UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS
«EN LAS SELVAS VIVE AMOR»:
RELAÇÕES SOCIAIS E HUMANAS
EM EL PASTOR DE FÍLIDA
DE LUIS GÁLVEZ DE MONTALVO
ANA FILIPA MORAIS SILVA SANTOS
MESTRADO EM ESTUDOS ROMÂNICOS
ESTUDOS HISPÂNICOS
2012
Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Literaturas Românicas
«EN LAS SELVAS VIVE AMOR»:
RELAÇÕES SOCIAIS E HUMANAS
EM EL PASTOR DE FÍLIDA DE LUIS GÁLVEZ DE MONTALVO
Ana Filipa Morais Silva Santos
Dissertação Orientada Por
Professora Doutora Cristina Almeida Ribeiro
Mestrado em Estudos Românicos Estudos Hispânicos
2012
ÍNDICE
Agradecimentos ............................................................................................................... 1
Resumo ............................................................................................................................ 3
Introdução ........................................................................................................................ 6
I. Fortunas de um «Giro Audaz»: Gálvez de Montalvo e a Novela Pastoril Espanhola . 8
A Arte de Contar: desde La Diana a El Pastor de Fílida .................................... 9
Universo Ficcional de El Pastor de Fílida ........................................................ 13
Montalvo e a Arcadia de Sannazaro: uma Novidade Antiga ............................ 18
II. Quanto vai de «Zagal» a «Rabadán»: Alicerces de uma Sociedade Pastoril ............ 21
Ensaios de uma Hierarquia Pastoril ................................................................... 24
Uma Sociedade de Sociedades .......................................................................... 31
III. «Debajo del Sayal hay Al»: As Relações Familiares .............................................. 40
Família e Sociedade ........................................................................................... 43
IV. O Logro de Horácio: Aspectos do Binómio Aldeia/Corte ...................................... 51
Instabilidade de Charneiras ............................................................................... 55
Aldeia/Corte: de Binómio a Monómio? ............................................................ 58
V. Na «Fuente de los Alisos»: As Relações Humanas .................................................. 69
Amor e Amizade ................................................................................................ 72
A Enganosa Harmonia do Amor ....................................................................... 81
Conclusões ..................................................................................................................... 89
Bibliografia .................................................................................................................... 91
1
AGRADECIMENTOS
Ao contrário do que é habitual em trabalhos desta índole, a presente dissertação
nasceu, como ideia, numa data situável: 20 de Julho de 2011. Todavia, não só a partir de
então comecei a contrair algumas dívidas de que infinitamente me orgulho: algumas são
tão vetustas, que se vão confundindo com os trabalhos para os quais confluíram,
arriscando-se a passar sem um agradecimento mais explícito. Procurarei começar a
compensá-lo modestamente nestas linhas.
Não será excessivo dizer que à professora Dra. Cristina Almeida Ribeiro devo
praticamente tudo na concretização deste trabalho: à sua dedicação irretribuível devo,
desde o início, um entusiasmo que nunca antes me caracterizara; à sua crítica atenta
devo a seriedade que procurei manter ao longo das minhas reflexões; às suas sugestões
generosas devo incontáveis acertos, sem os quais este trabalho seria outro; à sua
surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata e a chave-de-
ouro deste estudo: respectivamente, o tema e o título. Entre um e outro, jazem os meus
erros e os seus conselhos avisados.
Agradeço aos professores Drs. Vanda Anastácio e Ernesto Rodrigues, cujas
aulas representaram o meu primeiro contacto sério com a literatura da Renascença, que,
desde o Secundário, me tem proporcionado as minhas mais genuínas alegrias.
Às professoras Dras. Ângela Fernandes e Fátima Freitas Morna devo não menos
do que a minha predilecção pela literatura espanhola, que intensamente me acompanha
há quatro anos.
2
Agradeço também à professora Dra. Maria João Almeida, que guiou as minhas
primeiras incursões na literatura italiana – uma paixão nascente que neste trabalho
timidamente se começa a fazer sentir.
Não poderia deixar de exprimir o meu reconhecimento à professora Dra. Teresa
Amado, que, nos primeiros meses da minha Licenciatura, procurou incutir em mim
alguns valores fundamentais que transcendem (e integram) qualquer área de estudos: a
honestidade, a prudência e a modéstia. Espero não os ter traído demasiado.
Gostaria igualmente de deixar um sinal de profunda gratidão a uma pessoa que,
entretanto, perdi: a minha professora Ana Puga, do Secundário. Sem o seu exemplo
intelectual, sem a sua ternura e paciência indefectíveis, eu jamais me haveria
determinado a traçar o meu próprio rumo. Ainda há um não sei quê de seu em certas
ideias literárias que cultivo.
À diligência e amabilidade do Serviço de Empréstimo Interbibliotecas da FLUL
devo a leitura atempada de várias obras imprescindíveis, sem o conhecimento das quais
este trabalho se revelaria francamente mais pobre.
Ao João P. tenho muito a agradecer, por dez anos de amizade e pelo seu elegante
e lúcido rancor em relação aos clássicos, que, por ironia, me leva a procurar
continuamente motivos novos para os amar – e a encontrá-los.
Aos meus amigos cientistas, à Ana, ao André, à Catarina, ao Luís – o que direi?
Muito obrigada pela confiança risonha com que encararam, desde os primórdios, as
minhas insensatezes livrescas!…
À minha família (com a habitual promessa de que, nalgum dia futuro, deixarei os
descuidos da frauta pela austeridade da tuba) agradeço sobretudo a paciência com que
sofreu e compreendeu uma necessidade de isolamento excessiva até em mim.
Às várias turmas que me acompanharam nos Seminários de Mestrado, com
quem partilhei ideias e riscos, adversidades e entusiasmos: muito obrigada pelo alento!
3
RESUMO
Fruto de uma engenhosa assimilação de tradições, a novela pastoril de Luis
Gálvez de Montalvo veicula, de forma discreta mas irrefutavelmente sugestiva,
princípios que permitirão, não apenas alargar o espectro de possibilidades estéticas de
um género particularmente codificado e reiterativo, mas ainda (e sobretudo) brindar as
décadas subsequentes com uma fórmula pastoril algo mais maleável e tão adequada às
suas circunstâncias como a trilogia das Dianas o fora em relação à época que a viu
nascer. Para além de propor um confronto selectivo com uma secular herança literária,
El Pastor de Fílida explora ainda as potencialidades alusivas da matéria pastoril,
impondo-se como retrato (ou auto-retrato) da sociedade cortesã de quinhentos, algo
idealizado, de resto, como o são todos os retratos em tempos optimistas.
O estudo que se segue procurará oferecer uma reflexão acerca do hibridismo
polifacetado que acabamos de frisar, bem como das suas implicações num contexto
poético e ideológico que simultaneamente se assume e se fragiliza. Em última instância,
observar-se-á o modo como a proposta aventada por Gálvez de Montalvo, em perfeita
sintonia com os valores socio-culturais datáveis a que se subordina, marca uma decisiva
inflexão na novela pastoril espanhola dos Siglos de Oro, reservando para si, contudo, o
privilégio de uma indizível ironia de universalidade.
PALAVRAS-CHAVE
El Pastor de Fílida
Luis Gálvez de Montalvo
Novela Pastoril
Novela en clave
Siglos de Oro
4
RESUMEN
Fruto de ingeniosa asimilación de tradiciones, la novela de Luis Gálvez de
Montalvo vehicula, de forma sutil aunque indudablemente sugestiva, principios que
permitirán diversificar las características estéticas de un género literario tan codificado y
reiterativo como es la novela pastoril, además de legar a la posteridad una fórmula
pastoril algo más maleable y tan apropiada a sus circunstancias como lo había sido la
trilogía de las Dianas respecto a su época. Confrontando una herencia literaria secular,
El Pastor de Fílida explora aun las potencialidades alusivas de la temática pastoril,
destacándose como retrato (o autoretrato) idealizado de la sociedad cortesana del siglo
XVI.
En la presente disertación intentamos reflexionar sobre este multifacetado
hibridismo y sus implicaciones en un contexto poético e ideológico que a la vez se
asume y fragiliza. Al fin observaremos como la propuesta de Gálvez de Montalvo, en
perfecta sintonía con los valores socioculturales de su tiempo, marca el inicio de un
nuevo rumbo a la novela pastoril de los Siglos de Oro, reservándose el privilegio de una
indecible ironía de universalidad.
PALABRAS-CLAVE
El Pastor de Fílida
Luis Gálvez de Montalvo
Novela Pastoril
Novela en Clave
Siglos de Oro
5
À cidade de Toledo,
la más felice tierra de la España
e pátria do meu coração.
6
INTRODUÇÃO
Com a desafiante elegância de uma sombra, o nome de Luis Gálvez de Montalvo
atravessa, velozmente, as páginas de alguns volumes de História da Literatura
Espanhola. Por vezes, a pena do agudo crítico cede às insinuações dessa sombra,
traçando linhas de uma insuspeitada sugestividade, que, todavia, pouco mais deixam ao
leitor do que uma curiosidade já sedutora, já olvidada, semelhante a tantas outras
curiosidades que vai entesourando, provando as agruras de uma condição que o obriga a
fazer escolhas.
À exiguidade das propostas de leitura alia-se a míngua de edições da única obra
de fôlego do autor que sobreviveu ao curso dos séculos: a novela pastoril intitulada El
Pastor de Fílida. O género literário em que este texto se insere e que tanto dignificou
tão-pouco constitui um convite persuasivo à sua leitura, dado o escasso interesse que,
até ao dealbar do século XX, despertou entre leitores mais ou menos informados. Desde
que Menéndez Pelayo incluiu, nas suas ambiciosas Orígenes de la Novela, um capítulo
dedicado à Novela Pastoril, é certo que este género tem sido alvo de leituras cada vez
mais atentas, mais exigentes e mais optimistas. Porém, El Pastor de Fílida, presente já
nessa primeira análise global, não constitui um objecto privilegiado dos estudos
literários que se lhe seguiram, ao contrário do que fariam prever os significativos
encómios que, desde então, lhe tem tributado a crítica. De um modo geral, a obra de
Gálvez de Montalvo é mencionada ou até sumariamente discutida em trabalhos mais
amplos, dedicados à evolução da Novela Pastoril enquanto género ou à expressão
transversal de determinado tópico. As interessantes observações que, nesses trabalhos
onde ocupa um mero lugar secundário, amiúde suscita impõem a urgência de estudar El
Pastor de Fílida autonomamente, numa tentativa de abranger, de forma (quanto
possível) metódica e detida, as muitas singularidades que o distinguem. Alguns esforços
têm sido reunidos nesse sentido, respondendo a uma dupla necessidade: a de desvendar
7
o segredo biográfico que o texto, acaso, encerra, e a de compreender a sua articulação
com o género e o imaginário cujas heranças claramente reivindica.
A decisão de examinar a originalidade desta obra a partir da problemática das
relações sociais e humanas, para as quais conflui todo o universo ficcional nele
arquitectado, brotou naturalmente da leitura de uma recente tese de Doutoramento,
acompanhada pela edição do texto, da autoria de Miguel Ángel Martínez San Juan
(2003), trabalho que redundou na mais actual edição crítica do Pastor de Fílida (2006).
A cuidada análise comparativa a que o autor procede, salientando as afinidades entre
esta novela pastoril e os postulados de alguns tratados filográficos de grande fortuna no
século XVI, é já sintomática da sua natureza híbrida. Na modesta proposta de leitura
que seguidamente apresentamos, pretendemos aprofundar um pouco mais essas
fecundas irregularidades. Adoptando, por vezes, um raciocínio comparativo, a
perspectiva que manteremos será predominantemente literária, sem prejuízo dos
eventuais cruzamentos que a interpretação de uma novela en clave sempre requer.
Possam as linhas que se seguem tornar mais nítida – já que não fixar – a sombra
desse gran, gran ignorado.
8
CAPÍTULO I
FORTUNAS DE UM «GIRO AUDAZ»
Gálvez de Montalvo e a Novela Pastoril Espanhola
Alguns autores estimam que El Pastor de Fílida se encontraria já concluído ou
em curso no final da década de sessenta do século XVI, muito antes da sua publicação,
em 15821, o que cronologicamente a aproximaria do ciclo fundador das Dianas, a
última das quais, a Diana enamorada, da autoria de Gaspar Gil Polo, data de 15642.
Este facto torna mais surpreendente a manifesta distância que aparta as concepções
novelescas implícitas no texto de Montalvo daquelas que haviam orientado
Montemayor e, em parte, os seus continuadores, Alonso Pérez e Gil Polo.
É justamente deste distanciamento em relação aos exemplares anteriores do
género que se ocuparão as linhas subsequentes, visando um duplo propósito: por um
lado, oferecer um modesto contributo para uma reflexão ainda por realizar (pelo menos
com a profundidade necessária) sobre o lugar do Pastor de Fílida na novela pastoril
espanhola do período áureo; por outro, tentar um primeiro acercamento ao texto,
recorrendo a obras mais divulgadas e discutidas, procurando, contudo, evitar defini-lo
pela negativa, recurso fácil mas sempre pouco satisfatório.
1 López Estrada conjectura que a escrita da novela estaria em curso em 1568 (cf. 2001: pp.160-161); Fucilla dá-a por concluída no ano de 1569 (cf. 1942: p.35). Arribas aventa uma data mais tardia, 1580 ou 1581, que corresponderia à composição posterior do «Canto de Erión» (cf. 2004: p.282). 2 Excluímos destas considerações a Diana Tercera (1627), de Jerónimo Tejeda, pelo seu valor e legitimidade duvidosos (cf. Avalle-Arce, 1975: pp.128-135), bem como a Primera parte de la Clara Diana a lo divino (1599), de Bartolomé Ponce, que, enquanto glosa a lo divino, cumpre propósitos substancialmente distintos.
9
Dividiremos estas observações iniciais em dois momentos, ocupando-nos, no
primeiro, de algumas características de ordem mais formal, e, no segundo, das distintas
concepções do universo pastoril propostas pelos textos.
A Arte de Contar: desde La Diana a El Pastor de Fílida
Um dos aspectos que singularizam, dentro do vasto caudal das novelas pastoris,
La Diana, de Jorge de Montemayor, é a confluência habilmente lograda de enredos
novelescos, cuja variedade, para além de seduzir o ávido e heterogéneo público de
quinhentos, interessa ao estudioso hodierno por delatar heranças literárias diversas, de
grande fortuna na época do cortesão português (cf. Chevalier, 1974: p.46).
La Diana constitui não somente um cancioneiro dotado de especial dinamismo3,
mas ainda um amplo repertório novelesco. A natureza algo dispersiva desta
acumulação, para além de apagar os percursos de Diana e Sireno (hipotéticos
protagonistas), caracteriza-se pela autonomia de cada novela interpolada: até ao
encontro no palácio encantado de Felicia (livro quarto), as histórias de Sireno, Silvano,
Selvagia, Felismena e Belisa são independentes e, com excepção dos três primeiros
casos, tornam a sê-lo nos livros seguintes, quando cada personagem segue o seu rumo
próprio4. Trata-se de uma novidade em relação ao modelo da novela bizantina, cuja
diversidade de fios narrativos resulta da ramificação de um núcleo central que torna a
reatar-se no desfecho5. Assim, «no ha[y] personajes de segunda fila, sino que todos
apare[cen] en primer plano, como las figuras de los tapices» (Moreno Báez, 1955:
3 «La pastoril, por la naturaleza de su contenido, se prestaba como estructura idónea para difundir poemas y de ello se supieron aprovechar muchos autores […], haciendo de estas obras pequeños cancioneros» (Castillo Martínez, 2008). El Prado de Valencia (1600), de Gaspar Mercader, e La Cintia de Aranjuez (1629), de Gabriel de Corral, constituirão os mais acabados e auto-conscientes exemplares do que poderíamos designar como “novela-cancioneiro”. 4 A simetria da estrutura novelesca da Diana tem sido amiúde assinalada pela crítica (cf. Solé-Leris, 1980: p.34). 5 Não secundamos, pois, a afirmação de López Estrada: «hay en la Diana un desarrollo semejante [refere-se às Etiópicas, de Heliodoro] del argumento, y en el cruce de historias en un punto, que luego divergen en varios sentidos, corren paralelas a veces, y vuelven a encontrarse para buscar la solución» (1970: p.LXXXII). Sucede que, como vimos, existe um só momento em que estas narrativas convergem: o livro quarto.
10
p.XX); ora, carecendo a novela de «personajes de segunda fila», carece também de uma
distinção entre acção principal e acção secundária.
Ao recuperar, na Diana enamorada, figuras secundariamente mencionadas na
primeira Diana e ao conceder-lhes um destino próprio, Gil Polo estreita um tanto os
laços entre as “novelas” soltas, reunindo os “fios” que faltavam e aproximando-se mais,
portanto, do modelo bizantino (recorde-se o episódio extraído das Etiópicas,
protagonizado por Montano e Felisarda, e a história de Marcelio, Alcida e Clenarda com
um sabor a Heliodoro ou Aquiles Tácio). Assim, atalha as possibilidades de
continuação, algo que não entrava nos propósitos de Montemayor e de Alonso Pérez em
relação às suas6.
Esta convocação de narrativas de diversa proveniência tem ainda outras
implicações. Uma das mais imediatas é a instabilidade temporal, que perturba, não a
sequência dos acontecimentos, mas a sua exposição, visto que o presente narrativo
abrange pouco mais do que os vários desenlaces. Torna-se assim forçoso recorrer
constantemente a analepses, alcançando alguns dos relatos pessoais uma extensão tal,
que o leitor chega a olvidar, por instantes, que o que está a ler não decorre “diante dos
seus olhos”, até que um ponto final (ou um suspiro ou um copioso pranto) emudece a
personagem.
A proliferação espacial é, igualmente, produto e causa de dispersão nas Dianas.
Moreno Báez distingue três cenários: «pastoril en la historia de Selvagia, cortesano en la
historia de Felismena y pueblerino en la de Belisa» (1955: p.XIX). Merece reparo o
relevo que cada um deles adquire na recordação das personagens: por exemplo, a aldeia
de Selvagia, por ela pitorescamente descrita (Montemayor, 2008: pp.139-139), ou a
corte vividamente pintada por Felismena, que, constituindo um espaço humano e
artificial por excelência, é identificada menos pelas suas peculiaridades físicas do que
pelos seus moradores (p.207). Relativamente às «riberas del río Ezla» (p.108), estes
espaços não se afiguram mais secundários do que as narrativas intercaladas o são
perante a suposta narrativa principal.
Ora, El Pastor de Fílida adopta, visivelmente, uma estratégia distinta. Dividida,
à semelhança da primeira Diana, em sete livros, a sua estrutura narrativa apresenta uma
linearidade invulgar na novela pastoril espanhola. À índole dispersa das Dianas
6 No prólogo à sua novela, escreve Alonso Pérez que casar Diana e Sireno «era en algun modo cerrar las puertas para no poder más de ella escreuir» (apud Alonso Cortés: 1933, p.198).
11
contrapõe a unidade de acção; aos saltos cronológicos, a narrativa linear; à
multiplicidade de espaços, uma única paisagem pastoril.
Seguindo a tradição estabelecida por Montemayor, a primeira frase da novela
situa vagamente – numa geografia real e concreta, embora – o cenário dos
acontecimentos. De imediato, porém, e atropelando a descrição do quadro pastoril
aguardada pelo leitor, é apresentado Mendino, a partir do qual o universo humano se
expande: Castalio, Cardenio e Córidon (p.213), Filena, Nise, Padelia, Clori, Nerea e
Elisa (p.214), Sireno, Galafrón, Barcino, Mireno, Liardo e Filis (p.217), Bruno e
Taurino (p.219), Padileo (p.224), Siralvo (p.229), Fílida, (p.230), Arciolo, Tirsi,
Campiano, Belisa, Sasio, Matunto, Filardo, Arsiano e Pradelio (p.231). Na segunda
parte, com Alfeo (p.245) e Finea (p.249), é completado o rol de participantes nesta
novela.
A recolha de personagens a que acabamos de proceder permite detectar uma
significativa peculiaridade do Pastor de Fílida: em lugar de irem aparecendo, as figuras
são enfileiradas, apresentadas e “arrumadas” no mundo ficcional a que pertencem desde
o início, não dando lugar, assim, a súbitos desvios narrativos semelhantes aos que
dinamizam as novelas anteriores. Apenas Andria e Orindo entrarão em cena numa fase
mais tardia; não obstante, através dos diálogos entre Alfeo, Finea e Siralvo, já o leitor
está a par das suas histórias: ninguém assalta de surpresa as auríferas margens do Tejo.
Os percursos de personagens tão próximas não podem senão estar entrelaçados,
mutuamente condicionados, numa teia social que os implica a todos e que adiante
estudaremos. Evoluem de forma sincrónica, impondo a necessidade de apresentar, por
vezes, o “ponto da situação” das relações sociais e afectivas, que abarcam casos
diversos (pp.369, 386). Urge, contudo, estabelecer prioridades, pelo que depressa o
leitor se apercebe da existência de linhas narrativas de primeira ordem – as relações
amorosas entre Siralvo e Fílida, entre Mendino e Elisa e entre o quarteto amoroso
Andria-Alfeo-Finea-Orindo – e de outros enredos secundários, que gravitam em torno
daquelas, como para as aclimatarem num meio dominado todo pelo amor. Estas linhas
secundárias nunca comprometem as principais, e, inclusivamente, os “reajustes” e
permutas que admitem entre si operam-se com alguma suavidade, quando não para os
envolvidos, ao menos para o âmbito ficcional, não se contando nenhum lance novelesco
tão brusco que se exima a uma pacífica previsibilidade.
Dada esta coesão estrutural, os sucessos encaminham-se com naturalidade para o
seu desfecho, dispensando um clímax medial semelhante ao que marca a novela de
12
Montemayor. Assim, no intervalo entre uma introdução e uma conclusão, a narrativa
progride num sentido único, lógico e linear. Se a acção das Dianas se reduz à soma de
alguns dias, El Pastor de Fílida abarca cerca de três a quatro anos. Evidentemente,
torna-se imperiosa a eleição de alguns trechos da vida pastoril, disseminados ao longo
de tão vasto segmento temporal – os mais relevantes para a compreensão de factos que,
em lugar de se sucederem de forma imprevisível, são engendrados por um tempo
humanizado e lógico. O narrador, sempre cioso de ordem, não deixa de esclarecer o seu
leitor quanto à localização relativa destes “trechos”: «Tres veces se vistió el Tajo de
verdura y otras tantas se despojó de ella» (p.240); «Haré una cosa dificultosa para mí,
pero fácil para todos, que será pasar en silencio lo que nos queda del florido abril y del
rico y deleitoso mayo» (p.369). A exposição dos acontecimentos quase nunca quebra a
sua ordenada sequência cronológica, até porque este procedimento permite justificá-los
através do efeito do tempo sobre a alma humana, sobretudo quando em permanente
convívio com as outras. Uma prolepse e uma analepse constituem as raras excepções: a
primeira, nas lúgubres profecias do mago Sincero acerca do precoce falecimento de
Elisa (pp.238-239); a segunda, no diálogo entre Alfeo e Siralvo, onde ambos partilham
as suas histórias de vida (pp.304-311). Todavia, estes pormenores, sem afectarem o
equilíbrio cronológico da novela, representam artifícios básicos, aos quais o novelista
deveria recorrer, ainda que moderadamente, para que o seu texto recebesse o aplauso do
público dos Siglos de Oro, para quem expectativa não significava forçosamente
monotonia. A lastimável notícia do fim de Elisa é fornecida com antecedência, apenas
para tornar mais trágicos e formosos os últimos dias desta personagem e dos seus
amores com o malfadado “curioso impertinente”, e, igualmente, para suavizar um corte
abrupto mais adequado à tesoura de Átropos, que actua sobre vidas reais, do que à pena
de um novelista, que lida com obras de arte. Os relatos de Alfeo e de Siralvo, por seu
turno, distinguem-se pela precisão sumária e pela objectividade. No conjunto da novela,
a narração de Alfeo dificilmente terá outro desígnio para além de propiciar um contraste
entre a corte e o campo. Deste modo, o leitor não chega a envolver-se sentimentalmente
ao ponto de se dar uma ruptura na ordem da narração maior, que é a novela em si.
Longe está a concepção da novela pastoril como um pequeno Novellino, se nos é
permitida a redundância, à custa de tão aliciantes torções cronológicas e sobressaltos.
No que concerne ao espaço, observa-se a mesma unidade que fica salientada a
propósito da acção. O cenário eleito é localizável na geografia ibérica concreta, mas
visivelmente estilizado. É curioso constatar que, se a sua descrição física, fixada por
13
toda uma constelação de modelos literários precedentes, se vai elaborando
caprichosamente ao longo do texto, a realidade humana e social que o caracteriza é, pelo
contrário, definida logo nos primeiros parágrafos da novela, tal como atrás verificámos.
Deve ser referida a total ausência de descrições comparáveis às esboçadas por Selvagia
e Felismena. Os universos exteriores à aldeia do Tejo são mencionados, mas nunca
caracterizados, e nada, para além de um vago nome, lhes confere existência: Mendino e
Siralvo vieram dos campos do Henares, Alfeo da corte toledana («vecina Mantua» –
p.292), Finea e Orindo da serra e Padileo de outro âmbito pastoril não identificado.
Assim, tal como as coordenadas temporais se restringem ao presente da narração, o
espaço implicado é estritamente aquele em que esse presente se situa, não sendo
convocados, à maneira de Montemayor, outros universos “totais”, dotados de um
“corpo” próprio (feições geográficas, realidade social e humana) e enriquecidos com
uma “alma” (a subjectividade de quem os recorda).
Universo Ficcional de El Pastor de Fílida
«Y, pues comenzamos por La Diana de Montemayor, soy de parecer que no se
queme, sino que se le quite todo aquello que trata de la sabia Felicia y de la agua
encantada» (Don Quijote, I, VI). Tal é o juízo emitido pelo avisado cura na biblioteca
do fidalgo manchego, no momento em que, concluído o auto-de-fé dos livros de
cavalarias, se dá conta da presença de uma Diana, junto com outros «pequeños libros»
«del mismo género». Talvez não seja vão reflectir sobre o sentido do «escrutinio» a que
procede o autor, através da sua personagem – não se trata de pensar nas obras uma por
uma, mas antes de salientar e compreender o facto muito significativo de as novelas de
cavalarias partilharem com livros de pastores os recantos poeirentos da biblioteca do
Cavaleiro da Triste Figura.
Não nos parece que com esta opção se procure simplesmente abrir a senda para
um potencial delírio pastoril como aquele que, uma vez fracassado o cavaleiresco,
esteve prestes a apoderar-se do generoso fidalgo: nem mesmo o mais louco entre os
loucos pode confundir com a realidade um género literário tão ostensivamente artificial
como a novela pastoril, e o tempo que demora a congeminar um retiro campestre revela-
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se suficiente para se desenganar deste novo projecto de vida7. A aparição conjunta
destes dois géneros possui um sentido mais profundo, revelador da forma como,
consciente ou inconscientemente, o público de Montemayor e dos seus seguidores
encarou este tratamento muito novo de uma temática tão vetusta como a pastoril. Com
efeito, é possível encontrar na afinidade deste género com a literatura cavaleiresca um
factor decisivo de sucesso entre o público quinhentista (atestado pela sua presença na
biblioteca de Don Quijote). A verdade, segundo cremos, é que não só umas vagas
reminiscências dos livros de cavalarias tornaram aliciantes as primeiras novelas
pastoris, mas também a larga fortuna desta literatura, tão nefasta para certa fidalguia
ociosa e desencantada, poderá ter servido de guia sobretudo a Montemayor na
concepção do seu universo pastoril. Com o tacto que atrás salientámos, o autor da
Diana, observando princípios já mais harmonizados com a sua época, soube apelar a um
perene desejo de evasão (cf. Poggioli, 1975: p.4), ou, se quisermos ser mais optimistas,
de perfeição estética e moral: irrepreensíveis eram os heróis cavaleirescos e as senhoras
dos seus pensamentos, ideais as formosuras dos seus gestos e as de certos cenários por
eles atravessados (alguns deles bucólicos, por sinal, como os que bosqueja Feliciano de
Silva); igualmente formosos e irrepreensíveis até à pura artificialidade são os
protagonistas pastoris da Diana, com a diferença de que, agora, a aventura decorre nos
meandros do amor neo-platónico, e o heroísmo é, portanto, sentimental.
