UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
UM CORPO PARA O TRGICO
Corporeidade e Erotismo na tragdia Fedra de Sneca
LEYLA THAYS BRITO DA SILVA
2016
UM CORPO PARA O TRGICO
Corporeidade e Erotismo na tragdia Fedra de Sneca
LEYLA THAYS BRITO DA SILVA
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras, na rea de concentrao Literatura e Cultura, e linha de pesquisa Tradio e Modernidade, sob a orientao da Prof. Dr. Sandra Amlia Luna Cirne de Azevedo.
CDU: 821.124(043) UFPB/BC
S586c Silva, Leyla Thays Brito da. Corporeidade e erotismo na tragdia Fedra de Sneca /
Leyla Thays Brito da Silva. - Joo Pessoa, 2017. 227 f.
Orientadora: Sandra Amlia Luna Cirne de Azevedo. Tese (Doutorado) UFPB/CCHL
1. Literatura Latina. 2. Sneca, Luciu Aneu, 4aC - 65. 3. Corpo Smbolo (Linguagem). 4. Erotismo. 5. Tragdias (Literatura) Interpretao. I. Ttulo.
Esta tese foi julgada e aprovada para a obteno do ttulo de doutor em
letras, no Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal da
Paraba.
Joo Pessoa, 16 de junho de 2017
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Sandra Amlia Luna Cirne
Orientadora
Profa. Dra. Ana Luisa dos Santos Camino
________________________________________________________
Prof. Dr. Romero Jnior Venncio Silva UFS
Prof. Dra. Danielle Dayse Marques de Lima - UFPB
________________________________________________________
Prof. Dr. Abraho Costa Andrade - UFPB
A urgncia de uma necessidade: Aquela de suprimir a ideia e seu mito,
E de fazer reinar, em seu lugar A manifestao dessa explosiva
necessidade: Dilatar o corpo de minha noite interna,
Do nada interno De meu ser Que noite,
Nada Irreflexo
Mas que uma explosiva afirmao:
De que h qualquer coisa a dar espao: O meu corpo.
(Antonin Artaud)
DEDICATRIA
minha v, Quinlia (in memoriam), que inundou minha imaginao
com seus contos e mitos.
AGRADECIMENTOS
Prof. Dr. Sandra Luna, pela formao literria, potica, ertica, enfim, humana, e pelos desafios para uma escrita harmnica, em que o logos e o mythos estejam em equilbrio, e, sobretudo, pelo exemplo da escrita como lugar de afirmao do Eros particular. Prof. Dr. Eunice Simes, por me apresentar a Teoria do Imaginrio, sob um ponto de vista potico e sagrado. Prof. Dr. Neide Miele, pelo referencial acadmico e existencial do sagrado feminino como substncia e alimento.
Ao Prof. Dr. Fabrcio Possebon, pela confiana, pelo ensino do latim, pelos inmeros livros concedidos e pelas palavras amigas.
amiga Gracilene Flix, pelo Eros fraterno de completa dedicao e cuidado.
A Cdric Hello, pelo mergulho ertico, que nutriu parte desta tese.
Ao cl feminino, Marleide Brito (me), pelo aconchego do tero e do colo; Geyziana Brito e Mrcia Brito (irms), pelo amor externado nas discusses e nos carinhos; e Maria Jlia Brito (sobrinha), pela florescncia dos dias.
Dr.a Ivone Vita, guia do retorno e renascimento, para a vida ps-erotismo.
RESUMO
Este trabalho dedicou-se ao estudo da tragdia Fedra, do poeta latino Sneca (sc. I
a.C), tendo como impulso investigativo a descoberta de que o enredo da referida obra
trazia uma matria simblica, que convidava a um olhar para alm da doutrina estoica,
na qual a obra de Sneca se insere, e da tradio crtica que o alijara de uma posio
central na dramaturgia ocidental. Apesar da formao do poeta no Estoicismo e das
suas vrias produes de carter doutrinrio, supomos que a Fedra apresentava
componentes poticos e dramticos que levavam a outra leitura. Tambm na
contramo de uma tradio crtica que menosprezou os valores estticos ultrapatticos
e terrificantes da obra trgica de Sneca, procuramos identificar exatamente nesses
componentes, to atuantes no texto do poeta, a estrutura potica e dramtica da pea
em anlise. Portanto, consideramos que a base mtico-simblica, formuladora de
imagens cruas, passionais e violentas, revelava uma coeso, ainda no vista pela
crtica. A identificao dessa matria particular considerou elementos fundamentais ao
contedo trgico da pea, a relao entre corpo, erotismo e morte e sua poetizao
atravs do signo simblico. Nesse sentido, entendemos que o smbolo o vetor da linguagem da Fedra; a investigao sobre sua natureza, identificada na corporeidade,
pediu a perquirio de uma forma particular de conhecimento, aquele que advm do
corpo. Assim, o termo corporeidade, como totalidade da condio humana, em que
corpo e a mente atuam conjuntamente na elaborao dos saberes, aparece como
conceito terico importante para esta pesquisa. O smbolo como uma linguagem que
advm do corpo, tal como identifica o antroplogo Gilbert Durand, ajudou-nos a
identificar o principal conhecimento da Fedra de Sneca, de que pelo corpo que os
grandes conhecimentos e eventos da vida so formulados.
RESUM
Ce travail est consacr l'tude de la tragdie Phdre, du pote latin Snque (1er
sicle ap J.-C), afin didentifier la matire symbolique dans le noyau tragique de cet
oeuvre. Bien que le pote Snque aie une enorme production de caractre doctrinal
dorientation stocienne , nous supposons que sa Phdre a des lments potiques et
dramatiques qui nous conduisent une autre lecture. Malgr une tradition critique qua
dnigr les aspects ultrapathtiques, des valeurs esthtiques terrifiantes, nous essayons
d'identifier exactement ces aspects comme composants actifs de la structure potique et
dramatique de la Phdre. Par consquence, nous considrons que la base mythique-
symbolique, formulatrice des images brutes, passionnes et violentes, rvle une
cohsion, pas encore vu par la critique. Donc, nous essayons de trouver les concepts
cls du contenu tragique de la pice, dans la relation entre corps, rotisme et mort et
aussi sa potisation travers les signes symboliques. En ce sens, notre recherche
conprend le contenu tragique au niveau de la corporit des personnages. Ainsi, le
terme corporit, en tant que totalit de la condition humaine, dans laquelle le corps et
l'esprit sont impliqus dans le dveloppement des connaissances, apparat comme un
concept thorique important pour cette recherche. Le symbole comme un signe qui vient
du corps, telle que la thorization de l'anthropologue Gilbert Durand, nous a aid
identifier la connaissance principal de la Phdre de Snque: le drame entre l'amour et
la mort a toujour lieu dans le corps.
ABSTRACT
This work dedicates itself to the study of the Senecas Phaedra a tragedy written by the
Latin poet in the 1st century BC. The research has as its investigative urge the
identification of symbolic as the core of the plays tragic plot. Despite the poets
education in Stoicism and his various doctrinal dramatic productions, we assume that Phaedra features poetic and dramatic components that evoke the possibility of a
different reading. Against a critical tradition that underestimated the ultra-pathetic and
appalling components of Senecas tragic work, we try to find in these aesthetic features Phaedras poetic and dramatic structure. Therefore, we consider that the mythic-
symbolic basis, expressed through raw, passionate and violent images, reveals a
cohesion still not seen by critics. Thus, we propose that the relationship between body-
eroticism-death and its poetization through symbolic signs constitute the fundamental
elements of the plays tragic content and structure. In this sense, this research identifies
the tragic in the characters corporeality. Consequently, the term corporeality, as a
totality of the human condition in which body and mind are involved in the development
of knowledge appears as a fundamental theoretical concept. The symbol as a sign that
emerges from the body, as proposed by the anthropologist Gilbert Durand, serves to recognize that the Senecas Phaedra implies in its composition uninterrupted drama between love and death affecting the body and the whole of human existence.
SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................12 I CORPO E CONHECIMENTO...............................................................................19
1. Corpo X Alma.......................................................................................................22 1.1. Corpo e conscincia na mitologia grega........................................................22
1.2. Lgos x corpo no pensamento platnico.......................................................25
1.3. Corpo, imaginao e entendimento no pensamento aristotlico...................31
1.4. Uma Fenomenologia do corpo.......................................................................39
1.4.1. A fenomenologia transcendental de Husserl..................................................42
1.4.2. Merleau-Ponty: corpo, luz natural e verbo......................................................49
2. Smbolo no Corpo: a teoria do imaginrio de Gilbert Durand........................66 2.1. A Hermenutica Simblica: para uma definio do smbolo.........................69
2.1.1 O Smbolo no Contexto Sagrado: o conceito de hierofania em Mircea Eliade........................................................................................................................70
2.1.2. O smbolo no universo dos sonhos.................................................................73
2.1.3. O smbolo na imaginao potica...................................................................74 2.2. O smbolo como Signo.......................................................................................76
3. Smbolo e trajeto antropolgico.........................................................................84 3.1. Os gestos dominantes................................................................................................................84
3.2. A organizao das imagens: as estruturas do imaginrio e seus
Regimes....................................................................................................................90
3.3. Por um mtodo mtico-cientfico: a itodologia.....................................................93 3.4 O imaginrio e a integralidade do ser.................................................................99
II. O EROTISMO E O TRGICO.............................................................................103 1. Um rendez-vous com o Erotismo...................................................................103
1.1. O Profano e o Sagrado na Experincia Ertica............................................105
1.2. Freud e as pulses de vida e de morte........................................................110
1.3. Erotismo e morte: descontinuidade e continuidade do ser..........................115
1.4. Erotismo, uma experincia interior.............................................................123
1.5. Interdito e Transgresso.............................................................................127
1.5.1. Os interditos ligados morte ............................................................. 131
1.5.2. Os interditos ligados reproduo .................................................... 132
1.6. Erotismo e Transgresso..............................................................................134
2. Tragdia ou o ritual de Eros........................................................................140
2.1. A tragdia: forma e contedo.............................................................140
2.2. Filosofia do trgico.............................................................................152
2.3. O erotismo como fenmeno trgico...................................................161
2.4. Erotismo e tragdia............................................................................167
III. A TRAGDIA DE SNECA: Erotismo e Crueldade............................................173
1. Sneca e o teatro da carne.........................................................................173
1.1. A mimesis do monstruoso humano.........................................................177
1.2. Carne crua ou o teatro da crueldade.......................................................185
1.3. Corporeidade e Erotismo..........................................................................190
2. Fedra: um corpo para o trgico..................................................................192
2.1. A mulher est condenada a amar...........................................................192
2.2. O mito de Fedra ..................................................................................... 196
2.3. Enredo da Fedra .................................................................................... 198
3. Uma mitocrtica da Fedra de Sneca ....................................................... 200
3.1. O dardo e a espada: Arma guerreira ou arma ertica? ......................... 201 3.2. O amor no corpo ou o furor ertico ........................................................ 207
3.3. Corpo e Sacrifcio: a morte inicitica de Hiplito .................................... 226
3.4. O nos da Fedra ................................................................................... 235
IV. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 237 V- REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................. 245
12
INTRODUO
A investigao que constitui este trabalho foi motivada pelo desejo de
compreender a particular modelagem ertica e mtica dada ao mito da herona
grega Fedra, na tragdia homnima, escrita pelo filsofo estoico e poeta latino
Sneca, no sculo I a.C. A imagtica da pea Fedra, permeada por um tom
terrificante, fantasmagrico e onrico, incitou o estudo dos signos mtico-
poticos que pareciam se contrapor, numa certa medida, ao discurso estoico-
moralizante j notrio na obra de Sneca.
