1. [RATADO DE SOCIOLOGIA sob a direo de Raymond Boudon AO
Raymond Boudon GRUPOS E SOCIABILIDADE Jean Baechler ESTRATIFICAO
Mohamed Cherkaoui MOBILIDADE Mohamed Cherkaoui PODER Franois Chazel
CONFLITOS Pierre Birnbaum MOVIMENTOS SOCIAIS Franois Chazel MUDANA
SOCIAL BernardValade ORGANIZAO ErhardFredberg DESVIO Maurice Cusson
RELIGIO Jean Baechler ' CULTURA Bernard Valade CONHECIMENTO Raymond
Boudon COMUNICAO Francis Baile ISBN 85-7110-339-9 9" 788571 "
103399' BOUDON sob a,;direo de RAYMOND BOUDON Zahar Editor 316 T776
ex. 3 003309 Jorge Zahar Editor
2. A sociologia seria o ponto de conver- gncia e de integrao de
todos os saberes especficos relativos aos fen- menos humanos, a
explicao de todos os fatos culturais e uma filosofia des- pojada de
toda metafsica. Difcil tarefa, a de elaborar um tratado de uma
cincia que se pretende o pice, e o corolrio, do sistema das
cincias. Ademais, observamos permanentes di- vergncias sobre os
princpios que re- geriam a sociologia. Certas tradies atribuem-lhe
funo essencialmente prtica de assistncia a deciso, em es- pecial a
deciso poltica, buscando con- tribuir para a soluo de problemas so-
ciais (tais como pobreza, delinqncia, desemprego, resoluo de
conflitos etc.). Talorientao importantesobretudonos Estados Unidos
e suas reas de influn- cia, embora tambm esteja presente - com
carter mais marginal - na sociolo- gia clssica francesa ou alem.
Assim, h vrias formas de se conceber um tratado de sociologia.
Raymond Boudon optou por privilegiar o para- digma designado por
sociologia da ao, organizando um livro que percorre quatorze
grandes temas da sociologia clssica: ao, grupos e sociabilidade,
estratificao, mobilidade, poder, conflP tos, movimentos sociais,
mudana social, organizao, desvio, religio, cultura, co- nhecimento
e comunicao. Cada tema ficou a cargo de um especialista, com plena
liberdade de conceber ele prprio a respectiva contribuio. Da
resultou uma diversidade dos ngulos de abor- dagem e de estilo, com
alguns captulos TRATADO DE SOCIOLOGIA
3. sob a direo de Raymond Boudon com a colaborao de J.
Baechler, F. Baile, P. Birnbaum,R. Boudon,F. Chazel, M. Cherkaoui,
M. Cusson, E. Friedberg, B. Valade TRATADO DE SOCIOLOGIA Traduo:
Teresa Curvelo Consultoria: Renato Lessa Professor e diretor
executivo do luperj Professor-titular de cincia poltica da UFF
Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro
4. SUMRIO Ttulo original: Trait de sociologie Traduo autorizada
da primeira edio francesa publicada em 1992 por Presses
Universitaires de France, de Paris, Frana Copyright 1992, Presses
Universitaires de France Copyright 1996 da edio brasileira: Jorge
Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro,
RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail:
[email protected] site: www.zahar.com.br Todos os direitos
reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo ou em
parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Edio
para o Brasil Apoio: Embaixada da Frana Reviso de texto: Andr
Telles Capa: Kathia Junqueirae Marciso Carvalho CIP-Brasil.
Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
T698 Tratado de sociologia / sob a direo de Raymond Boudon, com a
colaborao de J. Baechler... [etai]; tra- duo de Teresa Curvelo;
reviso tcnica-de Renato Lessa. - RiodeJaneiro: Jorge Zahar Ed.,
1995 604p. Traduo de: Trait de sociologie ISBN 85-7110-339-9 l.
Sociologia. I. Boudon, Raymond. 95-2008 CDD -301 CDU - 301 R eg.
003309 Sobre os colaboradores 9 INTRODUO n Raymond Boudon A
diversidadeda sociologia clssica n A diversidade da sociologia
contempornea 15 Unidade: para qu? ]g A concepo do presente tratado
23 1. AO 27 Raymond Boudon O paradigma da sociologiada ao 27 Os
princpiosda sociologia da ao 33 Como o socilogo deve conceber a ao
individual? A racionalidadedo ator social 40 Efeitos de composio 52
A sociologia da ao e os outros paradigmas 57 2. GRUPOS E
SOCIABILIDADE 65 Jean Baechler A sodalidade 66 l Asociabilidade 77
l A socialidade 89
5. 3. ESTRATIFICAO Mohamed Cherkaoui 107 Os discursos sobre a
origem da desigualdade 108 A teoria marxistada formao de classes
118 O poder como dimenso irredutvel das estratificaes 125 A sntese
weberiana e suas conseqncias sobre a pesquisa contempornea: classe,
status, partido 131 Efeitos e conseqncias da estratificao 144 4.
MOBILIDADE .. Mohamed Cherkaoui 167 Medidas e modelos 167
Estruturas e mecanismos geradores da mobilidade 183 Evoluo da
mobilidade e paralelos internacionais 193 Conseqncias sociais e
polticas da mobilidade 202 5.PODER . . . . Franois Chazel 213 O
conceito de poder 213 Poder e dominao 227 Especificidade e
importncia do poder poltico 238 6.CONFLITOS Pierre Birnbaum 247 As
teorias sociolgicas do conflito 249 A anlise sociolgica das
dimenses do conflito 262 Conflitos sociais, mobilizaes, revolues
271 7. MOVIMENTOS SOCIAIS Franois Chazel 283 Uma caracterizao
elementar do movimento social 284 As tarefas essenciais de uma
sociologia dos movimentos sociais 291 Os primrdios da anlise dos
movimentos sociais 292 A poca do comportamento coletivo 297 A poca
da mobilizao dos recursos 311 Para alm da mobilizao dos recursos.
Rumo a uma abordagem multidimensional? 324 8. MUDANA SOCIAL Bernard
Valade 337 Aspectos e representaes 339 As anlises da mudana social
343 A "revoluo industrial": interpretaes e revises 354 O problema
da inovao 359 A mudana social em questo 363 9. ORGANIZAO Erhard
Friedberg 375 O problema da racionalidade dos comportamentos
humanos 377 O problema da integrao 383 A organizao e seu
"contexto": o problema das fronteiras organizacionais 391 A
autonomia do ato organizacional 398 Organizao ou sistema de ao? 404
10. DESVIO Maurice Cusson 413 A natureza do desvio 413 A teoria do
controle social 425 O paradigma da ao 435 A conjuntura atual 443
11. RELIGIO Jean Baechler 449 natureza do fenmeno religioso 450
produes sociais da religio 459
6. As incidncias do religioso sobre o no-religioso 467
Modernidade e religio 475 12. CULTURA 489 Bernard Valade Um
conceito ambguo 489 f Gnese do princpio de relatividade cultural
490 l A anlise antropolgica da cultura 498 j A sociologia e a
cultura no cotidiano 506 i A cultura em partilha 515 13.
CONHECIMENTO 519 Raymond Boudon O sentido do termo "conhecimento"
na sociologia do conhecimento 519 O territrio da sociologia do
conhecimento: trs posies 520 As contribuies e os temas da
sociologia do conhecimento 522 As teorias das crenas 540 Sociologia
do conhecimento e relativismo 552 14. COMUNICAO 501 Francis Baile O
tema sociolgico e sua especificao contempornea 561 Os meios de
comunicao e o comrcio das idias: as diversas abordagens para o
estudo da "comunicao" 566 A aplicao da sociologia da ao ao estudo
das comunicaes 581 ndice temtico 595 SOBRE os COLABORADORES Jean
BAECHLER Francis BALLE Pierre BIRNBAUM Raymond BOUDON L Franois
CHAZEL Professor na Universidade de Paris-Sorbonne. Publicou, entre
ou- tros livros, Ls origines du capitalisme, Paris, Gallimard,
1971, 2-ed., 1981; Ls suicides, Paris, Calmann-Lvy, 1975; Dmocra-
ties, Paris, Calmann-Lvy, 1985; La soluon indienne, Paris, Pres-
ses Universitaires de France ("Sociologies"), 1988. Professor na
Universidade de Paris II Panthon-Assas, membro do Conseil Suprieur
de 1'Audiovisuel. Publicou, entre outros, The Media Revolution in
America and Western Europe, Nova York, Universidade de Stanford,
Ablex, 1985; Et si Ia presse n'existait ps, Paris, Jean-Claude
Latts, 1987; Ls nouveaux mdias (com G. Eymery), Paris, Presses
Universitaires de France ("Que sais- je?"), 1990 (1984); Mdias et
socits, Paris, Montchrestien, 1990 (1980). Professor na
Universidadede Paris I. Publicou,entre outroslivros, Lafin
dupolitique, Paris, Seuil, 1975; Thorie sociologique (com F,
Chazel), Paris, Presses Universitaires de France, 1975; Sociolo-
gie de VEtat (com B. Badie), Paris, Grassei, 1979; L peuple et ls
gros. Uistoire d'un mythe, Paris, Grassei, 1979; Sur Vindividualis-
me (com J. Leca), Paris, Presses de Ia Fondation Nalionale ds
Sciences Poliliques, 1986. Membro do Institui,professor na
Universidadede Paris-Sorbonne. Publicou, entre oulros livros,
L'ingalit ds chances, Paris, Ha- chelte, 1985 (J973); Effets
pervers et ordre social, Paris, Presses Universilaires de France
("Quadrige"), 1989 (1977, "Sociolo- gies"); Dictionnaire critique
de Ia sociologie (com F. Bourricaud), Paris, Presses Universilaires
de France ("Sociologies"), 1990 (1982); La logique du social,
Paris, Hachelle, 1983 (1979); L'ido- logie ou Vorigine ds ides
recues, Paris, Fayard, 1992 (1986); L'art de se persuader, Paris,
Fayard, 1992 (1990). Professor na Universidadede Paris-Sorbonne.
