Universais e Particulares Joo Branquinho
Universidade de Lisboa
Discutimos nesta monografia aspectos importantes do problema tradicional das
categorias, o problema da identificao e caracterizao dos tipos mais inclusivos e
mais bsicos nos quais todos os objectos se deixam dividir. Em particular, discutimos o
ponto de vista conhecido como Realismo Metafsico, de acordo com o qual h duas
categorias de objectos: universais e particulares. Examinamos a questo tradicional dos
universais, o problema de determinar se algumas das propriedades que objectos
familiares tm por exemplo, cor, forma, peso, etc. podem ser identificadas com
universais, ou seja, entidades inteiramente presentes em cada um dos objectos que as
exemplificam. Consideramos que os argumentos disponveis a favor do Realismo
Metafsico, tomados em conjuno com as objeces erguidas contra o ponto de vista
rival, o Nominalismo, tornam aquele ponto de vista prefervel a este.
1. Concreta e Abstracta
Comeamos por introduzir algumas observaes de carcter preliminar sobre uma outra
distino importante em metafsica, a distino entre objectos concretos e objectos
abstractos.
De acordo com uma respeitvel tradio, tornou-se habitual distinguir em
filosofia entre, de um lado, entidades concretas (concreta) como mesas e cadeiras, e, do
outro lado, entidades abstractas (abstracta) como qualidades e nmeros. Todavia, esta
distino, apesar de ser til para certos propsitos, frequentemente deixada num
estado bastante impreciso. E talvez uma das consequncias de tal situao seja a fuso
incorrecta (veja-se abaixo) que muitas vezes feita de abstracta com universais e de
concreta com particulares, sendo desta maneira aquela classificao confundida com
outra classificao com profundas razes na tradio, a diviso entre universais e
particulares (a qual vamos discutir mais adiante).
As duas classificaes pertencem por excelncia provncia da metafsica; e,
dada a importncia que a disciplina tem readquirido na filosofia mais recente
(materializada em livros como Armstrong 1997), elas tm sido objecto de estudo
intenso.
Tal como sucede relativamente a outras classificaes, talvez a melhor maneira -
muito provavelmente a nica maneira - de introduzir os conceitos a distinguir consista
simplesmente em listar um conjunto de ilustraes paradigmticas daquilo que por
eles subsumido. Com efeito, extremamente difcil proporcionar definies estritas para
os termos abstracto e concreto aplicados a objectos, ou seja, conjuntos de
condies separadamente necessrias e conjuntamente suficientes para um objecto dado
ser um objecto abstracto ou um objecto concreto.
Exemplos tradicionalmente apresentados como tpicos de (subcategorias de)
objectos abstractos so os seguintes:
a) propriedades ou atributos de particulares, como a Brancura e a Honestidade (e
tambm propriedades de propriedades, como a propriedade de ser uma qualidade
rara);
b) relaes entre particulares, como a Semelhana e a Amizade;
c) proposies, como a proposio que os homens so todos iguais perante a lei,
e estados de coisas (ou factos), como o estado de coisas (ou o facto) de Teeteto
estar sentado;
d) classes de particulares, como a classe dos polticos corruptos e a classe dos
barbeiros que no fazem a barba a si prprios;
e) nmeros, como o nmero 7 e o nmero das luas de Marte;
f) instantes e intervalos de tempo, como o momento presente e o ms de
Setembro de 1997.
E exemplos tradicionalmente apresentados como tpicos de (subcategorias de)
objectos concretos so os seguintes:
a) particulares espcio-temporais de dimenses variveis, bem como as suas
partes componentes (caso as tenham), como pedras, asterides, planetas,
galxias, pessoas e outros animais, partculas atmicas, etc.;
b) acontecimentos no sentido de acontecimentos-espcime, como o naufrgio do
Titanic, a queda do Imprio Romano e a sesso de ontem da Assembleia Geral
da ONU;
c) lugares, como a cidade de Edimburgo, o meu quarto e o Cear;
d) agregados mereolgicos de objectos fsicos, como a soma mereolgica
daquela mesa com este computador e o agregado mereolgico de Plato e
Teeteto;
e) segmentos temporais de particulares materiais, como estdios temporais de
coelhos (e.g., os discutidos por Quine), de pessoas (e.g., o corte temporal na
existncia de Bill Clinton que corresponde ao perodo em que ele foi Presidente
dos EUA), de esttuas (e.g., esta esttua de Golias desde que foi comprada at
altura em que foi roubada), etc;
f) tropos, ou seja, propriedades consideradas como indissociveis dos
particulares que as exemplificam, como por exemplo a honestidade de Scrates,
a brancura desta pea de roupa e a elegncia da Claudia Schiffer.
A considerao da lista de exemplos supra introduzidos por si s suficiente
para bloquear qualquer assimilao da distino concreto/abstracto distino
particular/universal. De facto, basta reparar que objectos como classes ou proposies
exemplificam a categoria de particulares abstractos (supondo que h objectos deste
genro). A incorreco da assimilao em questo reflecte-se na ambiguidade com a
qual so por vezes caracterizados certos pontos de vista em Ontologia, pontos de vista
esses definidos pela rejeio, ou pela postulao, de determinadas categorias de
objectos. Assim, por exemplo, o nominalismo tanto caracterizado como consistindo na
rejeio de abstracta, como sendo a doutrina de que apenas h objectos concretos, como
caracterizado como consistindo na rejeio de universais, como sendo a doutrina de
que apenas h particulares. Analogamente, o ponto de vista rival do nominalismo,
habitualmente designado como realismo, tanto caracterizado como consistindo na
admisso de abstracta, possivelmente ao lado de concreta, como caracterizado como
consistindo na admisso de universais, possivelmente ao lado de particulares. Por
exemplo, em filosofia da matemtica, o formalismo, que para muitos a forma
assumida pelo nominalismo na rea, tanto descrito como consistindo na rejeio de
classes e outros objectos abstractos como consistindo na rejeio de universais (cf.
Quine 1980, pp. 14-15). Naturalmente, tais caracterizaes esto longe de ser
equivalentes.
Como j foi dito, difcil encontrar um princpio, ou um conjunto de princpios,
que permitam discriminar rigorosamente entre as duas putativas grandes categorias de
entidades ou objectos. Todavia, os seguintes trs parmetros tm sido sugeridos,
conjunta ou separadamente, como bases para a classificao.
I Localizao espacial
Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos que no
podem em princpio ocupar qualquer regio no espao; grosso modo, x um objecto
abstracto se, e s se, x no tem qualquer localizao no espao (presume-se que os
predicados concreto e abstracto so predicados mutuamente exclusivos e conjuntamente
exaustivos de objectos). A proposio que Londres maior que Lisboa no est ela
prpria em Londres, ou em Lisboa, ou em qualquer outro stio; e o mesmo sucede com
o atributo da Brancura e com a classe das cidades europeias, muito embora os exemplos
daquele e os elementos desta possam ter uma localizao espacial.
Associada a esta caracterstica est a inacessibilidade de objectos abstractos
percepo sensvel, mesmo quando esta tomada como ampliada por meio do uso de
certos dispositivos e aparelhos. Proposies (no sentido no lingustico do termo),
atributos, ou classes, no se podem ver, ouvir, cheirar, sentir, ou saborear.
Um problema com o parmetro I o de que uma entidade como Deus, se
existisse, no estaria no espao; mas tambm no seria, por razes bvias, um objecto
abstracto. Esta objeco milita contra a suficincia do parmetro I, no contra a sua
necessidade.
II Existncia necessria
Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos cuja
existncia no contingente, ou seja, aqueles objectos que existem em todos os mundos
possveis, estados possveis do mundo, ou maneiras como as coisas poderiam ter sido;
grosso modo, x um objecto abstracto se, e s se, x existe necessariamente. Em
contraste com isto, a existncia de objectos concretos ou particulares materiais
caracteristicamente contingente: eles poderiam sempre no ter existido caso as coisas
fossem diferentes daquilo que de facto so. A proposio que Londres maior que
Lisboa, ao contrrio daquilo que se passa com os objectos acerca dos quais a proposio
, viz. as cidades de Londres ou Lisboa, um existente necessrio; e o mesmo sucede
com o atributo da Brancura e com a classe das cidades europeias, muito embora os
exemplos daquele e os elementos desta gozem apenas de uma existncia contingente.
Um problema com o parmetro II o de que, segundo certos pontos de vista
acerca de proposies, h certas proposies cuja existncia contingente. A razo
basicamente a de que tal existncia vista como dependendo da existncia dos
particulares materiais acerca dos quais essas proposies so, e esta ltima existncia
manifestamente contingente. Todavia, as proposies em questo no deixam por isso
de ser abstracta. Assim, a adopo do parmetro II teria o efeito imediato de excluir os
pontos de vista sob considerao. Esta objeco milita contra a necessidade do
parmetro II, no contra a sua suficincia.
III Interaco causal
Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos que no
so capazes de figurar em cadeias causais, aqueles objectos que nem esto em posio
de ter algo como causa nem esto em posio de ter algo como efeito; grosso modo, x
um objecto abstracto se, e s se, x no tem poderes causais. Em contraste com isto,
objectos concretos ou particulares materiais so, por excelncia, susceptveis de
interagir causalmente com outros objectos, igualmente concretos, de figurar em eventos
que so causas ou efeitos de outros eventos.
Um problema com o parmetro III o de que determinados pontos de vista
atribuem certos poderes causais, designadamente aqueles que so requeridos para
efeitos de explicao cientfica, a objectos abstractos como propriedades. Esta objeco
milita contra a necessidade do parmetro III, no contra a sua suficincia.
2. Propriedades
Antes de examinarmos a distino entre universais e particulares e discutirmos o
problema associado dos universais, conveniente introduzirmos com mais algum
detalhe uma noo importante da metafsica e da teoria das categorias: a noo de
propriedade ou atributo.
Em geral, uma propriedade um atributo, um aspecto, uma caracterstica, ou
uma qualidade, que algo pode ter.
Propriedades so tradicionalmente descritas como constituindo uma categoria de
entidades que se distingue de uma outra categoria ontolgica, a categoria de
particulares ou indivduos. Grosso modo, a distino proposta a seguinte.