Como se sabe, a produo filosfica senequiana uma das principais
propagadoras do Estoicismo, na Roma imperial de Cludio e Nero. Em funo
disso, sua tragediografia terminou por ser considerada, por parte da crtica,
como tratados filosficos guisa de dramas. Ao se refletir sobre a escolha de
Sneca pelo gnero trgico, enquanto uma das formas literrias a que se
dedicou, foi-se motivando, por um lado, a questionar essa superioridade do
discurso doutrinrio em relao a um gnero literrio, cuja composio
marcada por um ato de transgresso humana e seus desdobramentos
trgicos1. Por outro lado, a caracterstica majoritariamente simblica da
potica de Sneca leva a uma certa dificuldade na apreenso de categorias
fundamentais ao gnero dramtico, tais como as noes de enredo e ao.
Uma definio limitada dessas categorias ver, nas peas senequianas,
apenas um aglomerado de imagens dispersas, contraditrias noo de
unidade de ao, to cara aos estudos do drama. Diante dessa dificuldade,
optou-se por investigar a possibilidade de uma unidade dramtica, em que
enredo e ao adquirem um tom particular, a partir do substrato dos smbolos
mticos e poticos constitutivos da Fedra. Uma vez que se suspeitou de que a
linguagem simblica e suas relaes com a corporeidade so as linhas de
fora de sua potica, parece indispensvel uma investigao sobre a questo
da corporeidade e suas elaboraes de significados na estrutura dramtica da
pea.
Para alcanar tal compreenso, no primeiro captulo, ser feita uma
leitura da tradio filosfica ocidental, tendo como ncleo de investigao a
1 Potica hybris
13
relao entre corpo e conhecimento. Ao longo desse percurso, identifica-se
que a constituio do pensamento filosfico, com Plato, deu-se a partir de
uma separao entre corpo e alma. A tentativa platnica de definir o que o
conhecimento elege os componentes do logos, o raciocnio e o pensamento,
como os nicos capazes de alcanar a verdade, o ser. As sensaes
corporais, sendo a forma de primeiro contato com o mundo fenomnico, so
imediatas, precipitadas e, por isso, podem confundir o logos. Assim, o corpo,
imerso no mundo contraditrio dos fenmenos, no poderia favorecer a
apreenso das ideias eternas.
Contudo, os avanos alcanados por Aristteles garantem o lugar do
corpo na constituio do conhecimento racional, ao dar destaque
imaginao, como primeiro passo decisivo para a formao das abstraes
formuladas pela inteleco. Segundo Aristteles, a imaginao est
diretamente ligada percepo, e seu procedimento, no percurso cognitivo,
converte esse contato do corpo com o mundo em signos imagticos. As
imagens elaboradas impulsionam o percurso notico para as elaboraes
refinadas do intelecto.
Assim, identificadas as duas principais vias de apreenso da relao
entre corpo e pensamento, ser visto por que a tradio filosfica ocidental
termina por afastar o corpo dos aspectos racionais e espirituais da psique.
Como se partir do pressuposto de que a mimesis da Fedra senequiana traz
conhecimentos da ordem da imaginao simblica e suas razes corporais,
buscar-se- compreender, a partir da fenomenologia da percepo de
Merleau-Ponty, como se d esse processo notico, em que o corpo aparece
como agente decisivo na constituio do conhecimento humano.
Para tanto, procurar-se-, primeiramente, entender em que consiste a
epistemologia fenomenolgica. Portanto, a leitura sobre o conceito geral do
mtodo fenomenolgico, definido por Hurssel, faz-se necessria, para que,
enfim, possa-se alcanar a nosis corporal, discernida por Merlau-Ponty, no
seu livro Fenomenologia da Percepo. Com Hurssel, ser identificada uma
nova crtica filosofia do conhecimento. Em vez de se considerar as razes
puras como as verdades universais, s alcanadas pela inteleco, a crtica
fenomenolgica entende que o conhecimento se d na relao do cogito com
14
um algo cogitato, isto , o conhecimento tem suas origens na vivncia
espontnea do sujeito com os objetos, a qual configura a intuio emprica,
que aparece como raiz de nossas elaboraes cognitivas.
Mediante a proposio de que o conhecimento tem origens na
intencionalidade, isto , na abertura e disposio do sujeito para o objeto, a
teoria de Merleau-Ponty surgir como um aprofundamento da noo
hursserliana de que o conhecimento se opera a partir de nossas experincias
imediatas e das elaboraes intuitivas. Logo, Merleau-Ponty ser aqui
utilizado para esclarecer a relao do sujeito-encarnado com o mundo, na
medida em que o corpo e suas elaboraes sensveis e perceptivas
constituem o ncleo da investigao do filsofo para estabelecer um novo
conceito de conhecimento, que ser a noo de corporeidade.
O conceito de corporeidade, que prope a integrao entre corpo e
inteleco, refuta a dicotomia clssica corpo-alma e reconhece que o
conhecimento humano, em sua integralidade, acolhe camadas de significao
inapreensveis pelo lgos. Diante disso, os signos simblicos aparecem como
uma tentativa de exprimir, atravs da(s) linguagem(s), os significados ligados
cogitatio corporal.
A partir do conceito-chave de corporeidade, intentar-se- uma reflexo
sobre o smbolo, como orientador das linguagens que buscam alcanar essas
dimenses pr-reflexivas e gensicas do conhecimento. Para tanto, ser
eleita a teoria do imaginrio de Gilbert Durant, a qual se revela mais
abrangente, na medida em que, partindo de uma perspectiva antropolgica,
associa a disposio visceral humana ao smbolo na produo de sentidos
culturais. A amplitude de tal teoria se verifica pela conduo epistemolgica
que Durand utiliza para alcanar suas categorias tericas, as quais tero
como esqueleto estruturante o prolongamento de gestos fundamentais do
desenvolvimento corporal e psquico humano ao meio cultural. Tal
prolongamento se opera, primeiramente, a partir da criao de utenslios e
ferramentas de trabalho, sendo essa transitividade corpo-instrumento um dos
primeiros passos de desenvolvimento da cultura humana. Assim, a criao
das tcnicas de trabalho ser produzida graas doao de significados
15
formulada pelo homem aos seus gestos corporais e sua interferncia no
mundo natural. Assim, a criao do objeto de trabalho ser um dos pontos de
abertura constituio da conscincia, que tira o homem de uma condio de
imanncia absoluta com a natureza, para uma postura de distanciamento
desta, tendo aqui os esboos do desenvolvimento da categoria do sujeito. A
identificao desse processo de prolongamento dos gestos do corpo para o
desenvolvimento das tcnicas de trabalho resultar na elaborao de um
conceito fundamental teoria do imaginrio, o trajeto antropolgico, o qual
estabelece as linhas de fora do imaginrio. Assim, o imaginrio humano se
estrutura a partir das trocas entre os imperativos pulsionais psicofsicos com o
meio social. Esse trajeto dos gestos em direo ao mundo estabelece o
processo de elaborao das imagens como primeiro passo das elaboraes
sgnicas da cultura, os signos primitivos, aos quais d-se o nome de smbolo.
Diante dessa constatao, Durand, tentar investigar as estruturas
biopsquicas que iro engendrar os smbolos. Suas investigaes partem de
uma busca por protocolos normativos que determinam a organizao das
estruturas do imaginrio. Tais estruturas sero discernidas a partir de uma
recolha das vrias imagens simblicas reincidentes nas narrativas fundantes
de todas as culturas, o mito. Ao identificar algumas repeties imagticas em
vrios mitos, Durand define grupos de classificao das imagens,
considerando suas razes corporais como ponto de partida para tal
categorizao.
Logo, Durand agrupa essas imagens em dois regimes, o diurno e o
noturno. Como o mito, enquanto narrativa gensica das culturas, trata da
relao do homem com as divindades, a definio desses regimes resulta na
anlise de vrios sistemas sociorreligiosos, os quais Durand divide,
basicamente, em dois grandes ncleos, o uraniano ou celeste-solar, e o
ctnico-lunar. Enquanto os deuses relacionados ao grupo uraniano orientam o
homem para uma transcendentalidade de iluminao e combate armado
contra a condio de mortalidade, o ncleo ctnico, ligado dimenso da
terra e s trevas noturnas, enfrenta a mortalidade, a partir de uma potica de
eufemizao dos seus horrores. Definidas as dinmicas de cada regime do
imaginrio, na elaborao das imagens simblicas, determina-se, portanto, o
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instrumental terico de investigao das energias simblico-poticas do texto
da Fedra de Sneca.
