MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA
UM ESTUDO DAS NARRATIVAS
CINEMATOGRFICAS SOBRE AS DITADURAS
MILITARES NO BRASIL (19641985)
E NA ARGENTINA (19761983)
Braslia
2007
MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA
UM ESTUDO DAS NARRATIVAS
CINEMATOGRFICAS SOBRE AS DITADURAS
MILITARES NO BRASIL (19641985)
E NA ARGENTINA (19761983)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados sobre as Amricas do Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobre as Amricas (CEPPAC) da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Vicentini de Azevedo
Braslia
2007
MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA
UM ESTUDO DAS NARRATIVAS CINEMATOGRFICAS SOBRE AS
DITADURAS MILITARES NO BRASIL (19641985)
E NA ARGENTINA (19761983)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados sobre
as Amricas do Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobre as Amricas
(CEPPAC) da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno
do ttulo de Doutor em Cincias Sociais.
Braslia, 24 de agosto de 2007
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________ Profa. Dra. Sonia Maria Ranincheski UnB
Presidente
_______________________________________ Prof. Dr. Leonardo Fgoli UFMG
Membro efetivo
_______________________________________ Profa. Dra. Rita Laura Segato UnB
Membro efetivo
_______________________________________ Profa. Dra. Lia Zanotta Machado UnB
Membro efetivo
_______________________________________ Profa. Dra. Simone Rodrigues Pinto UnB
Membro efetivo
_______________________________________ Prof. Dr. Luiz Eduardo de Lacerda Abreu CEUB
Membro suplente
AGRADECIMENTOS
Esta tese s se tornou possvel porque contei com o apoio de inmeras pessoas e
instituies.
Agradeo
Ao Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro, meu filho e amigo, leitor atento e crtico, por
todas as sugestes, contribuies e ateno constante. Sem sua disponibilidade,
este trabalho no teria sido possvel.
Custdia Selma Sena, amiga constante, pela leitura dos primeiros escritos que
resultaram nesta tese e por seu apoio permanente.
Nei Clara de Lima pelo incentivo, compreenso e amizade.
Ao Roberto Cunha Alves de Lima, amigo recm-chegado, pelas conversas
estimulantes.
minha orientadora, Ana Vicentini de Azevedo, pela leitura crtica e paciente de
todas as verses do texto que resultou nesta tese.
Suzana Oellers pela amizade, leitura atenta de todo o trabalho e valiosas
sugestes ao texto.
s professoras Elizabeth Cancelli e Rita Laura Segato pelas contribuies
fundamentais quando do exame de qualificao.
Aos professores e aos funcionrios do CEPPAC por todo o apoio.
Ao Carlos Henrique Romo de Siqueira e Janana Carvalho, em nome dos quais
agradeo aos demais colegas dos cursos de ps-graduao do CEPPAC.
Ao Pedro Clio Alves Borges, colega do Departamento de Cincias Sociais da
UFG, pelo livro, e em nome do qual agradeo aos demais colegas do
Departamento de Cincias Sociais da FCHF/UFG.
Pr-reitoria de Pesquisa e Ps-graduao da UFG.
Diana Milstein e Hector Mendes (Yoko) pela amizade e amor aos nossos pases.
Anita Milstein, Juliana Milstein e ao pessoal do La Esquinita pelos filmes.
Dalva, Silvia, Maria Jos e Jander pelo suporte sempre que precisei.
Ao Jos Ruy Ribeiro, companheiro constante, que me ensina a no desistir.
RESUMO
De que modo o cinema elabora a ditadura brasileira de 1964-1985 e a argentina de 1976-1983? Como os filmes constroem discursos imaginativos sobre a experincia ditatorial nestes pases? Neste trabalho, so discutidos e analisados filmes brasileiros e argentinos produzidos entre 1985 e 2005 que focalizam os respectivos perodos ditatoriais. Estes filmes so tomados como filmes-arquivo por abordar e construir imaginativamente um passado que , ao mesmo tempo, uma leitura do presente. Na primeira parte, a partir de uma discusso sobre cinema, antropologia e a questo da noo de contexto, feita uma argumentao sobre a nao como construo imaginativa, abrindo caminho para interrogar o papel das narrativas flmicas nos encadeamentos da vida social. Isso se d, inicialmente, por meio de uma abordagem da problemtica poltica na produo cinematogrfica brasileira e argentina anterior s ditaduras, em contraponto com a da realizao dos filmes a partir da dcada de 1990. Em seguida, so discutidos aspectos das ditaduras no Brasil e na Argentina e a importante questo dos arquivos ditatoriais: os dilemas em torno de tornar pblicos ou no os documentos da ditadura nestes pases e o trabalho social e histrico de interpretao que orbita tais arquivos so o horizonte da noo de filmes-arquivo, a qual ser retomada na concluso. A segunda parte apresenta os filmes argentinos tratados, assinalando sua nfase na questo da famlia e da nao por meio da anlise de dois filmes Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002) que, a partir de opes estticas diferentes, do destaque temtica dos desaparecidos polticos, presente de vrias maneiras no cinema argentino sobre a ditadura. Na terceira parte, uma discusso sobre o grupo de filmes brasileiros permite ressaltar alguns temas recorrentes nesta filmografia sobre a ditadura, destacando-se a anlise de Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005) e Cabra Cega (Toni Venturi, 2005). Esses filmes podem ser vistos como duas das principais maneiras de o cinema brasileiro discutir, reconstruir e trabalhar os eventos do perodo ditatorial: de um lado, uma nfase mais detida nas histrias sobre a luta armada contra a ditadura; de outro, a partir desse tipo de abordagem, a ateno convivncia entre setores antagnicos na vida social brasileira. Na concluso, retomando o tema da memria e do arquivo, argumenta-se que os filmes analisados, como filmes-arquivo, insinuam diferentes formas de reconhecimento das ditaduras, constituindo parte de uma memria ativa, articulada politicamente vida social, um arquivo suplementar aos arquivos ditatoriais institucionais.
Palavras- chave: Cinema. Ditadura. Arquivos. Memria.
ABSTRACT A STUDY OF THE CINEMATOGRAPHIC NARRATIVES ABOUT THE MILITARY
DICTATORSHIPS IN BRAZIL (19641985) AND IN ARGENTINA (19761983)
How does the cinema elaborate the periods of dictatorship in Brazil (19641985) and in Argentina (19761983)? How do films build up imaginative discourses about the experience of dictatorship in these countries? In this study, the Brazilian and Argentine films produced between 1985 and 2005, focusing on their respective dictatorial periods, are discussed and analyzed. These films are taken as films-archive because they imaginatively approach and build up the past, which is, at the same time, a way to read the present. In the first part, starting with a discussion about cinema, anthropology and the notion of context, an argumentation about nation as an imaginative construction is carried out, opening the path to question the role of the film narratives in the social life enchainment. This occurs, initially, through an approach of the political matters in the Brazilian and Argentine film production before the dictatorships, in a counterpoint with the film making in the 1990s. After that, the aspects of the dictatorships in Brazil and in Argentine are discussed, as well as the important issue of the archives of the dictatorial period: the dilemmas whether making public the documents of this period in these two countries and the social and historical work of interpretation that surrounds the dictatorial archives, which are the horizon of the notion of films-archive, a subject that will be retaken in the conclusion of this study. The second part presents the Argentine films treated, signaling their emphasis on the matter of family and nation through the analysis of two films Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) and Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002) which, from different esthetic options, enhance the theme of people that disappeared due to political reasons, present in a variety of ways in the Argentine cinema about the dictatorial period. In the third part, a discussion about the Brazilian group of films permits to point out some recurrent themes in this filmography enhancing the analysis of Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005) and Cabra Cega (Toni Venturi, 2005). These films can be seen as two of the main ways in which the Brazilian cinema discusses, rebuilds and works the events of the dictatorial period: on one side, emphasizing the stories about the armed fight against the dictatorial government; on the other hand, from this kind of approach, giving attention to the presence of antagonistic sectors in the Brazilian social life. In the conclusion, returning to the theme of memory and archive, it is commented that the films analyzed, as films-archive, insinuate different forms to recognize the dictatorships, constituting part of an active memory, politically articulated to the social life, a supplementary archive to the institutional dictatorial archives.
Key words: Movies. Dictatorship. Archives. Memory.