Propriedades formam aquela categoria de entidades que se caracterizam por serem
predicveis de, ou exemplificveis por, algo. Por exemplo, a propriedade de ser oval
predicvel de, ou exemplificvel por, objectos ovais; e diz-se destes objectos que so
exemplos ou espcimes da propriedade, a qual por vezes vista como um tipo ou
universal. Uma predicao consiste assim na atribuio de uma propriedade a um
indivduo; a predicao ser verdadeira se o indivduo exemplifica a propriedade e falsa
se a no exemplifica. Por outro lado, os indivduos formam aquela categoria de
entidades que se caracterizam por serem sujeitos (potenciais) de predicaes ou
exemplos (potenciais) de propriedades, mas que no so por sua vez predicveis de, ou
exemplificveis por, o que quer que seja. Por exemplo, a minha mo esquerda
exemplifica certas propriedades, designadamente a propriedade de ter um nmero mpar
de dedos, e no exemplifica outras propriedades, designadamente a propriedade de ser
solvel; mas no predicvel do que quer que seja.
Naturalmente, esta descrio rude da diviso de entidades em particulares e
propriedades no de forma alguma inconsistente com a circunstncia de muitas
propriedades poderem por sua vez ser sujeitos de predicaes e exemplificar outras
propriedades. Por exemplo, (presumivelmente) a propriedade de ser um poltico
honesto, da qual certas pessoas so exemplos, exemplifica igualmente a propriedade de
ser (uma propriedade) rara. usual chamar a propriedades deste gnero propriedades
de segunda ordem; trata-se assim de propriedades que tm como exemplos propriedades
predicveis de indivduos, sendo estas ltimas propriedades por sua vez designadas
como propriedades de primeira ordem. Em geral, e ignorando certas complicaes,
pode-se dizer que uma propriedade de ordem n uma propriedade exemplificvel
apenas por propriedades de ordem n 1 ou inferior, se n 2, e por indivduos, se n = 1. Isto d-nos uma hierarquia de entidades na base da qual esto entidades de nvel 0
(indivduos), seguidas de entidades de nvel 1 (propriedades de primeira ordem),
seguidas de entidades de nvel 2 (propriedades de segunda ordem), e assim por diante.
A adopo de uma estratificao deste gnero constitui uma das maneiras de bloquear
uma verso simples do Paradoxo de Russell aplicado a propriedades.
Simplificadamente, o paradoxo o seguinte. Por um lado, certas propriedades parecem
ter a propriedade de no se exemplificarem a si mesmas; por exemplo, a propriedade de
ser oval no se exemplifica a si mesma, isto , no tem ela prpria a propriedade de ser
oval. Por outro lado, outras propriedades parecem ter a propriedade de se
exemplificarem a si mesmas; por exemplo, a propriedade de ser abstracta exemplifica-se
a si mesma, isto , tem ela prpria a propriedade de ser abstracta. Considere-se agora a
propriedade de ser uma propriedade que no se exemplifica a si mesma. E perguntemo-
nos o seguinte. esta propriedade uma propriedade que se exemplifica a si mesma? Se
respondermos afirmativamente, conclumos que a propriedade em questo no se
exemplifica a si mesma. Se respondermos negativamente, conclumos que a propriedade
em questo se exemplifica a si mesma. Obtemos assim uma contradio formal: aquela
propriedade exemplifica-se a si mesma e no se exemplifica a si mesma. Naturalmente,
o paradoxo no gerado se impusermos sobre propriedades a restrio acima
introduzida de que uma propriedade s pode ser predicvel de propriedades de ordem
inferior.
Note-se ainda que plausvel introduzir propriedades (por exemplo, de primeira
ordem) que, de acordo com a maneira como as coisas so, no tm quaisquer exemplos
ou no so exemplificadas por qualquer objecto; um caso dado na propriedade de ser
uma pessoa com mais de oito metros de altura. E parece ser plausvel introduzir mesmo
propriedades que, necessariamente, no so exemplificadas por qualquer objecto; casos
so dados na propriedade de ser uma pessoa mais baixa do que ela prpria, cuja
exemplificao por algo metafisicamente impossvel, e na propriedade de ser um
habitante do sexo masculino do Cartaxo que barbeia todos aqueles, e s aqueles,
habitantes do sexo masculino do Cartaxo que no se barbeiam a si prprios, cuja
exemplificao por algo logicamente impossvel.
Em filosofia da linguagem e em semntica, propriedades so muitas vezes
concebidas como aquilo que expresso por predicados mondicos ou de grau 1; ou,
noutra terminologia, como sendo o significado ou o contedo semntico atribudo a
predicados mondicos. Diz-se, por exemplo, que o predicado () oval exprime a
propriedade de ser oval, e que o predicado ( um) admirador de Bob Dylan exprime a
propriedade de ser um admirador de Bob Dylan. Para aqueles propsitos, ainda
frequente relativizar propriedades a instantes de tempo de tal maneira que, por exemplo,
possvel o mesmo objecto exemplificar numa dada ocasio a propriedade
temporalmente indexada de ser oval em t e no exemplificar nessa ocasio a
propriedade, distinta daquela se t e t' so tempos diferentes, de ser oval em t'. Naquela
concepo de propriedades, estas so vistas como entidades intensionais no seguinte
sentido. A propriedade de ser gua e a propriedade de ter dois tomos de hidrgenio e
um de oxignio, por exemplo, so contadas como propriedades distintas, apesar de
serem exemplificadas exactamente pelos mesmos objectos (lquidos) e de terem assim a
mesma Extenso (ou determinarem o mesmo conjunto de objectos). Do ponto de vista
semntico, predicados como gua e H2O no so considerados como
sinnimos, pois exprimem desse modo propriedades (intenses) distintas, muito embora
tenham a mesma extenso (ou sejam co-extensionais). Do ponto de vista do aparato da
semntica de mundos possveis, uma prtica corrente identificar a propriedade
expressa por um predicado mondico F (a intenso de F) com uma funo cujos
argumentos so um mundo possvel m e um tempo t e cujo valor para esses argumentos
a classe de todos aqueles, e s daqueles, objectos existentes em m que satisfazem em
m o predicado F em t (ou que exemplificam em m a propriedade de ser F em t); por
exemplo, a propriedade expressa pelo predicado () sbio vista como sendo aquela
funo que, dadas uma situao contrafactual e uma ocasio, determina a classe das
pessoas existentes nessa situao que so a sbias nessa ocasio (obviamente, a classe
determinada poder variar de mundo para mundo ou de ocasio para ocasio).
Todavia, convm referir que uma tal construo de propriedades como entidades
intensionais no de modo algum consensual; alguns filsofos adoptam um ponto de
vista puramente extensional no qual propriedades so antes vistas como aquilo que
referido ou designado por predicados mondicos e no qual, por exemplo, as
propriedades de ser gua e ter dois tomos de hidrognio e um de oxignio so contadas
como uma nica propriedade (os predicados gua e H2O podem no entanto
estar associados a conceitos diferentes, ou representaes mentais diferentes, dessa
propriedade).
Para alm de poderem ser caracterizadas como aquilo que expresso por
predicados mondicos, propriedades podem tambm ser caracterizadas como aquilo que
designado ou referido por certas nominalizaes ou termos singulares de um certo
tipo. Trata-se de termos complexos que resultam da aplicao a predicados mondicos,
ou a frases abertas com uma varivel livre, de um Operador de Abstraco de
propriedades (o smbolo tem sido usado para o efeito); este operador liga a varivel livre e produz designadores das propriedades expressas pelos predicados mondicos (ou
frases abertas) em questo. Por exemplo, dado o predicado ou frase aberta x oval, a
prefixao do operador de abstraco gera o termo singular x (x oval), o qual se l simplesmente A propriedade de ser oval; e, dado o predicado x sbio, a
aplicao daquele operador gera o termo x (x sbio), o qual se l A propriedade de ser sbio ou (se quisermos) a sabedoria. Uma predicao isto , uma atribuio
a um indivduo, por exemplo, Scrates, de uma propriedade, por exemplo, a sabedoria
pode ser ento representada por meio de uma frmula do gnero
E (Scrates, x (x sbio)) (em que E a relao de exemplificao); obviamente, tem-se o seguinte:
E (Scrates, x (x sbio)) se, e s se, Scrates sbio.
Supondo que predicados como ( um) ser humano e ( um) bpede sem
penas exprimem diferentes propriedades (intensionalmente concebidas), os termos
singulares x (x um ser humano) e x (x um bpede sem penas) no sero co-referenciais e designaro propriedades co-exemplificveis mas distintas
(nomeadamente, e por hiptese, aquelas que so expressas por aqueles predicados).
A noo geral de uma propriedade invocada em certas formulaes correntes
de dois princpios tradicionais acerca da identidade de objectos. Um deles, conhecido
por princpio da Indiscernibilidade de Idnticos,1 estabelece que uma condio
necessria para objectos serem idnticos eles exemplificarem exactamente as mesmas
propriedades; em smbolos, tem-se
x y (x = y x y) (em que x, y so variveis objectuais e toma valores num domnio de propriedades). O outro, conhecido por princpio da identidade de indiscernveis, estabelece que aquela
condio suficiente para a identidade de objectos; em smbolos, tem-se a frmula
conversa daquela:
x y (x y x = y)
O estatuto destes princpios dissemelhante. A indiscernibilidade de idnticos
normalmente considerada como uma verdade lgica; e alegados contra-exemplos tm
sido afastados como inadequados. Mas a identidade de indiscernveis s pode ser
considerada uma verdade lgica se, contrariamente quilo que foi explicitamente
assumido por alguns dos seus defensores (por exemplo, aparentemente, Leibniz),
nenhuma restrio for imposta sobre as propriedades em que a varivel suposta tomar valores; em particular, se os valores da varivel forem limitados a propriedadades
puramente qualitativas e/ou no relacionais de objectos (ver abaixo), o princpio no
ser uma verdade lgica (na melhor das hipteses, trata-se de uma verdade contingente).
Que o princpio irrestrito uma verdade lgica simples de estabelecer. Assuma-se x 1Este princpio atribuvel a Leibniz
y. Substituindo z por x = z, obtm-se x = x x = y; e, como se tem x = x pela reflexividade da identidade, deduz-se x = y.