Dificilmente se poderá afirmar, porém, que alguma das novelas breves incluídas
na Diana tenha uma índole cavaleiresca, atendendo, entre outros factores, aos seus
intervenientes: pastores, ninfas, aldeões, cortesãos, mas nenhum cavaleiro. A influência
dos descendentes de Amadís de Gaula8 faz sentir o seu eco a outros níveis: por um lado,
através da ideia de um processo de aprendizagem ou de aperfeiçoamento espiritual,
proporcionado por ou durante uma deslocação física; por outro lado, através da presença 7 Será, talvez, oportuno recordar Lysis, o protagonista de Le berger extravagant (1627), de Charles Sorel, cuja ingénua credulidade se alçaria a um nível quixotesco caso fosse redimida, como sucede com o egrégio Cavaleiro da Triste Figura, por algum acto de heroísmo – algo que, de resto, o género pastoril interdita às suas personagens, tanto mais excelentes quanto mais dóceis, tanto mais dóceis quanto mais enamoradas, tanto mais enamoradas quanto menos viris. Todavia, este não é um produto ibérico, e não há que esquecer que, partindo da tradição das Dianas espanholas, a literatura francesa fundou o seu próprio universo pastoril novelesco. Mais interessante para nós seria a brilhante Arcadia fingida (1622), de Tirso de Molina, cuja protagonista, obcecada com a Arcadia lopesca, simula (atente-se no verbo) uma crise de loucura semelhante à do fidalgo da Mancha, para atingir os seus objectivos amorosos: ninguém ensandece deveras lendo livros de pastores. 8 Esta descendência continuava a multiplicar-se nos primeiros decénios de vida da novela pastoril, consistindo uma prova deste convívio a inclusão de fragmentos cavaleirescos em oitavas reais no quarto e quinto livros das Ninfas y pastores de Henares (1587), de Bernardo González de Bobadilla. De resto, desde a écloga II de Garcilaso que a épica procura (conquanto sem um sucesso assinalável) conviver com a matéria pastoril.
15
de «medieval visions of the supernatural» (Perry, 1969: p.228a). Com este sobrenatural
referimo-nos ao halo maravilhoso que envolve o palácio de Felicia, parto ambíguo da
Natureza e da Arte e palco propício para a revelação de recônditas verdades amorosas e
para o compensador remate dos destinos que ali se cruzam. São estes elementos que
acusam uma inspiração medievalizante num contexto ideológico acabadamente
renascentista.
Esta última ilação conduz-nos justamente à sentença proferida pelo cura
cervantino: que La Diana seria a primeira entre as do seu género, caso fosse expurgada
de «todo aquello que trata de la sabia Felicia y de la agua encantada», ou seja, de um
lastro de inverosimilhança já inaceitável para um autor esclarecido de finais de
quinhentos, se bem que atractiva ainda para o público de massas em meados do mesmo
século. Com verdade, a novela pastoril não é mais verosímil do que a cavaleiresca, e
Cervantes mostrou, em várias ocasiões, estar bem ciente disso. O que sucede é que o
“pacto ficcional” muda de feição, tornando-se um pouco mais discreto: a extravagância
não se encontra já no mundo físico, mas no foro psicológico das personagens, e o
dragão abatido pela espada Fisberta cede lugar à fera hircana jamais amolecida pelas
ladainhas tristes do seu amante. Estes excessos resultavam mais pacíficos para um autor
como Cervantes, que com eles pactuou também e não apenas quando, nos seus floridos
anos, redigiu a Galatea.
Ora, Gálvez de Montalvo demonstra uma preocupação realista superior à de
qualquer um dos seus antecessores e que abrange estes dois princípios: a erradicação de
elementos importados da tradição tardo-medieval e um certo realismo psicológico na
concepção das personagens, com inegáveis consequências no universo pastoril
apresentado. A fim de justificar a escassa participação do maravilhoso no Pastor de
Fílida, recorre-se com frequência ao seu estatuto de novela en clave (unanimemente
assumido pela crítica e, desde logo, pelo autor)9. Tratando-se embora de um argumento
sensato, não devemos ignorar que o mesmo desígnio é reconhecido à Diana de
Montemayor10; e que dizer, por exemplo, da Arcadia de Lope de Vega (1598), texto
posterior e de índole igualmente autobiográfica, onde, não obstante, o leitor se depara
com um «vuelo estratosférico» (Vega, 1975: p.20) seguido de duas metamorfoses, com
a cova do mago Dardanio, que aparece e desaparece por encantamento, e com o palácio
9 Martínez San Juan adverte com prudência: «[q]ue la autobiografía inspire la narración no justifica que la realidad entre de lleno en el mito y éste sea mensurado desde la circunstancia histórica» (2003: p.10). 10 Veja-se Subirats (1968) e Alonso Cortés (1933).
16
prodigioso de Polinesta, que o faz olvidar-se do de Felicia tal como varre da memória de
Anfriso as graças de Belisarda? Cumpre, pois, procurar noutra parte o motivo deste
despojamento. Proporemos uma entre várias respostas possíveis, depois de analisarmos
a segunda implicação deste anelo de realismo: a psicologia das personagens.
Antes de tudo, importa definir melhor o que se pretende exprimir com a
expressão «realismo psicológico». Muito nos ludibriamos se lemos qualquer novela
pastoril na esperança de encontrar uma figura que remotamente se assemelhe ao pastor
“de carne e osso” que ocupava um posto fundamental na sociedade dos Siglos de Oro11,
ou às personagens perfiladas por Juan del Encina e Lucas Fernández, cujos pastores
deturpam vocábulos, manifestam uma hostilidade mesquinha face à corte e, se lançam
desafios, é em torno de jogos de dados e não de cantos poéticos12. O tipo de realismo a
que nos referimos é o de personagens «who are felt to be representative of some other or
of all other men» (Alpers, 1982: p.456). Ao contrário do que sucede nas Dianas e em
vários exemplares deste género literário, aqui os pastores encarnam sentimentos e
atitudes semelhantes aos que os homens de qualquer século poderiam experimentar: são
movidos por paixões instáveis, por vezes contraditórias, e a sociedade pastoril que
constituem, longe de corresponder à utópica Idade de Ouro, revela-se, tal como
qualquer outra sociedade humana, um mal menor. A ideologia neo-platónica
renascentista – que impregna, apesar de tudo, esta novela – somente se concretiza em
toda a sua plenitude nos dois protagonistas, Fílida e Siralvo, cujos amores duravam já
quando a acção tem início e seguem durando, presume-se, depois de terminada. As
restantes personagens são afectadas pelos princípios neo-platónicos apenas
parcialmente, na medida da sua fraqueza e da sua inconstância humanas –
eventualmente, também os caballeros e damas dos Siglos de Oro viveriam assim os
seus amores semi-perfeitos e quasi-platónicos, émulos humanos dos amores literários.
Um dos factores que desmitificam os sentimentos pastoris é a noção de que tudo
muda, princípio universal de que é corolário outro, mais localizado e que as Dianas se
empenham em corroer: o de que o tempo cura as feridas de amor. Deste jeito,
compreende-se que a duração temporal da acção, superior à costumada, bem como a sua
cronometração rigorosa, respondam a um desejo de realismo emocional: convém que os 11 Sobre a influência do pastor real na sociedade dos Siglos de Oro e, por conseguinte, na génese da literatura pastoril, veja-se Hernández-Pecoraro (2006: pp.30-44). 12 É necessária muita cautela quando falamos de “realismo” em textos pastoris, seja de que natureza forem. Os pastores rústicos e burlescos de Encina e de outros dramaturgos anteriores à novela pastoril vivem, igualmente, de convenções que os distanciam da realidade factual. M. Chevalier designa pertinentemente este processo como um realismo em segundo grau (cf. 1980: p.74).
17
sentimentos amadureçam e que as relações consolidem. Por outro lado, esta é uma
novela despojada de factores novelescos – imprevistos, equívocos ou coincidências –
que alterem repentinamente as relações humanas. Este detalhe imprime à narrativa um
falso estatismo, quando, na verdade, quer em termos sociais, quer em termos
emocionais, as personagens se encontram em constante ebulição. Com excepção do
caso de Fílida e Siralvo, nenhuma relação amorosa é isenta de mudanças, nem sequer a
de Elisa e Mendino (a mais próxima da perfeição, depois da dos protagonistas), já que,
em lugar de honrar a morte da amada com uma fidelidade amargurada e perpétua, à
maneira de Dante ou de Petrarca, Mendino não se coíbe de cortejar outras pastoras
(pp.440-441). O narrador encara com uma experiente condescendência esta
instabilidade e convida o seu leitor a adoptar a mesma atitude. Não há, pois, amor
retribuído tão extasiante nem zelos tão obstinados que não se encaminhem para uma
morte natural. Se as personagens parecem ainda corresponder a classes estereotipadas,
tal artificialidade deve-se simplesmente ao facto de cada uma personificar emoções ou
atitudes humanas precisas, como veremos.
Luis Gálvez de Montalvo dá mostras de ser dotado de uma sensatez que pode
fazer recordar a do seu amigo e admirador Miguel de Cervantes. Para além de se manter
fiel à sua experiência humana na hora de conceber estas personagens, sabe colocar-se no
posto do leitor e julgar a sua obra com alguma distância, algo totalmente desprovido de
sentido para Montemayor. Em mais de um lugar, o narrador do Pastor de Fílida
antecipa-se ao leitor, salientando o que, aos seus olhos, é um pormenor inverosímil, para
oferecer de seguida uma justificação plausível. O parágrafo inicial da sexta parte
sobressai pelo seu pragmatismo exemplar:
«Posible cosa será que […] algún curioso me pregunte entre estos amores y desdenes, lágrimas y
canciones, ¿cómo por montes y prados tan poco balan cabras, ladran perros, aúllan lobos? ¿Dónde pacen las ovejas? ¿A qué hora se ordeñan? […] A eso digo que, aunque todos se incluyen en el nombre pastoral, los rabadanes tenían mayorales, los mayorales pastores y los pastores zagales que bastantemente los descuidaban. El segundo objeto podrá ser el lenguaje de mis versos; también darán mis pastores mi desculpa con que […] el ánimo del amado mejor se mueve con los conceptos del amador que con las hojas de los árboles. La tercera duda podrá ser si es lícito donde también parecen los amores escritos en los troncos de las plantas, que también haya cartas y papeles, cosa tan desusada entre los silvestres pastores. Aquí respondo que el viejo Sileno merece el premio o la pena, que como vido el trabajo con que se escribía en las cortezas, invidioso de las ciudades, hizo molino en el Tajo donde convirtió el lienzo en delgado papel y de las pieles del ganado hizo el raso pergamino, y con las agallas del robre y goma del ciruelo, y la carcoma del pino, hizo la tinta y cortó las plumas de las aves, cosa a que los más pastores fácilmente se inclinaron» (p.419).
Repare-se que o escrupuloso desejo de verosimilhança do narrador (que encerra
18
igualmente uma irónica censura aos textos anteriores) abrange três níveis: o primeiro
refere-se ao universo ficcional em si, às regras que o regem nesta e noutras novelas,
sendo digna de nota a astúcia com que o autor se serve desta clarificação para
descortinar questões de ordem social que importam ao sentido da sua novela e que
discutiremos adiante; o segundo coloca a questão da linguagem, basilar na definição de
um grupo de personagens, de um universo ficcional e, enfim, de um género literário, e a
desenvoltura graciosa com que se confere “verosimilhança” a estes colóquios pastoris,
não sendo propriamente original, nunca deixa de agradar; o terceiro diz respeito a um
pormenor aparentemente de menos importância – no entanto, Montalvo está ciente de
que um pormenor, por discreto que seja, pode custar a difamação do seu trabalho pelo
“vulgo” inexorável... O mais curioso é que, caso estas questões não fossem colocadas,
dificilmente o “vulgo” faria reparo delas, visto que já tinha aceitado instintivamente,
décadas atrás, estas mesmas irregularidades, ao ler com deleite La Diana. Elucidações
deste tipo pontuam várias novelas pastoris posteriores. Montalvo, enquanto leitor,
detectou o que lhe pareceram lapsos da parte dos seus antecessores, e, enquanto escritor,
assegurou-se de que não os reiteraria.
Montalvo e a Arcadia de Sannazaro: uma Novidade Antiga
No termo destas considerações, a questão parece mais desconcertante ainda do
que no começo, quando apenas se pressentia a divergência entre El Pastor de Fílida e os
textos que o antecedem. É legítima a interrogação: num contexto estético cujas palavras
de ordem continuam a ser imitatio, aemulatio, superatio, onde se encontra o modelo de
Montalvo? A resposta é óbvia, ainda que nos obrigue a desfraldar as velas e a provar o
sal e o vento do Mediterrâneo.
Torna-se inevitável, num estudo que envolva El Pastor de Fílida, sublinhar a
influência da Arcadia de Sannazaro (1504), consideravelmente mais óbvia do que nas
Dianas13. De facto, um inventário de elementos herdados desta obra-prima italiana
obriga-nos a reconhecer ao Pastor de Fílida, se não o mérito de ter importado ou
13 Cf. Menéndez Pelayo (1962: p.333); Gerhardt (1950: p.191); Reyes Cano (1973: p.31); Avalle-Arce (1975: p.149).
19
revelado a Arcadia – visto que a tiveram presente os autores das Dianas14, ainda que a
ela recorressem com grande parcimónia, preferindo criar um género genuinamente
espanhol –, ao menos o de a ter trazido para o primeiro plano, entre um manancial muito
heterogéneo de tradições literárias, impondo-a de novo como um dos arquétipos mais
imediatos.
Contudo, deixemos que esta evidência ofuscante se dissipe um tanto, para que
possamos compreender com nitidez que aspectos deve efectivamente o texto de
Montalvo ao do poeta napolitano. Afigura-se-nos que esta herança se faz sentir de um
modo mais pontual do que seríamos tentados a pensar, verificando-se em alguns
episódios e estereótipos descritivos (mais raramente, em versos), mas não tanto a um
nível mais amplo e teórico, de concepção “técnica” da novela.
Na primeira parte do cotejo que esboçámos entre as Dianas e El Pastor de
Fílida, salientámos a estrita linearidade deste último, que não invalida a existência de
lapsos entre os episódios seleccionados. Se, por um lado, a apresentação de uma
sequência descontínua (mas cronologicamente ordenada) de episódios da vida pastoril
aproxima esta novela da Arcadia, por outro, no texto de Sannazaro nem sempre existe
uma clara relação de causalidade entre as várias partes, nem se especifica em todos os
casos a sua posição temporal relativa, o que, juntamente com a estilização de certos
elementos cénicos e das personagens, o transporta para um ambiente de contornos
nebulosamente oníricos15. Também de modo irregular vão as personagens cruzando a
Arcádia, muitas não se chegando a definir com precisão. Porventura, estas
peculiaridades dever-se-ão à própria definição de «écloga» – «selecção» – que
Sannazaro tem presente ao imitar Virgílio e outros poetas16. Tal vagueza, por motivos
agora claros, não pode ser desejada por Montalvo.
Muito mais notória é esta influência sob outros aspectos. Não será demasiado
arriscado declarar que é a Arcadia que permite a Montalvo pôr de parte a herança
medievalizante em que Montemayor ainda bebeu, oferecendo-lhe, como alternativa,
uma herança clássica selectiva. Certos pormenores coincidem curiosamente, tais como a
magia (também presente na Arcadia, mas por influência virgiliana), da qual no Pastor
14 Reyes Cano dedicou-se ao estudo das traduções e das heranças da Arcadia de Sannazaro em Espanha. A primeira tradução completa vem a lume em 1547, cerca de uma década antes, portanto, da primeira novela pastoril espanhola (1973: p.43). 15 Daí que não raro se afirme que a Arcadia não corresponde, efectivamente, à primeira novela pastoril, por não preencher, em primeira instância, os “requisitos” necessários para ser considerada uma novela (cf. Bayo, 1970: p.81). 16 Para a interpretação deste vocábulo no século XVI, ver Fosalba (2002: p.122).
20
de Fílida se faz um sóbrio uso, reduzida já a mero elemento caracterizador do género
sem repercussões significativas a nível do enredo. Também provenientes da Arcadia são
os vários episódios que dão consistência a cada parte do Pastor de Fílida, levantados já
por Fucilla (1942), aos quais tornaremos mais tarde. Todavia, enquanto na “rapsódia”
de Sannazaro constituem os motivos centrais das prose em que se inserem, no texto
espanhol surgem sobretudo como pretexto para o convívio social entre as personagens,
cujas relações e estados sentimentais preocupam, acima de tudo, Montalvo, por herança
ibérica.
Em qualquer caso, importa notar que o autor não se limita a absorver
passivamente a tradição sannazariana, nem sequer quando toma emprestados alguns
episódios da Arcadia: não hesita na hora de aditar alguns da sua lavra, que, sendo à
partida absolutamente alheios ao mundo pastoril alicerçado por Sannazaro na
Antiguidade clássica, se harmonizam habilmente com o mundo pastoril fundado pelo
próprio Montalvo sobre uma confluência de tradições que depura com critério e assimila
criativamente.
Reminiscências do Pastor de Fílida fazem-se sentir em novelas posteriores, e
não nos referimos apenas a um texto como o Siglo de Oro en las selvas de Erífile
(1608), de Bernardo de Balbuena, que, aliás, deve muito mais à Arcadia italiana do que
Gálvez de Montalvo. Se La Galatea, de Cervantes, publicada três anos depois do Pastor
de Fílida, se encontra em termos estruturais mais próxima das Dianas, alguns novelistas
mais tardios tornam a preferir estruturas lineares e menos ousadas, que lhes permitam
conceder relevo às composições poéticas insertas nos seus textos (El Prado de Valencia,
de Gaspar Mercader), às potencialidades autobiográficas do género (Arcadia, de Lope),
ou ao exame do relacionamento entre as personagens (La Constante Amarilis, de Suárez
de Figueroa), onde se descortina um aproveitamento en clave da novela pastoril que
talvez mereça ser tido em consideração na hora de estudar as ideias sociais dos Siglos de
Oro.
21
CAPÍTULO II
QUANTO VAI DE «ZAGAL» A «RABADÁN»
Alicerces de uma Sociedade Pastoril
O título que encabeça a presente secção encerra um aparente paradoxo, sendo
quase inevitável a associação do termo «sociedade» às ideias de ordem, unidade e
reciprocidade, mas igualmente às de diversidade, categorização e consequente
distanciamento. «Hierarquia» será, porventura, o conceito que melhor engloba todas
estas noções.
Sucede que reiteradamente nos confrontamos com definições da utopia arcádica
que incidem no pressuposto fundamental da igualdade entre os seus privilegiados
participantes17. Sabido é que a liberdade e o ócio se contam entre as prerrogativas
definidoras dos pastores literários, constituindo, talvez, os mais infalíveis atractivos da
Arcádia, que tem seduzido os espíritos ocidentais desde a Antiguidade Clássica. Ora,
suspeitaríamos que nenhuma destas regalias seria viável caso entre as entidades que
delas usufruem não houvesse sido implementada, em primeira instância, a igualdade a
que nos referimos, que abrangeria, pois (com a megalomania típica do universo das
ideias), todos os planos da existência, desde a experiência sentimental intransmissível à
partilha de direitos, saberes, memórias, desejos, gestos ou, simplesmente, rotinas. A
similaridade “interior” destas personagens (que o leitor contemporâneo identificará com
estereótipos literários) contribuiria para consolidar esta igualdade essencial,
assegurando o retorno à mítica Idade de Ouro, tão apetecida e somente praticável por se 17 Curiosamente, esta asserção ocorre tanto nos estudos críticos, como no seio das próprias obras literárias, que, por vezes, alimentam o mito da igualdade (bem como muitos outros ideais caros ao Ocidente) ao mesmo tempo que o fragilizam.
22
adiantar à própria sociedade, quando os homens «ignoraban estas dos palabras de tuyo y
mío» (Don Quijote, I, 11).
Contudo, façamos uma distinção de primeira importância: se os ingénuos
devaneios cavaleirescos de Don Quijote têm expressão num copioso caudal literário, o
mesmo não se pode afirmar a respeito dos ideais pastoris. De facto, raras vezes
divisaremos uma igualdade humana autêntica, corolário da perfeita harmonia universal,
nos textos que projectam, mais do que concretizam, o mito da Idade de Ouro: Virgílio
lamenta já a irreversível perda desse tempo remoto, substituível, na melhor hipótese, por
vagas esperanças de um futuro menos sombrio, não já fundado na igualdade, mas na
liderança de um sábio dirigente (bucólica IV). Sannazaro acolhe este pessimismo, com
razão agudizado pela consciência de que tão-pouco é já recuperável o tempo real em
que viveram os Antigos – difusa circunstância histórica não raro associada à Idade de
Ouro pelos homens da Renascença (cf. Lida de Malkiel, 1975: p.37). Essa era venturosa
é bosquejada sobretudo através de um eloquente processo de antagonismos, perdendo-se
em conjecturas sobre o porvir ou, mais comummente, numa memória esvaída pelos
séculos. Só excepcionalmente a almejada Idade Saturnina é presentificada, e, quando
deixa cair o véu, expõe uma nudez de incoerências intrínsecas18. Verdade é que sempre
a «fruta del cercado ajeno» se afigura a mais, a única «dulce y sabrosa». Por ora,
permitamos que esta fruta nos tantalize também um pouco, diferindo-a para capítulos
futuros.
Geralmente, as construções literárias deste quási-mito encenarão um universo de
laivos utópicos, mas profundamente contaminado por uma realidade datável e nutrido
por uma circunstância histórica, social ou mental. No âmbito da novela pastoril
espanhola dos Siglos de Oro, merecem destaque as Dianas de Montemayor e Gil Polo,
as quais constituem, por distintas razões, produtos consumadamente renascentistas,
ainda que, abrindo as portas à literatura presente e passada, as semicerrem perante a
circunstância particular e concreta19. Tão ambicioso arrojo de universalização não
18 A Arcadia de Sannazaro exemplifica-o, quando Sincero confessa o pouco efeito que tem surtido o seu exílio amoroso, «[m]aximamente ricordandomi […] de’ piaceri de la deliciosa patria tra queste solitudini di Arcadia, ove, con vostra pace il dirò, non che i gioveni ne le nobili città nodriti, ma appena mi si lascia credere che le selvatiche bestie vi possano com diletto dimorare» (Sannazaro, 1990: p.121). Mal se encontra o género quando «[e]ven a pre-eminently pastoral author like Sannazaro at times oscillates between admiration and disdain for life in Arcadia» (Kegel-Brinkgreve, 1990: p.385). 19 Gil Polo adianta, no prólogo à sua obra, que nela o leitor encontrará «ficciones imaginadas» (p.83), possuidoras de um valor exemplar. Não obstante a afirmação de Montemayor de que os sucessos que descreve são verídicos, «disfrazados debajo de nombres y estilo pastoril» (p.108), afigura-se-nos que a densidade ficcional e ideológica da Diana lhe garante uma considerável autonomia relativamente ao seu eventual pretexto.
23
contemplou um importante canal por onde se infiltram nos objectos estéticos marcas de
circunscrição espacio-temporal: as ideias20.
Contudo, para além deste fundo ideológico, é possível encontrar um rasto mais
ou menos evidente da conjuntura histórica ou social em que brotou cada uma das
novelas pastoris que compõem o corpus actualmente considerado. Tem sido objecto de
discussão o convívio, intrinsecamente paradoxal, entre o mito pastoril e aspectos da
vida real na Espanha de quinhentos e seiscentos, já campesina – nos Diez libros de
Fortuna de Amor, de Antonio de Lo Frasso, por exemplo –, já urbana – no Premio de la
constancia y pastores de Sierra Bermeja, de Jacinto Espinel Adorno –, já cortesã – no
Pastor de Fílida, entre outros.
Na novela de Montalvo, a circunstância histórica abrange dois planos
inextrincáveis: a realidade social em que se moveu e formou o autor e aquilo que,
porventura, será mais prudente designar como fragmento auto-biográfico, dada a sua
índole vaga, inconclusa e idealizada. Assim, considera-se El Pastor de Fílida a primeira
novela pastoril en clave, ou, pelo menos, a primeira a que este termo é aplicável em toda
a sua extensão, já que, nela, é a experiência pessoal do autor, bem como todo o processo
da sua metamorfose estética, que formata a narrativa, conforme, desde logo, insinuam
com mestria os dois primeiros versos da composição «El autor al libro»: «Pastor de mis
pensamientos / guardador de mis cuidados» (note-se, de passagem, a polissemia do
afortunado termo «guardador»)21.
O estatuto de novela en clave influi profundamente na concepção deste universo
ficcional. Tal como argutamente constata Avalle-Arce, «[n]os hallamos, pues, ante un
doble proceso: pastoralización de la realidad y socialización de la pastoril. Y la
efectividad artística de la anécdota depende, precisamente, del balance que se establece
entre ambos impulsos» (1975: p.146). Desta sorte, a sociedade pastoril constituída por
Montalvo, distanciando-se do modelo utópico puro, institui o seu próprio modelo: um
trabalhoso hibridismo de bucolismo clássico e ibérico, utopia cortesanesca e depurado
realismo humano. Evidentemente, esta fusão está longe de ser pacífica. Todavia, uma
20 «En tant que contenant et en tant qu’«art», la bergerie exploite des savoirs susceptibles d’alimenter l’imaginaire du temps continu qu’elle entend produire» (Giavarini, 2010: p.34). 21 Sobre a “vida” por detrás do Pastor de Fílida, em que não nos deteremos, vejam-se os já clássicos estudos de Rodríguez Marín (1927) e Alonso Gamo (1987).
24
prodigiosa coerência interna – prova decisiva do talento do autor – engendra-se a partir
destes substratos22.
A este repensar a validade, a condição e as funcionalidades do mito pastoril nas
letras e na sociedade de quinhentos, com que nos desafia El Pastor de Fílida,
dedicaremos o presente capítulo, no decurso do qual procederemos ao levantamento dos
principais sintomas de irregularidade/originalidade ficcional a ponderar, de seguida, sob
outras ópticas mais específicas.
Ensaios de uma Hierarquia Pastoril
Notámos antes que a associação do clima pastoril a certos termos, entre os quais
«hierarquia», parece ser intrinsecamente paradoxal. No que concerne ao Pastor de
Fílida, porém, não estaremos a propor um paradoxo mais flagrante do que aquele que
avança o cura cervantino ao definir do seguinte modo esta novela: «No es ése pastor -
dijo el Cura-, sino muy discreto cortesano» (Don Quijote, I, 6). Tais palavras alertam-
nos para o cariz atípico desta novela pastoril23. A realidade cortesã é assumida pela
tradição24 como pólo radicalmente oposto à realidade campesina. Ironicamente, Gálvez
de Montalvo corrobora esta perspectiva: «No dudo yo que en la mayor Babilonia [a
cidade] permita amor algún pecho lleno de fe y lealtad, y entre la soledad de los campos
alguna intención dañada» (pp.313-314). É significativo, adiante-se, que, nestes e nos
demais encómios que o narrador tributa ao campo, nada se leia a respeito da utópica
igualdade pastoril.
22 «This cosmopolitan literature [a novela pastoril] places great emphasis on the equilibrium among all the constitutive elements, making pastoral both remote and unique. This attention to harmonious perfection is one of the many consequences derived from the awareness of art and its power» (Fernández-Cañadas de Greenwood, 1970: p.31). Será justo reconhecer no Pastor de Fílida um dos mais eficazes argumentos a favor desta constatação, embora não se conte no corpus contemplado pelo estudo que acabamos de citar. 23 Atípica no sentido em que retira ostensivamente a sua substância de um paradoxo que se insinua desde Sannazaro, cujos pastores «vive[m] na Arcádia, conhece[m] os trabalhos usuais da pastorícia, t[ê]m a cultura de um urbano. A própria Arcádia não é ou o campo, ou a cidade. Nela encontramos representado um ambiente campestre que simula o da cidade. Sob este ponto de vista, o texto bucólico caracteriza-se por um enriquecimento informativo» (Marnoto, 1996: p.19). 24 Desde a dicotomia clássica negotium/otium, originalmente mais complexa e não tão radicalmente inconciliável como, acaso, nos acostumámos a pensar (cf. Rosenmeyer, 1969: pp.67-68).
25
Conforme fica dito, a igualdade constitui uma utopia dentro da própria utopia, e
alguma forma de distinção entre as personagens estereotipadas faz-se sentir, tanto na
convenção clássica, como no ciclo castelhano das Dianas. Em qualquer um destes
universos (que desconhecem a noção de estrato social, mas não a de autoridade) é
possível nomear algumas personagens que, não pelo seu protagonismo25, mas por
alguma qualidade específica, sobressaem entre a multidão de pastores: os poetas, os
anciãos, os sábios, são alvos de veneração, sem se imporem ainda como líderes sociais –
correspondem, essencialmente, a figuras cuja função «is that of guide or teacher»
(Mujica, 1986: p.29). Algumas outras distinções pontuais, procedentes da pastoral
clássica, podem ser assinaladas, tais como a existência de zagais subordinados (Coridon
e Batto, no idílio IV de Teócrito), ou a superioridade dos pastores que se relacionam ou
relacionaram com citadinos influentes, mesmo num âmbito em que se presumia que tais
critérios cessariam de ter efeito (o narrador, Eucrito e Aminta, no idílio VII de Teócrito,
ou Títiro, na bucólica I de Virgílio).
Qualquer uma das situações anteriores encontra expressão também no Pastor de
Fílida. A sua especificidade não reside, pois, nestes indícios, que, nos textos anteriores,
cumprem sobretudo desígnios de verosimilhança e de enriquecimento temático; reside,
antes, na relevância que lhes é reconhecida dentro do universo ficcional. A manifesta
preocupação de distinguir socialmente, não personagens individuais, mas grupos
coesos, e a influência desta categorização nos relacionamentos humanos entre os
pastores são já produtos de uma mundividência cortesã ou urbana26. Deste modo, se a
utopia arcádica é, por norma, fechada e altamente codificada em termos ideológicos, se
conta com um limitado leque temático e com um também restrito número de
alternativas de concretização estética, no Pastor de Fílida apresenta-se igualmente
fechada a nível social. Neste sentido, têm toda a pertinência as palavras do cura, dado
que, se existe um correlato real deste universo pastoril tão peculiar, não poderá ser
senão a corte quinhentista, magistralmente delineada por Castiglione no seu Cortegiano,
onde são bem patentes a impermeabilidade social e a escrupulosa hierarquização
humana que a qualificam27.
