UM TRATADO SOBRE O AMOR DE DEUS
BERNARDO DE CLARAVAL
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Traduzido do original em Francês
Livre Ou Traité de Saint Bernard Sur L’amour De Dieu.
Bernard de Clairvaux
Via: Abbaye-Saint-Benoit.ch
Tradução e revisão do original em Francês por Jocelyne Forrat
Revisão ortográfica por Camila Almeida
Capa por William Teixeira
1ª Edição: Julho de 2015
Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas usadas nesta tradução são da versão Almeida
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Breve Apresentação
Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus que é
Amor, o Todo-Amorável! (2 Coríntios 1:3; 1 João 4:8, 16). Mui gratos a Deus, apresentamos mais
esta tradução que Ele mesmo em graça, misericórdia e amor nos tem concedido. Trata-se do
Clássico Tratado Sobre o Amor de Deus, pelo piedoso Bernardo, Abade de Claraval, o “doutor
língua de mel”.
A obra em si constitui um dos maiores escritos Cristãos sobre o tema, assim como a túnica de Jesus
era tecida toda de alto a baixo e não tinha costura (João 19:23), assim podemos dizer que este
tratado é todo tecido de alto a baixo por uma pena mui piedosa e sábia, e por um coração em
ardente amor a Deus, sem costura ou remendo da tão abominável corrução moral e desejo de
poder, avareza e hipocrisia, tão comum nos seus dias.
Quanto ao autor, Bernardo viveu na Idade das Trevas, mas podemos definir sua vida com o nome
do monastério por ele fundado: Clairvaux (Claraval), que significa “Vale Límpido” ou “Vale da Luz”.
Apesar de ser um Abade da Igreja do anticristo, o Papa, e de lhe serem atribuídas muitas histórias
mirabolantes pela tradição papista, além de muita veneração e apreço, Bernardo é tido em alta
estima e consideração pelos protestantes, sobre isto Steven Lawson escreve:
O ensino de Bernardo foi profundamente apreciado por Lutero e Calvino. Este último via Bernardo como
o maior testemunho em prol da verdade entre o sexto e décimo sexto século. Já Lutero saudava
Bernardo como um homem de admirável santidade e o considerava como um dos melhores santos
medievais. Charles Spurgeon concordou com Lutero, dizendo: “São Bernardo foi um homem que
admiro em grau máximo, e o tenho como um dos escolhidos do Senhor”. Ele continuou dizendo que
Bernardo era “um dos homens mais santos e humildes”, o qual, “parece cair em delírio de amor quando
fala de seu divino Mestre”.1
O nosso maior desejo com esta publicação, para nós mesmos e para vocês que pousarem os olhos
nestas linhas, é que esta obra contribua para que possamos conhecer e amar ao Deus que nos
amou primeiro, pois sem dúvida o maior pecado é a quebra do maior mandamento e a causa do
pouco amor é falta do vero conhecimento de Deus, pois aquele que mais conhece a Deus, mais
ama (1 João 4:8). Oh! que possamos conhecer e amar “Àquele que nos amou, e em seu sangue
nos lavou dos nossos pecados” (Apocalipse 1:5). Faz assim Senhor, por Cristo. Amém!
Editores EC,
16 de junho de 2014
______________
[1] LAWSON, Steven J. Reformador Monástico. Último Monástico: Bernardo de Clairvaux. Cap. 16. Pág. 399-423. In: LAWSON,
Steven J. Pilares da graça. Longa linha de Vultos Piedosos. Vol. II. Tradução: Valter Graciano Martins. São José dos Campos, São Paulo:
Editora Fiel, 2013.
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Um Tratado Sobre O Amor De Deus Por Bernardo de Claraval
Prefácio
Ao mui ilustre senhor, Haimeric, cardeal-diácono e chanceler da Igreja Romana, Bernardo,
abade de Claraval; vivo para o Senhor e morto em Cristo.
Até agora vocês estavam acostumados a me pedir orações, e não me propunham assuntos
a tratar. Não que eu me sinta mais habilidoso para um do que para o outro; mas ao menos
as orações convêm melhor à minha profissão, senão da forma como cumpro os deveres;
mas quanto às questões a serem resolvidas, me parece que, para tratá-las, são necessárias
duas coisas que, na verdade, me fogem completamente, isto é, quero falar em espírito e
precisão. No entanto eu percebo — com prazer, eu confesso — que vocês deixaram de
lado as coisas da carne pelas do espírito, mas vocês deveriam ter se dirigido a alguém que
oferecesse mais recursos do que eu. Esta desculpa, é verdade, é comum às pessoas
capazes e igualmente às que não o são, e não é nada fácil saber se provém da modéstia
ou da incapacidade, enquanto não tenha sido tentado em esforços no sentido solicitado.
Portanto, vos peço receber o que me permite a minha mediocridade, pois não quero,
permanecendo em silêncio, me fazer passar por um sábio. Todavia não tenho a intenção
de satisfazer todas as vossas perguntas, eu responderei apenas, conforme a inspiração
dada por Deus, àquela que vocês me fizeram sobre o amor de Deus; é a mais doce a ser
estudada, a menos perigosa a ser tratada e a mais útil a ser ouvida; guardem as outras
para os mais habilidosos do que eu.
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CAPÍTULO I
Porque e como amar a Deus?
1. Vocês querem então saber de mim por qual motivo e em que medida nós devemos amar
a Deus? Pois bem, eu vos direi que o motivo do nosso amor por Deus, é Ele mesmo, e que
a medida deste amor é amar sem medida¹. É explícito o bastante? Sim, talvez, para um
homem inteligente; mas eu tenho que falar aos sábios e aos ignorantes, e se eu falei o
suficiente para os primeiros, preciso levar em conta os segundos; é, portanto, para estes
que desenvolvo meu pensamento, mergulhando mais fundo. Ora eu digo que temos dois
motivos de amar a Deus pelo que Ele é; não há nada mais justo, nada mais vantajoso. De
fato, esta pergunta: Porque devemos amar a Deus, se apresenta sob dois aspectos: Ou
nos perguntamos a que ponto Deus merece o nosso amor, ou então qual é a vantagem que
vemos em amá-lO; para esta questão dupla, há apenas uma resposta: O motivo pelo qual
devemos amar a Deus é o próprio Deus. E, aliás, se nós colocamos um ponto de vista de
mérito, não há maior do que Deus de ter Se entregado a nós, mesmo sendo indignos; de
fato, o que poderia Ele, tão Deus quanto é nos dar algo que valesse mais do que Ele? Se,
portanto nos perguntamos qual o motivo que temos de amar a Deus, nós buscamos qual o
direito que Ele se deu ao nosso amor, encontramos antes de qualquer coisa que Ele nos
amou primeiro. Ele merece, portanto, que paguemos de volta, principalmente se considera-
rmos Quem é o que ama, quais são os que Ele ama e como Ele os ama. Quem é de fato
Aquele que nos ama? Não seria Aquele a quem todo espírito dá este testemunho: “Tu és o
meu Senhor, a minha bondade não chega à tua presença” [Salmos 16:2]? E este amor em
Deus não seria a verdadeira caridade que não busca seus próprios interesses? Mas a quem
se refere este amor gratuito²? O apóstolo responde: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos
reconciliados com Deus” (Romanos 5:10). Deus nos amou com um amor sem interesses e
Ele nos amou quando ainda éramos Seus inimigos. Mas com qual amor Ele nos amou?
São João responde: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito”
(João 3:16). São Paulo continua: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou,
antes o entregou por todos nós” (Romanos 8: 32); e este Filho diz Ele mesmo, falando dEle:
“Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (João
15:13).
__________
[1] Vemos a mesma coisa em uma carta de Sévère, Bispo de Milève, a santo Agostinho, das quais deste último podemos
ler: “Não há medida intimada ao nosso amor por Deus, visto que a medida com a qual devemos amá-lO é a de amá-lO
sem medida”. Jean de Salisbury imita este trecho escrito por são Bernardo, em seu livro “Polycratique”, liv. VII; capítulo
XI. (Polycrate foi um tirano de Samos de 533 ou 532 a 522 a.C) Anátema, portanto, a Bérenger, o impudente apologista
de Abélard [Abelardo], que ousa permitir-se censurar esta bela expressão do nosso santo Doutor.
[2] Amor gratuito, isto é que não busca seus próprios interesses como citado acima: Algumas edições diferem um pouco
nesta parte em certos manuscritos.
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Eis os direitos do santo Deus soberano, grande e poderoso que Se deu por amor aos
homens pecadores, infinitamente pequenos e fracos. Mas, diremos, se
— É assim para o homem, não é a mesma coisa para os anjos: eu concordo; mas é porque
isto não foi necessário: aliás, Aquele que socorreu os homens na miséria, protegeu os anjos
de uma miséria parecida e se o Seu amor pelos homens lhes permitiu que não permane-
cessem como estavam, Ele, por este mesmo amor impediu os anjos de se tornarem tal qual
nós fomos.
CAPÍTULO II
O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma:
como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu.
2. Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é,
por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como
confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não
é dEle, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina, e o
ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis
e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro
lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas
são os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do
nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a
inteligência e a virtude [...].
3. Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência
aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem
cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do
homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim
a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar
com força, uma vez encontrado, Aquele a Quem queremos pertencer. Também de nada
vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos
provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem, se ele não sabe que
o tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não
o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: “E que tens tu que não tenhas recebido? E,
se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?” (1 Coríntios 4:7) Ele
não diz simplesmente: “Por que te glorias?”, mas ele acrescenta: “Como se não o houveras
recebido” para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas por se
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gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada
vaidade, já que não se apoia no fundamento sólido da verdade. O apóstolo a distingue da
verdadeira glória, dizendo: “Aquele que se gloria glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1:31),
isso é, na verdade: porque Deus é a verdade.
4. Portanto há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que
não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória
que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos,
está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1:6-
7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo
a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os
companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se
conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confun-
dir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chama-
dos de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se
torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que
elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos
mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva
a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos
imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos
odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhe-
cimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como
se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não
nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso,
nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no tercei-
ro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindi-
cando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda
ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o
menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta
ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas
o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não
os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em
seus benfeitos.
5. Também à excelência e à inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude
que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos,
em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por
não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age
desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou
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sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36:4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar
e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens,
sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a
fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a
inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude,
não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus
simplesmente nestes termos: “Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória,
por amor da tua benignidade e da tua verdade” (Salmos 115:1). O que significa: Senhor,
nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuímos tudo ao Teu
nome, porque é dEle que nós recebemos tudo.
6. Mas nós nos afastamos demais do nosso desígnio, querendo provar que mesmo os que
não conhecem a Cristo, sabem bem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que
devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em
algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente
dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva
sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos
quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que
atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro
a não ser ao que disse em Gênesis: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança”
(Gênesis 1:26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina
tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se
não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo
infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele
que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças,
não tem desculpas [...].
CAPÍTULO III
Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus.