Presidiu a Socit Franaise de Sociologie de 1986 a 1990. Publicou,
enlre oulros livros, La thorie analytique de Ia socit dans 1'ceuvre
de Talcott Parsons, Paris, Moulon, 1974; Sociologie politique (com
P.Birn- baum), Paris, A. Colin, 1978; Pratiques culturelles
etpolitiques de
7. 10 TRATADO DE SOCIOLOGIA Mohamed CHERKAOUI Maurice CUSSON
Erhard FRIEDBERG Bernard VALADE Ia culture (red.), Bordeaux, Maison
ds Sciences de 1'Homme d'Aquitaine, 1987. Co-dirigiu dois nmeros
especiais da Revue Franaise de Sociologie: Aspects de Ia sociologie
politique (com P. Favre), 1983, e Sociologie de Ia Rvolution (com
F. Gresle), 1989. Normes juridiques et rgulation sociale (co-red.
com J. Commaille), Paris, LGDJ, automne 1991; Action collective et
mou- vements sociaux (red.), Paris, Presses Universitaires de
France ("Sociologies"), 1992. Professor na Universidade de
Lausanne. Publicou, entre outros livros, Ls paradoxes de Ia russite
scolaire, Paris, Presses Univer- sitaires de France
("L'Educateur"), 1979; Ls changements du systme ducatifen France,
1950-1980, Paris, Presses Universitai- res de France
("Sociologies"), 1982; Sociologie de 1'ducaon, Paris, Presses
Universitaires de France ("Que sais-je?"), 1986. Professor na cole
de Criminologie e investigador no Centre Inter- national de
Criminologie Compare da Universidade de Montreal. Publicou, entre
outros livros, Dlinquants. Pourquoi?, Paris, A. Colin, 1981; L
controle social du crime, Paris, Presses Universi- taires de France
("Sociologies"), 1983; Pourquoi punir, Paris, Dalloz, 1987;
Croissance et dcroissance du crime, Paris, Presses Universitaires
de France ("Sociologies"), 1989. Diretor de pesquisa no CNRS, matre
de confrences no Institui d'Etudes Politiques de Paris. Publicou,
entre outros, L'analyse sociologique ds organisations, Paris,
CHarmattan, 1987 (1972); Uacteur et l systme (com M. Crozier),
Paris, Seuil, 1977; Staat und Industrie in Frankreich, Berlim,
1979; L jeu du catalogue (com Ph. Urfalino), Paris, Documentation
Franaise, 1984; En qute d'universits (com Christine Musselin),
Paris, l'Harmattan, 1989, bem como inmeros artigos no mbito da
sociologia das organizaes. Professor na Universidade de Bordeaux
II, Secretrio-geral de L'Anne sociologique, conselheiro cientfico
da Encyclopaedia Universalis. Publicou, entre outros livros,
Pareto. La naissance d'une autre sociologie, Paris, Presses
Universitaires de France ("Sociologies"), 1990, bem como inmeros
artigos no mbito da sociologia da cultura. INTRODUO RAYMOND BOUDON
Uma idia oriunda da filosofia contempornea das cincias pretende
que, num regime de "cincia normal", ioda e qualquer comunidade
cientfica obedea a um "paradigma" nico, os investigadores de cada
disciplina seguindo, portanto, um conjunto de princpios sobre os
quais todos estariam de acordo. Apenas nos perodos de revoluo
cientfica surgiriam dvidas e divergncias, e os paradigmas tenderiam
a multiplicar-se at que um dos diversos concorrentes prevalecesse
sobre os restan- tes, iniciando um novo perodo de "cincia normal".
Perguntamo-nos se, no que diz respeito sociologia, no se dever
inverter esta descrio. De fato, nesta disciplinaobservamos, ao
contrrio, permanentes divergn- cias sobre os princpios que a
definem, " que somente nos raros momentos em que uma escola
consegue impor, provisoriamente, o seu ponto de vista que domina um
paradigma nico. Se necessrio evocar esta diversidade de
perspectivas porque a mesma assume propores de desafio quando se
trata de conceber e elaborar um tratado de sociolo- gia. Convm,
portanto, proceder sua avaliao antes de apresentar e tentar
justificar a soluo por que optamos. A diversidade da sociologia
clssica As divergncias a que acabamos de aludir surgem desde muito
cedo na histria da sociologia. Antecedem mesmo o seu batismo, ao
menos seacreditarmos na lenda:diz-se que AugusteComte, criador da
palavra "sociologia", teria preterido aexpresso "fsica social", que
ele prprio lanara em 1822 em seu Plan ds travaux ncessaires pour
reorganiser Ia socit, se esta no tivesse sido utilizada por A.
Quetelet para designar uma disciplinaque pouco tinha a ver com o
seu prprio projeto. A "fsica social", na acepo de Quetelet (1869),
grosso modo o estudo estats- tico dos fenmenos sociais. Comte, por
seu lado, conferia "sociologia" palavra que introduziu, quase se
desculpando, em uma nota de seu Cours ambies muito mais elevadas.
Encarava nova disciplina como o pice do sistema das cincias: da
astronomia biologia,
8. 12 TRATADO DE SOCIOLOGIA passando pela fsica e pela qumica,
surgiu e foi sendo progressivamente construda uma hierarquia de
cincias que tratavam de aspectos do real cada vez mais comple- xos.
Todavia, em meados do sc.xix, esta pirmide continuava incompleta,
segundo Comte, uma vez que se limitava cincia do vivo. Props, por
conseguinte, antecipar e facilitar uma evoluo que considerava
inelutvel.A sociologia estava destinada, segundo o esprito de seu
patrono, a constituir seu elo derradeiro: com ela, pretendia- se
que o estudo dos fenmenos humanos atingisse o estado "positivo".
Com o distanciamento, apreende-se toda a ambigidade de um projeto
que se baseia sobre dois postulados extremamente audaciosos e que
consistem, um, em assimilar os fenmenos humanos aos sociais, o
outro, em confiar a uma nica disciplina a tarefa do respectivo
tratamento. Se verdade que possui um valor particularmente
ilustrativo, a divergncia de opinio entre Quetelet e Comte no a
nica a que podemos nos referir. No final do sc.xiXe incio do XX,as
duas escolas sociolgicas consideradas de um modo geral as mais
importantes, a francesa e a alem, parecem apoiar-se ao menos nas
declaraes de inteno em princpios fortemente antagnicos, os quais no
se mostram facilmente conciliveis. As ambies de Comte fazer da
sociologia o ponto de convergncia e de integrao de todos os saberes
especficos relativos aos fenmenos humanos, atri- buir-lhe as funes
da filosofia, mas de um?, filosofia despojada de toda metafsica
sempre mantiveram um forte poder de seduo junto a muitos socilogos,
em especial os franceses. Isso , provavelmente, o resultado da
influncia de mile Durkheim, sem dvida o mais importante dos
socilogos clssicos franceses. Aps ter sido relegada a segundo plano
no entre-guerras, essa influncia voltou tona nos ltimos decnios.
Ora, acontece que Durkheim aceitara uma boa parte da herana de
Comte, especialmente seu imperialismo intelectual, a sua concepo
hierarquizada das cincias e a idia de que cabia sociologia coroar o
sistema das cincias. Da o sociologismo patente em Durkheim; que se
revela, por exemplo, em sua pretenso de reservar a exclusividade da
explicao de todos os-fenmenos culturais da cincia ou da religio,
assim como da magia em particular apenas sociologia, tal como ele a
concebia, e de eliminar os modos de pensar caractersticos da
histria, da filosofia, da economia ou da psicologia, por exemplo.
Para evitar qualquer confuso, convm acrescentar desde j que, apesar
desses excessos, Durkheim foi um inovador autntico e importante do
ponto de vista cientfico. Foi assim que, em L suicide,
contribuiupara aprimorar de forma consi- dervel os mtodos da
"estatstica moral'H Em Ls formes lmentaires de Ia vie religieuse,
uma obra contestvel em diversos aspectos, props uma teoria da
origem da noo de alma ou das relaes existentes entre a cincia, por
um lado, e a magia e a religio, por outro, que considerada uma
contribuio incontestvel para o conhecimento. Poderamos encontrar em
sua obra muitas outras inovaes que tm resistido bem usura do tempo.
Por outro lado, convm observar que, se em seus escritos
doutrinaisDurkheim sublinha com insistncia sua fidelidade tradio
positivista, em suas anlises afasta-se dela consideravelmente. Como
bom positivista, pretende, por exemplo, INTRODUO 13 eliminar de sua
sociologia todo e qualquer postulado referente subjetividade,
supostamente inobservvel, do ator social. Todavia, L suicide (1897)
e, mais ainda, Ls formes lmentaires de Ia vie religieuse (1912)
contm inmeras hipteses e anlises "psicolgicas" muitas vezes
brilhantes, convincentes e inovadoras que, alm disso, desempenham
um papel central tanto em sua linha evolutiva como em sua
demonstrao, mas que o autor procura escamotear e
minimizar,certamente por uma preocupao de coerncia com os textos
doutrinais. Em suma, se a epistemologia de Durkheim parece
situar-se, de acordo com seus textos tericos, no campo oposto de
Weber, o contraste entre os dois socilogos surge muito menos
acentuado se considerarmos no o que Durkheim diz, mas o que ele/az.
Ao contrrio da sociologia clssica francesa, a sociologia clssica
alem desen- volveu-se sobretudo como reao contra as vises
totalizantes e, em particular, contra a filosofia da histria de
inspirao hegeliana. Como bons neokantianos que foram, com
diferentes nuanas, os grandes socilogos clssicos alemes, como Max
Weber ou Georg Simmel, demarcam com insistncia os limites da
sociologia, disciplina a que no atribuem qualquer espcie de
supremacia. Ambos a definem antes como um estilo especial de anlise
dos fenmenos histricos. Mais precisa- mente, vem nela uma histria
que explicaria os fenmenos histricos e sociais, libertando-se das
imposies do relato e da hegemonia do mtodo gentico. A exemplo do
economista, que trata igualmente de fenmenos que pertencem esfera
do historiador, mas que os aborda de forma diversa do historiador
da economia, o socilogo estaria inclinado a pesquisar, no fluxo
histrico, casos tpicos, mecanismos repetitivos, para introduzirna
histria o mtodo dos modelos, isto , representaes voluntariamente
esquemticas e idealizadas do real. Para alm das diferenas, a tradio
clssica francesa de Durkheim , a tradio clssica alem de Weber , a
tradio, seno inaugurada, pelo menos brilhantemente ilustrada por
Quetelet partilham, para alm das diferenas que as separam, um
objetivo comum: nos trs casos, o socilogo prope-se explicar os
fenmenos que lhe interessam. Em contrapartida, h outras tradies que
se atribuem um objetivo sobretudo descritivo. Aqui, o modelo
intelectual a que o socilogo se submete aproxima-se mais da
reportagem. Esta tradio ilustrada na Frana, de modo particularmente
brilhante, por L Play, por exemplo. De acordo com uma outra tradio
importante, a sociologia teria uma funo essencialmente prtica de
assistncia deciso, em especial deciso poltica. Esta orientao
importante sobretudo nos Estados Unidos: desde o incio, muitas das
investigaes sociolgicas desenvolvidas neste pas so inspiradas pela
preocupao de contribuirpara a "soluo" dos problemas sociais:
pobreza, delinqncia,desem- prego, aperfeioamento dos mtodos de
negociao, de "resoluo dos conflitos", por exemplo. Esta tradio
encontra-se igualmente presente na sociologia clssica francesa ou
alem, embora surja a com carter mais marginal. De um modo geral, a
sociologia "aplicada" parece ser acolhida com maior condescendncia
na Frana ou na Alemanha do que nos pases anglo-saxnicos. Mesmo
quando se preocupam com a "utilidade social" de sua disciplina, os
socilogos europeus da poca clssica
9. 14 TRATADO DESOCIOLOGIA tendem a manifestai' uma atitude
arrogante. Assim, verdade que Max Weber se encarregou de uma
investigao que permitisse esclarecer os governantes alemes quanto
poltica de imigrao a adotar em relao aos poloneses. No entanto,
este estudo "aplicado" no teve continuidadeem sua obra. Quanto a
Durkheim ou a seu opositor, Gabriel Tarde, quando abordam,
respectivamente, o suicdioe o crime, no tanto porque estejam
interessados em aperfeioar "mtodos de preveno" desses flagelos
nacionais, mas porque vem nos ndices de criminalidade ou de suicdio
indicadores reveladores do estado geral da sociedade, e que
permitem apreender as linhas de fora da evoluo social. Muito embora
tenha sido diretor de estatstica criminal, o professor do Collge de
France no se sente mais atrado pela sociologia aplicada do que o
professor da Sorbonne. Interrompemos aqui esta enumerao esquemtica
que no pretende de modo algum propor um panorama da sociologia
clssica, que vai se formando progressiva- mente no final do sc.xix,
e incio do sc.XX, mas to-somente ressaltar a enorme diversidade de
concepes da sociologia, dominantes neste perodo da suafundao.