25 O conceito de protagonismo é, como vimos no capítulo antecedente, bastante difícil de definir e aplicar na ficção pastoril, que prima pela multiplicação de personagens com funções muito semelhantes, o que não deve, porém, ser confundido com igualdade social. 26 Efectivamente, «though tightly knit, pastoral society is loosely organized. It may be inherently well ordered, but it is hardly governed» (Ettin, 1984: p.152). 27 W. Empson encontraria na novela pastoril espanhola bons motivos para fortalecer a sua ideia de que «[t]his indeed is one of the assumptions of pastoral, that you can say everything about complex people by
26
Prévia ao estabelecimento de qualquer hierarquia social é a definição dos
critérios diferenciadores constituirão essa sociedade ideal. Consideraremos três: o poder
material, o ofício e a ascendência familiar. Qualquer um destes três factores – bastante
óbvios para o leitor do século XVI e, talvez, do nosso ainda, com distintas implicações
– fixa a posição do indivíduo na comunidade, tornando reconhecíveis as suas funções e
o seu campo de acção. Constituem, igualmente, directrizes para as próprias
personagens, estimulando-as a ir ao encontro dos seus pares e, por conseguinte, da sua
realização “humana” e estética, enquanto projecções literárias. Assim, qualquer agente
de distanciação social revela, em simultâneo, uma intenção aproximativa perfeitamente
lógica, menos fácil de entender, porém, nos nossos dias do que há quatro séculos e
meio.
O primeiro factor que salientámos, o poder material, é o mais simples dos três,
visto que assenta apenas num raciocínio quantitativo. Evitámos deliberadamente os
termos «económico», demasiado complexo para este universo, e «monetário»,
atendendo a que a moeda é um objecto desconhecido pelos pastores arcádicos, cujos
imperativos básicos são colmatados pela recolecção (que suprime o árduo trabalho da
lavoura) e pela troca directa (que humaniza as prosaicas trocas comerciais). Na novela
em estudo, conta-se somente uma referência directa a esta “dinâmica material”: a
obtenção, por parte de Finea, de um modesto rebanho, logo que chega às praias do Tejo,
não sendo muito claras as implicações desse “negócio” rural (p.281). De resto, como
providos pela pródiga mão da Natureza, estes ditosos pastores sempre prosperam. Tão
primária é esta auto-suficiência arcádica, que o autor se dispensa de explicitá-la.
Quando Mendino é apresentado, é-lhe atribuído um complexo epíteto, que
qualificará, no decurso da narrativa, algumas outras personagens selectas: «el caudaloso
Mendino» (p.213). Ora, a abundância sugerida pelo adjectivo castelhano pode reportar-
se a três planos: dignidades sociais, consequentes regalias materiais ou excelências no
plano moral28. Resulta muito conveniente tal ambiguidade, sobretudo no que concerne
às duas primeiras implicações, atestando a interdependência destes dois sustentáculos
do poder social.
a complete consideration of simple people» (1960: p.131). No caso do Pastor de Fílida, a única fragilidade desta visão jaz no facto de a própria sociedade pastoril se encontrar já distante desta simplicidade, conquanto os seus membros sejam simples ainda: estamos perante um jogo de encaixes e de sobreposição de planos. 28 As três acepções são admitidas pelo Diccionario de Autoridades: «lo mismo que Principal»; «la hacienda que tiene alguno, y los bienes que goza»; «capacidad, juiçio y entendimiento adornado y enriquecido de sabiduría» (pp.234-235).
27
Frequentemente, alude-se à riqueza de certas personagens de forma ínvia. A
incontável soma de cabeças de gado (rebanho de Albanisa – p.230), a pompa dos trajes
(os de Licio – p.435) ou as demonstrações públicas de liberalidade (prémios oferecidos
por Sileno – p.270) são alguns dos sintomas do estatuto materialmente privilegiado de
alguns pastores, que por isso se distinguem. No último caso, há que salientar ainda o
contributo da riqueza rústica para a dinâmica social da aldeia.
Não obstante, as referências a uma vertente material da vida campestre nem
sempre primam pela subtileza. Na écloga representada na quarta parte da novela, o
leitor depara-se com uma subversão sistemática do ideal arcádico, através dos seus
códigos basilares29. Dedicar-lhe-emos uma reflexão mais minuciosa no devido
momento; o aspecto que, por ora, nos importa, está compreendido apenas numa dezena
versos. Convida Liria o seu inseguro enamorado a declarar a paixão que o flagela,
recordando-lhe que é possuidor daquelas virtudes às quais nenhuma pastora recusa
acolhimento:
«¿no se sabe que paces las dehesas con mil ovejas gruesas, abundosas, y mil cabras golosas y cien vacas? ¿No se sabe que aplacas los estíos y refrenas los fríos con tu apero, y tienes un vaquero y diez zagales? Todos estos parrales mal podados que tienes olvidados, ¿no son tuyos? Pues estos huertos, ¿cuyos te parecen?» (p.352).
Inverosímil, pensará o leitor, seria semelhante retórica na boca de uma das espirituosas
personagens das Dianas de Montemayor e de Gil Polo, sobretudo encaixada entre duas
arrasadoras sentenças: «amor más persigue al más hinchado» e «eso todo vale en los
amores / porque de los dolores no se sabe». Como se vai percebendo, a
inverosimilhança é, neste género literário, fundamentalmente uma questão de
perspectivas… Para as personagens desta écloga, o interesse material é um aspecto a
considerar no estabelecimento de laços humanos: da confissão amorosa decorre,
automaticamente, uma preocupação um tanto menos aérea – o dote. Procura-se, pois,
matizar o idealismo neo-platónico com uma versão mais realista do quotidiano (rústico 29 Veja-se Arredondo (1987: pp.349-350). Consideramos esta auto-paródia mais suspeita, mais frágil, e, portanto, mais complexa, do que pode parecer num primeiro relance, na medida em que o contraste que esboça é operativo nos dois sentidos, e, se podemos ver na écloga uma sátira contra as exacerbadas finezas dos pastores estilizados, será igualmente legítimo, invertendo a lógica de leitura, descortinar na novela um subtil desdém por certas atitudes materialistas e plebeias que caracterizariam alguma fidalguia de quinhentos.
28
e cortesão), que se encontra sensivelmente a meio caminho entre as Dianas e as peças
pastoris de Encina. Montalvo vacila, deliberadamente, entre a atracção do ideal e a
evidência. Na verdade, não consideramos existir neste contraste realista um paradoxo
em relação à estética do Pastor de Fílida, que, como temos visto, extrai a sua
mundividência dos primores da corte. Aliás, tais ostentações de prosperidade
campesina, imiscuídas no plano amoroso, contam com uma vasta tradição no seio dos
géneros de temática bucólica, que as legitima, pelo menos, em termos estéticos30.
O segundo factor de distinção/aproximação social que mencionámos é,
igualmente, de ordem prática: o ofício. Nas bucólicas clássicas, são recorrentes as
especificações dos diversos mesteres da população rural. Os guardadores de gado
distinguem-se comummente pela espécie de animais que têm a seu cargo, aspecto que
não é indiferente no que se reporta à definição do seu estatuto social no pequeno mundo
da aldeia31. É possível que, em determinados textos, cada uma destas “classes” se
revista de um valor alusivo, simulando conflitos factuais, testemunhados pelos autores,
num plano social, político ou histórico. No Pastor de Fílida, não se verifica tal
proliferação de ofícios, até porque os habitantes das praias do Tejo excedem mesmo os
clássicos em termos de ociosidade pastoril – raramente se alude às reses, havendo ainda
que descontar os casos em que os animais desempenham uma função ornamental,
reflectindo o estado de ânimo do seu guardador.
Neste universo pastoril, a questão do ofício é bastante delicada, e dotada de um
impacto social porventura ainda maior do que as contendas entre ovelheiros, cabreiros e
boieiros. Nos campos do Tejo, todos parecem dedicar-se à pastorícia, ao menos porque
todas as personagens são vagamente designadas por «pastores». Porém, apenas se alude
concretamente a dois rebanhos, todos ovinos: um “particular”, de Finea, e outro, muito
mais copioso, do «gran rabadán Paciolo» (p.285), cuja manutenção exige o empenho de
vários trabalhadores. Ora, é justamente este fato e as suas exigências que devemos
considerar, se desejamos compreender a “dinâmica laboral” deste meio. Careceria de
sentido a existência de vários mesteres, que, criando vários pólos de interesses e de
poder, semearia a discórdia e a sedição – o que não poderia estar mais longe dos 30 Podemos salientar Teócrito (idílio XI), Virgílio (bucólica II), Calpúrnio (bucólica II), Nemesiano (bucólica II) e Longo (os projectos matrimoniais de Cloé). A antiguidade desta tradição de uma abundância natural privativa oferece uma prova mais de que a mítica Idade de Ouro é um salto no escuro. 31 Ovelheiros e cabreiros disputam, por vezes, a primazia social e poética, seguidos pelos boieiros. Os porqueiros encontram-se, sem dúvidas, na base da hierarquia rural. A estes grupos há que acrescentar ainda o dos lavradores e o dos pescadores, de mais escassa representatividade. Em determinados textos, é possível que estas “classes” se revistam de um valor simbólico, simulando conflitos factuais, testemunhados pelos autores, num plano social ou político.
29
projectos desta novela. Antes, um só é o ofício de todos os pastores. E é no seio desse
ofício único que se estabelecem as imprescindíveis categorizações sociais: «aunque
todos se incluyen en el nombre pastoral, los rabadanes tenían mayorales, los mayorales
pastores y los pastores zagales que bastantemente los descuidaban» (p.419)32. O
pensamento de Montalvo situa-se, portanto, na linha de Castiglione, para quem a
hierarquia é o óbvio alicerce da ordem e, por conseguinte, da excelência humana33.
De um modo geral, escasseiam as menções ao trabalho campestre – “falta”
detectada pelo próprio autor, que, para além das explanações já analisadas, se apressara
a corrigir a “cortesanização” da sua novela na quarta parte, introduzindo, no templo de
Pã, uma tábua de “mandamentos” rústicos, com instruções para a execução de labores
campestres (notoriamente mais exíguos do que aqueles que Sannazaro verte, na prosa
décima da Arcadia, das Geórgicas virgilianas): «el tiempo del desquilar, el modo de
untar la roña, el talle del mastín, la forma del cayado, el arte de hacer el queso y
manteca, y otras muchas menudencias más y menos importantes» (pp.327-328). Afora
esse caso pontual – de um realismo desvirtuado, aliás, pela evidente reminiscência
literária –, as parcas referências ao pastoreio focalizam, não os seus trabalhos ou os seus
proventos, mas sobretudo a sua funcionalidade social:
«- Aquí están -dijo Siralvo- mil ovejas del gran rabadán Paciolo que las guardaba Liardo y ahora está con Sileno. Este rebaño tiene cuatro zagales diligentes, cabaña nueva, instrumentos muy cumplidos, dehesa propria en que se apacienta y abrevaderos y corrales para él solo. Está en cargo buscar un mayoral que le gobierne, y si Alfeo le quiere tomar al suyo, en cuanto yo le pudiere descuidar, lo haré con las mismas veras que lo ofrezco» (p.285).
A situação de Siralvo sobressai por resultar de uma opção de vida: através de
Finea (p.281), ficamos a saber por que teve ensejo de ascender na escala social,
adquirindo um rebanho próprio com o “patrocínio” de Mendino (de novo, saliente-se a
inconfessada relevância das posses materiais). Tal abdicação, em prol da liberdade – de
uma genuína liberdade arcádica – e com assomos de humilde dedicação ao amo e
amigo, de novo patenteia a superioridade espiritual desta personagem, a mais
32 O anonimato destes «zagales» favorece a ilusão de um rigoroso ócio arcádico: «this magical extraction of the curse of labour is in fact achieved by a simple extraction of the existence of labourers» (Williams, 1973: p.32). 33 Mesmo uma perspectiva naturalista, longe de convidar à sua abolição, robusteceria esta ideia, porquanto «the social order is seen as a part of a wider order: what is now sometimes called a natural order, with metaphysical sanctions» (Williams, 1973: p.29).
30
convencional da novela, sob todas as ópticas34. O seu mérito alicerça-se muito mais na
excelência moral e amatória do que num poder social concreto. Na verdade, a respeito
de Siralvo tais questões nem chegam a colocar-se: dele publica a fama apenas a amizade
que desperta nos grandes e o bom acolhimento que lhe dão as damas, provas de valor
não despiciendas: «En el Henares a Albana, en el Tajo a Fílida, a otra vez que se
enamore será de Juno o Venus» (p.321).
Estimamos, pois, que as linhas supracitadas, extraídas do começo da sexta parte,
ao definirem uma hierarquia pastoril, ultrapassam o mero propósito de verosimilhança
visível em novelas anteriores, onde os rebanhos, esporadicamente mencionados,
constituem pouco mais do que um adereço cénico, e onde um “estatuto” da actividade
pastoril é vagamente referido, sem outro intento senão o de tornar credível o ócio
pastoril ou, no máximo, o de nutrir o meio envolvente de elementos rústicos
caracterizadores. No caso do Pastor de Fílida, porém, tanto ou mais do que a
verosimilhança ficcional, procura-se uma certa estabilidade ideológica, fundada na
ordem objectiva da sociedade pastoril. Assim, a ironia que a justificação oferecida por
Montalvo encerra não pertence apenas ao foro estético (ingénuo seria tornar a avaliar a
sempiterna discrepância entre a ficção e a realidade), mas também procura denunciar o
paradoxo ideológico latente nesta existência estilizada, na qual se cruzam a auto-
suficiência (que não dispensa a labuta rural) e o otium aristocrático – duas utopias já em
si não pouco exigentes35. A índole vaga da novela pastoril, não esqueçamos, torna-a
apta para albergar e debater estes produtos optimistas da mente humana.
Todavia, estes dois critérios não são ainda decisivos. Se a hierarquia assentasse
exclusivamente sobre a propriedade ou um cargo prático, revelaria um equilíbrio frágil,
atendendo a que, conforme vimos a propósito de Finea e Siralvo, possíveis são as
ascensões, por meio do mérito e do empenho, em ambos estes campos. Assim, existe
para elas um limite, ditado por outro factor mais preponderante: a linhagem, critério
mais arbitrário, mas, igualmente, mais seguro porque irrevogável. Como no Pastor de
Fílida sociabilidade e arte – hierarquia social e hierarquia estética – constituem motivos
inextrincáveis, à categorização dos pastores corresponderá uma ordem narrativa 34 A um tempo, Siralvo é herdeiro de Teócrito (cujos pastores nem são servos nem proprietários, eximindo-se, assim, às angústias quer de uma, quer de outra situação), do tópico da aurea mediocritas horaciana (que exclui os bens materiais supérfluos) e do idealismo neo-platónico (que se concentra na vertente espiritual da existência). 35 «Gálvez de Montalvo was well aware of the fact that a pastoral that reflected more closely the events and fabric of actual society tended thereby to invite comparison with the circumstances of everyday existence and thus became less, rather than more, credible than one that relied entirely on purely ideal standards» (Solé-Leris, 1980: p.120).
31
determinada, duplamente necessária, portanto. Sendo as implicações desta questão
bastante mais profundas do que as daquelas que até ao momento explorámos, adiá-la-
emos por ora, concedendo-lhe a devida atenção no capítulo subsequente.
A complexidade destes alicerces sociais permite-nos afirmar, desde já, a
originalidade do Pastor de Fílida face aos seus dois modelos de primeira ordem – a
Arcadia napolitana e a trilogia das Dianas –, no que diz respeito à projecção de uma
“comunidade pastoril”, de que, em boa verdade, oferece o primeiro exemplo sério. Isto
porque os quadros humanos e sociais apresentados por Sannazaro, dada a sua dispersão
e desconexão, mal podem insinuar uma existência pastoril conjunta36. Nas Dianas, por
seu turno, personagens e situações adquirem maior relevo, solidez e, sobretudo, um
sentido de continuidade; não obstante, a sua proliferação (que culminará na super-
povoada Arcadia de Lope de Vega) impede igualmente uma visão social agregadora:
estas comunidades pastoris são, assim, dotadas de uma falsa complexidade. Montalvo é
o primeiro novelista que, com notável êxito, subordina a feição individual das tramas
pastoris a uma circunstância social globalizante.
Uma Sociedade de Sociedades
Dedicámos a secção anterior aos critérios fundamentais que organizam a
sociedade pastoril arquitectada por Gálvez de Montalvo. Consideraremos agora algumas
outras peculiaridades dessa estrutura social. Desnecessário é sublinhar que todos os
fenómenos que observaremos estão, à partida, condicionados por aquele mesmo
escalonamento rigoroso; alguns, inclusivamente, parecem dar-lhe resposta. 36 Pouco pertinente se nos afigura o juízo de Siles Artés, segundo o qual a Arcadia apresenta «una auténtica sociedad», implicitamente dotada de «unas tradiciones y creencias consolidadas por el tiempo», e cujos pastores «veneran a Pales y a Pan, son virtuosos del canto acompañado por la zampoña y gustan de los ejercicios físicos» (1972: p.38). Tais factores de coesão depressa revelam a sua escassa eficiência, e o mesmo autor, linhas adiante, constata que neste Paraíso terreal não há sinais da existência de aldeias, núcleos familiares, rotinas fixas ou normas morais objectivas (cf. p.40); torna a denegar o dito na conclusão do seu estudo, envolvendo, de forma incompreensível, a novela de Montalvo: «las criaturas de El Pastor de Fílida, al igual que las de la Arcadia, figuran desarraigadas de una vida comunitaria normal. La mayoría de los personajes de aquélla viven en “sus cabañas”, a semejanza de los de ésta» (p.163) – ignoramos a que momentos dos textos se refere o crítico. A verdade é que no Pastor de Fílida se encontram bem definidos: um espaço geográfico e humano concreto; parentescos ou relações de estreita amizade que os suprem; rotinas quotidianas, que determinam as passadas destes pastores, não já aleatórias; e normas morais, frequentemente confundidas ou implicadas em preceitos de convívio social.
32
Num aspecto da concepção narratológica, El Pastor de Fílida aproxima-se mais
da trilogia das Dianas do que da Arcadia de Sannazaro: o conjunto total das suas
personagens subdivide-se em vários grupos mais restritos e coesos, que se reúnem em
momentos-chave da progressão diegética. Menos evidente do que na nossa novela – até
porque definido sobretudo em função do encontro entre elementos internos e externos
ao mundo pastoril –, existe desde logo nos textos fundadores um cuidado de
organização da estrutura ficcional, que passa pelo agrupamento das personagens por
classes autónomas: os pastores, os aldeões, os cortesãos e as ninfas. Pelo contrário, o
universo social, humano e, por conseguinte, ficcional do Pastor de Fílida é um só: as
praias do Tejo37. Todavia, também nele as personagens se circunscrevem em agregados
mais restritos, que não atendem somente às hierarquias acima discutidas. O
fraccionamento desta comunidade pastoril e dos episódios que nela têm lugar não é já
somente condicionado pela conjuntura ficcional e pela mútua afeição entre certos
pastores, mas, sobretudo, corresponde a uma verosímil lógica social, que conduz à
formação de agremiações sociais, menos espontâneas e mais fixas – genuínas
instituições dentro da comunidade pastoril, dotadas de sistemas normativos particulares.
Consideraremos dois exemplos, cujo interesse é redobrado pela afinidade que revelam
com a realidade espanhola coetânea do autor.
No âmbito arcádico, é sabido que o canto poético constitui um veículo de
comunhão entre os pastores. Seja em privado ou em festividades rústicas,
acompanhando um relato amoroso ou uma marcha ao sol-poente, em tom de confissão
íntima ou com o mero intuito de recrear os ouvintes, o pastor novelesco deixa correr os
seus hendecassílabos cultos ou as suas galantes coplas de arte menor. Só por ironia (e
reconhecendo no público uma excepcional vontade de condescender com o pacto
ficcional) podem os autores justapor a tais peças declarações de humilde simplicidade
pastoril, semelhantes às que se lêem no famoso proémio da Arcadia sannazariana. Por
um lado, a sinceridade é um valor supremo neste contexto e deve presidir também ao
canto poético, sendo frequente encarecer-se a franqueza de uns versos ou o tom sentido
em que são entoados, critérios capitais na sua apreciação estética. Por outro lado, não
faltam reacções de índole totalmente diferente, que valorizam o engenho dos conceitos,
37 O próprio caso de Alfeo o confirma: o seu passado biográfico é considerado apenas em função do presente, em lugar de se pensar o presente em função do passado, como parece ocorrer nas Dianas. Aqui, todo o enfoque recai sobre o processo evolutivo da personagem.
33
a adequação das imagens ou a polidez do discurso – numa palavra, o artifício –, se
necessário em detrimento da carga sentimental.
Ora, no Pastor de Fílida esta duplicidade concretiza-se com uma fina
inteligência, que atenua de algum modo a incoerência que lhe é própria. Sucede que, no
seio da comunidade pastoril do Tejo, cujos membros são todos poetas potenciais, existe
um grupo de pastores que se dedicam, em exclusivo e, diríamos, de forma
“profissional”, à música e à poesia. Carecendo de uma história individual, surgem em
cena unicamente para animar algumas celebrações colectivas. É o caso de Belisa, Sasio,
Filardo e Arsiano, dos quais se diz serem «los cuatro más aventajados en música y canto
que en las españolas riberas se hallaban», justamente por combinarem «mucho estudio,
suaves voces y discreción y donaire» (p.256). Estes cantores “por ofício” reúnem as
condições necessárias para corresponderem a qualquer desafio poético: fazer a apologia
de Fílida, por exemplo, quando, na segunda parte, sob a alçada desta notável pastora
(qual dama mecenas) se reúne uma espécie de academia literária. Na mesma reunião,
Belisa celebra o amor (pp.264-265), mas somente com o fim de corresponder ao que
dela espera o “público” de enamorados pastores, já que, conforme ela mesma declara, as
canções que interpreta «no nacen de propia ocasión» (p.264). Na sexta parte, tornamos a
comprovar a existência de uma “sociedade literária”, com aparências de academia, no
debate burlesco entre Silvano e Batto. Bastante verosimilhança há nesta pendência
poética travada entre um defensor da medida tradicional e um entusiástico italianista –
poderíamos imaginá-la entre literatos contemporâneos de Castillejo, Boscán e
Garcilaso, durando ainda no tempo de Gregório Silvestre (representado talvez pela
personagem Silvano – cf. Rennert, 1892: p.50) e no do próprio Montalvo. Trata-se
deveras de profissionais que discutem em termos puramente “científicos” a arte da
poesia, invocando autoridades greco-latinas, sem desconcertar o leitor acostumado às
convenções pastoris38.
Jaz longe o postulado da sinceridade poética, que é deixado para os cantos dos
pastores não “profissionais”39. Siralvo, sendo sem dúvidas a personagem em cujos
38 Montalvo abre, com agudeza, um espaço próprio para este tipo de elucubrações. Diferentemente faz Alonso Pérez, na sua continuação da Diana, onde a vários poemas se segue um comentário explicativo muito pouco conveniente, não só pelo manifesto auto-elogio que, amiúde, lhe está subjacente, mas, sobretudo, por arrasar o costumado tom de intimidade confessional. 39 «Moral value and linguistic simplicity are equated; the poetic theory reinforces the moral statement implicit in the world of pastoral. The tenuis avena, the slender oaten reed, becomes the guarantee of true and open virtue» (Cooper, 1977: p.143). Note-se quão subtilmente o universo arcádico se vê minado no seu alicerce mais básico – a linguagem –, que Montalvo, dando liberdade à sua veia conceptista, artificializa maximamente.
34
improvisos, cartas e lamentações versificadas mais se empenha o autor, não pertence a
esta comunidade restrita de poetas eruditos ou por ofício: assemelha-se mais ao
cortesão, que é, por conseguinte, enamorado, por conseguinte cantor e poeta. A arte da
música constitui apenas um dos seus múltiplos apanágios cortesanescos40, o que não
significa que não supere os poetas “profissionais”: de facto, é nele que Silvano e Batto
encontram um juiz para a sua contenda.
Para além do dito, esta sociedade literária tem, ainda, outro forte opositor: o
“vulgo”. Pretendendo ditar as regras do bom gosto poético, Tirsi e Arciolo, invisíveis
entidades que encarnam a crítica erudita, deparam-se com a resistência dos apreciadores
da métrica castelhana e da simplicidade de expressão, entre os quais Silvia, que
peremptoriamente declara: «para mí no quiero mejor Tirsi ni Arciolo que mi gusto»
(p.322).
No próprio seio desta sociedade pululam partidos e definem-se hierarquias,
aspecto que a morte do poeta Sasio evidencia:
«Entre las lágrimas justas de estos amigos pastores nació otra justísima ambición y codicia para heredar la lira del segundo Orfeo. Los opositores fueron Filardo y Matunto, Belisa y Arsiano […]. Pusieron por jueces al venerable Sileno, al celebrado Arciolo, al famoso Tirsi» (p.466).
Não mais a poesia se impõe como um agente de igualdade pastoril, nem no interior
desta sociedade literária, nem fora dela.
Outra “instituição” que merece alguns comentários é o que poderíamos designar
por “convento pastoril”. Habilmente, a sociedade pastoril vai-se revelando, conforme as
necessidades narrativas: o leitor só toma conhecimento da existência de mais este
agregado social quando Fílida, juntando-se a ele na quinta parte, o legitima. Gálvez de
Montalvo é o primeiro autor a introduzir na novela pastoril espanhola esta tradição, cujo
patrono mais imediato é, porventura, Boccaccio, com o seu Ninfale fiesolano41, e que
veio a ter bastante aceitação por parte dos novelistas ibéricos42. No Pastor de Fílida, os
conventos pagãos revelam uma dupla funcionalidade: por um lado, constituem uma 40 Escreve Castiglione: «io non mi contento del cortegiano s’egli non è ancor musico» (1990: p.99). No entanto, deve-se matizar um tanto este paralelismo, tendo em atenção que muito anterior aos cortesãos do quattrocento italiano é o estereótipo do pastor cantor. Na novela de Montalvo, tira-se partido de tal afinidade de valores. 41 Valerá a pena recordar ainda a história da ninfa Calisto, exarada nas Metamorfoses (II, vv.401-495). 42 Na trilogia das Dianas, pode ver-se uma alusão menos imediata ao âmbito conventual no palácio de Felicia: para tal apontam o seu isolamento, a aura de sacralidade e de pureza moral que o revestem e a castidade rigorosa das ninfas. Porém, consideramos que, por si só, esta seria uma interpretação empobrecedora, por não contemplar a herança do maravilhoso cavaleiresco e as potencialidades filosóficas do episódio.
35
ressonância mais da circunstância histórica e social vivida por Montalvo, reforçando a
eficácia de uma interpretação alusiva da novela43; concomitantemente, evocam o
universo greco-latino, onde radicam os géneros pastoris da Renascença.
Esta segmentação social convoca um novo critério: o sexo. Se os critérios
anteriores se baseiam numa lógica de poder, este associa-se sobretudo a valores
espirituais (castidade, abdicação dos bens terrenos, recolhimento), embora com
expressão ao nível do comportamento em sociedade. Ao contrário do que se verifica nas
Dianas, pastoras e pastores nem sempre convivem aqui com inteira liberdade e
confiança.
Verdade é, porém, que, dentro ainda do espírito semi-livre da pastoral clássica,
não estamos perante um convento pastoril tão inexoravelmente cerrado como aquele
que o Ninfale fiesolano e outras tradições afins nos apresentam: Diana, sua padroeira, à
semelhança do que com outras deidades pagãs acontece na novela pastoril espanhola,
apenas deixa sentir o seu influxo, mas nunca aparece em cena44. Não se impõe já o
ameaçador e feroz controlo da deusa, sendo as ninfas caçadoras do Tejo presididas pela
sua própria virtude, que não lhes autoriza o mais ligeiro excesso. Entre elas, Fílida leva,
indubitavelmente, a palma, e, tal como fora uma figura dominante no “século”, continua
a sê-lo em relação às suas novas companheiras, para quem representa, para além de um
modelo de probidade e de recato, uma conselheira sentimental (pp.438-441). No limite,
se a deusa da castidade está presente de algum modo neste “gineceu”, será através de
Fílida, que condignamente a encarna.
Também em termos físicos ou espaciais é concedida uma certa liberdade de
movimentos às ninfas, que não se encontram sob um regime de clausura estrita,
continuando a circular em alguns lugares franqueados a toda a comunidade pastoril. As
analogias com a realidade conventual, correlata desta “irmandade” de pastoras, são
notórias. Também aqui as ninfas têm permissão para tratar com elementos externos em
certas solenidades de índole religiosa, tais como a festa no templo de Diana. E não
somente nestas ocasiões estão visíveis e comunicáveis: inopinadamente, Siralvo
encontra a sem par Fílida na floresta, e, se não lhe é dado manter com ela um longo
diálogo, encontra uma diligente intermediária em Florela, que, à semelhança das 43 Apontamos outros sugestivos paralelismos: os painéis com os trabalhos de Héracles no templo de Pã como alegoria das representações da vida de Cristo (pp.328-331), e as diferentes “ordens” de ninfas (do rio, do monte e das selvas) como alusão às distintas ordens religiosas (p.401). 44 Conhecidas são as celeumas suscitadas, nos séculos XVI e XVII, pelo generalizado recurso à mitologia pagã como ornamento estético. O mesmo problema ideológico poderá estar na base desta rarefacção de alusões pagãs na literatura pastoril deste período.
