UNIDADE DIDÁTICA DE LÍNGUA PORTUGUESA
O INCENTIVO À LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO ATRAVÉS DA CRÔNICA
Série indicada: 1º ano do Ensino Médio
Professora: Lucimary Bateloqui Gomes
Concepção teórico-metodológica: Estética da Recepção
TEMA: O prazer estético da literatura e seu caráter humanizador
TÍTULO: A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O GOSTO PELA LITERATURA: A CRÔNICA QUE DIVERTE E HUMANIZA
“A literatura é o sonho acordado das civilizações.”
(Antonio Candido)
A LITERATURA E O LEITOR
Na tentativa de elaborar um conceito sobre literatura e de resumir as
idéias de diferentes autores em relação ao tema, podemos dizer que literatura
é um tipo de texto que exige uma forma especial de leitura, baseada em
convenções que se aprendem. O principal traço que caracteriza o literário é a
representação de um mundo ficcional, que mesmo tendo falas, personagens e
fatos que possam ser semelhantes com o mundo real, não tem compromisso
com a verdade e, portanto, não deve ser vista como a expressão da opinião ou
posicionamento de um autor para informar ou persuadir, pois muitas vezes a
opinião do autor difere muito da opinião do narrador. Literatura é uma
manifestação artística, e, como tal, apresenta diferentes faces ao longo da
história, pois reflete as características que dão peculiaridade ao momento em
que se produz a obra, recebendo e proporcionando fortes influências artísticas,
culturais e sociais, numa interação com a sociedade.
Em busca de um definição de Literatura, apresentamos o conceito dado
por Eagleton que parece dialogar com as idéias da estética da recepção. Para
ele, a Literatura não pode ser definida objetivamente, pois “a definição de
literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém lê e não da natureza
daquilo que é lido” (EAGLETON, 2001:11). Como podemos ver, ele dá
importância ao leitor, considerando-o um agente do processo literário, e não
aos aspectos estruturais que podem intervir também no processo de atribuir
significado à leitura literária. Referindo-se especificamente a um outro aspecto
presente quando a tarefa é definir literatura e determinar seus limites, o autor
diz que a literatura inglesa no século XVII incluía tanto as obras de
Shakespeare, quanto os ensaios de Francis Bacon, os sermões de John Donne
e a autobiografia espiritual de Bunyan, ou seja, não havia, nessa época, uma
distinção entre “fato” e “ficção”. A esse respeito, ele questiona algumas
classificações, pois diz que: [...] se a literatura inclui muito da escrita “fatual”,
também exclui uma boa margem de ficção. As histórias em quadrinhos do
Super homem e os romances de Mills Boon são ficção, mas isso não faz com
que sejam geralmente considerados como literatura, e muito menos como
Literatura.
Dessa afirmação, podemos inferir a dificuldade de classificar o literário e
o não literário, pois esses critérios também apresentam mudanças espaço-
temporais. O autor diz que talvez não seja o fato de ser ficcional ou
“imaginativa” o que classifique um texto como literário ou não, mas o fato “de
empregar a linguagem de forma peculiar.” (EAGLETON, 2001). Nesse sentido,
ele cita as palavras de Jakobson, que diz que a literatura é uma violência
contra a fala comum e acrescenta que a literatura transforma e intensifica a
linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. Ele
exemplifica com a seguinte afirmação: “Se alguém se aproximar de mim em um
ponto de ônibus e disser: ‘Tu, noiva ainda imaculada da quietude’, tenho
consciência imediata de que estou em presença do literário. Sei disso porque a
tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado
abstrato – ou, como os lingüistas diriam de maneira mais técnica, existe uma
desconformidade entre os significantes e os significados. (EAGLETON, 2001).
Explica o autor, após dar esse exemplo, que a literatura usa um tipo de
linguagem que chama a atenção sobre si mesma, traço distintivo da definição
de “literário” apresentada pelos formalistas russos, que afirmavam que a
literatura era “uma organização peculiar da linguagem.” (EAGLETON, 2001).
