uma ‘única resposta correta’ (Dworkin). Ele é,
precisa-se reconhecer, de ‘carne e osso’ e, quando sentencia - como a própria
expressão sugere, ‘sentire’, ‘sente’, ‘(pre)sente’ - decide a partir de suas
convicções284, pré-juízos, pré-conceitos, valores, de sua experiência vivencial
(Gadamer). É ele quem atribui o sentido à norma, produzindo seu próprio sentido285
– ou, pode é claro, abrir mão desta faculdade, e lançar-se no conforto preguiçoso da
reprodução do sentido de outros intérpretes seguindo, como ‘bom e eficiente
funcionário’, a ‘remansosa jurisprudência’ da instância superior286.
282 Com Coutinho: “Por falta de tempo, não tenho condições de avançar uma análise mais profunda da estrutura idealizada por Habermas-Apel. Quero, não obstante, deixar claro que comungo da análise de Wolkmer no sentido de que, ‘de fato a proposta da ética discursiva parte de uma visão de sociedade quase perfeita constituída por homens competentes, livres conscientes e maduros, prevalecendo sempre a lógica do melhor argumento possível. Em outros termos, dir-se-ia que tal desiderato parte das premissas básicas de que haja uma condição pública dada ‘a priori’ (comunidade de comunicação ideal), que todos os agentes participem por livre consenso e que todos os sujeitos integrantes do jogo argumentativo sejam iguais. Diante disso, verificam-se reais dificuldades para situar e utilizar a ética discursiva universal nas condições das comunidades sócio-políticas do capitalismo periférico, cujo cenário é composto por sujeitos alienados, espoliados e desiguais.” COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 55. 283 PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. 284 Nepocemo aduz: “Assim, o julgador partirá dessas convicções pessoais para caso concreto, manipulando, conscientemente ou não, o material normativo e dogmático para então concretizar o que em sua mente é justo para a sociedade, para sua família ou, então, para si mesmo”. NEPOMOCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Renavan, 2004. p. 63. 285 Castoriadis afirma: “Es esta misma vida la que nos permite compreender en un momento dado que estas significaciones no tienen fuente ‘absoluta’, que su fuente es nuestra propria actividad creadora de sentido”. CASTORIADIS, Una Sociedad a la deriva, op. cit., p. 291. 286 Carlin assevera: “A ignorância de certos profissionais em matéria jurídica é estupeficante e sua vontade de não recorrer aos livros [...]. O precedente jurisprudencial torna-se, em realidade, uma
204
Inexiste, e quanto a isso já alertava Azevedo, ‘lugar neutro’. E se este
lugar existe, por certo ‘não é humano’287. Claro que não é humano. Este lugar, e isto
foi muito bem trabalhado durante séculos, é o lugar do ‘sagrado’, do ‘secreto’
(Legendre/Warat). Para se legitimar o Direito como instrumento de dominação
social288 e de condução ‘bondosa’ das ‘ovelhas do Senhor’, os canônicos sempre
deslocaram para este lugar a ‘Grundnorm’ do jurídico-perfeito (Ost). Se a sentença e
o Juiz não são neutros, muito menos ainda o discurso o será289. Mas o passar do
tempo, especialmente no período pós-positivista, mostrou a insuficiência destes
dogmas. Portanova explica:
Uma visão crítica desacolhe o mito da neutralidade. [...] ‘neutralidade ética é deslavadíssima mentira confeccionada pelo mais frio maquiavelismo político. É tempo de condenar, em todos os círculos da cultura mundial, a tese miserável que exclui da órbita científica os imperativos morais’. [...] A ciência não é neutra. Em todas as ciências existem interferências ideológicas. [...] Também na idéia de justiça não há neutralidade. [...]. Logo, a idéia de justiça é ideológica, pois traduz os interesses dos grupos detentores do poder e é utilizada para manutenção dessa relação de poder. Existe uma idéia de justiça que está a serviço da contestação, dos oprimidos, dos dominados. Uma justiça a serviço da conservação. O Direito não é neutro. [...] o Direito é parcial, pois traduz vontade política e encerra determinada dimensão valorativa. [...] Em verdade, a lei e o Direito estão a serviço da ordem capitalista, que necessita, para garantir segurança das expectativas, o cálculo econômico e o jogo do mercado, mediante o reconhecimento, a definição e a regulação da propriedade privada, da livre disposição contratual, dos direitos adquiridos e do princípio pacta sunt servanda.[...] O juiz não é neutro. A idéia de neutralidade judicial está a merecer discussão mais explícita, pois, pouco a pouco, criou-se o sentimento difuso de que os juízes são funcionários especiais do Estado, e não membros do seu poder político. [...]. O juiz que não tem valores e diz que o seu julgamento é neutro, na verdade, está assumindo valores de conservação. O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores. O juiz tem que ter a sinceridade de reconhecer a impossibilidade de sentença neutra.290