36
donzelas que seguiam os destinos das suas amas aristocráticas, a acompanhara aquando
do seu ingresso na comunidade das ninfas. Qual colóquio travado na grade, Siralvo pede
notícias da sua dama e Florela vai entretendo os seus amores com este exíguo
mantimento.
Algumas interdições, porém, condicionam o contacto entre as ninfas e os
pastores, ou não faria grande sentido a sua constituição como colectividade. São
sobretudo de ordem espacial e, curiosamente, recaem tanto sobre elas como sobre os
demais membros da sociedade pastoril. A fronteira invisível entre os dois mundos é
traçada a céu aberto, entre a aldeia e suas cercanias (onde se situa o templo de Diana) e
a floresta desabitada, onde caçam as ninfas e onde não entram pastores, com excepção
de Siralvo, que se interna em terreno sagrado para chorar as suas penas de amor. É
significativa, a este respeito, a despedida das ninfas no final da solenidade:
«las ninfas [...] oyeran señal en el templo que las forzaba a ir allá, y ansí con gran amor, despedidas de los pastores por no serles permitido ir esta vez con ellas, [...] volvieran a visitar a la casta diosa» (p.415).
Espaço e tempo restringem, portanto, a sociabilização das sequazes de Diana, uma vez
que, interiormente, o jugo é aceite com modesta brandura: entre a pureza amorosa das
pastoras e a pureza religiosa das ninfas-monjas não há senão um passo. Adiante
tornaremos a observar este equilíbrio entre virtude inata e restrição externa.
A análise da sociedade pastoril do Tejo ficaria incompleta caso, detendo-nos em
cada um dos seus núcleos, não considerássemos os momentos em que são apresentados
como um todo, orquestrado com surpreendente eficiência. Nas Dianas, a peregrinação
ao palácio de Felicia é o pretexto comum que junta personagens portadoras de histórias
muito distintas, decorridas em meios muito específicos, quando já os seus percursos
terminaram, e o que está em causa continua a ser o passado e a experiência individual
de cada interveniente. Ora, El Pastor de Fílida opta por uma estratégia bastante
diferente: as situações de reunião social constituem os focos fundamentais da narrativa,
que só em função deles existe. Para confirmá-lo, bastará fazer o levantamento do
conteúdo de cada uma das partes constituintes da novela. A par de alguns gestos
isolados de pastores ou de grupos de pastores, sobressaem os grandes eventos que
marcam a vida social na aldeia: cerimónias fúnebres (partes primeira e segunda),
37
competições atléticas (segunda parte), visitas a templos e solenidades religiosas (partes
quarta e quinta) ou bodas (sétima parte). Estes acontecimentos são responsáveis ainda
pelos episódios secundários que ocorrem enquanto os pastores se encaminham para os
lugares de reunião, quando, já no seu destino, reencontram outros pastores e conferem
um sentido pessoal ao momento, ou durante o regresso. Poderia dizer-se que Montalvo
noveliza a Arcadia sannazariana, na medida em que, recuperando muitos dos seus
quadros, cria entre eles uma continuidade narrativa, que muito deve à fixação das
personagens intervenientes, mas também ao relevo concedido à sua feição social e não
já meramente poética. Não obstante, como assinala Reyes Cano, a nossa novela partilha
com a de Sannazaro um «desinterés por la acción» (1973: p.31), que aqui se revela
crucial para a consolidação do “projecto pastoril”.
Este “calendário social” substitui de forma curiosa o calendário rústico ditado
pelas sazões do ano e pelos imperativos da labuta rural, de que os Trabalhos e Dias de
Hesíodo e as Geórgicas virgilianas constituem os exemplos mais conhecidos.
Especialmente ociosos, estes pastores governam-se de acordo com uma rotina social,
menos contínua do que a natural45, porém igualmente dotada dos seus ciclos e de um
extremo dinamismo46. No seu conceito, se não nas suas concretizações (cujos modelos
se encontram na bucólica clássica), estes rituais de socialização acusam reminiscências
da vida na corte e nos grandes centros urbanos.
Se, convencionalmente, o encontro entre pastores tem como efeito premeditado
a descoberta da sua igualdade essencial (revelada no amor, na poesia, na tristeza, na
deambulação, no trabalho, entre múltiplos outros factores), no Pastor de Fílida as
reuniões sociais reforçam a consciência, no leitor e nas personagens, de uma
intransponível disparidade entre classes. Recorde-se a cerimónia fúnebre em memória
de Elisa, única herdeira do ilustre Sileno: conquanto toda a comunidade pastoril seja
convocada, nem todos são distinguidos com o privilégio de pronunciar a sua pena, mas
somente Alfesibeo e Galafrón discursam, permanecendo na penumbra os restantes
assistentes. Já nos jogos que se seguem, é a vez de os outros pastores exibirem a sua
destreza e força, enquanto Sileno e os seus se entretêm, observando-os desde o alto da
sua dignidade. Quanto à comemoração das bodas de Alfeo e Andria, Orindo e Finea, e
Arsiano e Silvera, é significativo que um evento de carácter particular depressa se 45 Como é costume, a selecção cronológica recai sobre os meses amenos, que propiciam os encontros pastoris ao ar livre, em viçosos loci amoeni. 46 Num e noutro caso, é pertinente afirmar-se que «[l]es activités des bergers sont rangées dans un ordre bien défini de mouvements, un code rituel, une choréographie» (Vecce, 2006: p.77).
38
converta num pretexto de reencontro final de todas as personagens, de grande utilidade
para o equilíbrio narrativo. Sileno torna a assumir o controlo da sociedade pastoril ali
reunida47, dispondo estrategicamente a assistência e corroborando a ideia (familiar ao
século XVI e seguintes) de que «[a] todas as reuniões de seres humanos corresponde
uma certa organização do espaço que lhes permite organizarem-se na totalidade ou por
unidades parcelares» (Elias, 1987: p.20):
«Sileno [...] mandó hacer tres enramadas, una para él y los precios, otra para las ninfas y otra para las pastoras. [...] A cada cual puso Sileno en su sitio y tomando el cartel subió al suyo con Mendino y Cardenio y los festejados Alfeo, Arsiano y Orindo» (p.473).
Adivinha-se que aos demais pastores, não mencionados, tenha sido guardado o espaço
sobrante, sem regalias de assento nem de sombra... Nem sempre, portanto, «en el juego
todos son yguales» (Mercader, 1907: p.43).
Impossível é não ceder à tentação de cotejar estas festividades enganosamente
rústicas com certos episódios do quotidiano espanhol de quinhentos, que davam
igualmente azo a encontros entre as distintas classes sociais: procissões, jogos de canas
e corridas de touros, representações teatrais (excepto as cortesãs, obviamente), bem
como uma série de ocasiões solenes relacionadas com a vida pública e política do reino,
intensamente vividas por toda a população48. Nestas situações, plebe, fidalguia, clero e
realeza imiscuíam-se sem por isso verem comprometidos os seus estatutos específicos;
os pequenos gozavam da relativa proximidade física dos grandes, sem sonharem (sem
lhes ser dada razão para sonharem) com outra sorte de aproximação. Semelhante “pacto
social” – se nos é permitido empregar tão livremente a expressão – é visível nos
encontros comunitários que pautam El Pastor de Fílida, marcando a decisiva cisão entre
o universo pastoril que nele se projecta e os das tradições em que Montalvo bebe de
forma selectiva. Pois que os pastores do Tejo de bom grado assumem esta nova e 47 Sileno impõe-se como figura dominante na comunidade pastoril, em termos de poder e influência social. Para além de ser o patriarca da “casa” principal, é a seu cargo que fica a organização de várias solenidades colectivas, às quais, por vezes, assiste como juiz, premiando os participantes. É também sob a sua alçada que se celebram ocasiões importantes na vida individual de alguns pastores, tais como as três uniões que rematam a novela. Enfim, não há que esquecer que, na quinta parte, é o mesmo Sileno quem profere a oração primaveril a Diana, aliando assim a autoridade religiosa ao poder social que desde o começo lhe era reconhecido. 48 Compare-se esta passagem com o seguinte excerto da Fastigimia, onde Tomé Pinheiro da Veiga descreve a organização da assistência nos festejos realizados em Valladolid pelo nascimento de Filipe IV: «as janellas quazi todas se tomaram para os Conselheiros: deram os arcos de sima e os de baixo do concistorio aos Inglezes principaes, e aos demais deram os tablados […], e as janellas quazi todas se largam a mulheres […]. Quando El-Rey vê as festas, tem seu docel, e nenhuma outra pessoa o pode ter»; da populaça «em pinha», ocupavam os tablados aqueles que os podiam alquilar, e os mais cobriam os «tilhados» (p.118).
39
inopinada situação, não nos cabe senão aprová-la também e fazer da diferença um
salutar motivo de reflexão. Adiante, pois.
40
CAPÍTULO III
«DEBAJO DEL SAYAL HAY AL»
As Relações Familiares
O aspecto que, na sequência das reflexões que temos vindo a tecer, agora se
propõe como objecto de alguma atenção constitui, desde logo, uma novidade mais que
distingue a nossa novela das anteriores.
A tradição bucólica clássica não concede particular importância à “célula social”
que a família representa. Isto porque, nela, não existe lugar para a representação dos
dois pólos ideológicos habitualmente associados à noção de família: o matrimónio e a
filiação (cf. Poggioli, 1975: pp.56-58) – dois compromissos que impiedosamente
aboliriam a beata liberdade pastoril. Previsivelmente, nas novelas pastoris espanholas
que se mantêm mais fiéis ao ideal arcádico, entre as quais a trilogia fundadora das
Dianas49, a família e as suas figurações encontram-se igualmente diluídas. Nelas, toda a
sociedade pastoril se oferece como uma ampla família, para tal contribuindo o
isolamento destas Arcádias, a existência de um código moral e de um padrão
sentimental comuns, e, enfim, uma certa igualdade fraterna entre pastores. Se as
personagens tendem a formar grupos mais restritos dentro da comunidade, fazem-no
como resposta a um impulso natural que move o indivíduo a procurar os seus
semelhantes – que o são a um nível vivencial, não por afinidade de sangue –, e porque,
49 Apenas em parte, exceptue-se a Diana enamorada, onde o matrimónio é encarado como a «meta final» do amor (Egido, 1987: p.395), embora marque o fim da narrativa. À medida que nos adentramos pelo século XVII, chega mesmo a impor-se como um topos obrigatório do género, equiparável, por exemplo, ao enaltecimento da vida campesina. Naturalmente, esta insistência radica em circunstâncias sociais e espirituais da história espanhola na hora crítica que foi a da transição deste século para o seguinte. Veja-se Milhou-Roudié (1995).
41
sem essa categorização mínima, seria incomportável manejar a complexa e abundante
matéria novelesca habitualmente abrangida por estes textos. Considere-se ainda que o
conceito de linhagem, para o qual conflui, nesta época, o de família, acarreta uma
impressão de temporalidade, incompatível com a essência estática, acrónica, quase
mítica destes universos pastoris.
No Pastor de Fílida, contudo, esse conceito de linhagem não só é assumido,
como se revela determinante na constituição de um tecido social substancialmente mais
complexo do que aquele com o qual nos confrontamos nas Dianas, herdeiro já de
princípios distintos, tal como temos verificado.
É o critério da linhagem que impõe uma distinção de primeira ordem entre os
pastores naturais do Tejo. Sugerimos já que algumas personagens constituem uma
espécie de “elite” pastoril, sobretudo aquelas que gravitam em torno do “patriarca”
Sileno, tanto por afinidade de sangue – Elisa, sua filha, Galafrón, Barcino, Mireno e
Liardo, seus «deudos» (p.217) –, como na condição de “apaniguados” – Mendino,
Castalio e Cardenio. Estes últimos não são, evidentemente, seleccionados de forma
aleatória: se alcançam esse estatuto privilegiado é porque a pertença a uma família
ilustre os credita – uma família aristocrata, apetecer-nos-ia dizer, se tal termo não
agredisse demasiado a noção de mundo arcádico a que os clássicos nos acostumaram.
Para que este código social seja eficaz, cumpre, ainda, que a família seja reconhecível,
ao menos pelos pastores oriundos da mesma “classe”, inclusivamente noutros âmbitos
pastoris50. É o cumprimento destes requisitos que permite a circulação de pastores
“nobres” entre aldeias, sem que o seu prestígio saia minimamente lesado, tal como
sucede com Mendino, que é acolhido pela «mayor nobleza de la pastoría» (p.214),
sendo-lhe logo reconhecido, apesar de estrangeiro, um lugar proeminente na
comunidade, junto de Sileno e dos seus51. Os elementos identificadores destas famílias
não escamoteiam o seu realismo: algum avoengo especialmente célebre («nieto del gran
Rabadán Mendiano» – p.213); o local de origem, que, comummente, acompanha os
títulos nobiliários («Mis bisabuelos en la [ribera] de Adaja apacentaron» – p.307); e o
brasão de armas («las alas de un águila de plata sobre color de cielo» – p.307). Fílida,
que, todavia, mantém em relação à comunidade, como em relação a tudo, um certo 50 O aristocrata «efectivamente só faz parte da “boa sociedade” na medida em que os outros estão convencidos disso, o consideram como um dos seus» (Elias, 1987: p.69). 51 Ingénuo nos parece o juízo emitido por B. Damiani a respeito de um mundo social que é, enfim, aquele que El Pastor de Fílida pinta: «As distinction of birth and wealth ceased to confer any special privilege on the individual in the Renaissance, society judged men and women by their personal qualities, among them “discreción”» (1983: pp.33-34).
42
distanciamento que a deifica, também se encontra neste plano social pelo seu parentesco
com o rico Vandalio; demais, é possível que a tal se refira Siralvo quando, socorrendo-
se embora de um chavão poético, exalta orgulhosamente o «lugar alto» a onde «volaron
[sus] pensamientos» (p.308)52, e ainda Silvia, ao emparelhar Fílida a Juno e Vénus ou,
mais prosaicamente, a uma desconhecida Albana do Henares (p.321).
Deslocadas do âmbito ideológico em que são aqui inseridas (ou, pelo contrário,
envolvidas num âmbito ideológico que não parece coadunar-se com elas), estas
personagens encontram-se, todavia, no centro do universo ficcional do Pastor de Fílida.
Os amores exemplares entre Siralvo e Fílida e entre Mendino e Elisa constituem os
eixos da obra, e Montalvo, ao conceber os protagonistas da sua novela, parece ter
seguido a lição das novelas sentimentais, de cavalarias e de aventuras, destacando-os,
não só pela excelência interior, mas também pela condição social53.
À parte destes pastores, declarados “duplos” da fidalguia espanhola com a qual
Montalvo tratou, sobra uma “massa” social de personagens, que somente não destoam
de forma flagrante do universo “aristocrático” porque ele próprio se presta já a
profundas ambiguidades, porventura atenuadas por virtude da repetição. O seu estatuto
na comunidade nunca é explicitado com grande rigor, embora indirectamente se insista
na igualdade de uns perante os outros e, sobretudo, de todos perante a “classe”
dominante. Entre estas personagens, incluem-se, indiferenciadamente, naturais e
estrangeiros, dotados dos mesmos costumes e deveres: todos pertencem – tal como a
“fidalguia” pastoril, mas noutro sentido – a um conjunto universal, dotado de códigos
próprios: é por este motivo que Finea se desloca da montanha para as margens do Tejo,
onde, constituindo um pequeno rebanho, reconstrói a sua vida, como se ali houvesse
visto pela vez primeira a luz do dia (p.281). Na verdade, se estas figuras pastoris não
parecem ter um lugar determinado na estrutura hierárquica, é justamente por se
encontrarem à margem dela, aproximando-se, pois, muito mais do estereótipo pastoril
estabelecido pelos autores clássicos e em parte reforçado, neste aspecto, pelas anteriores
novelas pastoris espanholas. A estes pastores é aplicável o conceito de família global a
52 Mayans y Siscar (1792) faz uma leitura semelhante deste segmento. Admite uma desigualdade social entre Siralvo e a sua pastora, baseando-se quer na identidade real de Montalvo, cuja condição de «gentilhombre» crê estar subentendida nos termos «humilde pastor» (1792: p.XVIII), quer na cautelosa conduta que a personagem Siralvo adopta sempre que procura aproximar-se da sua bem amada e muito resguardada Fílida (pp.XXI-XXII). 53 Por outro lado, não é pouco significativo que Castiglione projecte o mesmo ideal para o perfeito cortesão, que, para além das prendas pessoais, conviria que tivesse uma ascendência aristocrata: «Voglio adunque che questo nostro cortegiano sia nato nobile e di generosa famiglia» (Castiglione, 1990: p.39). Ver Martínez San Juan (2003), nomeadamente as pp.95-97.
43
que atrás aludíamos, até porque, para além de se ignorar em absoluto a sua ascendência,
não existe sequer, entre elas, qualquer relação de parentesco, alicerçando-se todas as
afinidades no princípio tradicional da semelhança de caracteres e de interesses, ao qual
regressaremos no momento oportuno. Por outro lado, desvinculados de tudo o que não
seja o amor presente (ao qual se restringe toda a sua história de vida, que nem reflecte
um passado nem anuncia um futuro), preservam aquela irrealidade vaga, acrónica e a-
histórica de entidades puramente literárias, traço distintivo da personagem pastoril típica
que impregna a literatura subordinada ao vastíssimo tema, ou, antes, ao «state of mind»
que a pastoral representa, como tão afortunadamente arrisca Heninger (1961: p.257).
Família e Sociedade
Regressemos, porém, ao caso dos “pastores aristocratas”. A pertença a um
estrato social superior traduz-se, estamos habituados a pensar, em algumas regalias;
neste universo ficcional, quase perfeito para todas as personagens, essas regalias
reduzem-se a uma só, não isenta, aliás, de uma subtil ironia: o protagonismo.
Igualmente, presume-se que este estatuto acarrete certas obrigações irrevogáveis. De
tais questões ocupar-nos-emos nesta derradeira secção do presente capítulo.
É certo que todas as comunidades pastoris literárias, desde Teócrito até
Montemayor e seus seguidores, são dotadas de códigos concretos que permitem ao
leitor identificar o universo ficcional em que se integram. Por exemplo, nas bucólicas
clássicas espera-se que o pastor talentoso aceda aos pedidos dos seus companheiros,
exercendo a sua arte para os entreter e aliviar a dureza das labutas rurais; por seu lado,
os companheiros (muitas vezes um só – o suficiente para constituir um “agregado”
pastoril e humano) deverão compensar a sua gentileza com um troféu generoso, já que a
música e o canto constituem o requinte supremo da existência. Já em qualquer uma das
Dianas, é muito significativa a importância que se atribui à partilha de experiências de
vida, cortesia que se supõe ser mútua, como adiante discutiremos. Sucede, não obstante,
que estes procedimentos estereotipados, para além de terem como desígnio primordial a
aproximação humana entre pastores, respondem a uma necessidade narrativa ou poética
44
imediata, visto que asseguram um pretexto para o desenvolvimento novelesco da obra
ou para as indispensáveis expansões líricas.
Ora, também o universo pastoril da novela de Gálvez de Montalvo absorve, à
sua maneira, estes códigos, como se pode confirmar em vários momentos. No entanto, a
novidade da obra consiste na assimilação de certas pragmáticas que, desprovidas de
funcionalidades narrativas primárias, põem em relevo a afinidade entre este âmbito
ficcional e a realidade histórico-social da Espanha quinhentista, que abertamente se
pretende retratar e, sobretudo, idealizar, resultando não já numa aproximação, mas num
distanciamento entre certas personagens de elite face às restantes. Estes padrões
comportamentais não se fundam no princípio da igualdade entre os indivíduos:
sublinham uma diferença hereditária que, assegurada à partida pelo nascimento (factor
acidental, tal como vários escritores e pensadores da época reconhecem54), deve ter
continuidade em cada gesto, em cada palavra, em cada atitude e decisão destas
personagens excepcionais.
Tais condicionantes, restringindo o campo de actuação, estilhaçam a utopia
clássica da liberdade hedonista, o que, de resto, não constitui forçosamente um
paradoxo, já que, conforme vimos, ao lidar com este universo ficcional, há que adaptar
o raciocínio a dois pólos ideológicos radicalmente opostos. Assim, Elisa e Fílida, as
duas pastoras que encarnam a “aristocracia” feminina, são constrangidas a manter um
recato rigoroso, o que limita substancialmente a frequência das suas aparições, embora
estejam quase sempre presentes através de Mendino e Siralvo, respectivamente, os
quais, sob uma perspectiva masculina, expõem o rol das suas prendas e virtudes ao
leitor55. Note-se que os louvores tecidos a estas donzelas paradigmáticas abarcam,
invariavelmente, a rectidão da sua conduta, onde reluz a excelência moral dos espíritos:
se Elisa é «de maduro juicio, amada de muchos, mas de ninguno pagada» (p.214), Fílida
é dotada de um «entendimiento […] de varón muy maduro y muy probado» (p.299). A
própria formosura destas pastoras, que supera as das demais figuras femininas, é indício
quer da sua superioridade, quer da virtude que, por tradição, a acompanha56.
54 Entre os quais Juan Huarte: «El necio [...] se ha de contar en el número de los brutos animales, [...], puesto caso que [...] sea [...] bien nacido, y en dignidad Rey o Emperador» (Huarte de San Juan, 1948: p.73). 55 Das representações da mulher «a través del prisma del neoplatonismo», que redunda menos na sua dignificação do que na do seu amante, bem como das Arcádias enquanto universos predominantemente masculinos, ocupa-se C. Castillo Martínez (2009b). 56 Sagazmente observa A. Cirurgião: «a beleza é apanágio de toda a mulher. Convém, porém, notar que existe uma hierarquia na beleza feminina, hierarquia que é universalmente aceite. […] [A] mulher bela é por natureza boa e virtuosa, ou, pelo menos, a sociedade exige que assim seja» (1968: p.402a; p.406a).
45
Elisa dá-se a ver somente aos pastores da sua classe: na primeira parte da obra,
podemos encontrá-la numa reunião lúdica onde participam igualmente Filis, Clori,
Mendino, Galafrón e Castalio, pastores que, sabemos já, pertencem ao mesmo círculo
social. Elisa assiste, em silêncio, às competições poéticas entre os pastores seus pares,
sem se pronunciar, muito menos quando, chegando a vez de Mendino, nitidamente o
canto lhe diz respeito. Então, por muito enamorada que se sinta, não é necessário
recordar-lhe os seus deveres: instintivamente, dissimula, não concedendo nunca maior
atenção a nenhum dos convivas do que aos demais57. Por outro lado, ciente de que de si
depende, mais do que a sua reputação em particular, a nomeada de toda a sua família na
aldeia do Tejo e, porventura, também fora dela, conduz com a máxima prudência os
seus amores com o «nieto del gran Rabadán Mendiano»: é a pastora quem toma a
decisão de enganar habilidosamente Galafrón e Filis (p.223) e quem determina os
momentos em que podem encontrar-se com segredo, valor supremo para qualquer
cortesão (p.228)58. Não é pouco curioso que os amantes, iguais no plano afectivo e
social, encarem com receio a possibilidade de uma ligeira incúria vir a revelar os seus
amores, legítimos em todos os aspectos. Sucede que, se no caso dos pastores vulgares o
amor sobeja para autorizar a união entre dois seres, quando de pastores aristocratas se
trata não basta o amor acompanhado de todas as excelências morais e, ainda, de uma
impoluta nobreza de sangue, atendendo a que, em última instância, não está já em
questão o destino de dois indivíduos, mas sim o de duas linhagens. Visto que o amor se
nutre de esperanças mas não de esperas, Mendino e Elisa engendram esta arriscada
estratégia para poderem gozar, dentro dos limites da honestidade e da «limpieza», os
seus amores, antes de qualquer contrato matrimonial, sempre incerto e que, demais, não
lhes compete decidir, nem sequer propor. No capítulo final, reservaremos um espaço
para as questões matrimoniais.
Fílida, por seu turno, é a mais avisada e honesta guardiã da sua própria virtude,
pelo que dispensa o controlo familiar e social que envolve a filha de Sireno. Ignoramos
57 A jovem obedece a um preceito cortesão fundamental, assinalado por Castiglione: a dissimulação. Corresponde, concretamente, a uma «mediocrità difficile» (Castiglione, 1990: p.266), que exige que a dama seja «circunspetta» e tenha «riguardo di non dar occasion che di sé si dica male» (p.265), e, ao mesmo tempo, que evite «esser tanto ritrosa e mostrar tanto d’aborrire e le compagnie e i ragionamenti ancor un poco lascivi, che ritrovandovisi se ne levi» (p.266-267). Os aspectos que concernem às regras de conduta cortesã observadas pelas personagens do Pastor de Fílida são informada e abundantemente tratados por Martínez San Juan (cf. 2003: pp.93-204). 58 «Gli amori de’ quali la fama è ministra, son assai pericolosi di far che l’omo sai mostrato a dito; e però chi ha da caminar per questa strada cautamente, bisogna che dimostri aver nell’animo molto minor foco che non ha» (Castiglione, 1990: p.348).
46
quase tudo o que à sua família diz respeito, com excepção da nobreza. A sua probidade,
de resto, é mais sólida, na medida em que corresponde mais a um tributo à virtude em si
mesma do que à honra familiar. Por tal motivo, a conduta desta pastora revela-se mais
rigorosa ainda, transcendendo a mera cautela, na qual confiava Elisa, e fundando-se
numa total pureza espiritual. Siralvo teria, assim, motivos para ser um amante bem mais
infeliz do que Mendino, se a sua própria perfeição não se encontrasse à altura da da
amada, já que escassíssimos são os encontros amorosos a que assiste: um nocturno, na
terceira parte, um nos jardins do templo de Pã, na quarta parte, e, enfim, um último, na
quinta parte, nas selvas onde Fílida, já sequaz da filha de Latona, se entretém a caçar.
Merece ser salientado que, apesar de se dizer da pastora que «no se esquivaba [...] de
oírle, ni de entender que la amaba» (p.230), a verdade é que, com excepção do segundo
momento referido (menos inconveniente graças à presença de outros pastores), Siralvo
mal chega a vislumbrar e a comunicar directamente com a sua amada ou não o faz de
todo, dirigindo, amiúde, os seus requebros a Florela, confidente dos amantes, e pedindo-
lhe notícias do estado dos sentimentos de Fílida59. Não deixa, pois, de surpreender o
facto de a mais formosa, discreta e recatada pastora da aldeia, mais tarde consagrada a
Diana por «no haber hombre que la merezca» (p.321), tratar mais livremente do que
Elisa com os restantes pastores, entre os quais, todavia, é sempre reverenciada como
superior. Recorde-se, a este propósito, na quarta parte, a já aludida sessão de “academia
literária”. Visivelmente, esta personagem feminina é alvo de uma idealização
exacerbada, pelo que qualquer observação que recorra ao seu exemplo revelará sempre
alguma fragilidade60.
Os austeros preceitos de convivência social determinam, portanto, não somente
as ocasiões em que é apropriado mostrar-se, mas ainda os indivíduos com quem se pode
lidar sem comprometer o estatuto social, bem como o modo adequado de o fazer. Não é 59 No entender de Siles Artés, Fílida «no corresponde» ao amor de Siralvo «con sentimientos de la misma altura […], no figura en la trama como mujer enamorada» (1972: p.126). Primeiramente, a superioridade social que esta pastora está consciente de deter é em larga medida responsável pelo recato honesto que, não favorecendo grandes expansões afectivas, é o que, acima de tudo, a torna amável aos olhos de Siralvo. É algo arriscado especular acerca da intimidade de personagens das quais, deliberadamente, apenas a superfície se dá a conhecer, seja porque representam meros estereótipos literários, seja porque toda a sua essência se concentra nisso mesmo: num relance de ideal. Para além disto, o crítico parece equivocar-se quanto ao âmbito a que se reportam as suas considerações: Fílida, mais “platonizada” ainda do que a maioria das pastoras novelescas, não emparelha com Mme Bovary, mas antes com Beatrice e Laura – em última instância, o seu supremo acto de amor é ser amada. 60 «De alguna forma, Fílida constituye un compendio sustancial del bien deseado por el hombre» (Martínez San Juan, 2003: p.133). Secundamos, e com menores hesitações ainda, tal asserção, aliás fortalecida pelos comentários do protagonista masculino, suposto “duplo” literário do autor e movido, portanto, pelos mesmos objectivos: «- Un corazón de hombre -dijo Siralvo- con que la amo, imposibilitado a pagar deuda tan divina» (p.294).
47
pouco relevante o facto de tais códigos visarem sobretudo a conduta feminina61, já que
Mendino, o pastor aristocrata que conhecemos melhor, e Siralvo, o “intermediário”
social, gozam de liberdade para conviver com pastores de todas as classes; Mendino
chega, inclusivamente, a entregar-se aos amores de várias pastoras, alguns anos após a
morte de Elisa, o que leva as ninfas a lastimarem a mudável condição de «todos los
hombres» (p.440), como em resposta às censuras de que o seu sexo foi sendo alvo desde
os tempos de Adão.