Referimo-nos anteriormente sociologia clssica francesa, sociologia
alem, sociologia americana.No sedeve concluir, apartirdessas
expresses e das observaes precedentes, que existam tantos
paradigmas sociolgicos quantos os pases onde essa disciplina foi
implantada. Pois, se as diversas tradies que acabam de ser
enumeradas tendem, desde os primrdios da sociologia, a estar mais
ou menos correlacionadas aos respectivos contextos nacionais, isso
acontece de forma muito imperfeita. Da que, quando Tocqueville
(1856) declara, logo na primeira linha de sua obra sobre UAncien
Regime et Ia Rvolution, que no se dever ver nela "um livro de
histria", est implicitamente definindoesse seu empreendimentocomo
de naturezasociolgica. No podia, porm, utilizar de modo algumuma
expresso to estreitamente associada obra idiossincrtica de Comte.
Ora, nesse livro, tal como em De Ia dmocratie enAmrique,
Tocqueville desenvolve anlises que correspondem, tanto nos
princpios como nos mtodos, concepo que um Weber ir fazer da
sociologia. No nos conta uma histria, mas levanta questes
abstratas: por que razo os intelectuais ingleses do sc.XVIII
desenvolvem concepes muito mais pragmticas e sensivelmente menos
radicais do que seus homlogos franceses, em matria poltica? Por que
razo a distri- buio das cidades de acordo com sua respectiva
dimenso diferente na Frana e na Inglaterra? De onde se origina a
"fora da religio" nos Estados Unidos? Como se explica que as
maneiras dos ingleses sejam diferentes das dos americanos? A estas
questes, Tocqueville responde com modelos bastante simplificados,
explicando tais fenmenos macroscpicos como efeito de comportamentos
ou atitudes individuais, os quais justifica a partir das razes que
levaramos atores sociais a adot-los. O que vlido para a Frana o
igualmente para a Alemanha, a Inglaterra ou os Estados Unidos: em
todos esses pases, as diferentes tradies a que se aplica o rtulo
"sociologia" estiveram praticamente todas elas representadas nas
primeiras fases de institucionalizao desta disciplina, se bem que
em graus variveis. IP' INTRODUO 15 diversidade da sociologia
contempornea A sociologia do sc.XX no conseguiu conciliar os
diversos projetos formulados por seus pioneiros. Poderiam ser
mencionadas, claro, algumas tentativas de sntese, como a de Parsons
(1937), a que se far uma breve aluso mais adiante. Mas a impresso
dominantequandopassamos rapidamente em revista a sociologia contem-
pornea a de que ela to heterclita, seno mais, quanto a sociologia
clssica. Comecemos pela tradio descritiva, em relao qual L Play
(1855) , na Frana, talvez o melhor heri epnimo. Sem dvida, nem
sempre fcil distinguir entre estudos descritivos e estudos
explicativos. Ambos os objetivos, descrio e explicao, surgem com
freqncia como que associados entre si na prtica. Igualmente
desejvel seria distinguir entre as obras descritivas que se
limitam, para usar as expresses de C. Geertz, thin description
daquelas que alcanam a thick description. E no menos verdade que um
grande nmero de trabalhos sociolgicos tem como principal objetivo
tornar visveis meios e fenmenos sociais mais ou menos transparentes
e familiares para os protagonistas em causa, mas que permanecem
desconhecidos do pblico. Este tipo de trabalho, que define o gnero
sociolgico que qualificamos como descritivo, encontra-se
abund?ntemente representado na sociologia contempornea. Desse modo,
foram socilogos sobretudo os do Centre de Sociologie Urbaine,
inicial- mente liderado por Henri Lefebvre (1968) que trouxeram at
a praa pblica o tema dos grandes conjuntos habitacionais, e que
fizeram a descrio das condies de existncia caractersticas desses
tipos de habitat, condies essas por demais conhecidas dos prprios
habitantes. Considerando um segundo exemplo, o funcio- namento do
mercado da arte ou os princpios que permitem que um indivduo tenha
acesso e ascenda ao "mundo da arte" so relativamente transparentes
para os atores envolvidos no jogo da concorrncia artstica, embora
nem sempre o sejam para o pblico. Em casos deste gnero, o socilogo
pode desempenhar, e tem efetivamente desempenhado, um papel eficaz
de informador, como o demonstram os trabalhos de R. Moulin (1967)
na Frana ou de H. Becker (1982) nos Estados Unidos. Essa informao
pode assumir uma forma essencialmente qualitativa,quando se trata,
por exemplo, de descrever o que se passa verdadeiramente numa
escola, numa fbrica, numa galeria de arte ou num grande aglomerado.
Visa, ento, dar resposta a perguntas do tipo "o qu?" ou "como?".
Pode, porm, se revestir de uma forma sobretudo quantitativae
destinar-se a responder de preferncia a perguntas do tipo
'quanto?": muitos dos inquritos quantitativos sobre o consumo dos
agregados familiares, os efetivos escolares, a evoluo do crime, as
flutuaes de opinio e outras questes tm efetivamente uma finalidade
sobretudo descritiva. Evidente que intil insistir no fato de que a
sociologia descritiva responde conjuntamente com outras fontes de
informao, como por exemplo as reportagens jornalsticas, os
inquritoselaborados pelos institutosestatsticos administrativosou
pelos institutos de pesquisa a uma procura premente das sociedades
modernas. Esta sociologia descritiva permitiu, com freqncia,
revelar fenmenos mal conhe-
10. 16 TRATADODESOCIOLOGIA cidos. Do mesmo modo que a
sociologia urbanados anos 60 chamou a ateno para os grandes
aglomerados, a sociologia industrial dos anos 50, graas ao talento
de G. Friedmann (1956) ou de A. Touraine (1955, 1973),
sensibilizara o pblico para as condies de trabalho nas fbricas.
Graas a M. Crozier (1965) na Frana e a C. Wright Mills (1951) nos
Estados Unidos, descobriu-se na mesma poca "o mundo dos empregados
de escritrio". Constata-se com isso no apenas que a sociologia
descritiva ocupa lugar impor- tante, como se pode lamentar,por
vezes, que no se encontre mais desenvolvida, que no abranja maior
nmero de temas e que no os abarque mais regular e sistemati-
camente. Se a sociologia estivesse mais difundida, talvez as
decises polticas assentassem com menos freqncia numa ignorncia
completa do que se passa realmente in loco. Pensamos, por exemplo,
no fracasso de todas as reformas escola- res ou universitrias que
se sucederam a um ritmo avassalador na Frana nasltimas dcadas.
Todas elas parecem ter sido inspiradas muito mais por princpios
gerais do que pela preocupao de responder a uma situao muitas vezes
vivida pelos protagonistas do sistema de educao a comear pelos
alunos, os estudantes e as famlias como debilitante. Se a
sociologia descritiva tivesse feito uma melhor cobertura desta rea
e chamado a ateno para ela, ao faz-lo talvez tivesse orientado
melhor a mo do poltico. Naturalmente, bvio que esta observao no
implica de modo algum que a nica funo que a sociologia pode
desempenhar a de informa- o, nem que tenha como principal vocao
esclarecer o prncipe. Mas deve-se reconhecer tambm que legtimo
esperar que os socilogos contribuam,juntamente com outros, para um
melhor conhecimento da sua sociedade. Porm, se por um lado a
sociologia descritiva parece insuficientementedesenvol- vida, por
outro o est em demasia. Mais precisamente, a espcie "sociologia
descri- tiva" inclui uma subespcie hoje em plena expanso: a das
investigaes que se contentam em registrar dados em vez de buscarem
compreender os fenmenos. Fornecem-nos informaes sobre as sociedades
mais do que nos permitem conhec- las. Este tipo de atividade
sociogrfica tende a tornar-se avassaladora, uma vez que a procura,
pblica e privada, de dados sociais tende a aumentar rapidamente: no
apenas o Estado, mas os partidos, os "movimentos sociais" ou os
diversos "grupos de presso" ou de "interesse" tm uma necessidade de
informao cada vez mais exigente e urgente. Essa informao tem, de
fato, para eles, um interesse no s prtico, como tambm retrico: hoje
em dia, j no se concebe um combate ou um debate poltico que no se
apoie em nmeros e dados. Como diria Schumpeter (1954), o
crescimento desta demanda tende a acentuar o carter cameralista das
cincias sociais, ou seja, a transform-las! em fornecedoras de
informaes para os estados-maiores dos diversos grupos, instituies,
"movimentos" ou agrupamentos que irrompem nas sociedades.1
Conviria, alis, introduzir outras distines no seio da sociologia
descritiva. Pois se o alvo dos estudos sociogrficos muitas vezes
puramente cognitivo,algumas l Boudon (1991). INTRODUO 17 vezes
tambm uma ambio missionria se perfila por trs da descrio: trata-se
ento no apenas de apresentar os grandes aglomerados ou de descrever
o trabalho nas fbricas, mas de chamar a ateno para o carter
insuportvel das mquinas habitao ou do trabalho fragmentado. Se
quisssemos multiplicar as distines, teramos talvez de falar,
quandoessa ambio missionria dominante,de sociologia crtica, na
acepo negativa em que o adjetivo usado pela Escola de Frankfurt.
Vejamos agora o caso da fsica social ao estilo de Quetelet (1868),
ou do Durkheim (l 897) do Suicide. Este gnero sociolgico
distingue-sedo precedente, em primeiro lugar, porque a dominamas
questes do tipo "por qu?". Por que o suicdio mais freqente nos
homens do que nas mulheres, nos pases protestantes do que nos pases
catlicos, na cidade do que no campo?, questionava-se Durkheim. Ade-
mais, esses estudos so de natureza quantitativa. Os fenmenos
sociais cujas varia- es no tempo e no espao procuramos estudar
apresentam-se sob a forma de dados numricos, como os ndices de
suicdio em Durkheim. Por ltimo, a resposta s questes do tipo "por
qu?" pesquisada atravs do estudo metdico das relaes estatsticas
entre as variveis a serem explicadas e as variveis explicativas.