7. Os fiéis, ao contrário, sabem o quanto precisam de Jesus crucificado, mas mesmo
admirando e recebendo o amor que Ele tem por nós, que está acima de todo entendimento,
não demonstram nenhuma confusão em dar nada além do que eles mesmos, por menor
que sejam, em retorno a uma caridade e a uma condescendência tão grandes; mas é tão
fácil para eles amar mais do que se sentirem eles mesmos mais amados; porque àquele a
quem se dá menos amor, esse o sentirá também bem menos. Os judeus não mais que os
pagãos, não sentem a excitação pelos mesmos aguilhões do amor que oprimem a Igreja e
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fazem com que ela diga: “Eu fui ferido por amor”; ou ainda: “Sustentai-me com passas,
confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor” (Cânticos 2:5) [...] ela vê o Filho
Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e
cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, traspassado, cheio de opróbrios, dando por
Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do
amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: “Sustentai-me com passas,
confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor”. As maças que a Esposa introduziu
no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do
Céu e a cor do sangue do Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquilo que
a fez magnificar o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo
da terra para sobre a terra e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de
cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra
e debaixo da terra (Filipenses 2:10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente
espinheiros e abrolhos; revigorada, então, por uma nova benção, é coberta de flores. Então
a esposa lembra-se deste versículo: “O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele
confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu
canto o louvarei” (Salmos 28:7), recobra o ânimo com os frutos da paixão que ela colheu
da árvore da cruz, e com as flores da ressurreição cujo perfume delicioso convida o Amado
a renovar as Suas visitas.
8. Enfim ela exclama. “Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito
é verde” (coberto de flores) (Cânticos 1:16). Falando deste leito, ela deixa claro o que
deseja, e, acrescentando que ele está coberto de flores, ela mostra no que estão baseadas
as suas esperanças; não é sobre as vantagens de sua pessoa, mas sobre a atração que
as flores, colhidas em um campo abençoado por Deus, têm para o seu Amado, porque é o
que sentem por Cristo que quis ser concebido e alimentado em Nazaré. Este Esposo
celeste, atraído pelo perfume que emana delas, tem prazer em entrar no quarto do coração,
quando o encontra cheio de frutas e perfumado pelo aroma das flores. E Ele vem apres-
sadamente e tem prazer em habitar na alma que a Ele contempla em meditação, cuidado-
samente dedicada e colhe os frutos de Sua paixão e cultiva as flores de Sua ressurreição.
Ora estes frutos da última colheita, isto é de todos os séculos que se foram sob o império
da morte e do pecado, que amadureceram na plenitude dos tempos, são as lembranças de
Sua paixão. Mas é no esplendor de Sua ressurreição que devemos ver as novas flores dos
novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na
ressurreição real, elas darão inumeráveis frutos: “Porque eis que passou o inverno; a chuva
cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola
ouve-se em nossa terra” (Cânticos 2:11-12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão
apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer em temperatura
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primaveril de uma nova vida, dizendo: “Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse
21:5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressurreição, e, ao perfume que dEle
emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado,
cobrir-se de verde, renasce em vida e volta a obter calor.
9. O frescor destas flores. O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam
os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e
lhe inspiram esta exclamação: “Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo,
que o Senhor abençoou” (Gênesis 27:27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua
plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar dEle, vem colher
em sua simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para
que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves.
Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso
que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas
provas recebemos em Sua morte e em Sua ressurreição. É o pensamento de Davi, quando
disse: “Deus falou uma vez; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus. A ti também,
Senhor, pertence a misericórdia” (Salmos 62:11-12) Jesus Cristo provou superabun-
dantemente, pois após morrer por nós por nossos pecados, Ele ressuscitou para nos
justificar, subiu aos céus para nos proteger, e nos envia o Espírito Santo para nos consolar;
e, mais tarde Ele voltará para a consumação da salvação. Ora eu vejo em Sua morte a
prova da Sua misericórdia, na ressurreição a prova do Seu poder, e em todo o restante eu
as encontro, as duas, reunidas.
10. Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com
frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas
ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de
beijos há muito desejados e possa exclamar: “A sua mão esquerda esteja debaixo da minha
cabeça, e a sua mão direita me abrace” (Cânticos 2:6). Mas então ela sentirá e verá por si
mesma o quanto estas provas de amor que Seu Amado lhe dava da mão esquerda, para
assim dizer, pois Ele as dava sem contar nos dias em que estava entre nós, cedem em
doçura aos abraços da sua mão direita e os são inferiores, e ela entenderá as Suas
palavras. “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita” (João 6:63), e ela pene-
trará no sentido destas palavras: “Meu espírito é mais doce que o mel e minha herança ma-
is agradável que o mel nas prateleiras”. Se em seguida dissermos: “A memória de meu
nome passará de séculos em séculos” é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede
da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança dEle para se consolarem, enquanto
durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se está escrito:
“Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade” (Salmos 145:7), certamen-
te ouve-se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: “Uma geração louvará as tuas
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obras à outra geração” (Salmos 145:4). Portanto os que vivem na terra possuem para si
somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença;
esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos
que ainda estão a caminho.
CAPÍTULO IV
Quem são os que acham consolo ao lembrar de Deus,
e são mais puros em sentir amor por Ele.
11. Mas é interessante ver quais são os que encontram consolo ao lembrar de Deus. Não
são os homens corruptos que irritam Deus sem cessar e a quem Ele diz: “Mas ai de vós,
ricos! porque já tendes a vossa consolação” (Lucas 6: 24), mas os que podem clamar com
verdade: “a minha alma recusava ser consolada” (Salmos 72:2); acreditaremos neles volun-
tariamente, se eles acrescentarem com o Salmista: “Mas eu me lembrei de Deus” e en-
contrei gozo nesta lembrança (Salmos 72:3). E de fato, é verdade que aqueles que ainda
não gozam da presença do Amado, olham para o futuro, e que aqueles que desprezam
cavar algumas consolações na torrente das coisas que passam, experimentam coisas
abundantes na lembrança das que duram eternamente. Assim são aqueles que buscam o
Senhor e a face do Deus de Jacó, ao invés de buscar seus próprios interesses. Para aque-
les que suplicam a Deus e buscam a Sua presença com todo desejo, a lembrança é doce;
mas bem longe de saciar a sua fome, ela a faz crescer pelo alimento que deve saciá-los. É
o que antecipa este alimento que diz, falando dele: “Os que comem ainda terão fome”. É
também isto o que diz aquele que disto se alimenta: “eu me satisfarei da tua semelhança
quando acordar [me terás mostrado a tua glória]” (Salmos 17:15). Bem-aventurados os que
têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos (Mateus 5:6). E maldita serás, raça
malvada e perversa, maldito és, povo tolo e insensato, que não amas a sua lembrança e
teme a sua presença! Tens razão em temer, pois agora não queres escapar dos caçadores,
pois “Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concu-
piscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína” (1 Timóteo
6:9); não poderás jamais fugir a esta palavra dura, sim, muito dura e cruel: “Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno” (Mateus 25:41). Quão mais suave e mais doce é aquela
que ouvimos repetir na Igreja, lembrando a paixão: “Quem come a minha carne e bebe o
meu sangue tem a vida eterna” (João 6:54)! O que nos faz dizer: Aquele que honra a minha
morte, e, seguindo meu exemplo mortifica a sua carne sobre a terra, terá a vida eterna; ou
então, se comigo sofres, também comigo estarás no Reino. E, portanto ainda hoje, muitos,
face a estas palavras, se retiram e se afastam dizendo, se não em palavras, mas pelo
comportamento: “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?” (João 6:60-61). Desta forma
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os homens que, ao invés de conservarem seu coração reto e puro e permanecerem fiéis a
Deus, preferiram colocar suas esperanças nas riquezas incertas, não podem agora ouvir
falar da cruz; a simples lembrança da paixão lhes parece um peso esmagador; quanto mais
serão esmagadoras para estes as palavras do juiz: “Apartai-vos de mim, malditos, para o
fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mateus 25:41)? Elas esmagarão, como
uma rocha aquele sobre o qual cairão. Mas os santos serão benditos; com o apóstolo, eles
não têm outra ambição senão “muito desejamos também ser-lhe agradáveis, quer presen-
tes, quer ausentes” (2 Coríntios 5:9). E também ouvirão estas palavras: “Vindes benditos
do meu Pai, etc.”. Será então que aqueles que não guardaram seu coração reto, sentirão,
porém tarde demais, o quão doce e leve é o jugo e o fardo de Cristo, aos quais orgu-
lhosamente retiraram seu coração endurecido, como se se tratasse de um jugo esmagador
e um fardo pesado. Não podeis, ó malditos escravos do dinheiro, gloriar-vos na cruz do
nosso Senhor Jesus Cristo e ao mesmo tempo colocar vossa esperança nos tesouros,
suplicar por fortuna e experimentar o quanto o Senhor é doce; e então com certeza O
temerão muito, quando O verdes, Aquele cuja lembrança não vos pareceu cheia de doçura.
12. E para a alma fiel, ela suspira com todas as suas forças após ter conhecido a Deus, e
descansa suavemente em Sua lembrança; ela se gloria das ignomínias da cruz, enquanto
não pode ver o Senhor face a face. Eis certamente o repouso e o sono que a Esposa, a
colomba de Cristo, experimenta, esperando em meio aos bens que lhes são dados em
herança; ela tem, agora, pela lembrança de Sua inefável doçura, ó Senhor Jesus, as asas
brancas e prateadas da pureza e da inocência, e mais ainda, ela espera estar embriagada
de felicidade quando ela avistar o esplendor em Sua face do ouro [...] e Sua sabedoria
inundar de luz na glória e na felicidade dos santos. Portanto bem certa está de gloriar-se
desde agora e de dizer: “A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua
mão direita me abrace” (Cânticos 2:6). A mão esquerda do Esposo é a lembrança deste
amor do qual ninguém mais pode igualar a grandeza e que O impulsionou a dar a vida por
Seus amigos; Sua mão direita é a visão beatificada que Ele prometeu aos Seus e a alegria
que os embriagará quando gozarem de Sua Divina presença. Não é por acaso que esta
visão Divina e dêitica, esta inestimável felicidade da visão de Deus é representada pela
mão direita, pois é desta mão que é mencionado de forma inefável: “tua mão direita há
delícias perpetuamente” (Salmos 16:11). É por um motivo semelhante que a mão esquerda
é como a sede desta admirável caridade da qual falamos mais acima e da qual não
sabemos realmente nos lembrar; pois é nesta mão que a Esposa recosta a sua cabeça
esperando que a iniquidade passe.