Para alm da classificao acima mencionada de propriedades quanto ordem,
existem diversas outras maneiras de agrupar propriedades (muito embora algumas das
noes propostas sejam notoriamente difceis de definir ou de caracterizar de modo
completamente preciso).
Em primeiro lugar, habitual distinguir entre propriedades (logicamente)
simples e propriedades (logicamente) complexas. No mnimo, uma propriedade
logicamente complexa uma propriedade que pode ser obtida a partir de propriedades
dadas por meio de dispositivos lgicos familiares; por outras palavras, trata-se de uma
propriedade em cuja especificao figura (de modo explicto ou implcito) pelo menos
uma ocorrncia de um operador sobre frases (abertas ou fechadas), por exemplo, uma
conectiva proposicional ou um quantificador. Caso contrrio, a propriedade ser
logicamente simples. Assim, exemplos de propriedades logicamente complexas so as
seguintes: a propriedade de ser um poltico honesto (a qual representvel por x (Poltico x Honesto x)), a propriedade de ser sbio se Scrates o for (x (Sbio Scrates Sbio x)), a propriedade de ser Scrates ou Aristteles (x (x = Scrates x = Aristteles)), a propriedade de no ser sbio a menos que 2 + 2 = 5 (x ( Sbio x 2 + 2 = 5)), a propriedade de ser casado (x (y Casado x, y)), e a propriedade de admirar todos os polticos honestos (x (y (Poltico y Honesto y Admirar x, y))). E as propriedades de ser oval, ser mais sbio que Scrates (x (Mais Sbio x, Scrates)), e ser uma boa actriz (x (Boa Actriz x)) so exemplos (o ltimo dos quais menos bvio) de propriedades logicamente simples.
Diversos critrios de identidade para propriedades tm sido propostos. Uma
sugesto habitualmente feita a seguinte (relativamente a propriedades de primeira
ordem). Propriedades so idnticas se, e s se, so necessariamente co-exemplificveis,
isto , so exemplificadas exactamente pelos mesmos objectos em qualquer mundo
possvel; em smbolos, tem-se
= NECx (x x)
luz deste critrio, as propriedades de ser solteiro e de ser uma pessoa do sexo
masculino no casada sero obviamente idnticas; e o mesmo se pode plausivelmente
dizer das propriedades de ser gua e ser H2O e das propriedades de ser Tlio e ser
Ccero. Todavia, alega-se muitas vezes que um princpio daquele gnero no discrimina
onde deveria discriminar. Por exemplo, o critrio torna idnticas todas as propriedades
cuja exemplificao metafisica ou logicamente impossvel (o que o mesmo que dizer
que s h uma dessas propriedades), e torna tambm idnticas todas as propriedades
cuja exemplificao metafisica ou logicamente necessria; para alm disso, o critrio
no permite distinguir entre propriedades como as de ser sbio e ser sbio a menos que
2 + 2 = 5 (estas so necessariamente co-exemplificveis). Para evitar tais dificuldades,
defende-se por vezes a ideia de que o critrio apenas aplicvel a propriedades
logicamente simples (ou a propriedades puramente qualitativas, ou a propriedades no
relacionais, ou a ambas).
Em segundo lugar, existe tambm uma distino intuitiva entre propriedades
puramente qualitativas (ou gerais) e propriedades no-qualitativas, e uma distino
intuitiva entre propriedades relacionais e propriedades no relacionais (por vezes, os
termos extrnsecas e intrnsecas so usados para o mesmo efeito). Grosso modo, uma
propriedade qualitativa de um objecto uma propriedade em cuja especificao no
feita qualquer referncia a um indivduo ou objecto particular (por exemplo, atravs do
uso de um nome prprio ou de outro tipo de designador). Assim, a propriedade de ser
sbio, a propriedade de estar beira de um ataque de nervos, e a propriedade de ser um
filsofo portugus gago e mais presunoso do que todos os outros so propriedades
puramente qualitativas (de pessoas que as exemplifiquem); e a propriedade de ser
Ccero, a propriedade de ter atravessado o Guadiana numa noite escura, e a propriedade
de admirar alguns fsicos que admirem Feynman e detestem Gellmann so propriedades
no-qualitativas (de pessoas que as exemplifiquem). Por outro lado, uma propriedade
relacional de um objecto uma propriedade em cuja especificao feita uma meno a
uma certa relao entre objectos (por exemplo, atravs do uso de um predicado didico).
Assim, a propriedade de ser casado, a propriedade de estar sentado entre Clinton e
Bush, e a propriedade de ser o mais presunoso filsofo portugus so propriedades
relacionais (de pessoas que as exemplifiquem); enquanto que a propriedade de ser um
filsofo gago presunoso ser uma propriedade no relacional (de uma pessoa, se existe,
que a exemplifique). Naturalmente, dado estas caracterizaes das noes, existiro
propriedades que so simultaneamente qualitativas e relacionais, como por exemplo a
propriedade de ser idolatrado ou a propriedade de ser dono de um co rafeiro.2
Alguns filsofos defendem (e outros rejeitam) uma classificao das
propriedades exemplificadas por um objecto (ou por objectos de certas categorias) em,
de um lado, propriedades essenciais do objecto, e, do outro, propriedades acidentais do
objecto. A ideia a seguinte.3 Uma propriedade de um objecto x uma propriedade essencial de x se, e s se, x exemplifica em qualquer mundo possvel (ou situao contrafactual) no qual x exista; intuitivamente, trata-se no apenas de uma propriedade
que o objecto de facto tem, mas de uma propriedade tal que se o objecto no a
exemplificasse deixaria simplesmente de existir. Em smbolos, uma propriedade essencial de x no caso de a seguinte condio modal se verificar
(Ex x) (em que Ex se l x existe). Por outro lado, uma propriedade de um objecto x uma propriedade acidental de x se, e s se, x no exemplifica em pelo menos um mundo possvel (ou situao contrafactual) no qual x exista; intuitivamente, trata-se de uma
propriedade que o objecto de facto tem, mas que poderia no ter tido e continuar a
existir. Em smbolos, uma propriedade acidental de x no caso de a seguinte condio se verificar
(Ex x) Assim, por exemplo, as seguintes propriedades de Scrates poderiam ser vistas
como propriedades essenciais de Scrates: a propriedade de ser este indivduo
(Scrates) (x (x = Scrates)), a propriedade de ser uma pessoa (x (Pessoa x)), a propriedade de no ser Aristteles (x ( x = Aristteles)), a propriedade de ser idntico a si mesmo (x (x = x)), e a propriedade de ter um certo par de pessoas particulares a e b como progenitores (x (Prog a, x Prog b, x)). Destas propriedades essenciais de Scrates, a primeira (tradicionalmente conhecida como a haecceitas de Scrates)
tambm uma essncia individual de Scrates (isto , uma propriedade que s Scrates
exemplifica em qualquer mundo possvel em que exista); a segunda, a terceira, e a
quinta so propriedades essenciais que Scrates partilha com outros membros da
espcie humana (no primeiro caso com todos, no segundo com todos menos Aristteles, 2 Por vezes, aquilo que se tem em mente quando se fala de uma propriedade intrnseca de um objecto
uma propriedade qualitativa e no relacional desse objecto.
e no terceiro apenas com os seus irmos e irms caso existam); por ltimo, a quarta
uma propriedade essencial que Scrates partilha com qualquer objecto (de qualquer
categoria). Por outro lado, as seguintes propriedades de Scrates poderiam ser vistas
como propriedades acidentais de Scrates: a propriedade de ser um filsofo, a
propriedade de ter bebido a cicuta, e a propriedade de ser casado com Xantipa. Note-se
que, dada uma tal caracterizao das noes, as propriedades essenciais de um objecto
no coincidem necessariamente com as suas propriedades intrnsecas (no relacionais
e/ou puramente qualitativas); com efeito, a propriedade acima mencionada de ter as
pessoas a e b como progenitores (argumentavelmente) uma propriedade essencial de
Scrates, apesar de se tratar de uma propriedade extrnseca, relacional e no-qualitativa,
de Scrates.
Finalmente, a bibliografia filosfica recente contm diversas referncias a
propriedades de certo modo artificiais conhecidas como propriedades Cambridge. A
ideia basicamente a seguinte. A exemplificao por um objecto numa ocasio de uma
propriedade que o objecto no exemplificava anteriormente envolve normalmente uma
certa mudana ou modificao no objecto em questo. Por exemplo, ao tomar posse e
passar assim a exemplificar a propriedade de ser Presidente da Repblica Portuguesa,
uma mudana certamente ocorre no indivduo Jorge Sampaio. No entanto, tal nem
sempre o caso. Na ocasio em que Sampaio passar a exemplificar aquela propriedade,
eu passo tambm a ter uma propriedade que anteriormente no tinha, designadamente a
propriedade de ser tal que Sampaio Presidente da Repblica Portuguesa. Esta
propriedade um exemplo de uma propriedade Cambridge que eu exemplifico naquela
ocasio (embora no seja uma propriedade Cambridge de Sampaio). Trata-se assim de
propriedades de algum modo no-genunas de um objecto, que no envolvem qualquer
mudana no objecto (apesar de poderem envolver mudanas noutro objecto).
ainda conveniente observar que o termo Atributo s vezes utilizado como
termo genrico que cobre quer propriedades (no sentido anteriormente introduzido)
quer ainda Relaes. Assim, um atributo frequentemente caracterizado como aquilo
que expresso (ou, em certos pontos de vista, referido) por um predicado com qualquer
nmero de argumentos ou n-dico (com n 1). Deste modo, a predicado mondicos (por exemplo, () oval) esto associados atributos mondicos ou propriedades (por
exemplo, o atributo mondico, ou a propriedade, de ser oval); a predicados didicos (por
exemplo, admira) esto associados atributos didicos ou relaes binrias (por
exemplo, o atributo didico, ou a relao binria, de admirar), as quais so
exemplificveis por pares ordenados de objectos; a predicados tridicos (por exemplo,
estar a leste de e a norte de) esto associados atributos tridicos ou relaes ternrias, as quais so exemplificveis por triplos ordenados de objectos; e assim por
diante.