Tendo em vista que a forma potica da pea estudada tem como
matria conteudstica a entrega da mulher ao desejo ertico, como motivo do
trgico, tenta-se, no segundo captulo, uma definio substancial de tal tema
e suas articulaes com a noo de trgico. A leitura do imaginrio revela que
a conscincia de mortalidade teria impulsionado o homem a criar signos
doadores de sentido ao no-ser inapreensvel da morte. A experincia sexual,
diante dessa constatao de finitude da vida, adquire um valor existencial que
resultar no erotismo, enquanto transformao de um gesto animal, o coito,
em elaboraes humanas de sentido vida. Assim, o coito, sendo o ato de
gerao da vida humana, transmuta-se em matria psquica de
problematizao da condio de morte. A partir dessa constatao, o filsofo
francs George Bataille define o erotismo como uma experincia interior,
psquica, que tem como motor o questionamento da organizao da vida e
sua relao com a morte.
Para a leitura dessa abstrao do ato sexual, promovida pela psique
humana, Bataille investiga as razes biolgicas do erotismo, identificadas na
unio
sexual. Prximo da leitura de Gilbert Durand sobre o imaginrio, o erotismo
batailleano provm de gestos fundamentais celulares, cuja dinmica se d
pela unio dos gametas masculinos e femininos, que perdendo sua forma
individual, fundem-se para a gerao de uma nova vida. Dessa fuso, Bataille
considera a instncia de morte, isto , da diluio das individualidades
celulares numa continuidade informe, agenciadora do processo de surgimento
da vida. Desse modo, nas bases da procriao sexual haveria instncias de
morte como movimentos vitais.
A dimenso biolgica do ato sexual e do processo de fencundao
promover o prolongamento dessa experincia genuna de criao da vida
para as bases psquicas humanas de formulao de significados. Assim, o
erotismo, oriundo da sexualidade, no se reduz a ela, mas constitui a postura
espiritual humana diante da vida e sua imbricao na morte. Essa converso
de um gesto gensico da vida numa base psquica ser uma das linhas de
17
fora de constituio da cultura. Diante disso, o ato sexual e a morte estaro
no ncleo das principais preocupaes humanas na organizao de seu
mundo civilizado. Na tentativa de preservar a vida e estabelecer regras de
sobrevivncia, ser preciso cercear as pulses sexuais, uma vez que elas tm
ligao direta com a morte.
Contudo, esse mundo organizado de preservao das formas
individuais inquietante, porque constrange as razes gestuais da
sexualidade, a qual se processa na fuso entre vida e morte celular. Assim,
esse constrangimento, sobretudo da dimenso de morte, leva experincia
ertica, como busca interior de afirmao da vida na morte. O ser humano,
vivendo o erotismo, angustia-se com as condies de constrangimento da
vida regulada e busca uma nova vida a partir de instncias de negao da
condio anterior, promovendo instncias de aniquilao e morte.
O trgico surge, portanto, nesse embate fundamental entre o mundo
formal e organizador da vida e a anarquia destrutiva e transformadora do
erotismo. Destarte, identifica-se, com a filosofia do fenmeno trgico, que tal
fenmeno diz respeito condio da existncia humana. Enquanto uma
categoria filosfica, o conceito de trgico apresenta a situao do homem no
mundo, que tem por base o conflito entre a preservao da integridade da
vida, a qual se sustenta no sistema organizacional da cultura e o desejo ou as
pulses, que vo de encontro manuteno desse mundo, sendo a
conscincia de morte a fonte desses questionamentos. Ento, o erotismo,
fundado no mesmo conflito entre vida e morte, constitui uma experincia
mobilizada por esse drama fundamental.
Como o conceito de trgico tem como essncia os efeitos conflituosos
da conscincia de morte sobre o homem, a tragdia, sendo a manifestao
artstica desse conflito existencial, forja uma experincia ficcional que discute
essas realidades. Ao entender-se que o erotismo constitui um dos percursos
trgicos fundamentais vida humana, prope-se a investigar, no universo da
Fedra, a conjuno de suas razes somticas com as elaboraes sgnicas do
texto literrio. Aps a verificao de que toda forma de conhecimento tem,
como base, as articulaes entre corpo e pensamento, o estudo dos
smbolos, pela perspectiva durandiana, fez-se indispensvel para nossa
interpretao do sentido de trgico ertico veiculado na pea.
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Toda essa articulao terica entre erotismo e imaginrio tem como
finalidade a investigao dos smbolos poticos da Fedra, a qual ser feita
pela busca das dimenses somticas que o texto apresenta e sua reverso
em signo potico, para, a partir da, compreender-se o trgico potico da pea
e a ao dramtica subjacente no tecido simblico.
19
CAPTULO I
CORPO E CONHECIMENTO
A mitologia uma cano, a cano da imaginao inspirada pelas energias do
corpo. [Joseph Campbell]
Diante da escrita potica e inspiradora do opsculo de Stanley
Keleman Mito e Corpo: uma conversa com Joseph Campbell (1999), houve o
confronto com a materializao de uma intuio que se formulara nas
pesquisas sobre as tragdias de Sneca, em que o corpo dos heris trgicos
parecia ser o halo que iluminava o complexo mtico tecido pelo tragedigrafo
romano, cujas tragdias esto plenas de corpo, carne, vsceras e sangue.
Portanto, a identificao com o sentido de trgico visceral de Sneca,
clarificada com as insinuaes e sugestes presentes em Mito e Corpo,
inspirou a feitura deste captulo.
Keleman, fundador da Psicologia Formativa, prope como tese os
processos biossomticos como emoldurantes de vrios aspectos da
existncia humana, pondo em xeque a dicotomia alma-corpo. Em uma
parceria de quinze anos com o mitlogo americano Joseph Campbell,
Keleman agregou o conhecimento mtico como suporte metodologia
somtico-emocional da psicologia formativa, de modo que o mito teria como
funo colocar a experincia em histria, porque as histrias so
organizadoras da experincia corporal, das maneiras de moldar a ns
mesmos como indivduos. Apesar de uma longa tradio que subestimou e
deslegitimou as potencialidades da imaginao mtico-somtica no ser
humano, h que se considerar que estudos como os de Keleman e Campbell
apontam para as novas abordagens que reconhecem o valor cognitivo do
pensamento mtico, no qual so gerados conhecimentos to importantes
quanto os promovidos pelo pensamento lgico-racional.
Considerando-se que o conhecimento, grosso modo, d-se pela
elucidao e apreenso de uma realidade a partir de uma determinada
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linguagem, os mitos ancestrais, buscando conhecer (latim: gnoscere2) os
mistrios das origens e dos tempos primordiais, possibilitam instncias de
cognoscibilidade, atravs de sua estrutura narrativa. Assim, a partir de uma
sistematizao de ideias operadas pelo fio do discurso, o texto mtico d
forma a realidades afetivo-corporais que no se acomodam facilmente dentro
de uma discursividade lgico-racional.
A palavra mtica, ao elucidar tais realidades misteriosas, configura-se
como uma gnosis, no sentido de um conhecimento ligado ao inefvel que,
essencialmente, diz respeito ao sagrado ou numinoso, no sentido proposto
pelo telogo alemo Rudolf Otto3. Supe-se que o mito pe numa ordem que
lhe prpria experincias fundadas nos afetos e no corpo, ligadas ao
numinoso. Ter de se presumir com essa reflexo que a linguagem mtica
constitui-se, por um lado, de uma certa esquematizao intelectiva afervel
pelo entrecho narrativo, forjado a partir de determinadas relaes causais a
que a lgica discursiva submete os eventos mticos e, por outro lado, de
componentes da ordem do sensvel. Essa conjectura parte, na verdade, do
pressuposto das estruturas e experincias somticas como participantes, no
apenas do pensamento mtico, mas de toda a rede de sentidos que erige as
experincias humanas e suas produes culturais, na medida em que o
homem um ser inescapavelmente corporificado. Sob essa tica, os
contedos mticos seriam, portanto, provenientes de um princpio de
mediao entre corpo e pensamento, a partir de uma certa cumplicidade
entre as manifestaes sensveis e as percepes promovidas pelo corpo
fsico e as estruturaes do cogito para, ento, compor-se uma determinada
ordem de conhecimento. Nesse sentido, uma abordagem pela corporeidade
que valorize os componentes da percepo e das sensaes na formulao
2 Do lat. gnosco, palavra proveniente do grego (gignosko), que significa, de acordo
com o dicionrio Anatole Bailly, conhecer, dar uma opinio, celebrar, cantar. Da se
entende a gnosis mtica como um canto sagrado, considerando-se que o ato de cantar primordialmente est atrelado celebrao dos deuses ou a uma interveno mgica. 3 Em seu livro O Sagrado, Rudolf Otto cunha o termo numinoso em substituio ao termo sagrado, o qual j estaria encoberto por atributos morais das doutrinas religiosas que incluem a noo de bem absoluto. O numinoso (do latim numen + omen presena divina e augrio ou pressgio positivo ou negativo, respectivamente) implica aspectos que abarcam tanto os significados morais posteriores a que o termo foi submetido, como acolhe, sobretudo, um sentido mais primitivo, irracional, que nada tem a ver com o conceito de bem, mas que, mesmo assim, constitui como que a alma das religies.
21
do conhecimento reconhece no mito sua atuao permanente no espao
humano. No ser mais como uma sorte de pensamento falso e ingnuo de
uma conscincia primitiva que, ao longo dos sculos de entronizao da
razo, foi desvalorizada e inferiorizada por abordagens reducionistas que a
conceberam como um estgio de limitaes e de insuficincia racional, mas
como agenciador de um conhecimento que visa integralidade corpreo-
espiritual humana.
