São Paulo
2010
HELENA GOMES
ORGANIZADORA
TRATADO SECRETODE MAGIA
Todos os direitos reservados à
ANDROSS EDITORA
RUA DR. ROMEU DE OLIVEIRA MATOS, 22JARDIM DANFER - CEP 03729-060SÃO PAULO - SP(11) [email protected]
COPYRIGHT© ANDROSS EDITORA, 2010
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Daniela Momozaki — CRB 8/7714)
COORDENAÇÃO EDITORIAL: EDSON ROSSATTO
ORGANIZAÇÃO, PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO: HELENA GOMES
CAPA: MARINA AVILA
DIAGRAMAÇÃO: EDSON ROSSATTO
Índice para o catálogo sistemático
Tratado secreto de magia / Helena Gomes (organizadora) -- São Paulo :Andross, 2010.
Vários autoresISBN: 978-85-99267-45-5
1. Contos brasileiros I. Gomes, Helena
CDD 869.93
1. Contos : Literatura brasileira 869.93
(...) percebemos que o antigo conti-
nuamente confirma a antiguidade do
moderno. Seja um traço aqui, uma
pequena observação acolá, ora uma
erva num encantamento e dali a pouco
um verso num sortilégio, eles se en-
trelaçam continuamente, cruzando-se,
tocando-se, coincidindo-se.
CHARLES LELAND
SUMÁRIO
015 APRESENTAÇÃO
HELENA GOMES
019 CONTOS
021 O TOTEM DO GATO PRETO
DUDA FALCÃO
025 ONTEM
LETÍCIA NAVEIRA
027 NOITE DE LUA CHEIA
CAMILA MENDES
031 O AR, O FOGO E O JORNAL
MAXIMIRA CORREA E PEDRO CORDEIRO
037 A VIAJANTE
MELISSA BARBOSA
039 A BRUXA VERMELHA
LEANDRO REIS
045 MONSTRINHOS
LHAISA ANDRIA
051 TRUQUES DO DESTINO
LUCAS R. C.
057 A FÓRMULA
ALVARO MOREIRA DE CARVALHO
063 A TROCA
ALMERIDES
073 PAGÃ
SIMONE O. MARQUES
079 REFLEXOS
SÍLVIA ANDREOTTI
083 O BALÉ DAS OSTRAS
CECILIA TORRES NOGUEIRA
089 O CASARÃO
BRUNO MÜLLER
095 O EBÓ
ALEX MIR
101 NO VALE DAS MULHERES GUERREIRAS
HELENA COBRA
105 ALGO DO QUE SE SABE SOBRE A SENHORA DAS TEIAS
ELI A. SOLDI
111 ELEVAÇÃO
HIDEKI
115 OS ENCANTAMENTOS DA BRUXA SELENA
ROSI CAOBIANCO
119 STRYGA
O. A. SECATTO
125 O FEITIÇO INÉDITO
MARINA AVILA
131 O BANDEIRANTE
RAPHAEL REDFIELD
135 REVELAÇÃO
ROGER COSTA
141 A DONZELA E O RUBI
BRUNO ANSELMI MATANGRANO
145 A MAGIA DO AMOR
DEBBY LENON
151 A ÚLTIMA CHAMA
LARISSA CARUSO
157 A MAGIA E A ESCURIDÃO
ADRIANO SIQUEIRA
163 O REFÚGIO PERFEITO
KATHIA BRIENZA
169 A MALDIÇÃO DA VELHA DA PRAÇA
LEANDRO SARNO
171 DIÁRIO DE UMA BRUXA
IEDA SILVA CASTALDI
175 A BALADA DAS TRÊS CAVEIRAS
LUIZ CARLOS DIAS
179 VINGANÇA DE BRUXA
WILLIAN RICCIARDI
185 SANTO OFÍCIO DO AMOR
CÍNTIA LIRA
191 MAIJA E O ENCANTO DO VENTO
FABIANE RIBEIRO
195 RITUAL
DAN VALIERI
201 BRUXARIA EM VILA ODESSA
FERNANDO HEINRICH
207 FAÇA SUAS ESCOLHAS
PAULO DUMI
213 O COLAR DA VIDA
PAULA VENDRAMINI
217 MAGIA: DE CORPO E ALMA
REBECA BACIN
223 CHAMAS
ADRIANNA ALBERTI
227 O PÁSSARO DE OURO
TAIANE GONÇALVES DIAS
229 O BICHO-PAPÃO APOSENTADO
PEDRO CORDEIRO E MAXIMIRA CORREA
233 O MISTÉRIO DESVENDADO
JOSÉ ARAÚJO
239 O MEDALHÃO
LIZZIE LOREN
243 MAGIA ENCOBERTA
DÉBORA JERONYMO
249 A FATA
GEORGETTE SILEN
253 O ESPELHO
JAIME CÉSAR
259 CINZAS
FERNANDO SALLES
265 NO LIMIAR
ALÍCIA AZEVEDO
271 AUTORES
APRESENTAÇÃOHELENA GOMES
Velha Arte, Antiga Religião, Bruxaria.Magia.Nascida há milênios e simultaneamente em várias culturas,
ela ocupa hoje um espaço de destaque no nosso imaginário quando oassunto é ficção. Pode ser a vilã ou a heroína, atribuir poderes ilimitadosaos malvados da história e também salvar a pele dos mocinhos noúltimo segundo.