Importa ter presente que são as personagens pertencentes a esta “elite” pastoril
bastante realista as que têm dado que pensar aos críticos e historiadores na hora de
identificar as personalidades históricas implicadas nesta “mitificação” artística de uma
corte toledana62. Quanto às demais, não se verifica qualquer esforço nesse sentido, o
que sublinha o facto de umas e outras possuírem naturezas manifestamente distintas.
Pelo contrário, para um pastor enamorado, qualquer hora é a mais aprazada para
procurar e conversar com a sua amada, desde que o amor – única entidade a quem se
encontra sujeito – o instigue nesse sentido. A presença de outros pastores não inibe os
amantes nem compromete a sua honestidade nem a do ser amado, até porque todos,
sentindo ou tendo sentido no passado os efeitos das mesmas paixões, se compadecem e
se compreendem mutuamente. São mesmo permitidos os galanteios públicos, tais como
as serenatas ou os cantos amorosos entoados em reuniões pastoris. Na verdade,
dissimular o amor resultaria paradoxal, dado que os apaixonados são os primeiros a
descobrir, sem embaraço, todos os seus pormenores a qualquer outro pastor que se
disponha a escutá-los, conforme aprofundaremos no devido lugar. Para esta liberdade
amorosa, inerente à utopia clássica e novamente enaltecida, embora com restrições e
outra intenção, em algumas novelas pastoris dos Siglos de Oro, muito contribui a
ausência de vinculações a grupos familiares, o que, como vimos, acarreta
responsabilidades e condiciona o olhar dos outros e sobre os outros. Em suma, a
reputação e a experiência terminam no próprio indivíduo e devem ser avaliadas em si
mesmas, não pela eventual correspondência a certos padrões exteriores. Da mesma
liberdade de acção e de sentimentos usufruem as personagens pastoris (as efectivamente
pastoris) do Pastor de Fílida, entre as quais não há indício de qualquer laço familiar e 61 «L’exaltation de la dame n’est qu’un subtil mécanisme d’exclusion qui la confine dans un rôle aimable où son regard prend le pas sur sa parole» (Cozar, 1995: p.121). 62 Desde Mayáns y Siscar, no século XVIII, até aos entusiásticos Rodríguez Marín e Alonso Gamo, no século XX, os leitores eruditos do Pastor de Fílida têm empenhado não menos esforços imaginativos do que investigações históricas para descortinar as identidades reais das personagens desta novela. Veja-se Martínez San Juan (2001: p.116, nota 5).
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de cujas origens não temos o mais leve sinal. Filena é uma figura iluminante neste
sentido; dela diz Pradelio: «aunque moza y poco cursada en esto, es de tan claro
entendimiento y de bondad tan natural, que lo que contigo[, Filardo,] hizo y conmigo
hace, sólo le sale de una condición afable y llana con que generalmente trata sus
amigos» (p.315). Ora, tais procedimentos, que seriam maximamente reprováveis em
Elisa ou em Fílida, são, numa pastora, olhados com condescendência e até com certa
bonomia por outra personagem da sua classe, que, por sinal, não é menos do que o seu
amante.
Cumpre dedicar ainda algum espaço na presente reflexão às personagens de
Alfeo e Andria, que são dotadas de uma grande complexidade, habilmente disfarçada
sob o traje rústico. Sendo declaradamente cortesãos (Alfeo confessa-o na história de
vida que partilha com Siralvo, na terceira parte) e reconhecidos como tal no âmbito
pastoril (recorde-se que é a pensar nos seus gostos refinados que, no desfecho da obra,
Sireno organiza a simulação de um torneio), todavia confundem-se, com uma espantosa
naturalidade, com os pastores vulgares, desde a hora em que pisam as areias do Tejo. O
que parece inconcebível para os pastores do círculo de Sireno é aceite e mesmo
desejado por estes jovens atormentados, algo que fica comprovado pelo facto de
entrarem em cena já devidamente “metamorfoseados”: quando Alfeo surge, «[a]sí como
iba trocada su fortuna, así lo iba su traje, camisa cruda llevaba y sayo pardo vaquero,
caperuza de faldas y calzón de lienzo, polaina tosca y zapato grueso» (p.246); Andria,
que, para consumar a sua transformação, altera até o seu nome, é por Siralvo de
imediato identificada como habitante do mundo pastoril, ainda que não saiba determinar
«si de pastor o de pastora» (p.376) se tratava. O seu estatuto de aprendizes do amor
pode explicar razoavelmente esta situação. O percurso de Alfeo e de Andria, ao incutir-
lhes uma sabedoria amorosa que, enquanto moços inexperientes, não possuíam, ensina-
lhes o seu lugar na sociedade. Visivelmente, o descontrolo passional não é compatível
com o estatuto e as funções do cortesão, nem com as obrigações que o ligam aos seus
amigos e parentes. A triste experiência de Alfeo comprova-o:
«Retiréme de mis amigos y deudos; dejé la caza y los libros; fundé todo mi deleite en los papeles de Andria, y en visitar su calle, y en verla las horas hurtadas que ella me concedía. No fue menos lo que Andria sentía por mi, ni lo que menos me dañó, porque retirada de cuanto la solía dar contento, fue notada en su casa, y más en las ajenas, y muchos prendados de su amor, (hombres de suerte y caudal), procuraron saber la causa de su novedad. Y a pocos lances la hallaron en mí. Luego comenzaron las asechanzas, las chismes y las mentiras, cartas falsas contra Andria, amenazas contra mí» (p.305).
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A presença dos parentes de ambos os enamorados pode converter-se, nesse caso, num
obstáculo intransponível, o que comprova que o ideal de liberdade amorosa postulado
por certas formulações do mito pastoril é incompatível com o ideal de cortesania
renascentista ou de qualquer outra época. A fuga para um meio inadequado à sua
condição começa por ser fruto do carácter intempestivo das personagens, mas não
resulta, de nenhum modo, na quebra dos preceitos sociais: antes, é esse tempo de retiro
que apura e disciplina os seus espíritos, de tal modo que o regresso à corte e a
consequente separação de Alfeo e Finea são encarados com serenidade, como algo
simplesmente natural63 – o jovem cortesão revê-se, por certo, nas prudentes
considerações da serrana: «Orindo era de su misma suerte, y Alfeo no; de manera que
estándola bien casarse con Orindo, a Alfeo no le convenía casarse con ella.» (p.470). O
próprio percurso sentimental das personagens parece tender para uma harmonia perfeita
com a ordem comunitária, visto que às palavras transcritas se seguem estas: «Su
destierro había sido por desdén de Orindo, y ya venía humilde a su desculpa. Orindo era
su amor primero, Alfeo segundo» (p.470). Seguramente, Montalvo explora as
possibilidades novelescas do intrincado código social do seu tempo, mas sempre com o
intuito final de o confirmar e fortalecer64.
A infiltração, a pretexto dos deveres familiares, de tais restrições e códigos no
mundo pastoril, ao qual são intrinsecamente alheios, é sintomática do crescente
hibridismo que se vai verificando nos exemplares deste género literário65. Igualmente,
63 A propósito dos «courtly invaders» nos meios pastoris arcádicos, escreve P. Marinelli: «their flight to the country is not the terminus of their quest. It is expected of the great who rightly flee the tained world of courtly corruption that […] ultimately they will return to their own proper sphere, which is the world of Art, the city and the court, and renew and regenerate it by the knowledge they have gained» (1971: p.62). Quanto à segunda parte desta sentença, não nos é dada nenhuma certeza, visto que o texto termina antes do anunciado regresso de Alfeo e Andria à corte. Resta-nos, porém, confiar no optimismo que marca o desfecho da novela. 64 Algo semelhante fazem alguns autores de outros géneros novelescos dos Siglos de Oro, tais como Cervantes, em «Las dos doncellas», ou Lope de Vega, em «Las fortunas de Diana», dois exemplos entre numerosos que se poderiam enunciar. Tanto num caso como no outro, as protagonistas femininas imitam, de certa forma, a audácia das pastoras e das cortesãs enamoradas das novelas pastoris, saindo do seu meio e descurando as suas obrigações sociais, já para restabelecer a ordem perdida, já temendo os efeitos dessa ordem. O desenlace de ambas as peregrinações é um retorno à normalidade e uma consolidação das normas sociais e afectivas quebradas, constituindo a novela uma loquaz advertência para os perigos das transgressões. A título de curiosidade, recorde-se que, no referido texto de Lope, Diana é acolhida, a dado momento, por pastores, entre os quais vive durante um certo período oculta sob vestes rústicas masculinas, reunindo, portanto, vários elementos novelescos caros ao género do qual, no presente trabalho, nos ocupamos. 65 Não será, todavia, o hibridismo uma das peculiaridades distintivas deste género literário, observável desde a primeira Diana? Porventura, o que diferencia, em termos de qualidade, estes textos, é a habilidade e o grau de consciência com que se lida com esse hibridismo, capazes de originar propostas interessantes como a que nos oferece Gálvez de Montalvo, ou, pelo contrário, ficções incoerentes e despropositadas.
50
sugere a contaminação dos inatos e puros valores que o mito da Idade de Ouro associara
a estas personagens idealizadas. O universo humano e social do Pastor de Fílida
instabiliza o modelo fixado pelas Dianas; discutimos, no capítulo precedente, alguns
aspectos desta instabilidade, e continuaremos a fazê-lo nos que se seguem. A sua
consequência imediata é, pelo menos na proposta de Montalvo, a instituição de normas
estritas que passam a regular os comportamentos das personagens, uma vez que a
virtude, em alguns casos (sobretudo no dos pastores aristocratas, o que é não pouco
significativo), cessou de ser instintiva e de se bastar a si própria. Estas questões,
contudo, merecem um espaço próprio e uma mais longa ponderação – retomá-las-emos
no capítulo que agora começa.
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CAPÍTULO IV
O LOGRO DE HORÁCIO
Aspectos do Binómio Aldeia/Corte
Desde o início do nosso estudo, o binómio clássico que dá título à presente
secção foi emergindo amiúde no horizonte das nossas interpretações. Optámos por
evitá-lo até agora, porque, de outro modo, nos desviaríamos por sistema dos nossos
objectos de trabalho, para além de que este tópico implica o debate de questões
complexas, que merecem ser alvo de uma discussão mais detida num lugar próprio e
não de forma parcelar.
Longe de quebrar o fio das nossas considerações, tencionamos recolhê-las e
conduzi-las até à sua consequência derradeira: o questionamento da própria natureza
pastoril do universo que temos vindo a descrever. Em larga medida, é certo, esta será
uma interrogação retórica, havendo nós tomado como ponto de partida o elogio do cura
cervantino. Todavia, não é menos certo que um mesmo destino procurado por diferentes
sendeiros sempre se revela ligeiramente novo.
No entender de alguns autores, a Arcádia – paradigma infinitas vezes
reconfigurado – representa «the wishful dream of a happiness to be gained without
effort» (Poggioli, 1975: p.14). Outros, não negando a sua faceta idealista mas preferindo
ressaltá-la sob uma óptica distinta, mostram-se mais sensíveis ao conflito intrínseco que
a alimenta: «The pastoral world is not one of perfection, but of yearning for perfection»
(Mujica, 1986: p.18). Qualquer uma destas perspectivas é, desejavelmente, universal e
aplicável a textos desde Teócrito até Tolstoi, como procurou demonstrar Poggioli. A
segunda, contudo, para além de mais aliciante e profícua, oferece-nos uma via mais
52
directa para a análise da dicotomia Aldeia/Corte, que aqui tencionamos explorar, e cujos
termos são substituíveis, segundo o contexto literário ou ideológico, por outros –
Campo/Cidade, Natureza/Civilização, entre muitos possíveis.
Por vezes, o binómio de que nos ocupamos é reduzido, com alguma
precipitação, à relação antagónica entre Idealismo e Realidade. Todavia, após uma
reflexão fundamentada em exemplos concretos, concluímos que este não representa um
equivalente, nem sequer um corolário forçoso, da dicotomia Aldeia/Corte. Desde logo,
uma oposição tão radical trai-se a si própria, indiciando a sua artificialidade: procura
fazer-nos esquecer, por exemplo, que lidamos com dois âmbitos humanos – elemento de
proximidade inegavelmente decisivo. Demais, a constituição de cada um sustenta-se no
efeito de contraste relativamente ao outro, pelo que, para que a um sejam conferidos
traços estereotipados, cumpre que o outro os apresente também66. Por outras palavras,
se a Aldeia projecta um ideal de moralidade, de vida social e espiritual, a Corte,
enquanto seu oposto, constrói-se como protótipo, não menos desmedido e irrealista, do
mal, da desordem e da corrupção – a Babilónia poética, na qual se transfiguram
Avignon, a Índia colonial ou Madrid, conforme saem da pluma de Petrarca, Camões ou
Quevedo. Não nos deteremos, pois, no binómio Aldeia/Corte com o propósito de
inventariar as suas dissensões, já por demais conhecidas, mas antes numa tentativa de
aprofundar a inopinada permeabilidade entre estes dois mundos limítrofes.
Na literatura espanhola, o confronto entre o pacifismo de uma vida campestre
utópica e o tumulto cortesão concretiza-se desde muito cedo, e vai sofrendo mutações
em consonância com os tempos e os géneros que atravessa67. Múltiplos textos
patenteiam o virtuosismo deste topos literário e filosófico. E. Dudley (1967) estuda a
fusão entre o campo e a corte numa obra tão remota como o Siervo libre de amor, de
Rodríguez del Padrón. No teatro de Juan del Encina, as personagens rústicas revelam,
66 Alpers, explorando as potencialidades sugestivas da bucólica I de Virgílio, detecta a presença de «two versions of pastoral» (1982: p.455): uma realista (de Títiro, que vem da corte) e uma utópica (de Melibeu, constrangido a abandonar o campo). Desde os primeiros modelos do género, é a relação contrastiva entre o campo e o seu exterior (bem como a situação do sujeito face a ambos) que permite definir cada um dos âmbitos – relação que depressa se torna «inevitable by the very nature of the pastoral fiction» (Cull, 1987). 67 Blüher (1983), analisando a recepção de Séneca pelos autores espanhóis, salienta que o «heroísmo» estóico senequiano da vida retirada se vai mesclando com outras ideologias: a moralidade social, a abnegação cristã dos bens mundanos e, poderíamos aditar, o ideal neo-platónico, no caso das novelas pastoris.
53
com frequência, uma atitude receosa e hostil (nem sempre imotivada) face ao cortesão
ou ao citadino que passa, casualmente, pelo campo. A celebradíssima ode «Vida
retirada» de Fray Luis de León, já consumadamente renascentista, coloca o problema
noutros termos: num plano individual e não colectivo, espiritual e não social,
especulativo e não cómico, onde a herança clássica do Beatus ille… horaciano se
conjuga com o ideal cristão, aliança que, porventura, contribui para a larga aceitação do
ideal pastoril nos Siglos de Oro. Da autoria de Bartolomé Leonardo de Argensola
contam-se numerosas epístolas de sátira social, delatando o desconcerto da vida cortesã,
onde, pontualmente, se evoca o ditoso «siglo rudo». Se, para terminar esta acelerado
relance, recordarmos alguns sonetos de Quevedo que glosam a mesma temática (por
exemplo, o que começa «Dichoso tú, que alegre en tu cabaña»), verificamos que, neles,
o pessimismo barroco parece alastrar até envolver a própria Natureza: os ânimos estão
cansados do excesso de confiança que os seus avoengos nutriram pelo Mundo e pelo
Homem, e o retiro para o campo, decaído do seu pedestal idealista, é assumido mais
como um mal menor, um anelo de solidão resignada, do que como um ensejo de união
com Deus ou com a Natureza, sua «mayordoma»68.
Uma obra que atesta a peculiar afinidade dos espíritos castelhanos com a utopia
campestre é o tratado de Antonio de Guevara Menosprecio de Corte y Alabanza de
Aldea (1539). Note-se que a justaposição que configura este título, bem como todo o
tratado, nos remete precisamente para o que fica dito acerca da interdependência destes
dois meios. O tratado de Guevara constitui uma peça basilar na fixação da dicotomia
Aldeia/Corte nas letras e no pensamento castelhanos, constituindo uma das primeiras
obras que, na literatura dos Siglos de Oro, exploram a matéria de forma autónoma e
ambiciosamente exaustiva, não como mera convenção retórica assimilável por um sem
número de contextos. Guevara não delineia uma Arcádia. Muito distante do pastor
literário, o campesino guevariano é, simplesmente, um homem tranquilo. No
Menosprecio de Corte não há rasto de amores neo-platónicos nem de nenhuma espécie;
antes, a obra é fruto de um – se podemos dizê-lo – idealismo prático, material,
confortável, ainda que com os seus laivos de moralidade69.
Quase inesgotável é a panóplia de variantes em que se ramifica o ideal
formulado por Horácio, bem como a diversidade de outras aspirações que chegou a
68 Sobre esta concepção cervantina, veja-se A. Castro (1987: pp.156-177). 69 Atitude que já insinua certas personagens lopescas, entre as quais o conhecidíssimo Juan Labrador, de El villano en su rincón (1617).
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albergar. As excelências da vida em sociedade, o apuramento espiritual através do amor
neo-platónico e a perfeição moral são algumas dessas aspirações, que prosperaram, em
proporções muito variáveis, num género tipicamente ibérico: a novela pastoril.
A dicotomia Aldeia/Corte representa, entre os topoi identificadores deste género,
aquele que, no fundo, o justifica, dado que, postulando a primazia do universo
campesino face à dissolução cortesã, o impõe como motivo de reflexão filosófica, moral
ou meramente estética. Na Diana e na Diana enamorada, cujos autores estiveram
vinculados à sociedade cortesã valenciana, se se encontra uma «alabanza de aldea», não
são já tão nítidos os indícios de um «menosprecio de corte». Pelo contrário, faz-se sentir
uma certa superioridade das personagens cortesãs, visível no respeito que inspiram e no
tratamento especial que recebem de Felicia. A discrição e cortesia de alguns pastores
suscitam um verosímil assombro nos espíritos dos forasteiros cortesãos70, comprovando
a natural desigualdade entre os dois grupos humanos. Qualquer um deles, todavia, é
objecto de uma incontestável idealização, sobretudo o grupo pastoril, interlocutor
privilegiado dos amantes cortesãos71.
Já no livro quarto da Galatea, a abrir um diálogo entre Timbrio e Darinto, lê-se
um convencional queixume contra as vicissitudes da vida na corte, seguido de uma
apologia do trato «pastoril y humilde», reduzida às imagens clássicas estereotipadas
(Cervantes, 1961: vol.2, pp.33-34). Esta loa importa sobretudo pela refutação que
desencadeia da parte de Elicio, segundo o qual, «hay en la rústica vida […] tantos
resbaladeros y trabajos, como se encierran en la cortesana» (p.34). Na verdade, muitos
episódios da novela, a começar pela abertura numas triunfais “bodas de sangue”,
encarregam-se de o ilustrar. Esta relativização surpreendentemente realista aproxima os
dois mundos que compõem o binómio de que nos ocupamos.
Porém, entre o ciclo das Dianas e a Galatea, veio a lume uma peça fundamental
na evolução deste género polifacetado: El Pastor de Fílida, que enquadra algumas das
70 Confessa Marcelio: «Nunca pensé que la pastoril llaneza fuese bastante a formar tan avisadas razones como las tuyas en cuestión tan dificultosa como es esta. Y de aquí vengo a condenar por yerro muy reprobado decir, como muchos afirman, que en solas las ciudades y cortes está la viveza de los ingenios, pues la hallé también entre las espesuras de los bosques, y en las rústicas e inartificiosas cabañas» (Gil Polo, 1988: p.153). 71 Esta aproximação é anunciada já em certas obras de Feliciano de Silva, onde o pastor não surge isolado no seu meio. Assinala C. Baranda, a propósito da personagem pastoril da Segunda Celestina, que «Filínides sólo encuentra interlocutores apropiados en la ciudad» (1987: p.370). Em Montalvo, esta relação de dependência ocorre no sentido inverso, como atesta o caso de Alfeo. O mundo arcádico auto-suficiente não carece já de elementos forâneos que o reflictam ou questionem: é ele que, abarcando todas as modalidades sociais possíveis (campo, cidade, corte), questiona a identidade dos que trespassam as suas fronteiras.
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propostas mais interessantes no que concerne ao confronto, permeabilidades e possíveis
conciliações entre a Aldeia e a Corte – ambas perspectivadas, assinale-se desde já,
enquanto modelos literários abstractos, passíveis, portanto, de exame, questionamento e
experimentação.
Instabilidade de Charneiras
Nos capítulos precedentes, discutimos os princípios objectivos em que se funda
a sociedade pastoril do Pastor de Fílida, pondo a descoberto algumas fortes similitudes
que esta sociedade híbrida mantém com o mundo cortesão contemporâneo do próprio
autor. Naturalmente, um projecto ideológico que envolve duas mundividências muito
vincadas, cujas charneiras revelam a cada passo a sua instabilidade e indefinição, não
pode ser pouco problemático.
A fim de investigarmos até que ponto estas flutuantes relações afectam os dois
mundos convocados, concentrar-nos-emos na permeabilidade entre eles a três níveis:
material, humano e de costumes.
Em termos materiais, contam-se, no Pastor de Fílida, pelo menos dois
elementos estranhos à convenção pastoril. Um deles, de que o leitor poderia não fazer
grande conta, é, desde logo, denunciado e devidamente justificado pelo narrador, no
primeiro parágrafo da sexta parte – referimo-nos aos instrumentos de escrita de que se
servem os pastores. O argumento utilizado para dissipar este eventual ponto de conflito
é o seguinte:
«el viejo Sileno […] como vido el trabajo con que se escribía en las cortezas, invidioso de las ciudades, hizo molino en el Tajo donde convirtió el lienzo en delgado papel y de las pieles del ganado hizo el raso pergamino, y con las agallas del robre y goma del ciruelo, y la carcoma del pino, hizo la tinta y cortó las plumas de las aves, cosa a que los más pastores fácilmente se inclinaron» (p.419)
A consequência imediata deste ambicioso projecto de Sileno é a apropriação,
pelo âmbito rural, do hábito cortesão e urbano de trocar cartas (contam-se três, uma em
prosa e duas em verso), algo que não tem escassa relevância nas relações entre os
pastores, se recordarmos que Mendino aproveita este recurso para declarar a sua paixão
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a Elisa (pp.215-216), seguindo, aliás, também neste ponto, os conselhos de
Castiglione72, e que é através de outra carta furtiva que a jovem transmite ao seu amante
a possibilidade de se encontrarem (pp.225-228), comprometendo, assim, num só lance,
tanto o estrito recato cortesão, como a franqueza honesta pastoril.
Desde o instante em que o mundo urbano é conhecido na aldeia e, sobretudo,
emulado (atitude que mal se coaduna com a modéstia pastoril), eleva-se a um estatuto
superior, dando-se uma imprevista inversão de perspectivas: o campo cessa de ser a
utopia moral dos habitantes da corte e da cidade, e são, antes, os pastores que aspiram
ao conforto material que a civilização pode oferecer, confessando inviamente a
imperfeição rudimentar das suas existências. É ainda digno de nota um certo
desequilíbrio que julgamos existir nesta argumentação, visto que, detendo-se nos
instrumentos de escrita, o narrador negligencia um pormenor bastante mais insólito: o
facto de a população pastoril ser alfabetizada73. Esta aparente incúria não carece de
ironia, sobretudo se analisada no contexto de onde a extraímos: um instante de
suspensão, onde se procura legitimar a ficção pastoril, estabelecendo entre ela e o
realismo campesino uma certa concórdia. Este despiste, intencional ou não, detém o
condão de alertar o leitor para as numerosas contradições deste universo ficcional.
Outro objecto sintomático da permeabilidade da aldeia a elementos externos são
alguns instrumentos musicais, entre os quais P. Berrio Martín-Retortillo salienta a
«bandurria», as «churumbelas» e o «atabal» (1994: p.18). Os instrumentos cortesãos são
assimilados pelo mundo pastoril sem especiais prevenções da parte do narrador, que não
lhes concede um destaque semelhante ao que merece a escrita em papel e tinta,
possivelmente por se encontrarem ao nível do canto poético, convenção também
problemática no que concerne a questões de verosimilhança, mas aceite sem reservas.
Para o campo confluem igualmente, através das personagens, vivências de
índoles muito diversas, conforme, aliás, se insinuava já na trilogia das Dianas. As praias
do Tejo acolhem estrangeiros de, pelo menos, três proveniências: outros meios pastoris
paralelos (Mendino, Siralvo e Padileo); a serra, ainda uma extensão do universo rústico
(Finea e Orindo); e a corte (Alfeo e Andria).
72 «Se lo amante è tanto modesto che abbia vergogna di dirgliene, scrivaglielo» (Castiglione, 1990: p.344). 73 M. Chevalier refere-se ao século XVI como «una época en la cual la aristocracia forma la mayor parte del público de la literatura de entretenimiento» (1976: p.103); por outro lado, e com uma certa ironia no tocante ao género literário de que nos ocupamos, «[l]os que sí cómodamente pueden comprar libros y poner bibliotecas son los caballeros, los cuales suelen residir en las ciudades. Otra vez se viene confirmando el fenómeno definido más arriba: el campo se queda aparte del circuito del libro» (p.22).
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Este último fenómeno é, evidentemente, o mais significativo no âmbito da
presente reflexão, para além de ser aquele cujas repercussões no já frágil universo
pastoril são mais profundas. A fácil integração de Alfeo entre os pastores comprova que
não existe uma clivagem significativa entre os dois mundos: não só o cortesão está
familiarizado com as artificiais convenções pastoris, como também os pastores se
revelam capacitados para corresponderem às regras de convívio da corte,
proporcionando-se uma fecunda harmonia. Outro factor de bizarra equivalência entre a
aldeia e a corte é a posição subalterna que Alfeo, o cortesão, passa a ocupar
relativamente a Mendino e aos demais pastores de “elite”, exercendo o ofício de
«mayoral» dos seus rebanhos (p.285). Alfeo depressa se confunde com os pastores, já
que o seu carácter, naturalmente generoso e cortês, ainda que tempestuoso, apresenta
fortes afinidades com o paradigma novelesco do pastor enamorado. Já a Andria não
basta trocar o nome, deambular pelos campos, trajar e cantar como pastora para perder
os arraigados hábitos da corte, sobretudo o de ser prestamente obedecida. A relação
entre o forasteiro cortesão e o âmbito pastoril oscila, portanto, entre a integração e a
incompatibilidade de valores. Em qualquer caso, porém, é de notar que o cortesão
sempre permanece reconhecível enquanto tal, já porque, ao apresentar-se, o assume
como um elemento imprescindível da sua identidade (é o que faz Alfeo), já porque a sua
história vem a ser conhecida e divulgada (tal como sucede com Andria).
De um modo geral, o estrangeiro não fica permanentemente radicado na aldeia,
na qual encontra, como dissemos, um meio fechado, embora hospitaleiro. Os dois casos
excepcionais em que esta norma parece ser infringida referem-se apenas a personagens
oriundas também do campo – Mendino e Siralvo. A história de Alfeo e Andria
comprova que o cortesão, por muito desenganado que se sinta e por muito disposto que
se considere a mudar de hábitos, sempre arrastará consigo o lastro da sua vivência
passada74.
Por último, cumpre determo-nos noutro tipo de contacto entre a aldeia e a corte:
os costumes. Este plano engloba os anteriores – material e humano – e revela uma
particular complexidade, cuja manifestação máxima se encerra no torneio que põe termo
à novela. Neste episódio, os pastores não só se mostram hábeis num entretenimento
tipicamente cortesão, como são, ainda, estimulados a apurar certas prendas do espírito
74 É o que adverte Séneca, na carta XXVIII a Lucílio: «Debes cambiar el alma, no el clima» (Séneca, 2006: p.86). Afortunadamente, durante a sua errância, Alfeo e Andria experimentam situações que proporcionam essa mudança, mas apenas para regressarem, enfim, ao seu meio.
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que lhes são, por natureza, alheias. O jogo de inspiração bélica, as galas aparatosas e os
motes de circunstância contrastam radicalmente com o pacifismo, a simplicidade e a
sinceridade poética que a convenção pastoril postula. O amor é uma coordenada fulcral
tanto no âmbito ideológico pastoril, como no cortesão; contudo, aqui as expansões
ternas cedem o lugar a códigos de galantaria pré-definidos, e o pastor, que antes
contemplava em êxtase algum penhor amoroso da senhora da sua alma, entrega-lhe
agora, com uma fria compostura, o prémio alcançado pelos seus talentos. A absorção de
hábitos e atitudes alheios ao contexto pastoril “puro” adquire, porém, uma amplitude
muito mais vasta no decurso da novela.
Aldeia/Corte: de Binómio a Monómio?
Num primeiro relance, o leitor pode optar por depositar confiança nas
intervenções do narrador, que reitera, com uma ligeireza aparente, o estrito e cómodo
antagonismo clássico:
«ya se determina que en las selvas vive amor, y en los poblados su ira y saña [...]. [En las selvas,] cualquier efecto suyo puede fundarse en razón[.] [...] [En los poblados,] el amor se sigue con vanagloria, y es la beldad estimada en menos que el arreo, y la voluntad se hace precio, los celos son invidias y pundonores, la perseverancia tema, y los servicios engaños. [...] No dudo yo que en la mayor Babilonia permita amor algún pecho lleno de fe y lealtad, y entre la soledad de los campos alguna intención dañada, para confusión de aquellos y ventaja de estos otros» (pp.313-314)75.