Nessa linha de reflexão, o mesmo autor ainda afirma que a Literatura,
impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova as reações
habituais, tornando os objetos mais perceptíveis, e, que o discurso literário
aliena a fala comum, porém, ao fazê-lo, “paradoxalmente nos leva a vivenciar a
experiência de maneira mais íntima, mais intensa.” (EAGLETON, 2001), ou
seja, o autor explica claramente que a literatura diferencia-se dos textos não
literários, pois oferece ao leitor a possibilidade de vivenciar e de sentir
intensamente aquilo que é apresentado pelo artista.
Vale ainda ressaltar o conceito de literatura dado por Antônio Candido,
uma vez que nos interessa, também, enfatizar o caráter humanizador da
literatura. O referido autor preocupa-se com outro aspecto da literatura e
percorre uns caminhos poucas vezes apresentados por outros teóricos: o do
direito dos indivíduos à literatura, ou seja, para o autor, além de outras
definições, a literatura é um direito. Ele analisa a sociedade, dando ênfase nas
classes sociais e nas enormes diferenças que as separam. A partir desse
ponto, ele diz que é preciso criar, desde a infância, a consciência de que os
pobres têm direito aos bens materiais, ao lazer, à arte e à literatura. Diz que
compreende Literatura, de forma muito abrangente, abarcando todas as
criações de caráter poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma
sociedade e em todos os tipos de cultura. Abrangente também, diz ele, devem
ser os grupos favorecidos com a literatura. Nesse sentido, faz uma espécie de
chamamento à sociedade, com as seguintes palavras:
“Para que a literatura chamada erudita deixe de ser privilégio de
pequenos grupos, é preciso que a organização da sociedade seja feita de
maneira a garantir uma distribuição eqüitativa dos bens. Em principio só numa
sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e
neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil,
onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que
não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso, numa
sociedade estratificada deste tipo, a fruição da literatura se estratifica de
maneira abrupta e alienante”. (CANDIDO, 1995: 257).
Como podemos ver, o autor faz um enfoque claramente social do direito
à literatura, chamando-a de bem humanizador, por permitir ao homem
encontrar na literatura aspectos de sua própria humanidade, devolvendo-lhe
uma consciência humana modificada pela leitura da obra literária. Este enfoque
social também apresenta uma crítica à sociedade por negar esse bem a uma
grande parte da população. Isso nos leva a pensar que a Literatura, ao ser
abordada como um bem social, e ao reconhecer que a leitura de um texto
literário provoca efeitos no leitor, deve ser repensada na sociedade, obrigando
a fazer uma análise da sua forma de inserção na escola e do tratamento dado
à disciplina em todo o contexto sócio-cultural que é um produto de consumo, de
lazer e de comunicação.
Considerando que a arte de modo geral tem uma função social, e que,
em especial, a obra literária contribui para a inserção cultural e social dos
indivíduos, centraremos nossa atenção nas necessidades dos alunos e na
escolha de elementos que sejam indispensáveis para sua formação. Para dar
ênfase às nossas reflexões sobre a importância da educação literária e de que
essa atenda às necessidades e interesses dos alunos, devemos dizer que por
meio do conhecimento e da formação literária, atingir-se-á uma conquista
maior, que é a de humanizar e de contribuir para a expressão da visão do
mundo, assim como para realizar um registro da história do homem e das
gerações, segundo Antonio Candido.