Na vida real, sua origem está ligada ao culto da Deusa-Mãenas sociedades agrárias do período neolítico. Deixar a vida nômade eaprender a semear o próprio alimento levou os seres humanos avalorizarem o papel da mulher, que se tornou simbolicamentevinculada à produtividade da terra. Daí a reverenciar uma figurafeminina como sagrada foi o passo seguinte. Rituais foram criados,fogueiras, acesas e toda a mitologia surgiu. Hoje conhecemos a antigareligião de forma muitas vezes fragmentada, até mesmo distorcida porinteresses religiosos através dos séculos. Mas isto é outra história.
Bruxos, feiticeiros e magos estão espalhados pela ficção desdeaquelas narrativas feitas ao redor de uma fogueira, em alguma cavernaperdida da Pré-história. Na cultura nerd da nossa atualidade, de Merlina Harry Potter, muito já foi dito sobre magia em livros, HQs, filmes,séries de TV e desenhos animados. Poderes eletrizantes foram evocados,mundos foram criados e destruídos, corujas inocentes foram mortas,enfim, ela alimentou momentos de sucesso, fracasso, euforia, tristeza,suspense e muita emoção na eterna luta do Bem contra o Mal.
E em muitos desses momentos o gato preto esteve presente.Sim, sempre ele, o melhor amigo da bruxa. Animal cercado desuperstições, o gato já teve status divino no Egito dos faraós, foi
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perseguido na época da caça às bruxas e ainda hoje é o pesadelo demuito marmanjo por aí, que não suporta ficar sequer um segundodiante daqueles olhos capazes de enxergar a alma dos demais seresvivos. Somente quem tem um felino em casa conhece a dádiva de serescolhido por ele como amigo.
Neste Tratado Secreto de Magia, com certeza, você encontraráinúmeros fãs de gatos entre os autores que se aventuraram pornarrativas que trazem cenários reais e fictícios, resgatam mitos e rituais,constroem personagens únicos e apresentam tramas envolventes.
Como organizadora, procurei selecionar contos quemostrassem estilos e visões diferentes da magia. Por vezes, ela é doce ecativante. Por outras, cruel e terrível. Ela ainda passa pela sedução eaventura, pelo amor e ódio. Claramente inocente ou culpada. Mastambém cheia de nuances, como a própria vida, em que nada seresume somente a heróis e vilões. É como se diz: entre o branco e onegro há variados tons de cinza...
Acredito que seja este o verdadeiro sentido do Tratado no títulodesta antologia. Temos um trato, os autores e eu. Apresentar a magiaem suas várias faces. Porque ela nos atrai e nos assusta, explora odesconhecido em cada um de nós, revela o que há de melhor e de piorem nossos espíritos. Registra os ciclos de nascimento, vida e morte.Renasce. Amadurece. E morre para que novamente possa renascer.
No fundo, cada história deste livro fala sobre quem somos e,principalmente, sobre a nossa inegável ligação com a Natureza. É ela,feminino e masculino, quem nos define e nos explica. É a verdadeiraGrande Mãe e também Pai, presente desde a mais insignificante célulado nosso corpo até a vastidão inimaginável do cosmo.
Para nos acompanhar nesta jornada mágica, o editor EdsonRossatto e eu convidamos dois autores veteranos, grandes talentos daliteratura fantástica brasileira: Adriano Siqueira, meu caro lord vampiro,que reuniu uma bruxa e um corajoso cavaleiro de caninos afiados numahistória divertida, cheia de ação, e Leandro Reis, amigo de longa data,que escreveu um conto com a minha querida Iallanara, personagemde sua trilogia Legado Goldshine. Aliás, foi em outra antologia da Andross
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Editora, Anno Domini – Manuscritos Medievais, co-organizada por mim,que Leandro publicou seu primeiro conto e começou para valer acarreira como escritor.