LISTA DE ILUSTRAES
Fotografia 1 Fachada do prdio da Garage Olimpo no filme homnimo ....... 93
Fotografia 2 Parte do material que Flix guarda em seu aposento ............... 96
Fotografia 3 Pela ltima vez, o gesto de ligao entre me e filha ............... 97
Fotografia 4 Na porta da cela, um beijo entre Mara e Flix .......................... 105
Fotografia 5 As guas do Rio da Prata e a cidade de Buenos Aires ............. 105
Fotografia 6 Movimento e rotina alienada nas superfcies da cidade ............ 108
Fotografia 7 Acionar o rdio para marcar o incio de uma sesso de tortura:
sons que encobrem outros ........................................................ 110
Fotografia 8 Duas luminosidades, duas realidades: a cidade (acima) e o
crcere (abaixo) ......................................................................... 113
Fotografia 9 Durante o passeio com Flix, Mara se abaixa para arrumar os
sapatos ...................................................................................... 115
Fotografia 10 Mara recebe, sob o olhar de Flix, o sedativo antes de
embarcar, juntamente com os outros prisioneiros, no
caminho que os levar ao avio do traslado ........................... 115
Fotografia 11 Um dos vos da morte ............................................................... 116
Fotografia 12 Kamchatka no tabuleiro de TEG ................................................ 122
Fotografia 13 Recriao de uma das principais demonstraes repressivas,
comuns durante a ditadura ........................................................ 124
Fotografia 14 O carro da famlia de Harry por detrs das grades da escola ... 127
Fotografia 15 O carro da famlia se aproxima do cerco militar ........................ 127
Fotografia 16 Os irmos se voltam para trs a fim de ver os militares em
ao ........................................................................................... 128
Grfico 1. Participao (em porcentagem), a cada ano, do total de casos
documentados de desaparecidos entre 1976 e 1983 na
Argentina ................................................................................... 130
Fotografia 17 Viso que Harry tem de seus pais conversando na penumbra
do quarto .................................................................................... 131
Fotografia 18 Os pases em disputa no jogo derradeiro entre pai e filho ........ 136
Fotografia 19 Harry conta ao av as mudanas que enfrentou com seus pais
nos ltimos dias ......................................................................... 139
Fotografia 20 Pssaro ferido, pas retido ......................................................... 140
Fotografia 21 Gesto de aliana entre geraes na despedida ........................ 142
Fotografia 22 A ltima viso de Harry .............................................................. 142
Fotografia 23 Os trs diferentes tempos de Quase dois irmos ...................... 163
Fotografia 24 Baile funk em que jovens se divertem portando armas ............. 168
Fotografia 25 Olhar da me de Miguel em dia de visita ao filho na Ilha
Grande ....................................................................................... 172
Fotografia 26 Mulheres sendo conduzidas para o presdio em um dia de
visita ........................................................................................... 174
Fotografia 27 Miguel e Jorge presos na Ilha Grande ....................................... 176
Fotografia 28 Alimento e guerra, vida e violncia ............................................ 179
Fotografia 29 Paisagem que Thiago pode ver sem ser visto ........................... 180
Fotografia 30 Companheira de militncia de Thiago sendo torturada ............. 185
SUMRIO
APRESENTAO ........................................................................................... 11
Sobre comparao e escolhas ........................................................................ 22
PARTE I CONSIDERAES A RESPEITO DE CINEMA E
ANTROPOLOGIA ........................................................................................... 30
Encenao ....................................................................................................... 41
Notas sobre as ditaduras e a questo dos arquivos ........................................ 50
Polticas flmicas .............................................................................................. 62
PARTE II ARGENTINA ................................................................................ 76
Famlias e desaparecidos ................................................................................ 76
A poltica em La historia oficial ........................................................................ 79
Cinema e terror: Garage Olimpo ..................................................................... 88
Kamchatka: lugar de resistncia ...................................................................... 116
PARTE III BRASIL ....................................................................................... 144
Brasil derrota e esquecimento: por que lembrar o passado? ....................... 144
Temas brasileiros no contar da ditadura ......................................................... 151
Passado e ao poltica em Ao entre amigos .............................................. 153
Quase dois irmos: incomunicabilidade e dualismo ........................................ 159
Cabra cega: isolamento e luta ......................................................................... 176
PARTE IV CONTRASTES ENTRE FILMES BRASILEIROS E
ARGENTINOS ................................................................................................. 188
Los rubios e o trabalho da memria ................................................................ 192
Potestad e as diferentes verses sobre o passado ......................................... 194
Filmes e testemunho ....................................................................................... 195
CONCLUSO .................................................................................................. 199
Filmes-arquivo e memria ............................................................................... 199
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 216
FILMOGRAFIA ................................................................................................ 229
Argentina ......................................................................................................... 229
Brasil ................................................................................................................ 231
Outros pases .................................................................................................. 233
APRESENTAO
[...] as construes e codificaes do mundo artstico no excluem referncias a uma vida social comum. Fices cinematogrficas inevitavelmente trazem tona vises da vida real no apenas sobre o tempo e o espao, mas tambm sobre relaes sociais e culturais (SHOHAT; STAM, 2006, p. 263).
[...] a constituio de um objeto narrativo, por mais anormal ou inslito que seja sempre um ato social por excelncia e como tal carrega atrs ou dentro de si a autoridade da histria e da sociedade (SAID, 1995, p. 117).
Neste trabalho proponho pensar como os cinemas brasileiro e argentino
contribuem para a disseminao de narrativas que esto imbricadas no fazer
histrico e poltico. Meu objetivo tratar os filmes brasileiros e argentinos que
elaboram e trabalham os respectivos perodos ditatoriais desses pases, a fim de, ao
analis-los, discutir os inter-relacionamentos do cinema sobre a ditadura e as
reescritas, rearticulaes e dinmicas das narrativas da nao, enquanto
socialidade. Tomo a noo de socialidade tal como abordada por Viveiros de Castro
(2002) em artigo dedicado a rastrear como a antropologia vem trabalhando o
conceito de sociedade. Contemporaneamente, a antropologia tem preferido negar
concepes essencialistas, passando a adotar a noo de socialidade: sociedade
como ordem (instintiva ou institucional) dotada de uma objetividade de coisa,
preferem-se noes como socialidade, que exprimiriam melhor o processo
intersubjetivamente constitutivo da vida social (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
313).
Utilizo os termos ditadura, mquina ditatorial e governo militar em lugar de
outras denominaes, como autoritarismo e Estado burocrtico-autoritrio,
privilegiando o fato de que o poder poltico passou a ser exercido por setores de
comando hierarquicamente superiores das Foras Armadas, com ativa participao
12
de setores no-militares. As questes conceituais, ao se tratar dos processos
ditatoriais na Amrica Latina, so amplas e, para inserir tal problemtica no bojo
desta apresentao, recorro s contribuies de Fausto e Devoto (2004) e Pascual
(2004).
Tais discusses indagam qual o tipo de organizao assumida pelo Estado no
decorrer dos governos ditatoriais implantados na Amrica Latina nos anos 60 e 70.
Assim que, nos lembram Fausto e Devoto (2004, p. 395), Guillermo ODonnell
conceituou os Estados militares brasileiro e argentino como representantes de um
tipo especfico de Estado autoritrio o Estado burocrtico [...]. A inteno do
Estado burocrtico autoritrio era organizar a dominao de classe em favor de
fraes superiores de uma burguesia altamente oligopolista e transnacional
(FAUSTO; DEVOTO, 2004, p. 395). Para atingir tal objetivo, as ditaduras, como
estados desse tipo, ainda segundo os mesmos autores, tomaram medidas
repressivas sobre setores populares politicamente organizados, empreenderam
reordenaes econmicas e utilizaram amplamente a violncia, a censura e a
supresso dos direitos constitucionais.
A nfase no modelo de organizao do Estado pode encobrir outras
dimenses, tais como as da vida social durante a vigncia das ditaduras. As aes
dos Estados ditatoriais provocaram, entre outros efeitos, a disseminao de uma
cultura poltica do medo no mbito da vida social. esse o panorama que informa
parte das crticas dirigidas ao modelo explicativo contido na idia de Estado
burocrtico autoritrio. Considerando que todo Estado , em sua medida, autoritrio
e que age burocraticamente, quais seriam, ento, as caractersticas dessas
ditaduras?
13
Ao tratar da ditadura argentina, Pascual (2004, p. 19) critica a conceituao
de Estado burocrtico autoritrio e insere a idia da prtica do terrorismo de Estado
como constitutiva da qualidade desses governos. Todos os sucessivos golpes de
Estado impetrados pelas Foras Armadas nos pases latino-americanos, nas
dcadas de 1960 e 1970, inspiravam-se e justificavam suas aes em doutrinas de
segurana nacional. O que a autora enfatiza para tratar do tipo de regime instaurado
na Argentina vale tambm para o Brasil e outros pases:
O regime militar do qual padeceu a Argentina entre 1976 e 1983 no foi apenas mais um exemplo do autoritarismo latino-americano. O que aconteceu l foi o resultado de um plano deliberado e consciente, elaborado e executado pelas prprias Foras Armadas do pas, no intuito de proporcionar mudanas profundas nas estruturas sociais e nas formas de organizao poltica, baseadas na represso violenta, e conseguir uma relao entre o Estado e o homem mediada pelo terror (PASCUAL, 2004, p. 31-32).
A doutrina de segurana nacional insere a tnica de os governos ditatoriais
verem o perigo no interior da prpria sociedade: os inimigos so elementos internos
que, em nome da segurana nacional, se deve combater. Assim, valorizar a ao do
Estado ditatorial como uma ao de terror permite incluir a esfera da vida social e a
organizao do Estado nas discusses acerca do que caracterizaria as ditaduras do
perodo. A considerao das configuraes de sentido que os processos culturais
nessas sociedades passaram a assumir ganha importncia para a definio do tipo
de ditadura instaurada nesses pases.
As aes ditatoriais induzem a formao de uma cultura do terror que passa a
cobrir a vida social. Nessa perspectiva, as ditaduras produzem, pela extrema
violncia de suas aes, eventos traumticos, rupturas. Nos perodos ps-ditatoriais,
ocorre um processo de releitura sobre o passado ditatorial, o qual procura reelaborar
sentidos ao dar vazo a disputas de memria e insere a discusso sobre a
necessidade de aes de reparo e justia. Esse processo articula narrativas e
14
memrias anteriormente postas margem, reprimidas. Essa articulao se faz
conflitualmente, pois alguns grupos procuram impor hegemonicamente suas verses
sobre as de outros grupos. Um dos campos de manifestao em que as narrativas
so dialogicamente trabalhadas o cinematogrfico: as histrias que os filmes
elaboram sobre o perodo esto vinculadas aos encadeamentos da vida social nas
ps-ditaduras.
Cinema aqui tomado como uma complexa elaborao artstica que envolve
produo, distribuio, exibio, desempenho e criao de peas especficas, cujo
resultado, o filme, pode ser trabalhado em seu mbito interno, sem perder de vista a
relao que h entre essas esferas. Interessam-me, no conjunto cinema, os seus
produtos, ou seja, os filmes, buscando delinear a maneira como as histrias, as
tramas, os personagens, alm do modo como as cenas so montadas e os sons
utilizados, so endereados ao pblico espectador. A matria dos filmes, seus
enredos, a maneira como so filmados, os temas postos em cena so relacionados
com os locais em que se realizam, na medida em que, como matria artstica, os
filmes formulam tpicos imaginativos relacionados com as coletividades em que so
produzidos. Como sublinha Benjamin (1994, p. 172), em seu estudo sobre a
reprodutibilidade tcnica da imagem, o filme uma criao da coletividade.