Para Zilberman (1989), geralmente as atividades pedagógicas
relacionadas com a leitura provocam tédio e fazem o aluno vivenciá-las como
se tratasse de aprisionamento, controle ou obrigação, porque o professor não
incorpora a leitura no universo do ensino. A autora diz também que a
“imaginação pertence ao mundo interior de todo individuo, mas não pode ser
acionada sem os estímulos provenientes do exterior”. (ZILBERMAN, 1989,
p.25). Esse exterior seria o texto literário, palavras escritas que enriquecem
com mais propriedade o imaginário, pois podem ir de encontro a situações
pessoais ou a situações inusitadas, produzindo, nas palavras da autora , o
“afastamento do cotidiano ou o retorno a ele, estando o leitor agora de posse
de uma nova experiência, que o prepara melhor para o enfrentamento da
experiência existencial”. (ZILBERMAN, 1989, p.25). A leitura do texto literário
contribui com o sujeito despertando a curiosidade, ajudando a desenvolver a
criatividade, a sensibilidade, dando lugar à fantasia e à expressão de
sentimentos.
Como se pode observar pela discussão aqui proposta, a literatura constitui-
se um componente curricular fundamental para a formação dos leitores. Neste
sentido propomos, a seguir, uma metodologia centrada no leitor, fazendo uso
do método recepcional, que segundo Jauss amplia o horizonte de expectativas
do leitor, na medida em que tanto em termos temáticos quanto formais, a obra
se aproxima ou se distancia dos conhecimentos do leitor.
O método recepcional de ensino da literatura enfatiza a comparação entre
o familiar e o novo, entre o próximo e o distante no tempo e no espaço”.
(Bordini & Aguiar, 1993, p.86). Esse método apresenta, com relação ao leitor,
cinco etapas:
1. Determinação do horizonte de expectativas;
2. Atendimento do horizonte de expectativas;
3. Ruptura do horizonte de expectativas;
4. Questionamento do horizonte de expectativas;
5. Ampliação do horizonte de expectativas.
Nesse processo de interação leitor texto, consideramos fundamental a
figura do leitor. Este é visto como um co-participante na produção de sentido do
texto; na medida em que o leitor leva para o texto suas expectativas, suas
experiências passadas, com as quais, seguindo pistas deixadas pelo autor,
elabora hipóteses, refutando ou reafirmando idéias e, dessa forma, constrói um
sentido para o texto. Para tal desenvolvimento, será utilizado o gênero literário
Crônica, por seu caráter leve e despretensioso que atrai e estimula a atenção
do leitor, na medida em que fala de coisas aparentemente banais e cotidianas,
mas carregadas de sensibilidade e profundidade. Assim sendo, a crônica
atende a intenção primordial deste projeto que é o de incentivar a leitura do
texto literário pelo prazer estético que o mesmo possibilita e,
conseqüentemente, por seu caráter humanizador, uma vez que satisfaz a
necessidade de fantasia de todo ser humano.
ATIVIDADES PROPOSTAS:
1.Determinação do horizonte de expectativas:
Faz-se necessário nesse momento determinar o horizonte de expectativa
do nosso leitor. Para tanto faremos alguns questionamentos oralmente com
relação a sua experiência como leitor:
1) Que tipos de texto você já leu ? Cite alguns?
2) Você tem dificuldade para ler e compreender algum texto? Há textos mais difíceis ou mais fáceis de se compreender?
3) Você se lembra de algum texto ou história lida que você achou engraçado? Qual?
4) O que mais chama sua atenção em um texto? O assunto? O tamanho? A maneira como foi escrito?
5) Diante de um texto mais longo ou difícil de entender, qual é a sua atitude ou reação? Insistir na leitura? Pular partes? Desistir?
2. Atendimento do horizonte de expectativas.
Neste momento será proposto aos alunos a leitura da crônica “A velha
contrabandista”, por se tratar de um texto fácil, curto e engraçado bem ao gosto
de suas expectativas, uma vez que estamos levando em conta os possíveis
resultados obtidos na primeira etapa de nosso trabalho. Sabe-se que os
alunos, de modo geral, tendem a gostar mais dos textos mais leves e curtos.
A Velha Contrabandista
Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha. Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela: - Escuta aqui, vovozinha, a senha passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco? A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu: - É areia! Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás. Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia. Diz que foi aí que o fiscal se chateou: - Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista. - Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs: - Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias? - O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha. - Juro - respondeu o fiscal. - É lambreta.