O reconhecimento por parte do magistrado das limitações de seu
‘consciente’, e do ‘inconsciente’ que sempre atravessa suas convicções é
verdadeira regra de direito.” CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia Jurídica: Ética e Justiça. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996. p. 61. 287 AZEVEDO, Direito, Justiça Social, e Neoliberalismo, op. cit., 49. 288 Rosa afirma que “existe sempre alguém que ‘mexe as cordinhas’, e quanto menos ele aparece, quanto menos se sabe dele, melhor é a dominação”. ROSA, Decisão Penal, op. cit., p. 299. 289 Orlandi expressa: “[…] não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia”. ORLANDI, A linguagem e seu funcionamento, op. cit., p. 13. 290 PORTANOVA, Motivações ideológicas da sentença, op. cit., p. 63-73.
205
imprescindível291; pois não se precisa de juízes ‘justiceiros’ (Rosa)292, ‘bondosos’
(Marques Neto), nem ‘dentes de engrenagem’ (Arendt). Precisa-se de magistrados
engajados ideologicamente293 que estejam cada vez mais comprometidos com a
concretização do Estado Democrático de Direito. Poder Judiciário forte, se constrói
com juízes independentes, democráticos, preparados, que usam da força de sua
caneta (Rosa)294 para fazer valer o plus social (Streck) da Constituição da República,
e não para fazer ecoar a renitente ‘Voz do Dono’ a que se referia Maris.
Como visto, há de se superar o modus hermenêutico tradicional,
ainda essencialista, objetivista, normativista, que acredita alcançar e reproduzir a
‘vontade do legislador’ ou o ‘espírito da lei’ como um sentido fundante, exclusivo,
primevo (Streck). Não se pode mais crer no paradigma da Filosofia da Consciência
que estabelece, na relação sujeito-objeto, que o intérprete tenha a capacidade
291 Com Coutinho: “Quando neutralidade e imparcialidade, como meros argumentos retóricos, viraram ‘histórias da carochinha’, similar a Papai Noel v.g., para qualquer estudante de direito de primeiro ano da Faculdade, por reconhecimento expresso de uma infinidade de autores (de modo a dispensar citação), pouco há para sustentar os magistrados. E não estou falando dos seus discursos (aqui, sempre vai haver uma forma de fazer o Outro falar, porque a falta é ineliminável e as metáforas e metonímias prestam-se a isso), das suas ‘desculpas’, diria singelamente, mas deles mesmos. À coletividade interessa um juiz resolvido; e não aquele que se resolva judicando” COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 72. 292 Rosa explica que muitos magistrados sofrem do ‘Complexo de Nicolas Marschall’, fazendo referência ao seriado de TV denominado ‘Justiça Final’ e que tinha como protagonista principal um juiz de Direito que “era um honrado e respeitável magistrado durante o dia, cumprindo as leis em vigor, os prazos processuais, os direitos dos acusados e, no entanto, no período da noite, longe do Tribunal, com roupas populares, cabelos soltos – já que os tinha compridos -, decidia fazer justiça. [...] Acreditava que a Justiça ordinária era incapaz de ‘dar a devida resposta aos criminosos’ e, então, por suas mãos, enfim, aplicava a (sua boa) justiça.” E explica que, diante da impotência dos mecanismos de controle existentes, “surgem os juízes justiceiros, inspirados no herói Nicolas Marschall. Cuida-se, no fundo, do ‘Complexo Nicolas Marschall’. Esse complexo atua na maioria dos casos de forma inconsciente na busca legítima de se cumprir o papel jurisdicional. Acaba se instalando na prática jurídica nos espaços de discricionariedades (ilegítimos) abertos na legislação, tão bem criticados por Ferrajoli (Direito e Razão), os quais deixam para ‘bondade’ do órgão julgador a aplicação da lei.” ROSA, Alexandre Morais da. Rumo à Praia dos Juizados Especiais Criminais: Sem Garantias, Nem Pudor. