Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em História Social
Coisas do caminho Tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba
(1780-1810)
Tiago Luís Gil
Orientador: João Luis Ribeiro Fragoso
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor em história social
Rio de Janeiro, março de 2009
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Coisas do caminho Tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810) Tiago Luís Gil
Banca Examinadora
____________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. João Luis Ribeiro Fragoso (UFRJ) ____________________________________________________ Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar (USP) ____________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Odilon Nadalin (UFPR) ____________________________________________________ Profa. Dra. Cacilda da Silva Machado (UFRJ) ____________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ) ____________________________________________________
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são coisas do caminho não sei o que será, mas muitas vezes do longe se sabem as coisas mais depressa do que do perto
(De uma carta escrita em Porto Alegre por um sujeito chamado Fabiano para alguém na Lapa ou Curitiba, em 1781)1
1 1TABCUR-021. Pg. 119.
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Agradecimentos
As primeiras dívidas sobre as quais devo falar são as minhas. Não vou pagá-
las aqui, apenas assumir meu débito. Como veremos na tese, assumir a dívida é o que se
espera de um sujeito honrado. Primeiro, agradeço ao professor João Fragoso e sua
sempre inteligente orientação, que garantiu a tranqüilidade suficiente para pensar com
liberdade, associada ao rigor do trabalho científico. Agradeço também ao pessoal do
grupo de discussão, especialmente à Cuca, ao Guedes e à professora Fátima, que
recentemente nos deixou, com pesar. À Sandra. Ao professor Manolo, por toda a força
que deu ao longo do tempo. Aos professores que participaram do exame de
qualificação, Carlos Gabriel Guimarães e à Ana Lugão Rios, que ajudaram a
encaminhar o trabalho. Agradeço também aos professores que gentilmente aceitaram
participar da banca: Carlos de Almeida Prado Bacellar, Sérgio Odilon Nadalin, Carlos
Gabriel Guimarães, Cacilda da Silva Machado e Antonio Carlos Jucá de Sampaio.
Passo a agradecer àqueles que me ajudaram com a documentação: à Sheron
Santos, Gabriel Berute, Lauro Duvoisin, Sandro Gonzaga e Jônatas Caratti, que me
ajudaram com os inventários e escrituras. Agradeço também à Vanessa Gomes de
Campos, do Arquivo da Cúria de Porto Alegre, ao Jorge Miranda da Silva, do Arquivo
Público do Rio Grande do Sul, à Dona Joyce, do Arquivo Nacional e ao Aparecido
Oliveira, do Arquivo do Estado de São Paulo. Todos eles fizeram seu trabalho, mas, na
verdade, fizeram muito mais. Agradeço também aos demais funcionários dos Arquivos
que freqüentei.
Mas deixemos as dívidas de trabalho. Me dirijo às dívidas impagáveis, as
que ficam na esfera da amizade. Agradeço imensamente ao Tiago Bernardon e à
Manoela, que estão sempre presentes. Ao grande Adalberto Porto Alegre, à Rita e aos
guris. Ao César, companheiro de bons negócios e de bancarrotas. Ao Rafael Menezes,
mesmo com os mistérios. Ao Marcelo Viana, ao Vinicius, ao Jonas, ao Mauro Messina,
ao mestre Dario, Graciela, Cassia, Miro, Renata e Daniela. Ao Guedes, Silvana, Beatriz.
À Cuca e à Maria Luiza Andreazza. À Martha Hameister que sempre foi grande amiga e
interlocutora. E quero fazer aqui o reconhecimento de uma dívida dupla à Fernanda
Martins e ao Fábio Pesavento, que não se ofenderam comigo na última oportunidade
que tive de fazer agradecimentos como estes, apesar da minha displicência. Valeu!
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Aos amigos que estão longe, mas, como diz a epígrafe acima, às vezes do
longe se sabem as coisas mais depressa que do perto: ao Durval de Souza, Ronaldo
Rodegher, André Costa, Fabrício Prado e Leonardo Marques. Faço um especial
agradecimento ao Leonardo, que me ajudou com o abstract e com grandes idéias. Aos
amigos da estância em Florença, Eliot Parra, Amelia Almorza, Igor Sosa Mayor,
Monteserrat e Katia Brilli. Um especial agradecimento à signora Ana pelo, soggiorno.
Agradeço também aos professores Giovanni Levi e Margherita Azzari pelo auxílio
intelectual. Em Campana, aos compañeros de grandes jornadas Oscar Trujillo e
Cristóbal Maro, e também à Adriana, Virgínia, Maira e aos guris.