O grupo dos filmes que elaboram histrias a respeito das ditaduras no Brasil e
na Argentina parte integrante dos modos como certas narratividades da nao
esto sendo disseminadas. Inscrevo tais narratividades em articulao com trs
vetores temticos: memria e arquivo, violncia e crueldade e reelaboraes do
poltico na fico. Ao trabalhar o passado ditatorial, os filmes esto, sobretudo,
elaborando o que est fora dele e, ao mesmo tempo, naquele passado imbricado, o
que eleito e construdo diegeticamente constitui uma evocao do e para o
15
presente. Nessa perspectiva, proponho tratar os filmes que tm como tema o
passado ditatorial como filmes-arquivo, no sentido dado noo de arquivo proposta
por Derrida (2001, p. 48): material que, por organizar e conter itens do passado,
voltado ao presente e, assim, pode pr em questo a chegada do futuro. A
indagao que esta noo de arquivo propicia poltica.
Os filmes-arquivo trabalham com memria, que matria construda no
presente. Memria aqui entendida, em primeiro lugar, a partir das contribuies de
Halbwachs (2004), que ressalta seu papel nos processos de coeso social. Para o
autor, a solidariedade social enfatizada; a lembrana do passado est associada
s construes sociais realizadas no presente e depende das relaes em uma
comunidade afetiva.
Como esses aspectos so uma das caractersticas dos trabalhos da memria,
prossigo as discusses a partir de Pollak (1989; 1992), o que permite evidenciar as
complexas interaes entre memria e polticas da diferena. Desse modo,
importante tratar da participao dos atores que intervm na constituio das
memrias e, assim, perceber o conflito que h entre memrias concorrentes.
Por se tratar aqui das narrativas cinematogrficas sobre as ditaduras, as
contribuies de Jelin (2002) a respeito dos encadeamentos conflituosos da
memria nas etapas ps-ditatoriais so importantes. Para a autora, nas ps-
ditaduras se enfrentam mltiplos atores, diferentes grupos sociais e polticos que
relatam os acontecimentos do passado, assim expressando seus projetos, seus
anseios.
Por reunirem temtica relativa s ditaduras, os filmes organizam
imaginativamente, pela emoo, uma memria suplementar, a qual se refere tanto
quele passado como aos momentos posteriores, nas formas em que o cinema
16
pensa os eventos da ditadura. Relacionam-se a uma disputa entre a memria
articulada e posta em cena e as outras memrias relativas ao perodo. Alm do
mais, na condio de filmes-arquivo, so matrias que articulam o poltico,
independentemente da condio de suas narrativas estarem ou no presas a formas
mais tradicionais, como as predominantes no cinema comercial.
Ao olhar o perodo da ditadura e procurar trabalhar artisticamente por meio de
imagens e sons a experincia social vivida naquela ocasio, o cinema est tambm
propagando falas e proposies sobre as etapas ps-ditatoriais, contribuindo, assim,
para refazer e repensar a esfera da experincia poltica que foi reprimida e desfeita
naquela poca. Trata-se de uma relao entre o passado e o presente que se
mostra tensa e na qual os temas escolhidos e que predominam em uma e em outra
cinematografia esto, de modo indelvel, formatados pelas contingncias que essas
duas sociedades encontram nas prticas ps-ditatoriais. Tais prticas so tambm
decorrentes das opes e dos acontecimentos daqueles anos.
Os filmes argentinos tratados aqui abordam o tema da ditadura por meio do
foco das histrias na famlia. A famlia opera como um significado conhecido que se
estende ao universo da experincia ditatorial, a qual aparece como uma opacidade,
a princpio. Como hiptese, ao falar da ditadura atravs da famlia, os filmes esto
tratando alegoricamente da nao. No caso dos filmes brasileiros, surge outro tipo
de questo: as histrias que se debruam sobre o passado ditatorial so construdas
por intermdio da nfase nos grupos de militantes que se opuseram e que lutaram
contra a ditadura. Tal nfase remete s discusses em aberto no Brasil, questes
no solucionadas a respeito das impunidades cometidas no passado ditatorial.
Os filmes participam de uma dinmica narrativa que envolve a cultura em um
mundo internacionalizado, exigindo, desse modo, reconhecer aquilo que Bhabha
17
(s.d.; 2001) chama de the right to narrate. Essa proposio possibilita pensar a
complexa rede narrativa em que estamos inseridos, seus encadeamentos e disputas
por legitimar algumas narrativas e no outras. No interior dessas disputas, as artes,
entre outras esferas, desempenham importante papel:
The arts and humanities contribute to such a national enterprise by developing the "right to narrate" the authority to tell stories that create the web of history and change the direction of its flow. To talk of narrative as the moving spirit of "culture" is to recognize that whether culture is elite or popular, Don Giovanni or Star Wars, it is the very soul of cultural creativity to place upon us the burden of historical representation and the responsibility of aesthetic and ethical interpretation.
[...]
The right to narrate is not simply a linguistic act; it is also a metaphor for the fundamental human interest in freedom itself, the right to be heard, to be recognized and represented. Such a right might inhabit an artist's hesitant brush stroke, be glimpsed in a gesture that fixes a dance movement or become visible in a camera angle that stops your heart. Suddenly, in painting, dance or cinema you renew your very senses of personhood and perspective, and in that process, you understand something profound about yourself, about your historical moment, about what gives value to a life lived in a particular town, at a particular time, in particular social and political conditions (BHABHA, s.d.).
comum em antropologia a utilizao da noo de narrativa como a fala que
o/a antroplogo/a obtm em suas interlocues nos grupos com os quais trabalha.
Narrativas so, ento, atos socialmente simblicos e mltiplos que se disseminam
por meio de formas escritas e orais, elaboram modos de ver e viver no mundo e se
articulam em campos de disputa. Nas configuraes socioculturais das naes,
algumas narrativas preponderam e se disseminam hegemonicamente. Neste
trabalho, procuro chamar a ateno para as articulaes dialgicas1 das narrativas
flmicas sobre o passado ditatorial com outras narrativas em que a nao horizonte
ou mesmo foco principal.
Os filmes que abordam histrias da ditadura manejam, de alguma forma, a
violncia que o passado evoca. Com relao crueldade, penso na proposta do
1 Conforme Bakhtin (2002), do carter socialmente constitudo e dialgico de todo ato enunciativo.
18
filsofo Rosset (1989, p. 17) de ressaltar a natureza intrinsecamente dolorosa e
trgica da realidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de descrev-la e
abarc-la inteiramente. Esse um ponto importante nos filmes sobre a ditadura que
tentam exprimir artisticamente eventos de ordem extrema: torturas, seqestros,
desaparecimentos, guerra. Na expresso cruel de eventos extremos j est
presente, tambm, a opo mais ou menos declarada de trabalhar o encadeamento
cnico de modo a explicitar a violncia daqueles eventos ou, ento, como acontece
em algumas obras, de referir-se a eles por meio de artifcios indiretos.
O ponto central , pois, como os filmes elaboram discursos imaginativos
sobre a experincia ditatorial no Brasil e na Argentina. Contedos de saber e afeto
da vida comum, nossas disposies e capacidades, a forma como nos inserimos e
como vemos a ns e aos outros, o modo como percebemos o mundo, nos so
inculcados por meios simblicos variados. Dentre esses, as histrias de um modo
geral, sejam as que fazem parte do que consideramos nosso espectro mais ntimo,
sejam as que fazem parte das redes em que nos encontramos, so formas pelas
quais nossos pertencimentos e apegos, assim como nossas disjunes e cises,
tomam forma. Um considervel conjunto dessas histrias gerado pelas prticas
miditicas massivas, que podem incluir formas artsticas variadas, entre as quais
encontra-se o cinema narrativo comercial, campo do qual os filmes para esta
pesquisa foram extrados.
Para chegar a esta proposta, parti de um levantamento geral, com cerca de
80 filmes. Destaquei, ento, aqueles que elaboravam histrias focalizando aspectos
do passado recente no Brasil e na Argentina, o que conduziu as minhas indagaes
para as relaes entre poltica e fico.
19
A inteno de trabalhar com filmes a respeito das ditaduras foi instigada pela
percepo de certas continuidades das prticas violentas e autoritrias nas ps-
ditaduras. Desse modo, a leitura do trabalho de Huggins (2004), a respeito da
memria de torturadores e agentes policiais que participaram da represso durante
a ditadura brasileira, foi inspiradora. Em suas concluses, a autora aborda as
continuidades entre passado e presente percebidas nos depoimentos de
torturadores:
Assim, embora o discurso dos policiais sobre a tortura e o assassinato tenha mudado na medida em que o Brasil autoritrio foi substitudo pela redemocratizao formal e a guerra contra a subverso por uma guerra contra o crime , a autonomia dos policiais continua a permitir que profissionais da polcia no Brasil cometam graves violaes dos direitos humanos. Em outras palavras, a violncia policial de um perodo anterior no perdeu o vigor nem mesmo durante a redemocratizao do Brasil (HUGGINS, 2004, p. 201-202)2.
Entendo que as experincias entre os anos de 1964 e 1985, no Brasil, e entre
1976 e 1983, na Argentina, provocaram rupturas e constrangimentos no mundo civil
e nas esferas da convivncia poltica; foram perseguidas todas as formas de
diferena existentes em relao s propostas que iam sendo alinhadas pelos
governos ditatoriais, com o propsito preciso de extermin-las e, assim, consolidar
os projetos poltico-econmicos de mercado nos quais estavam envolvidos os
grupos militares e seus aliados civis.
Nas etapas ps-ditatoriais, as fices cinematogrficas so uma das formas
de produo de novos sentidos em face da experincia passada; cada
cinematografia, a seu modo, oferece termos em que as socialidades so
reconstrudas e relidas por intermdio da leitura que o cinema faz daquele passado.