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 66-67. Conferir também: ROSA, Alexandre Morais da. O Juiz e o Complexo de Nicolas Marschall. Disponível em: http:/www.ibccrim.org.br. Acesso em: 10 de Setembro de 2006. 293 Coutinho ressalta: “Já referi em outras ocasiões ser necessário um engajamento ideológico dos magistrados, o que não se deve confundir com política partidária. Para isso, seria preciso encontrar a nossa realidade, mas a única base viável para uma leitura comprometida com ela parece ser aquela que tem por estribo as epistemologias críticas latino-americanas, que vêem o sujeito a partir de uma ética da alteridade, ou seja, atrelada à dignidade do ‘outro’, isto é, ‘uma ética antropológica da solidariedade que parte das necessidades dos segmentos humanos marginalizados e se propõe a gerar uma prática pedagógica libertadora, capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados, expropriados e excluídos.” COUTINHO, Jurisdição, Psicanálise, e o Mundo Neoliberal, op. cit., p. 75. 294 O autor explica: “Quando Georg Lukács foi preso, o policial perguntou se estava armado, tendo este lhe entregue calmamente a caneta. É preciso que as canetas pesem eticamente para dar um basta”. ROSA, Aplicando o ECA, op. cit., p. 28.
206
‘transcendental’ de ‘descrever’ com exclusividade o mundo que o rodeia. A relação,
como já se percebeu com Heidegger, passa a ser intersubjetiva, e a compreensão
não é mais produto final de aplicação de um método interpretativo, mas sim
abrange, desde sempre, todo o processo cognitivo na prática interpretativa
(Gadamer). As ‘palavras da lei’ não seguram o sentido como diz Coutinho, e precisa-
se, nesta senda, dar-se urgentemente conta disto295. Conscientizar-se de toda esta
situação constitui um passo importante para a mudança, e para o fortalecimento de
uma efetiva postura de resistência constitucional.
É preciso, como já apontou Coutinho, ter a humildade de ‘reconhecer
o erro’ e de não ter compromisso com ele. É imprescindível um maior ‘engajamento
ideológico’ não somente dos magistrados, mas de todos os operadores do Direito. E
para que isso ocorra é importante abandonar-se a ‘empáfia’, bem descrita por
Gauer296, para que se reconheça a insuficiência das majoritárias práticas do Direito
(muitas delas plasmadas em doutrinas europeizantes incompatíveis com a realidade
latino-americana297), que depõem contra a efetivação do Estado Democrático de
Direito e dos Direitos Fundamentais. A ‘ação eficiente’ que foi ‘grudada’ (Rosa) no
texto constitucional simboliza exatamente este retrocesso, esta dificuldade que se
tem em provocar as mudanças corretas para a concretização e efetivação do Social.
A cláusula de não retrocesso social foi frontalmente vilipendiada, mas, disso quase
não se fala.
O primeiro passo para resistir a este levante do ‘individualismo-
egoístico globalizado’, é reconhecer que se vive um paradoxo no discurso da
eficiência: fala-se em ‘eficiência’, quando muitos pensam falar em ‘efetividade’.
295 Coutinho afirma: “As palavras da lei, porém, não são desprovidas de um valor que já antes se aceitava, razão por que foram utilizadas – em detrimento de outras - , sempre na doce ilusão de terem a capacidade de segurar o sentido. Nada seguram, como demonstram os infindáveis exemplos.” COUTINHO, Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei, op. cit., p. 229. 296 Gauer anota: “A empáfia, ao contrário da humildade, tem sido, via de regra, a postura utilizada ao longo da história por todos aqueles pouco esclarecidos, desatualizados e por esse motivo inseguros, que falam sobre um ‘saber’ já há muito superado. [...]. No lugar de buscarem um saber que possibilitasse uma melhor compreensão do mundo em que viviam, cobriam-se da empáfia, esconderijo dos acomodados medíocres, e crentes de verdades inexistentes. A empáfia, signo do domínio do não-saber, estava gravada em forma menor e testemunhava toda a indignação com a perversidade que se fazia presente nas instituições do país.” GAUER, Ruth M. Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 114. 297 Conforme aponta Gilberto Bercovici. BERCOVICI, Gilberto. O Poder Constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise constituinte. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Orgs). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 217.