Este gnero sociolgico encontra-se, tambm ele, amplamente
representado na sociologia contempornea por uma razo de fcil
compreenso, isto , a de que no existem fenmenos sociais que no
possam derivar desta metodologia. Verificamos isso pelo fato de ser
possvel mencionar inmerostrabalhos deste tipo sobre fenme- nos to
diversos como o desenvolvimento socioeconmico, as desigualdades
sociais, o crime, o suicdio, a escolarizao, as opinies ou os
valores. Restringindo-nos a alguns exemplos, os estudos de
socioeconomia do desenvolvimento integrados nesta categoria tentam
explorar as relaes estatsticas entre o nvel de desenvolvimento das
naes e um determinado nmero de outras variveis supostamente
"explicati- vas", que abarcam fenmenos to diversos como os ndices
de escolarizao ou os sistemas de valores que caracterizam as
sociedades estudadas. Quanto aos estudos sobre a estratificao,
herdeiros da "fsica social", como os de P.Blau e de O.Duncan (1967)
nos Estados Unidos, de J. Goldthorpe (1980) na Inglaterra, de C.
Thlot (l 982) na Frana, de R. Girod (1977) na Sua,
procuramdeterminarem que medida a posio dos indivduosna sociedade
afetadapor sua origem social, o nvel escolar e outras variveis de
tipo idntico. Por outro lado, analisam as alteraes dessas relaes no
tempo e no espao. Refira-se de passagem que este gnero sociolgico
deu origem a uma importante literatura tcnica, em que se
desenvolveram instrumentos diversos que permitem estudar as relaes
estatsticas entre um nmero considervel devariveis. A sociologia da
ao ao estilo de Weber ocupa igualmenteum lugar importante na
investigao sociolgica contempornea. No captulo seguinte, iremos
explici- tar as origens intelectuais, o projeto e os princpios
deste paradigma. Podemos, porm, assinalar desde j que, tal como a
"fsica social", caracteriza-se pelo fato de abordar sobretudo
questes do tipo "por qu?". Por outro lado, caso se interesse tambm
por fenmenos quantificveis,o faz de forma menos exclusiva do que a
'fsica social". Rejeitando o princpio segundo o qual no haveria
cincia seno a do geral, interessam-lhe no apenas as regularidades,
mas tambm assingularida-
11. 18 TRATADO DE SOCIOLOGIA ds sociais; os fenmenos
qualitativos, bem como os fenmenos quantitativos. Essas diferenas j
so patentes nos trabalhos clssicos de Weber, quando este se
interroga, por exemplo, por que razo os Estados Unidos apresentam a
singulari- dade da modernizao no ter ali enfraquecido, como parece,
as crenas religio- sas. Ou nos de Tocqueville, ao interrogar-se por
que razo os intelectuais france- ses so mais radicais do que os
intelectuais ingleses. Por outro lado, a sociologia da ao, partindo
do princpio de que a causalidade de um fenmeno reside nas aes
individuais de que o resultado, considera o estudo estatstico das
correla- es, de que a "fsica social" to vida, como uma mera etapa
de anlise, para alm da qual preciso encontrar tambm as razes dos
comportamentos respon- sveis pelas correlaes observadas pelo
estatstico. Obviamente, essas razes devem ser concebidas como
dependentes do contexto em que se situao ator social, o qual de um
modo geral no imutvel,j que os atores contribuem para modific-lo
constantemente atravs de suas prprias aes. Eis por que a sociologia
da ao simultaneamente contextual e dinmica. Este estilo de
sociologia aplica-se indistintamentea todas as categorias de fen-
menos. Eis por que o encontramos hoje representado nos mais
diversos domnios: sociologia das organizaes, dos movimentos
sociais, da ao coletiva, sociologia da estratificao e da
mobilidade, sociologia do desenvolvimento, sociologia do conhe-
cimento, sociologia da comunicao, e de um modo geral em quase todos
os captulos da sociologia. Inmeros estudos, como os de A.
Oberschall (1973) no domnio dos movimentos sociais, de A.
Hirschmann (1980) ou de H. Mendras (1967, 1988) no campo do
desenvolvimento, de J. March e de H. Simon (1958) ou M. Crozier
(1964) no domnio da sociologia das organizaes, de M. Olson (1965)
no da ao coletiva, de R. Boudon (1973) e de M. Cherkaoui (1982) no
da estratificao e da mobilidade, de R. Horton (1967) no da
sociologia da religio, de T.Kuhn (1962) no da sociologia da cincia,
inspiram-se por vezes sem o saberem nos princpios da sociologia da
ao, que consistem, grosso modo, em ver todo o fenmeno social como o
resultado de aes individuais inspiradas por motivos compreensveis,
considerando o contexto social e histrico em que se inscrevem. As
correntes que, de modo muito sucinto, acabamos de identificar na
sociolo- gia contempornea no esgotam a diversidade dessa mesma
sociologia, e podera- mos facilmente introduzir outras distines.
Todavia, interrompemos aqui sua enumerao. Unidade: para qu?
evidente que cada uma dessas tradies conheceu altos e baixos.
Assim, no perodo de euforia que coincide com os "trinta gloriosos"
de que falava Fourasti, a sociolo- gia se apresenta com freqncia,
um pouco por toda a parte, como tendo uma vocao de engineering
social. V-se facilmente como parteira da "mudana". De fato, essa
INTRODUO 19 ambio veio a revelar-se excessiva e os socilogos jamais
conseguiram ocupar na sociedade o lugar que os engenheiros nela
ocupam. Estimulou, porm, o desenvol- vimento de toda uma srie de
pesquisas de campo em mltiplos domnios sociologia da educao, do
crime, das organizaes, da mobilidade social, do desen- volvimento
socioeconmico, dos meios da chamada comunicao de massa etc. que
decerto contriburam para um melhor conhecimento dos processos
sociais. No final desse perodo de euforia, a partir de meados dos
anos 60, desenvolveu-se uma sociologia crtica, cujas ambies no eram
menores, se bem que de natureza diferente, e vimos prosperar em
todas as matrias desenvolvimento, educao, estratificao, sociologia
urbana, culturaetc. uma sociologia que podemos desig- nar por
neomarxista, na medida em que muito mais devedora da vulgata
marxista do que do prprio Marx. Seja ao longo do primeiro episdio,
seja ao longo do segundo, houve por vezes o sentimento de que a
sociologia conseguira escapar de sua faceta de hospedaria
espanhola, e de que finalmente os socilogos, exceo dos marginais,
seguiam um "paradigma" comum. De fato, no demoraria para que se
percebesse, com o distanciamento, que a unidade em causa era mais
ideolgica do que cientfica. A convergncia operara-se, no caso do
primeiro episdio, com a volta da ideologia saint-simoniana do
socilo- go-engenheiro, cujo papel era supostamente o de acompanhar
luz de seu saber, a "mudana" e a modernizao. Quanto ao segundo
episdio, dominado por um leitmotiv, o de denunciar a pretensa
perversidade das modernas sociedades liberais. Hoje, retomou-se um
pluralismomais em consonncia com as tradies de nossa disciplina.
Encontramo-nos diante de uma sociologia mais serena, mais liberta
das paixes ideolgicas e das iluses. Desse modo, podemos
interrogar-noscom seriedade: deve-se lamentar essa diver- sidade? E
responder, com a mesma seriedade, pela negativa. bvio que esta
resposta , muitas vezes, sentida como incmoda, dado que a unidade ,
por motivos evidentes, mais tranqilizadorado que a pluralidade. Eis
por que certos socilogos tentam, periodicamente, negar essas
diversidades, "demons- trar" que essas tradies heterogneas so
convergentes, que foi finalmenterealizada sua sntese, e que existe,
alm das aparncias, uma profunda unidade entre tradies aparentemente
distintas. O primeiro a consagrar-se a esta tarefa e a prossegui-la
com tenacidade foi o socilogo norte-americano T. Parsons em
Structure of Social Action. Esta obra testemunha a profunda
familiaridade cultivada por Parsons com seus autores preferidos e,
particularmente, com Weber, Pareto e Durkheim, permanecen- do, na
perspectiva da histria da sociologia, uma obra de referncia.
Todavia, o socilogo norte-americano no conseguiu,como
ambicionava,sintetizar asintuies desses autores num todo
suficientemente coerente e eficaz de modo a que a comuni- dade
sociolgica considerasse vantajoso a ele aderir de forma duradoura,
um pouco como os economistas aderiram, num dado momento, ao
paradigma neoclssico, por exemplo. Talvez seja prefervel inverter
as questes levantadaspor Parsons, isto , pergun- tarrno-nos se a
sociologia verdadeiramente mais heterclita do que outras
cincias
12. 20 TRATADO DE SOCIOLOGIA humanas e se, de um modo geral, o
fato de uma disciplinaseguir umamultiplicidade de paradigmas
constitui, na realidade, uma falha que devemos esforar-nos por
corrigir a todo custo. Esta questo tanto mais atual quanto certo,
mesmo no caso das cincias da natureza, que se comea a aceitar como
idia terica a concepo de Kuhn, segundo a qual as grandes
disciplinas seriam dominadas, em cada momento da sua evoluo, por um
"paradigma" nico. Os historiadoresparecem admitir, sem grandes
dificuldades, que o termo "hist- ria" abrange tarefas muito
distintas entre si, ainda que se reconhea que em histria como em
qualqueroutra matria,sempre que surgem concepes muito contrastadas
da disciplina em causa, erguem-se vozes para tentar mostrar que
determinada con- cepo prefervel a outra, como se verifica, por
exemplo, no debate entre R.W. Fogel e G.R. Elton (1983). Porm, como
no caso da sociologia, quando a histria surge "unificada", como
tendo finalmenteencontrado a sua essncia, isso tem a ver, muitas
vezes, com um predomnio decorrente seja de efeitos ideolgicos, seja
de fenmenos de moda, ou ainda mais simplesmente de efeitos de mdia
produzidospor campanhas publicitrias bem organizadas. Quanto s
cincias humanas, por exemplo a economia ou a lingstica, cuja
unidade proclamada alto e bom som, so de fato muito menos
monolticas do que parece. O que incontestvel que tanto uma como
outra se unificaram, em determinadas pocas, em torno de paradigmas
definidos de modo mais rigoroso do que os da histria ou da
sociologia. verdade que existe uma economia clssica e uma economia
neoclssica que baseiam-se em princpios relativamente precisos e
formalizados. Do mesmo modo, o paradigma "estruturalista" tem um
significado relativamente preciso no caso da lingstica. Esse carter
unitrio conferido economia e lingstica explica que as cincias
humanas, concebidas como menos slidas, decidam por vezes adotar o
regime das disciplinas consideradas mais rgidas. Disso do
testemunho os esforos efetuados no sentido de decalcar os mtodos da
lingsticaou da economia na sociologia ou na antropologia.