13. Não, não é por acaso que o Esposo coloca Sua mão esquerda sob a cabeça da Esposa,
para que ela possa descansar e repousar o que podemos chamar de cabeça, isto é a
profundidade de sua alma, para que ela não se enfraqueça e não se desvie para os desejos
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carnais deste tempo; pois a embalagem terrestre e corruptível do corpo é um fardo pesado
para a alma e a faz entrar em tristeza, da qual ela precisa sair, levando em consideração
uma misericórdia da qual tínhamos tão pouco direito, um amor tão gratuito e tão bem pro-
vado, uma honra tão inesperada, uma bondade indulgente e uma doçura tão perseverante
e tão admirável. Como pela meditação cuidadosa de todas estas coisas, não se elevaria a
elas o espírito que delas se alimenta, e não se desligaria de todo sentimento ruim? Que
profunda impressão terá sobre ele, e como poderia não lhe inspirar desprezo por aquilo que
podemos gozar somente se renunciarmos a todas estas grandes coisas? É pelo bom aroma
que exalam como tantos perfumes deliciosos que a Esposa se apressa alegremente e se
sente consumida de amor; quando ela se vê tão amada, lhe parece que ama tão pouco,
ainda que fosse ela mesma todo amor, e ela tem razão de assim crer; de fato, que retorno
pode um grão de pó tributar por um amor tão grande vindo de tão alto, quando mesmo se
consumiria ele inteiramente de amor e de reconhecimento? Não foi ela alertada pela Divina
Majestade, não mostrou-Se inteiramente ocupado em salvá-la? Porque “Deus amou o
mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito” (João 3:16). Ora obviamente é de Deus
Pai que falamos aqui, e, quando foi dito: “porquanto derramou a sua alma na morte” (Isaias
53:12), trata-se aqui do Filho; quanto ao Espírito Santo lemos: “Mas aquele Consolador, o
Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos
fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (João 14:26). Portanto Deus nos ama e nos
ama com todo o Seu ser; pois a Trindade toda nos ama, se é permitido expressar assim,
falando do Ser infinito e incompreensível no qual não há partes.
CAPÍTULO V
A obrigação de amar a Deus, particularmente para os Cristãos.
14. Quando pensamos em tudo isto, podemos facilmente compreender porque devemos
amar a Deus e quais os direitos que Ele tem ao nosso amor. Trata-se do infiel? Como ele
não conhece Deus, o Filho, ele está na mesma ignorância em relação ao Pai e ao Espírito
Santo; e da mesma forma que ele não glorifica ao Filho, ele não saberia glorificar o Pai que
O enviou e nem tampouco o Espírito Santo que é um dom do Filho; ele conhece Deus
menos do que nós, portanto não é estranho que O ame menos; todavia, ele não ignora o
fato de que deve a si mesmo inteiramente Àquele de Quem ele sabe que recebeu a vida.
Mas e quanto a mim? Ora, não posso ignorá-lO, não somente Deus me fez um ser sem que
eu o merecesse; não somente Deus supre abundantemente as minhas necessidades, me
consola com bondade e me governa com solicitude, porém, mais ainda, é o Autor da minha
redenção e da minha salvação eterna; Ele é para mim um tesouro e fonte de glória. De fato
está escrito: “Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há
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abundante redenção” (Salmos 130:7), e “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por
seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção”
(Hebreus 9:12); “Porque o Senhor ama o juízo e não desampara os seus santos” (Salmos
37: 28). Ele nos enriquece; de fato, está escrito: “boa medida, recalcada, sacudida e
transbordando” (Lucas 6:38). E ainda em outro escrito: “As coisas que o olho não viu, e o
ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para
os que o amam” (1 Coríntios 2:9). Ele nos enche de glória, pois, segundo o apóstolo: “de
onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso
corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso” (Filipenses 3:20-21)”, e mais:
“Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para
comparar com a glória que em nós há de ser revelada” (Romanos 8:18). “Por isso não
desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se
renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um
peso eterno de glória mui excelente” (2 Coríntios 4:16-17).
15. Que daria eu, portanto, ao Senhor por tudo isto? A razão e a justiça obrigam-me apres-
sadamente a me doar inteiramente Àquele de Quem recebi tudo o que sou, e de consagrar
todo o meu ser em amá-lO. A fé me diz também a ter por Ele um amor tal que eu entendo
melhor o quanto devo estimá-lO mais do que a mim mesmo, pois se herdei de Sua mag-
nificência tudo o que sou, eu Lhe devo também o Seu próprio dom. Enfim, o dia da fé Cristã
não tinha ainda um Deus que se havia encarnado, não havia ainda morrido na cruz e nem
descido ao sepulcro, nem subido aos céus ao lado de Seu Pai; digo, Ele não havia ainda
rompido toda a extensão do Seu amor por nós, deste amor do qual tive a amabilidade de
partilhar mais alto com vocês, o homem já havia recebido a ordem de amar O Senhor seu
Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, isto é, de todo
o seu ser, com todo amor que for capaz, como criatura dotada de força e inteligência. E não
seria de forma alguma uma injustiça da parte de Deus reivindicar Sua obra e Seus dons.
De fato, por que a obra não amaria Aquele que a fez, já que recebeu o poder de amar, e,
por que não O amaria com todas as suas forças se é somente dEle que ela as recebeu?
Adicione a isso tudo que ele foi tirado do nada sem nenhum mérito anterior, para em
seguida ser exaltado; a obrigação de amar a Deus vos parecerá de tanto mais evidente e
seus direitos ao nosso amor tanto mais fundamentados. Aliás, não foi Ele ao extremo em
Suas bênçãos e Suas misericórdias, quando nos salvou, quando éramos semelhantes aos
animais que perecem (Salmos 49:20)? De fato, pelo pecado fomos destituídos do nível de
honra que era nosso, para nos tornarmos semelhantes ao boi que ara no campo, e a
animais desprovidos de razão. Portanto, se devo me doar completamente ao meu Criador,
o que mais não Lhe deveria como meu Restaurador, grande Restaurador? Foi-Lhe muito
menos fácil me restaurar do que me criar; pois, para dar vida não somente a mim, mas a
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toda a criação, dizem as Escrituras “pois mandou, e logo foram criados” (Salmos 148:5).
Mas para restaurar o ser que, com uma única palavra, feito tão completo, quantas palavras
não foram pronunciadas, quantas maravilhas Ele teve que operar, quantos tratamentos
cruéis, ou devo ir mais fundo ainda, quantos tratamentos indignos Lhe foram necessários
sofrer!
“Que darei eu então ao Senhor, em reconhecimento por tudo que fez comigo” (Salmos
116:12)? Quando Ele me criou, deu-me a minha vida: mas a devolveu a mim mesmo quan-
do Se deu por mim; a concedeu-me uma vez, em seguida a devolveu, portanto, por mim,
devo duas vezes. Mas o que darei eu a Deus por Ele? Pois, mesmo que eu pudesse me
dar a mim mesmo mil vezes, que seria isto comparado a Deus?
CAPITULO VI
Recapitulação, sumário dos capítulos anteriores.
16. Reconheçamos então primeiramente em que medida Deus é digno de ser amado, ou
melhor, vamos entender que o deve ser sem medida. De fato, para resumir em poucas
palavras, Ele nos amou primeiro, Ele tão grande e nós tão pequenos; Ele nos amou com
excesso, tal como somos, e sem qualquer mérito nosso; por isso eu disse no começo que
a medida do nosso amor por Deus deve ser sem medida ou exceder qualquer medida; aliás,
já que este amor é imenso, infinito (pois assim é Deus) eu pergunto, quais seriam o termo
e a medida de nosso amor por Ele? Além do mais, o nosso amor não é gratuito; é o paga-
mento de nossa dívida. Enfim, quando é o Ser imenso e eterno, o próprio amor por excelên-
cia, quando se trata de um Deus cuja grandeza é sem limites, a sabedoria incomensurável,
a paz excedendo a todo sentimento e todo pensamento; quando, digo, é um Deus tal que
nos ama, guardaremos em relação a Ele alguma medida em nosso amor? Eu Te amarei,
portanto, Senhor, Tu que és a minha força e meu sustento, meu refúgio e minha salvação,
Tu que és para mim tudo o que pode existir de mais desejável e mais amável. Meu Deus e
meu sustento, eu Te amarei com todas as minhas forças, não tanto quanto mereces, mas
certamente tanto quanto eu puder, se eu não puder o quanto deveria, pois é impossível
para mim amá-lO mais do que todas as minhas forças. Poderei amá-lO mais somente
quando receber o poder da Sua graça, e ainda assim não será o quanto mereces. Teus
olhos veem toda a minha insuficiência, mas eu sei que Tu escreveste no Livro da Vida,
todos aqueles que fazem o quanto podem, mesmo que não façam tudo o que devem. Eu já
disse o suficiente, se não me engano, para mostrar como Deus deve ser amado, e por quais
boas obras Ele mereceu o nosso amor. Eu digo, por quais boas obras, pois por excelência,
quem o poderia entender, quem o poderia expressar, quem o poderia sentir?
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CAPÍTULO VII
Vantagens e recompensas do amor de Deus.
As coisas da terra não podem satisfazer o coração do homem.
17. Vejamos agora quais vantagens existem para nós no amor de Deus. Sim vejamos, mas
que relação entre o que veremos e o que é? No entanto, não podemos nos omitir, se bem
que a nossa visão não pode englobar toda a verdade. Nós nos perguntamos acima por qual
motivo e em qual medida deve-se amar a Deus, e dissemos que esta questão: “por quais
motivos devemos amá-lO” apresenta-se sob dois pontos de vista, pois podemos entender
desta forma, que direitos tem Deus sobre o nosso amor; ou então, que vantagem nós
encontramos em amá-lO? Nós falamos da melhor forma que podíamos, senão de um modo
digno de Deus, dos direitos que Ele possui sobre o nosso amor: faremos o mesmo em
relação às vantagens que encontramos neste amor; pois, se nós devemos amar a Deus,
sem nos preocupar com a recompensa, ainda assim somos recompensados por tê-lO
amado. A verdadeira caridade não pode permanecer sem paga, e, no entanto não é nem
um pouco mercenária, pois não busca seus próprios interesses (1 Coríntios 8:5); o amor é
um movimento da alma e não um contrato; não se pode adquiri-lo em virtude de um acordo,
e também nada adquire por este meio; é totalmente espontâneo em seus movimentos e
nos faz semelhantes a ele: enfim o verdadeiro amor encontra em si mesmo a sua satisfação.
Sua recompensa está no sujeito amado; pois qualquer que seja o sujeito que dizemos amar,
se o amamos em vista de outro, então é este que verdadeiramente amamos e não aquele
cujo coração usa para atingi-lo. Por isso, Paulo não prega o Evangelho para ter o que
comer, mas ele come para poder pregar o Evangelho; pois, o que ele ama não é a comida
que ele obtém, mas o Evangelho que ele anuncia (1 Coríntios 9:18). O verdadeiro amor não
busca recompensa, mas ele merece uma; é certo que não propomos àquele que ama uma
recompensa por seu amor, mas ele merece ser recompensado e o será se continuar a
amar. Enfim, em uma ordem de coisas menos elevadas, excitamos a fazê-las, com promes-
sas de recompensas, não aos que acham que são algo, mas os que se doam com pesar.
Quem jamais teve a vontade de oferecer a alguém uma recompensa para lhe fazer algo
que realmente ansiava fazer? Certamente não damos dinheiro a um homem morrendo de
fome e de sede, para incitá-lo a comer ou beber, e nem a uma verdadeira mãe, para que
amamente o fruto do seu ventre, e não usamos de orações e promessas para incentivar
alguém a cercar a sua plantação, a remoer a terra em volta das árvores ou elevar o muro
de sua casa. Por uma razão mais forte ainda, aquele que ama a Deus, não teria necessida-
de de se sentir atraído por uma recompensa que não seja o próprio Deus; de outra forma
não seria a Deus que ele amaria e sim a recompensa.