3. Nominalismo versus Realismo
Uma distino filosfica tradicional, a qual tem em traos gerais persistido ao longo da
moderna bibliografia metafsica e lgico-filosfica, aquela que divide a totalidade das
entidades ou dos objectos em duas grandes categorias mutuamente exclusivas e
conjuntamente exaustivas: universais, objectos que so em essncia repetveis,
exemplificveis, ou predicveis de algo; e particulares, objectos que em essncia no
so repetveis, exemplificveis, ou predicveis do que quer que seja. Objectos abstractos
como propriedades e atributos, por exemplo a propriedade de ser sbio e o atributo da
Brancura, so ilustraes paradigmticas de universais; e objectos concretos como o
meu relgio e Bill Clinton so exemplos paradigmticos de particulares.
A aceitao ou rejeio da distino tem sido til para a caracterizao de alguns
dos pontos de vista mais familiares disponveis em ontologia. Assim, o nominalismo
muitas vezes caracterizado como a doutrina segundo a qual no h universais, a doutrina
segundo a qual, numa ontologia razovel, todos os objectos so necessariamente
particulares; ou, numa verso mais forte, a doutrina segundo a qual s h particulares
concretos, objectos de algum modo localizveis no espao-tempo. O nominalismo tem
tambm sido ocasionalmente descrito como a doutrina de que no h objectos
abstractos, a doutrina de que, numa ontologia razovel, todos os objectos so
necessariamente concreta. Todavia, as duas caracterizaes no so de todo
equivalentes. Basta observar que h posies classificveis como nominalistas que no
entanto admitem objectos abstractos, e.g., nmeros e classes. A primeira caracterizao
assim de longe prefervel. O realismo, pelo menos enquanto posio metafsica e no
epistemolgica, muitas vezes caracterizado como a doutrina de que h universais, a
doutrina de que, numa ontologia razovel, pelo menos alguns objectos so
necessariamente universais; ou, numa verso mais forte, a doutrina para a qual talvez
seja mais apropriada a designao platonismo de que tudo o que h so universais.4
4 Note-se que esta doutrina pode assumir a forma particular de uma anlise de particulares em termos de feixes de propriedades.
A distino muitas vezes introduzida em termos parcialmente lingusticos, sendo a
admisso de universais motivada com base em determinados argumentos de carcter
semntico. Em geral, trata-se de argumentos que visam estabelecer a indispensabilidade
de certas categorias de objectos exibindo o seu estatuto de correlatos semnticos de
certas categorias de expresses lingusticas. Assim, grosso modo, particulares tm sido
descritos como sendo as contrapartes extra-lingusticas ou os valores semnticos de
expresses referenciais e de termos singulares concretos: objectos do gnero daqueles
que so nomeados (em contextos dados) por expresses como O meu relgio, Esta
casa, Teeteto, O rio Tejo, etc. E universais tm sido notoriamente descritos como
sendo as contrapartes extra-lingusticas ou os valores semnticos de termos gerais ou,
mais em geral, de predicados e de certos substantivos abstractos: objectos do gnero
daqueles que so aparentemente designados (em contextos dados) por expresses como
Homem, Branco, Mais pequeno do que, Humildade, Sabedoria, etc. Dada
uma frase simples como Teeteto humilde, a ideia a de que, tal como necessrio
para fins semnticos reconhecer algo que o sujeito da frase a palavra Teeteto
designa, viz., a pessoa Teeteto em carne e osso, tambm necessrio reconhecer algo
que o predicado da frase a expresso humilde designa, viz., a Humildade ou a
propriedade de ser humilde (s que aqui perde-se a inocncia, pois no se tem nada de
carne e osso). Exemplos tpicos de universais enquanto valores semnticos de
predicados so, por conseguinte, os seguintes:
(a) atributos, os valores semnticos dos sujeitos de frases como A sabedoria uma virtude e A honradez rara;
(b) propriedades, os valores semnticos dos predicados mondicos que ocorrem em frases simples; e
(c) relaes, os valores semnticos dos predicados didicos em frases como Scrates ama Teeteto, dos predicados tridicos em frases como Coimbra est
entre Lisboa e Aveiro, etc.
Um postular de universais julgado necessrio com base na ideia de que uma
especificao correcta das condies de verdade de uma predicao mondica como
Teeteto humilde, por exemplo, envolve uma referncia aos dois gneros de objectos
(particulares e tambm universais), bem como a uma relao especial que se verifica ou
no entre eles, a relao de exemplificao ou predicao. Assim, diz-se que aquela
frase verdadeira se, e s se, o particular Teeteto exemplifica a propriedade de ser
humilde ou o universal mondico Humildade (se, e s se, essa propriedade ou universal
mondico predicvel de Teeteto). E a mesma estratgia generalizvel a predicaes
de aridade arbitrria. Diz-se, por exemplo, que uma frase como Brutus detesta Csar
verdadeira se, e s se, o par ordenado de particulares exemplifica a
relao binria, ou o universal didico, Detestar (se, e s se, essa relao ou universal
didico predicvel desses dois particulares tomados nessa ordem).
Todavia, hoje cada vez mais consensual, entre os actuais defensores dos
universais, a ideia de que a distino lingustica insuficiente ou mesmo deficiente; e
que os argumentos de natureza semntica so em geral inconclusivos. Em particular, a
crtica de Quine a argumentos com esse gnero de inspirao foi levada a srio e tornou-
se extremamente influente, acabando por ter a vantagem de obrigar os realistas
contemporneos a uma maior sofisticao das suas posies. Objecta-se que os
argumentos semnticos, pelo menos nas suas formulaes mais correntes, dependem
crucialmente de uma premissa muito pouco credvel, em virtude de estar fundada numa
analogia claramente ilegtima. Essa premissa a tese de que predicados e termos gerais
funcionam na linguagem exactamente como nomes prprios e outros termos singulares;
presume-se incorrectamente que ambos designam ou nomeiam determinados objectos,
que a funo de nomeao comum a ambas as categorias de expresso. Note-se,
todavia, que este tipo de crtica ineficaz contra argumentos semnticos centrados no
comportamento de certos termos singulares abstractos ao ocorrerem como sujeitos de
predicaes mondicas de ordem superior, como por exemplo o caso da frase A
honestidade rara. A rplica nominalista habitual consiste numa tentativa de
parafrasear essas frases em frases nas quais j no h qualquer referncia nominal a
alegados universais. Mas, se a estratgia da parfrase parece funcionar em relao a
casos como A honestidade uma virtude, j no claro que ela funcione em relao a
casos como A honestidade rara.
Por outro lado, aquela objeco aos argumentos semnticos por vezes
complementada com a observao de que a maneira atrs adoptada de especificar
condies de verdade, utilizando o idioma de propriedades e relaes, est longe de ser
mandatria e perfeitamente evitvel; por conseguinte, a argumentao a ela associada
resulta ser extremamente frgil. Com efeito, um nominalista em termos de classes,
como por exemplo o caso de David Lewis, pode sempre substituir satisfatoriamente
uma aparente referncia a universais, por parte dos predicados de predicaes
mondicas, por uma referncia a classes; e estas so objectos particulares, embora
abstractos. De facto, o seguinte tipo de especificao de condies de verdade
igualmente satisfatrio: uma frase como Teeteto humilde verdadeira se, e s se, o
particular Teeteto pertence classe das pessoas humildes. E mesmo as predicaes de
ordem superior podem ser do mesmo modo vistas como envolvendo uma referncia
apenas a classes, e no a universais; pode-se sempre dizer, por exemplo, que uma frase
como A honestidade rara verdadeira se, e s se, a classe nomeada pelo sujeito,
viz., a classe das pessoas humildes, pertence classe associada ao predicado, viz., a
classe de todas as classes que tm muito poucos elementos. Alternativamente, um
nominalista em termos de classes poderia mesmo aceitar a especificao anterior de
condies de verdade em termos de propriedades mas insistir que propriedades se
deixam afinal reduzir a classes de objectos, actuais ou meramente possveis; na
metafsica de Lewis, por exemplo, a propriedade de ser sbio identificada com um
particular abstracto: a classe das pessoas sbias, a qual inclui no entanto quer pessoas
actuais quer pessoas meramente possveis, quer Scrates quer uma sua contraparte num
certo mundo possvel no-actual.
A moral da histria a de que, face vulnerabilidade dos argumentos semnticos,
muitos realistas actuais preferem proceder a uma caracterizao substantiva e
essencialmente no-lingustica dos universais, acabando por rejeitar a tese de que todo o
predicado ou termo geral tem necessariamente um certo universal como seu valor
semntico ou correlato ontolgico. Por exemplo, predicados como alto ou 2 + 2 = 4,
frgil, auto-idntico, unicrnio, quadrado redondo, etc., no so vistos em
algumas posies modernas como estando associados a quaisquer universais (por razes
diferentes em cada caso). H quem queira distinguir entre propriedades (num sentido
lato que inclui qualidades, atributos, relaes, etc.) e universais, e defender a ideia de
que, apesar de todos os universais serem propriedades, h bastantes propriedades que
no so universais. Do ponto de vista do chamado realismo cientfico subscrito por
David Armstrong e outros, apenas aquelas propriedades que sejam causalmente
eficazes, no sentido de figurarem em generalizaes tpicas da cincia, tm o estatuto de
universais. assim possvel excluir do domnio dos universais propriedades no-
atmicas como a propriedade disjuntiva associada ao primeiro dos predicados acima,
propriedades disposicionais como a propriedade associada ao segundo predicado, e
propriedades meramente formais como a propriedade associada ao terceiro predicado; e
possvel incluir nesse domnio propriedades como a propriedade de ter uma certa
estrutura molecular, ter uma certa forma, ter uma certa massa, etc.
Para alm deste gnero de motivao para a introduo de universais, a qual consiste
em geral na sua indispensabilidade para fins de explicao cientfica, uma outra linha de
argumentao independente tem sido frequentemente utilizada para o mesmo efeito.
