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— E então, o que você acha? Como eu estou?— Dá uma voltinha para eu ver.— Stanley, faz meia hora que você está me examinando de cima a baixo,

não aguento mais ficar em pé nesse estrado.— Eu encurtaria um pouco; é um sacrilégio esconder pernas como as

suas!— Stanley!— Querida, você quer minha opinião ou não? Vira de novo para que eu

te veja de frente. É bem o que eu pensava, não tem diferença alguma entre os decotes dos seios e o das costas; a vantagem é que, se derramar alguma coisa, basta virar o vestido... seja na linha de frente, seja na retaguarda, o poder de fogo é o mesmo!

— Stanley!— Essa ideia de comprar um vestido de noiva em liquidação me dá ca-

lafrios. Por que não pela internet, já que é assim? Não quis minha opinião? Estou dando.

— Sinto muito não poder comprar coisa melhor com meu salário de infografista.

— Desenhista, princesa! Deus do céu, tenho horror desse vocabulário século XXI.

— Eu trabalho no computador, Stanley, não uso mais lápis de cor!— Minha melhor amiga desenha e anima personagens maravilhosos.

Nesse caso, seja ou não num computador, é desenhista, e não infografista; será que tudo você tem que discutir?

— Encurtamos ou deixamos como está?— Cinco centímetros! Além disso, precisa de um retoque no ombro e

um ajuste na cintura.— Bom, pelo que eu vejo, você detestou o vestido.— Não foi isso que eu disse!— Mas é o que você acha.

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— Deixa eu te ajudar a pagar e vamos na Anna Maier. Por favor, me ouve, pelo menos uma vez!

— Dar 10 mil dólares num vestido? Você está completamente doido! Você também não tem dinheiro para isso e, afinal, é só um casamento, Stanley.

— O seu casamento!— Eu sei — suspirou Julia.— Com a fortuna que tem o seu pai, ele bem que podia...— A última vez que eu vi meu pai foi num sinal fechado e ele estava num

carro, descendo a Fifth Avenue... há seis meses. Fim de conversa!Julia deu de ombros e desceu do estrado em que estava. Stanley segurou-

-lhe a mão e a abraçou em seguida.— Querida, todos os vestidos do mundo caem maravilhosamente em

você, eu só quero que o seu seja perfeito. Por que não pede ao noivo de presente?— A família do Adam já está pagando a cerimônia, e se nós pudermos

evitar que eles digam que ele está se casando com uma fulaninha qualquer, eu prefiro.

Sem fazer alarde, Stanley atravessou a loja e foi até um mostruário perto da vitrine. Encostados no balcão do caixa, vendedores e vendedoras, em plena conversa, o ignoraram completamente. Ele pegou um vestido colante de cetim branco e voltou.

— Experimenta este e eu não quero ouvir mais nada!— É 36, Stanley, eu nunca vou conseguir entrar nele!— O que eu acabei de dizer?Julia ergueu os olhos para o céu e se dirigiu à cabine para a qual Stanley

apontava.— É manequim 36, Stanley! — ela repetiu, se afastando.Minutos depois, a cortina se abriu, tão bruscamente quanto fora fechada.— Até que enfim, algo que se assemelha a um vestido de noiva para Julia

— exclamou Stanley. — Sobe logo nesse estrado.— Tem um guincho para me levantar? Porque se eu dobrar um joelho...— Caiu feito uma luva em você!— E um salgadinho que eu coma, a costura arrebenta.— Ninguém come no dia do próprio casamento! É só afrouxar um pou-

quinho na altura do peito e você vai parecer uma rainha! Acha possível conse-guir que alguém nos atenda nessa loja? É realmente incrível!

— Eu é que devia estar nervosa e não você!— Não estou nervoso, só abismado que, a quatro dias da cerimônia, eu

é que precise te carregar para ir comprar um vestido!

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— Tive muito trabalho nesses últimos tempos! E nunca fale disso com o Adam, pois há um mês eu estou dizendo que está tudo pronto.

Stanley pegou um porta-alfinetes largado no braço de uma poltrona e se ajoelhou à frente de Julia.

— Seu marido não imagina a sorte que tem, você está maravilhosa.— Para de implicar com o Adam. O que você tem contra ele, afinal?— Ele parece o seu pai...— Não fala besteira. Adam não tem nada a ver com ele, que, aliás, o detesta.— Adam detesta o seu pai? Já é um ponto a favor dele.— Não, meu pai é que detesta o Adam.— Seu pai sempre odiou tudo que se aproximasse de você. Se tivesse tido

um cachorrinho, ele morderia.— Isso é verdade, se eu tivesse um cachorrinho, ele certamente morderia

o meu pai — disse Julia, rindo.— O seu pai é que teria mordido o cachorro!Stanley se levantou e recuou uns passos para admirar a obra. Balançou a

cabeça e respirou fundo.— O que é que foi dessa vez? — perguntou Julia.— Está perfeito, quer dizer, você é que é perfeita. Vou só ajeitar a cintura

e pode me levar para almoçar.— No restaurante que você escolher, meu Stanley.— Com o sol que está fazendo, o primeiro terraço aberto que nós encon-

trarmos; com a condição de haver sombra e de que você pare de se mexer tanto para eu poder acabar com esse vestido... quase perfeito.