Estas considerações insistem no estereótipo da virtude campesina, introduzindo
uma variação significativa: o amor é o critério comum a que se recorre para apreciar o
estado moral, a organização interna e os códigos específicos de cada comunidade
humana76. Em alguns casos, as personagens secundam as benévolas (ou
deliberadamente traiçoeiras) palavras do narrador. Previsivelmente, Alfeo, o mais fiel
75 Atente-se no emprego metonímico de «Babilonia», que vai ao encontro de algumas constatações que fizemos poucas linhas atrás. 76 A fuga do amor para o campo recorda vagamente Minturno, L’Amore innamorato (1559), embora as implicações sejam distintas: o texto de Minturno situa-se na mítica Idade de Ouro, durante a qual a deidade desce à terra sem perigos; na descrição metafórica de Montalvo, o Amor parece retrair-se, como arrependido da sua saída do Olimpo, e procura aquele que continua a ser, presumivelmente, o lugar na terra mais semelhante ao que o acolheu nas suas primeiras andanças entre os mortais.
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depositário da amargura e do desengano em que desemboca a vida cortesã, é, outrossim,
o mais pródigo em louvores à vida rural. Facilmente se compreende porquê: criado na
corte, formara do campo o conceito utópico transmitido pela literatura desde os
clássicos, pelo que se lastima: «Tú sabrás que este hábito no es mio, pluguiera al cielo
que desde mi nacimiento lo fuera; excusara las mayores desventuras que jamás han
pasado por hombre de mi suerte» (p.292). Se Alfeo se revela um jovem inexperiente no
próprio universo cortesão a que pertence, muito menor será a sua experiência da vida
rural. Por outro lado, a aldeia concede-lhe uma derradeira hipótese de felicidade, na qual
empenha todas as esperanças remanescentes. Porém, apesar do seu optimismo livresco,
Alfeo não se maravilha pouco com os pastores do Tejo: «Su gala es mucha discreción y
cortesía grande, y lo que es habilidad y mesura aventajado a cuanto he visto. Paréceme
que de España lo mejor se recoge en estas selvas» (p.281). Para conhecermos este
universo a partir dele próprio, cumpre observar as condutas dos seus habitantes, os quais
materializam aqueles valores e códigos inscritos pela tradição na utopia da Arcádia, ou
outros, que é necessário desvendar.
Esta sociedade pastoril já começou a surpreender-nos quando, analisando os
comportamentos de algumas personagens à luz dos seus deveres familiares, verificámos
que, na novela de Montalvo, a probidade pastoril deixa de ser espontânea. C. Castillo
Martínez sublinha que, a par das tensões sociais ou particulares que se vão agudizando
de novela para novela, surgem formas de repressão e punição de tais excessos,
igualmente inopinadas: «En el ámbito pastoril “puro” sorprendería la presencia de la
prisión, puesto que el amor y la fortuna son la máxima norma; no hay otros preceptos
para sus habitantes» (2010: p.61)77. Poderíamos avançar que esta é uma forma de
contra-violência que intensifica a agressão ao pacifismo e à liberdade pastoris. No
Pastor de Fílida, tal como na trilogia das Dianas (mas ao contrário do que se pode ler
na novela pastoril que imediatamente o precede, a de Lo Frasso), não existem cárceres.
No entanto, não deixa de ser exercido algum tipo de controlo sobre as atitudes
individuais das personagens, sempre condicionadas pelo olhar alheio. Desta guisa, ainda
que habitem num locus amoenus pintado com todos os primores da convenção bucólica
e ainda que adoptem algumas rotinas pastoris típicas, estes pastores não encaram a
possibilidade de uma existência fora das normas impostas pela mesma sociedade da
qual Alfeo julga poder esquivar-se evadindo-se para as quietas praias do Tejo. O próprio
77 Nas Dianas, a violência é já insinuada, mas nunca presentificada: «it is introduced through the filter of memory […] or […] raised to the level of allegory» (Rhodes, 1989: p.355).
60
conceito de «norma» é alheio à utopia arcádica e ao desígnio que move poetas,
novelistas e dramaturgos a recriá-la continuamente. Aqui, a comunidade pastoril
projectada por Montalvo patenteia as suas primeiras fraquezas – não enquanto
comunidade, entenda-se, visto que os seus códigos são coesos e se mostram eficazes na
manutenção de um equilíbrio que se quereria natural, mas, justamente, enquanto
comunidade pastoril.
Do mesmo modo que, sem existir nenhuma instituição incumbida de julgar os
actos das personagens, a sua liberdade é, contudo, restrita, o facto de nesta novela
nenhum pastor ser visto transportando, furtivamente, «alfanjes, cuchillos y sogas»
(Castillo Martínez, 2010: p.61) não implica que o espaço humano pastoril deixe de ser
distorcido pontualmente por uma certa malícia e um certo egoísmo hostil da parte de
algumas personagens em relação a outras. Adensa-se, assim, uma atmosfera de
interesses individuais em conflito, análoga àquela que distingue as caracterizações
estereotipadas da corte.
No começo da quarta parte, o narrador declara, perante a evidência incontestável
de que nem todos os pastores são ditosos nos seus amores, que, no campo, ao contrário
do que sucede na corte, «al menos nadie finge» (p.313). Não é isto, porém, que as
condutas das personagens vêm a comprovar no decurso da obra. Alguns episódios,
dotados de sentidos e repercussões muito diferentes, poderiam denunciar a falácia de
tais promessas.
O primeiro ocorre na primeira parte e tem lugar no círculo que designámos por
“elite pastoril”. Galafrón e Filis78, concertados entre si para destruírem os amores de
Mendino e Elisa, aconselham-nos, com falsa e interesseira benevolência, a elegerem
outros amores (pp.222-223). Feliz ou infelizmente, os dois amantes estão prevenidos, e
retaliam com igual dissimulação, ajustando uma habilidosa táctica de distracção: dar a
entender aos rivais que o seu amor é retribuído (pp.223-224). Independentemente da
intenção que os move – assegurar, ainda que através da mentira, a paz e o
contentamento provisórios de todos –, este comportamento condena Filis e Galafrón a
um desgosto iminente, preço da tranquilidade dos protagonistas. 78 Para B. Mujica, «[u]nlike the Spaniards who follow him, Sannazaro does not introduce violence through evil characters. Violence and evil exist not in the person of the villain, but as omnipresent underlying realities, common to both man and nature» (Mujica, 1976: p.39). Na verdade, não cremos que no Pastor de Fílida se encontrem personagens declaradamente malfazejas, mas antes ingratas situações que tornam agressivas as personagens já intrinsecamente instáveis: o amor não correspondido é o mais eficaz desses acicates. As personagens negativas são-no, geralmente, a título provisório, vindo por vezes a enfrentar o mesmo sofrimento que infligiram aos outros, como sucede com Galafrón, Filis e, mais tarde, Pradelio.
61
Pouco depois, outra ameaça se vê pairar sobre esta união harmoniosa: a chegada
de Padileo, novo pretendente da filha de Sileno (p.224). Mendino e Elisa decidem
transferir os seus encontros para depois do sol-posto, de forma a evitarem os olhares
alheios. Todavia, para enfrentar a noite «fabricadora de embelecos» (como, mais tarde,
lhe chamaria Lope), Mendino provê-se de algo mais do que um fiável sentinela: «con un
grueso bastón de encina con que acostumbrado estaba Mendino a despartir los toros en
pelea y a derribar los osos en los montes, se salió de su cabaña», sabendo bem que
Padileo rondaria o mesmo lugar e não querendo ser surpreendido (p.229).
Já no desfecho desta primeira parte, assistimos a um episódio que traz certas
reminiscências da novela de Montemayor:
«Cardenio, enamorado de Clori, perdió el respeto a Castalio que más que a sí la quería, y la pidió en casamiento. Y el generoso padre de ella, viendo la igualdad de los dos ricos pastores en edad y suerte, y que ambos le pedían, y ambos eran dignos, y a Castalio heredero, y a Cardenio heredado, dio la palabra a Cardenio, y dejó a Castalio» (pp.243-244).
Aqui, não é um equívoco que leva os dois amigos a enamorarem-se da mesma pastora79:
Cardenio, tendo pleno conhecimento do compromisso amoroso que une Castalio e
Clori, escolhe deliberadamente competir com o amigo, e, o que é mais relevante, não
apenas com as armas do amor, mas recorrendo ao privilégio social.
Não é particularmente insólito este enredo, tendo em conta que se desenvolve
num meio que se impõe, desde a primeira linha da novela, como um intencional traslado
da vida cortesã. O que, por certo, será causa de não pouca admiração para o leitor das
Dianas é o facto de tais intrigas contaminarem toda a teia social pastoril que envolve
esta “elite” e que, conforme constatámos, se esboça, à partida, como um universo
pastoril mais próximo do ideal arcádico da Renascença. Na quarta parte, assistimos ao
confronto entre dois pastores, Filardo e Pradelio, ambos pretendentes da jovem Filena
(pp.314-316). A existência de um confronto directo em lugar da dissimulação cortesã
representa, aparentemente, um ganho em termos de franqueza e honestidade. Todavia,
não é sem algum constrangimento que os pastores dialogam a sós, e, se não alimentam
propósitos desleais, a ideia da violência não deixa, porém, de perpassar pelo discurso do
narrador nem, porventura, pelas consciências das personagens (p.314). Com efeito,
somos sensíveis aos esforços de auto-controlo de Filardo, cujas palavras são minadas
por alguma agressividade. Sempre há um amante favorecido e um desdenhado, e, se o
79 Como sucede, por exemplo, na história bizantina de Silerio e Timbrio, personagens da Galatea.
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primeiro mostra pouca piedade, o segundo não revela maior resignação. Assim, Filardo
adianta-se e ordena, peremptoriamente, ao seu competidor que se subtraia à afeição da
pastora. Mais divertido do que indignado, Pradelio responde-lhe, com uma ironia
contundente, «no te penes, Filardo, que es la vida breve, e inhumanidad gastarla en
pesadumbres» (p.315). Os dois separam-se, remetendo a solução dos seus casos para os
caprichos do amor e da fortuna, como é regra nestes lugares. O aspecto mais
interessante deste episódio é que a atitude de qualquer um dos pastores se encontra tão
distante do modelo de dissimulação vigente nas sociedades cortesãs, como da
generosidade arcádica. Afectados já pelo egoísmo que emana da corte, os pastores
procuram zelar pelos seus interesses; todavia, a sua índole ainda intrinsecamente
simples impede-os de adoptar atitudes que não sejam de uma pueril presunção.
Também na quarta parte, é de destacar a écloga representada em honra de Fílida.
Desde logo, não é sem consequências que estas personagens representam uma écloga:
ao mesmo tempo que reivindicam um entretenimento cortesão80, instabilizam a sua
própria natureza de personagens pastoris. Através deste “fingimento”, a dissimulação e
o engano, encarnados por Liria e Fanio, encontram uma via mais para penetrarem no
âmbito pastoril. A pastora convida Fanio a confessar-lhe a causa da sua visível angústia,
que entende serem amores, comprometendo-se a «habla[r] / y a [s]u amor incita[r]» a
pastora por quem andasse penado (p.355) – a cena é sobejamente familiar ao público
castelhano quinhentista, que, mesmo sem ter percorrido a Arcadia sannazariana, a
reconhecerá de Garcilaso. Num diálogo que, por certo, será secundado pelos risos da
assistência, o bisonho Fanio vai revelando elementos caracterizadores do misterioso
objecto dos seus desvelos, até confessar as letras que compõem o seu nome (pp.357-
358)81. Liria revela uma habilidade de resposta inopinada numa ingénua adolescente,
esquivando-se à declaração amorosa do pastor, que procura atalhar recorrendo ao
ridículo, dessacralização do amor inconcebível para uma personagem das Dianas. A sua
literal “actuação” corresponde à que Castiglione aconselha as suas leitoras – damas
italianas, não pastoras do Tejo – a adoptarem numa situação similar (cf. Castiglione,
1990: pp.332-333), ou seja, é tudo menos instintiva, franca (ainda que áspera), ou, numa
palavra, pastoril. O que acaba de desconcertar o leitor é a celeridade com que, vendo
que o jogo adquiriu proporções perigosas, Liria se rende ao seu enamorado desfalecido,
80 Veja-se López Estrada (1974: pp.206-280), Ferrer Valls (1999) e Fosalba Vela (2002). 81 A brincadeira com os anagramas a que esta declaração dá ensejo constitui uma frechada mais na gravidade das convenções literárias.
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demonstrando que a esquivança inicial fora mais obra da sua coqueteria do que de
desconfiança, inexperiência ou isenção. Sem se dar por vencida, logo que Fanio volta a
si, Liria recupera a serenidade e parte da anterior frieza, embora se mostre mais
acessível. Nunca se encaixa, portanto, nem nos moldes da pastora inexoravelmente
casta, nem nos da terna enamorada, adoptando antes uma atitude intermédia, mais
realista e mais urbana.
Por outro lado, a ironia final de Fanio contra o importuno Delio sugere a
corrosão da franqueza numa amizade que se converteu em conveniência ou obrigação
social. O amigo deixa, igualmente, de advertir e guiar por pura dedicação, fazendo-o,
antes, para alcançar uma certa autoridade sobre os espíritos alheios – típico defeito do
cortesão impertinente.
Porventura, o efeito da inclusão desta écloga seria um nada menos cáustico caso
suscitasse outra reacção no seu público pastoril. Contudo, é com festa e aplauso que os
pastores, todos eles humildes amantes e amigos generosos, recebem este espectáculo de
dissimulação.
O derradeiro exemplo em que nos deteremos transporta-nos a um ponto decisivo na
narrativa: a chegada de Andria, ou, melhor, Amaranta, à aldeia. É curioso que a jovem
sinta a necessidade de, mudando de fortuna, mudar também de identidade, conforme
constatámos no capítulo anterior. Andria, tal como o seu amado Alfeo, possui uma
noção preconcebida do meio rural e da dicotomia Aldeia/Corte, que presume ser
estanque. Assim, cuida que não poderá imiscuir-se no universo pastoril enquanto
carregar consigo (ao menos de forma visível) o estigma da sua origem cortesã, motivo
pelo qual constrói uma nova personagem, impregnada de convenção bucólica, desde o
nome até à usança de publicar as suas angústias em redondilhas, passando ainda pelo
traje, que constitui um elemento essencial na caracterização das personagens nas
novelas pastoris e ponto de contacto não despiciendo com o teatro coetâneo. Deste
modo, para restaurar a ordem, torna-se necessário contribuir para quebrá-la um pouco
mais.
Uma dupla ironia envolve a entrada em cena de Amaranta, já devidamente munida
de uma identidade pastoril. Em primeira instância, o campo é, afinal, muito mais
permeável do que cuidara, no que concerne tanto aos códigos de sociabilização, como a
um intercâmbio material e humano, conforme verificámos. Por outro lado, não é, neste
caso, a cortesã que transporta consigo a perfídia para o âmbito pastoril idealizado, mas,
64
antes, são os pastores que urdirão uma insidiosa teia de equívocos que a imobilizará e
impedirá de lograr, durante algum tempo, os seus justos propósitos82.
Amaranta é acolhida pelos pastores, mas não procura confundir-se com eles,
como faz Alfeo, uma vez que não se dirigiu às margens do Tejo com o intuito de por lá
encetar uma nova forma de existência. A jovem visa um objectivo muito preciso –
recuperar o amado –, o que limita o seu interesse em tratar com os outros pastores,
embora absorva com uma notável desenvoltura (fruto, talvez, da acuidade cortesã) os
seus códigos de sociabilização. Depois de Arsiano, Siralvo é o primeiro habitante da
aldeia com quem Amaranta trava conhecimento. Previsivelmente, o amador de Fílida
apieda-se da sua mesquinha ventura, não obstante as óbvias vicissitudes que a chegada
de Amaranta acarreta para o relacionamento amoroso dos seus amigos Alfeo e Finea: há
sempre espaço para a ternura no grande coração do pastor. Todavia, o que se segue trai
as expectativas de quem tem assistido aos percursos da diligente Finea, do sincero Alfeo
e do perfeito Siralvo. Os três chegam a um acordo quanto ao modo menos
inconveniente de confrontarem Amaranta: Alfeo esconde-se, porque Finea assim o
decreta, e Siralvo é incumbido de mentir desonesta e pouco convincentemente a
Amaranta, logo depois de se ter comprometido a auxiliá-la, explicando-lhe que Alfeo se
encontra ausente da aldeia. É digna de reparo a participação desigual dos dois grupos de
personagens neste imbróglio: os cortesãos Alfeo e Amaranta, incapazes de dissimular a
sua perturbação um diante do outro ou diante de terceiros, submetem-se, cada um a seu
jeito, aos enredos traçados pelos hábeis pastores, que ora os conduzem, ora os
embaem83.
O diálogo entabulado entre Finea e Amaranta (pp.382-383) não decorre na
presença de Alfeo, que deliberadamente evita a sua antiga amante, pormenor que 82 O oposto sucede com Corisca, do Pastor Fido, personagem com uma ampla experiência da vida urbana, que transporta para o campo a inveja, a intriga e o descontrolo passional. Talvez não seja inoportuno trasladar a seguinte advertência de Guevara: «Al que se va de la corte combiénele que mucho tiempo antes comience a recoger los pensamientos y aun a alçar la mano de los negocios; porque para llegar a su tierra ha menester muchos días, mas para desarraigar de sí los malos desseos ha menester muchos años. […] Aquel hace de la aldea corte que bive en el aldea como bivía en la corte» (Guevara, 1975: pp. 59, 64-65). Nenhum dos dois jovens cortesãos procede a esta análise interior e, em lugar de abandonarem a corte por virtuosos, fazem-no por desfavorecidos no amor, motivo pelo qual a sua permanência na aldeia é de pouca dura. Por ironia, no mundo pastoril com que se deparam, escassa diferença fazem os vícios pueris de Alfeo e Andria. 83 A respeito das personagens não pastoris na Diana enamorada, constata L. Albuixech: «Although the characters involved in this novella are, for the most part, courtiers, the fact that they are clothed as shepherds and moved into a pastoral setting implies, metaphorically, that falsehood and turbulence can easily penetrate the rural peace» (2008: p.196). Ora, no Pastor de Fílida, já não é necessário que entidades exteriores à aldeia transportem para o seu seio a «falsidade» e a «turbulência», que já nele se encontram insensivelmente arraigadas. As condições sociais e morais do pastor e do cortesão são, portanto, invertidas.
65
agudiza a atmosfera de hostilidade que a oprime. Para além disto, a jovem cortesã é só
ingénua dentro dos limites da verosimilhança, estando, pois, absolutamente convicta de
que os três se dispuseram a ludibriá-la. Poucas conjunturas tão constrangedoras como
esta se poderiam arquitectar para o enfrentamento das duas rivais84. Desenrola-se um
conflito verbal maximamente sintomático da instabilidade social e moral deste universo
humano. Não pouco significativos são os pontos de contacto entre este diálogo e a
“doutrina” cortesanesca de Castiglione, designadamente no que aos graciosos equívocos
de linguagem e à habilidade dissimulatória diz respeito85. É de salientar a perícia
superior de Finea para este tipo de agudezas, que suplanta largamente a que Amaranta
exibe no decurso do confronto. A hostilidade de Finea face à sua competidora traduz-se
no seu empenho em fazê-la cair no ridículo, não procurando já, sequer, iludi-la, mas
antes embargá-la a tal ponto que, mesmo estando ciente das intenções da pastora, não
seja capaz de lhe redarguir nem de lhe extrair as informações que ela se recusa a
avançar, esquivando-se com respostas evasivas: «Hombre es Alfeo que sabrá dar cuenta
de sí, y tú mujer que acertará a tomársela» (p.383). Amaranta, que entrara em cena com
uma altiva tristeza, parece converter-se numa sofredora mais humilde a partir deste
episódio, limitando as exigências e tresdobrando as queixas, como quem enfim descobre
que as prerrogativas cortesãs não são válidas neste contexto, ou porque lhe são alheias
(como se esperaria que sucedesse), ou (o que aqui se verifica) porque também os
pastores dominam os códigos da corte, alcançando assim uma certa igualdade
relativamente ao visitante cortesão, pois que, dominar as suas regras tácitas e os
mecanismos da corte corresponde já, de alguma forma, a reivindicar o direito de lhe
pertencer. É, de resto, na dificuldade de pôr em prática os seus apertados preceitos que
reside a mais eficiente prova do genuíno homem de corte.
De forma ínvia e, por isso mesmo, mais estimulante, Montalvo procede a uma
desestabilização de charneiras entre os membros do binómio Aldeia/Corte sem recorrer
exclusivamente ao fácil e imediato artifício do disfarce, do qual tirou proveito Gabriel
de Corral, na sua Cintia de Aranjuez (1629), e outros novelistas pastoris epigonais. Três
conjuntos de personagens são identificáveis na obra: os pastores aristocratas, tal como
os designámos antes, que gravitam em torno de Sireno; os restantes pastores,
aparentemente mais convencionais; e, por fim, Alfeo e Amaranta, cortesãos efectivos. 84 Na Diana de Montemayor, Selvagia e Ismenia chegam a confrontar-se, num momento em que Alanio responde ainda aos afectos da primeira; porém, a impetuosidade deste confronto é aplacada pelo facto de ser veiculado por duas missivas (pp.146-147). 85 Veja-se Martínez San Juan (2003: pp.165-171).
66
Por distintas vias, todas estas personagens, que povoam ou atravessam o cenário
campesino, se aproximam do modelo de cortesão renascentista, mas somente as últimas,
sendo assumidas explicitamente como tal e tantas vezes debeladas no seu território,
passam pelo processo do disfarce. Podemos encarar este pormenor como uma das mais
caprichosas ironias com que o texto nos brinda, ou como uma chave de leitura: todos os
intervenientes na novela se encontram, de forma metafórica ou literal, embuçados sob
os seus «sayos pardos», «polainas toscas» e «zapatos gruesos»86.
Tendo em conta o que acabámos de observar, torna-se menos imprevisível o
bizarro retiro de três personagens – Siralvo, Mendino e Cardenio – do âmbito social
onde, até ao momento, se haviam movimentado:
«Mendino[,] Cardenio, y el pastor Siralvo quedaron […] tan desaficionados de los campos, tan enemigos de sus chozas y tan sin gusto de sus rebaños que, a pocos días, ordenaron desampararlo todo y buscar sólo su contento» (p.420).
Significativamente, todas estas personagens pertencem à “elite” pastoril. O
desengano da corte e subsequente procura de um refúgio na simplicidade rural
incorporaram-se no imaginário e, muitas vezes, nas rotinas dos aristocratas de
quinhentos e, mais ainda, de seiscentos, robustecidos pela autoridade de numerosas
figuras exemplares greco-latinas87. Com alguma frequência, este fenómeno social
revestia-se de um sentido mais prático e imediato, deixando de consistir numa atitude de
conversão moral, para passar a representar uma resposta a circunstâncias socio-políticas
muito concretas que exigissem o afastamento provisório da corte e dos seus negócios.
Em tais situações, a interdependência entre a vida de corte e a do campo era posta a
descoberto, já que a segunda se impunha, sobretudo, como interregno estratégico da
primeira. No caso novelesco a que nos reportamos, contudo, não se vai tão longe que se
chegue a atribuir uma motivação política à retirada dos pastores; se abandonam o lugar
onde vivem, é porque, ao contrário do ingénuo Alfeo, estão cientes dos muitos defeitos
do seu mundo social.
Este episódio torna a ameaçar o débil equilíbrio que, ao longo da obra, vai
postergando o iminente colapso entre os dois universos constituintes da fundamental
dicotomia. Por um lado, trata-se de mais um costume cortesão assimilado por estes
86 Para Rennert, tal sobreposição de identidades redunda «in the utmost extravagances and inconsistencies» (1892: p.5), muito embora corresponda a uma estratégia empregue já por Virgílio nas suas Bucólicas, tal como o mesmo crítico reconhece (cf. p.5). 87 Veja-se, a tal respeito, o capítulo XVII do Menosprecio de Corte.
67
falsos pastores. Na verdade, é mais do que um costume cortesão: é um costume que
apenas se justifica no contexto da experiência social, humana e mental da corte. Por
outro lado, o próprio cenário pastoril – que parecia tão pacificamente vertido da paleta
sannazariana – se vê pela primeira vez implicado nos paradoxos que perturbam as
personagens que o povoam. Os três pastores aspiram a uma existência mais sossegada e
interrogam-se quanto ao local mais adequado para a concretizarem. Porém, se a sua
actual morada corresponde já à suprema idealização renascentista, que refúgio lhes
resta? Uma solução é o campo profundo, longe da aldeia, a qual corresponde ainda a um
estádio intermédio entre a civilização e o mundo selvagem88. É neste lugar de
complicado acesso que se situa a cova encantada do mago Erión – um espaço tão livre
da contaminação humana e tão natural, que chega a exceder a própria Natureza,
servindo de enquadramento ao exercício da magia e das artes divinatórias.
A instabilidade a que vínhamos assistindo agudiza-se, dado que se torna a
salientar o facto de o campo ser ainda um universo humano e, como tal, contaminado
por paixões. Desta forma, o leitor é forçado a constatar que a miticamente perdida Idade
de Ouro, associada vulgarmente à utopia da Arcádia, a qual, por sua vez, facilmente se
deixa impregnar pela visão artificial do campo postulada pelo pensamento renascentista,
se encontra já em paulatina decadência no próprio meio pastoril, onde deveria encontrar
um derradeiro e inexpugnável reduto. O ciclo de vida da novela pastoril espanhola
acompanha este desditoso processo, e o momento captado por Montalvo apresenta-nos
um mundo pastoril ainda em conflito consigo mesmo, minado já pela violência que
indefectivelmente acabaria por irromper em qualquer âmbito humano regido pelo niño
ciego, mas ainda de forma discreta, pelo que é possível ler El Pastor de Fílida sob
outras perspectivas, ignorando estas tensões.
Conquanto tenhamos vindo a pintar este universo ficcional com cores tão pouco
favoráveis, acreditamos que tanto o campo como a corte são, aqui, espaços humanos e
sociais idealizados positivamente – Montalvo parece pretender, à partida, não menos do
que congraçar duas utopias renascentistas, não forçosamente contrárias, mas pouco ou
nada aproximáveis, ao menos aparentemente. Sucede, não obstante, que uma e outra
podem degenerar, caso a conduta dos seus habitantes comprometa a frágil harmonia em 88 No entender de R. Poggioli, o pastor «never confronts the true wild» (1975: p.7). Nas novelas pastoris espanholas, tira-se bastante proveito da combinação de espaços físicos e sociais, sendo, não raro, convocada a Natureza selvagem enquanto modelo contrastivo ou enquanto plano simbólico, que pode albergar forças sobrenaturais. É o que encontramos no quarto livro da Diana de Montemayor, que situa o palácio prodigioso de Felicia num recôndito lugar, desconhecido até pelos pastores, aonde só se acede através da orientação das ninfas. Veja-se Armas (1985) e Cull (2003).
68
que se sustenta, «más fácil de ser envidiada que imitada» (pp.463-464). O desenlace da
novela autoriza-nos a pensar que esta degeneração é ainda reversível, tanto no que
concerne à corte, figurada por Alfeo, como no que se refere à própria Arcádia em
iminente colapso, encarnada pelas restantes personagens, que, graças a Siralvo,
regressam à senda da razão.
Nas novelas pastoris posteriores (a começar pela Galatea), o leitor assiste à
contaminação progressiva e inelutável do ideal pastoril pela insídia, o egoísmo e a
violência física89. Uma explicação porventura legítima para este fenómeno será a
vinculação, cada vez mais evidente, deste género literário à realidade histórica e social
de Espanha, algo que se afigurará paradoxal, a avaliar pela sua habitual inclusão entre a
prosa idealista dos Siglos de Oro (cf. Hurtado Torres, 1983: p.11). No Pastor de Fílida,
tal vinculação surge já de forma inequívoca. Assim, podemos arriscar uma conclusão
inopinada: a evolução do género é acompanhada pelas convulsões que ocorrem no
interior do próprio mundo ficcional, muitas vezes reflexo da realidade espanhola dos
Siglos de Oro. A idealização, característica deste género literário, vai-se encaminhando
num sentido distinto: em lugar de se fazer presente a utopia intemporal da Idade de
Ouro, chora-se a ruína de um ideal duplamente perdido – na fé do autor e dos leitores e
na das próprias personagens – e, por isso mesmo, talvez duplamente ideal. Neste
sentido, não existe qualquer paradoxo em atribuir a designação de prosa idealista à
novela pastoril – um género literário cuja existência não ultrapassou os anos de uma
vida humana. É essa a longevidade do sonho, pensaria, mais tarde, Calderón de la
Barca.