Trata-se do argumento, certamente dotado de uma longa histria na tradio filosfica,
conhecido como o argumento do um-em-muitos. De uma forma simplificada, trata-se do
argumento segundo o qual os universais, enquanto entidades essencialmente repetveis
ou predicveis de um grande nmero de particulares, so indispensveis para explicar as
semelhanas ou identidades qualitativas que se estabelecem entre particulares
numericamente distintos. A semelhana entre particulares numericamente distintos, por
exemplo a forte similaridade entre dois objectos fsicos que so rplicas exactas um do
outro (e.g., duas fotocpias da mesma pgina), consiste na coincidncia de
propriedades; ou seja, no facto de esses particulares exemplificarem as mesmas no
sentido de numericamente as mesmas propriedades (obviamente, sob pena de uma
regresso ad infinitum, no se poderia aqui invocar como explicao a mera semelhana
entre propriedades!). Alega-se assim que Um e o mesmo universal, e.g., o universal
Humildade (supondo que se trata de um universal), est presente em Muitos
particulares, e.g., Scrates, Teeteto, Clias, etc., no sentido de todos estes particulares o
exemplificarem; e este gnero de facto que permite explicar de forma satisfatria as
relaes de semelhana verificadas entre particulares. Naturalmente, esta linha de
argumentao a favor dos universais pode ser, e tem sido, consistentemente combinada
com argumentos do primeiro tipo, argumentos centrados na aparente indispensabilidade
dos universais para fins de explicao cientfica.
Finalmente, conveniente fazer uma referncia a duas concepes distintas acerca
da natureza dos universais que ocorrem com alguma frequncia na bibliografia mais
recente. De um lado, h a doutrina segundo a qual os universais so essencialmente ante
rem, ou seja, objectos completamente auto-subsistentes, cuja natureza e existncia so
independentes da circunstncia de serem exemplificveis por particulares; esta posio
tem sido descrita como concepo platonista dos universais. Do outro lado, h a
doutrina segundo a qual os universais so essencialmente in rebus, objectos cuja
natureza e existncia so dependentes da circunstncia de serem exemplificveis por
particulares; esta posio, a doutrina de que (num certo sentido) os universais apenas
existem nos particulares, tem sido descrita como concepo aristotlica dos universais.
Do ponto de vista aristotlico, no h universais que no sejam exemplificveis, como
as propriedades de ser um unicrnio e ser um quadrado redondo; do ponto de vista
platonista, h tais universais. Do ponto de vista platonista, os universais so existentes
necessrios, objectos que existem em todos os mundos possveis; do ponto de vista
aristotlico, os universais so existentes contingentes, apenas existem naqueles mundos
nos quais so predicveis de algo. Naturalmente, o ponto de vista aristotlico em geral
adoptado pelos proponentes do realismo cientfico e de posies afins acerca da
natureza dos universais.
4. Semelhana e Predicao
Nominalimo e realismo metafsico so adequadamente descritos como teorias
metafsicas que visam explicar os seguintes dois gneros de fenmenos importantes: (a)
a semelhana ou recorrncia qualitativa existente no mundo, ou seja, o facto de
inmeros objectos numericamente distintos, por exemplos todas as mesas vermelhas,
terem certas caractersticas em comum, por exemplo a cor ou a forma; (b) a predicao,
o facto de um objecto dado, por exemplo uma mesa especfica, possuir uma certa
caracterstica, por exemplo a de ser vermelha.
Tais teorias, ou famlias de teorias, so mutuamente inconsistentes, ou seja, no
podem ser ambas verdadeiras, e parecem esgotar o domnio de posies, ou famlias de
posies, possveis acerca daqueles dois fenmenos. De notar ainda que, embora
habituais h centenas de anos, as designaes usadas para tais teorias so
manifestamente infelizes. Com efeito, o nominalismo seria mais apropriadamente
chamado particularismoou singularismo; e o realismo metafsico seria mais
apropriadamente chamado universalismo.
Queremos nesta seco caracterizar com mais alguma profundidade os dois
pontos de vista, sobretudo tomando-os como teorias explicativas dos fenmenos da
semelhana e da predicao.
Comeamos por identificar as teses distintivas do realismo metafsico e do
nominalismo a esse respeito.
As teses distintivas do Realismo
Podemos descrever o realismo metafsico como sendo aquele ponto de vista que
caracterizado pela adopo das seguintes trs teses metafsicas, teses acerca de que
gnero de objectos h e qual a sua funo (as teses no so mutuamente independentes).
Tese 1. H objectos universais, ou seja, objectos idnticos ao longo de
possivelmente muitos objectos distintos uns dos outros.
Exemplos de objectos desse gnero poderiam ser a brancura de todas as
inmeras coisas brancas e a humildade de todas as inmeras pessoas humildes.
(Note-se que estas propriedades so aqui mencionadas apenas a ttulo de
ilustrao, pois h formas particulares de realismo nas quais elas no seraim
vistas como universais.)
Tese 2. Algumas propriedades de objectos (possivelmente todas as propriedades
de objectos) so propriedades universais.
A Brancura e a Humildade poderiam estar entre essas propriedades
universais de objectos, no caso qualidades universais de particulares concretos.
Mas os objectos em questo poderiam ser eles prprios propriedades, caso em
que poderiamos ter entre as propriedades universais os chamados universais de
ordem superior, por exemplo Cor, Forma, etc. (por oposio a Vermelho,
Triangular, etc., os quais seriam universais de primeira ordem).
Tese 3. Propriedades universais so indispensveis para explicar a semelhana,
ou pelo menos algumas semelhanas objectivas entre as coisas, e a predicao
(isto , a aplicao de atributos a objectos), ou pelo menos algumas predicaes.
A qualidade universal da Humildade poderia ser tomada como
indispensvel para explicar porque que as pessoas humildes so semelhantes
entre si no que respeita humildade, ou seja, porque que os humildes so
humildes. E essa qualidade universal poderia igualmente ser tomada como
indispensvel para explicar em que que consiste a atribuio a uma pessoa
particular, por exemplo Scrates, da propriedade de ser humilde.
As teses distintivas do Nominalismo
Podemos descrever o nominalismo como sendo aquele ponto de vista que
caracterizado pela adopo das seguintes trs teses metafsicas, teses acerca de que
gnero de objectos h e qual a sua funo.
Tese 1. No h objectos universais. S h objectos particulares, objectos
irrepetveis e impredicveis.
H apenas cada uma das inmeras coisas brancas e cada uma das muitas
pessoas humildes, ou ento cada uma das muitas brancuras em questo e cada
uma das muitas humildades em questo (tropos); no h, para alm disso e em
cima disso, algo recorrente ao longo dessas coisas, algo como a Brancura ou a
Humildade.
Tese 2. Nenhuma propriedade uma propriedade universal.
Propriedades ou atributos de objectos podem ser tolerados numa
ontologia nominalista; mas ou no tm qualquer substncia ontolgica, tratando-
se de meras maneiras de falar convenientes, ou ento so na realidade objectos
particulares, nicos e irrepetveis (por exemplo particulares concretos como
tropos, segundo o Nominalismo de Tropos, ou particulares abstractos como
classes, segundo o Nominalismo de Classes).
Tese 3. Universais no so necessrios para explicar as semelhanas objectivas
entre as coisas e a predicao. Objectos particulares, em especial particulares
concretos e/ou os seus tropos, so suficientes para o efeito.
No preciso invocar algo como a qualidade universal da Brancura para
explicar porque que as coisas brancas so brancas. A simples admisso dos
particulares em questo, das coisas brancas que h por a, e/ou dos diversos
tropos especficos de brancura neles presentes, suficiente para esse propsito.
No preciso invocar algo como a qualidade universal da Brancura para
explicar porque que uma certa coisa particular branca. A simples admisso
do particular em questo, e/ou do tropo especfico de brancura nele presente,
suficiente para esse propsito. Podemo-nos assim contentar com coisas
familiares, coisas que povoam o nosso quotidiano e que se podem ver ou sentir,
sem precisarmos de recorrer a coisas bizarras como qualidades universais, coisas
que aparentemente no se podem ver ou sentir. (Na pior das hipteses,
podemos ser obrigado a admitir objectos abstractos como classes de particulares
concretos, como sucede na forma de nominalismo conhecido como
Nominalismo de Classes; mas tais objectos so ainda particulares, no
universais.)
A explicao realista da predicao e da semelhana
Para obtermos uma compreenso mais fina dos contornos da posio realista, convm
dizermos mais alguma coisa sobre a natureza dos objectos universais nela postulados, o
que que eles seriam se existissem. Por uma questo de simplicidade, consideramos
apenas propriedades de primeira ordem, aquelas que s so predicveis de particulares,
propriedades como a Brancura e a Humildade.
Podemos dizer que uma propriedade ou qualidade de particulares uma
propriedade ou qualidade universal se satisfaz a seguinte condio:
Quando se diz de particulares distintos que tm a mesma propriedade, a
identidade em questo a identidade numrica ou estrita (ver a seco 1 deste
ensaio), ou seja, uma s coisa, uma nica propriedade, atribuda a todos esses
particulares
Assim, quando dizemos que estas duas pessoas humildes, Scrates e Teeteto, so do
mesmo gnero, tm uma caracterstica em comum, partilham a mesma qualidade,
devemos ser entendidos literalmente no sentido de estarmos a dizer o seguinte: Scrates
e Teeteto so casos ou exemplos distintos de um nico universal, a Humildade. Do
mesmo modo, estes dois cavalos so do mesmo tipo, tm a mesma propriedade, no
sentido literal do termo: so casos ou exemplos de um nico universal, a Cavalidade,
ou melhor, a espcie Equus Cabalus (supondo, boa maneira aristotlica, que espcies
animais so universais).
Dadas estas consideraes acerca daquilo que faz com que uma propriedade de
particulares possa ser tomada como uma propriedade universal desses particulares,
vejamos agora como que o fenmeno da predicao, a circunstncia de um particular
possuir uma propriedade, deve ser explicada do ponto de vista do realismo metafsico.
Basicamente, o realista metafsico prope o seguinte esquema de anlise para a
predicao, para qualquer predicao:5
(P) Um particular x tem a propriedade de ser um F, ou seja, um F o que , um
F, em virtude de x estar numa certa relao, a relao primitiva que os realistas
designam por exemplificao, com uma certa propriedade universal, o universal
F. Ou seja, x tem a propriedade de ser um F porque x exemplifica o, ou um
exemplo do, universal F.