Numa tentativa de elucidar as instncias de conhecimento promovidas
pela corporeidade, confrontou-se com conceitos e reflexes que tm uma
longa tradio crtica e filosfica, da qual no se pode prescindir, a comear
do prprio termo corporeidade, que se situa entre aqueles vastos conceitos,
os quais, na falta de uma diretriz analtica, terminam por nada significar ou, do
contrrio, por fomentar noes cristalizadas e reducionistas que engessam a
prpria vastido do conceito. Assim, no parece difcil perceber o risco de se
cair numa aporia terica entre a necessidade de amplitude e de preciso de
um dado conceito. Diante disso, o excurso em torno desse conceito confronta-
se com a necessidade de delimitao, a qual se supe encontrar nas
diretrizes das discusses em torno do simbolismo fisiolgico-mtico
desenvolvido na Teoria do Imaginrio do socilogo e antroplogo francs
Gilbert Durand (1921-2012), que buscou determinar um esquema de
compreenso do trajeto antropolgico da cultura ocidental afervel por
espaos e produes artsticas, literrias, sociais, econmicas, polticas etc.
Para Durand, o imaginrio o conjunto das imagens e das relaes de
imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens e o grande e
fundamental denominador onde se encaixam todos os procedimentos do
pensamento humano.4 Portanto, a dinmica da imaginao, em sua
composio de imagens, apresenta um mundo particular, que, segundo
Durand, deve ser entendido dentro da semntica do smbolo. O mito entra
nessa teoria como o produto final das estruturas imaginrias, enquanto
combinao discursiva das imagens e dos smbolos, de sorte que, se o
4 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 18.
22
imaginrio o manancial de todas as instncias do pensamento humano, o
mito deve ser encarado como um discurso genuno e diuturnamente atuante.
Considerando-se que os termos imaginrio, imaginao, imagem,
smbolo e mito constituem as bases da teoria de Durand, v-se um
vocabulrio vasto e complexo diante do qual no se pode perder de vista a
necessidade de elucidao desse conjunto de termos, a comear dos
conceitos imagem e imaginao, desenvolvidos numa ambincia de
censura forjada pela tradio filosfica que embalou uma desmitologizao
do pensamento ocidental. Portanto, h que se percorrer algumas discusses
importantes em torno do que se entendeu como razo e verdade para se
compreender as fontes filosficas da dicotomia corpo-alma. S assim se
chegar com maior clareza ao entendimento mtico, enquanto gnose do
corpo, e preciso dessa nova epistemologia que vislumbra no conhecimento
corpreo-mtico uma das competncias fundamentais do homem.
1. Corpo x Alma
1.1. Corpo e conscincia na mitologia grega
Nas narrativas mticas gregas, a relao entre corpo e conscincia
constituiu-se, como se pode verificar na da poesia homrica, num estado de
imbricao e interdependncia absolutas. A relao entre a identidade
pessoal do heri e sua existncia corporal apresenta uma noo da existncia
humana como que constituda numa espcie de unidade entre a pessoa e a
phsis.
Prova disso verifica-se no pensamento homrico acerca da morte em
suas narrativas sobre o alm, as quais apontam para uma dominncia ou
centralidade das instncias do corpo vivo sobre o aparato psquico. No canto
XI da Odisseia, ou o livro da catbasis, Odisseu precisa sacrificar dois animais
de cor negra para que o sangue seja bebido pelos mortos, sendo condio
nica para que estes recuperem a conscincia. Apenas com a energia
proveniente do sangue ainda quente da vtima sacrificial, os mortos, que so
em Homero sombras (eidolons) sem conscincia, saem desse estado de
23
letargia do pensamento (nema), recuperando, ento, suas faculdades
espirituais, como a memria, a linguagem e o poder de reflexo. Na verdade,
como nos informa Andr Simha (2009), essa recuperao do ato de pensar
ocorre graas ao retorno da sensibilidade corporal, que aparece sob o
conceito grego de thymos, termo que se acha na Odisseia para designar o
princpio que mantm a alma (psych) no corpo, princpio que anima o
corao e os rgos dos sentimentos (diafragma e vsceras).5 A energia vital
que liga o corpo e a alma est no thymos que, ao se esgotar, faz do corpo um
soma (cadver) e da psych, desligada da carne, uma sombra do corpo sem
as faculdades pensantes.
Termos como thmos e soma, nous e psych sinalizam uma
diversidade do lxico grego em torno da realidade corprea e imaterial do ser
humano. O vasto vocabulrio da lngua grega no que diz respeito realidade
corprea parece estar eclipsado ou reduzido em uma dimenso mais
propriamente carnal e orgnica quando se vale apenas do termo vernculo
corpo para traduzi-la.
No por acaso que a identidade e o destino dos heris homricos
conectam-se diretamente com sua condio corporal. Prova disso o fato de
que alguns nomes prprios ou eptetos que indicam uma caracterstica fsica
marcante do heri tambm aludem, por vezes, atuao e ao destino
heroicos. Um dos eptetos mais importantes atribudo a Aquiles na Ilada
ilustra bem essa relao da condio fsica do heri com o seu destino
pessoal, a saber, o de ps ligeiros. Conhecido por ser imbatvel nas
corridas, Aquiles, entretanto, carrega uma vulnerabilidade em seus geis ps,
que, ao nascimento, foram a nica parte do corpo a no receber as guas
imortais do rio Estige. Com se sabe, a deusa Ttis, na tentativa de imortalizar
o filho, banhara o beb no rio da imortalidade. Contudo, num lapso que seria
fatal para Aquiles, a deusa segurara seu filho pelos calcanhares, de forma
que estes se tornaram o ponto de mortalidade do guerreiro. Com o epteto o
de ps ligeiros, Homero localiza a aptido e excelncia fsica de Aquiles
5 SIMHA, Andr. A conscincia, do corpo ao sujeito anlise da noo; estudo de textos:
Descartes, Locke, Nietzsche, Husserl. So Paulo: Vozes, 2009, p.20.
24
sobre o ponto mais vulnervel do heri, que, ironicamente, morrer com uma
flechada desferida em seu calcanhar pelo prncipe troiano Pris.
Ainda considerando a estrutura corporal do heri grego e a irrupo do
seu destino, o nome do rei dipo ( o de ps inchados) tambm se
apresenta em conformidade com sua atuao heroica e, at se poderia supor,
numa dimenso ainda mais complexa, em que corpo, divindade e intelecto
encontram-se de tal forma atrelados, que se faz imprescindvel avaliar as
camadas de sentido desses tais ps inchados. Para alm da marca fsica
que sinaliza o beb que teve os ps agrilhoados, os quais serviro,
posteriormente, na tragdia de Sfocles, como um componente de
reconhecimento do filho-marido por Jocasta, o enigma da esfinge desvendado
por dipo, o tirano coxo, no por acaso, constitui-se de um campo
semntico em que a prpria condio fsica do heri est aludida. pergunta
da esfinge Qual o ser que anda, pela manh, em quatro ps, ao meio-dia,
com dois e, tarde, com trs?, tem-se como resposta o ser humano, na
medida em que este engatinha quando beb, bpede na vida adulta e na
velhice vale-se de um terceiro p, que seria uma metonmia para bengala.
No parece difcil aferir que dipo, em seu nome, j carregava algo do
enigma esfngico. A presena da questo dos ps e da locomoo na
pergunta da esfinge e no nome do heri constitui uma rede de sentidos to
imbricada que motiva uma suposio de que o nome de dipo o capacita para
descobrir o enigma, tendo em vista que os ps podem possuir relevncia
fsica e intelectiva na constituio do heri. A natureza corprea dos ps,
atrelada a estruturas de pensamento de dipo, talvez o habilite ou o
predestine para o alcance do raciocnio que desvendar o mistrio da esfinge.
Com isso, fica patente que, no mundo mtico, pelo menos entre os
gregos, a conscincia e o corpo unem-se para compor a integralidade dos
sentidos e ensinamentos que os mitos apresentam acerca da condio
humana. A partir das narrativas sobre os heris, tais ensinamentos apontam
os perigos da ao do homem vista sob o ngulo da posio limtrofe desses
grandes personagens, que, agindo sempre entre o divino e o humano,
mostravam os excessos das aes que punham em evidncia ou
questionavam noes de limite e interdito. Desse modo, como acertadamente
25
disse Jean-Pierre Vernant, a empresa heroica condensa todas as virtudes e
todos os perigos da ao humana (...), assim os gregos exprimiram sob a
forma do heroico os problemas ligados ao humana e sua insero na
ordem do mundo.6
1.2. Lgos x corpo no pensamento platnico
A tradio da filosofia ocidental postulou a separao mente e corpo no
mbito da noo do conhecer, enquanto encontro com a verdade que no
se deixa arrefecer pelas falsas impresses do mundo sensvel. Todos os
homens, por natureza, desejam conhecer. Essa afirmao de Aristteles, que
consiste na primeira frase do tratado da Metafsica, aponta para uma das
principais reflexes que constituram a histria do pensamento ocidental: a
investigao sobre o conhecimento como mtodo necessrio formulao
dos conceitos filosficos. A tentativa por definir e distinguir o ser humano dos
demais seres vivos levou, desde o princpio da histria da filosofia, eleio
das faculdades de inteleco como sendo o que, de fato, prprio do homem.
Graas sua racionalidade, esse ser que pensa, que tem ideias, que analisa
e que, por isso, produz conhecimento seria,
por definio, um animal que se conduz em funo do saber, ou mesmo o
animal racional por excelncia. Contudo, a partir do momento em que
ocorrer a entronizao das faculdades cognitivo-racionais em virtude da
ascenso do logos filosfico na antiguidade grega, produzir-se- uma
resistncia entre as correntes filosficas em considerar outras realidades
cognitivas do homem, como as disposies sensveis e imaginativas.