18. Está na natureza do homem o desejar, cada um conforme a sua tendência e sua percep-
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ção, o que lhe parece melhor do que aquilo que ele já possui, e de nunca estar satisfeito
com algo que definitivamente não está de acordo com aquilo que ele queria. Citemos alguns
exemplos: Se um homem que tem uma linda mulher, vê uma mais linda, seu coração a
deseja, seu olhar arde em desejo; se ele tem uma vestimenta preciosa, ele deseja uma
mais sumptuosa ainda; e com as riquezas que ele tem, inveja os que têm mais do que ele.
Não é comum vermos homens ricos em terras e em propriedades comprar novos campos,
e, nos seus desejos sem fim, recuar constantemente os limites de seus domínios? Aqueles
que moram na realeza, em vastos palácios, não cessam de acrescentar a cada dia novos
edifícios aos antigos; tomados por uma inquieta curiosidade, não param de construir e
destruir, mudando o que está redondo para fazer quadrado. Se falarmos então de homens
cheios de homenagens, não aspiram eles constantemente com todas as suas forças com
uma ambição cada vez mais difícil de agradar por uma posição ainda mais elevada? Isto
não tem fim, porque em todas estas coisas não conseguimos achar um ponto que seria
propriamente dito o mais elevado e o melhor. Mas deveríamos estranhar que aqueles que
não podem parar enquanto não possuírem o que tiver de maior e mais perfeito, não estejam
nunca satisfeitos com o que for pior ou inferior? Mas o que eu acho insensato acima de
qualquer expressão, é que desejamos sempre aquilo que não poderia jamais, não digo
satisfazer, mas simplesmente adormecer os desejos ardentes. O que quer que seja que
nós possuímos, nós não desejamos menos aquilo que ainda não temos e é sempre em
relação ao que não temos que suspiramos mais e mais. E então o que acontece? O nosso
coração, cedendo aos caprichos variados e enganosos do século, cansa-se inutilmente em
sua corrida e não consegue se saciar; está sempre faminto e de nada vale o que já tem
com aquilo que ainda lhe resta ter; está bem mais atormentado pelo desejo do que lhe falta
do que pela satisfação do que já tem. Não podemos ter tudo e aquilo que temos o
adquirimos somente com esforço, o aproveitamos com temor e tendo a dolorosa certeza de
perdê-lo um dia, mesmo não sabendo qual será este dia. Este é, portanto, o caminho de
uma vontade pervertida que desvia-se do supremo bem; é seguindo esta direção que ela
se apressa em atingir o que a deve satisfazer; ou, melhor dizendo, é nestes desvios que a
vaidade não se deixa vencer e a iniquidade se engana. Se queremos atingir um objetivo
que nos propomos e enfim adquirir aquilo cuja possessão excede a todos os desejos,
porque procurar em tantos outros lugares? Isto é afastar-se do reto caminho, e a morte
chegará bem antes de atingirmos o alvo desejado.
19. Em todos estes desvios se perdem os ímpios que procuram, por um movimento natural,
satisfazer seu apetite e negligenciam, como insensatos, os meios para conseguir o que
querem; quero dizer, o de serem consumados e não consumidos. Ora, eles se consumem
em vãos esforços e não conseguem chegar a uma felicidade consumada; pois, estão mais
afeiçoados às criaturas do que ao Criador, e se voltam a todas elas e as experimentam
umas após as outras, antes de pensar em tentar se dirigir ao Senhor que as criou. É aonde
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chegariam certamente, se pudessem um dia cumprir todos os seus desejos, ou seja, de
possuir todo o universo, menos o seu Autor, e isto se faria em virtude mesmo da lei de suas
concupiscências, que os faz esquecerem do que são, para almejar aquilo que não tem;
senhores de tudo o que está no céu e na terra, não tardariam a considerar tudo isto insufi-
ciente e procurariam por fim Aquele que lhes falta ainda para que tenham tudo, ou seja, o
próprio Deus. E então, finalmente experimentariam o repouso; pois, se não o podemos
achar além deste termo, não saberíamos também sentir a necessidade de ir além; qualquer
um que ali se achasse não poderia deixar de exclamar [...] “Quem tenho eu no céu senão
a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti” (Salmos 73:25)? E mais ainda: “Deus é
a fortaleza do meu coração, e a minha porção para sempre” (v. 26). Eis, portanto, que falei
mais alto, como chegaríamos ao supremo bem, se pudéssemos antes provar de todos os
bens que se encontram abaixo dEle.
20. Mas é absolutamente impossível proceder desta maneira, a vida é curta demais para
isso, falta-nos forças e a quantidade de pessoas que partilham o mesmo caminho é por
demais considerável. Além do mais, qualquer um que queira tentar, de todas as criaturas,
penará inutilmente, pois pelo longo caminho que se propõe a percorrer, não conseguiria
chegar ao fim e experimentar tudo aquilo que deseja ardentemente em suas concupis-
cências. Por que não fazer todas estas tentativas em espírito ao invés da realidade? Seria
mais fácil e mais vantajoso; o espírito recebeu uma atividade e uma perspicácia maiores
que as do coração, precisamente afim de poder estar adiante em tudo, para que o coração
não tenha a imprudência de se apegar ao que o espírito, que vai mais rápido que ele, ainda
não achou útil. [...] Está escrito: “Examinai tudo, retende o bem” (1 Tessalonicenses 5:21),
afim de que o primeiro prepare o terreno ao outro, e que o coração se apegue somente em
consequência do julgamento feito pelo espírito. Não podemos de outra forma subir ao
monte do Senhor (Salmos 24:3) e descansar em Seu santuário, pois é em vão que
possuímos uma alma, isto é, uma alma racional, pois a exemplo dos animais nós a deixa-
mos levar-se por impulso vindo dos sentimentos enquanto a razão se cala e não oferece
nenhuma resistência. Aqueles cuja a razão não esclarece o caminho, nem por isso correm
menos, mas estão fora da reta, e, apesar dos conselhos do apóstolo, não estão correndo
de forma a conquistar a vitória (1 Coríntios 9:24); de fato, quando poderiam obtê-la, se a
querem somente após ter conseguido todo o resto? Seria pegar um caminho cheio de
desvios e engajar-se em um circuito sem fim de querer experimentar de tudo começando
do começo.
21. Não é assim que o justo procede. Ferido pela desaprovação direcionada a todos aque-
les que se engajaram nestes desvios, pois o caminho que conduz à perdição é largo e
frequentado pela multidão, ele prefere o caminho real que não se desvia nem para a
esquerda e nem para a direita, conforme as palavras do profeta; “O caminho do justo é todo
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plano; tu retamente pesas o andar do justo” (Isaías 26:7). De fato, ele toma o caminho mais
curto para evitar sabiamente os longos e inúteis desvios, e ele experimenta uma palavra
tão simples quanto simplificadora, não desejar o que vemos, vender o que temos e o dar
aos pobres, pois, bem-aventurados são certamente os pobres de espírito, porque deles é
o Reino dos Céus (Mateus 5:3); bem sabe ele que todos os que correm no estádio não
chegarão na mesma posição (1 Coríntios 9:24).
Enfim, porque o Senhor conhece e aprova o caminho dos justos (Salmos 1:6), e conhece
também o do pecador que só pode perecer; vale mais o pouco que tem o justo, do que as
riquezas de muitos ímpios (Salmos 37:16), pois, o sábio disse e o insensato o provou “quem
amar o dinheiro jamais dele se fartará” (Eclesiastes 5:10), “Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mateus 5:6); um espírito reto faz da justiça
seu alimento vital e natural, quanto ao dinheiro, a alma não se alimenta mais do que o corpo
do ar que respira. Se olhássemos para um homem, desesperado de fome, respirar fundo,
aspirando profundamente para matar a fome, o chamaríamos de tolo; assim são aqueles
que pensam matar a fome da alma, quando a preenchem com coisas corporais que lhe dão
de fato, mas o que importa isso para o espírito? Não se alimenta ele mais do que o corpo
com coisas espirituais. “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e tudo o que há em mim
bendiga o seu santo nome” (Salmos 103:1); Ele te dá abundância de bens, e, ao mesmo
tempo, te excita ao bem, te fixa no bem. Ele te provê, te sustenta, te abençoa abun-
dantemente; Ele ascende em ti os desejos, e Ele próprio os incendeia.
22. Eu já disse, o motivo do amor de Deus é o próprio Deus, e estou certo em dizer isto,
pois Ele é de fato a causa ao mesmo tempo eficiente e final do nosso amor. Pois é Ele
quem faz nascer a ocasião para o amor, Ele é que o incendeia e ainda Ele o enche de
desejos. Ele faz com que O amemos, ou melhor, Ele é tal que não tem como não ser alvo
do nosso amor; Ele o é também de nossa esperança: se não esperássemos ter a alegria
de amá-lO um dia, O amaríamos agora em vão. Seu amor prepara e abençoa o nosso. Em
Sua bondade excessiva Ele começa por prover em nós, e então nos cobra merecidamente
de volta, e, futuramente, Ele nos reserva as mais doces esperanças. Ele é rico para todos
os que O invocam; porém, em toda a Sua riqueza, nada é mais valioso do que Ele.
Ele é [...] nossa recompensa, é alimento das almas santificadas e o regaste das que estão
cativas. Se já és para a alma que Te busca uma fonte de felicidade, o que serás, Senhor,
para aquela que Te achou? [...] Falamos sobre a consumação do amor a Deus, falemos
agora quais são os começos.
CAPÍTULO VIII
Nós começamos por nos amar para nós mesmos;
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é por nós o primeiro grau do amor.
23. O amor é um dos quatro [Bernardo reconhecia apenas quatro sentimentos principais: o
amor, o medo, a alegria e a tristeza] sentimentos naturais que todo mundo conhece e que
é por consequência inútil nomear. Ora o que é natural e o que seria justo, seria de, antes
de qualquer coisa, amar o Autor da natureza: também, o primeiro e maior mandamento é
este: “Amarás o Senhor teu Deus” (Mateus 22:37). Mas a natureza é frágil demais e muito
fraca para tal preceito, por isso começa por amar-se a si mesma; é este amor que
chamamos de carnal, e cujo homem se ama antes de qualquer outra coisa e para ele, assim
está escrito: “Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual” (1
Coríntios 15:46). Não é em virtude de um preceito que as coisas acontecem desta forma, é
fato da natureza. De fato, vemos alguém odiar a sua própria carne (Efésios 5:29)?
Mas se este amor, como de costume acontece, tiver muita liberdade, se ele se expandir um
pouco além, se sair do campo da necessidade e se esparramar nos campos da sen-
sualidade, como um rio cujas águas se enchem, e transbordam; de súbito então se levanta
para contê-lo, o dique do preceito que nos ordena “amar o próximo como a si mesmo”
(Mateus 22:39). Nada mais justo, aliás, que aquele que partilha conosco a natureza, partilhe
também os sentimentos da qual ela é a fonte em comum? Se, portanto, é pesado demais
a um homem pensar, não digo às necessidades de seus irmãos, mas aos seus prazeres,
que ele se modere ele mesmo no espaço dos seus próprios; ou então ele seria culpado.