Algumas considerações a respeito do texto e que serão propostas aos
alunos para que comentem oralmente e façam uma breve análise do mesmo.
Espera- se que os alunos sejam capazes de refletir sobre o texto.
1) Quais são os personagens do texto?
2) Quais são suas principais características?
3) Existe no texto um narrador? Ele participa dos fatos narrados ou apenas conta?
4) Você achou o texto engraçado? O que dá ao texto seu tom humorístico?
5) Trata-se de um fato real (algo que realmente aconteceu) ou é apenas ficção? Comente.
6) Embora, no texto, os personagens sejam ficcionais, podemos dizer que é possível encontrar pessoas como o fiscal ou a velhinha?
2º MOMENTO
Propomos aqui a leitura de mais uma crônica humorística :
O Homem Nu
(Fernando Sabino)
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o
sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro
da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir
rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica
quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.
Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um
banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu
fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o
pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e
para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado
pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia
aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à
espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do
chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher
pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro
subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o
elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a
segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos,
regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo
uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet
grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem
onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de
abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida
de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa
com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em
pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que
estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava
a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o
mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,
obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a
momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do
seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada:
"Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela
desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o
elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem
nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-
se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele
entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do
banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na
porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro
Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de
Janeiro, 1960, pág. 65.
Trabalhando com o texto:
1) Quem é o personagem principal do texto?
2) Por que o homem combinou com a mulher de não abrir a porta se
alguém batesse?
3) Por fez silêncio dentro do apartamento, quando o homem nu bateu
na porta querendo entrar?
4) O homem nu apresenta diversas reações que mostram seu estado
emocional , o que dá um tom humorístico ao texto,pois mostra o desespero
dele. Como ele se sentiu quando:
a) Ouviu que outra porta se abria atrás de si:____________________
b) Ouviu passos na escada, lentos, vindos lá debaixo:_____________
c) Encontrou-se com a velha do apartamento vizinho:______________
d) A porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer:_______
5) Por que depois de passar por tanto sufoco, na tentativa de escapar
do cobrador da televisão, o homem nu acabou abrindo a porta para ele?
Explique com suas palavras.
6) O narrador participa dos fatos ou apenas conta o que aconteceu?
7) Podemos dizer que nos textos lidos, os personagens são tipos
comuns?
8) Quanto à linguagem utilizada nos textos, pode-se dizer que se trata
de uma linguagem comum, do dia a dia? Cite um exemplo de cada texto.
Neste momento faremos algumas considerações a respeito dos textos
lidos quanto à forma, linguagem utilizada, temática, tipo de narrador,
especificando que se trata de uma crônica humorística, além de apontar outras
características do gênero.
3) Ruptura do horizonte de expectativas:
Propomos para este momento uma pesquisa bibliográfica (livros,
internet), que será realizada em grupo de 04 alunos, sobre alguns cronistas
brasileiros e suas crônicas, entre eles os dois autores dos textos estudados:
Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino, além de Rubem Braga, Carlos Heitor
Cony e Luís Fernando Veríssimo entre outros. Vale ressaltar que os temas
agora serão os mais variados, podendo aparecer crônicas de humor, costumes
e temas urbanos, crítica social, pois para Jauss, o valor de uma obra literária
decorre da percepção estética que a obra desperta no leitor, ao mesmo tempo
em que contraria a expectativa do leitor. Uma de suas teses refere-se ao
relacionamento entre literatura e a vida prática, onde procura examinar as
relações da literatura com a sociedade. Nas suas palavras: “ a relação entre
literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à
percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à
reflexão moral.” (JAUSS, 1994)
Atividades práticas:
_ Organização dos grupos;
_ Escolha ou sorteio dos autores a serem pesquisados:
_ Cada grupo irá apresentar para a sala a pesquisa realizada e
apresentar duas crônicas escolhidas por eles, durante a pesquisa;
_ Montagem de um painel com todos os autores e crônicas
selecionadas para que toda a turma tenha possibilidade de ler.