— Por que quase?— É uma liquidação, querida!Uma vendedora passava por perto e perguntou se queriam ajuda. Stanley

dispensou-a com um gesto da mão.— Você acha que ele vai?— Quem? — perguntou Julia.— O seu pai, ora quem!— Para de falar dele. Já disse que há meses não tenho notícia alguma.— Mas isso não quer dizer...— Ele não vai vir!— Mas você mesma deu notícias a ele?— Há muito tempo desisti de falar da minha vida com o secretário par-

ticular do meu pai, que está sempre viajando ou em reunião e não tem tempo para atender à filha.

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— Mas você mandou um convite para ele?— Não vai acabar com esse interrogatório?— Quase acabando! Vocês são como um casal antigo e ele tem ciúmes.

Todo pai tem ciúmes! Mas isso passa.— É a primeira vez que eu te vejo defender ele. Bom, se formos mesmo

como um casal antigo, há muitos anos que já nos divorciamos.Veio da bolsa de Julia o som de I Will Survive e Stanley olhou-a

interrogativamente.— Quer o seu telefone?— Deve ser o Adam, ou é do estúdio...— Não se mexe ou vai estragar todo o meu trabalho. Eu pego o telefone.Stanley mergulhou a mão na bolsa da amiga, encontrou o celular e entre-

gou-o. Gloria Gaynor se calou imediatamente.— Tarde demais! — bufou Julia, olhando para o número marcado.— E então? Adam ou trabalho?— Nem um nem outro — ela respondeu, preocupada. Stanley se man-

teve na expectativa.— Vamos brincar de adivinhação?— Era do escritório do meu pai.— Liga de volta!— Não mesmo! Ele que ligue pessoalmente.— Foi o que ele acabou de fazer, não foi?— Foi o que o secretário acabou de fazer, era o número dele.— Você está esperando esse telefonema desde que mandou o convite,

para de ser infantil. A quatro dias do casamento, deve-se passar para o modo paz e amor. Vai querer que uma espinha enorme apareça no lábio ou ficar com a pele do pescoço empolada de irritação? Vamos, liga já.

— Para ouvir o Wallace explicar que o meu pai sinceramente sente mui-to, mas vai estar no exterior e é pena, mas não pode cancelar uma viagem prevista há meses? Ou então que infelizmente vai estar ocupado nesse dia com algo da maior importância, ou sei lá qual outra desculpa?

— Pode ser também para dizer que está encantado de assistir ao casa-mento da filha, querendo só confirmar lugar na mesa dos convidados de honra, apesar dos mal-entendidos!

— Meu pai não está nem aí para esse tipo de honraria; se ele for, vai pre-ferir ficar perto do vestiário, se a moça que guarda os casacos for interessante!

— Deixa de lado toda essa raiva, Julia, e telefona. Enfim, faz como você quiser, mas vai passar o casamento inteiro olhando para ver se ele vem, em vez de aproveitar o momento.

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— Bom, pelo menos assim eu esqueço que não posso nem provar os canapés, com o risco de explodir no vestido que você escolheu!

— Tudo bem, querida! — resmungou Stanley, se dirigindo para a saída da loja. — Almoçamos num dia em que você esteja de melhor humor.

Julia quase tropeçou descendo do estrado e correu até ele. Pegou-o pelo ombro e, dessa vez, foi ela que o abraçou.

— Desculpa, Stanley, não foi o que eu quis dizer, sinto muito.— Está se referindo ao seu pai ou ao vestido que eu escolhi tão mal e

pessimamente ajustei? Aproveito para lembrar que nem a sua descida destram-belhada nem a correria nesse lugar miserável parecem ter arrebentado costura nenhuma!

— O vestido é perfeito, você é o meu melhor amigo, e sem você eu se-quer posso imaginar subir ao altar.

Stanley olhou para Julia, puxou um lenço de seda do bolso e enxugou os olhos úmidos da amiga.

— Quer realmente atravessar a igreja de braço dado com essa bicha louca ou sua última cretinice vai ser a de me fazer passar pelo patife do seu pai?

— Você não é uma bicha tão louca assim e nem tem rugas suficientes para dar credibilidade ao papel de pai.

— Eu estava tentando agradar você, sua tonta, para que se achasse mais moça.

— Stanley, é pelo seu braço que eu quero ser conduzida ao meu marido! Quem senão você?