Lembremos, por exemplo, evocando uma manifestaoparticularmen- te
pitoresca desta tentao, que, na Paris dos anos 70, considerava-se
umindivduo profundo aquele que afirmavadoutamente ser a sociedade
uma linguagem. Natural- mente, estes excessos no indicam que a
sociologia deva renunciara buscarinspira- o em modos de pensar e em
mtodos utilizados por outras disciplinas,emparticular na economia e
na lingstica,mas tambm na psicologia. Pode-se, no entanto,
contrapor a essas tentativas a objeo de que supervalorizam a
unidade das disciplinas que invejam. Basta percorrer a monumental
histria da anlise econmica de Schumpeter para vermos que a economia
muito mais diversa do que se pensa. E para constatarmos que, na
lingstica, h quase tantos estrutura- lismos quantoestruturalistas,
podemos comparar, por exemplo, um Chomsky (1963) eumHarris(1951).
Mas se por um lado devemos reconhecer a diversidade dos
paradigmasutilizveis em sociologia, devemos igualmente evitar o
excesso oposto: o slogan do pluralismo a qualquerpreo to fcil e
superficialquantoestril. Conduz rapidamenteao "tudo bom", ou seja,
no final de contas, ao ceticismo. INTRODUO 21 Efetivamente, os
pesquisadores que colaboraram neste tratado partilham um certo
nmero de convices. Em primeiro lugar, levam a srio o ator social.
Recusam-se a ver no ator social, e a fortiori no ator
individual,uma simples caixa de ressonncia de foras coletivas
imaginrias, que seriam projetadas pelo "inconsciente coletivo" pela
"cultura" ou pela "classe dominante". Em outras palavras,
desconfiam das representaes deter- ministas do comportamento
social, segundo as quais o ator social estaria sujeito ao de foras
ocultas que o guiariam sua revelia e que constituiriam as causas
profundas de seu comportamento. Se o fenmeno da "falsa conscincia"
existe e em alguns casos pode ser claramente definido e posto em
evidncia, perfeitamente arbitrrio supor que ele seja, por assim
dizer, constitutivo da conscincia do ator. Por conseguinte, os
autores deste volume pensam que explicar um fenmeno social
consiste, antes de tudo, em compreender as aes, os comportamentos,
as atitudes, as convices etc. individuais de que ele o resultado.
Isto implica a aceitao de um postulado essencial: que uma das
tarefas principais da sociologia, e talvez a principal fonte da sua
legitimao, consiste como sugerem um Weber ou um Popper em
reconhecer ou, conforme o caso, em reconstituir as razes que
levaram o ator social a adotar um determinado comporta- mento,
atitudeou convico. Para explic-los, certamente necessrio
identificaras idias, os valores ou as representaes vigentes no
contexto em que se situa.Todavia, o cerne da anlise sociolgica
consistir sempre em identificar as razes pelas quais um determinado
ator ou uma determinada categoria de atores tende a aderir a elas.
Isto igualmente vlidopara os comportamentos e as convices que o
senso comum qualifica normalmentecomo "irracionais". Foi assim que
entendeu um Tocqueville, quando mostrou, por exemplo, que o cidado
norte-americano tinha razes ao contrrio do francs ou do alemo para
manifestar uma notvel religiosidade, e at para a viver de forma
"exaltada". Do mesmo modo, Weber no se limita a observar que o
culto de Mltra influente no Imprio Romano: analisaas razes pelas
quais esse culto seduziu, especialmente, os funcionrios da
administraoimperial. Estas anlises clssicas mostram que pouco
pertinente contrapor ou at limitar- se ajustapor, como sucede com
freqncia, "razes" e "valores" ou "representaes coletivas". Agrande
lio metodolgica de um Tocquevilleou de um Weber consiste, pelo
contrrio, em ver essas noes como estreitamente solidrias: um valor
apenas 0 para o ator se para ele tiver sentido ou, dito de outro
modo (porque a noo de sentido possui mil sentidos), apenas se ele
tiver razes que podem ser, natural- mente, mais ou menos
conscientes conforme os casos para adot-lo. E bvio que nem sempre
estes princpios podem ser postos em prtica facilmente, e teremos de
admitir que a reconstituio do "sentido" da ao ser em muitos casos
conjectura!. Por outro lado, se certo que o vocbulo "sociologia"
abrange diversas atividades, a s cincias sociais assumem, para ns,
uma finalidade essencialmente cognitiva. Em outras palavras, sua
legitimidade decorre, em primeiro lugar, e semelhana das outras
disciplinas cientficas, de sua capacidade de criarum conhecimento
suplemen- tar, de resolver enigmas, isto , de propor uma explicao
clara e em teoria
13. 22 TRATADO DESOCIOLOGIA universalmente aceitvel de fenmenos
que se revelam, primeira vista, opacos ao esprito. Convm
acrescentar que o princpio segundoo qual uma teoria sociolgica
dever poder ser submetida a um auditrio ou a um tribunal
"universal" implica, decerto, que absurdo evocar, como sucede por
vezes lamentavelmente, a existncia de critrios que seriam
especficos da sociologia. As obras sociolgicas, tanto clssicas como
modernas, que trazem consigo um suplemento autntico de
conhecimento, parecem satisfazer sempre dois critrios: explicar
fenmenos enigmticos, obedecendo ao mesmo tempo as restries e os
critrios comuns a todas as disciplinas cientficas. Assim, Durkheim
tentou explicar as curiosas propriedades dos dados estatsticos
relativos ao suicdio ou compreender as razes das crenas mgicas.
Weber (1920-21) interrogou-se, na esteira de Tocque- ville (1835),
por que razo a religiosidade, que parecia estar desaparecendo na
Europa, persistia nos Estados Unidos.A resposta a essas interrogaes
tudo menos evidente; e de enigmas que realmente se trata. A
resposta que ambos propem apresenta-se soba forma de teorias que
obedecem os critrios gerais da cientificidade em vigor em todas as
disciplinas cientficas. Afirmar que este objetivo cognitivo por
vezes ignorado pelas cincias sociais contemporneas constitui uma
litotes. A finalidade essencialmente cognitiva das cincias sociais
era talvez mais visvel na poca dos pioneiros do que hoje em dia.
Isto resultado de fatores complexos e imbricados entre si: de
fenmenos morfolgicos, como o crescimento extremamente brutal deste
ramo de atividade; da diviso de trabalho, que Durkheim qualificaria
como anmica, que acompa- nhou este crescimento e de seus efeitos de
balcanizao; da presso da demanda "cameralista", que incita as
cincias sociais a fornecerem a toda e qualquer espcie de
comanditrios, reais ou supostos, esclarecimentos ou informaes sobre
os fatos sociais em lugar de explicaes dos fenmenos sociais; da
influn- cia crescente da mdia, que fomenta o gnero ensasta e, de um
modo geral, as produes com um propsito mais esttico do que
cognitivo; das orientaes tericas estreis em que as cincias sociais
se deixaram submergir repetidamente; do peso que as ideologias
sobretudo a ideologia marxista e a ideologia relativista exerceram
e continuam a exercer sobre essas disciplinas h vrias dcadas; e de
muitos outros fatores. As cincias sociais, sem dvida mais que as
outras,foram afetadas pelo "relativis- mo" que vem se instalando
com crescente firmeza a partir dos anos 60: ele transfor- mou numa
quase-certeza a idia de que a objetividade uma iluso e que s
existem "interpretaes", sobretudo quando se trata de fenmenos
humanos. Talvez seja por isso, como nota um observador perspicaz,
que no fcil encontrar na sociologia contempornea teorias que dem a
impresso de explicar de forma convincente fenmenos enigmticos.2 Em
contrapartida, sob a bandeira das cincias sociais vamos encontrar
muitos dados quase em estado bruto, ou ensaios que devem o
interesse de que usufruem no pelo fato de nos explicarem aquiloque
no compreen- r INTRODUO 23 damos, mas pelo que nos vm confirmar
quanto quilo em que acreditamos ou que sabemos desde sempre.3 Era
importante introduzir estes esclarecimentos. Eles explicam por que
no hesitamos em recuar no tempo, quanto s referncias e aos
exemplos. H uma mxima que pretende que nas disciplinas cientficas
bem constitudas, metade do saber teria sido acumulado nos ltimos
dez anos. No esse por certo o caso nas cincias sociais. A concepo
do presente tratado Das observaes precedentes resulta que possvel
conceber um tratado de sociolo- gia de trs formas. Podemos apagar
as diferenas significativas que separam os paradigmas e as tradies
sociolgicas. Mas nesse caso corremos o risco de nos deparar com um
maior denominador comum minsculo, ou de criar convergncias custa da
clareza e da realidade. A segunda soluo consiste em visar a
exaustividaderespeitando as diferenas e as divergncias. Haver ento
o risco de se produzir um catlogo em lugar de um tratado. A
terceira soluo consiste em tentar pr em evidncia os conhecimentos
adqui- ridos e as potencialidades de um dos paradigmas,
reconhecendo porm que existem outros. Dada a sua importncia
especial, que ser enfatizada assim o esperamos nos captulos que se
seguem, optamos aqui por privilegiar o paradigma designado por
sociologia da ao. Uma vez adotada esta abordagem geral, faltava
elaborar o ndice de matrias. Para tal, procuramos definir cada
captulo a partir de um tema fundamental, sempre que esse tema tenha
dado origem a um fluxo de investigaes mais ou menos permanente
ecumulativo. Esta opo comportava duas conseqncias que merecem ser
sublinhadas. A propsito de um determinado captulo (por exemplo, o
captulo sobre a mobilidade social), o leitor ter uma exposio sumria
sobre as tcnicas, em particular as tcnicas quantitativascuja
utilizao se foi expandindo na sociologia atual. Rejeita- dos, porm,
deliberadamente consagrar um desenvolvimento especial a estas ques-
tes, por um lado porque so objeto de obras especializadas, por
outro porque queramos concentrar-nos rigorosamente em nossa
abordagem: procurar delinear a 2 Pawson (1989). Lepenies (1985)
defende a idia de que a sociologia representaria uma "terceira
cultura" entre a J eratura e a cincia. Ser mais justo e, em
qualquer caso, menos equivoco dizer que a etiqueta sociologia"
abarca produes literrias e produes cientficas. Porm, a grandeza de
um Tocqueville, e um Weber ou de um Durkheim provm, sobretudo, das
respectivas contribuies cientficas do de terem proposto solues
convincentes para determinados enigmas.
14. 24 TRATADO DE SOCIOLOGIA contribuio da sociologia para os
grandes tipos de processos sociais sobre os quais ela se debruou
mais especificamente. Pela mesma razo, no tentamos de modo algum
delinear de forma sistemtica a contribuio da sociologia para o
conhecimento de objetos sociais concretos. Por conseguinte, no iro
encontrar nenhum balano dos estudos descritivos relativos s
instituies escolares, judiciais,artsticas, cientficas, sindicaise
outras,embora elas sejam moeda corrente na sociologia atual.