4) Questionamento do horizonte de expectativas:
O que propomos aqui é levar os alunos a se questionarem sobre seus
horizontes de expectativas, o que pode ser feito oralmemte. Ao pesquisar e ler
várias crônicas, percebe-se que é um texto de linguagem mais fácil e
acessível? É um texto que estimula o leitor por ser mais simples ou mais fácil
de compreender? Embora se trate de um tipo único (crônica), os temas ou
assuntos abordados são os mesmos? Trata-se de um texto que apenas diverte
pelo seu humor ou também leva a reflexão sobre temas mais complexos?
Atividades práticas:
1) Leitura e estudo do texto teórico sobre a crônica:
A CRÔNICA
Do grego chronikós, relativo a tempo e do Latim, ‘crônica’; o vocábulo
designava, nos tempos mais antigos, uma relação ou listagem de
acontecimentos históricos, em ordem cronológica. Os antigos cronicões eram
uma espécie de história, sem a preocupação de fazer-se uma análise ou
mesmo interpretação dos fatos. Eles foram muito comuns entre os séculos II
até aproximadamente o século XV. A partir desse momento, o termo utilizado
para esse tipo de relato cristalizou-se como ‘História’. Mas o termo crônica
continuou a ser empregado ainda durante o século XVI.
Com o passar do tempo, a conotação historicista do vocábulo ‘crônica’
foi se desfazendo até ganhar sua acepção moderna, ou seja, a de texto um
caráter com literário, mas ainda assim híbrido por circular amplamente na
imprensa. Foi no século XIX que, a partir da ampla difusão e circulação dos
jornais, a crônica estabeleceu a sua adesão definitiva aos jornais. Tornou-se
comum nos jornais franceses e não tardiamente chegou ao Brasil. Ao final do
século XIX, o Brasil tinha já importantes cronistas como J. de Alencar,
Machado de Assis e outros. Já no século XX, João do Rio, Lima Barreto fazem
o gênero ganhar larga difusão. As décadas de 30/40 contam com a presença
de Rubem Braga, Raquel Queirós, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e
Carlos Drummond de Andrade. Hoje ponteiam os jornais de grande circulação
Luís F. Veríssimo, Lourenço Diaféria, João Ubaldo ribeiro, Raquel de Queirós e
outros.
Características do gênero:
Exatamente por estar situada num suporte de natureza efêmera e que
trata do cotidiano,a crônica oscila entre a reportagem e a literatura,entre o
relato de acontecimentos triviais e a recriação do cotidiano por meio da
fantasia. Nesse sentido, será tanto mais literária quanto mais fugir da mera
descrição ou comentário do cotidiano. Por isso, a crônica literária tende sempre
à conotação, sua alma são metáforas, as comparações, o humor que dão ao
fato/acontecimento comentado uma visão sempre particular e aguçada
realidade por parte do cronista.
Marcas formais:
1.Brevidade: em geral,a crônica é um texto curto, em virtude de seu
suporte, o jornal.
2. Presença forte de subjetividade do cronista: numa crônica avulta
sempre o ‘eu’ particular do cronista que incide sobre o fato/acontecimento
comentado a sua visão muito particular. A veracidade positiva dos
acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que o cronista olha o
mundo.
3.Constante interlocução com o leitor: o cronista fala diretamente com o
leitor, ele é seu alvo no sentido de transmitir uma visão da realidade, a sua
visão. Embora haja esse interlocutor explícito, MOISÉS (1983) considera a
crônica um monodiálogo, já que o cronista fala o tempo todo de si mesmo,
mesmo que a propósito de um certo acontecimento do cotidiano.