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Como se viu, definitivamente, tratam-se de coisas absolutamente distintas,
contraditórias, e que velam projetos diametralmente opostos. Quem defende a
eficiência, pugna por um Estado mitigado, mínimo, um Direito flexibilizado, e Direitos
fundamentais vistos a partir de seus custos. Quem defende a efetividade, e aqui nos
filiamos ao lado dos lúcidos autores que respaldam este escrito, luta por um Estado
que prioriza as políticas públicas voltadas para as ações sociais, e para a efetivação
dos Direitos Fundamentais.
Por óbvio que este texto não constitui um manifesto em defesa de um
Estado ‘ineficiente’ como se acostumou (popularizou-se) falar, no sentido de um
Estado desordenado, que não funcione, com funcionários despreparados e ociosos,
e que pratique o desperdício do dinheiro público. O que se almeja é desmitificar a
fábula da ‘ação eficiente’, e denunciar o projeto de desmonte estatal velado pela
Reforma Administrativa ocorrida em 1998. Precisa-se, e sinceramente espera-se que
isto já tenha ficado claro, é de um Estado absolutamente efetivo, austero, probo,
competente, e que concretize o Estado Democrático de Direito, e por conseqüência
lógica, os Direitos Fundamentais.
Só que para que isso ocorra, faz-se mister encarar de frente a
questão de que o Direito não existe como instrumental soberano e absoluto que está
acima dos modelos políticos e econômicos. O Direito deve ser considerado no
desolador contexto neoliberal em que se vive, especialmente no contexto do
neoliberalismo latino-americano, como bem frizou Gallardo298. Deve ser analisado
neste contexto de desmensurado consumo e exibição (Melman) que tomou conta de
nossa sociedade. São as relações de consumo que os neoliberais querem ver
preservadas pelo Direito. Estas mesmas relações que mantém os consumidores a
todo o tempo ‘em movimento’299 no embalo da perversa velocidade tecnológica,
298 Gallardo deixa claro que a América Latina é alvo de um neoliberalismo globalizado de conseqüências aterradoras, afirmando que é preciso assumir “correctamente el carácter básico de la globalización en América Latina al presentar-la como globalización neoliberal.” E ainda aduz: “para América Latina la forma actual de la ‘economia del conocimiento ha significado extranjerización de la propiedad e intensificación de la polarización social y, en este marco, la fuerza de trabajo se ha precarizado, informatizado, segmentado y fragmentado, feminizado falsamente, multiplicado la labor infantil, y reforzado la oposición campo/ciudad propagando en estas economías-sociedades una nueva sensibilidad de exclusión y empobrecimiento.” GALLARDO, Helio. Siglo XXI – Militar en la izquierda. San José: Editorial Arlequín, 2005. p. 309 e 322. 299 Bauman afirma: “Para os consumidores da sociedade de consumo, estar em movimento – procurar, buscar, não encontrar ou, mais precisamente, não encontrar ainda – não é sinônimo de mal-estar, mas promessa de bem-aventurança, talvez a própria bem-aventurança. Seu tipo de viagem
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televisiva e informática300. Os consumidores são permanentemente ‘movimentados’
para sempre desejarem infinitamente e consumirem até o limite (ou sem limites) de
suas capacidades. É a isto tudo que o neoliberalismo pretende fazer o Direito servir.
Conscientizar-se disso é condição sine qua non.