A partir das próximas páginas, você conhecerá os contos desteTratado. E contará com o nosso anfitrião, personagem de carisma felinoe destaque na capa, que lhe mostrará o caminho no primeiro conto eque o apontará no último.
Boa jornada!
HELENA GOMES nasceu em Santos, São Paulo, em 1966. É jornalista, professorauniversitária e autora dos livros Assassinato na Biblioteca, Lobo Alpha, Código
Criatura, os três pela editora Rocco, e Kimaera – Dois Mundos, pela editora Jambô,além da saga A Caverna de Cristais, pela Idea Editora. Expõe suas obras no sitehttp://mundonergal.blogspot.comContato com a autora: [email protected]
CONTOS
O TOTEM DO GATO PRETODUDA FALCÃO
In memoriam de Bastet
Faleceu minha avó. Não sei dizer quantos anos tinha. Revireia casa, do sótão ao porão, para encontrar sua certidão de nascimento.Em vão. Nada além de livros empoeirados e velhos, objetos toscos e depouco valor. Uma vizinha do outro lado da rua afirmava o despautério deque Julieta viveu mais de 120 anos. Ri disso, como quem ri de qualqueroutra piada, mas se eu fosse um pouco mais descontrolado teria xingadoa velha mentirosa. Ela, sim, aparentava cem anos de idade.
Continuei a busca por algum tempo. Julieta era excêntrica.Em sua casa de madeira intocada por cupins, mofo ou teias de aranha,compartilhava o espaço com dezenas de gatos pretos. No início, eunão sabia o que fazer com os bichanos. Pensei em despejá-los em algumterreno baldio, como fazem muitas pessoas que os desprezam. Noentanto, resolvi alimentá-los. Não queria ser culpado de deixar tantosanimais morrerem de fome. Isto seria uma crueldade. A partir daquelemomento, eles começaram a me proteger.
A herança que me coube consistia naquela casa, seus móveise utensílios, incluindo aí os felinos de pelo negro; primeiramente, poruma questão de respeito à vida, em segundo lugar, por um mínimo deconsideração à memória de minha avó, que amava aqueles animais.
Eu morava na capital. Antes de decidir me mudar para ointerior, para a cidade de origem da minha família materna, fiz algumasviagens de um lugar a outro com a finalidade de resolver os trâmiteslegais da passagem dos bens de Julieta para o meu nome. Foi nessasviagens que percebi o que, a princípio, parecia apenas um devaneio.
Já na rodoviária, notei dois gatos pretos sentados na calçadaao lado do ônibus no qual eu embarcava. Os dois miúdos brincavam
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despreocupadamente. Da janela, antes que partisse, vi a dupla me olhar,olhos nos olhos. Achei engraçado e, ao mesmo tempo, perturbador.
Noutro dia, perto do meu apartamento, um gato preto passoucorrendo na minha frente, antes que eu atravessasse a rua. Uma fraçãode segundo depois, ocorreu um acidente. Dois carros se chocaram.Uma mulher morreu. Escapei de ser esmagado pelos veículos. Muitoabalado com aquilo, não consegui dormir à noite.
Numa manhã nublada, enquanto fazia compras no mercadopúblico, um filhote pulou em minhas pernas e começou a me acariciarcom o focinho. Ao curvar-me para fazer carinho em sua cabecinha,encontrei minha carteira, que havia deixado cair, por descuido, depoisde pagar as frutas que adquirira com um vendedor. Quando junteimeu pertence, o gatinho se afastou.
A vida parecia seguir seu curso normal. Porém, sabia que algohavia mudado. Para qualquer lugar que eu olhasse — uma sarjeta, umbeco, uma rua ou uma avenida —, um gato preto, ou às vezes mais deum, me observava. Sim, eles me acompanhavam com o olhar para ondequer que eu fosse. Para algumas pessoas, isso poderia causar certoincômodo, mas para mim a reação emocional foi exatamente contrária.Com o passar dos dias aquela sensação de ser vigiado me confortava, mepermitia caminhar despreocupado pelas calçadas, pois eu sabia que anjosde quatro patas zelavam por mim, me protegiam sem cobrar nada.