Que pense nele o quanto quiser, contanto que seja para os outros, o que é para si mesmo.
Tais são, ó homem, o freio e a justa medida imposta pela lei do teu ser e da tua consciência
para que não caia na armadilha de tuas concupiscências e não corras para a perdição,
colocando os bens da natureza a serviço dos inimigos de tua alma, ou seja, das paixões.
Mais vale partilhar com teu semelhante, ou seja, teu próximo do que com teu inimigo. Mas
se, segundo o conselho do sábio, o homem renunciar às suas paixões, se contentar, segun-
do a doutrina do apóstolo, com o alimento e as vestes (1 Timóteo 6:8), e se ele se resignar
voluntariamente a amar menos as coisas da carne que combatem contra o espírito (1 Pedro
2:11), ele não terá dificuldade, penso eu, em dar ao seu semelhante ao que ele recusa ao
inimigo de sua alma. Seu amor ficará guardado nos limites da justiça e da moderação, do
momento em que ele consagrar às necessidades de seus irmãos tudo aquilo que recusa
às suas próprias paixões. É assim que o amor pessoal torna-se um amor fraternal, saindo
de dentro pra fora.
24. Mas se, enquanto partilhamos com o próximo, vier a nos faltar o sustento, o que fazer?
Nada além de orar com confiança Àquele que nos dá abundantemente, sem jamais nos
recusar os Seus dons (Tiago 1:5), “Abres a tua mão, e fartas os desejos de todos os viven-
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tes” (Salmos 145:16); pois não podemos duvidar dAquele que não recusa nem mesmo o
supérfluo para a maioria dos homens, vindo de bom grado ao socorro daqueles que estão
necessitados. Pois Ele disse: “Buscai antes o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas (Lucas 12:31), Ele portanto, se comprometeu a dar o necessário àquele que
restringe o seu supérfluo e ama seu próximo; de fato, isto é buscar primeiro o Reino de
Deus e implorar Seu socorro contra a tirania do pecado de suportar o jugo da pureza e da
sobriedade, ao invés de permitir que o pecado reine em nosso corpo perecível. Ora ainda
é justo partilhar o que recebemos das bênçãos da natureza com aqueles com quem já
dividimos a própria natureza.
25. Mas, para que nosso amor ao próximo seja impecável, é preciso que Deus esteja envol-
vido; é de fato possível amar o próximo verdadeiramente, se não for em Deus? Ora, qual-
quer que não tenha sido instruído em amor, não saberia amar em Deus; é preciso, portanto
começar por amar a Deus, se queremos amar o próximo nEle, de modo que Deus que é o
autor de todos as outras bênçãos, o é também de nosso amor por Ele, eis como não
somente Ele criou a natureza, mas ainda como Ele a sustenta, pois é tal que, após receber
a existência, ainda precisa dAquele que lhe a concedeu e que lhe conserva; se ela pode
somente existir nEle, ela não pode subsistir sem Ele. É para que nos convençamos e que
não nos atribuamos com orgulho as bênçãos das quais lhes somos devedores, que o
Criador, com profunda e salutar intenção, quis que fôssemos sujeitos a tribulações: assim,
se enfraquecemos, Deus vem ao nosso socorro e, salvos por Deus, nós Lhe rendemos a
honra que Lhe convém. É o que diz Ele mesmo: “E invoca-me no dia da angústia; eu te
livrarei, e tu me glorificarás” (Salmos 50:15). Eis porque o homem animal e carnal, que de
início sabia apenas amar a si mesmo, começa, então, mas ainda para ele mesmo, a amar
a Deus, vendo, pela sua própria experiência, que todo o seu poder, pelo menos para o bem,
vem dEle e que sem Ele, ele não pode absolutamente nada.
CAPÍTULO IX
Segundo e terceiro graus do amor.
26. Agora então, o homem já sente amor por Deus, mas ele O ama ainda para si mesmo e
não para Deus. No entanto, existe-lhe alguma sabedoria própria em saber do que é capaz
por ele mesmo e o que ele não pode fazer sem a ajuda de Deus, e de se manter impecá-
vel aos olhos dAquele que lhe conserva todo poder intacto. Mas que o cortejo das tribu-
lações fundamenta sobre ele e o obriga a recorrer a Deus, se ele recebe a cada vez o
socorro que o livra, não deveria ter ele um coração de mármore ou bronze para não ser
tocado cada vez que foi socorrido, pela bondade de seu Libertador e de não começar a
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amá-lO por Ele mesmo e não mais somente pra ele. Pois a frequência das tribulações nos
obriga a recorrer frequentemente a Deus, ora é impossível voltar a Ele frequentemente e
não experimentar dEle, e é impossível experimentar dEle sem perceber o quanto Ele é doce.
Assim acontece que logo somos levados a amá-lO verdadeiramente, muito mais por causa
da doçura que encontramos nEle do que por causa do nosso próprio interesse, de modo
que, a exemplo dos samaritanos dizendo à mulher quem lhes havia anunciado a vinda do
Messias entre eles, “E diziam à mulher: Já não é pelo teu dito que nós cremos; porque nós
mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do
mundo” (João 4:42). Nós também dizemos à nossa carne: agora não é mais por tua causa
que amamos o Senhor, mas porque nós mesmos experimentamos e temos reconhecido o
quanto Ele é doce.
As necessidades da carne são uma espécie de linguagem que proclama em movimentos
de alegria e felicidade, as bênçãos que, por experiência ela reconheceu a grandeza. Quan-
do chegamos neste ponto, já não é mais difícil cumprir o preceito de amar ao próximo como
a si mesmo: pois, se amamos a Deus verdadeiramente, amamos também o que é dEle,
nosso amor é casto e conseguimos nos submeter ao preceito que diz: “ele torna puro o nos-
so coração por obediência e por amor” (1 Pedro 1:22); Ele é justo e nós cumprimos volunta-
riamente um tão justo mandamento, enfim, cheio de encanto e interesse, pois é totalmente
desinteressado. É, portanto, um amor cheio de castidade, já que não se manifesta nem por
gestos e nem por palavras, mas por obras e pela verdade; é um amor cheio de justiça, pois
entrega o tanto quanto recebe. Qualquer um que ama este amor, ama tanto quanto é amado
e busca então somente os interesses de Jesus Cristo, e não os seus próprios interesses,
da mesma forma que Jesus procurou os nossos, ou melhor nos procurou a nós mesmos.
Eis o amor daquele que diz: “Louvai ao Senhor, porque Ele é bom (Salmos 118:1). Aquele
que louva ao Senhor, não somente porque o Senhor é bom para ele, mas simplesmente
porque o Senhor é bom, ama verdadeiramente Deus pelo o que Ele é e não por si mesmo.
Não acontece desta forma para aquele que quem está escrito: “Ele vos louvará quando lhe
tiveres feito o bem”. O terceiro grau do amor é, portanto, de amar a Deus pelo que Ele é.
CAPÍTULO X
O quarto grau do amor é de somente se amar para Deus.
27. Bem-aventurado aquele que pode subir até o quarto grau do amor e que conseguiu se
amar apenas para Deus. “Tua justiça é como as grandes montanhas” (Salmos 36:6); é a
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mesma coisa para este quarto amor, é um monte muito elevado, uma montanha abundante
em pasto e fértil, “Quem subirá ao monte do Senhor” (Salmos 24:3)? Quem me dará asas
como as da colomba, para que eu possa voar até o topo e ali repousar? Um lugar tranquilo,
a morada de Sião. Ah! Quão longo é meu exílio! Quando então se elevará até lá a carne e
o sangue, o barro e o pó de que fui feito? Quando então, embriagado pelo amor de Deus,
minha alma se anulando e não se estimando mais do que um vaso trincado, lançar-se-á
em direção a Deus, se perderá nEle e, sendo um só e mesmo espírito com Ele (2 Coríntios
6:17), quando poderá clamar: “A minha carne e o meu coração desfalecem; mas Deus é a
fortaleza do meu coração, e a minha porção para sempre” (Salmos 73:26)? Santo e bem-
aventurado clamarei, eu que pude algumas vezes, raramente, uma só vez de fato,
experimentar algo parecido durante esta vida mortal, quando na verdade o teria sentido um
só minuto, um só instante e como que às escondidas! Pois não é uma felicidade humana,
mas já a vida eterna de se perder a si mesmo de certa forma, como se não mais existís-
semos, de não ter mais ciência de si mesmo, de estar vazio de si e quase reduzido a nada;
se acontecer a um mortal de subir até este nível, mesmo que só de passagem, assim como
o dizíamos, por um segundo, e por assim dizer, às escondidas, este século mal parece
estar com ciúmes e vem perturbar sua felicidade; este corpo de morte o chama a descer,
as preocupações e necessidades da vida pesam sobre ele fortemente, a corrupção da
carne recusa sustentá-lo, e, acima de tudo, o amor dos seus semelhantes lhe lembra com
grande violência e força, oh pesar! Em voltar, cair em si e clamar. “Senhor, eu que sofro
dos males de uma violência extrema, responda por mim”, ou ainda: “Miserável homem que
eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24)!
28. As Escrituras dizendo que Deus tudo fez para Ele; é preciso que as criaturas se con-
formem e se coloquem, ao menos algumas vezes, no pensamento do Autor. Devemos,
portanto, também entrar neste sentimento e nos render totalmente a Ele, ao Seu bel pra-
zer, não ao nosso [...]. Encontraremos a nossa felicidade bem menos no nosso sustento de
cada dia e nas bênçãos que temos como herança, do que no cumprimento de Sua vontade
em nós; aliás, é justamente o que pedimos todos os dias orando: “seja feita a Tua vontade,
assim na terra como no céu” (Mateus 6:10). Oh puro e santo amor! Oh doce e santa afeição!
Oh, submissão da alma inteira e desinteressada! Tanto mais inteira e desinteressada que
é exemplo de todo retorno a si mesma, tanto mais tenra e doce que tudo o que a alma sente
nessa ocasião é Divino. Chegar neste ponto é ser exaltado. Da mesma forma que uma
gotinha de água junto a uma grande quantidade de vinho parece desaparecer tomando o
gosto e a cor deste líquido; da mesma forma ainda que, na fornalha onde é mergulhado, o
ferro parece perder a sua natureza e mudar-se em fogo; ou ainda como o ar penetrado
pelos raios de sol torna-se em luz e parecer mais alumiar do que ser ele próprio alumiado:
assim acontece para os santos em todos os seus sentimentos humanos; parece que se
fundem e fluem na vontade de Deus. De outra forma, se ficasse ainda algo do homem no
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homem, como poderia ser Deus tudo em todos? Sem dúvida, a natureza humana não se
dissolveria; mas seria diferentemente bela, gloriosa e poderosa. Quando isto se dará? A
quem isto será dado de ver e experimentar? “Quando entrarei e me apresentarei ante a
face de Deus?” (Salmos 42:2)? Senhor meu Deus, falou a Ti meu coração, meus olhos Te
buscaram; esforçar-me-ei, Senhor, em contemplar a Tua Face. Seria-me permitido ver o
Teu santo templo?