2 Nesse sentido, cito a ao policial desmedida a partir dos acontecimentos envolvendo presos organizados e policiais em So Paulo-SP no incio de 2006.
20
Entre as diferentes ordens de coexistncia que interagem e constituem essas
socialidades, quais questes e aspectos relativos s ditaduras so levados para as
telas? Qual o campo entre filme e pblico que as obras permitem vislumbrar?
Como?
A noo de modo de endereamento proposta por Ellsworth (2001), ao
discutir teorias do cinema e sua aplicao nas prticas educacionais, crucial na
discusso dos filmes sobre a ditadura por apontar uma relao entre filme e pblico.
Ellsworth (2001, p. 11) parte do tpico quem este filme pensa que voc ? para
explicitar o modo de endereamento como um conceito que se refere a algo que
est no texto do filme e [...] age de alguma forma sobre seus espectadores
imaginados ou reais, ou ambos. Segundo Ellsworth (2001, p. 13), o evento do
endereamento ocorre, em um espao que social, psquico, ou ambos, entre o
texto do filme e os usos que o espectador faz dele. Assim, a noo mais um
evento e um processo que abarca um entre-lugar, uma instncia que no est
situada nem no filme nem na platia, mas entre estas esferas. Esse evento se faz
notar, entre outras, nas obras que procuram abordar o perodo ditatorial.
Ao apresentar as principais correntes que estudam e valorizam o/a
espectador/a nas teorias do cinema, Stam (2003, p. 256) nos lembra que os
espectadores moldam a experincia cinematogrfica e so por ela moldados, em um
processo dialgico infinito. Mesmo que seja de modo no explicitado, os filmes
pensam em um/a espectador/a ideal, so obras realizadas para certo pblico.
Assim, poderamos dizer tambm que pensam a nao.
So vrias as instncias que permeiam a relao proposta entre cinema e
ditadura. Uma delas diz respeito construo, pelos filmes, dos tipos de
experincias que as telas dizem captar do passado. Outro eixo o da elaborao
21
das tramas e, na forma como so filmadas, como seus temas e protagonistas so
concebidos, como certas representatividades sociais esto presentes no material
flmico, reinscritas e recicladas. As possibilidades de leitura so mltiplas e a que
escolhi diz respeito imaginao (aqui entendida no como quimera ou conjetura
enganosa, mas como construo que permite viver e ver o mundo) da nao como
espao retalhado, no naturalmente coeso, que se refaz nas telas e a partir delas ao
tratar de rupturas, rearranjos e articulaes que as ditaduras ocasionaram.
A noo de imaginao adotada aqui se refere de horizontes imaginativos
desenvolvida por Crapanzano (2004). Ressalto sua proposio de considerarmos a
imaginao, por intermdio da diferena cultural, como instncia propiciadora de
sentidos para a experincia humana, ao articular possibilidades e impossibilidades,
fechamentos e aberturas. A imaginao produz o possvel e o impossvel, produz e
limita modos de a experincia fazer sentido. Os horizontes imaginativos, trabalhados
pelo autor como categorias de anlise histrica, intercultural e psquica relacionam,
assim, a experincia e suas interpretaes:
My concern is with openness and clousure, with the way in which we construct, wittingly or unwittingly, horizons that determine what we experience and how we interpret what we experience (if, indeed, we can ever separate experience from interpretation) (CRAPANZANO, 2004, p. 2).
Interpretaes de eventos do passado ditatorial, ao serem construdas visual
e sonoramente, permitem pensar sobre os vnculos entre o cinema e outras
narrativas em que a imaginao articulada memria opera como leitura da
experincia das ditaduras no Brasil e na Argentina.
22
Sobre comparao e escolhas
Comparar um atributo bastante comum a uma gama variada de fazeres
disciplinares. A rigor, sempre que um dado, uma forma, uma idia mencionada,
surgem no horizonte intelectivo/sensitivo seus outros pares opostos e/ou
complementos. Um tpico, um tema sempre carrega um rastro e esse movimento
que permite percebermos o processo comparativo como uma ao mais freqente
do que se possa suspeitar. No campo das cincias sociais, a comparao tem
destaque e parte integrante das propostas dos clssicos fundadores: para
Durkheim (1996), a sociologia no pode ser dissociada da comparao, e todas as
demonstraes e os argumentos do autor so elaborados a partir de uma
proposio analtica comparativa.
Horizonte freqente na antropologia, a comparao recebe diferentes
tratamentos, metodologias e propsitos. Nesse sentido, devemos ter em mente que
a constituio do saber antropolgico, da interpretao sobre outros povos e culturas
procedimentos comparativos de vrios feitios e intenes um movimento
atrelado s formaes coloniais e imperiais. Said (1995) mostra que os esforos
comparativos da antropologia e de outras formas de conhecimento, como a filologia,
a lingstica e a histria, se constituram ao longo dos anos como formas de
representao das sociedades tratadas, formas essas atreladas e comprometidas
com sistemas polticos de subjugao e dominao. O autor chama a ateno para
o risco de entendermos a prtica cultural e a atividade intelectual como se a
interpretao de outras culturas pudesse ocorrer num vazio atemporal, to
complacente e permissivo que remete a interpretao diretamente a um
universalismo isento de vnculos, de restries ou de interesses (SAID, 1995, p. 92-
93).
23
Nesses esforos comparativos, a antropologia contribui para a elaborao de
discursos sobre os outros, na qual pares como civilizado/primitivo, sociedades
simples/complexas, sociedades sem histria/com histria participam de todo projeto
de constituio disciplinar desde o sculo XIX, ecoando at o presente. As intenes
metodolgicas comparativas, em suas vrias acepes, esto, de um modo ou de
outro, envolvidas com relaes de fora e de dominao. Por um lado, contribuem
para reforar idias sobre superioridade ocidental e, por outro, acionam um sentido
contraditrio entre um desejo de entender e conhecer o outro e uma determinao
poltica baseada na fora (SAID, 1995).
No h procedimento comparativo isento e, como qualquer outra atitude de
conhecimento, a comparao tambm um ato poltico. Em seu artigo sobre
representaes raciais no Brasil, Siqueira (2002) desenvolve uma demonstrao
sobre a moldura da comparao como a instncia que dissimula a questo poltica
envolvida no prprio gesto comparativo. Seu ponto de partida uma discusso
sobre os procedimentos comparativos nas cincias sociais, principalmente entre os
autores considerados clssicos. Ao trabalhar o texto de Max Weber, A tica
protestante e o esprito do capitalismo, Siqueira (2002, p. 157) destaca que a
comparao cria uma espcie de modelo paradigmtico. Esse um modelo para o
julgamento, na medida em que, no exemplo mencionado, Weber recorre, em sua
escrita, a comparaes que vo elaborando um Ocidente detentor de bens culturais
e econmicos em detrimento de um Oriente sem tais caractersticas. Para Siqueira
(2002, p. 157), tal modelo resulta e se desdobra em efeitos de poder: a
comparao um mecanismo eficiente e recorrente de construo de discursos
polticos sobre a alteridade. Tomo as implicaes acima ao buscar comparar Brasil
e Argentina por meio do cinema que trata a ditadura nesses dois pases. A produo
24
cinematogrfica deve ser entendida como parte de implicaes culturais e polticas
no sentido de um mapeamento daquilo que Said (1995, p. 95) denomina territrio
que se encontra por trs da fico.
Em adio a isso, como o tema abordado para a escolha dos filmes a
ditadura, faz-se necessrio tomar certos cuidados ao compar-las. No possvel
falar em ditadura mais ou menos benevolente. Todo o processo repressivo, as
alteraes provocadas na vida cultural, a conduo de toda a sociedade para a
experincia de mercado tornam as ditaduras no Brasil e na Argentina, nestes
aspectos, muito semelhantes. As diferenas dizem respeito ao tipo de conexo que
os militares permitiram e incentivaram em cada sociedade, aos planos de cada
governo golpista. poltica de extermnio adotada na Argentina da ditadura
corresponderia, em outro plano, a estratgia de conteno da sociedade civil por
longos anos na experincia brasileira, que tambm foi hbil em polticas de
extermnio e tortura. Em ambos os casos, os efeitos de desarticulao foram
precisos.
Optei por trabalhar filmes desses dois pases porque esto situados em
pontos estratgicos, simbolicamente, nas pontas (Argentina, cujo territrio faz
fronteira com o Brasil e atinge o extremo sul do continente) e bordas (fronteiras
brasileiras no interior e seu grande litoral) da Amrica do Sul, e tm certas
semelhanas em seus problemas socioeconmicos. Entre eles, h certas afinidades,
como o fato de pertencerem a uma parte da Amrica que apresenta caractersticas
comuns em sua histria (foram colnias da Espanha e de Portugal), o que os inclui
no sistema-mundo colonial (DUSSEL, 2002; MIGNOLO, 2003), participando da
constituio do capitalismo e da construo da Europa como centro, alm de
partilharem uma condio subalterna neste sistema.
25
So pases que apresentam ciclos de crises polticas e econmicas
constantes, as quais so abordadas distintamente nos filmes argentinos e
brasileiros. No primeiro caso, h dilogos freqentes que indagam que pais es
este, vea como estamos nosotros, assim como temticas recorrentes sobre
desemprego, crise institucional, entre outras. No caso brasileiro, essas abordagens
so de outro tipo: filma-se a favela, o serto e a periferia das grandes cidades, mas
os personagens pouco falam explicitamente sobre o pas. Em adio a isso, o Brasil
e a Argentina tiveram regimes ditatoriais intensos e isso trabalhado em suas
cinematografias com graus de dedicao diferenciados. Na Argentina, entre 1983 e
2002 foram produzidos cerca de 40 filmes tendo a ditadura como tema3; no Brasil,
cerca de 20 filmes enfocam a experincia do perodo.