De volta à casa da minha avó, descobri que a vizinha maispróxima tinha desistido de alimentar os gatos durante os dias em queme ausentara. Ela argumentou que eles não a obedeciam, que nãocomiam a ração oferecida de maneira alguma. Assim, estavam ficandomagros e fracos. De minhas mãos, porém, os felinos se alimentavamcom satisfação, ronronavam de êxtase, prazer e alegria.
Descobri que o que desejavam era apenas carinho e afeto.Comecei a admirar aqueles animais que tão bem me tratavam comseus afagos e companhia incondicional. Finalmente não quis mais deixara casa de Julieta. Tentei de tudo para fazer a mudança o quanto antes.
Só então, vivendo na casa, resolvi folhear com mais atençãoos livros velhos que existiam por lá. Não foi um nem dois exemplares
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que encontrei, mas muitos versavam sobre o mesmo tema: bruxaria.Porém, tratava-se de uma bruxaria diferente, pois os livros de minhaavó não versavam sobre demônios, missas negras, sortilégios oumalefícios que pudessem ser realizados contra o próximo. Em qualquerconto de fadas da minha infância, a presença da bruxa era motivo demedo e terror. Nos livros que encontrei, não pude associar em nenhummomento a imagem das feiticeiras à identidade do mal. Naquelaspáginas amareladas e gastas pelo tempo, li, sobretudo, receitas deunguentos, chás, refeições, bebidas e remédios benéficos.
Não fosse pelos livros, até hoje não teria a curiosidadesuficiente para pesquisar acerca dos estranhos objetos guardados porJulieta. Na cozinha, havia um pequeno caldeirão de ferro que, emoutros momentos, ela utilizara para fazer chás. Sem dúvida, peçaincomum em outras casas. Por sinal, nas prateleiras existem váriosfrascos contendo ervas. Preciso descobrir quais são e para que servem.Pretendo estudar com afinco esses volumes, todos eles. Ao lado daporta dos fundos, existe uma vassoura repleta de inscrições entalhadasno cabo de madeira, como se tivessem sido marcadas a fogo. Admitoque não compreendo seu significado. Gostaria de poder traduzi-las.
De todos os objetos, o mais intrigante é um totem de meiometro que representa um gato preto. Certa tarde, quatro gatos pularamem minha cama e começaram a puxar o cobertor com as unhas. Pedique parassem, mas eles não estavam dispostos a seguir ordens. Resolvilevantar. Tão logo fiquei de pé, os bichanos caminharam para fora doquarto, fazendo movimentos graciosos com os rabos, como seestivessem me convidando para segui-los.
Na sala de estar, em torno do totem, todos os gatos da casahaviam se reunido. E, no momento do ocaso, todos os dias, meuscompanheiros de pelo negro se deitam aos pés da imagem de madeirae a reverenciam. Cada vez mais tenho a sensação de que são seresinteligentes capazes de sentir, amar e idolatrar.
Já me considero um deles. Fui aceito pelo grupo sempreconceitos.
Todos os finais de tarde medito diante do deus felino.
ONTEMLETÍCIA NAVEIRA
Lembro que à noite pedias para que eu te contasse histórias.Entrava claridade pela janela e o teto desenhava as luzes dos
carros passando.Então, deitavas a cabeça sob meu braço de modo que eu ainda
te pudesse fazer carinhos na cabeça. Contava-te histórias da minhainfância, da mitologia, fábulas. Eu contava pausadamente para quetivesses sono e, entre as minhas palavras, adormecesses sereno.
Eu te acalmava. Tinhas um sono estranho; tu te debatias,gemias alto e às vezes me acordavas aos gritos.
Contava-te contos leves, de castelos, de virtudes humanas paratornar teu sono ameno, para que dormisses como um anjo ao meu lado.
Dormias em meus braços inocentemente.Olhar tua paz me trazia paz.Custavas a fechar os olhos e muitas vezes dormias com eles
abertos; ficavam lacrimejados.Era estranho acordar de madrugada e ver-te olhando para
mim. Será que zelas por mim ou me vigias?
��
O instante fantasma de ontem, os teus olhos vidrados,assombra sombras passantes, perturba almas delirantes.
Desatina, desalinha, vem em forma de vozes que ordenam.Eles me esperam, num lugar distante e escuro. Para o batizado
mágico. Só vejo olhos de coruja na penumbra.Eles observam a minha passagem, o meu desencarnar, descarnar.
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