Finalmente, devemos sublinhar que, se este tratadorepresenta um
empreendimen- to coletivo, cada um dos autores concebeu a
respectiva contribuio com plena liberdade. Da resulta uma
diversidade dos ngulosde abordagem e de estilos. Alguns captulos so
mais "pessoais", outros mais "impessoais". Todos eles se valem da
sociologia de ao; porm, como facilmente se constatar, alguns se
apoiam sobre uma concepo mais restritiva,outros sobre uma concepo
mais aberta da ao. Esta diversidade proporcionar talvez ao leitor
uma imagem mais verdica da sociologia tal como ela hoje em dia.
Convm acrescentar uma outra fonte dediversidade que os temas
tratados pela sociologia surgem com maior ou menor vigor, de acordo
com a poca. Da que as referncias tendam a concentrar-se, em alguns
captulos, nos anos recentes e, em outros, em perodos mais recuados.
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protestantes et Pesprit du capitalisme", in M. Weber, Uthique
protestante et 1'esprit du capitalisme, Paris, Plon, 1964.
15. l AO RAYMOND BOUDON A sociologia da ao representa uma
importante tradio sociolgica, razo pela qual este primeiro captulo
consagrado ao social. Esta tradio apenas uma entre outras. No
entanto, merece ateno por sua transparnciaepistemolgica e sua
eficcia prtica: - por sua transparncia epistemolgica: a sociologia
da ao define-se por um conjunto de princpios claros e baseados na
naturezadas coisas; - por sua eficcia: o interesse da sociologia
como de qualquer disciplina cient- fica mede-se por sua capacidade
de explicar fenmenos primeira vista obscuros para o esprito. Ora, a
sociologia da ao demonstrou fartamente que era capaz de satisfazer
esta exigncia. Veremos exemplos disso ao longo de todo este volume.
O paradigma da sociologia da ao Designa-se, muitas vezes, por
paradigma os princpios fundamentais sobre os quais apia-se uma
comunidade cientfica. Um paradigma , de algum modo, a constitui- o,
o conjunto das regras bsicas que orientam o pesquisador em sua
atividade. Fala-se, por exemplo, do .paradigma cartesiano para
designar os princpios em que repousam as teorias da fsica propostas
por Descartes. Esses princpios incitam o Pesquisador a representar
de forma mecnica todos os fenmenos naturais,com base no modelo do
choque entre as bolas de bilhar ou no da transmisso dos movimentos
entre as engrenagens de um relgio. Este paradigma usado, por
exemplo, na teoria cartesiana da ptica.
16. 28 TRATADO DESOCIOLOGIA Definio da sociologia da ao As
cincias sociais tambm tm os seus paradigmas. Um deles , de um modo
geral, designado pela noo de sociologia da ao ou sociologia
interacionista. Mas h outros: a sociologia
estrutural-funcionalista,a sociologia marxista, a sociologia
durkheimiana representam paradigmas sociolgicos, tambm eles dotados
de uma certa continuidade no tempo. O primeiro princpio fundamental
da sociologia da ao consiste em levar a srio o fato de que todo
fenmeno social, qualquerque seja, sempre o resultado de aes, de
atitudes, de convices, e em geral de comportamentos individuais. O
segundo princpio, que completa o primeiro, afirma que o socilogo
que pretende explicar um fenmeno social deve procurar o sentido dos
comportamentos individuais que esto em sua origem. Esses princpios
podem ser ilustrados atravs de um exemplo elementar extrado de
Simmel (1892). Suponhamos, diz ele, que pretendssemos explicar a
existncia do tnel de Saint-Gothard. Tal existncia , evidentemente,
o produto de uma srie de aes, neste caso, de decises polticas,
cientficas, arquitetnicas,e tambm de aes de execuo. Explicar a
existncia do tnel traduz-se,portanto, em reconstituir essa rede de
aes e, ao mesmo tempo, dar conta das razes dessas aes. A sociologia
da ao postula se nem sempre na prtica, pelo menos em teoria que a
explicao de qualquer fenmeno social se inscreve neste tipo. Vai
mesmo mais longe ao admitir que esses princpios so aplicveis s
cincias sociais em seu conjunto. Tomando um exemplo elementar da
economia, suponhamos que queremos expli- car a baixa do preo de um
produto no mercado: ela resulta de uma multiplicidade de decises
tomadas pelos produtores, pelos distribuidores e pelos
consumidoresdo produto. Assim, explicar a baixa em questo consiste
em identificar os atores, mais precisamente os grupos de atores em
causa, e em descobrir o sentido de seus respectivos comportamentos.
Essa anlise to simples de um ponto de vista terico quanto pode ser
complexa de um ponto de vista prtico chegar, por exemplo, concluso
de que o surgimento de um produto de melhor qualidade seduziu os
consumidores e que, em conseqncia disso, os comerciantes foram
levados a "queimar" uma mercadoria que se tornou obsoleta. Segundo
a sociologia da ao, todos os fenmenos sociais, inclusiveasmudanas
verificadas nos costumes ou nas crenas, explicam-se da mesma
maneira. Da que Mannheim (l929)' se interrogue por que razo o tabu
que pesou durante tanto tempo sobre os emprstimos comjuros foi
desaparecendo progressivamente. Foi-se erodindo, explica, com o
desenvolvimentodas trocas. Enquanto estas se realizavam entre
indiv- duos que se conheciam, o prestamista podia esperar que o
muturio lhe prestasse, oportunamente, servios equivalentes ao
emprstimo concedido. Com o surgimentoda economia de troca, este
sistema bilateral ir se revelar demasiado rgido. Oprestamista r AO
29 l Este exemplo retomado no captulo XIII, "Conhecimento", p. 519.
s se pode permitirresponder s necessidades financeirasde um
muturioannimo se tiver a garantia de que este lhe pagar juros.
Apartir do momento em que a necessidade lei, aidia de
carterimoraldo emprstimo comjurosfoi seerodindoprogressivamen- te
acabando por cair em desuso. Eis por que, hoje em dia, o tabu se
refugiou no seio da famlia restrita, meio em que prevalecem as
relaes de interconhecimento que, nas sociedades tradicionais, se
estendiam a grupose a redes muitomais vastas. Vemos que a anlisede
Mannheimconsidera o desaparecimento deste tabu como efeito demudan-
as ocorridas nas atitudes e nos comportamentos dos atores, por ele
analisados como tendo um sentido, no caso representando adaptaes
compreensveis em se tratando de condies sociais em mutao. Os
princpios da sociologia da ao podero dar uma impresso de
banalidade. No entanto, tem-se constatado muitas vezes sua validade
por motivos que iremos analisar adiante. Por outro lado, deve-se
reconhecer que se a enunciao desses princpios simples, eles podem
revelar-se de execuo muito difcil na prtica, pela simples razo de
que as causas individuais dos fenmenossociais so, freqentemen- te,
inmeras. Por outro lado ainda, poder resultar extremamente difcil
especificar as razes que levaram certo ator a determinado ato, por
falta de seu prprio testemu- nho, ou porque ele pertence a uma
cultura no familiar. Antes de prosseguirmos com a discusso desse
paradigma, h uma questo de vocabulrio que merece ser esclarecida.
Para design-lapropusemos vrias expresses concorrentes: sociologia
da ao, sociologia interacionista, sociologia acionista. De fato,
cada uma dessas expresses apresenta vantagense inconvenientes. A
ltimatem a desvantagem de ser mais neolgica do que as outras duas.
As duas primeiras, por seu turno, expem-se ao risco de confuso com
correntes de pensamento que no se revestem, nem de longe, da
importncia da sociologia da ao, na acepo em que usamos aqui esta
expresso. Com efeito, designa-se por interacionismo simblico um
paradigma, ou melhor, um estilo de investigao sociolgica que se
caracteriza pela nfase dada aos aspectos simblicos das relaes de
interao social. Esse estilo de investigao, ilustrado,por exemplo,
por E. Goffman (1956), , por essncia, microsso- ciolgico. Isso
significaque est circunscrito, na prtica, anlise de grupos
concretos constitudos por pessoas em situao de interao direta.Ora,
a sociologia em geral e a sociologia da ao em particularesto,
tradicionalmente,interessadastambm e sobre- tudo em objetos que se
situamem uma escala muitomaisampla.Basta lembrar algumas obras,
como L'Ancien Regime et Ia RvolutiondeTocqueville(1856),A
ticaprotestan- te de Weber (1920a) ou La division du travail de
Durkheim(1893), para constatar que a maioria das grandes obras
sociolgicas clssicas possui um carter macrossociolgi- co.Em
outraspalavras,elastratamde fenmenosmacroscpicos, ou
seja,defenmenos que se situamem uma escala mais ampla do que a dos
gruposdiretamenteobservveis. J-te modo geral, interessam sociologia
no apenas as situaes de interao direta caracterizadas por uma
situaode face a face entre atores, mas tambm as situaes de lnt
erdependncia, em que os atores agem entre si sem se conhecerem e
sem se verem. Convm, portanto, no confundir a sociologia
interacionista com o interacionismo simblico. Alis, o socilogo
francs A. Touraine(1965,1984) designapela expresso sociologia da
ao" uma teoria especfica da transformaosocial: a que confere
um
17. 30 TRATADO DE SOCIOLOGIA papel crucial aos "movimentos
sociais" na gnese da transformao social. Com o propsito de recordar
que a sociologia da ao, no sentido em que a entendemos, no coincide
de modo algum com estes desenvolvimentosparticulares,usaremos esta
ex- presso simultaneamente s duasoutras. Origens intelectuais da
sociologia da ao incontestvel ter sido na Alemanha que nasceu a
sociologia da ao, pelo menos em sua forma consciente e
programtica.Do mesmo modo que o livro de Durkheim (1895) sobre as
Rgles de Ia mthode sociologique assinala a importncia do paradigma
positivista em sociologia, tambm os grandes textos epistemolgicos
de Weber (1922a, 1922b) (Economia e sociedade; Ensaio sobre a
teoria da cincia) e de Simmel (1892) (Os problemas dafilosofia da
histria) podero ser considerados como os manifestos fundadores da
sociologia da ao.2 importante insistir nas diferenas intelectuais
que opem Durkheim e Weber. Ambos so considerados, em geral, figuras
significativas e complementares da sociologia clssica. , porm,
absurdo pretender reduzi-losum ao outro. Se ambos se ignoraram
quase por completo, ter sido talvez por compreenderem claramente a
divergncia existente entre suas concepes da sociologia. R. Aron
(1967), no que toca a este aspecto da histria da sociologia, foi
mais perspicaz do que T. Parsons. Percebeu claramente que Marx,
Weber, Simmel, por um lado, e Durkheim,Mauss e entre os modernos
Lvi-Strauss, por outro, representam distintastradies de pensa-
mento. Em seu louvvel esforo de unificao da sociologia, Parsons
tentou, em contrapartida, apagar essas diferenas. O fato de sua
obra mais importante, La structure de Vaction sociale (1937), ser
considerada, de um modo geral, mais sincrtica do que sinttica
constitui talvez o preo que teve de pagar por este compromisso.