Em comum aos dois pases, registra-se uma pequena participao das
mulheres como diretoras e/ou roteiristas. H tambm de ser mencionado o fato de
que em um pas como o Brasil ainda pequena a participao da populao negra
no cinema, seja na realizao, seja na temtica. Recentemente, foi lanado no pas
o filme Filhas do vento (Joel Zito Arajo, 2005), que conta com atores/atrizes
negros/as no elenco e trabalha uma histria centrada na vida de mulheres em que
ecoam questes da escravido e do racismo. A participao da populao indgena
na produo e realizao de filmes no atinge o sistema de mercado
cinematogrfico tradicional, sendo, entretanto, intensa entre aldeias e nos circuitos
acadmicos4.
3 Diferentemente do Brasil, possvel encontrar uma relao de 35 filmes produzidos no perodo em um site governamental, do Ministrio de Educacin, Cincia y Tecnologia de la Nacin Argentina (http://www.me.gov.ar/). 4 No Brasil, o projeto Vdeo nas Aldeias vem formando cineastas entre os povos indgenas e divulgando as realizaes entre aldeias e para os no-ndios com o intuito de promover a devoluo da imagem para o prprio ndio. Mais informaes podem ser obtidas em: .
26
Dentro da variada produo cinematogrfica dos dois pases em anlise
nesta pesquisa, alguns critrios foram usados para decidir com quais filmes
trabalhar. O primeiro deles foi o acesso pessoal aos filmes. Apesar de crticos e
cineastas afirmarem a existncia de um crescimento, um incremento significativo na
produo cinematogrfica no Brasil e na Argentina, a distribuio das fitas no
mercado latino-americano bastante deficiente5. Muitos dos filmes no chegam ao
circuito comercial, ou sequer aos crculos mais cinfilos, como os dos festivais.
Vrios no so encontrados em locadoras. Por isso, selecionei filmes que tivessem
participado de festivais no Brasil, que fossem comercializados em locadoras e/ou
tivessem sido exibidos no circuito nacional. Nem sempre isto foi possvel, pois
alguns filmes argentinos no chegam ao mercado brasileiro e tiveram de ser obtidos
por intermdio de amigos moradores naquele pas. O segundo critrio foi o impacto
pessoal aliado ao tema da ditadura. A escolha foi guiada pelas marcas e sensaes
que os filmes aos quais tive acesso foram me provocando. Ademais, no caso da
Argentina, encontrei discusses mais detidas na relao entre o cinema e as
interpretaes sobre a ditadura. No o que acontece no Brasil, em que os textos
crticos a respeito dos filmes relativos ao perodo tratam pouco das leituras que o
cinema faz da ditadura. Por isso, este trabalho tem muito de exploratrio.
Eis a relao dos filmes argentinos sobre a ditadura aos quais tive acesso: La
republica perdida I (Miguel Prez, 1983); La historia oficial (Luis Puenzo, 1985); La
noche de los lpices (Hctor Oliveira, 1986); La republica perdida II (Miguel Prez,
1986); Aluap (Hernn Beln e Tatiana Mereuk, 1997); Garage Olimpo (Marco
Bechis, 1999); Botn de guerra (David Blaustein, 2000); Potestad (Luis Csar
5 Para uma discusso sobre produo, distribuio e exibio do cinema nos e entre os pases que integram o bloco do Mercosul, o trabalho de Silva (2007) apresenta dados importantes acerca dos problemas ali enfrentados. Apesar de maiores em produo e circulao, Brasil e Argentina no escapam das questes enfrentadas em maior grau por seus vizinhos, o Uruguai e o Paraguai.
27
DAngiolillo, 2001); Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002); Sol de noche (Pablo
Milstein e Norberto Ludin, 2002); Los rubios (Albertina Carri, 2003); Hermanas (Julia
Solomonoff, 2004); Paco Urondo, la palabra justa (Daniel Desaloms, 2004).
Alm desses, fao referncia a vrios outros filmes que tratam de outras
temticas ao longo do texto e que constam da relao geral de filmes apresentada
ao final desta tese. Resolvi tratar mais detidamente de Kamchatka (Marcelo Pieyro,
2002) por ver neste filme a expresso clara de como a famlia geradora de
discursividades na cinematografia argentina sobre a ditadura; a obra corresponderia
a um caso extremo de sntese no qual o tema da famlia percorre toda a trama.
Outro filme que mereceu destaque Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e est
inserido em uma discusso acerca dos modos como a arte pode tratar da dor e da
violncia. Nesta obra h certa diluio do enfoque na famlia em razo da histria
dar nfase quase documental priso, tortura e ao desaparecimento da
protagonista.
No caso dos filmes brasileiros, a relao a seguinte: Que bom te ver viva
(Lcia Murat, 1989); Corpo em delito (Nuno Csar de Abreu, 1990); Lamarca (Srgio
Rezende, 1994); O que isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997); Ao entre
amigos (Beto Brant, 1998); Dois crregos (Carlos Reinchenbach, 1999); Cabra cega
(Toni Venturi, 2005); Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005); Vlado, trinta anos
depois (Joo Batista de Andrade, 2005).
Destaco nesta anlise Cabra cega (Toni Venturi, 2005), por corresponder
tendncia mais caracterstica do trato que o cinema brasileiro d ditadura, ou seja,
trabalhar a clandestinidade radical e o seu extermnio. Outro filme brasileiro tambm
mais detidamente analisado Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005), pelo fato de
reunir duas condies interessantes na discusso sobre fico e poltica, sobre
28
cinema e narrativas da nao: o enfoque na vivncia do evento ditatorial por meio da
relao de dois amigos ao longo de vrias dcadas e o discurso sobre as relaes
entre ricos e pobres, brancos e negros. Nessa relao, fica salientada a
problemtica pungente da convivncia na diferena cultural, to presente nas
interpretaes que o cinema brasileiro d nao.
Este trabalho est dividido em seis partes: esta apresentao, as Partes I, II,
III e IV e a concluso.
Na Parte I conduzo uma discusso envolvendo o cinema, a antropologia, e a
a noo de contexto. Trato, ento, dos temas da nao como construo imaginativa
para abarc-los dentro do enfoque que me interessa, a saber, do papel das histrias
que os filmes elaboram nos encadeamentos da vida social. Abordo, a seguir, a
problemtica poltica na produo cinematogrfica brasileira e argentina anterior s
ditaduras em contraponto com a da realizao dos filmes a partir da dcada de
1990. Encerro essa parte destacando aspectos das ditaduras no Brasil e na
Argentina e os arquivos ditatoriais como reflexes que nortearam, tambm, minha
leitura dos filmes.
Na Parte II apresento os filmes argentinos tratados e o enfoque destes nas
temticas famlia e nao. Para tanto, destaco a anlise crtica de dois filmes:
Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002). Essas
obras me permitiram discutir alguns aspectos da ditadura entre 1976 e 1983 e dar
destaque problemtica dos desaparecidos polticos, presente de vrias maneiras
no cinema argentino sobre a ditadura. So tambm trabalhos que se vinculam a
opes estticas diferentes, embora ambos trabalhem a violncia da ditadura em
suas tramas.
29
Na Parte III trato do grupo de filmes brasileiros e comento os temas
recorrentes na filmografia sobre a ditadura pondo em destaque duas obras: Quase
dois irmos (Lcia Murat, 2005) e Cabra cega (Toni Venturi, 2005). Esses filmes
podem ser vistos como duas das principais maneiras do cinema brasileiro discutir,
reconstruir e trabalhar o evento do perodo ditatorial compreendido entre 1964 e
1985. Uma, se acercando mais detidamente das histrias sobre a luta armada contra
a ditadura; outra, que, partindo desse tipo de abordagem, termina por discutir a
questo da convivncia entre setores antagnicos na vida social brasileira.
Na Parte IV apresento outros contrastes entre os filmes brasileiros e
argentinos que julguei importantes para caracterizar certas propostas flmicas dos
dois pases no trabalho sobre a ditadura e discuto alguns pontos a respeito do
testemunho nos filmes analisados.
Na concluso, retomo a problemtica da memria e a noo de filmes-arquivo
para caracterizar o tipo de trabalho artstico realizado pelos cinemas que narram a
ditadura. Foi exatamente a polmica sobre tornar pblicos ou no os documentos da
ditadura na Argentina e no Brasil que me fez pensar na condio arquvica dos
filmes sobre esse perodo da histria dos dois pases.
30
PARTE I
CONSIDERAES A RESPEITO DE CINEMA E ANTROPOLOGIA
Ao tomar contato com as teorias do cinema, notei certas similaridades entre
elas e a perspectiva sob a qual coloco meu prprio pensar em antropologia: a
necessidade de um descentralizar, de sair do familiar em direo a outro lugar de
percepo. Em antropologia, requisita-se um estranhamento das categorias
familiares e habituais de quem faz a pesquisa: relativiza-se o que dado como
certo, natural, essencial. Tambm, consagrou-se como um procedimento
metodolgico o que se denomina trabalho de campo, o qual, em tese, requer uma
mudana de postura e do lugar de onde se olha, de onde se indaga; uma mudana,
na maioria das vezes, geogrfica e subjetiva. Em que pese uma tendncia
mistificadora do mtodo do trabalho de campo, o quanto de um tipo de autoridade
etnogrfica (CLIFFORD, 1995) ele pode conferir ao trabalho, a questo poltica
inserida na proposta de desnaturalizao pode e deve ser ampliada. Trata-se de
deslocamento calcado em uma reflexo mais crtica sobre essencialismos e pr-
conceitos.
Dessa forma, h uma congruncia entre antropologia e cinema, uma vez que
a necessidade de deslocamento condio tanto em uma como no outro. Em
antropologia, estranhar o familiar ou tornar familiar o que se encontra distante
necessrio para desnaturalizar, relativizar. No cinema, preciso transportar-se para
dentro do mundo construdo pelo filme; viaja-se e, depois, retorna-se. Tanto a
etnografia quanto a cinematografia requerem um processo de viagem e retorno, de
imerso em uma alteridade, em um outro lugar, em um outro mundo. Ao
31
deslocamento exigido pela elaborao etnogrfica, e tambm no exerccio de assistir
e pensar um filme, segue-se o retorno necessrio, inscrito desde o incio do
processo. No h uma imerso absoluta na alteridade, mas h uma desestabilizao
necessria, um deslocamento, se a experincia flmica, etnogrfica, ou flmico-
etnogrfica nos tocar de alguma forma6.