Assim, esta rosa tem a propriedade de ser vermelha em virtude de exemplificar o, ou ser
um exemplo do, universal Vermelho; e desta propriedade universal diz-se que tem a
rosa em questo como exemplo. Por conseguinte, do ponto de vista realista, predicaes
so factos a analisar, so factos cuja verificao se deve verificao de factos mais
bsicos; estes factos mais bsicos consistem invariavelmente em exemplificaes de 5 Veja-se a este respeito a excelente exposio em Loux 1998.
universais. Assim, a teoria realista emprega dois conceitos primitivos centrais: o
conceito de universal e o conceito (relacional) de exemplificao.
E como que a semelhana ou a recorrncia qualitativa no mundo, a
circunstncia de certas caractersticas serem partilhadas por inmeros particulares
numericamente distintos uns dos outros, explicada do ponto de vista do realismo
metafsico? Basicamente, o realista metafsico prope o seguinte esquema de anlise
para a semelhana, para qualquer caso de coincidncia de aspectos ou caractersticas:
(S) A mesma propriedade, a propriedade de ser um F, pertence a particulares
distintos, isto , Fs so Fs, em virtude de todos eles estarem na relao de
exemplificao com um nico universal, o universal F. Por outras palavras, Fs
so semelhantes entre si (qua Fs) em virtude de serem exemplos de um e do
mesmo universal, o universal F.
Assim, as rosas brancas so brancas em virtude de todas elas exemplificarem o
universal Brancura; e so rosas em virtude de todas elas exemplificarem o universal
Rosa (ou Rosidade). Por conseguinte, do ponto de vista realista, semelhanas so factos
a analisar, so factos cuja verificao se deve verificao de factos mais bsicos; estes
factos mais bsicos consistem invariavelmente num conjunto de exemplificaes de um
e do mesmo universal.
Terminarmos a nossa elucidao do realismo metafsico com a introduo de
dois aspectos com base nos quais possvel distinguir liminarmente os universais
postuladas pelo realista dos particulares que os exemplificam. Esses aspectos so a
repetibilidade e a localizao. Eles permitem realar o carcter sui generis dos
universais, a sua irredutvel universalidade (por assim dizer).
Repetibilidade
Universais so objectos repetveis, no sentido de objectos numericamente idnticos ao
longo de particulares numericamente distintos uns dos outros. Assim, a brancura repete-
se, ou est integralmente presente, em cada uma das coisas brancas.
A repetibilidade dos universais est associada sua mltipla exemplificao:
propriedades universais so objectos multiplamente exemplificveis no sentido em que
muitas coisas distintas numericamente distintas umas das outras podem ser exemplos de
uma e da mesma propriedade universal.
A repetibilidade dos universais faz com que eles sejam objectos recorrentes ao
longo do espao e do tempo. A Brancura distribui-se pelo espao no sentido de estar de
algum modo inteiramente presente, numa dada ocasio, em todas as coisas brancas que
ocupam lugares diferentes nessa ocasio. A Brancura distribui-se pelo tempo no sentido
de estar de algum modo inteiramente presente, em ocasies distintas, em todas as
diversas coisas brancas que existem nessas ocasies.
Em claro contraste com isto, particulares, em especial objectos materiais como a
mesa na qual estou a escrever e acontecimentos especficos como o jogo Sporting-Porto
deste sbado, so objectos irrepetveis, nicos. De facto, objectos materiais s esto
integralmente presentes num nico lugar, numa nica poro do espao, em cada
ocasio. E acontecimentos especficos no so recorrentes ao longo do espao ou ao
longo do tempo: ocorrem algures no espao durante um certo perodo de tempo, e no
podem ocorrer mais nenhuma vez.
Por outro lado, propriedades particularizadas ou tropos, como o castanho desta
mesa castanha (e s desta mesa castanha), e classes, como a classe de todas as mesas
castanhas, so igualmente objectos irrepetveis. De facto, numericamente a mesma
propriedade particularizada no pode estar presente na ntegra em mais do que um
particular material; este tropo de branco s pode estar presente nesta mesa branca, em
mais nenhum particular. Propriedades concebidas como particulares no so recorrentes
ao longo do espao e do tempo: esto presentes numa nica regio do espao em cada
ocasio. E no tem qualquer sentido dizer de uma classe de coisas, por exemplo a classe
de todas as pessoas humildes, que se repete em todos e cada um dos seus membros, que
a classe das pessoas humildes est de algum modo presente em cada pessoa humilde.
Localizao
Podemos dizer que particulares, ou pelo menos particulares materiais ou no abstractos,
so objectos individualizados, pelo menos parcialmente, pelas pores do espao que
ocupam numa dada ocasio. Por outras palavras, particulares materiais so aquele
gnero de coisas que so governadas pelos dois seguintes princpios intuitivos de
individuao.
Princpio 1. Um e o mesmo particular no pode estar integralmente presente,
numa dada ocasio, em duas regies descontnuas do espao, ou seja, regies
que no tenham qualquer parte em comum.
certo que uma caneta pode estar em dois stios ao mesmo tempo, com a
sua tampa numa mesa e o resto na mo de uma pessoa, mas no na ntegra, na
totalidade.
Princpio 2. Dois particulares no podem estar integralmente presentes, numa
dada ocasio, numa s regio do espao.
certo que duas canetas podem estar presentes ao mesmo tempo na mesma
regio do espao, com a tampa de cada uma delas inserida no corpo da outra,
mas no na ntegra, na totalidade.
Em claro constraste com isto, universais so por excelncia aquele gnero de
coisas que se distinguem justamente por violarem princpios como os Princpios 1 e 2.
Com efeito, universais parecem antes satisfazer condies do seguinte gnero, as quais
so manifestamente inconsistentes com aqueles princpios.
Princpio do um-em-muitos. Um e o mesmo universal pode estar integralmente
presente, numa dada ocasio, em duas regies descontnuas do espao, regies
que no tenham qualquer parte em comum.
O universal Vermelho est inteiramente presente, numa e na mesma ocasio,
nas regies descontnuas do espao ocupadas por estas duas canetas vermelhas.
Princpio do muitos-em-um. Dois universais podem estar integralmente
presentes, numa dada ocasio, numa s regio do espao.
Os universais Vermelho e a Triangularidade esto ambos inteiramente
presentes, numa e na mesma ocasio, na regio do espao ocupada por, e apenas
por, esta mesa triangular vermelha.
5. Argumentos contra o Realismo
O objectivo desta secco introduzir e discutir trs argumentos historicamente
salientes contra o realismo metafsico, a doutrina de que h universais, ou seja,
propriedades repetveis ou estritamente idnticas ao longo de objectos distintos. Esses
argumentos tm como alvo o realismo metafsico in toto, no apenas esta ou aquela
variedade particular da doutrina. Os argumentos em questo so recorrentes na
bibliografia filsfica disponvel na rea da metafsica, quer a tradicional quer a mais
recente. Por outro lado, a maioria dos argumentos tem uma forte inspirao nominalista.
Vamos designar tais argumentos como Argumento da Parcimnia, Argumento da
Incoerncia e Argumento da Auto-Predicao.
O Argumento da Parcimnia
O Argumento da Parcimnia um argumento de sabor nominalista frequentemente
aduzido nas discusses sobre o problema dos universais. O argumento diversas vezes
utilizado ao longo dos trabalhos de Willard Quine, um filsofo nominalista que inclui
atributos (= propriedades universais) naquilo que designa como criaturas da
escurido: universais fazem a companhia a outras entidades intensionais, por
exemplo proposies. A concluso do Argumento da Parcimnia a ideia de que
universais so entidades dispensveis ou redundantes, uma categoria de coisas que no
de todo necessrio que figure num sistema credvel de ontologia, numa teoria geral
adequada de objectos.
A premissa tpica do Argumento da Parcimnia um velho princpio de
economia ontolgica conhecido como Navalha de Ockham ou Princpio da Parcimnia.
A economia em questo no uma economia quantitativa, no uma economia no
nmero de coisas, mas uma economia qualitativa, uma economia no nmero de
categorias ou tipos de coisas (a distino entre estes dois sentidos de economia
ontolgica de Lewis ver Lewis 1983).
A Navalha de Ockham consiste na adopo da regra geral de que as entidades,
no sentido de tipos de entidades, no devem ser multiplicadas para alm da necessidade;
na frmula da escolstica medieval, entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem.
Por outras palavras, uma condio necessria para que entidades de um certo gnero
sejam admitidas num sistema razovel de ontologia essas entidades servirem para
alguma coisa, fazerem algum trabalho, desempenharem alguma funo, explicarem
algum conjunto de dados ou fenmenos. Presume-se ainda, naturalmente, que tal
trabalho, funo ou explicao no podem ser realizados ou executados por entidades de
outro tipo: s entidades do tipo em questo so apropriadas para o efeito.
Uma das maneiras mais naturais de a condio de utilidade mencionada na
Navalha de Ockham ser satisfeita por um gnero de entidades essas entidades serem
necessariamente invocadas em explicaes proporcionadas pela melhor cincia. assim
que coisas como buracos negros, quarks e espcies animais so consideradas como
fazendo necessariamente parte de qualquer sistema apropriado de ontologia.
A outra premissa do Argumento da Parcimnia consiste, evidentemente, na
observao de que putativos objectos como propriedades ou relaes universais no
fazem de facto nenhum trabalho substantivo, no desempenham na realidade nenhum
papel terico, no explicam de todo nenhum conjunto de dados ou fenmenos que
necessitem de uma explicao.
Alega-se, em particular, que os universais acabam por no realizar qualquer uma
das funes que lhes so tipicamente atribudas pelos proponentes do realismo
metafsico. A ideia que suporta esta alegao a de que das duas uma. Ou as
explicaes que invocam universais so irremediavelmente deficientes, caso em que
eles afinal no so adequados para fazer o trabalho que so supostos fazer. Ou ento
concede-se para benefcio da discusso que tais explicaes so satisfatrias, mas
defende-se que h outras que so igualmente satisfatrias e que no recorrem de todo a
universais. Estas ltimas explicaes invocam uma ontologia que contm apenas
objectos particulares, objectos irrepetveis (presume-se, naturalmente, que objectos
deste ltimo gnero tm em todo o caso que estar disponveis). Em qualquer dos casos,
conclui-se que os universais no so precisos para fazer o trabalho que so supostos
fazer.