Porque prefervel, devido a razes de clareza, reconhecer que a
sociologia dispe de um leque de paradigmas perfeitamente distintos
do que preten- der mistur-los numa sntese frgil. A tentativa de
Parsons em erigir o trio Weber- Durkheim-Pareto numaespcie de
Newton policfaloda sociologia surge hoje, alis, em toda a sua
ingenuidade, numapoca em que apenas um escasso nmero de fsicos
estaria pronto a admitir que a fsica apia-se num nico paradigma.
Apesar disso, o conforto intelectualque uma viso unificadora ainda
que precria proporciona to grande que proposta de sntese de Parsons
se sucederamregularmente outras. Para compreender a oposio
intelectual que separaDurkheimde Weber, convm abordar
brevementealgunsaspectos histricos,uma vez que um paradigma
raramen- te cai do cu. De maneira geral, ele tambm no o efeito de
uma intuioou de um golpe de gnio. A maior parte das vezes, emerge
de um clima intelectual.Ora esse clima era extremamente diferente
na Frana e na Alemanha na poca em que os fundadores procuram
definir os contornos da sociologia. 2 Boudon, Bourricaud (1982). AO
31 Na Frana do final do sc.xix, uma figura continuaa dominar a cena
intelectual: Auguste Comte. Sem se dar conta disso, Durkheim faz
suas um certo nmero de 'dias de Auguste Comte (1830-1842), que se
mostram tanto a ele como a muitos de seus contemporneos evidentes
em si mesmas.Reproduz sua concepo totasta ou, como tambm se diz,
holista do social, sua viso evolucionista da histria, sua
classificao das cincias. Todavia, dado que o estilo proftico de
Comte contrasta com o estilo acadmico e cientfico de Durkheim, hoje
em dia torna-se por vezes difcil entender essa filiao, contudo
bastante direta, entre inspirador e discpulo. Com efeito, impossvel
compreender a concepo que Durkheimtem da sociologia se no
percebermos que ela se enraza na classificao das cincias de Comte.
Essa classificao convertera-se num evangelho da Frana do sc.XIX em
funo de sua simplicidade, e tambm porque a progresso por ela traada
desde a fsica biologia correspondia ordem histrica do surgimento
das cincias. No havia, portanto, qualquer razo para no atribuir a
esta viso comtiana algo de definitivo, e no se deixar seduzir pela
concluso de Comte, ou seja, a de que a sociologia era o ltimo elo
de uma cadeia evolutiva. Aps a qumica,e depois dabiologia, a
sociologia estava apta a atingiro estado positivo. Sem dvida Comte
conseguira traar esta linha evolutiva simples porque havia removido
de sua listatoda espcie de disciplinas, cuja existncia era no
entanto assaz evidente, e por vezes desde h muito, como o caso da
histria, da economia e da psicologia. Contudo,era tal a fora da
concepo linear do progresso, no sc.XIX, que se aceitava facilmente
negligenciar os pormenores suscetveis de perturbar a pureza das
curvas evolutivas. Em todo caso, Durkheim literalmente retoma,
consolida e legitima as excluses de Comte: a histria no faz parte
das "cincias", a psicologia manifesta pretenses ilegtimas ao nvel
de cincia, a economia no passa de uma encarnao da "metaf- sica",
que Durkheim (1895), como bom comtiano, julgava condenada. Em suma,
a sociologia cientfica devia eliminar qualquer psicologia. Ela ir
inspirar-se na fsica, ao menos tal como era imaginada no final do
sc.XIX, sobretudo ao buscar destacar as leis sociais que presidem s
relaes existentes entre fatos sociais. Por outro lado, ir reter da
biologia a idia de que, medida que se sobe na escala dos seres, o
todo tende a dominar as partes. Na Alemanha, Comte no exercera a
mesma influncia. Em parte, porque Hegel havia ocupado o mesmo espao
intelectual. Por outro lado, desencadeara-se na Alema- nha, no
final do sc.xixe inciodo XX, uma intensa discussode mtodo sobre
oestatuto epistemolgico das chamadascincias do esprito
(Geisteswissenschaften). Com efeito, ssa discusso girava em torno
do problema da objetividade em histria: ater-se ao Programa
"realista" que o grande historiador Leopold von Ranke tinha
supostamente definido e proposto (descrever o passado "tal como
tinha se desenrolado na realidade") u, como o seu colega da
Universidade de Berlim, G.W.F. Hegel (1807), conceder-se maior
liberdade de interpretao? Em caso positivo, at onde se poderia
avanar sem c air no arbitrrio? no contexto dessa polmica em torno
do mtodo que sedesenvolve a sociologia alem clssica. Ele explica
que ela se defina, inicialmente, como uma Janeira original de
apreender a histria.
18. 32 TRATADO DE SOCIOLOGIA No fundo, para muitos dos
socilogos alemes da poca clssica, o socilogo distingue-se, de fato,
do historiador na medida em que concede a si mesmo o direito de, a
propsito dos fenmenos histricos e sociais, colocar questes s quais
no possvel responder sob a forma de narrativa. O socilogo prope
sobretudo abordar assuntos que a histria tradicional trata pelo
mtodo gentico o da narrativa com recurso a mtodos inditos. Foi com
uma narrativa, alis admirvel, que Ranke (1824), por exemplo,
respondeu a uma das questes que o preocupava: por que razo a
Alemanha fora construda a partirda Prssia?No atravs de um relato
que Weber (1920b) responde s questes que lhe interessam: por que a
industrializao no gerou nos Estados Unidos os efeitos de laicizao
que produziu na Frana ou na Alemanha? Por que os destinos do
capitalismo se desenvolveram mais facilmente em meios puritanos?
Poder-se-ia fazer idntica observao a propsito das questes
suscitadas por Simmel (1900) quanto influncia do dinheiro sobre as
representa- es sociais, por exemplo, ou por Sombart (1906) sobre as
razes pelas quais a industrializao nos Estados Unidos no foi
acompanhada pelo surgimento de movimentos socialistas. Por outro
lado, enquanto Durkheim ignora por completo a economia, os socilo-
gos alemes no podem deixar de se referir a ela, dado o lugar que
Marx ocupa no clima intelectual e poltico alemo, e tambm em virtude
do notvel ressurgimento da teoria econmica que ocorrera na ustria
com Carl Menger. Tal como Hayek (1978) muito bem assinalou, os
Grundstze (1871), e mais tarde os Untersuchungen ber die Methode
der Sozialwissenschaften (1883) de Menger, afirmam com clareza a
importncia, para as cincias sociais, de um triplo princpio que
iremos encontrar na sociologia alem clssica: 1. O princpio que
consiste em tentar explicar os fenmenos macroscpicos
reconduzindo-os s suas causas microscpicas; 2. O princpio segundo o
qual estas causas devem ser assimiladas com grande freqncia s razes
(implcitas ou explcitas) dos atores; 3. O princpio de simplificao
que exige que os atores sejam reagrupados por tipos Weber dir por
tipos ideais. A metodologia de um Weber ou de um Simmel est
demasiado prxima desses princpios para que possamos evitar a
hiptese de uma influncia de Menger sobre a sociologia clssica alem,
Esses princpios, e particularmenteo primeiro, no eram alis
estranhos ao prprio Marx (1847) que, por mais contraditrio que seja
em relao a essas questes de mtodo, aconselhava Proudhon a no
considerar a sociedade como uma Sociedade-Pessoa, mas como uma
sociedade de pessoas. Havia, pois, razes de sobra para que
a'sociologia, na Alemanha, se desenvolvesse como que na
encruzilhada da histria, da economia e da psicologia. Na Frana, ao
contrrio, encontravam-se reunidas todas as condies para que ela se
definisse contra essas disciplinas. Assim como havia tambm todos os
motivos para que a sociologia francesa fosse atrada sobretudo por
uma perspectiva holista, e a sociolo- gia alem por uma perspectiva
individualista das sociedades. r AO 33 Os princpios da sociologia
da ao Retomemos o princpio segundo o qual um fenmenosocial,
qualquer que seja, deve ser entendido tal como , ou seja, o produto
de aes, de crenas ou de comporta- mentos individuais. Este princpio
comumente designado pela expresso "indivi- dualismo metodolgico"
(IM). Constitui o primeiro princpio da sociologia da ao. O primeiro
princpio da sociologia da ao Esta expresso "individualismo
metodolgico" foi criada pelo socilogo e economista austraco J.
Schumpeter (1954) e divulgada pela economista F. von Hayek (1952) e
pelo filsofo das cincias K. Popper. Porm, j a encontramos,
textualmente, numa carta de Max Weber a seu amigo R. Liefmann, um
economista marginalista: "A sociologia, ela prpria tambm (i.e., tal
como a economia de estilo mengeriano), s pode ter origem nas aes de
um, de algunsou de muitos indivduos distintos. por isso que tem de
adotar mtodos estritamente individualistas." Max Weber no faz esta
afirmao por acaso. Pelo contrrio, encontramo-la desenvolvida nas
primeiras pginas de Economia e sociedade (1922a), bem como em
inmeros textos metodolgicos. Alm disso, aplica-a em suas anlises
sociolgicas, que comportam quase sempre, mesmo que de forma
elptica, um momento em que so examinadas as razes que levam os
atores a manifestar um dado comportamento ou uma dada convico.
Veremos algunsexemplos em seguida. Deve-se ter cuidado, aqui, em
distinguir os diversos sentidos da palavra "indivi- dualismo", e em
no confundir o sentido metodolgico com o sentido moral ou o sentido
sociolgico. Individualistano sentido moral aqueleque faz do
indivduoa fonte suprema dos valores morais. Uma sociedade
individualista, no sentido sociolgico, sempre que a autonomia do
indivduo nela considerada um valor dominante. No sentido
metodolgico, a noo de individualismo tem um significado totalmente
diverso: implica apenas que, para explicar um fenmeno social,
neces- srio descobrir suas causas individuais, ou seja, compreender
as razes que levam os atores sociais a fazer o que fazem ou a
acreditarem naquilo em que acreditam. ^ No obstante sua aparente
banalidade, o princpio do IMdeparou com toda uma srie de objees.