Tendo em vista as articulaes entre antropologia e cinema, preciso
abordar alguns pontos concernentes noo de cultura para indicar o campo a partir
do qual se pode pensar uma antropologia do cinema comercial. A palavra cultura ,
de acordo com Williams (1985, p. 87), one of the two or three most complicated
words in the English language, devido aos usos variados e porque utilizada para
expressar diferentes conceitos em diversas disciplinas e distintos e incompatveis
sistemas de pensamento. A origem da palavra colere, em latim, que pode significar
habitar, cultivar, cultuar. Foi o sentido de habitar que originou colonos, o que remete
a um entrelaamento de cultura com colonizar, colecionar. Bosi (1992, p. 11) afirma
que as palavras cultura, culto e colonizao derivam do mesmo verbo latino colo,
cujo particpio passado cultus e particpio futuro culturus. De qualquer forma,
ambas as discusses a de Williams (1985) e a de Bosi (1992) a respeito da
origem da palavra cultura tocam no que importante ressaltar, ou seja, a relao
entre cultura e colnia.
A concepo de cultura em antropologia est relacionada com os
envolvimentos histricos e polticos sobre os quais o pensamento antropolgico se
desenvolveu, e portadora de uma ampla variao de sentido, dependendo de sua
6 A questo do deslocamento exigido pela antropologia e pelo cinema me foi sugerida em discusso e informao pessoal com o mestrando em antropologia social, Marcelo R. S. Ribeiro.
32
afiliao matriz disciplinar7. Grosso modo, h uma relao histrica, nem sempre
explicitada, da antropologia com a poltica colonial, envolvimento esse que aparece
nas atividades profissionais. Alguns/mas antroplogos/as, cuja obra considerada
clssica, trabalharam para governos coloniais em vrios lugares do mundo, como
o caso de Evans-Pritchard, no Sudo de colonizao inglesa, inserido na escola
britnica; outros foram convidados e aceitaram participar como consultores polticos
em pocas de guerra. Nesta ltima situao, encontra-se Benedict (1997), com seu
trabalho sobre os padres culturais japoneses, realizado a pedido do governo dos
Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Nesses termos, pode-se perceber um comprometimento interno prpria
disciplina, que se relaciona, tambm, com as tecnologias de reprodutibilidade das
imagens, o mtodo de trabalho de campo e a idia de cultura como cultivo.
O impulso antropolgico de coletar informaes e objetos das chamadas
sociedades primitivas vincula-se a essa relao entre cultura e colnia. A
antropologia consolida-se como um dos saberes ocidentais dentro do que Dussel
(2002) denomina sistema-mundo (p. 17), estabelecendo a Europa como centro
(p. 24) e o resto do mundo como sua periferia (p. 51). A atividade antropolgica
inicia-se com a coleta de informaes e de materiais ao redor do globo, formulando
uma antropologia cujo sentido intelectual vincula-se empresa colonial, assim como
contribui para a imaginao ocidental sobre o outro.
preciso dizer que, mais ou menos at a segunda metade do sculo XX, a
antropologia ocupava-se, preferencialmente, das chamadas sociedades exticas
e/ou primitivas; s depois que passou a voltar seus instrumentos de pesquisa e
suas questes para a alteridade prxima. Ainda assim, conservou certo sabor 7 Estou partindo da proposta de Cardoso de Oliveira (1997), mas entendo a matriz disciplinar como uma articulao tensa de um conjunto de paradigmas constitutivos da antropologia.
33
colonial, uma vez que freqente percebermos que, ao estudar a sociedade dita
complexa, dedicamos ateno aos grupos menores: camponeses, favelados,
pobres, marginais, mulheres, entre outros. A expresso sociedade complexa surge
para marcar uma diferena entre as sociedades tradicionalmente estudadas na
antropologia, as chamadas sociedades primitivas, simples ou sem escrita, e as
do/a prprio/a antroplogo/a. Indica, alm da simples nomeao, um julgamento,
uma qualificao discriminatria, pois a complexidade de qualquer forma social se
impe a toda tentativa de apreenso.
No desenvolvimento desse saber ocidental a respeito do outro, arte e
antropologia conectam-se e se, por um lado, categorias ocidentais do mundo da arte
so usadas para tratar das outras sociedades, por outro, a arte ocidental se serve do
trabalho antropolgico para reorientar e rediscutir suas prprias atividades. Clifford
(1995, p. 260) mostra a intrincada relao entre a descrio e a coleta material que
muitas vezes a acompanha, como uma forma colecionadora que, analogamente,
pode ser aproximada de fetichismo como exibio, uma vez que [e]n Occidente, sin
embargo, la recoleccin ha sido desde hace mucho una estrategia para el despliege
de un sujeto, una cultura y una autenticidad posesivas.
Ao lado das descries e anlises culturais a respeito de outros povos, houve
preocupao varivel e importante com o que chamo de visualidade reveladora
sobre eles. Essa visualidade, por um lado, aparece na coleta de material das
sociedades, na montagem de colees, na exibio de peas (como material
etnogrfico e/ou artstico, pois as categorias podem se confundir) e, por outro, est
envolvida com as tecnologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia e cinema)
que acompanham as atividades do trabalho de publicao e exibio antropolgicas.
34
No desenvolvimento da tarefa observadora da antropologia, com sua nfase
no desenvolvimento do trabalho de campo na primeira metade do sculo XX,
ocorreu o estabelecimento do mtodo denominado observao participante. Foi
tambm quando se constituiu, de modo mais amplo e definido, um tipo especfico de
autoridade etnogrfica, um modo de escrita e registro dos dados obtidos em que
prevalece um estilo de representao legitimado pela idia de que assim, desse
modo, porque eu estive l e pude ver/observar. Esse modo de autoridade
etnogrfica se insinua na forma intensiva do trabalho de campo como norma
metodolgica da antropologia, com sua tcnica correlata de obteno de dados por
intermdio da observao no local (CLIFFORD, 1995).
Se atentarmos para os significados de observar no dicionrio, verificaremos
um destaque para as aes de ver, olhar e espiar. Do latim observare, a definio
cobre, por exemplo, examinar minuciosamente, olhar com ateno; espiar, espreitar;
fazer ver; examinar atenta e minuciosamente e vigiar (HOUAISS; VILLAR; FRANCO,
2001). Chamo a ateno para a interface entre coletar e ver que permeia a prtica
antropolgica. As tecnologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia e cinema)
surgiram e se desenvolveram na mesma poca em que a antropologia comeava a
tornar-se disciplina acadmica, e essa concomitncia histrica vem sendo celebrada
de modo a destacar a habilidade da antropologia captar, descrever e entender,
porque observa. Desse modo, pode trazer o outro para ser conhecido, discutido e
exibido/mostrado. Nessa acepo, a intrincada conexo entre coleo e descrio
(tanto no texto escrito como no visual) vai em direo ao mpeto de figurar e fixar o
outro.
Os aparecimentos da antropologia e das tcnicas de reprodutibilidade da
imagem deram-se juntamente com a expanso da Europa e dos Estados Unidos na
35
explorao de novas reas a serem inseridas nas atividades de mercado. Nesse
processo de partilha e explorao do mundo, todas as sociedades do planeta foram
atingidas. Viajantes, exploradores/as, comerciantes, artistas, naturalistas e
antroplogos/as partiam dos centros europeus e norte-americanos para os quatro
cantos do planeta. A fotografia e o cinema, junto com a antropologia, em uma ao
conjunta, contriburam (e contribuem) para registrar e fixar as singularidades e as
diferenas do outro, as quais, registradas, podiam ser transportadas a fim de
conservar a imagem dessas sociedades.
A necessidade de ver, de observar, correlata de descrever e mostrar.
Vrios dos clssicos em antropologia apresentam, alm das descries etnogrficas,
registros em fotografia e/ou cinema. Como exemplo, destaco as monografias
Argonautas do Pacfico Ocidental (1922), de Malinowski (1978), Os Nuer (1940), de
Evans-Pritchard (1978) e Balinese character (1942), de Mead e Bateson (1976), esta
ltima inteiramente dedicada a revelar, por meio de fotografias, o carter de uma
cultura, de uma sociedade. A edio com fotos, desenhos, ilustraes, fortalece a
autoridade da pesquisa.
Nos trabalhos que a antropologia dedica ao cinema, este tem sido tratado
como instrumento da pesquisa, como modo de chegar ao contexto cultural com o
qual se est trabalhando. Em um texto sobre metodologia e cinema, Ribeiro (2006)
faz um rastreamento dos usos que a antropologia deu e, na maioria dos casos vem
dando, ao cinema, ressaltando trs principais abordagens. Em primeiro lugar, um
estudo do cinema atravs de uma antropologia da produo flmica (RIBEIRO,
2006, p. 4), ou seja, o estudo da produo dos filmes, a abordagem da comunidade
dos realizadores, quem so, o que fazem, o que pensam e como o fazem; de acordo
com o comentrio do autor, essa modalidade insere-se no campo dos estudos
36
antropolgicos de mdia e comunicao de massa (RIBEIRO, 2006, p. 4). Em
segundo lugar, destaca o estudo interessado nos processos de recepo dos filmes,
ou como determinados produtos cinematogrficos so compreendidos socialmente
em contextos especficos, por sujeitos situados em diferentes posies (RIBEIRO,
2006, p. 4); o foco ainda no reside no filme em si. Como terceira possibilidade,
menciona o estudo do cinema atravs de uma antropologia da narrativa e da
representao flmicas (RIBEIRO, 2006, p. 4), em que o filme funciona como uma
base de dados sobre a esfera sociocultural trabalhada pela pesquisa. Lembra o
trabalho sobre a cultura japonesa de Benedict (1997), para o qual a autora utilizou,
entre outras fontes, filmes para tratar do assunto; seu livro, posteriormente, foi
discutido como um esforo de realizao de uma antropologia distncia
(RIBEIRO, 2006, p. 5).