89 Segundo Krüls-Hepermann, as novelas pastoris posteriores à de Montemayor, «without exception, […] can be associated with a model of decadence» (1988: p.583). Seria prudente matizar esta asserção: só pelo seu propósito moralizador, a Diana enamorada revela bastante mais optimismo do que, por exemplo, a Constante Amarilis, e talvez não lhe seja aplicável o termo «decadência». Mesmo as novelas que deveras se coadunam com tal afirmação concretizam a «decadência» de formas muito variadas no seio dos seus universos ficcionais. Inexplicavelmente, Krüls-Hepermann exclui, em nota, a Arcadia lopesca, atendendo talvez mais a uma reverência preconcebida pelo Fénix do que ao próprio texto, que, tanto pela índole passional dos protagonistas, como pela atmosfera de intriga, cólera e vingança, apresenta um universo pastoril francamente mais decadente do que, por exemplo, o nosso Pastor de Fílida.
69
CAPÍTULO V
NA «FUENTE DE LOS ALISOS»
As Relações Humanas
Acercamo-nos do final do nosso passeio pelas toledanas praias. De certo modo,
seria igualmente acertado dizer-se que só agora damos nelas os primeiros passos, já que
anteriormente nos dedicámos sobretudo a aparelhar os espíritos para a viagem. “Na
Arcádia, sê árcade” – prova ser o mais valioso conselho que têm para nos oferecer os
nossos companheiros pastoris, e que Alfeo e Andria assimilaram tão à custa do seu
sossego. A maior ou menor proximidade da conclusão do nosso trabalho é uma questão
de óptica, que depende, em última instância, da simpatia que tenhamos logrado inspirar
no nosso leitor pelos pastores do Tejo, com os quais, para terminar, propomos algumas
horas de convívio mais estreito, agora que a calma nos convida…
Particularmente rarefeita no que concerne à intriga, a pastoral clássica – tal como
foi coada em todo o seu esplendor por Sannazaro – subsiste através dos encontros
fortuitos entre os pastores que deambulam pelas campinas. Estes encontros, por seu
turno, impedem a criação de genuínos enredos, dado que propendem, desde as primeiras
palavras, para o silêncio e para o retorno a uma solidão essencial, ilusoriamente
suspendida e colmatada durante o breve lapso de um diálogo, por sinal nunca
especialmente produtivo.
A novela pastoril ibérica tira ainda partido dos casuais encontros, na medida em
que neles se vislumbra um pretexto para dar voz à individualidade das personagens. A
trilogia das Dianas e a Galatea cervantina atestam satisfatoriamente esta nossa
apreciação: nelas, um reduzido grupo de pastores deambula à ventura pelas campinas,
70
deparando-se quase a cada passo com outras personagens, cujo estado de alma se desvia
pouco do das primeiras, conquanto sejam possuidoras de “biografias” em geral mais
complexas e novelescamente mais rentáveis. Tal como a novela cavaleiresca, também
estas primeiras vergônteas da novela pastoril se cevam da errância das suas
personagens, que sempre procuram émulos em relação aos quais possam distinguir-se
em duelos de solfas, conceitos e amores90.
O propósito destes enredos não passa por promover o convívio social entre as
personagens nem por consolidar genuínas relações humanas entre elas, até porque, em
boa verdade, «[t]he bond of friendship created among the shepherds by their common
suffering is superficial» (Mujica, 1986: p.128). Embora dominem com inteira
desenvoltura os códigos de cortesia essenciais para acolherem visitantes oriundos de
todos os estratos sociais, os espíritos e as existências destes pastores são intrinsecamente
fechados. Também a relação de salutar camaradagem entre os membros do “grupo
elementar” se mantém inalterada, em parte porque estes pretensos protagonistas cedem
regularmente o lugar às figuras novas que vão desfilando. Desta guisa, renuncia-se a
explorar os dois mecanismos possíveis de aproximação humana: a curiosidade pelo
desconhecido e a «conversação doméstica».
Novamente, El Pastor de Fílida revela maior complexidade do que qualquer um
destes exemplos – a tradição clássica e as novelas pastoris anteriores. Procedemos já ao
levantamento dos episódios extraídos da Arcadia italiana e comentámos a sua
funcionalidade em termos de dinâmica social. Podemos, agora, acrescentar-lhe outro
desígnio: o de fornecer um fundamento mais consistente do que o acaso às relações
humanas. De facto, no Pastor de Fílida as deslocações são, por norma, previsíveis e
calculadas, por efeito do rigoroso “calendário social” a que aludimos anteriormente,
pelo que os pastores parecem adquirir uma certa consciência das implicações do “acto
social”, algo de que os seus avoengos literários, caracterizados por um hipertrofiado
individualismo, careciam quase em absoluto. Os momentos de reunião na aldeia são
conhecidos de antemão pelos seus habitantes, que meticulosamente os concretizam,
desde a eleição da indumentária até à ordem de entrada nos templos, passando pela
galharda sprezzatura e pelas cortesias mútuas. Embora esta convivência calculada possa
afigurar-se às nossas contemporâneas mentes de uma artificialidade pouco consentânea
com a consolidação de relações humanas autênticas, cumpre ter presente a vivência
90 O masoquismo narcísico de que resulta tal desejo de emulação, já bem frisado por Mia Gerhardt (1950: pp.182-183), representa mais um factor de enclausuramento sentimental.
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social e pessoal a que esta novela en clave se reporta: um contexto no qual o facto de
determinadas convenções vigorarem com tamanha vitalidade e amplitude comprova que
não se desvirtuou ainda o seu profundo sentido.
Estas ligações mais localizadas põem à prova a funcionalidade da estrutura a que
dedicámos uma generosa parcela deste trabalho, para além de formularem,
implicitamente, certas máximas de conduta, que inserem esta obra na linha das novelas
que se oferecem como manuais de desenvoltura e de requinte cortesanescos91.
O tipo de relacionamento humano a que nos referimos compreende duas
modalidades: o amor e a amizade. Acerca da presença destas temáticas na novela
pastoril dos Siglos de Oro copiosíssimas páginas têm sido escritas, algumas de uma
lapidar erudição, que seria temerário e inoportuno emular nesta breve proposta de
análise. Ressaltemos, contudo, ainda outra vez que a estreita aliança entre o bucolismo e
o amor nas obras pastoris da Renascença levou inclusivamente alguns teorizadores a
implicar por sistema o segundo termo na definição do primeiro92. A amizade pastoril,
não tendo embora merecido estudos tão abundantes, constitui um motivo que se
evidencia desde os Idílios de Teócrito93. A relevância de um e de outro na concepção
clássica da utopia pastoril é sublinhada por López Estrada, quando afirma que, na
Arcadia sannazariana, chegam a substituir os valores morais e sociais (1974: p.143),
excesso que a novela pastoril espanhola atenuará, por vários respeitos.
Procuraremos encarar a amizade e o amor no Pastor de Fílida, não na sua feição
psicológica ou filosófica, mas antes enquanto inflorescências que despontam num meio
social muito particular, do qual retiram o seu substrato, podendo também afectar a sua
configuração a vários títulos, já que o interesse de Montalvo, muito distante de
Montemayor neste aspecto, não é «to study human beings functioning purely as lovers,
i. e., unhampered and undistracted by social, economic, and other considerations»
(Solé-Leris, 1980: p.35), mas antes arriscar uma articulação de todos estes factores.
91 «[The pastoral novel is] a manual of ideal conduct in love, and reflects the Zeitgeist of the Renaissance: the best sentiments of the society of its time. It was the elegant novel par excellence, the manual of learned conversation between ladies and gentlemen of the sixteenth century» (Damiani, 1983: p.42). 92 Fernando de Herrera, nas Anotaciones à poesia de Garcilaso, define «égloga» como «el más antiguo género de poesía. Y aunque la materia de ell[a] es varia, parece que es más antigua la amatoria» (apud López Estrada, 1974: p.458). 93 Constata Rosenmeyer que a experiência epicurista postulada pela pastoral teocritiana é muito atreita às doçuras da amizade (cf. 1969: p.70), num pequeno círculo que não assuma as vestes de uma «political community», mas mantenha o descomprometido estatuto de «association of friends» (p.105). Entre um e outro extremo, o espectro de variantes é quase inabarcável. Parece-nos que o universo ideológico e ficcional do Pastor de Fílida oscila caprichosamente entre as duas hipóteses, conforme o momento narrativo considerado.
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Sendo desta vertente mais objectiva que nos ocuparemos, considerámos adequado
abordar em conjunto o amor e a amizade pastoris, reconhecendo as múltiplas
semelhanças que estas duas formas de relacionamento humano mantêm no universo
ficcional em questão. Dotado, porém, de uma complexidade visivelmente superior, ao
amor concederemos, depois deste raciocínio comparativo, uma especial atenção e com
ele daremos por concluída esta nossa incursão pela aldeia do Tejo.
Amor e Amizade
A novela pastoril brinda o leitor com três linhas de teorização amatória: uma
mais directa, constituída pelos diálogos em torno de «questões de amor»; uma outra,
que consideramos intermédia e que corresponde aos cantos amorosos, onde se inscreve,
de forma sintética e embelezada, a casuística neo-platónica exposta; finalmente, uma
terceira linha, que oferece uma “teorização prática” do amor, na medida em que
converte as personagens em “casos” ilustrativos de noções bem conhecidas. Menos
explícita, porém não menos significativa, esta última é sem dúvidas a modalidade mais
explorada por Gálvez de Montalvo, visto que, como fica dito, a maioria das personagens
do Pastor de Fílida (independentemente do seu putativo equivalente real), encarna
qualidades, atitudes ou estados de alma particulares94.
O amor a tal ponto faz sentir a sua presença no Pastor de Fílida, que chega a
configurar a vida social destas personagens, de modo que a evolução interior de cada
uma contribui para a remodelação constante do grupo. Registámos antes o caso de
Filardo e de Pradelio, amadores ambos da pastora Filena e ambos ledos ou zelosos a seu
tempo, que ora são cortesmente acolhidos, ora rejeitados pela amada, vendo-se
reduzidos a procurar a companhia de outros pastores, que, por sua vez, reúnem esforços
para sanar, porventura mais do que o amante magoado, a paz comum num momento que
deveria ser de geral regozijo (p.327). Os critérios sentimentais compõem, portanto,
94 Apenas esporádicos são os debates sobre o amor no Pastor de Fílida, o que deu azo a que alguns autores declarassem de forma peremptória, e talvez um tanto precipitada, que nesta novela não se discernem vestígios do neo-platonismo característico do género Tal é a opinião de Avalle-Arce (1975: p.153), seguido por Solé-Leris (1980: p.119), entre outros.
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grupos sociais provisórios (tanto quanto o são os voláteis movimentos da alma humana),
cuja validade se altera de cada vez que uma personagem muda emocionalmente.
É também, como vimos, em função do amor que o contraste entre a corte e o
campo se articula, recuperando-se a ideia do Amor como senhor universal95, por cujo
mando e medida se igualam as almas, não já as dos mortais com as dos imortais, mas
sim as dos rústicos com as dos mais finos cortesãos. Não obstante, é também o seu
influxo que revela a essência de cada espírito e, muito mais curioso, a de cada condição
ou estrutura social: assim, numa sociedade sã, o amor estimula a excelência; numa
sociedade corrupta, conduz os amantes à destruição, seja por erros seus, por má fortuna
ou pela conjuração de malícias alheias96.
A relevância dos laços de amizade na manutenção da ordem social é igualmente
indiscutível, porquanto, se o amor engendra as tensões que conferem à comunidade
pastoril um dinamismo indispensável, parece ser a amizade que impede o conflito de
eclodir, como consequência natural de alguns excessos amorosos. De resto, partilhando
com o amor alguns códigos comportamentais, a amizade pastoril revela-se não menos
exigente do que as relações amorosas.
Nas novelas pastoris espanholas, se, por um lado, se insiste no poder igualador
do amor, por outro, tem plena vigência o conceito clássico de que a amizade nasce
preferencialmente entre seres que são, à partida, semelhantes97. Com base em tal
pressuposto, seria esperável que nunca personagens oriundas de meios distintos se
mesclassem; porém, não é o que se verifica na prática: não apenas uma franca amizade,
mas ainda o amor, é possível entre pastores, cortesãos e citadinos. Este aspecto alerta-
nos para a existência de outros factores de igualdade que não se fundam no arbitrário
critério do nascimento, tais como a virtude, os talentos, a experiência de vida ou apenas
uma recíproca inclinação, que nem sempre olha a hierarquias sociais. São estes outros
factores que permitem, por exemplo, a união de Alfeo e Finea, pois que, «si él se
desterró enamorado y desfavorecido, ella hizo otro tanto; un mismo dolor los afligía, y
una misma razón los debiera consolar» (p.327).
95 «[A] universalidade do amor é bem manifesta. Na verdade, quase não há homem que viva sem ele, nem varão, nem mulher, nem velho nem moço» (Leão Hebreu, 1968: pp.123, 142). 96 O facto de esta perspectiva amorosa, pela sua subjectividade, estar condenada a produzir conclusões frágeis é irrelevante, uma vez que não nos situamos, já o sabemos, no âmbito de um realismo estrito. Este é um idílio neo-platónico, pelo que não é impertinente que o amor ofereça a escala de todos os juízos. 97 É o que exprime o provérbio recolhido por Aristóteles na Ética a Nicómaco: «a gralha junta-se à gralha» (Aristóteles, 2012: p.198). No livro VIII da Ética desenvolve-se este postulado, embora lucidamente se admita que as amizades entre os homens podem corresponder a “modalidades” várias e que o critério da igualdade não é sempre determinante, ou não da mesma forma.
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Ainda assim, cumpre ter em vista que estas duas personagens habitam as
margens do Tejo na condição de estrangeiras, pelo que não chegam a constituir uma
“agressão” à sua ordem social. Aliás, elas mesmas vêm a constatar que uma
desigualdade tão profunda como a que as aparta resultaria incomportável a longo prazo:
«Orindo era de su misma suerte, y Alfeo no; de manera que estándola bien casarse con
Orindo, a Alfeo no le convenía casarse con ella» (p.470). Este raciocínio de Finea seria
secundado por alguns tratadistas de quinhentos e seiscentos que se dedicaram às
questões matrimoniais98 e, enfim, pelo senso comum. Não é concebível para Montalvo
uma ficção como a de Pascuala, Mingo, Minga e o escudeiro, personagens de Encina,
que gozam parte dos seus dias no campo e parte na corte.
No Pastor de Fílida, onde se delineia uma hierarquia social de grande validade e
sensatez, a noção de que a igualdade constitui o alicerce indispensável das relações
humanas é abraçada sem reservas, visando-se não menos a condição social do que o
foro psicológico das personagens. Ilustra-o o caso de Siralvo e de Alfeo, unidos pelos
mesteres pastoris e por uma dignidade espiritual afim99.
Afora o lhano e aprazível Mendino, aqueles que designámos como pastores
aristocratas convivem, por opção própria, somente com pastores de estatuto equivalente.
Fílida e Elisa têm também, tal como vimos, um campo de acção e de convívio social
exíguo, aspecto que, por outro lado, condiciona o modo como são encaradas pelos
demais pastores, que, na sua presença, experimentam «um não sei quê» que roça a
devoção e que os impede de sequer desejarem quebrar a barreira invisível que as cinge.
Elisa perece precocemente, o que nos impede de avaliar de forma cabal a sua situação.
Não obstante, o exemplo de Fílida revela uma interessante complexidade: nela, as
qualidades do espírito sobrepujam as materiais e sociais (por notáveis que sejam), pelo
que, podendo preservar o seu estatuto por meio de um auspicioso matrimónio, declina
afoitamente tais propostas, juntando-se ao número das ninfas de Diana, entre as quais
98 Entre os quais nos é bem familiar (conquanto várias décadas posterior) o bilingue D. Francisco Manuel de Melo, que, na sua Carta de guia de casados, adverte: «Ũa das cousas que mais assegurar podem a futura felicidade dos casados é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa contradição; a contradição, discórdia» (Melo, 1996: pp.93-94). 99 A propósito destas personagens escreve Martínez San Juan: «la amistad entre iguales en virtud pero diferentes en estado social, como en este caso, sólo se puede conseguir en un espacio pastoril transformado en parámetro de la naturaleza humana, donde las relaciones intersubjetivas participan de los afectos del amor o de la amistad» (2003: p.109). Todavia, somos levados a concluir que, desde que abdica do seu estatuto cortesanesco num universo extra-pastoril, o estrangeiro torna-se, de facto, semelhante a Siralvo em termos sociais, se não até ligeiramente inferior, atendendo a que se mantém alheio à esfera dos pastores aristocratas (o que, de resto, impede o iminente colapso da ficção).
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perde valor qualquer outro critério de igualdade que não seja o da virtude, requisito
fundamental, aliás, para se cultivar a amizade100.
O que fica dito quanto à amizade é igualmente válido a respeito do amor. Alguns
meses dura o «engano d’alma» de Alfeo e Finea, visto que uma poderosa dor comum os
enleia. É, de facto, o amor que aplaina a desigualdade entre ambos, mas, ironicamente, o
amor por terceiros. Não percamos de vista, contudo, que de magoados falamos… Entre
a afinidade das emoções e o abismo social é o último que sai sempre triunfante, afora
nos amores platónicos entre Fílida e Siralvo, que parece ser ligeiramente inferior à
amada em algo mais do que na convenção cortês do «lugar tan alto» a que voam os seus
pensamentos (p.308)101. Todavia, estes amores têm algo de “coisa divina”, e, se a sem
par Fílida parece encontrar-se acima de todas as classes, Siralvo, a um tempo humano e
nobre, com todas se imiscui.
Importa realçar o engenho com que o autor conjuga a igualdade social com uma
certa predisposição para o amor ou para a amizade: cada personagem vem a encontrar
no seu próprio meio aquilo de que necessita para saciar as suas demandas sentimentais.
Não julgamos que se trate simplesmente de um recurso fácil para manter uma ordem
que, sob outros aspectos, se arrisca a vacilar. Antes, Montalvo compreende bem a força
da educação e do costume, que, fazendo não raro as vezes de natureza, tornam
agradáveis aos olhos do pastor os donairosos modos da pastora e, aos do cortesão, o
recato sossegado da sua dama. Daí que, antes das tribulações padecidas na corte, a
Alfeo, nela criado, tenha parecido inconcebível outra forma de vida:
«En tanto que el generoso Alfeo siguió las pomposas cortes, tan satisfecho de su habitación que le parecía tiempo perdido el que en otra parte se gastaba, mayormente el de aquellos que de las ciudades y villas retirados a las humildes aldeas vivían entre aquella soledad, acompañada de murmuración, y aquella compañía desierta de consejo, no es de maravillar que ansi amase el trato cortesano, porque criado en él y aficionado a las artes, hallaba allí del mundo lo mejor» (p.245).
100 Para Aristóteles, é na virtude que a igualdade entre os amigos verdadeiros há-de radicar: «a amizade perfeita existe entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência» (p.201). No entanto, Aristóteles contempla também outras formas de amizade menos exigentes: as que visam o prazer ou a utilidade. Já Cícero, no seu tratado sobre a amizade, declara mais categoricamente que «no puede existir amistad sino entre los buenos» (Cicerón, 2005: p.175), ideia a que os pastores de Montalvo dão consistência. De resto, a noção de que «por su virtud y probidad amamos en cierto modo hasta a quienes nunca hemos visto» (p.183) parece talhada para descrever a amizade de oídas que Siralvo e Alfeo começam por se inspirar mutuamente. 101 Tal é a leitura que faz Mayans y Siscar, baseando-se quer na identidade real de Montalvo, cuja condição de «gentilhombre» crê estar subentendida nos termos «humilde pastor» (1792: p.XVIII), quer na cautelosa conduta que a personagem Siralvo adopta ao aproximar-se da sua adorada e muito resguardada Fílida (pp.XXI-XXII). Mesmo neste caso, a desigualdade social é um escolho ao amor.
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O reenlace final com a sua intransigente e caprichosa dama fortalece esta ideia após a
experiência contrária.
Para além de constituírem vagens de uma raiz comum, o amor e a amizade
possuem fortes afinidades a outros níveis, fomentando-se mutuamente. Referimo-nos
aos casos em que a amizade entre um pastor e uma pastora, fundada numa relação de
franqueza e de recíproca partilha de vivências análogas, os conduz a um amor inopinado
(previsível para o leitor), de um modo geral mais sólido e feliz do que os
enamoramentos instantâneos, em que este género novelesco é pródigo102. Também neste
pormenor se revela a tendência para uma verosimilhança sentimental, a que
regressaremos.
Um loquaz exemplo desta situação acha-se nos amores de Alfeo e Finea, que
pendem sobre os seus corações desde a profética provocação da pastora no seu primeiro
encontro: «¿Qué sabes […] si puedes pagarme en mi moneda?» (p.250). Não cremos
que este amor se veja sequer em parte desapossado da sua “legitimidade” sentimental e
do seu encanto pelo facto de se tratar, para ambos, de uma segunda experiência
amorosa, visto que, neste âmbito ficcional, uma tendência para a perfeição neo-
platónica já enaltece sobejamente o amor. Múltiplos factores concorrem para a
dignificação desta relação amorosa em particular; será útil anotá-los, por conjugarem
uma feição social e uma psicológica. Em primeira instância, distingue-se da quase
insana paixão por Andria (ignoramos os pormenores da relação entre Finea e Orindo),
por resultar de um movimento deliberado da vontade – «Las sinrazones de Andria
contrastan mi afición; tus consejos me mudan la voluntad; la beldad de Finea me
cautiva» (p.340) –, o que a legitimaria perante qualquer tratado amatório103 e,
simultaneamente, perante uma sociedade ordenada e sóbria como aquela que aqui se
delineia. Baseia-se numa firme confiança robustecida pelo convívio, pela partilha e,
102 Para Aristóteles, a benevolência em relação ao outro pode nascer subitamente; o mesmo não sucede com o amor e a amizade, os quais, brotando desta benevolência inicial, surgem, contudo, «com a familiaridade» (cf. 2012: p.234). 103 Ficino: «los afectos decorosos, honestos y divinos no podemos jamás atenderlos demasiado, ni tan siquiera bastante. De aquí surge que todo amor es honesto. Y todo amante justo. Porque todo el que es bello y adecuado ama también justamente las cosas propiamente adecuadas» (1986: pp.16-17); Bembo: «quelli che amando la ragione seguono, ne’ loro amori la cosa più perfetta seguendo, fanno in tanto come uomini» (1961: p.149); Leão Hebreu: «Consiste, portanto, o amor e desejo do honesto [ou seja, das coisas dignas de serem desejadas e amadas] em dois ornamentos do nosso entendimento […]: virtude e sabedoria» (1968: p.38).
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enfim, pelo conhecimento mútuo. Perfeitamente se adequa a este amor a metáfora
agrícola empregue por Montalvo em alguns momentos: «Aré com el pensamiento / y
sembré, com fe sincera» (p.387) – uma imagem campestre realista para exprimir a vida
de sentimentos igualmente reais. Por outro lado, considerando que Alfeo assume, com o
novo traje, a condição que lhe está associada e que a comunidade pastoril pactua
pacificamente com essa mudança ou, melhor dizendo, com esse «disfarce» (p.307), não
se dirá que Alfeo e Finea infringem qualquer hierarquia social. Enquanto se
confundirem com a classe indiferenciada dos pastores do Tejo (não, claro está, com a
dos pastores aristocratas), encontram-se em “solo sagrado”, a salvo de acusações desta
índole. Estes amores não vão escoltados por pendências, intrigas e despeitos, preço dos
enleios cortesãos; neste caso, diríamos sem ironia que «en las selvas vive amor, y en los
poblados su ira y saña» (p.313). Até no seu desenlace ameno é este amor temperado,
virtuoso e louvável. Não sentimos que a sensatez com que Alfeo e Finea concordam em
apartar-se seja indício de debilidade afectiva: real é o amor que os une um tempo, bem
reais são os ensinamentos que dele retiram (cf. Martínez San Juan, 2003: pp.107-131).
Existe uma notória sintonia entre os códigos sentimentais e sociais do amor e os da
amizade, sendo muito ténue a alteração das atitudes das personagens, pelo menos em
público (nunca o avisado autor torna a apresentá-los a sós, como de início). Em ambas
as situações, de resto, procuram visivelmente corresponder ao que delas se espera104.
Se, como vimos, a amizade pode lançar os fundamentos do amor pastoril,
também o movimento oposto pode ocorrer, com implicações distintas. Referimo-nos
aos casos em que o sentimento amoroso constitui um veículo de aproximação
humana105, o que ocorre quando um amante, por uma irresistível urgência de
comunicação, se determina a partilhar penas e glórias com outro amante106. O mais
curioso neste fenómeno é o facto de instituir a reciprocidade enquanto norma a um
tempo social e íntima. Sempre que um novo elemento é acolhido na comunidade 104 Longe jaz a anarquia erótica e o hedonismo a-moral característicos da pastoral clássica (cf. Poggioli 1975: pp.42-48). Embora da convencional liberdade arcádica seja dado a estes pastores auferir ainda a de eleger os seus amados e amadas, a sua conduta assenta em princípios desconhecidos pelos pastores greco-latinos, tais como a moralidade ou a honra. O célebre axioma «s’ei piace, ei lice», traçado por Tasso no Aminta, continua em vigência na novela pastoril, na medida em que a transgressão nunca é sequer desejada. 105 Acerca do amor como “cimento” da comunidade pastoril na Diana e na Galatea, veja-se Hernández-Pecoraro (2006: pp.102-120). 106 Este espírito de partilha constitui a base fundamental da amizade pastoril, desde Teócrito e Virgílio. É provável que alguns destes novelistas da Renascença tivessem em mente também outro tipo de escritos, entre os quais certas cartas de Séneca a Lucílio, onde se encerram sentenças que poderiam ter sido proferidas pelas nossas personagens: «haz partícipe a tu amigo de todas tus inquietudes, de todos tus pensamientos. Si lo juzgas fiel, lo harás fiel» (Séneca, 2006: p.25).
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pastoril (a curto ou a longo prazo, pois que todos os forasteiros, com excepção de
Andria, se mudam virtualmente em definitivo para o campo), logo lhe é dirigido um
bem intencionado interrogatório107, que ultrapassa a mera convenção de “etiqueta”,
sobretudo porque aquilo que visa desvendar não é a identidade social do desconhecido,
mas a sua identidade psicológica. Por vezes, esta informação retribui-se com revelações
da mesma natureza: é o que ocorre na troca de confidências entre Siralvo e Alfeo, num
dos seus primeiros encontros, que culmina no canto amebeu entoado pelos dois (pp.304-
311). Nenhum pastor se recusa a fornecer detalhes acerca da sua existência; pelo
contrário, uma solicitação nesse sentido é recebida como uma prova de grande gentileza
– «Pero ya sabes [-dijo Siralvo-] que entre amigos no es justo haber nada encubierto,
préndote mi fe que no te arrepientas jamás de lo que conmigo comunicares. - Eso creo
yo mui bien -dijo Alfeo» (p.292) – e até de uma certa eleição – «conocer yo la merced
que me haces no lo dudes, y menos que es imposible cansarme de oír tus casos» (p.292).
É igualmente uma prova de confiança o amante desditoso recorrer a outro pastor
em situação semelhante para obter um conselho amigo e franco. É o que sucede com
Filardo, o cioso, que não desdenha uma amena conversação com o excelente Siralvo,
ainda quando tem plena consciência de que debalde lhe revelará os segredos das suas
ânsias, porque o amigo «habl[a] como sano en fin, y [s]us medicinas no son para el
doliente» (p.288). Poderíamos quase acrescentar às classes sociais já definidas uma
classe psicológica: a dos enamorados, que parecem constituir um grémio diferenciado
pelas preocupações comuns, pela linguagem e, sobretudo, pelo princípio (quase tão
vetusto como a mesma poesia amatória) de que só o amante entende e sabe apiedar-se
dos outros amantes, ainda que as experiências individuais sejam necessariamente
distintas108. E, tal como constatámos a respeito das outras formas de hierarquia, também
este princípio, ao igualar interiormente os pastores, os une pela semelhança109.
107 Conjecturamos que esta constante preocupação esteja relacionada com a muito clássica lei sagrada da hospitalidade, «one of the highest pastoral duties» (Poggioli, 1975: p.56). 108 Comprova-o o canto amebeu entoado por Alfeo e Siralvo, que, sustentando-se embora num contraste de atitudes face ao amor, realça a sintonia que se vai estabelecendo entre os seus corações, ambos votados a amar, ainda que com distinta fortuna. 109 Escreve R. Bromberg: «the disguise of shepherd equalizes everyone’s rank so that his inner nature undergoes a test of excellence. The shepherd’s dress means that the lover has denuded himself of externals to prove his worth from the beginning» (apud Damiani, 1980: p.62). Muito arguta relativamente ao universo pastoril convencional, esta observação não é aplicável ao Pastor de Fílida senão com grande prudência, pois que, como sabemos, a Arcádia nele debuxada é alvo de uma contaminação que lesa a sua “essencialidade” humana. O próprio amor é sintomático desta mudança, comportando um lastro social inegável, no qual se dilui um tanto o conceito de «inner nature» de cada pastor.