Ele sorriu, apontou para o celular e disse com uma voz carinhosa:— Liga para o seu pai! Vou passar instruções a essa vendedora idiota, que

não parece ter ideia do que seja um cliente, para que o vestido esteja pronto depois de amanhã e vamos finalmente almoçar. Faz isso agora, Julia, estou morrendo de fome!

Stanley se virou e se dirigiu à caixa. No caminho, deu uma olhada para a amiga, viu-a hesitar e afinal telefonar. Aproveitou para discretamente sacar o talão de cheques, pagar o vestido, o trabalho de costura a ser feito e adicionou uma gorjeta para que tudo estivesse pronto em 48 horas. Guardou o compro-vante no bolso e voltou até Julia, que acabava de desligar.

— E aí? — perguntou ele, impaciente. — Ele vai?Julia balançou a cabeça, dizendo que não.— E qual foi o pretexto dessa vez para justificar a ausência?Julia respirou fundo e olhou para Stanley.— Morreu!

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Os dois ficaram por um instante frente a frente, mudos.— Nesse caso, eu devo admitir que a desculpa é boa! — disse baixinho

Stanley.— Você não tem jeito mesmo, sabe?— Não foi isso que eu quis dizer, de jeito nenhum. Devo ter ficado meio

perturbado, não sei o que deu em mim. Estou muito triste por você, querida.— Não sinto nada, Stanley, dor alguma no peito, nenhuma vontade de

chorar.— Vai vir, deixa estar, a ficha ainda não caiu.— Justamente, eu acho que sim.— Quer telefonar para o Adam?— Não, agora não, mais tarde.Stanley olhou para a amiga, parecendo preocupado.— Não quer dizer ao seu futuro marido que o seu pai acaba de morrer?— Ele morreu ontem, em Paris; o corpo está sendo repatriado de avião

e o enterro é dentro de quatro dias — acrescentou, com uma voz que mal se ouvia.

Stanley fez as contas nos dedos.— No sábado? — disse, arregalando os olhos.— Na tarde do meu casamento... — murmurou Julia.Stanley se dirigiu imediatamente ao caixa, pegou de volta o seu cheque e

levou Julia para a rua.— Eu te convido para o almoço!

*

Nova York estava banhada na luz dourada do mês de junho. Os dois ami-gos cruzaram a Ninth Avenue e se dirigiram ao Pastis, uma brasserie francesa, verdadeira instituição naquela área em plena mutação. Nos últimos anos, os velhos depósitos do Meat Packing District tinham cedido lugar a grifes de luxo e aos mais disputados estilistas da cidade. Hotéis de renome e todo um comér-cio afim tinham surgido como que por um passe de mágica. A antiga estrada de ferro a céu aberto fora transformada em corredor verde, indo até a 10th Street. Logo adiante, uma fábrica desativada dera lugar a um mercado de produtos orgânicos, no térreo, e a escritórios de produção e agências de publicidade mais acima. No quinto andar, estava o escritório em que Julia trabalhava. Mais à frente, as margens do rio Hudson, repaginadas, ofereciam um bom passeio para ciclistas, corredores e admiradores dos bancos de jardim manhattanianos

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de Woody Allen. Já nas noites de quinta-feira, o bairro começava a receber vi-sitantes da vizinha Nova Jersey, que atravessavam o rio para passear e se divertir nos inúmeros bares e restaurantes da moda. Na mesa do terraço do Pastis, Stanley pediu dois cappuccinos.

— Eu já devia ter ligado para o Adam — disse Julia, se sentindo culpada.— Se for para dizer que o seu pai acaba de morrer, concordo, devia, sem

dúvida, ter contado a ele. Mas se for para comunicar que o casamento precisa ser adiado, sendo preciso avisar padre, bufê, convidados e, consequentemente, os pais dele, digamos que tudo isso pode esperar ainda um pouco. Está um dia lindo, deixa ele ter uma hora a mais, sem estragar tudo. Na verdade, você está de luto, tem todos os direitos, trate de aproveitar!

— Como eu vou dizer tudo isso para ele?— Querida, ele deve entender que é bastante complicado enterrar o pai

e, na mesma tarde, se casar. Como eu acho possível que uma ideia dessas possa mesmo assim passar pela sua cabeça, devo lembrar que seria bem inconvenien-te. Mas como é que uma coisa assim pode ter acontecido? Deus do céu!

— Pode acreditar, Stanley, Deus não tem nada a ver com isso, foi só o meu pai que, por si só, escolheu essa data.

— Eu não acho que ele tenha decidido morrer na noite de ontem, em Pa-ris, com a única finalidade de prejudicar o seu casamento, apesar de reconhecer que houve um certo requinte na escolha do local!

— Você não conhece ele, é capaz de tudo para me chatear!— Toma o seu cappuccino, vamos aproveitar um pouco do sol e aí nós

ligamos para o ex-futuro marido!