29. Em minha opinião, não creio que possamos observar perfeitamente este preceito: “Ama-
rás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu enten-
dimento” (Mateus 22:37), enquanto o coração se vê obrigado a cuidar do corpo, que a alma
não é dispensada de velar em conservá-lo cheio de vida e de sensibilidade no estado
presente, e que sua energia, liberada de todos os sofrimentos, não se apoia sobre a própria
força de Deus, pois, ela não saberia aplicar-se a Deus e contemplar apenas a Sua face
Divina, enquanto ela tem que velar sobre o corpo frágil e infeliz dando-lhe cuidados. Que
não espere, portanto, atingir este terceiro grau do amor, ou melhor, de ser ela mesma
atingida, somente quando estiver revestido de um corpo espiritual e imortal, puro e calmo,
obediente e submisso em tudo ao Espírito, o que só pode ser obra do poder de Deus em
favor daqueles que Ele escolhe e não obra de um homem. Eu digo, portanto que a nossa
alma chegará facilmente a este grau supremo do amor, quando as preocupações ou
caprichos da carne não farão mais obstáculo à sua caminhada rápida e apressada em
direção à felicidade que ela deve encontrar no Senhor. [...] os santos mártires, antes mesmo
que a alma deles deixasse seus corpos vitoriosos, experimentaram ao menos em parte esta
felicidade? Em todo caso é certo que um imenso amor fluía em suas almas, para dar-lhes
forças para exporem suas vidas e desprezar as tormentas. Como eles o fizeram. Não
obstante, não podemos duvidar que os terríveis suplícios que sofreram não tenham
alterado, ou até destruído, a alegria de suas almas.
a) [...] O que para nós está prescrito para esta vida não é, portanto, a perfeição absoluta do
amor, mas o desejo desta perfeição. De maneira que, tanto quanto a fraqueza humana o
permitir, estejamos constantemente ocupados somente com o pensamento, o amor, a união
e a vontade de Deus.
CAPÍTULO XI
O amor perfeito só será partilhado entre os santos após a ressurreição geral.
30. Mas o que pensar das almas que já deixaram seus corpos? Eu creio que estão mergu-
lhadas inteiramente no oceano sem fim da luz eterna e da eternidade luminosa. Mas se
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ainda aspiram, o que não saberíamos negar, em se juntar ao corpo que outrora animaram,
se nutrem o desejo e a esperança, é evidente que não são totalmente diferentes do que
eram, e que ainda lhes resta algo que atrai sem dúvida bem pouco, mas que, entretanto,
atrai a sua atenção. Também, enquanto a morte não for absorvida totalmente em sua vitória,
que a luz eterna não tenha sido invadida de toda parte o domínio da noite e que a glória
celeste não se expanda também em nossos corpos, as almas não podem se lançar e passar
totalmente em Deus, os elos do corpo ainda as retêm aprisionadas, senão pela vida e pelo
sentimento, ao menos por uma certa afeição natural que não lhes deixa nem a vontade e
nem o poder de atingir a consumação Também, até que seus corpos lhe sejam devolvidos,
as almas não experimentarão esta fraqueza em Deus que é para elas a suprema perfeição,
não buscariam esta união se, para elas, tudo estivesse consumado, sem tê-la encontrado;
mas se for um progresso para a alma de deixar seu corpo, é uma perfeição de reavê-lo. Por
fim, “Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos” (Salmos 116:15); se podemos
falar assim da morte, que diríamos da vida, e principalmente desta vida em questão? [...]
Assim, a alma que ama a Deus tira vantagem de seu corpo fraco e enfermo, seja ele morto,
vivo ou ressuscitado; durante a vida, ele produz com ela frutos dignos de arrependimento;
na morte, ele lhe serve para seu repouso, e após a ressurreição, ele concorre à consuma-
ção de sua felicidade. Portanto, ela tem razão de não se achar perfeita sem ele, porque ela
o vê contribuir com ela para o bem de cada um destes três estados.
31. O corpo é para a alma um bom e fiel companheiro: se ele for para ela um fardo, ele é
ao mesmo tempo uma ajuda; quando cessa de ajudá-la, cessa igualmente de pesar sobre
ela; enfim, ele vem ajudar e não é mais um fardo para ela. O primeiro estado é laborioso,
mas útil; o segundo desocupado, mas de forma alguma tedioso, e o terceiro é glorioso. Ou-
çam como o Esposo dos Cânticos convida a alma para esta tripla sucessão: “Amigos meus,
comam e bebam, embriaguem-se, meus tão caros amigos” (Cânticos 5:1). As almas que
ele convida a comer são aquelas que trabalham em seus corpos; teriam elas os deixado
para se repousar na morte, ele as chama para beber, ele se apressa em embriagá-las
quando tornam a eles, e se ele as chama de “caros amigos”, indicando que estão cheias
de amor; porque às primeiras, ele diz apenas: “Amigos”, esperado que aquelas que gemem,
ainda sob o peso de seus corpos [...]. Quanto às que são libertas das entravas do corpo,
lhe são tanto mais caras que adquiriram mais independência e facilidade para amá-lO. Mas,
comparando as almas colocadas em uma ou outra destas condições, ele as tem como
caríssimas, como lhe são de fato para Ele, aquelas que se encobriram com sua segunda
veste reavendo seu corpo na glória, e são levadas a amar a Deus com muito mais liberdade
e alegria que não lhes sobra mais nada atrás delas para retardar ou impedir o impulso. Ora,
não é da mesma forma para nenhum dos dois primeiros casos; de fato, o corpo em um faz
sentir seu peso e cansaço à alma e, no outro, é para ela um objeto de uma esperança onde
se mescla algum desejo pessoal.
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32. A alma fiel começa então por comer seu pão, mas infelizmente! No suor de seu rosto
(Gênesis 3:19); de fato, enquanto ela mora no corpo anda tão somente pela fé, que deve
operar pelo amor, pois sem obras a fé é morta. Ora, são as obras, o seu alimento segundo
o que diz o Senhor: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar
a sua obra” (João 4:34). Quando ela deixou sua carcaça mortal, ela cessa de comer o pão
da dor, e, como no fim da refeição, começa a beber em grandes goles o vinho do amor;
mas uma bebida não desprovida totalmente de misturas, como diz o Esposo de Cânticos,
que diz: “bebi o meu vinho com meu leite” (Cânticos 5:1), porque no vinho do amor de Deus,
a alma deseja reunir-se ao seu corpo, mas ao seu corpo que se tornou glorioso, mistura-se
o leite cheio de mel de um afeto natural: ela já sente bem a influência da brisa do vinho do
amor divino que ela bebe, mas ainda não chega a embriagar-se; o leite misturado ao vinho
tempera a força; a embriaguez confunde o espírito até perder as lembranças de si próprio;
e a alma que pensa da ressurreição futura do corpo que lhe pertenceu, ainda não perdeu
completamente a lembrança de si própria. Mas após ter obtido a única coisa que ainda lhe
falta, o que poderia doravante impedi-la de, de alguma forma, deixar-se a si mesma, para
mergulhar totalmente em Deus, e de parecer ao menos o que lhe é permitido se tornar mais
semelhante a Deus? Podendo então aproximar seus lábios da taça de sabedoria da qual
está escrito: “Que meu cálice transborda” (Salmos 23:5)! Não devemos nos espantar se ela
se embriaga da abundância que está na casa de Deus; livre de toda preocupação no que
lhes diz respeito, ela bebe a grandes goles e tranquilamente, no Reino do Pai, o vinho puro
e novo do Filho.
33. Ora é a sabedoria que dá esta tríplice festa onde serve apenas os manjares de amor;
ela dá pão de comer aos que ainda trabalham, vinho de beber aos que já estão gozando o
repouso e ela serviria embriaguez àqueles que entraram no Reino dos Céus; o que faze-
mos em mesas comuns, ela o faz à sua mesa, e só serve de beber após os convidados
terem se servido de alimento. Enquanto estamos nesta vida, revestidos de um corpo mortal,
nós ainda apenas comemos o pão dos nossos esforços, e só o engolimos depois de ter
exaustivamente triturado entre os dentes; tão somente tenhamos devolvido o último suspiro,
que nós começamos a beber na vida espiritual, onde nos servimos, com um relaxamento
cheio de doçura, a bebida que nos é dada; depois, quando recobramos o nosso corpo devol-
vido à vida, nós bebemos amplamente a embriaguez em uma vida que não deve acabar.
Este é o sentido das palavras do Esposo: “comei, amigos, bebei abundantemente, ó
amados (Cânticos 5:1)! Comam nesta vida, bebam após vossa morte, embriaguem-se após
a ressurreição, vós que então chamo com razão de Meus amados, pois estais embriagados
de amor. Como não o seriam quando são aceitos nas bodas do Cordeiro, sentados à Sua
mesa, bebendo e comendo em Seu reino, enquanto faz aparecer diante de Si a Sua Igreja
cheia de glória, sem mácula e sem rugas, nem coisa semelhante (Efésios 5:27)? Então, eis
que embriaga Seus melhores amigos e os farás beber da corrente de Suas delícias (Salmos
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36:8); pois, durante os vivos e castos abraços do Esposo e da Esposa, há um rio cujas
correntes alegram a cidade de Deus (Salmos 46:4), o que para mim nada mais é do que o
Filho mesmo de Deus, que passa como que servindo Seus convidados (Lucas 12:37) como
prometeu, a fim de que alegrem-se os justos, e se regozijem na presença de Deus, e fol-
guem de alegria (Salmos 68:3). Eis de onde vem esta satisfação, que não é seguida de
desgosto; este ardor insaciável, portanto, calmo e tranquilo de ver; este eterno e incom-
parável desejo de ter, que não tem sua fonte na privação, enfim esta embriaguez sem ex-
cesso, que mergulha e se afoga, não no vinho, mas em Deus e na verdade. A alma chegou,
portanto, para sempre ao quarto grau do amor, quando ama somente a Deus e O ama
unicamente; pois, neste caso, não nos amamos mais para nós, mas para Ele, de modo que
Ele é a recompensa, o eterno galardão daqueles que O amam e O amam para sempre.
CAPÍTULO XII
Fragmento de uma carta aos Chartreux
(religiosos da ordem de São Bruno) sobre o amor.