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Assim, a partilha dos casos amorosos não somente aproxima os pastores num
primeiro momento, como acalenta uma relação de solidária amizade e de
companheirismo emocional, tal como demonstra a relação entre Siralvo e Alfeo,
sobretudo se se tiver em consideração que o jovem desenganado é um membro neófito
da comunidade pastoril. Aqui, a compreensão e o respeito mútuos compensam a
escassez do tempo, provando que a cronologia dos espíritos não serve, antes é servida
pela das horas. E tão imediata é esta “amizade à primeira vista”, que logo no primeiro
encontro, mediado por Finea, declara Siralvo: «Las alabanzas que de ti me dio la
serrana, tu persona las confirma todas, y lo que tengo visto bien basta para procurar tu
amistad» (p.291).
Devemos, no entanto, fazer uma distinção que certamente o leitor já adivinha:
este código de cortesia pastoril aplica-se apenas aos pastores não integrados na elite das
personagens que moldam estritamente a sua conduta de acordo com os padrões da
prudência e do recato cortesãos110. Mendino, por exemplo, somente a Siralvo dá conta
dos seus amores com Elisa, e não já movido por um desejo de partilha, senão por uma
necessidade muito prática: a de se fazer acompanhar nas suas entrevistas secretas por
alguém a quem possa confiar a honra e, porventura, a vida. Na corte, partilhar emoções
raramente é sintoma de qualquer tipo de cedência; antes, constitui outra estratégia mais
de sobrevivência social, uma vez que o secretismo excessivo pode revelar-se igualmente
pernicioso ao amante a quem falta o auxílio e o conselho de um confidente (cf.
Castiglione, 1990: pp.354-355). Demais, o que haveria de verdadeiramente íntimo nos
seus amores não o confessa senão aos desertos «donde de nadie podía ser visto ni oído»
(p. 241). Já no terceiro capítulo procurámos salientar a especificidade da conduta
cortesã.
Apenas quando se encontra junto dos “simples” pastores se concede Mendino a
liberdade de discorrer em público sobre as suas fraquezas amorosas, numa cantiga onde
nomeia directamente Filis, a pastora que tomou o lugar da defunta Elisa no seu
pensamento, infringindo assim o preceito cortês, duplamente poético e social, que
ordena a ocultação do nome da amada e de elementos identificadores excessivamente
óbvios (pp.410-411). É curioso reconhecer que, apesar da estreiteza normativa da corte,
ao pastor aristocrata é permitida alguma folgança enquanto se encontra fora do seu
recinto físico e social, algo que exige uma certa capacidade para avaliar as
110 É bem verdade que, na corte, «people are likely to say less than they mean, but hurt each other more severe» (Rosenmeyer, 1969: p.155).
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circunstâncias, que se deve contar entre as prendas do bom cortesão e do homem de
sociedade111. O mesmo sucede com Andria, que, quando sob as vestes de Amaranta,
aprende os modos pastoris e, sendo por natureza pouco dada à contenção, parece tomar
gosto à nova liberdade que lhe permite ao menos o alívio da comunicação,
inconveniente e até arriscada na corte:
«Y ella vencida del dolor, sin guardar la ley de su respeto, como un pastor aficionado usaba de libertad en sus querellas, y ansi […], sin más ruego, comenzó a tocar su zampoña, tras cuyo son, suavemente, dijo ansi sus males» (p.392).
Por último, merece destaque outra virtude, que lança a derradeira prova à
pulcritude destas personagens humana e socialmente idealizadas: a capacidade de
dominarem as suas paixões, não consentindo que elas se avantajem ao generoso
interesse pelos males e bens alheios. Assim, diz Siralvo a Alfeo: «no creas que mis
pasiones han de estorbarme el buscar remedio a las tuyas» (p.378); com efeito, como
ciente da sua função conciliadora e orientadora, o amador de Fílida posterga
frequentemente as suas próprias queixas e a procura do remédio delas para atender às
necessidades dos amigos, o que chega a custar-lhe pelo menos uma entrevista com a sua
pastora (p.293). É esta, aliás, uma das primeiras lições que Andria parece acatar na sua
breve e edificante estadia nos campos: «Amaranta, aunque triste, no por eso seria
desconversable» (p.382). Numa só condição os amantes perdem a capacidade de
coabitar com os outros e de se interessar pelo que lhes não pertence: quando feridos de
zelos112. Filardo, que os personifica, não só nunca é visto aconselhando outros pastores,
como deixa de ser receptivo a qualquer alvitre alheio, redarguindo sempre, quase com
arrogância, que a quem está favorecido «par[ece] poco el mal ajeno» (p.287).
Admitindo a forte simbologia social dos cantos em contexto bucólico113, é muito
significativo o episódio em que Filardo, não podendo sofrer a presença de Filena e do
111 Assevera Castiglione: «volendo voi separare il modo e ‘l tempo e la maniera dalle bone condizioni e ben operare del cortegiano, volete separar quello che separar non si po, perche queste cose son quelle che fanno le condizione bone e l’operar bono» (1990: p.113). Recorde-se também Giovanni della Casa, no Galateo, de 1558: «quello, che fatto a convenevol tempo non è biasimevole, per rispetto al luogo et alle persone è ripreso» (1991: p.57). 112 Recorde-se, a propósito, a novela Desengaño de celos (1586), de Bartolomé López Enciso, que se constrói em torno de uma “não-sociedade”, articulada, precisamente, pelas tensões, lutas de interesses e rancores ocultos engendrados pelos zelos que as personagens alimentam umas em relação às outras. 113 P. Berrio Retortillo salienta quatro desígnios do canto no Pastor de Fílida: «entretener, expresar, responder y celebrar» (1997: p.103). Poderíamos acrescentar às ideias desenvolvidas pela autora que todas estas funcionalidades pressupõem a existência de um acto comunicativo, pelo que, aqui como noutras novelas, o canto solitário é um canto morto (descontando alguns desabafos raros de Siralvo e Mendino).
81
venturoso Pradelio, abandona, a meio da sua canção, a companhia de pastores que se
reunira antes da visita ao templo de Pã (p.267). Cego e miserável, é Filardo, e não o
rival Pradelio, o primeiro responsável pelo fastio de Filena em relação a si, uma vez que
os zelos lhe inspiram todos os comportamentos indesejáveis em sociedade e, mais
ainda, junto do ser amado. Pradelio, por seu turno, ao ver-se numa situação idêntica,
determina-se a «pasar a las islas de Occidente, donde tarde o nunca se pudiese saber de
sus sucesos» (p.416)114.
A Enganosa Harmonia do Amor
Até ao momento, analisámos a amizade e o amor enquanto veículos de
sociabilização, de concórdia e de abertura espiritual. Porém, tão-pouco sob este aspecto
o mundo ficcional dos pastores se revela unívoco, visto que o amor, pelo menos, se
deveras se assemelha a uma semente que se cultiva e rega «com agua del corazón»
(p.387), é, não raro, porque gera abrolhos e pomos de discórdia. Nestas situações, chega
a colocar em risco a tão apregoada paz campestre, algo que no Pastor de Fílida adquire
especial visibilidade, dado que a sua complexa e particularmente frágil estruturação
social logo acusa o mais ligeiro câmbio nas suas peças fundamentais. A amizade,
substrato da harmonia pastoril, não é já agradavelmente concebida como «a state of
grace or spiritual communion, which the stress of life never puts to the test of loyalty or
sacrifice» (Poggioli, 1975: p.20); aqui, é continuamente posta à prova.
Um dos mais evidentes elementos de distúrbio, até pela vasta tradição em que
radica115, são sem dúvidas as cadeias de amores desencontrados – esses caprichosos
desconcertos com que Citereia tanto se deleita (Horácio, Odes, I, 33) –, das quais a
maioria das novelas pastoris não prescinde, sobretudo para assegurar a sua subsistência
114 Tal como na Arcadia de Lope, existem outros lugares onde os pastores se refugiam, quando até o mundo arcádico os trai. Contudo, se o protagonista lopesco troca a realidade pastoril por outra semelhante, o exílio de Pradelio é paradoxal, já que o leva a abandonar a Arcádia pela atribulada existência nas Índias – a abandonar o ideal pelo real –, o que, para além de constituir um discreto testemunho das debilidades deste universo pastoril, abre declaradamente as portas à circunstância histórica. 115 O mais recuado exemplo de que temos notícia, em contexto bucólico, é o idílio VI de Mosco (Crawford, 1915: pp.95), conquanto seja pouco provável que os novelistas pastoris o conhecessem directamente.
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quando os “casos” individuais se vão exaurindo um por um, como ocorre no Pastor de
Fílida a partir de meados da quinta parte, quando quase todos os pastores usufruem
enfim uma merecida felicidade sem história. Neste ponto surge Andria, fazendo vacilar
não apenas os amores de Alfeo e Finea, mas toda uma rede sentimental, que então se
conjuga convocando novas personagens, anteriormente relegadas para segundo plano. A
nova circunstância narrativa é resumida com grande expressividade na última parte,
quando os pastores implicados nesta confusão sentimental em vão se rogam com cantos
e miradas igualmente encadeados116, «Alfeo los ojos en Finea, Andria los suyos en
Alfeo, los de Arsiano en Andria y los de Silvera en Arsiano» (p.467). Outra personagem
tragicamente envolvida nestas tristezas colectivas é Sasio, o poeta, que morre
literalmente de amores por Silvera (p.465). Trata-se de uma inusitada agressão, quer a
nível sentimental, quer a nível social, visto que, com Sasio, a comunidade pastoril perde
o seu mais ínclito poeta, urgindo a eleição de um sucessor, a fim de repor a ordem
lesada (p.466).
A resolução deste imbróglio não assenta, evidentemente, na mera elisão do
elemento onde desemboca a cadeia (Sasio é o único que ama sem ser amado), mas sim
dissolvendo o desarranjo que lhe dá origem: neste caso, os amores entre Alfeo e Finea.
Merece reparo esta via indirecta de demonstrar que a relação entre as duas personagens
socialmente desiguais é a todos os títulos indesejável. Pela mão de Siralvo, generosa
encarnação da concórdia, Alfeo e Finea regressam aos seus amores da mocidade, de
certa forma mais legítimos, não já por haverem sido os primeiros, mas por se fundarem
numa equidade social, aspecto que, para Montalvo, está longe de corresponder a um
critério superficial e arbitrário. Graças a esta primeira atitude avisada, a ordem pastoril
cobra parte do equilíbrio perdido e torna-se mais fácil persuadir Arsiano a aceitar o
amor de Silvera, sendo nestas duas personagens que termina a cadeia amorosa desde o
falecimento de Sasio, cujo sacrifício amoroso se reveste de uma irónica utilidade social
e narrativa, truncando a teia amatória no ponto oportuno.
Outro factor de perturbação são as rivalidades amorosas. Detivemo-nos já no
tenso diálogo travado entre Filardo e Pradelio a respeito de Filena. Todavia, este não é o
único exemplo citável, e é fácil constatar que o rancor gerado pelos zelos afecta tanto os
pastores aristocratas como as restantes personagens, que, se em circunstâncias regulares
manifestam uma cortesia indefectível, quando perturbadas pela «rabia del amor»
116 A música, para além da sua evidente funcionalidade social, constitui um testemunho das relações humanas a um nível puramente sentimental, cuja complexidade absorve e exprime.
83
(p.289), assumem, se não uma atitude de velada agressividade (Filardo e Pradelio), um
cinismo inusitado em caracteres literários da sua classe (Finea e Amaranta). Neste
ponto, até a sã doutrina da moderação pregada por Castiglione, tão escrupulosamente
observada noutras ocasiões, é quebrada sem reservas117. Entre estes pastores não
encontraremos uma relação semelhante à de Sireno e Silvano (La Diana), à de Tauriso e
Berardo (Diana enamorada) ou à de Elicio e Erastro (La Galatea): a amizade tem o seu
limite nos “interesses” amorosos de cada pastor118. Turino e Bruno, amadores de Filis,
mantêm face a estes “duetos” uma diferença capital: um está «nuevamente cautivo» e o
outro recentemente «escapado del amor, siendo verdad que poco antes fue Bruno el
amante y Turino el descuidado» (p.219). O que torna a amizade viável é precisamente
este desencontro sentimental, já que, noutro caso, haveria que optar entre a amizade e o
Amor. O próprio Siralvo – o mais portentoso amador desta novela e um dos mais nobres
protagonistas pastoris com que a tradição ibérica nos brinda – confessa não lhe agradar
especialmente a veneração despertada por Fílida noutros pastores: «Enamorado está
Carpino […] y, para decir verdad, no me hace muy buen gusto» (p.298).
Quando nos deslocamos para o seio da elite que rodeia Sileno, o ciúme e as suas
consequências tornam-se ainda mais agrestes. Isto porque, como sabemos, na vida deste
círculo social intervêm interesses desconhecidos ou negligenciados pelos outros
pastores e que confluem para a vivência amorosa, agudizando os seus conflitos. Aqui, a
dor amorosa não é já simplesmente «etherealized into an exquisite masochism»
(Heninger, 1961: p.255); pelo contrário, exige uma reacção, por vezes muito pouco
pacífica. Vimos já como Mendino e Elisa, Galafrón e Filis, mancham hipocritamente a
lei da amizade com ardis amorosos recíprocos, algo semelhante sucedendo com
Cardenio e Castalio.
Se, por um lado, estas formas de violência subvertem flagrantemente a harmonia
e a paz arcádicas, por outro, essa infracção é atenuada pelo “justo motivo”119 que lhe dá
origem: o amor, outra das convenções pastoris especialmente bem sucedida a partir da
117 «Ma perché a me non piaceria mai che ‘l nostro cortegiano usasse inganno alcuno, vorrei che levasse la grazia dell’amica al suo rivale non con altra arte che con l’amare, col servire e con l’esser virtuoso, valente, discreto e modesto […], guardandosi da alcune sciocchezze inette nelle quali spesso incorrono molti ingoranti» (Castiglione, 1990: p.351). 118 Ao contrário do que escreve B. Mujica sobre a Diana, aqui nem sempre «common suffering breeds feelings of harmony and cooperation, not of rivalry» (1986: p.114): conforme o objecto destes amores é distinto ou comum, gerar-se-á uma relação de camaradagem ou uma rivalidade hostil. Acerca dos interesses pessoais, acrescente-se que «[w]ith the emergence of individual characters, the illusion of harmony begins to dissipate. As the focus turns from the whole to the parts, the imperfection of human existence becomes increasingly evident» (p.30). 119 Sobre o perdão merecido pelos «pecadillos de amor», veja-se Cull (1984).
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Renascença120. Com Rosenmeyer, consideramos que o amor compensa, em larga
medida, o estatismo a que o otium pastoril inclina estas personagens novelescas (cf.
1969: p.72), asserção legitimada no duplo plano com que lidamos, psicológico e social,
bem como no plano narrativo121. Torna-se necessária uma certa dose de perturbação
para assegurar a continuidade da novela e, igualmente, para conferir alguma substância
à paz gratuita com que amiúde estes ambientes ficcionais começam por deslumbrar-nos.
No Pastor de Fílida, como nas Dianas, o amor não é apenas responsável pela
deambulação das personagens no interior do seu meio, mas conduz ainda ao seio desta
Arcádia manchega alguns forasteiros: Finea e Alfeo e, por conseguinte, Orindo e
Amaranta. Esta tradição do exílio voluntário por amor num meio rural, mais ou menos
idealizado, constitui um tópico recorrente na literatura bucólica, que remonta, pelo
menos, à personagem virgiliana Galo (bucólica X). Vindo ao campo acossado por
outros amores, mal poderia saber Alfeo que ali o aguardava um amor muito mais
verdadeiro (ao menos durante algum tempo) por uma pastora junto de quem, qual novo
Tibulo, não o vexaria a labuta campestre nem ser chamado ocioso.
Desta guisa, o enriquecimento trazido pelo amor à experiência social actua em
duas frentes: a dinâmica “rotativa” em que lança a vida amorosa dos pastores e as novas
personagens com que os confronta, provenientes de distintos âmbitos cujos princípios
encarnam, fomentando distintos olhares sobre a utopia pastoril122.
Neste sentido, é curiosa a condição de Siralvo, dada a sua dúbia pertença a ele
ou a qualquer uma das classes que o compõem. Nem bem forâneo nem bem natural
(p.307), nem bem pastor aristocrata nem bem pastor “vulgar”, o amador de Fílida só
parece possuir um elemento que o identifique perante a sociedade: o mesmo amor, que
o radica no solo abençoado pela presença da sua senhora e que o coroa com uma espécie
de aristocracia espiritual, que, ainda na falta de outra “creditação” mais objectiva, o
impõe como autoridade inclusivamente entre os membros da elite pastoril do Tejo123. É
120 Com assinalável optimismo, Fernando de Herrera postula ambas: «La materia de esta poesía es las cosas y obras de los pastores, mayormente sus amores; pero simples y sin daño, no funestos com rabia de celos […]; competencias de rivales, pero sin muerte y sangre» (apud López Estrada, 1975: pp.458-459). 121 Parafraseando Fontenelle, Rosenmeyer explica ainda como a pastoral «is the product of a marriage between idleness and love» (p.77). No caso da novela pastoril espanhola, o amor parece ser o elemento prevalente desta dicotomia: embora intensifique uma certa incúria à partida característica destas personagens, confere-lhes um espírito de iniciativa que, sem ele, jamais demonstrariam. 122 Por exemplo, o espanto de Alfeo ao apreciar a desenvoltura dos pastores, o tédio de Mendino, Cardenio e Siralvo, que os leva a abandonar a “sociedade”, ou o magoado desdém de Andria e de Orindo. 123 A perfeição amatória de Siralvo condiciona a imutabilidade do seu carácter, algo de que mais nenhum pastor se pode jactar: ele é «integrally noble from the start; his duty is not to become good but simply to remain true to himself» (Perry, 1969: p.230a).
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ele que, enquanto encarnação do bom amor neo-platónico e continuador das
magnânimas obras da sábia Felicia, agracia a comunidade que o acolhe com as suas
conspícuas asseverações, corrigindo os desatinos dos ciosos (pp.287-288), consolando
os magoados (pp.306-307) e, enfim, guiando os indecisos (p.471)124. Também aqui fica
a cargo de uma personagem em certa medida distanciada da comunidade pastoril a sua
regeneração espiritual e, logo, social. Isto porque, para Gálvez de Montalvo, um
organismo tão delicado como uma sociedade ideal (ou, melhor, uma sociedade de
ideais) não pode ficar à mercê dos remédios acidentais que dão um oportuno desfecho a
tantas novelas dos Siglos de Oro; assim, se uma feliz fortuna conjuga, num tempo, a
presença de todos os amantes, não é senão para que a intervenção prudente de Siralvo
lhe confira o sentido providencial que aparenta deter por si125.
Outro aspecto ainda merece ser assinalado, e com ele terminaremos tal como
começámos. Trata-se de um certo realismo na concepção da “psicologia” humana, que
distingue esta novela das precedentes126. Apesar de as suas páginas estarem pejadas de
composições de recorte neo-platónico e de os amores das personagens terem em mira os
mesmos fins honestos e inocentes de sempre, o amor humano é encarado aqui com um
certo distanciamento, que não o desdoura se considerarmos que tudo é intrinsecamente
eterno e infinito – enquanto dura127. A verdade é que o tempo, factor desconhecido pela
tradição clássica, faz sentir os seus efeitos na novela pastoril, provavelmente por
constituir um tópico de reflexão a que as letras espanholas sempre foram tão atreitas. Se
nas novelas barrocas chegam a ser debatidas as implicações existenciais do inexorável
fluir dos anos (na Constante Amarilis, por exemplo), no Pastor de Fílida o que está em
causa é o seu impacto nas mentes humanas e, por conseguinte, na ordem social.
O resfriar dos amores mais firmes obriga o narrador a realçar explicitamente as
metamorfoses sentimentais das personagens, que obrigam à reestruturação da tessitura
social: 124 Neste sentido, Siralvo representa a outra face de Sileno, detendo sobre os espíritos dos pastores uma autoridade similar àquela que o velho Sileno detém sobre a organização e os fenómenos sociais. 125 Esta confiança na razão e a tácita assunção da responsabilidade do indivíduo pelo curso da sua existência fazem do Pastor de Fílida um digno sucessor da Diana enamorada, embora aqui a intenção didáctica não seja tão visível nem tão central. 126 Para J. Arribas, no Pastor de Fílida «se introduce una nueva perspectiva narrativa, que captura la idea mítica, sí, pero que también la expresa hecha vida cotidiana. Este interés por crear una narración verosímil y por acercar el mito a la realidad de la experiencia diaria es producto de nuevas transformaciones en la cultura literatura [sic] española» (2008: p.38). 127 Propomos esta resposta ao paradoxo detectado por Alonso Gamo: «entre tantas y tantas páginas […] donde los amores pueden cambiar de signo casi con la misma facilidad que en muchas de nuestras comedias del Siglo de Oro, se pued[e]n ir pescando, como purísimas perlas, algunas de las más bellas y delicadas muestras de nuestra más refinada poesía lírica» (1987: p.46).
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«passar[é] en silencio lo que nos queda del florido abril y del rico y deleitoso mayo, donde nuestros pastores entre sus bienes y sus males, con fortuna y amor, perdiendo y ganando, pasaron cosas dignas de más cuenta que la que yo agora hago. Porque Pradelio y Filena en este tiempo entre mucho dulzor hallaron mucho acíbar, el pastor, celoso y perdido, y la pastora, apremiada y confusa. Alfeo y Finea fueron creciendo en las voluntades hasta hacerse de dos almas una. Ergasto y Licio trujeron a Celio, y hallaron a Silvia enamorada» (p.369).
Para além do efeito de verosimilhança (discutido no primeiro capítulo da
presente reflexão), estas mudanças nutrem ainda a escassa intriga da novela. Com
efeito, um enredo envolvendo seres humanos e não meros estereótipos literários presta-
se a uma maior diversificação narrativa, algo que o nosso autor não faz questão de
explorar grandemente, mas que adquirirá uma importância vital na Galatea cervantina,
apenas três anos posterior. De resto, este cuidado realista prende-se ainda a factores
culturais que, entre a publicação da trilogia e a do Pastor de Fílida, alteraram a
mentalidade de muitos autores espanhóis, e que A. Parker sintetiza: «Se trata de algo
nuevo: el rechazo de las posturas básicas tanto del amor cortés como del neoplatónico;
señala el comienzo de un intento de hacer descender el amor de los cielos de la
idealización a la realidad» (1986: p.131).
É relevante o facto de, exceptuando o caso secundário de Cardenio e Castalio,
não haver exemplos de grandes amizades quebradas, tal como os há de grandes amores
esmorecidos, o que sugere que, por estes anos, já os idílios pastoris privilegiam mais a
sã amizade do que os amores eternos, nos quais, a bem dizer, os novelistas parecem crer
cada vez menos.
Por outro lado, o amor nem sempre tem como fim o matrimónio, ao contrário do
que seria esperável numa novela pós-Contra-Reforma. Julgamos que a justificação para
este facto se encontrará na fusão de linhas ideológicas que caracteriza esta ficção. A
multidão de pastores que não pertence ao círculo privilegiado permanece isenta de
preocupações nesse sentido, vivendo para os amores presentes, desde logo legitimados
pela honestidade com que são conduzidos, preservando assim, parte da liberdade
sentimental de que gozavam os seus avoengos clássicos.
Quanto aos pastores aristocratas, a situação é mais ambígua. O matrimónio
conta-se entre as suas preocupações, ao menos a um nível prático: logo que Padileo
entende que a união com Elisa não seria desejada pela dama, decide contrair um
matrimónio estratégico com a rica e viúva Albanisa (p.230) – decisão bastante prosaica
para o contexto idealizado de uma Arcádia. Fílida é assediada pelos seus «deudos» com
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a ingrata ideia do matrimónio (que domina esta classe de pastores, tal como dominava a
nobreza quinhentista), embora a rejeite. Já Mendino e Galafrón, conquanto integrem a
elite pastoril, preferem manter em segredo as suas relações amorosas, sem pretensões
matrimoniais, não já, segundo cremos, de modo a reivindicarem a liberdade que
caracteriza os restantes pastores, mas antes para manterem os seus amores no âmbito de
um neo-platonismo aristocrático.
Consideramos excepcionais os três matrimónios que marcam a conclusão da
novela, envolvendo várias classes sociais. Interpretamo-los como um imperativo menos
sentimental ou moral do que narratológico e social: cumpre, por um lado, oferecer ao
leitor a garantia de que naqueles volúveis amores se colocou um ponto final irreversível,
e, por outro, restabelecer a ordem na sociedade pastoril, o que passa quer por realizar
uniões igualitárias, quer por restituir cada personagem ao meio que lhe é próprio. Não é
de pouca importância o facto de as personagens oriundas da corte virem solucionar os
seus problemas amorosos a uma Arcádia, ainda que pouco ortodoxa.
Independentemente do modo como os põe em prática, este ambiente social utópico tem
em si inscritos princípios de conduta dignos de orientar um cortesão “genuíno”. Assim,
curado Alfeo da sua irritabilidade melancólica e Andria da sua soberba caprichosa e
instável, passam a estar ambos aptos para abandonarem esta espécie de “sanatório
social” e para se reintegrarem, por sua conta, no meio de onde provisoriamente se
ausentaram. De facto, conquanto reduzida em termos numéricos, esta comunidade
pastoril é já sobejamente complexa para iniciar os jovens cortesãos no mundo ardiloso
com o qual deverão lidar ao longo das suas existências128.
O último episódio da novela, com o qual damos igualmente fim à nossa proposta
de leitura do Pastor de Fílida, revela melhor do que nenhum outro a delicada
complexidade deste universo social, que, no seu conjunto, longe de abafar tiranicamente
os percursos individuais de cada personagem, depende antes da conjugação de todos
esses percursos, inevitavelmente entrelaçados. Nesta medida, a novela pastoril de Luis
Gálvez de Montalvo, conserva e reformula uma das peculiaridades próprias da pastoral
128 Ninguém ignora que, se numa comunidade reduzida há uma grande probabilidade de os interesses particulares coincidirem com os colectivos, uma sociedade mais numerosa exige a imposição de normas que assegurem tanto uns como os outros (cf. Bauzá, 1993: p.148). O que El Pastor de Fílida põe em relevo é a tendência das novelas pastoris espanholas pós-Dianas para apresentarem pequenas comunidades que, no entanto, não dispensam o tipo de regulamentação que se imporia num agregado humano mais amplo, constituindo, assim, algo semelhante a preparações de microscópio através das quais o aprendiz se familiariza com o misterioso mundo que o rodeia.
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clássica, «which reduces all human intercourse to an everlasting tête-à-tête» (Poggioli,
1975: p.21).
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CONCLUSÕES
El Pastor de Fílida assegura a continuidade da novela pastoril espanhola, que
brilhará ainda com alguns títulos antes de entrar em visível decadência. Efectivamente,
concluído o ciclo das Dianas, que possui o seu esplendor e as suas características
próprias, poucas possibilidades restavam aos novelistas pastoris, caso se restringissem
ao seu exemplo – atesta-o o fracasso do único texto publicado durante os quase vinte
anos que separam a Diana enamorada do Pastor de Fílida: Los diez libros de Fortuna
de Amor (1573), de Antonio de Lo Frasso. A novela de Montalvo vem propor um novo
caminho, imprimindo à novela pastoril um «giro audaz» – como o designa Avalle-Arce
(1975: p.153) – a tal ponto inspirador que, desde a sua aparição, se precipita de forma
surpreendente a produção de novelas pastoris em Espanha, facto que, se não assegura a
qualidade de todos os textos, comprova, pelo menos, a popularidade do género entre
autores e leitores.
As novidades introduzidas por Montalvo superam a mera opção estrutural,
estendendo-se ao próprio conceito de «pastoril», que, para além de assimilar tradições
estéticas e ideológicas de diversas proveniências, passa a conjugar de forma mais franca
e audaz a universalidade do mito arcádico e a curiosidade da anedota circunstancial,
eternizada, deste modo, num género por onde o tempo não passa e que passa por todos
os tempos. Novelistas posteriores tiraram partido da engenhosa bimembração do
universo ficcional, que aqui discutimos, polindo assim as arestas do complicado
hibridismo que resulta da transplantação da corte para a aldeia. Lope de Vega, na sua
Arcadia, e Suárez de Figueroa, na Constante Amarilis, foram dois desses autores, cuja
inegável originalidade talvez merecesse ser reconsiderada (não desconsiderada, porém)
a partir do legado de Luis Gálvez de Montalvo.
Embora tenhamos retirado ilações parciais em cada fase da presente reflexão,
encontramo-nos agora, porventura, mais capacitados para oferecer resposta a um dos
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objectivos estabelecidos no começo destas linhas: situar El Pastor de Fílida no período
de vida do género a que pertence. Lidámos, para tal, com uma dupla tradição – clássica
e ibérica –, e reconhecemos que o nosso autor tira proveito de ambas as propostas,
subordinando-as à sua própria concepção do género. Assim, a conclusão deste trabalho,
esquivando-se a uma visão simplista e enganosa, cairá, receamos, no defeito oposto: o
de uma indefinição evasiva. Porque se nos afigura pouco exacto considerar que El
Pastor de Fílida representa, relativamente às novelas anteriores, um retrocesso –
conquanto a Arcadia, que tem mais presente do que as Dianas, as preceda em cerca de
meio século –, ou uma novidade – ainda que desbrave caminho para um vasto corpus de
textos, condicionando o ulterior curso da novela pastoril. Será, talvez, mais prudente
considerar que Montalvo cria uma linha distinta da fundada por Jorge de Montemayor,
que será também abençoada com uma numerosa geração.
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