4.Linguagem literária:diferentemente dos outros textos que figuram um
jornal ou revista, a crônica tem uma linguagem que lhe é muito própria .Ela é
diferente da linguagem objetiva do texto jornalístico, pois é marcada pelo estilo
literário,cheio de metáforas,ironias,alegorias,etc. Por tratar de temas cotidianos,
a crônica é marcada pela oralidade,muito embora não deixe de lado certo
filosofismo ou mesmo uma análise mais contundente do fato/acontecimento do
qual trata o cronista.’Se,por vezes,como nos crônicas dum Rubem Braga,dum
Fernando Sabino ou dum Carlos Drummond de Andrade, para citar apenas três
dos maiores, uma transcendência emana do acontecimento,trata-se duma
transcendência ain a rasteira, a que o leitor pode aceder prontamente:
transcendência que se pode assimilar com uma simples leitura,sem apelo à
reflexão ou à inteligência crítica;transcendência que aflora ao sabor da
conversa descontraída,não a que emerge da análise exigente e vertical de uma
complexa questão ‘ (MOISES,1983)
5.Efermidade:”Ambigüidade, brevidade, subjetividade, diálogo, estilo
entre oral e literário, temas do cotidiano,ausência do transcendente,- eis os
requisitos essenciais da crônica, a que falta adicionar tão-somente um outro,
anteriormente mencionado: a efermidade. Ainda que incorrendo no pecado da
repetição creio apropositado retomar o tópico mesmo porque se relaciona com
o próprio núcleo da crônica: destina-se ao consumo diário, como nenhuma obra
que se pretenda literária.” (MOISÉS, 1983)
MOISÉS, Massaud. Crônica. In:______. A criação literária (prosa).
São Paulo: Cultrix,1993.
2) Cada grupo deverá elaborar um texto em que seja relatado os pontos
principais apresentados na discussão oral realizada até esse momento. O texto
produzido deverá contemplar também as considerações e opinião do grupo a
respeito da crônica.
5) Ampliação do horizonte de expectativas:
A ampliação do horizonte de expectativas se dará, quando o
aluno/leitor tiver o mesmo atendido para depois passar para a ruptura e
questionamento desse mesmo horizonte. Para tanto, é necessária a
intervenção do professor através da motivação e desenvolvimento de ações
concretas.
Atividades propostas:
Cada grupo deverá selecionar uma crônica, dentre todas as que foram
lidas e pesquisadas, para apresentar para toda a turma. Será feita uma
exposição oral, podendo utilizar cartazes, slides, ilustrações para expor a
análise realizada pelo grupo sobre a crônica escolhida. Deverão ser
observadas as marcas formais da crônica estuda anteriormente.
Recursos:
Textos impressos, livros de crônicas, papel, ilustrações, dicionário,
internet.
Avaliação:
Será contínua e ocorrerá através da observação direta das respostas
dadas pelos alunos (oralmente e/ou por escrito) às questões propostas, bem
como de sua participação no desenvolvimento das atividades.
Contextualizando:
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A LITERATURA
O foco do nosso trabalho é o incentivo à leitura de textos literários e
sabemos que nessa leitura o espaço do leitor é ainda maior do que o espaço
do qual dispõe o leitor de outros tipos de textos. Para tanto, vamos nos ater às
idéias sobre leitura apresentadas pela teoria literária, a partir das teorias que
enfocam mais especificamente o leitor e a forma como este se apropria e cria
sentidos para o texto. Entre os teóricos que se dedicam a essa abordagem
destacamos Hans R. Jauss, um dos expoentes da Estética da Recepção,
assim como Iser.
Para Jauss, o valor de uma obra literária decorre da percepção estética
que a obra desperta no leitor, ao mesmo tempo em que contraria a expectativa
do leitor. Uma de suas teses refere-se ao relacionamento entre literatura e a
vida prática, onde procura examinar as relações da literatura com a sociedade.