34. Eu me lembro de ter escrito no passado aos santos religiosos da Chartreuse, uma carta
(a décima primeira), onde eu falava dos graus do amor, e talvez falasse de outras coisas
mais, porém era sempre sobre o mesmo assunto, por isso acho interessante trazer aqui
algumas passagens desta carta, além do que me é mais fácil recopiar o que já escrevi do
que escrever algo novo. Eu digo, portanto que o amor verdadeiro e sincero, que vem
realmente de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera, é aquele que
nos faz amar o bem alheio como o nosso. Porque aquele que ama apenas o que lhe diz
respeito, ou ao menos que ama mais aquilo que lhe diz respeito do que aquilo que diz
respeito aos outros, mostra bem que não tem um amor puro e que não ama o bem para o
bem e sim como que para ele: portanto, ele não pode obedecer ao profeta que lhe diz:
“Louvai ao Senhor, porque Ele é bom” (Salmos 118:1). Talvez ele O louve porque Ele é
bom para ele, mas não Lhe dá a devida glória por Ele ser bom em Si mesmo [...]. Existem
homens que glorificam ao Senhor porque Ele é poderoso; acontece que dão glória porque
Ele é bom para ele; enfim, vemos alguns que celebram em louvores simplesmente porque
Ele é bom. Os primeiros são escravos que estremecem; os segundos, mercenários que
buscam os seus interesses, e os últimos são os verdadeiros filhos que pensam somente no
Pai. Ora, os primeiros e os segundos pensam somente neles, e somente os verdadeiros
filhos não são interesseiros em relação ao Seu amor (2 Coríntios 13:5), e é sobre eles,
penso eu, que foi escrito: “A lei do Senhor é perfeita e refrigera a alma” (Salmos 19: 7); de
fato apenas ela pode mesmo arrancar a alma do amor a si mesma ou ao mundo, para voltá-
la em direção ao amor a Deus, o que evidentemente não saberiam fazer nem o medo e
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nem o amor interesseiro; estes bem podem influenciar na aparência ou na própria conduta,
mas não tocam o coração. É certo que uma alma servidora faz de vez em quando a obra
de Deus, mas como não age espontaneamente, ela persevera em sua insensibilidade. É a
mesma coisa para a alma mercenária; mas, como ela não age com desinteresse, ela evi-
dentemente só cede aos pensamentos de seu próprio interesse. Ainda mais, quando
dizemos próprio, dizemos individualmente e por consequência, limitado; ora, nos escon-
derijos das beiras, dos limites, encontram-se a ferrugem e o lixo. Que a alma servil tenha a
sua lei no temor que a domina, até aceito; que a mercenária a tenha no interesse privado
que a sufoca, quando as tentações da concupiscência a atraem e a levam para o mal; mas
nem o medo e nem o interesse privado é sem tarefa ou, ao menos, não pode converter as
almas, isto só é possível ao amor, que age sobre a vontade.
35. Ora eis em que eu a considero sem mácula, é que ordinariamente ele não reserva para
si nada do que lhe pertence; aquele que não guarda nada para si, dá para Deus, certa-
mente, tudo o que ele tem; ora o que Deus possui não pode estar viciado. Também, esta
lei de Deus sem mácula e sem sujeira não é outra além do amor, que não busca seus inte-
resses, mas o interesse dos outros. Nós a encontramos na lei de Deus, talvez porque ela é
a própria vida de Deus, ou porque ninguém a possui se não a receber de Deus. Não é nada
absurdo dizer que esta lei é a própria vida de Deus, já que eu digo que não é nada além de
caridade. De fato, de onde vem, na suprema e bem-aventurada Trindade esta unidade
inefável e perfeita que é própria dEle? Não seria isto caridade? Portanto, é ela a lei do
Senhor, porque é ela que, se eu posso dizer assim, coloca a unidade na Trindade e a liga
no elo da paz. No entanto, não se deve crer que faço aqui da caridade uma qualidade ou
um “acidente” em Deus; seria dizer, (que Deus me proteja) que nEle há algo que não seja
Ele; ela é a substância de Deus Ele mesmo, não estou dizendo algo novo ou algo inovador,
pois, Deus é amor, segundo o próprio São João (1 João 4:8). Podemos, portanto, dizer,
com razão, que o amor é o próprio Deus e ao mesmo tempo um dom de Deus. O amor
concede amor, a substância, o evento. Quando falo dAquele que dá, eu falo da substância,
e quando eu falo do que é dado, eu falo do evento; ela é a lei eterna, criativa e moderadora
do universo; se todas as coisas foram feitas com peso, número e medida, é por ele que o
foram. Nada existe sem lei, nem mesmo Aquele que é a lei de tudo; é verdade que Ele
tornou-se Ele mesmo a lei que O rege, mas uma lei não criada como Ele.
CAPÍTULO XIII
Da lei da vontade própria e da concupiscência,
que é a dos escravos e dos mercenários.
36. Quanto ao escravo e ao mercenário, são também tanto um quanto o outro uma lei, mas
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não a receberam do Senhor; eles a fizeram por eles mesmos, um não amando a Deus e o
outro não O amando sobre todas as coisas: a lei deles, eu repito, é deles e não a de Deus
na qual ao menos a deles é submissa, pois, se eles puderam fazer cada um uma lei, não a
puderam subtrair à ordem imutável da lei Divina. Aos meus olhos, é fazer uma lei para si
mesmo, que de preferir a sua vontade própria à lei eterna e comum, e, por uma imitação do
Criador, que eu a chamarei de contrária à ordem, reconhecer a si mesmo como mestre,
nem outra regra do que a sua própria vontade, a exemplo de Deus, que é Sua própria lei e
depende apenas de Si mesmo. Infelizmente! Para todos os filhos de Adão, que esta vontade
que inclina e curva nossas testas até nos aproximar do inferno, (“Estou contado com aque-
les que descem ao abismo”) (Salmos 88:4), é um fardo pesado e insuportável. “Miserável
homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?!” (Romanos 7:24)? “Se o
Senhor não tivera ido em meu auxílio, a minha alma quase que teria ficado no silêncio
(Salmos 94: 17). Era sob o peso deste fardo que gemia aquele que dizia: “Se pequei, que
te farei, ó Guarda dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim
mesmo me seja pesado?” (Jó 7:20). Para estas palavras: “para que a mim mesmo me seja
pesado”, queria dizer que ele havia se tornado sua própria lei e até autor desta lei. Mas
quando ele começa a dizer a Deus: “Porque fizeste de mim um alvo para ti”, ele mostra que
não se subtraiu à ação da lei Divina; pois, ainda é próprio desta lei eterna e justa, que todo
homem que recusa submeter-se ao seu doce império torna-se seu próprio tirano, e que
todos os que rejeitam o jugo suave e o fardo leve do amor são forçados a gemer sob o peso
esmagador de sua própria vontade. Assim, a lei Divina fez de um modo admirável, daquele
que O abandona, ao mesmo tempo um adversário e um sujeito; pois, de um lado, ele não
pode escapar da lei e da justiça, segundo aquilo que merece, e do outro, ele não se apro-
xima de Deus, nem de Sua luz, nem em Seu repouso, nem na Sua glória: portanto, ele está
ao mesmo tempo prostrado diante do poder de Deus, e excluído da felicidade Divina. Se-
nhor meu Deus, porque não apagas o meu pecado e porque não fazes desaparecer a minha
iniquidade, afim de que, lançando o peso esmagador de minha vontade própria eu respire
sob o fardo leve do amor, e que, não mais estando sujeito às entranhas do temor servil e
nem às expectativas da ganância mercenária, eu seja levado apenas pelo Teu sopro do
Espírito, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus
(Romanos 8:14)? Quem dará de mim testemunho e me dará a certeza de que eu também
faço parte dos Teus filhos, que a Tua lei é a minha e que eu estou no mundo assim como
estais também? Porque é certo que, quando observamos este preceito do apóstolo: “A
ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque
quem ama aos outros cumpriu a lei” (Romanos 8:8), estamos neste mundo como o próprio
Deus está, e portanto, não somos nem escravos, nem mercenários, mas filhos de Deus.
CAPÍTULO XIV
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Da lei do amor que é para os filhos.
37. Por este caminho, portanto, vemos que os filhos não estão sem lei, a menos que pen-
semos ao contrário, porque está escrito: “a lei não é feita para o justo” (1 Timóteo 1:9). Mas
precisamos saber que existe uma lei promulgada no espírito de servidão, e esta imprime
apenas medo; e que há outra ditada pelo espírito de liberdade, esta inspirando apenas a
doçura. Os filhos não são constrangidos a se submeter à primeira, mas estão sempre sob
o império da segunda. Eis, portanto, em que sentido é dito que a lei não é feita para os jus-
tos, conforme estas palavras do apóstolo: “Porque não recebestes o espírito de escravidão,
para outra vez estardes em temor” (Romanos 8:15); não obstante, como devemos entender,
que não estão sem a lei do amor, conforme este outro trecho: “Vocês receberam o espírito
de adoção, sendo feitos filhos de Deus”. Enfim, escutem, de que maneira o justo diz ao
mesmo tempo, que ele está e não está na lei. “Para os que estão sem lei, como se estivesse
sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo)” (1 Coríntios
9:21). Não é, então, certo dizer: não há lei para os justos; mas devemos dizer: “A lei não foi
feita para os justos”, ou seja, não foi feita para constrangê-los; Mas Aquele que lhes impõe
esta lei cheia de doçura, faz amar e experimentar aos justos que a observam sem
constrangimento. Eis porque o Senhor diz tão bem: “Tomai sobre vós o meu jugo” (Mateus
11:29), como se Ele dissesse: Eu não vos forço a tomá-lo; tome-o se o quiserem; mas, se
não o tomarem, Eu vos digo que ao invés do repouso que Eu vos prometo, achareis apenas
sofrimento e fatiga para a vossa alma.
38. O amor é, portanto, uma lei doce e boa; não só é ele agradável e suave a se levar, mas
ele sabe também deixar leves e doces as duas leis, do escravo e do mercenário; pois, ao
invés de destruí-los, ele os faz observar, segundo o que disse o Senhor: “não vim ab-rogar,
mas cumprir a lei” (Mateus 5:17). De fato, ele tempera a primeira, regulariza a segunda e
adoça a ambas. Jamais o amor seguirá sem temor, mas este temor é bom; ele não se livrará
de todo pensamento interesseiro, mas seus desejos são acertados. A caridade aperfeiçoa
portanto, a lei do escravo, inspirando-lhe um generoso abandono, e a do mercenário,
dando-lhe uma boa direção aos seus desejos interesseiros; ora, este generoso abandono
unido ao medo, não amortece esta última; ele a purifica somente e faz desaparecer o que
ela tem de penoso. Na verdade, não há mais aquela apreensão da punição, cujo medo
servil nunca é isento, mas o amor lhe substitui um casto e filial que subsiste sempre; pois,
está escrito: “o perfeito amor, lança fora o temor” (1 João 4:18), devemos compreender
como se havia banido o medo penoso da punição, do qual dissemos que o medo servil não
é jamais isento. É uma figura comum, que consiste em tomar a causa por efeito. Quanto à
ganância, ela se encontra também perfeitamente acertada pela caridade que se junta a ela,
quando, cessando o desejo do que é mal, ela começa a preferir o que é melhor; ela deseja
apenas o bem para chegar ao melhor ângulo. Quando, pela graça de Deus, chegamos a
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este ponto, amamos o corpo e tudo o que se refere a ele, apenas para a alma, a alma para
Deus e Deus pelo que Ele é.
CAPÍTULO XV
Dos quatro graus do amor, e do estado bem-aventurado dos santos no Céu.