No possvel fazer uma completa separao entre o que ficcional e o que
no . Um exemplo que o primeiro filme etnogrfico assim considerado, Nanook of
the North (1922), foi feito com a atuao de Nanook e sua famlia a pedido do diretor
Robert Flaherty. Assim, pode-se perceber a contingncia e o carter construdo da
etnografia visual. O mesmo j foi dito para o texto etnogrfico. Para Geertz (2002), o
texto produzido em antropologia est mais prximo dos discursos literrios, da seu
carter de convencimento e persuaso, de ficcional, construdo. Na atividade de
criao e produo do filme etnogrfico, as fronteiras entre arte e cincia se
confundem e a caracterstica construda do texto visual e sonoro fica mais evidente.
Gostaria de mencionar, nesse sentido, o filme de 1995, Ykwa, o banquete dos
espritos, dirigido por Virgnia Valado (1995), um documentrio sobre o ritual dos
Enawen Naw, que anualmente reverenciam e homenageiam os espritos com
alimentos, danas e cantos durante sete meses. Ao buscar trazer para a tela o
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complexo ritual, a diretora tratou as imagens, as cenas e a participao dos
Enawen Naw com uma atitude em que a arte se soma ao registro do dado
etnogrfico.
Quanto ao entrelaamento de arte e cultura, a perspectiva de Geertz (1997, p.
13), ao propor tomar os fenmenos sociais colocando-os em estruturas locais de
saber, importante para se pensar, tambm, o cinema. No ensaio A arte como
sistema cultural, Geertz (1997) procede apresentando exemplos relativos a
sociedades e temporalidades distintas: escultores iorub; os Abelan da Nova Guin;
a pintura do quattrocento; e a poesia islmica. Em todos, vai procurar mostrar que a
unidade da forma e do contedo , onde quer que ocorra, e seja em que grau
ocorra, um feito cultural e no uma tautologia filosfica (GEERTZ, 1997, p. 154). Em
sua exposio, o autor mostra a conexo da arte nessas diversas formas sociais
com o modo de ver o mundo entrelaado com os sentidos da prpria arte para os
atores especificados, sejam eles escultores iorub, o sistema da pintura
renascentista ou os poetas islmicos. Para Geertz (1997, p. 179), arte e cultura
relacionam-se porque a participao no sistema particular que chamamos de arte
s se torna possvel atravs da participao no sistema geral de formas simblicas
que chamamos cultura, pois o primeiro sistema nada mais que um setor do
segundo. Assim, a teoria da arte , para o autor, uma teoria da cultura. E, como
recorrente em seus textos, em uma aluso crtica ao que considera ser a maneira
estruturalista de abordagem do social, completa: [...] se nos referimos a uma teoria
semitica da arte, esta dever descobrir a existncia desses sinais na prpria
sociedade, e no em um mundo fictcio de dualidades, transformaes, paralelos e
equivalncias (GEERTZ, 1997, p. 165).
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Ao chamar a ateno para a inter-relao entre arte e experincia cultural, em
que parte do entendimento da obra deve ser endereada ao universo cotidiano em
que os seres humanos olham, nomeiam, escutam e fazem (GEERTZ, 1997, p. 179),
como o autor mesmo esclarece, surge o problema de como comparar diferentes
manifestaes artsticas: o cuidado extremo com essa inegvel vinculao que
obriga a que a comparao entre diferentes sociedades seja feita com cuidado.
Se a proposta de Geertz (1997) conduz a um cuidado no trato da relao
entre arte e cultura, por outro lado, sua insistncia nesta relao tem como horizonte
a noo de contexto cultural. A antropologia tem se constitudo em direo a uma
discursividade que toma o contexto como algo ao qual o trabalho de campo deve
se remeter. Nas tentativas de relativizar as singularidades e as especificidades
culturais, a disciplina corre o risco de atar em demasia uma dada experincia a um
determinado contexto. A importncia do contexto para a antropologia foi tratada e
problematizada por Taussig (1992, p. 44-45):
Thus I want to stress context not as a secure epistemic nest in which our knowledge eggs are to be safely hatched, but context as this sort of connectedness incongruously spanning times and juxtaposing spaces so far apart and so different to each other. I want to stress this because I believe that for a long time now the notion of contextualization has been mystified, turned into some sort of talisman such that by contextualizing social relationships and history, as the common appeal would have it, significant mastery over society and history is guaranteed as if our understandings of social relations and history, understandings which constitute the fabric of such context, were not themselves fragile intelectual constructs posing as robust realities obvious to our contextualizing gaze. Thus the very fabric of the context into witch things are to be inserted, and hence explained, turns out to be that which most needs understanding! This seems to me the first mistake necessary for faith in contextualization. The second one is that the notion of context is so narrow. It turns out in Anthropology and History that what is invariably meant by appeals to contextualize is that it is social relationships and history of the Other that are to form this talisman called the context that shall open up as much as it pins down truth and meaning.
Essa proposta de repensar a noo de contexto deve conduzir a anlise
antropolgica do filme a uma busca das co-implicaes, das interferncias entre
uma ordem e outras possveis, de uma experincia e outra, entre um texto e outros
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textos. Tal preocupao tem implicaes no trato dos filmes que olham o passado
ditatorial, uma vez que articulam uma memria suplementar sobre o passado e, ao
realizar este ato, dialogam com o presente. No h possibilidade de conter o texto
do filme em um nico referente de origem. Tais referentes podem variar desde as
memrias no-oficiais do perodo at os materiais divulgados pela imprensa ou pela
academia, ou ainda as possibilidades so mltiplas e as combinaes tambm
as marcas materiais relacionadas quela experincia. Tampouco possvel remeter
esses filmes apenas ao dilogo que, certamente, mantm com outras modalidades
artsticas. No h uma nica abordagem que anteceda aquilo que foi filmado.
Existem mltiplas facetas que esto em dilogo em cada um dos filmes.
A proposta de Taussig (1992) mencionada envolve repensar tambm as
fronteiras entre o eu e o outro, entre pesquisador e pesquisado, permitindo romper
os limites entre quem olha e quem olhado. Ao buscar uma reconceitualizao da
noo de contexto, evidencia um entrelaamento das mltiplas instncias que
envolvem a vida cultural. A abordagem etnogrfica da narrativa flmica deve voltar-
se para a relao entre o filme e a multiplicidade de instncias envolvidas. Um filme
est relacionado com uma srie ampla de outros filmes; a histria que conta se
insere em um espectro amplo de outras histrias advindas de variadas fontes. Alm
do mais, h uma conexo de influncias entre cinema, TV, Internet, propaganda. A
relao entre filme e literatura outra esfera que mostra as mltiplas conexes do
fazer flmico com a palavra escrita.
As noes de dialogismo e plurilingismo que Bakhtin (2002) desenvolveu
para tratar da estilstica dos romances podem ser aplicadas ao estudo do cinema e
tambm cultura entendida como uma srie de enunciados em constante interao.
Para o autor, o romance uma diversidade social de linguagens organizadas
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artisticamente (BAKHTIN, 2002, p. 74), uma vez que trabalha em seu interior com a
diversidade das falas e dos discursos existentes.
A estratificao interna de uma lngua nacional nica em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jarges profissionais, linguagens de gneros, fala de geraes, das idades, das tendncias, das autoridades, dos crculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulrio, seus acertos) enfim, toda estratificao interna de cada lngua em cada momento dado de sua existncia histrica constitui premissa indispensvel do gnero romanesco. E graas a este plurilingismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semntico, figurativo e expressivo (BAKHTIN, 2002, p. 74).
O cinema narrativo-comercial plurilnge ao articular as instncias, os nveis
e os tipos de uma lngua e tambm um meio artstico que trabalha com a diversidade
de imagens dispostas e propostas por outros meios massivos e artsticos e com a
multiplicidade sonora e musical existente: dialoga com a lngua, a imagtica e a
sonoridade sociais. Stam (2003, p. 226) fala em dialogismo intertextual ao propor a
aplicao da proposta de Bakhtin ao cinema, evidenciando:
[...] as possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das prticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior do qual se localiza o texto artstico, e que alcana o texto no apenas por meio de influncias identificveis, mas tambm por um sutil processo de disseminao.
Assim, dualidades, transformaes, paralelos e equivalncias no so
mundos fictcios, a no ser como construes da antropologia que devem ser
buscadas para tratar da relao entre arte e sociedade e evidenciam-se na extrema
habilidade que a cultura e a arte tm de, em um processo dialgico, construir e, ao
mesmo tempo, ser construdas.
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Encenao
Como discutido por Reis (1988) em um artigo no qual aborda a ideologia do
Estado no Brasil, as definies de nao tendem a mesclar a esfera da autoridade
do Estado e a da sociedade em uma s aliana conceitual. Tal tendncia realaria o
fato de as construes do Estado e da nao serem processos dinmicos que
interagem continuamente com as prticas concretas de classes e grupos (REIS,
1988, p. 188). Tendo em vista esses processos que procuro destacar a dimenso
social da vida na nao. Assim, no estou pensando na nao como totalidade
poltica que se confunde com o Estado-nao, mas entendo que mais apropriado
falar de pertencimentos e diferenas, de socialidade.
No interior das narrativas flmicas, delineiam-se formas mltiplas de construir
noes vinculadas ao social da nao como comunidade imaginada, no sentido que
Anderson (1983) d expresso. Como a nfase do Estado-nao a
homogeneizao das diferenas somos todos um s, uma s lngua, uma s
cultura , conjuntos de feitios e intenes diferentes so agrupados e impelidos a
portar caractersticas gerais que so, em um sentido, uniformizadoras. Como outras
formas narrativas, os filmes podem, em um plano, mostrar-se favorveis
discursividade homognea, repeti-la ou referend-la. Como no h fala sem fissura,
os filmes tambm podem atuar de modo conflituoso com as narrativas ligadas
memria oficial.