Se o homem, como afirmou Aristteles, possui um desejo natural por
conhecer, a vida humana parece pautar-se por um esforo permanente em se
atribuir significados multiplicidade e contingncia das coisas. No parece
ilegtimo conceber que o concurso da vida humana d-se, desde sempre, em
funo do conhecer. Paulatinamente, as condutas de autopreservao
desenvolvidas pelo animal humano passaram a operar-se sistematicamente
6 VERNANT, J-P. Mito e Pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p, 432.
26
pela via da compreenso terica do meio. Desde as formas iniciais de
inteleco sobre a existncia, consideraram-se aqui os mitos como um desses
gneros primordiais de esclarecimento. At nas especulaes tericas da
filosofia e das cincias, o acordo do homem com o mundo passa pela
tentativa permanente de imprimir sentidos a uma natureza muda e opressora
e de, portanto, reconstru-la sob o signo da cultura. Se levado em conta que
o homem detm uma conduta natural ou pulsional por nomear, significar e,
enfim, conhecer, cabe considerar quais so as formas e os meios de criao
de sentidos que constituem esse percurso antropolgico por apreender e
construir saberes.
Com a insurgncia da filosofia grega no sc. VI a. C, preconizou-se o
logos racional como o vetor principal do conhecimento em detrimento dos
esquemas de percepo e elaborao sensveis e simblicos do mythos, cuja
funo explicativa e educacional, na Grcia antiga, ser questionada e
substituda pelo logos filosfico. Como informa Arthur Giannotti7, a racio grega
se opera fundamentalmente pelo questionamento em funo de se verificar
outros pontos de vista, numa conduo dialgica que d a ver as
ressonncias do sentido de democracia na cultura da plis. Questionar o que
est posto como verdade, isto , a palavra mtica, o passo decisivo para a
formulao do pensamento filosfico grego.
As duas diretrizes da cognio, inicialmente classificadas por Plato
como conhecimento sensvel e conhecimento inteligvel, so tomadas como
polos em que se produzem as operaes de relao do homem com o
mundo. No entanto, ambas as dimenses foram apreciadas, desde a filosofia
antiga grega, numa atmosfera cambiante entre conflitos e acordos tericos,
promovendo assim a antiga dualidade ocidental corpo-alma, que, no campo
da filosofia, resultar ora na separao ora na comunho entre sensibilidade e
conhecimento. De fato, poder-se-ia dizer que a relao ou contradio entre a
sensibilidade e o inteligvel constitui um dos pilares do pensamento ocidental.
Em seu dilogo intitulado Teeteto, Plato apresenta uma das
exposies capitais da filosofia antiga acerca da dualidade corpo-alma e do
logos como essncia do conhecimento. Em tal dilogo, o personagem do
7 GIANNOTTI, A. J. Lies de Filosofia Primeira. So Paulo: Cia das Letras, 2011.
27
filsofo Scrates intenta, com a colaborao do jovem Teeteto, uma definio
do que seria o conhecimento. A investigao desse dilogo tem como ponto
de partida a refutao ao relativismo em que o sofista Protgoras enquadra o
conhecimento a partir de sua teoria do homem-medida, isto , do homem
como medida de todas as coisas, das coisas que so, enquanto so, e das
coisas que no so, enquanto no so. Para Scrates, a teoria de Protgoras
sinaliza para que a percepo seja idntica ao conhecimento. Na medida em
que uma coisa para cada indivduo o que parece ser a ele8. A percepo,
que varia de acordo com a constituio individual de cada sujeito, falsa,
porque faz de cada homem juiz da existncia das coisas.
O percurso analtico do Teeteto passa, inicialmente, pela tentativa de
definio do termo conhecimento. Uma definio s ser legtima se alcanar
a sntese da multiplicidade externa das coisas numa unicidade, num conceito,
sendo esse o imperativo que rege a identificao de um ser. Diante disso,
quando o jovem Teeteto declara que o conhecimento trata-se de toda arte9 e
cincia, como por exemplo a carpintaria e a geometria, Scrates o adverte de
que a resposta no deve se voltar identificao dos tantos ramos de
conhecimentos existentes, mas o que o conhecimento em si, ou seja,
identificar um conceito que abarque a diversidade dos tipos de
conhecimento10. Alis, quando, em oposio multiplicidade e diversidade
das coisas existentes, a conscincia desperta para a unidade do ser, a partir
desse instante que surge a maneira filosfica de considerar o mundo
(CASSIRER, 2001, p. 1).
Assim, a diversidade do mundo sensvel deveria ser sintetizada numa
unidade conceitual de um nome. Nesse sentido, pelo esforo do
pensamento e do discurso, ou melhor, pelo esforo do logos, numa
colaborao dialgica de exames das teses levantadas, que se poderia atingir
a verdade.
Da as reflexes platnicas se encaminharem no sentido de definir que
o raciocnio e o pensamento, enquanto componentes do logos, assumem
lugar central na apreenso do ser. No cabe, portanto, s sensaes o
8 PLATO, Teeteto. 162e.
9 O termo arte, em grego, aqui empregado no sentido de um meio de produo.
10 Cf. PLATO. Teeteto. In: Dilogos Plato, Vol. I. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru:
Edipro, 2007, 146e-147a.
28
alcance do que o filsofo prope como verdade ou ser, porque elas estariam
presas ao estado de vir-a-ser das coisas, as quais esto em constante
mutao. Por isso o conhecimento estaria nas articulaes e reflexes da
alma, que, agindo por si mesma, alcana tal conhecimento. Considere-se o
seguinte fragmento do Teeteto, em que Scrates traa uma polarizao
conhecimento-sensibilidade.
[...] que a alma, embora considere algumas coisas pela faculdade do corpo, considera outras sozinha e atravs de si
mesma. [...] A concluso que o conhecimento no est nas sensaes, mas no raciocinar sobre elas, uma vez que aparentemente possvel apreender o ser e a verdade pelo
raciocnio, mas no pelas sensaes.11
Para Plato, a sensibilidade corprea, sendo a forma de primeiro
contato com o mundo, oferece um foco turvo e perturbador alma. Logo,
apenas o pensamento capaz de deslindar o emaranhado de contradies
em que se apresenta a realidade sensvel. A respeito das limitaes
cognitivas da sensibilidade, considere-se o seguinte trecho do Fdon:
Mas ela [a alma] raciocina melhor quando nenhuma destas
coisas a perturbam, quer a audio quer a viso, quer a dor quer o prazer, estando ela sim, tanto quanto possvel, sozinha
e isolada, apartada do corpo e evitando, na medida do
possvel, toda associao ou contato com o corpo, na sua
busca da realidade.12
A esse respeito, conforme orienta Ernest Cassirer, o principal
contributo de Plato estaria na explicitao do pressuposto espiritual como
essencial a toda compreenso filosfica, uma vez que o mtodo dialtico,
adotado como meio de investigao das verdades, ou das ideais
no se prende simples existncia do ser, buscando, ao invs, tornar visvel o seu sentido intelectual, a sua organizao sistemtica e teleolgica. E com isso, o pensamento (...) adquire um significado mais profundo. Somente quando o ser vem a ter o sentido rigorosamente definido de um problema, o pensamento vem a ter o sentido e
11
Ibd. 185e-186c 12
PLATO. Fdon. In: Plato Dilogos, Vol. III. Traduo Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2008. 64c,198. p.
29
o valor rigorosamente definidos de um princpio. (CASSIRER, 2001, p. 13)
Veja-se que o estatuto do ser como problema evoca um mtodo
racional de perquirio, que ser a dialtica. Como se sabe, a dialtica
platnica foi herdada da dialtica socrtica fundada no dilogo, atravs do
qual se determinava o mtodo de questionamento como conduo da
investigao sobre a verdade, em que dois participantes assumiam, cada
qual, o papel de questionador e o de respondente. A dinmica desse dilogo,
diferente da erstica ou disputa sofstica, no se pautava no arbtrio do
discurso mais persuasivo nem, consequentemente, na derrota do interlocutor.
O discurso filosfico platnico forjado no dilogo dava-se pela exposio de
algum que supostamente sabe acerca de determinado tema e da
interlocuo de um outro que no sabe, cabendo a este conhecer mediante
perguntas e exames. Da, para o alcance do ser, pretendia-se obstaculizar
relaes de poder e um percurso meramente persuasivo e dissimulado. Uma
vez que havia nos dilogos socrticos uma exposio e partilha do mtodo
discursivo e analtico, o instrumental analtico do tema em discusso parecia
ser forjado pela coparticipao do locutor e seu interlocutor. O adgio s sei
que nada sei, dito na Apologia a Scrates, traduz, num certo sentido, o
cuidado em se impedir cristalizaes de falsos saberes, por isso, para
determinada tese ser validada, fazia-se necessrio exp-la ao exame. Logo,
Scrates concedia a palavra quele que assumia o posto de quem
supostamente sabia, para, ento, examinar sua tese, a qual, exposta ao longo
da conversao, sairia legitimada ou refutada, uma vez que s a refutao
poderia libertar da iluso de saber e promover a purificao da alma atravs
do verdadeiro conhecimento. Da se segue que, para Plato, a refutao a
melhor e a mais eficiente forma de purificao, e aquele que permanecer no
refutado ainda que seja o grande rei no foi purificado de suas maiores
ndoas, sendo, portanto, destitudo de educao.13
Assim, pensamento e discurso, enquanto constituintes do logos, devem
se encaminhar no sentido de evitar o relativismo como conduta importante
para a legitimao terica que se pauta na ideia do ser-um no contraditrio.
13
PLATO. Sofista. In: Dilogos Plato, Vol. I. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, 230e.
30
Essa noo do ser-um em relao com o mltiplo o que fundamenta a
Teoria das Ideias. Acima da multiplicidade do sensvel estaria a unidade das
ideias que so eternas e estveis, diferente da instabilidade e contradio da
realidade sensvel. As coisas que compem o mundo sensvel, embora
diversas e mutveis pela condio de vir-a-ser, relacionam-se a uma ideia ou
forma (eidos), um critrio de unidade em que participam como decalques.