Mas a mudança começa efetivamente por nós mesmos. Tendo a
coragem de reconhecer nossas limitações301 e nossas tiranias302, abre-se a ‘clareira
de luz’ (Streck/Heidegger) que permitirá enxergarmos a saída. Esta saída existe e
sempre esteve ali, basta que seja iluminada para que a vislumbremos. Mas é
necessário coragem e ousadia para, tal qual Carnelutti, como bem mencionou
Coutinho303, dar-se um passo atrás e libertar-se dos grilhões do erro aceitando-se
esperançosa faz da chegada uma maldição. (Mariceu Blanchot notou que a resposta é o azar da pergunta; podemos dizer que a satisfação é o azar do desejo). Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de riqueza no sentido material, paupável, mas a excitação de uma sensação nova, ainda não experimentada – este é o jogo do consumidor. Os consumidores são primeiro e acima de tudo acumuladores de sensações; são colecionadores de coisas apenas num sentido secundário, e derivativo. Mark C. Taylor e Esa Saarinen resumem: ‘o desejo não deseja satisfação. Ao contrário, o desejo deseja o desejo. Pelo menos assim é o desejo de um consumidor ideal. [...]. Para aumentar sua capacidade de consumo, os consumidores não devem nunca ter descanso. Precisam ser mantidos acordados e em alerta sempre, continuamente expostos a novas tentações, num estado de excitação incessante – e também, com efeito, em estado de perpétua suspeita e pronta insatisfação”. BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 91. 300 Virilio explica: “Después de la primera bomba, la bomba atomica susceptible de desintegrar la materia por la energia de la radioactividade, surge en este fin de milenio el espectro de la segunda bomba, la bomba informática capaz de desintegrar la paz de las naciones por la interactividad de la información.” VIRILIO, La Bomba Informática. op. cit., p. 74. 301 Castoriadis afirma: “[...] hay un hecho que tendremos que digerir algún día: somos mortales.” 301 CASTORIADIS, Una Sociedade a la deriva, op. cit., p. 290. 302 Coutinho é quem explica: “Etienne de La Boétie tinha razão: obedecemos a vontade de um porque queremos ser que nem ele, ou seja, tiranos. Rei morto, rei posto: e viva o Rei! Bastaria, contudo, diz o próprio La Boétie, não dar o que ele quer para a casa vir abaixo, ou seja, não dar a ele nossa razão (que é só imagens) e nossa liberdade, isto é, nosso desejo de posse e poder.” COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Ensino do Direito na UFPR: Voto à Esperança. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Porto Alegre, n.36, pp. 137-145, 2001, p. 143. 303 Coutinho nos conta da passagem de Carnelutti que, após a leitura de Heidegger, muda de concepção: “O Carnelutti do final da vida, por evidente, não é o mesmo do começo da carreira. A descoberta da Filosofia – ou uma maior aprofundamento dela nos seus estudos -, aliada a um sempre maior sentimento religioso, trouxe-lhe uma riqueza peculiar ao discurso, agora comprometido com a interdisciplinariedade, a multidisciplinariedade ou, diria, quiçá mais propriamente, a transdiciplinariedade [...]. Seu exemplo é, por isto, singular. Com efeito, hoje, quando dogmas como o isolamento kelseniano do direito é coisa do passado, a neutralidade dos juristas é quase arqueologia jurídica e a sua imparcialidade só é imaginável com muito discurso que lhe dê conta, a situação de Carnelutti pareceria normal – sem embargo das eternas resistências dos mais desavisados (ou mal resolvidos?), em geral confortavelmente assentados em um saber que lhes garante uma ‘aparente’ segurança, embora falsa [...]. Operar um corte epistemológico (Bacherlard), então, representava romper com um passado de erros mas, sobretudo ter a coragem – e a humildade – de não se prostrar diante do famoso sono dogmático (Japiassu). A tarefa, de fato, não é fácil, porque implica leituras pesadas e cansativas, às vezes com a necessidade de derrubar bibliotecas. Nada disso, porém abala um homem honesto cientificamente, preocupado com o seu tempo e sua gente. Carnelutti nunca foi um acomodado; e sua obra é testemunho disto.” COUTINHO, Glosas ao ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, op. cit., 175-176.
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novos horizontes. Vive-se, talvez, lembrando da passagem de Kant, em um ‘sono
dogmático’ do qual é preciso acordar. Compreender que sobreviver não está na
necessária adesão a este modelo que aí está, e que cada vez mais mina a
democracia, corrói a solidariedade, encobre a alteridade, e macula a vida, é questão
de ordem. Resistir é preciso. Resistir para mudar.
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