Assim, s vezes afirma-se que ele se aplicaria apenas s sociedades
"individualis- as (no sentido sociolgico). Nas sociedades
"arcaicas", como s vezes so chama- as, o indivduo no disporia de
uma autonomia real, exceto no plano biolgico e Jsico. Portanto,
esse princpio no seria pertinente. De fato, essa objeo baseia-se n
urna confuso de vocabulrio: ela assimila o sentido metodolgico e o
sentido ociolgico do conceito de individualismo. Por outro lado,
veicula uma repre- entao ingnua das sociedades arcaicas na poca
vitoriana, essa representao a Poiava-se no sentimento de
superioridade dos ocidentais;.hojeem dia, com freqn- cia tem por
base uma viso rousseauniana, que pretende ver nas sociedades
remotas
19. 34 TRATADO DE SOCIOLOGIA uma espcie de repositrio onde
ainda reinaria um calor comunitrio que se teria dissipado nas
sociedades modernas. Os que estudaram de perto as chamadas
sociedades arcaicas, como Evans-Prit- chard (1937) em seu estudo
sobre os Azand do alto Sudo, por exemplo, sempre sublinharam que os
indivduos dessas sociedades podiam revelar-se to cticos e
calculistas quanto os cidados das sociedades modernas. No sem
humor, Popkin (1979) mostrou, por outro lado e de forma
convincente, que, se era muitas vezes exigida a unanimidadenas
sociedades arcaicas para que uma deciso assumisse fora de lei, isto
no se dava pelas razes habitualmente invocadas e que, na realidade,
no existem seno na cabea dos observadores ocidentais. A grande
difuso dessa regra no conseqncia de um unanimismo que seria
caracterstico dessas sociedades. Resulta, antes, do fato de
constiturem sistemas sociais extremamente frgeis. Desse modo,
qualquer mudana ameaa o seu equilbrio precrio e pode revelar-se
fatal. igualmente compreensvel que cada um, num sistema desse
gnero, deseje dispor do direito de veto em relao a uma deciso que
considere ameaadora. O IM tambm no implica que se conceba o ator
social como que suspenso numa espcie de vazio social. Ele pressupe,
ao contrrio, que o ator foi socializado, que est em relao com
outros atores, os quais, tal como ele prprio, ocupam papis sociais,
tm convices etc. De um modo geral, o IMreconhece indiscutivelmente
que o ator social se move dentro de um contexto que se lhe impe em
larga medida. Este princpio no implica, portanto, que se conceba a
sociedade como uma justapo- sio de solides calculistas. Veicula no
uma imagem atomista, mas interacionista da sociedade, o que
certamente diferente. Todavia, freqente a confuso entre
individualismo e atomismo. E os melhores espritos podem nela cair,
como demons- tra o fato de, por causa do atomismo, G. Gurvitch
(1950) ter condenado a sociologia de Weber de forma to severa
quantoR. Aron (1964) condenou a de Simmel, quando a acusao
infundada tanto num caso como no outro. Por outro lado, note-se que
o IM no probe (por que o faria?) que se agrupem os atores por
categorias, desde que eles se encontrem numa situao anloga e se
possa esperar observar, de sua parte, uma atitude semelhante
relativamente a este ou quele assunto. assim que Weber (1920a)
admite, em A tica protestante, que h algo de comum entre todos os
calvinistas. Do mesmo modo., o economista reconhece que todos os
consumidores que se confrontam com um aumento de preos tendem a
comportar-se da mesma maneira. E sempre que um sistema econmico
oscila de uma economia de subsistncia para uma economia de troca
esta mudana afeta, seno todos, pelo menos uma boa parte dos atores
sociais. Da que a idia de carter imoral ou moral do emprstimo com
juros seja coletiva. No existe, portanto, nenhuma contradio entre a
metodologia individualista e a vocao da sociologia, que a de tratar
fenmenos coletivos. necessrio ir mesmo mais longe: uma vez que a
sociologia da ao se interessa por fenmenos que so, em geral,
resultado de inmeras causas individuais, indispensvel, se no
quisermos cair num impasse, agrupar os atores por grupos abstratos,
reuni-los por tipos ou, como se pode afirmar na esteira de
Weber,insistindo no carter simplificador deste processo, por tipos
ideais. AO 35 O princpio do IM tambm no exclui que, em
determinadascondies, no se possa tratar legitimamente uma entidade
coletiva como um indivduo.Assim, possvel falar do governo francs ou
do Partido Comunista francs como se se tratasse deindivduos. Dado
que ambas as entidades esto providas de um sistema de deciso
coletiva, poder- se- enunciara seguinteproposio: "O PCFoptou por
adotar essa linhaporque obtinha da um benefcio eleitoral." Neste
caso, a personificao no levanta problemas. Em contrapartida, vai
contra o princpio do IM declarar, por exemplo: "A sociedade
francesa pensa que...", "a classe operria considera que de seu
interesse...". O IM,s vezes, discutido por motivos epistemolgicos
ou metafsicos. Assim, h quem pense que a prpria noo de "cincia"
implica a eliminao dos dados subjetivos uma cincia digna desse nome
no poderia formular proposies que descrevessem os estados
subjetivos de um indivduo, uma vez que tais estados so por definio
inobservveis. Trata-se de uma objeo clssica entre os positivistas.
Nem Comte nem Durkheim concebiam que uma sociologia com pretenses
cientfi- cas pudesse conter proposies deste tipo. Eis o motivo por
que Durkheim milita energicamente, em muitos de seus textos, em
prol de uma sociologia totalmente despojada de toda e qualquer
psicologia. Em L suicide (1897), arrisca mesmo uma espcie de
aposta: falar do suicdio desinteressando-se por completo das razes
dos suicidas. Na verdade, no o consegue inteiramente. Caso se
examine L suicide lupa, constata-se com efeito, sem grande
dificuldade, que as proposies atravs das quais vai dando conta das
correlaes observadas entre as taxas de suicdio e as diferentes
variveis explicativas que introduz so, de fato, proposies
psicolgicas. Mas essas proposies psicolgicas so introduzidas
apressadamente. Outros autores chegam a opinies anlogas por outras
vias: inabalavelmente convictos, muitas vezes por obedincia vulgata
marxista, de que o indivduo no dispe de qualquer margem de
autonomia e que o joguete absoluto de determinis- mos sociais,
concluem que uma sociologia baseada no IMs poder reforar uma iluso
de autonomia puramente imaginria. Durkheim, por seu turno,
reconhecia em contrapartida a autonomia do ator e via na educao um
instrumento de ampliao dessa autonomia. Era devido a razes
epistemolgicas que rejeitava os enunciados sobre os estados
subjetivos dos atores sociais. Em contraste, os neomarxistas repu-
diam-nos por motivos de doutrina: tal como o sujeito social de A
ideologia alem (1846) que Marx e Engels condenam a ver o mundo s
avessas, segundo eles o ator s poderia alimentar iluses sobre as
razes de seu comportamento. Este princpio plasma toda a sociologia
de Bourdieu, por exemplo. Aos neomarxistas pode-se objetar que no h
qualquerrazo para partilhar de seu Pessimismo doutrinrio e que
muito difcil entender por que, num mundo que escrevem como povoado
por cegos, seriam eles os nicos a ver. Aos positivistas Pode-se
contrapor uma simples observao, ou seja, a de que os enunciados
relativos s estados subjetivos de um indivduo podem ser to exatos e
objetivos quanto os unciados das cincias da natureza. Assim sendo,
proposies como "a me deu "ia bofetada no filho porque estava
irritada" ou "foi a imprudncia que esteve na ^ern deste incndio"
podem ser to corretas como a proposio segundo a qual as ar npas das
chaleiras se levantam quando a gua atinge 100 C.
20. 36 TRATADO DE SOCIOLOGIA No unicamente em virtude dessas
objees e mal-entendidos que o princpio do IM nem sempre aceito.
Isso tem a ver tambm com o fato de sua execuo nem sempre ser fcil,
embora traduza uma idia simples e banal. Uma dada taxa de
natalidade resulta, semqualquersombra de dvida,da conjugao de
comportamen- tos individuais.No entanto, o socilogo pode ser
incapaz de explicai-, por exemplo, a razo pela qualoscomportamentos
em matria de procriao se modificaramentre dois perodos. Daque se
revistam de valor outros tipos de explicao (a explicao estatstica,
porwem plo). Assim, pode ser interessante observar a existncia de
uma correlao entrea evoluo das taxas de natalidadee uma dada
varivel econmica, mesmo que nosetenha nenhuma idia das causas
microscpicas que lhe subjazem. Igualmente, podemos constatar uma
evoluo da demanda global da educao sem que estejamos em condies de
precisar por que razo as famlias tendem a procurar nveis
escolaresmais elevados. O segundo princpio: oprincpio de
racionalidade Segundo o princpio do IM, um fenmeno social deve ser
interpretado, na medida do possvel, comoefeito de aes, de convices,
de comportamentos individuais.Mas para que a explicao seja
completa, tambm necessrio pr em evidnciao porqu o sentido -dessas
aes ou dessas convices. Na linha de Weber, fala-se geralmente
decompreenso para designar esse momento de anlise. Segundo a
sociologia daao, a explicao de um fenmeno social supe que sejam
determi- nados os comportamentos individuais de que ele o efeito e
que esses comportamen- tos sejam compridos. Assim, TocqueviHe
(1856) nos explica que o subdesenvolvimento da agricultura francesa
no sc.XVIII tem como principal causa o absentesmo dos proprietrios
rurais. E indica que esse absentesmo compreensvel devido ao peso e
importncia do Estado, devido tambm s isenes fiscais de que usufruem
os habitantes das cidades, os proprietrios franceses tm muito mais
ocasies e razes para se deixarem seduzir por cargos administrativos
do que seus homlogos ingleses. por isso que, adespeito da influncia
dos fisiocratas,a agricultura francesa estagna num perodo ein
21. 38 TRATADO DE SOCIOLOGIA cias, ou ainda sua importncia,em
particularsua importncia face ao curso da histria. Vemos, portanto,
a razo por que a sociologia compreensiva no sentido de Dilthey,em
sua fase final, comporta um risco o de cair nas armadilhas da
filosofia da histria ou, usando as palavras de Simmel (1892), da
metafsica dahistria. O paradigma da sociologia da ao desemboca,
portanto, numa questo difcil: o que significa compreender o
comportamento, a ao, as convices de um ator social? Como atingir
evitando o arbitrrioe o subjetivismo esse estado em que se pode,
legitimamente, declarar-se convencido de compreender o porqu de um
determinado comportamento? Em que condies possvel remover a objeo
dos positivistas? Em outras palavras, como ter a certeza de que uma
proposio relativa ao sentido de uma ao tem validade objetiva? Antes
de abordar esta questo, e com o propsito de tornar a discusso mais
concreta, convm estudar com detalhes um exemplo clssico oriundo da
sociologia da ao. Um exemplo clssico Em seu artigo sobre as seitas
protestantes nos Estados Unidos, elaborado no retorno de uma viagem
a este pas efetuada no incio do sculo, Weber (1920b) interroga-se
sobre a seguinte questo: embora parea que a industrializaoe a
modernizao so acompanhadas na maior parte das sociedades ocidentais
por uma regresso das religies tradicionais, o mesmo no acontece nos
Estados Unidos. Nesta sociedade, a mais moderna de todas, a
religiosidade permanece vigorosa. Por qu? A questo de fato
enigmtica e a resposta tudo, menos evidente. Traduz a concepo de
Weber sobre as funes da sociologia tornar inteligveis fenmenos que
no o so de imediato. Sua resposta, que deve ser encarada como uma
resposta parcial que no exclui outras, pode ser formalizada do
seguinte modo: 1. Os Estados Unidos distinguem-sedas antigas naes
europias, como a Frana e a Alemanha