Essas Formas [Ideias] existem na natureza como modelos, ao passo que as
outras coisas assemelham-se a elas e so delas imitaes.14 Uma
determinada ideia una e se propaga nas vrias formas de imitao que
constituem o mundo sensvel.
Como Plato exemplifica no livro X da Repblica, em que trata da
mimesis potica, deus criou apenas um nico leito, que o leito na sua
essncia, em sua forma genuna, e desse modelo o marceneiro produz o seu
leito aparente, por conseguinte, o pintor, num nvel duas vezes inferior de
imitao em relao forma criada pelo demiurgo, pinta um leito mimetizando
a obra do marceneiro. Portanto, a teoria das ideias postula a existncia de
realidades absolutas que transcendem o sensvel e por isso no podem ser
apreendidas pelas sensaes, mas to somente pelas faculdades intelectivas,
depuradas da interveno mals dos sentidos e da mera opinio (doxa), a qual
fruto do pensamento sofstico.
Considerando-se a estabilidade das Ideias, a opinio pessoal, que varia
de homem para homem, no pode ser legtima, perdendo-se na diversidade
das subjetividades. O conhecimento no comunga da doxa, de uma percepo
subjetiva, por mais discursivamente articulada que ela seja. Apenas o
pensamento inteligvel, que buscar identificar no mltiplo um conceito em
comum, uno, alcanar as Ideias. Assim, verifica-se que na noo de Uno
que se d o princpio das Ideias. Da o verdadeiro conhecimento consistir em
saber unificar a multiplicidade numa viso sintica que rene a multiplicidade
sensorial na unidade da Ideia da qual depende.15
14
PLATO. Parmnides. In: Dilogos Plato, Vol. IV. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2009, 132d, p.40. 15
REALE, G. Histria da Filosofia Antiga II, So Paulo: Loyola, 1994, p.74.
31
1.3. Corpo, imaginao e entendimento no pensamento aristotlico
Para Aristteles, o desejo humano por conhecer seria uma tendncia
natural, a qual estaria presente em instncias mais elementares das
sensaes do homem, de maneira que no se poderia prescindir do
componente sensvel no percurso da cognio. Contrariamente clivagem
corpo-alma desenvolvida pela filosofia platnica, o sistema aristotlico se
encaminha para uma unificao entre a matria fsica e a metafsica. No
haveria, portanto, uma oposio entre alma e corpo, mas sim uma relao
complexa orientada por uma simbiose permanente.
A alma, portanto, tem de ser necessariamente uma substncia, no sentido de forma de um corpo natural que
possui vida em potncia. Ora a substncia um acto; a alma ser, assim, o acto de um corpo [...]. No preciso, por isso,
questionar se o corpo e a alma so uma nica coisa, como no nos perguntamos se o so a cera e o molde nem, de uma maneira geral, a matria de cada coisa e aquilo de que ela
a matria.16
Como a alma a forma (eidon) e o corpo a matria (hyle), do mesmo
modo que o molde a forma para a cera na composio de um objeto, no
qual a unio da modelagem com a materialidade da cera so coparticipantes,
para Aristteles, a realidade pensada sob uma tica naturalista, em que
corpo e alma existem um para o outro numa interdependncia ontolgica.
A declarao de Aristteles, h pouco mencionada, de que todos os
homens naturalmente desejam conhecer, localiza na physis humana a busca
pelo conhecimento, uma vez que por natureza ( - physei) se disporia
de uma tendncia espontnea a conhecer. Essa relao da physis com o
conhecimento, em Aristteles, fundamenta-se na importncia dada s
sensaes no processo de cognio do homem, de maneira que os sentidos,
para alm de suas funes mais imediatas no que toca sobrevivncia e s
necessidades biolgicas, participam como agentes na elaborao de um
determinado tipo de conhecimento.
16
ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, II, 1, 412b, 5. P. 62.
32
Um prova disso [do desejo de conhecer] o prazer das sensaes, pois, fora at de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, no s para agir, mas at quando no nos propomos a operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razo que ela ,
de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as
coisas e mais diferena nos descobre.17
no prazer promovido pelas sensaes, no caso, da viso, que se
busca conhecer as coisas. Obviamente, aqui, Aristteles se refere a um nvel
mais elementar de conhecimento, que seria o conhecimento sensvel.
Embora o filsofo reconhea que a verdade no pode ser atingida pelos
sentidos, mas somente pela especulao teortica do pensamento cientfico,
o elogio ora dado vida sensual diz respeito ao seu projeto filosfico oposto
teoria do mestre das Ideias. Enquanto Plato pressupe que os processos
sensveis do-se numa separao abismal do intelecto, Aristteles, embora
reconhea a dimenso transcendental do conhecimento cientfico, concebe o
mundo intelectivo em termos prticos, inseridos na prpria vida, de forma que
no haveria separao instransponvel entre as ideias (eidon) e a natureza
fsica. Sob uma tica biolgica, as formulaes intelectivas seriam estados
avanados de um processo de interao com o mundo externo. Nesse caso,
o corpo e suas sensaes assumem um valor positivo na constituio do
conhecimento. A percepo, a memria, a experincia, a imaginao e a
razo estariam interligadas por um mesmo vnculo, sendo, portanto, fases ou
estgios de uma mesma atividade fundamental, que atinge o maior grau de
desenvolvimento no homem com o conhecimento teortico.18
No De Anima, Aristteles apresenta o seu conceito sobre alma, a qual
seria, basicamente, a substncia do corpo, assim como a viso a substncia
do olho material. Como a viso existe em funo do olho, a alma seria,
portanto, dependente e inseparvel do corpo:
A alma acto, como o so a viso e a capacidade do rgo. O corpo, por sua vez, aquilo que existe em potncia. Mas,
17 ARISTTELES. Metafsica I, 980a22,1. 18 CASSIRER. E. Ensaio sobre o homem: introduo a uma filosofia da cultura humana. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
33
como o olho a pupila e a viso, assim tambm o animal a alma e o corpo. Que a alma no separvel do corpo, ou pelo menos certas partes dela no so se que a alma por natureza divisvel em partes , isso no levanta dvidas, pois o acto de algumas o acto das partes mesmas . Nada impede, no entanto, que algumas partes sejam separveis, por no serem acto de nenhum corpo.19
Enquanto princpio anmico do corpo, a alma possui algumas partes
que no podem ser dissociadas das instncias corporais, uma vez que
existem em funo de determinadas competncias orgnicas. Contudo, v-se,
nesse trecho, uma referncia a partes que possivelmente so separveis do
corpo, as quais estariam vinculadas ordem do entendimento e pensamento
teortico ou discursivo:
J no que respeita ao entendimento e faculdade do
conhecimento teortico20
, nada , de modo algum, evidente. Este parece ser um gnero diferente de alma, e apenas este pode ser separado, como eterno que , do perecvel.
importante ressaltar que Aristteles descreve a relao entre cada
parte da alma num continuum de atividades em que se verifica um processo
de causalidade entre essas partes. Desde as instncias mais elementares
ligadas nutrio at as elaboraes refinadas do pensamento terico e do
entendimento (estritos ao homem), o trajeto de atividades da alma opera-se
num encadeamento entre cada uma de suas faculdades, que so: nutritiva,
perceptiva, desiderativa, deslocao, pensamento discursivo e entendimento:
s plantas pertence apenas a faculdade nutritiva, ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambm a perceptiva. E se estes dispem da faculdade perceptiva, possuem igualmente a desiderativa, pois o desejo , de facto, apetite, impulso e vontade. (...) A alguns animais pertence, alm daquelas faculdades, tambm a de deslocao; a outros, pertencem igualmente a faculdade discursiva e o entendimento21. o caso dos homens e, se existir, de outro
ser de natureza semelhante ou superior.22
19 ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, 413a3-10, p.63.
20
Grifo prprio; . 21
Grifo prprio; . 22
ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional
34
Numa relao de consecutividade, as faculdades da alma, partindo da
mais elementar, a nutritiva, at a do entendimento, articulam-se de forma
causal, em que um estgio de atuao da alma respalda um estgio
subsequente de funcionamento das competncias anmicas. Assim, o animal
que detiver o pensamento discursivo e o entendimento, no caso, o homem,
no poder prescindir das instncias preliminares para o funcionamento pleno
de suas faculdades. Nesse sentido, orientado por um olhar naturalista,
Aristteles estuda a alma em sua relao com a matria orgnica, no a
separando completamente do corpo, at o ponto de consider-la como
matria de estudo do fsico.23
Aps discorrer sobre as faculdades de nutrio, percepo, deslocao
e desiderativa, Aristteles chega reflexo das partes da alma ligadas
inteleco, o pensamento discursivo ( - dinoia) e o entendimento
( nos).
O chamado entendimento da alma (chamo entendimento quilo com que a alma discorre e faz suposies)24 no ,
em actividade, nenhum dos seres antes de entender. No razovel, por isso, que o entendimento esteja misturado com o corpo, pois tornar-se-ia de uma certa qualidade, frio ou quente, ou possuiria algum rgo, como a faculdade perceptiva possui.25
Veja-se que esse trecho d-se por dois estgios argumentativos: o
primeiro volta-se conceituao do entendimento e o outro sua distino
em relao ao corpo. Primeiramente, no que toca ao o conceito de nus,
compreende-se aqui que se trata das aptides gerais intelectivas, nas quais a
dinoia, traduzida por discorrer, revela-se como parte integrante. A noo de
dnoia, em Aristteles, sugere um modo de pensamento de estruturao
lingustica, uma vez que discorrer equivale ponderao e demonstrao de
ideias num conjunto de regras, constitudo de proposies numa articulao
de frases ou sentenas. Aqui tem lugar, sobretudo, o conhecimento cientfico
(epistme), que silogstico, emoldurado por demonstraes e relaes
Casa da Moeda, 2010, 414a, 30, p.68.