39. No entanto, como somos carnais e nascemos na concupiscência da carne, a cobiça, ou
seja, o amor, deve começar em nós pela carne; mas, se for dirigida pelo bom caminho, ela
avança por graus, sob a conduta da graça e não pode deixar de chegar enfim até a
perfeição, por influência do Espírito de Deus; pois, o que é espiritual não vem antes do que
é carnal, ao contrário, o espiritual vem somente depois; e também, antes de vestir a imagem
do homem celeste, nós devemos começar por vestir a do homem terreno. O homem
começa, portanto, por amar a si mesmo, porque ele é carne e só pode gostar daquilo que
diz respeito a ele próprio; então, quando percebe que não pode subsistir por ele mesmo,
ele começa a buscar, pela fé, a amar a Deus, como um Ser do qual ele precisa. Portanto,
é apenas em segundo plano que ele ama a Deus; e O ama ainda somente para si, não por
Ele. Mas quando, pressionado pela sua própria miséria, ele começou a servir a Deus e a
se aproximar dEle, pela meditação e leitura, pela oração e pela obediência, ele consegue,
pouco a pouco, e se acostuma insensivelmente a conhecer a Deus, e consequentemente;
a achá-lO doce e bom. Enfim, após experimentar o quanto Ele é amável, ele se eleva ao
terceiro grau; então, não é mais para ele que ama a Deus, mas ele ama a Deus pelo que
Deus é. Uma vez chegado neste ponto, ele não vai mais alto e eu não sei se nesta vida o
homem pode realmente chegar ao quarto grau, que é de se amar a si mesmo somente para
Deus. Os que acharam ter conseguido, afirmam que não é impossível; para mim, eu não
creio que possamos chegar um dia a esse ponto, mas não duvido nem um pouco que possa
acontecer, quando o bom e fiel servidor é convidado a partilhar a felicidade de seu Mestre
e a se embriagar das delícias eternas da casa de seu Deus; pois, estando então em um
tipo de embriaguez, ele se esquecerá dele mesmo de alguma forma, perderá o sentimento
daquilo que ele é, e, absorvido inteiramente em Deus, ele se agarrará a Ele com todas as
suas forças e logo será um só espírito com Ele [...] assim que entrasse em possessão da
glória de Deus, ele estaria desprovido de toda enfermidade da carne e não pensaria mais
nelas, e, que tendo se tornado totalmente espiritual, só se ocuparia das perfeições de Deus.
40. Então todos os membros do Cristo poderão dizer, falando deles, o que Paulo dizia de
nosso Chefe: “ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo
agora já não o conhecemos deste modo” (2 Coríntios 5:16). De fato, como a carne e o
sangue não possuirão o Reino de Deus, não nos importávamos segundo a carne. Não que
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a nossa carne não deva entrar um dia, mas só será aceita desprovida de todas as suas
enfermidades, o amor da carne será absorvido pelo do espírito, e todas as fraquezas das
paixões humanas, que existem atualmente, serão transformadas em um poder totalmente
Divino. Então a rede que o amor agora lança neste grande e vasto mar, para pescar toda
sorte de peixes incessantemente, uma vez levados a margem, jogará os ruins para manter
apenas os bons. O amor enche aqui embaixo de toda sorte de peixes, as vastas dobras de
sua rede, porque em se proporcionando a todos, segundo os tempos, atravessando e
partilhando de certa forma tanto a boa como a má fortuna de todos aqueles que ele abraça,
ele se acostumou a se alegrar com aqueles que estão no gozo, e também em derramar
lágrimas com os que estão em aflição; mas, quando ele puxar a rede para a beira mar
eterna, ele rejeitará como peixes ruins, tudo o que ele sofre de defeituoso e conservará
apenas o que pode agradar e cortejar. Então não mais veremos Paulo tornando-se fraco
com os fracos ou preocupar-se por aqueles que se escandalizam, pois, não haverá mais
nem escândalos e nem enfermidades de nenhuma espécie. Também não se deve crer que
ele ainda derramará lágrimas pelos pecadores que não tiverem se arrependido aqui
embaixo: como não haverá mais pecadores, não será mais necessário arrepender-se. Não
pensem então que ele gemerá e derramará lágrimas sobre os que queimarão eternamente
com o Diabo e seus anjos; pois, não haverá mais prantos nem aflições nesta santa cidade,
apenas uma torrente de delícias regadas e que o Senhor ama mais que as todas as tendas
de Jacó; nestas tendas, se experimentamos às vezes a alegria da vitória, nunca estamos
fora de combate e sem perigo de perder a palma com a vida; mas na Pátria não há mais
lugar nem para as derrotas nem para gemidos e lágrimas, como o dizemos em hinos da
Igreja: “Assim os cantores como os tocadores de instrumentos estarão lá e terão perpétua
alegria” (Isaías 61:7). E nem estará em questão a misericórdia de Deus desta estadia onde
doravante só reinará a justiça; e não mais sentiremos compaixão, já que a misericórdia será
banida e a misericórdia não terá mais razão de existir.
Louvado seja nosso Deus por Seu Inefável Amor!
Sola Scriptura!
Sola Gratia!
Sola Fide!
Solus Christus!
Soli Deo Gloria!
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10 Sermões — R. M. M’Cheyne
Adoração — A. W. Pink
Agonia de Cristo — J. Edwards
Batismo, O — John Gill
Batismo de Crentes por Imersão, Um Distintivo
Neotestamentário e Batista — William R. Downing
Bênçãos do Pacto — C. H. Spurgeon
Biografia de A. W. Pink, Uma — Erroll Hulse
Carta de George Whitefield a John Wesley Sobre a
Doutrina da Eleição
Cessacionismo, Provando que os Dons Carismáticos
Cessaram — Peter Masters
Como Saber se Sou um Eleito? ou A Percepção da
Eleição — A. W. Pink
Como Ser uma Mulher de Deus? — Paul Washer
Como Toda a Doutrina da Predestinação é corrompida
pelos Arminianos — J. Owen
Confissão de Fé Batista de 1689
Conversão — John Gill
Cristo É Tudo Em Todos — Jeremiah Burroughs
Cristo, Totalmente Desejável — John Flavel
Defesa do Calvinismo, Uma — C. H. Spurgeon
Deus Salva Quem Ele Quer! — J. Edwards
Discipulado no T empo dos Puritanos, O — W. Bevins
Doutrina da Eleição, A — A. W. Pink
Eleição & Vocação — R. M. M’Cheyne
Eleição Particular — C. H. Spurgeon
Especial Origem da Instituição da Igreja Evangélica, A —
J. Owen
Evangelismo Moderno — A. W. Pink
Excelência de Cristo, A — J. Edwards
Gloriosa Predestinação, A — C. H. Spurgeon
Guia Para a Oração Fervorosa, Um — A. W. Pink
Igrejas do Novo Testamento — A. W. Pink
In Memoriam, a Canção dos Suspiros — Susannah
Spurgeon
Incomparável Excelência e Santidade de Deus, A —
Jeremiah Burroughs
Infinita Sabedoria de Deus Demonstrada na Salvação
dos Pecadores, A — A. W. Pink
Jesus! – C. H. Spurgeon
Justificação, Propiciação e Declaração — C. H. Spurgeon
Livre Graça, A — C. H. Spurgeon
Marcas de Uma Verdadeira Conversão — G. Whitefield
Mito do Livre-Arbítrio, O — Walter J. Chantry
Natureza da Igreja Evangélica, A — John Gill
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Natureza e a Necessidade da Nova Criatura, Sobre a —
John Flavel
Necessário Vos é Nascer de Novo — Thomas Boston
Necessidade de Decidir-se Pela Verdade, A — C. H.
Spurgeon
Objeções à Soberania de Deus Respondidas — A. W.
Pink
Oração — Thomas Watson
Pacto da Graça, O — Mike Renihan
Paixão de Cristo, A — Thomas Adams
Pecadores nas Mãos de Um Deus Irado — J. Edwards
Pecaminosidade do Homem em Seu Estado Natural —
Thomas Boston
Plenitude do Mediador, A — John Gill
Porção do Ímpios, A — J. Edwards
Pregação Chocante — Paul Washer
Prerrogativa Real, A — C. H. Spurgeon
Queda, a Depravação Total do Homem em seu Estado
Natural..., A, Edição Comemorativa de Nº 200
Quem Deve Ser Batizado? — C. H. Spurgeon
Quem São Os Eleitos? — C. H. Spurgeon
Reformação Pessoal & na Oração Secreta — R. M.
M'Cheyne
Regeneração ou Decisionismo? — Paul Washer
Salvação Pertence Ao Senhor, A — C. H. Spurgeon
Sangue, O — C. H. Spurgeon
Semper Idem — Thomas Adams
Sermões de Páscoa — Adams, Pink, Spurgeon, Gill,
Owen e Charnock
Sermões Graciosos (15 Sermões sobre a Graça de
Deus) — C. H. Spurgeon
Soberania da Deus na Salvação dos Homens, A — J.
Edwards
Sobre a Nossa Conversão a Deus e Como Essa Doutrina
é Totalmente Corrompida Pelos Arminianos — J. Owen
Somente as Igrejas Congregacionais se Adequam aos
Propósitos de Cristo na Instituição de Sua Igreja — J.
Owen
Supremacia e o Poder de Deus, A — A. W. Pink
Teologia Pactual e Dispensacionalismo — William R.
Downing
Tratado Sobre a Oração, Um — John Bunyan
Tratado Sobre o Amor de Deus, Um — Bernardo de
Claraval
Um Cordão de Pérolas Soltas, Uma Jornada Teológica
no Batismo de Crentes — Fred Malone
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2 Coríntios 4
1 Por isso, tendo este ministério, segundo a misericórdia que nos foi feita, não desfalecemos;
2 Antes, rejeitamos as coisas que por vergonha se ocultam, não andando com astúcia nem
falsificando a palavra de Deus; e assim nos recomendamos à consciência de todo o homem,
na presença de Deus, pela manifestação da verdade. 3 Mas, se ainda o nosso evangelho está
encoberto, para os que se perdem está encoberto. 4 Nos quais o deus deste século cegou os
entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória
de Cristo, que é a imagem de Deus. 5 Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo
Jesus, o Senhor; e nós mesmos somos vossos servos por amor de Jesus. 6 Porque Deus,
que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações,
para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. 7 Temos, porém,
este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós. 8 Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.
9 Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;
10 Trazendo sempre
por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus
se manifeste também nos nossos corpos; 11
E assim nós, que vivemos, estamos sempre
entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na
nossa carne mortal. 12
De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida. 13
E temos
portanto o mesmo espírito de fé, como está escrito: Cri, por isso falei; nós cremos também,
por isso também falamos. 14
Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará
também por Jesus, e nos apresentará convosco. 15
Porque tudo isto é por amor de vós, para
que a graça, multiplicada por meio de muitos, faça abundar a ação de graças para glória de
Deus. 16
Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o
interior, contudo, se renova de dia em dia. 17
Porque a nossa leve e momentânea tribulação
produz para nós um peso eterno de glória mui excelente; 18
Não atentando nós nas coisas
que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se
não veem são eternas.
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