Nas suas palavras: “ a relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no
terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no
terreno ético enquanto exortação à reflexão moral.” (JAUSS, 1994)
Em outras palavras, pode-se dizer que quando o leitor mergulha no texto
vai fazendo previsões em todo momento, durante toda a leitura e, tais
previsões, com certeza, serão construídas a partir do seu universo particular e
é isso o que estabelece a diferença entre as formas de ler um texto e as formas
de completá-lo, haja vista que nele há trilhas, como se fosse um bosque, as
quais se bifurcam e o leitor decide se toma a trilha da direita ou a da esquerda,
porque quando o texto se cala, deixando lacunas, espaços vazios, silêncios, o
leitor exerce sua função de co-autor, completando o sentido do texto.
Iser (1999) diz que a descrição da interação entre texto e leitor deve referir-
se em primeiro lugar aos processos constitutivos pelos quais os textos são
experimentados na leitura. Desse modo, deve-se substituir a velha pergunta
sobre o que significa determinado texto, pela de quais efeitos causou no leitor
no momento de ler, e depois, já que a obra literária tem dois pólos: um,
artístico, que é o próprio texto criado pelo autor e um pólo estético, que é a
concretização produzida pelo leitor. O objeto ideal não é dado pela obra e sim o
constitui o leitor. Isso não significa que o leque de possibilidades que a obra
abre para o leitor, dê a oportunidade de uma interpretação aleatória, pois os
elementos de indeterminação permitem, sem dúvida, certo espectro de
realização, mas isso não significa que a compreensão seja aleatória, pois
representa a condição central para a interação entre texto e leitor.
A ESCOLHA DA CRÔNICA
Mesmo considerada por muitos como um “gênero menor” (CANDIDO,
1992), ainda assim, a crônica, está incorporada à categoria de Gênero
Literário, e, por extensão, passa a pertencer ao universo das obras de arte.
O fato de a crônica não participar, dentro do campo da Literatura, do
elenco dos gêneros considerados mais “nobres”, em vez de diminuir sua
importância, acaba por ressaltar qualidades que, além de serem decisivas para
sua fixação e permanência no campo, serão reveladoras de um instrumento
imprescindível na arte da iniciação à leitura e à vida literária, como bem
destacou Antônio Candido:
“... a crônica é um gênero menor. [...] Graças a Deus, __ seria o caso de
dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de
caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura.
[...] Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa
sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo
dia. Principalmente por que elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso
modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a
outra mão uma certa profundidade de significado e um acabamento de forma,
que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à
perfeição.”
A arte, pelo fato de poder retratar as experiências universais dos
indivíduos e pela sua capacidade humanizadora, muitas das vezes, consegue
explicar melhor o mundo concreto do que inúmeros tratados de Ciências
Sociais. Nesse sentido, Candido (1992) menciona que para a investigação em
andamento, a crônica cumpre plenamente seu papel, como pode ser
observado a seguir:
“É curioso como elas (as crônicas) mantêm o ar despreocupado, de
quem está falando de coisas sem maior conseqüência; e, no entanto, não
apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas
podem levar longe a crítica social.
[...] Quero dizer que por serem leves e accessíveis talvez elas
comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na
sua vida de todo o dia.
[...] É importante insistir no papel de simplicidade, brevidade e graça
próprias da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos
uma idéia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são
graves, pesadas, e que conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade,
aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica
são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que,
divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas.”
CANDIDO, Antônio. “A Vida ao Rés-do-Chão” In. A Crônica: O Gênero, sua
Fixação e suas Transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992, p. 13-14. 25
REFERÊNCIAS
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CANDIDO, Antônio. “A Vida ao Rés-do-Chão” In. A Crônica: O Gênero, sua Fixação e suas Transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992, p. 13-14. 25
_________________. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1976.
_________________. A literatura e a formação do homem, In: Revista Ciência e Cultura. Piauí: Universidade Federal do Piauí, 1972.
_________________"O direito à literatura". In: Vários escritos. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra.São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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________. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução J. Kretschmer.São Paulo: Editora 34, 1999. v.2
JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. S.Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
MOISÉS, Massaud. Crônica. In: A criação literária (prosa). São Paulo: Cultrix, 1983.
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ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
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