23
ID, 403b1, p. 35. 24
Grifo prprio; . 25
Id. III, 429a24-27, p.114.
35
propositivas encadeadas numa lgica esquemtica com vistas a uma
definio conceitual. O pensamento discursivo, basicamente, consiste numa
interao de sentenas que estruturam uma definio nominal de um
conceito, um lgos. Por outro lado, embora Aristteles estabelea para o nos
um sentido mais genrico das atividades de inteleco, esse termo,
tradicionalmente desenvolvido pela filosofia grega, apresenta uma
significao mais estrita, que se orienta para o reconhecimento de uma
modalidade no discursiva do conhecimento.
Para Plato, o acesso s ideias puras, enquanto fundamentos dos ser
(n) est para alm do domnio discursivo. Enquanto o conhecimento do
mundo visvel se limita mutabilidade dos fenmenos sensveis,
configurando-se em opinies volteis e mutveis em acordo com o constante
estado de devir das coisas, o conhecimento do mundo inteligvel tem como
conduta a investigao do que dado pelo mundo visvel, a partir do
esquema discursivo das hipteses, para ento se chegar a algumas
construes tericas ou a conhecimentos absolutos, nesse caso, respeitantes
s Ideias imutveis e eternas. Assim, verifica-se uma distino de duas
faculdades de confronto com o inteligvel, o lgos e o nos, que
correspondem, respectivamente, ao conhecimento cientfico restrito ao
percurso lgico-racional da dinoia e sabedoria filosfica fundamentada
pelo nos. Diferente do matemtico, que se utiliza da hiptese para chegar a
determinadas concluses conceituais, o filsofo (dialtico) utiliza-se do
sistema discursivo das hipteses para chegar aos princpios absolutos, cuja
existncia no depende das formulaes hipotticas e intelectivas, uma vez
que princpio ontolgico, e no uma elaborao da mente. Embora a dinoia
seja um percurso intelectual de aproximao ao Uno verdadeiro, ela no d
conta desse princpio ontognico que a transcende e supera a prpria
discursividade das hipteses. Logo, o que se compreende da conduta da
dialtica filosfica o desenvolvimento do pensamento discursivo, a dinoia,
36
em direo a um estgio intuitivo de conhecimento, o nos, para, enfim,
chegar-se a essas realidades absolutas e divinas.26
Mediante essa breve exposio sobre os conceitos platnicos de nos
e de dinoia, a reflexo de Aristteles a esse respeito, ao considerar um
sentido mais amplo para nos, desenvolve algumas crticas em torno da
teoria do conhecimento platnica. O nos enquanto totalidade das faculdades
do pensamento composto de imaginao (, phantasa), da dinoia,
da opinio (, dxa), da suposio e de um nos mais especfico, cujo
significado condiz com noes como razo, intelecto e conhecimento. Essa
abrangncia conceitual que Aristteles concede ao termo nos espelha a
dificuldade de fech-lo em um nico sentido, tendo em vista a amplitude das
noes em torno das instncias cognitivas, que no esto rigorosamente
definidas em conceitos fechados na obra aristotlica.
Se esse nos especfico o ponto mximo das faculdades da alma,
deve-se destacar o valor notico que Aristteles imprime imaginao. Para
se entender essa nosis das imagens, inicialmente, h que se entender o
arranjo do continuum orgnico-anmico no qual funcionam as faculdades mais
corporais da alma e as faculdades de carter intelectivo. No livro III do De
Anima, Aristteles trata da phantasia mais detidamente, em sua relao com
os entes sensveis e inteligveis. As imagens no resultariam de uma
articulao discursiva, mas de um desdobramento representacional do mundo
sensvel. Portanto, a imaginao no ocorre sem a percepo sensorial, e,
numa relao causal, sem a imaginao tambm no ocorrer o juzo27. As
imagens (, phantasmi), enquanto formas elementares das
elaboraes mentais, operam-se no entre-lugar das instncias corporais da
sensibilidade com o pensamento. A imaginao, geradora desses
fantasmas, vale-se, num certo grau, da relao da percepo sensorial com
o mundo visvel para compor seus construtos imagticos.
A imaginao ser um movimento gerado pela aco da percepo sensorial em actividade. Ora, uma vez que a viso o sentido por excelncia, a palavra imaginao ()
26 Cf. PLATO. A Repblica. Traduo, introduo e notas de Eleazar Magalhaes Teixeira. Fortaleza: Ed. UFC, 2009. 508a 511a, p. 224 228.
27 Cf. PLATO. A Repblica. Traduo, introduo e notas de Eleazar Magalhaes Teixeira. Fortaleza: Ed. UFC, 2009. 508a 511a, p. 224 228.
37
deriva da palavra luz (), porque sem luz no possvel ver. E por permanecerem e serem semelhantes s sensaes, os animais fazem muitas coisas graa a elas.28
A relao do imaginado com a viso, em Aristteles, deve ser
entendida num sentido mais amplo de visualidade, de forma a conceber que
as outras modalidades de percepo sensorial tambm podem auxiliar na
composio de imagens. As formas imaginadas, possivelmente, receberiam
sua concretude por um complexo procedimento de forja em que, alm da
viso, tambm entrariam em cena as outras impresses sensveis. Da poder-
se-ia supor em que nvel se opera a relao do corpo com a imaginao, a
qual, num processo de recodificao do contato do corpo com o mundo
visvel, formula o mundo imaginrio. Para alm dos limites espao-temporais
dos objetos concretos com os quais se relaciona a percepo, a imagem
constitui um avano na hierarquia notica, exercitando as faculdades
intelectivas para a formao do conhecimento que se sobrepe e reelabora o
contato imediato das sensaes com o mundo.
Assim, o concurso da imaginao est no alcance de um passo
importante para as abstraes geradas pelo intelecto. As imagens em sua
semelhana com as sensaes, mas destitudas de matria, colaboram no
processo de refinamento que estrutura a inteleco, a qual, necessariamente,
elabora suas ponderaes por configuraes imagticas:
Mas como, ao que parece, nenhuma coisa existe separadamente e para alm das grandezas sensveis, nas formas sensveis que os objetos entendveis existem. [...] Estes so os designados abstraces e todos os estados e afeces dos sensveis. Mas, por isso, se nada percepcionssemos, nada poderamos aprender nem compreender. Alm disso, quando se considera, considera-se
necessariamente, ao mesmo tempo, alguma imagem.29
Uma vez que o ato de considerar (, theorein) s possvel por
imagens, fica, aqui, patente o valor notico da imaginao. No processo de
desenvolvimento das faculdades intelectivas, a alma eleva-se do imediato
sensvel rumo ao conhecimento. A imaginao, aqui, ocupa o lugar de um
28 De Anima, III, 427 b 14-16. 29 ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, III, 429a1-5, p. 113.
38
ponto de passagem ou limiar necessrio da alma em direo aos
refinamentos teorticos. Assim, uma vez que o entendimento no existe sem
imaginao, que semelhante s sensaes do corpo, consequentemente,
tambm o conhecimento no existe sem o corpo.
Portanto, diferentemente de Plato, que considera as disfunes que a
matria corporal pode ocasionar ao intelecto, Aristteles reconhece, numa
escala hierrquica, as articulaes noticas entre corpo e conhecimento.
Contudo, no se pode deixar de considerar que, embora Aristteles
reconhea a importncia dos componentes corporais e sensveis no processo
de cognio humano, a razo tida como faculdade superior, uma vez que s
por meio dela possvel se conhecer a verdade. Como se viu, a imaginao e
sua aproximao com o corpo colaboram no desenvolvimento da nosis,
contudo ela
passvel majoritariamente ao erro, pois apenas a cincia e o entendimento
so verdadeiros.30 a ponderao orientada por critrios racionais que
poder dar acesso ao esclarecimento das realidades ontolgicas.
Numa progresso qualitativa, a alma humana conduz-se rumo a sua
faculdade mais importante, o nos, a inteligncia, a partir da qual se alcana o
maior grau de conhecimento, que consiste na apreenso dos princpios e
causas de todas as coisas, isto , as realidades universais axiomticas de
todas as substncias. Assim, essas unidades, que se identificam com a noo
de Forma ou de Ser, s sero apreendidas por uma nosis altura,
consagrada a uma cincia mais universal, que ser a Filosofia. Apenas o
filsofo apreender o ser das coisas graas a uma educao em lgica e,
consequentemente, ao raciocnio silogstico.31 Assim, so as motivaes
lgico-racionais da dinoia que impulsionam a faculdade do verdadeiro
entendimento, o nos, de forma que as instncias da sensao e da
imaginao ainda aparecem como subalternas principal faculdade humana,
a racionalidade.
30
De Anima III, 432a, 5-10. 31
Cf. Metafsica. IV, 1005b1, 5-10.
39
1.4. Uma Fenomenologia do Corpo
A partir das duas grandes teorias do conhecimento desenvolvidas por
Plato e Aristteles, o pensamento ocidental definir as linhas de conduo
de suas reflexes e demarcar suas fronteiras em relao a outros universos
de pensamento, como, por exemplo, a tradio oriental. O afastamento do
corpo dos aspectos racionais e espirituais constituir, por muito tempo, um
dos fios condutores do enredo da histria da filosofia ocidental, entrelaando-
se com os comportamentos que caracterizaro a experincia de nossa prpria
corporeidade.
Com a reabilitao do corpo pela filosofia, que, diga-se de passagem,
deu-se muito recentemente, mais precisamente em fins do sculo XIX, com a
inverso da hierarquia clssica proposta por Nietzsche, que adota o corpo
como fio condutor de seu pensamento filosfico, a corporeidade se
configurar como apangio das atuais abordagens filosficas. No obstante, o
dualismo clssico corpo-alma ainda parece muito evidente e fortemente
integrado na cultura, determinando os sentimentos mais profundos e
inconscientes em relao a nossa experincia corporal, herdeira, sobretudo,
de uma moral sexual crist, que imprimiu ao corpo aspectos demonacos, de
desqualificao de sua nesis.