Nao pode, ento, ser percebida como lugar de origem, de nascimento, de
memria, espao compartilhado, conhecido: sabem-se seus nomes, os acentos das
falas, as comidas, as cores das gentes. Sentimentos de pertena. Pas, paisagem,
nao, localidade, domus, lar, casa e ptria. Uma estranha sensao de conhecer e,
ao mesmo tempo, estranhar aqueles/as que so do mesmo lugar. Terreno
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artificialmente repartido e delimitado: o que os olhos conhecem como o lugar nem
sempre coincide com as fronteiras polticas dos estados. Quintais, ruas, aldeias, rios,
florestas so repartidos e divididos pelo vetor da nao sob a forma do Estado-
nao.
Nesses espaos, construmos e entendemos partilhar sentidos, gostos,
falares. Pensamos que qualquer pessoa nascida na mesma grande rea um pouco
como ns mesmos porque tambm portadora de certas caractersticas comuns.
Imaginamos e inventamos tradies que so continuamente manipuladas por
diferentes grupos. Nao e ptria: ser que estas noes se equivalem? Nao
como sentimento de estar em casa, de pertencer, provocado por prticas cotidianas.
Essa noo rene ou permite evocar outras: nascimento, ptria, pas, terra-me.
Certos modos e processos identitrios so construdos, certos pertencimentos
evocados, temporalidades vividas.
Algumas implicaes do vocabulrio envolvido mais diretamente com as
noes de ptria, pas e nao podem elucidar aspectos imaginativos em pauta.
Segundo Benveniste (1995, p. 312), o vocabulrio indo-europeu deu origem,
primeiramente, noo de hestia, o lar, tambm chamado domus (casa, no como
edificao, mas em seu sentido social); depois, thmis, como o conjunto de
costumes que constituem o direito, para, a seguir, aparecer a noo de fratria, ou
seja, a reunio de irmos (homens) que se reconhecem descendentes de um
mesmo antepassado, em uma noo profundamente indo-europia de parentesco
mtico. Ao lado da idia de fraternidade que, em um certo sentido, est presente na
noo de nao, h o adjetivo patrius, derivado de pai, vinculando patrius ao poder
do pai em geral. Aproximo ptria e nao para destacar entre essas noes a idia
de coletividade, de socialidade. No entanto, como se reforando um vis que
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encobre a idia de nao como predomnio do poder do pai, no existe um termo
equivalente que seja derivado de me. Tal vis participa das reflexes dedicadas a
analisar a nao e o nacionalismo, como lembra Walby (2000, p. 249): a literatura
sobre as naes e o nacionalismo raramente aborda a questo do sexo a despeito
do interesse geral na participao diferencial dos vrios grupos sociais nos projetos
nacionalistas. Na apreenso do passado ditatorial, discuto as possveis simbologias
que personagens femininas e referncias distintas a homens e mulheres podem ter
nas escolhas em cena.
Origem comum, certa camaradagem e predomnio paterno so algumas das
implicaes contidas nas idias que cercam o sentido dado idia de nao. No
entanto, preciso mencionar que essas implicaes no so totais, pois, ao lado
dessa inflexo, encontramos noes correlatas que carregam outros sentidos. Falo
dos termos lngua materna, ptria-me, terra me, por exemplo, que interagem
com as idias relacionadas ao conjunto da nao. So conotaes ambivalentes: a
referncia me insere noes de pertencimentos, lngua, ptria e terra; as
referncias ao pai, como entrada na regra, na lei, em uma heteronomia. No conjunto
das imagens e sons que os filmes nos trazem, vrios lados de uma mesma idia vo
surgir e, buscando trabalhar com essas tnicas, que a narrativa flmica sobre a
nao, considerada em suas contradies, vai aparecer. Os filmes que tomam a
ditadura como tema falam socialidade da nao e tambm manipulam memrias
muitas vezes em conflito com narrativas oficiais que se aliam nao como fora da
lei homogeneizadora.
Na vivncia da nao, as diferenas culturais e polticas provocam
apropriaes distintas do passado ditatorial. No processo de apropriao do
passado, ocorre uma luta por tornar preponderantes algumas narrativas em
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detrimento de outras. Os muitos grupos da diferena, constitudos segundo variveis
de gnero, idade, classe, etnia, lutas raciais, disporas exercem uma disputa pela
validao de suas narrativas. Nenhum dos grupos homogneo: as questes de
gnero, por exemplo, esto imbricadas em condies de classe e etnia; afiliaes
econmicas implicam modos diversos de viver e perceber as noes raciais;
categorias etrias so valorizadas diferentemente segundo condies econmicas,
tnicas e de gnero. Bhabha (2003, p. 207) discute a importncia da fora narrativa
da nao na projeo poltica em que a diferena requer que percebamos a
ambivalncia como estratgia discursiva:
Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o prprio ato da performance narrativa interpela um crculo crescente de sujeitos nacionais. Na produo da nao como narrao ocorre uma ciso entre a temporalidade continusta, cumulativa, do pedaggico e a estratgia repetitiva, recorrente do performativo. [] O povo no nem o princpio nem o fim da narrativa nacional; ele representa o tnue limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homognea, consensual, e as foras que significam a interpelao mais especfica a interesses e identidades contenciosos, desiguais, no interior de uma populao.
Os jogos de esteretipos das mais diversas ordens e opes poticas no
menos diversificadas compem as narrativas visuais, em uma complexidade
segundo a qual se vo constituindo como comentrios consensuais ou crticos sobre
a ditadura. Desse modo, a multiplicidade de sentidos dos filmes, como textos que se
referem ao passado, envolve-se com discusses de temas voltados aos processos
ps-ditatoriais. A imaginao toma a ditadura por tema para reverberar outras falas,
e me leva a indagar: o que, nos filmes e atravs deles, est sendo ensinado?
Pensando na lngua espanhola, lembremos que ensear verbo empregado para
indicar as aes de mostrar, assim como para ensinar, doutrinar. Essa nuance
relaciona-se com o aspecto pedaggico das narrativas da nao: para o caso em
pauta, aquilo que o cinema mostra (ensea) e coloca em cena, tambm propaga,
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dissemina e ensina. Esse processo acontece via modo de endereamento que,
como sublinhado por Ellsworth (2001), uma estruturao (p. 17) entre filme e
espectador/a, entre o texto de um filme e a experincia do espectador (p. 12).
Quando ressalto o tema da nao, no me refiro aos filmes como narrativas fixas e
fixantes, mas quero destacar os aspectos que concorrem para a constante criao e
recriao de um imaginrio relativo a esses lugares (comunidades imaginadas, de
tradies inventadas).
Anderson (1983) demonstra que as naes so comunidades imaginadas e
lembra ainda que, de alguma forma, toda comunidade o , seja por laos de
parentesco, por descendncia de um ancestral mtico, por creditar uma origem
comum, por entender-se portadora de qualidades que a tornam distinta e peculiar.
Muitas dessas caractersticas se combinam e preciso distinguir o estilo pelo qual
comunidades so imaginadas, o que resulta de uma combinao entre artifcios
imaginativos e estruturas sociais. Anderson (1983) explica que, no caso das naes
modernas, esse estilo pressupe que sejam limitadas, que tenham fronteiras
definidas e guardadas e que sejam soberanas. Alm disso, [] the nation is always
conceived as a deep, horizontal comradeship (ANDERSON, 1983, p. 15-16).
essa caracterstica que me faz associar fratria e ptria, pois entendo que
constituem sentidos que se interconectam no funcionamento da nao. Mas h, ao
lado e no interior dessas caractersticas, convivendo de modo antagnico, outras
esferas, outros modos de relao. Se a nao imaginada, ela o de modo a
articular tensamente alteridades em seu interior.
Anderson (1983) mostra que crenas de origem e evoluo das naes
modernas cristalizam-se na forma de histrias. A nao deve mais a uma unidade
fictcia imposta e que se tornou possvel graas a uma combinao entre
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capitalismo, queda dos reinos dinsticos e crescimento das linguagens vernculas:
What, in a positive sense, made the new communities imaginable was a half-fortuite,
but explosive interrelation (capitalism), a technology of communications (print) and
the fatality of human linguistic diversity (ANDERSON, 1983, p. 46). O sentido de
compartilhar com outros um espao limitado e soberano foi possvel graas ao papel
desempenhado, por um lado, pelos romances e, por outro, pela imprensa, conjunto
que Anderson (1983) chama de print capitalism (capitalismo da imprensa ou
capitalismo editorial8). Ambos permitem experincias de simultaneidade: a leitura
diria de jornais, o conhecimento de tramas e personagens de fico faz com que
pessoas vivenciem simultaneamente experincias dispostas em diferentes locais.
Essa simultaneidade provoca a ocorrncia de um tempo homogneo vazio, a forma
da temporalidade nacional, ou seja, todos em um s.
A leitura de romances e jornais , predominantemente, uma atividade de
certas elites letradas, as quais procuram impor, por meios variados persuaso pela
fora um deles , as narrativas de fundao e de identificao da nao.
Atualmente, formas massivas de entretenimento e mdia, como TV, cinema e rdio,
suplementam ou se adicionam ao print capitalism na formao dos sentimentos de
simultaneidade e pertena. Pode-se, assim, denominar os meios massivos de
disseminao de imagens, histrias e padres comportamentais, que atingem uma
enorme quantidade de pessoas,como media capitalism (capitalismo da mdia).
No caso da formao das naes na Amrica espanhola, que tem
implicaes diretas com esta pesquisa, Anderson (1983) menciona, alm dessas,
8 A expresso de Anderson (1983) print capitalism, difcil de ser traduzida, expressa a idia de que, juntamente com o capitalismo, houve
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