Considere-se, por exemplo, a funo tipicamente atribuda a propriedades
universais de serem o fundamento in rerum natura da recorrncia qualitativa no mundo,
ou seja, da distribuio pelas diversas coisas no mundo dos mesmos traos, das mesmas
qualidades, das mesmas caractersticas, dos mesmos aspectos. O proponente do
Argumento da Parcimnia alegar ento, ou que a explicao realista desse fenmeno
insatisfatria ou obscura, no sendo os universais adequados para o efeito, ou que
apenas invocando particulares, por exemplo propriedades particularizadas (= tropos),
ele consegue explicaes no mnimo to boas como aquelas que invocam universais.
Para qu ento admitir dois tipos de coisas (universais e particulares) se s com
um deles (particulares) se consegue aparentemente explicar tudo o que preciso
explicar? Supondo que temos em todo o caso que admitir particulares na nossa melhor
ontologia, a Navalha de Ockham obriga-nos assim, argumenta-se, economia
qualitativa e a dispensar universais. Conclui-se que universais esto para alm da
necessidade, ofendem a Navalha e devem ser deste modo banidos de qualquer sistema
razovel de ontologia.
Como que se pode avaliar o Argumento da Parcimnia contra o realismo
metafsico? Trata-se de um bom argumento?
Em primeiro lugar, note-se que a Navalha de Ockham um princpio
relativamente incontroverso de economia e simplicidade. Apesar de ser muitas vezes
(erroneamente) assimilado ao nominalismo, como se fosse um trao constitutivo desta
posio, o que certo que, por si s, o princpio no decide a disputa a favor do lado
nominalista.
Com efeito, a Navalha pode bem ser aceite pelo realista metafsico. Na verdade,
o princpio mesmo adoptado com naturalidade na maioria das verses de realismo
metafsico contemporneo. O realista metafsico pode, por exemplo, fazer uso da
Navalha para dispensar tropos, alegando que estes no fazem qualquer trabalho que no
possa ser feito por universais. E pode tambm excluir propriedades no exemplificadas,
como a propriedade de ser um quadrado redondo, do domnio das propriedades
universais alegando que elas no so aptas para explicar aquilo que os universais so
primariamente supostos explicar, as semelhanas objectivas entre as coisas.
Em segundo lugar, a outra premissa do Argumento da Parcimnia est longe de
ser slida, o que faz com que o argumento no seja um argumento conclusivo contra a
admisso de universais. H duas razes principais para tal falta de solidez.
Por um lado, so muitos e de diversos tipos as funes e os papes explicativos
atribuveis a universais. Eis alguns desses papes e funes: darem conta dos
agrupamentos e classificaes naturais de particulares; servirem de valores semnticos
para predicados; explicarem os poderes causais de particulares; darem conta da nossa
capacidade para reconhecer novos exemplos de propriedades dadas; explicarem a
mudana de particulares materiais ao longo do tempo; etc. Um fardo muito pesado cai
sobre o filsofo nominalista quando este alega que os universais no so adequados para
executar nenhuma dessas mltiplas funes
Por outro lado, e mais importante, no de todo claro que o recurso a
particulares, e s a particulares, seja suficiente para dar conta das funes em questo,
ou pelo menos para dar conta daquelas funes que o nominalista est preparado para
reconhecer como centrais. No , por exemplo, lquido que um sistema de ontologia que
contenha apenas particulares seja dotado de recursos adequados para explicar de modo
satisfatrio a existncia de classes naturais de particulares, a existncia de classificaes
objectivas de particulares (por exemplo, espcies animais e partculas fsicas). So
notrias as dificuldades encontradas a esse respeito por parte de quase todas as
variedades de nominalismo, com destaque para o nominalismo de classes e o
nominalismo de predicados. Assim, um fardo igualmente pesado tambm aqui
imposto sobre o proponente nominalista do Argumento da Parcimnia quando este
alega que particulares so necessrios e suficientes para realizar as funes explicativas
centrais alegadamente realizveis por universais.
Conclumos assim que o Argumento da Parcimnia no um argumento
conclusivo: muita coisa teria ainda de ser feita para provar que universais so entidades
redundantes ou dispensveis do ponto de vista da explicao.
O Argumento da Incoerncia
A finalidade deste argumento mostrar que a prpria ideia de um universal a ideia de
um repetvel, de uma coisa inteiramente presente em diversas outras coisas uma
ideia incoerente, pois conduz a contradies (ou inconsistente com um punhado de
verdades indisputveis).
O Argumento da Incoerncia pode ser esquematicamente representado da
seguinte maneira.
Premissa 1. Os universais so, por definio, coisas repetveis (ou pelo menos
alguns universais so repetveis, designadamente aqueles que tm exemplos).
Como repetveis, os universais podem estar presentes em diversos stios distintos
numa e na mesma ocasio.
Premissa 2. Uma coisa espacialmente descontnua, ou est disseminada pelo
espao, se e s se est presente em duas regies distintas ou no sobrepostas do
espao, isto , regies que no tm qualquer parte em comum.
Assim, alguns pases (a Suia), algumas cidades (Lisboa) e algumas ruas
(a Alameda da Universidade em Lisboa) no so coisas espacialmente
descontnuas nesse sentido; mas alguns pases (Portugal), algumas cidades
(Budapeste) e algumas ruas (a rua Barata Salgueiro em Lisboa) so coisas
espacialmente descontnuas nesse sentido. Outros exemplos de coisas
espacialmente descontnuas so o Imprio Romano e o relgio desmontado que
est na mesa de trabalho do relojoeiro.
Concluso 1. Os universais (ou pelo menos alguns universais) so, ou podem
ser, coisas espacialmente descontnuas.
Premissa 3. S coisas que possuam partes espaciais podem ser espacialmente
descontnuas.
A razo a de que uma coisa s pode ocupar regies distintas do espao em
virtude de possuir partes componentes que ocupem na ntegra cada uma dessas
regies. Assim, todos os exemplos antes introduzidos de coisas espacialmente
descontnuas so exemplos de coisas compostas por partes espaciais: Portugal
est disseminado pelo espao na medida em que tem partes (Aores, Madeira e
Continente) que ocupam regies no sobrepostas do espao.
Premissa 4. Os universais so coisas repetveis (pelo menos alguns). Mas,
enquanto coisa repetvel, um universal (qualquer universal) no uma coisa que
possa possuir partes espaciais.
A razo a de que a repetibilidade implica que cada universal esteja presente na
ntegra, e no apenas parcialmente, em cada um dos seus exemplos: a Brancura
repetvel em virtude de ser numericamente a mesma propriedade que est
presente em todas as coisas brancas. A posse de partes espaciais assim
inconsistente com a repetibilidade: Portugal (o pas enquanto objecto fsico, no
o pas enquanto ideia ou algo do gnero) no est seguramente presente por
inteiro em cada uma das suas partes.
Concluso 3. Os universais no so (qualquer um deles) coisas que sejam ou
possam ser espacialmente descontnuas, no so de todo coisas como pases,
relgios, cidades e ruas.
Concluso 4. As concluses 1 e 3 so inconsistentes entre si, o que faz com que
a prpria ideia de universal, a ideia de uma entidade inteiramente presente em
stios distintos numa dada ocasio, seja incoerente
O que que se pode dizer do Argumento da Incoerncia contra o realismo
metafsico? Trata-se de um bom argumento?
H duas linhas de rplica possvel ao argumento por parte de um realista
metafsico (supondo que se trata de um argumento vlido, o que parece ser uma
suposio razovel).
Em primeiro lugar, os realistas metafsicos (ou pelo menos alguns realistas
metafsicos) podem alegar que, tomada literalmente, a Premissa 1 do Argumento da
Incoerncia falsa. Com efeito, de acordo com variedades do realismo metafsico como
o realismo transcendente ou mesmo o realismo imanente fraco (ver a prxima seco
deste Captulo), universais no so coisas das quais se possa dizer com verdade que
estejam localizadas no espao, no sentido de ocuparem regies dadas do espao em
ocasies dadas.
Tomado literalmente, o predicado didico est presente em, o qual utilizado
na Premissa 1, significa o mesmo que est localizado em (se um fumador est presente
na sala, porque um fumador ocupa um certo lugar na sala). Mas, nesse caso, a
Premissa 1 falsa e o Argumento da Incoerncia no corre (note-se que a interpretao
literal exigida para fazer correr o argumento). Segundo tais verses de realismo, os
universais no esto localizados onde os seus exemplos esto localizados simplesmente
porque no esto localizados onde quer que seja (supondo que uma coisa com uma
localizao uma coisa que enche uma regio do espao). Assim, a fortiori, no o
caso que os universais estejam, ou possam estar, presentes em stios distintos numa dada
ocasio, o que falsifica a Premissa 1.
Na melhor das hipteses, a Premissa 1 seria constitutiva de apenas algumas
variedades de realismo metafsico, designadamente aquelas que atribuem de algum
modo aos universais uma localizao no espao, em especial a variedade que
designamos mais frente como realismo imanentista forte.
Todavia, mesmo estas verses de realismo poderiam resistir ao Argumento da
Incoerncia atravs do seguinte gnero diferente de rplica. A ideia a de que o
argumento falha ao assumir erroneamente para universais princpios que apenas se
aplicam a particulares, e, em especial, a particulares materiais. De facto, subjacente
Premissa 3 do argumento est um dos chamados axiomas da localizao, o princpio
aparentemente intuitivo que introduzimos atrs e que estabelece que uma e a mesma
coisa no pode estar em dois stios ao mesmo tempo (o outro axioma da localizao o
princpio no menos intuitivo de que duas coisas no podem estar num e no mesmo stio
numa dada ocasio). Ora, como vimos, este princpio s plausvel se a coisa em
questo for um particular material, um objecto tri-dimensional; ou seja, trata-se de uma
verdade constitutiva do nosso conceito de um particular material. Assim, a Premissa 3
do Argumento da Incoerncia s pode ser tomada como verdadeira se o universo das
coisas a mencionadas for limitado a particulares materiais. Mas, nesse caso, o
Argumento da Incoerncia acaba por incorrer numa petio de princpio, pois assume
implicitamente aquilo que quer provar, que apenas h particulares: essa parece ser a
nica maneira de tornar verdadeira a Premissa 3.