Diante dessa persistncia em se dicotomizar o homem em um lado
corporal e outro espiritual, verifica-se o poder de atuao da oposio
platnica entre ser e aparncia. Diante disso, uma nova corrente filosfica
empenhar esforos para a elaborao de uma contraproposta
epistemolgica, recusando-se ao modo clssico de perquirio da verdade
por trs das aparncias. Trata-se, agora, de buscar o ser considerando a
possibilidade de integrao entre a realidade sensvel com as estruturas de
pensamentos, naquilo que Husserl, com sua Fenomenologia, entende como
um retorno s coisas mesmas a partir do olhar transcendente da conscincia.
O mtodo fenomenolgico interessa-se pelos modos como as
ocorrncias do mundo vivido do-se a ver conscincia. Da se compreende
a escolha do fenmeno como conceito axiomtico dessa abordagem, por
evocar, eminentemente, noes ligadas aparncia ( o que se
40
mostra, aparece; derivado do radical , que compe o termo - luz.) O
fenmeno seria, segundo Husserl, tudo que intencionalmente est presente
conscincia, sendo para esta uma significao. O conjunto das significaes
chama-se mundo.32
A conduta do fenomenlogo de, portanto, alcanar o fenmeno puro,
descrevendo o mundo como aparece ao esprito, por isso a orientao correta
ser de suspender ou pr entre parnteses qualquer juzo em relao ao
mundo exterior; tal suspenso configura a reduo fenomenolgica. Assim, a
fenomenologia, enquanto cincia, procede como um mtodo descritivo das
estruturas da experincia referentes conscincia do existir para, ento,
descobrir as essncias do mundo vivido. A palavra vida aqui no tem sentido
fisiolgico, uma vida cuja atividade possui fins que cria formas espirituais:
vida criadora de cultura, em sentido mais amplo, numa unidade histrica33.
O estatuto do corpo, no mbito da Fenomenologia, no corresponde
quela ideia do corpo como objeto, o qual a biologia investiga, categoriza e
classifica, nem tampouco concerne ao conceito de corpo-mquina, cujas
engrenagens a medicina repara.
A experincia corporal como se vivencia, como poeticamente a define
Foucault, consiste numa topie impitoyable, uma presena que diariamente
acompa-
nha, sem que se d conta, por vezes, mas da qual no se tem escapatria,
uma vez que s com ela se pode mostrar, ser.
exatamente em funo desse topos impiedoso que, segundo
Foucault, o principal mito criado pela cultura ocidental, o mito da alma, foi
incessantemente perseguido, com fins a fornecer recursos para escapar da
fatdica topologia do corpo. Consequentemente, em funo dessa utopia
maior, que localiza o ser num outro lugar, o corpo desapareceu e com ele o
olhar sobre a experincia permanente do sentir na pele. Porm, se o corpo
o que articula o ser com o mundo, a relao entre sujeito e objeto se atualiza
32
ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como mtodo radical. In: HUSSERL. A crise da humanidade europeia e a filosofia. introd. e trad. Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002., p. 7. 33
HUSSERL. E. Ibd. p.44.
41
de forma interdependente. Se por um lado, o corpo objetivo, na medida em
que pode ser visto, tocado a partir das delimitaes espao-temporais, por
outro lado, esse objeto est alm de um alcance evidente do olhar ou do
toque, transbordando as instncias da objetividade, na medida em que, em
dilogo permanente com a mente, compem a integralidade do nosso prprio
ser.
Corps incomprhensible, corps pntrable, et opaque, corps ouvert et ferm : corps utopique. Corps absolument visible, en un sens : je sais trs bien ce que cest qutre regard par quelquun de la tte aux pieds, je sais ce que cest qutre pi par-derrire, surveill par-dessus lpaule, surpris quand je my attends, je sais ce quest tre nu; pourtant, ce mme corps qui est si visible, il est retir, il est capt par une sorte dinvisibilit de laquelle je ne peux le dtacher.34
justamente nessa dificuldade de uma apreenso corporal objetiva a
que se refere Foucault, que se chega ao tema da corporeidade pelo escopo
da fenomenologia, sobretudo com Merleau-Ponty, que observar o fenmeno
da encarnao, para alm de uma objetividade de vsceras, como
determinante da condio humana em sua experincia. Assim, o estudo do
corpo deve ser orientado no sentido de considerar o mundo como vivido e
sentido corporalmente. A crtica clivagem que afasta o corpo da alma ser o
fundo das principais reflexes que orientam a fenomenologia do corpo
merleau-pontyana.
No lugar de se considerar um princpio psquico independente como
fonte dos nossos sentimentos, h que se tomar em conta que o corpo capaz
de sentir por si mesmo e que, por isso, como bem observou Foucault,
apresenta instncias de inapreensibilidade, que correspondem vivncia
cotidiana pr-reflexiva, pela qual todos passam diariamente, em que o corpo
espontaneamente se comunica e se insere no mundo. Essa opacidade, a que
34 FOUCAULT. M. Le corps utopique Les Htrotopies. Paris: ditions Lignes, 2009, p. 23. Corpo incompreensvel, corpo penetrvel e opaco, corpo aberto e fechado: corpo utpico.
Corpo absolutamente visvel, num sentido: eu sei muito bem em que consiste ser olhado da
cabea aos ps por algum, eu sei o que ser observado por trs e vigiado sobre os ombros,
surpreendido quando se espera, eu sei o que estar nu; contudo, esse mesmo corpo que to
visvel, ele est afastado, tomado de uma sorte de invisibilidade, da qual eu no posso
desprend-lo. (traduo livre)
42
naturalmente o corpo est submetido pela experincia cotidiana, consiste
exatamente na condio de seres encarnados cuja existncia corporal
inalienvel.
1.4.1. A fenomenologia transcendental de Husserl
Edmund Husserl, nascido em 1859, em Prossnitz, atual Repblica
Tcheca, iniciou sua carreira acadmica como matemtico. Apenas na virada
do sculo XX que ir comear, efetivamente, seu projeto filosfico,
sinalizado nas primeiras Investigaes Lgicas, nas quais declara o incio dos
seus estudos fenomenolgicos. Ao longo de toda a obra de Husserl,
verificam-se mudanas de paradigmas, reformulaes de ideias, que
caracterizam uma perptua reelaborao do seu mtodo. A partir da
conferncia de 1907, A ideia da fenomenologia, o filsofo sinaliza o seu
projeto de definio de uma fenomenologia transcendente, ao qual se dedicou
at o fim de sua vida, em 1938. Aps a publicao de A ideia da
fenomenologia, s vir a pblico uma pequena quantidade de textos, que,
possivelmente, no d conta das reflexes expressas em uma vasta produo
de mais de trinta mil pginas estenografadas, ainda em processo de edio e
publicao, em meio s quais se incluem o segundo e o terceiro volumes de
As ideias.35 Talvez por isso Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da
Percepo, tenha evocado a necessidade de uma reviso da obra
husserliana, na tentativa de uma definio mais precisa da fenomenologia,
que consiste num conceito longe de estar resolvido.
De acordo com Terry Eagleton, a fenomenologia husserliana tem
motivaes histricas e sociais das quais no se deve prescindir, quando da
iniciativa de uma aproximao e leitura do pensamento de Husserl.36 Segundo
Eagleton, em meio s runas de uma Europa devastada pela Primeira Guerra
Mundial, inicia-se uma onda de revolues sociais que ir expandir-se por
todo o continente. Embora tais mobilizaes tenham sido violentamente
aniquiladas, a ordem do capitalismo europeu tinha sido profundamente
35 Cf. CERBONE, D. R. Fenomenologia. Petrpolis: Vozes, 2012. 36 Cf. EAGLETON, T. Teoria da Literatura, uma introduo. So Paulo: Martins Fonte, 2003, p. 75-85.
43
abalada em funo da carnificina da guerra e de suas consequncias
polticas.
Com a desestabilizao das ideologias capitalistas e dos valores
culturais que as governavam, as produes cientficas e artsticas passaram a
refletir certa esterilidade e perda de referncias. A cincia no sara do plano
da mera categorizao dos fatos; a filosofia ficara dividida entre o positivismo
e o psicologismo; predominavam formas de relativismo e irracionalismo;
consequentemente, a arte passara a expressar esse estado de coisas. Em
meio a toda essa crise ideolgica, Edmund Husserl prope um novo mtodo
filosfico que propiciasse certezas absolutas a uma civilizao em
desintegrao. Segundo o filsofo, era preciso definir uma orientao
espiritual clara ou, do contrrio, a barbrie irracional ocuparia todos os
espaos, impedindo a compresso do homem e a elaborao de
conhecimentos legtimos.
Husserl investe na busca pela certeza a partir de uma afirmao inicial,
que consiste no fato de no se poder ter acesso dimenso das coisas em si,
de forma que os objetos s podero ser compreendidos como coisas
postuladas pela conscincia. Embora no se possa apreender a realidade
independente dos objetos, podem-se compreender os modos como eles
aparecem conscincia. Com essa certeza, Husserl defende a legitimidade e
possiblidade de o homem angariar o conhecimento.
A rigor, a fenomenologia husserliana seria o estudo das essncias dos
fenmenos, sobretudo a essncia da conscincia e da percepo na
experincia existencial, isto , a relao do sujeito e sua apreenso do
mundo. Assim, o entendimento sobre o homem deveria ser desenvolvido a
partir da prpria facticidade da conscincia humana, sempre com vistas a
algum objeto, uma vez que se h conscincia, ela existe em funo de algo.
Portanto, o ato de pensar e o objeto pensando possuem uma relao de
dependncia mtua.
Para termos certeza, ento, devemos ignorar tudo, ou colocar entre parnteses qualquer coisa que esteja alm de nossa experincia imediata; devemos reduzir o mundo exterior apenas ao contedo de nossa conscincia. Isto, ou a chamada reduo fenomenolgica, a primeira medida importante de Husserl. Tudo o que no seja imanente conscincia
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