Naturalmente, o realista metafsico fica livre de considerar essa premissa como
falsa e defender a ideia de que coisas especiaiscomo universais, coisas que no tm de
todo partes espaciais, podem de facto estar presentes ou localizadas em muitos stios ao
mesmo tempo.
O Argumento da Auto-Predicao
Terminamos a nossa discusso do realismo metafsico com o Argumento da Auto-
Predicao.
Este um argumento que visa conduzir a suposio de que h propriedades
universais a um paradoxo, um paradoxo anlogo ao clebre Paradoxo de Russell para a
Teoria dos Conjuntos. Esquematicamente, o Argumento da Auto-Predicao o
seguinte.
Premissa 1. Alguns universais no so auto-predicveis ou auto-
exemplificveis, no sentido em que as prprias propriedades universais em que
eles consistem no lhes so aplicveis com verdade.
Por exemplo, a propriedade universal de ser um objecto concreto no auto-
predicvel, pois no (supe-se) ela prpria um objecto concreto, mas sim um
objecto abstracto (como qualquer propriedade). Do mesmo modo, tambm no
auto-predicvel a propriedade universal de ser um gato.
Premissa 2. Alguns universais so auto-predicveis ou auto-exemplificveis, no
sentido em que as prprias propriedades universais em que eles consistem so-
lhes aplicveis com verdade.
Por exemplo, a propriedade universal de ser um objecto abstracto auto-
predicvel, pois (supe-se) ela prpria um objecto abstracto (como qualquer
propriedade). Do mesmo modo, a propriedade de ser uma propriedade mondica
auto-predicvel, uma vez que ela prpria uma propriedade mondica.
Concluso 1. Por conseguinte, no h nada de errado ou de ininteligvel na ideia
de auto-predicao, ou auto-exemplificao, de uma propriedade universal.
Premissa 3. Considere-se agora a propriedade universal de no ser uma
propriedade auto-predicvel. Designemos este universal, o universal da No
Auto-Predicabilidade, por P. Assim, por definio, uma coisa ou propriedade x
exemplifica o universal P se e s se x no exemplificada por x.
Podemos agora certamente perguntar se o nosso universal P ele prprio auto-
predicvel, j que podemos fazer a mesma pergunta acerca de qualquer
universal. Faamos a pergunta e suponhamos, primeiro, que P auto-predicvel.
Ento P exemplifica o universal da No Auto-Predicabilidade, donde se segue
que P no auto-predicvel. Suponhamos, em segundo lugar, que P no auto-
predicvel. Ento P no exemplifica o universal da No Auto-Predicabilidade,
donde se segue que P auto-predicvel.
Concluso 2. Segue-se que P auto-predicvel e que P no auto-predicvel, o
que uma contradio.
O que que se pode dizer do Argumento da Auto-Predicao? Trata-se de um
bom argumento?
No se trata manifestamente de um bom argumento. Com efeito, o realista
metafsico tem ao seu dispor uma maneira simples de bloquear o argumento: alegar que
a Auto-Predicabilidade e a No Auto-Predicabilidade no so universais, pois nem
sequer se trata de propriedades e s propriedades podem ser universais. A concluso a
extrair do paradoxo da auto-predicao para propriedades simplesmente a de que no
h de todo qualquer propriedade como a propriedade da no auto-predicabilidade. Tal
como a concluso a extrair do Paradoxo de Russell a de que no h de todo qualquer
classe como a classe de todas as classes que no pertencem a si mesmas.
Por conseguinte, o Argumento da Auto-Predicao s constituiria uma ameaa
sria para aquelas posies que defendem a ideia de que todo o predicado mondico
dotado de sentido, e assim tambm o predicado no auto-predicvel, exprime ou
denota uma correspondente propriedade universal. Mas esta ideia no constitutiva do
realismo metafsico, na medida em que a sua adopo no de todo mandatria em
qualquer forma de realismo metafsico, incluindo mesmo as variantes platonistas e
transcendentistas de realismo. Assim, a lio a tirar pelo realista metafsico do
Argumento da Auto-Predicao precisamente a de que nem todo o predicado
mondico dotado de sentido exprime ou denota um universal.
6. Variedades de Realismo
Nesta seco final queremos fazer o seguinte. Em primeiro lugar, introduzir trs
problemas bsicos acerca da natureza dos universais, entendidos como propriedades
numericamente idnticas exemplificadas por objectos numericamente distintos. Em
segundo lugar, caracterizar trs tipos de disputas acerca desses problemas no interior do
realismo metafsco, a doutrina de que h universais, disputas essas que do origem a um
conjunto de variedades distintas de realismo. Finalmente, identificar algumas das
conexes existentes entre os problemas e disputas em questo.
Os trs problemas acerca da natureza dos universais so os seguintes.
Problema 1: A Localizao dos Universais. So os universais localizveis no
mundo fsico, no espao-tempo? Esto os universais situados no mundo povoado pelos
particulares materiais (mesas, cavalos, pessoas) que em muitos casos os exemplificam?
Ou pertencem os universais a um mundo parte, um mundo sem qualquer conexo com
o mundo fsico, um mundo povoado por e apenas por objectos abstractos, objectos no
situveis no espao-tempo?
A alternativa aqui entre o mundo fsico e aquilo a que Frege chamou o 3
Reino, um domnio de coisas que nem so fsicas (o 1 Reino) nem so mentais (o 2
Reino): as coisas do 3 Reino so auto-subsistentes e independentes da mente e da
linguagem. Esto os universais no espao-tempo ou povoaro eles algo semelhante ao
Paraso de Plato, um putativo sector da realidade habitado por Formas ou Ideias?
Problema 2: A Exemplificao dos Universais. Est a existncia de universais
dependente da existncia de coisas que os exemplifiquem? Ser que um universal s
existe se exemplificado?
So os universais objectos ontologicamente dependentes, objectos cuja
existncia condicionada pela existncia de objectos de outros gnero (supondo que os
seus exemplos so em alguns casos objectos de outro gnero)? Est, em especial, a
existncia de universais dependente da existncia de particulares que os exemplifiquem?
Teria Aristteles razo quando disse que se no houvesse coisas brancas no haveria a
brancura? Ou ser a existncia de um universal algo incondicionado, independente da
existncia ou no de exemplos do universal? a relao entre um universal e um seu
possvel exemplo do mesmo gnero do que a relao entre um sorriso e uma pessoa que
sorria, uma pea de relgio e um relgio, uma experincia e uma criatura senciente?
Problema 3: O Modo de Ser ou Existir dos Universais. So os universais
coisas como Deus e os nmeros naturais, existentes necessrios, coisas que existem de
forma no contingente? Trata-se de coisas que no s existem de facto, como no
poderiam no ter existido, ou seja, coisas tais que impossvel no existirem (no
sentido de impossvel no qual no impossvel um corpo deslocar-se a uma
velocidade superior da luz)?
Ou sero os universais, pelo menos em alguns casos, coisas como Scrates,
Lisboa e esta mesa de madeira, existentes contingentes? Podem os universais ser coisas
como estas, coisas que existem de facto, mas poderiam no ter existido se o mundo no
fosse o que ? E sob que condies que se poderia ento dizer que um universal
poderia no ter existido?
a existncia da brancura do mesmo gnero do que a existncia de Scrates?
Scrates poderia no ter nascido e logo poderia no ter existido. E a brancura? Existiria
se no houvesse coisas brancas?
cada universal um existente eterno, algo que existe para sempre? Ou so
alguns universais existentes temporrios? Podem os universais ser coisas perecveis,
coisas como esta folha de papel, coisas que no existem em pelo menos uma ocasio
(por exemplo uma ocasio posterior sua eliminao por uma mquina recicladora)?
Realismo Imanente versus Realismo Transcendente
Os realistas metafsicos dividem-se em dois grandes grupos conforme a resposta
que esto inclinados a dar ao problema 1, o problema da localizao dos universais.
De um lado, h os adeptos do Realismo Imanente, os quais defendem a seguinte
tese:
(IMAN) Alguns universais (possivelmente todos os universais) esto situados
no mundo fsico, no espao-tempo.
Na terminologia escolstica, o realismo imanente defende a doutrina dos universalia in
rebus (universais nas coisas).
Do outro lado, h os adeptos do Realismo Transcendente, os quais defendem a
seguinte tese:
(TRANS) Nenhum universal est situado no mundo fsico, no espao-tempo.
Na terminologia escolstica, o realismo transcendente defende a doutrina dos
universalia ante rem (universais prvios s coisas)
Comecemos por explorar a doutrina do realismo imanente. A primeira coisa a
notar que este ponto de vista admite ainda duas verses, caracterizveis do seguinte
modo:
(a) uma verso forte, a tese de que todos os universais esto no mundo fsico;
(b) uma verso fraca, a tese de que apenas alguns universais esto no mundo
fsico.
H trs observaes imediatas a fazer acerca da verso forte do realismo
imanente. Primeiro, a forma de imanentismo mais habitualmente proposta na literatura
recente na rea (ver, por exemplo, Armstrong 1989). Segundo, naturalmente a verso
mais vulnervel, na medida em que a mais forte. Terceiro, a verso de imanentismo
que compatvel com o naturalismo estrito, ou melhor, com a consequncia desta
concepo segundo a qual tudo o que existe est localizado no espao-tempo, no mundo
fsico. Este ltimo aspecto pode ser usado, e tem sido usado, para argumentar a favor da
defesa da verso forte de imanentismo, pois a verso fraca da doutrina alegadamente
incompatvel com o naturalismo e este, alega-se, algo que tem de ser preservado a
todo o custo.
Note-se que seja qual for o sentido que se queira dar ideia de que os universais
esto localizados no mundo fsico, a verso forte de imanentismo incompatvel com a
admisso de universais exemplificados por particulares a
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