Agradeço imensamente aos meus pais, Reny e Lassi, que sempre me
apoiaram e sempre tiveram paciência com minhas faltas de tempo. À minha irmã
Bibiana, minha sobrinha Bianca e aos meus tios, Ester e Carlinhos. Ao também à
família da Bruna, Carla, seu Carlos, Vovó Ana e Isabel. Por fim, é preciso dizer que esta
tese não existiria se não fosse pelo empenho da Bruna. Entre orientação, apoio, carinhos
e deliciosas refeições, ela tem muito em haver, para sempre. Este trabalho é para ela.
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Resumo
Esta pesquisa tenta compreender como o crédito era praticado na dinâmica das relações pessoais, tendo como pano de fundo uma sociedade católica, corporativa, com uma hierarquia social baseada na política que incluía, no seu devido lugar, capitães, brigadeiros, pardos, donas, pretos, tenentes e forras. O contexto para isso é uma rota mercantil que interligava as localidades de Viamão e Sorocaba, passando por diversos outros lugares, mais ou menos importantes, como Vacaria, Lages, Lapa, Castro e Itapetininga. Para isso foram utilizados diversos tipos de documentos, como correspondências, listas nominativas, testamentos, registros paroquiais, registros de notas, inventários post-mortem, dentre outros, cuidadosamente organizados em diferentes bases de dados.
Abstract
The present research explores the dynamics of credit practices in a catholic and corporate society. The politics that pervaded this hierarchical society incorporated captains, brigadiers, pardos (mixed-race people), madams, blacks, lieutenants, and manumitted slaves, while assigning specific social locations to each of them. A mercantile route connecting the localities of Viamão and Sorocaba – with multiple locations in between, such as Vacaria, Lages, Lapa, Castro, and Itapetininga – provides the perfect setting to explore these issues. In this study I explore a vast array of documents such as letters, census lists, wills, church and notarial records, probate inventories, and others, carefully organized in different databases.
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Abreviaturas
AHU. SP (avulsos) Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania de São Paulo, avulsos (o
número em seqüência especifica o documento)
AHU. RS Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania de Rio Grande de São Pedro (o
número em seqüência especifica o documento)
AHU. SC Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania de Santa Catarina (o número
em seqüência especifica o documento)
AHU. SPMG. Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania de São Paulo, Coleção Mendes
Gouveia (o número em seqüência especifica o documento)
BN Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos (o número em seqüência
especifica o documento)
1COAPOA Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, Arquivo Público
do Rio Grande do Sul (o número em seqüência especifica o documento, primeiro o maço, depois o processo)
1TABPOA Primeiro Tabelionato de Porto Alegre, Arquivo Público do Rio Grande
do Sul (o número em seqüência especifica o documento, primeiro o livro, depois a nota, em ordem, dentro do livro)
2TABPOA Segundo Tabelionato de Porto Alegre, Arquivo Público do Rio Grande
do Sul (o número em seqüência especifica o documento, primeiro o livro, depois a nota, em ordem, dentro do livro)
1TABCUR Primeiro Tabelionato de Curitiba, Arquivo Digital do CEDOPE (o
número em seqüência especifica o documento, primeiro o livro, depois a nota, em ordem, dentro do livro)
AHRS Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
APERGS Arquivo Público do Rio Grande do Sul
BVA Batismos de Vacaria, Cúria de Vacaria (o número em seqüência
especifica o documento, primeiro o livro, depois a página e o registro, em ordem, na página)
ACMPOA Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre
AESP Arquivo do Estado de São Paulo
8
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
Capítulo 1 Tropas e tropeiros......................................................................................................... 45 A origem do caminho e seu movimento ................................................................................................ 45 Caracterização dos tropeiros ................................................................................................................. 51
Capítulo 2 A região produtora ....................................................................................................... 62 As fronteiras ........................................................................................................................................... 63 Viamão ................................................................................................................................................... 74
Capítulo 3 Pelo arquipélago das tropas .......................................................................................... 81 O mar ..................................................................................................................................................... 81 O espaço consumidor ........................................................................................................................... 110
Capítulo 4 Organizando aquele mundo ........................................................................................ 113 Organizando as coisas .......................................................................................................................... 113 Organizando as pessoas ....................................................................................................................... 120
Capítulo 5 O passivo sobrenatural e outras categorias ................................................................. 130 O passivo sobrenatural ........................................................................................................................ 130 Alguns modelos nativos ....................................................................................................................... 148
Capítulo 6 Um tanto de ilha, um tanto de mar ............................................................................. 159 Navegando pelo arquipélago atlântico sul ocidental ........................................................................... 161 Da percepção geográfica coeva ........................................................................................................... 177
Capítulo 7 A informação: movimento, intensidade e controle ...................................................... 181 A informação ........................................................................................................................................ 181 Os caminhos da novidade: a correspondência da Casa Doada e o controle das informações ............ 186
Capítulo 8 A confiança: geração, valor e manutenção .................................................................. 203 Definições êmicas e seu significado social ........................................................................................... 204 Alguns casos ......................................................................................................................................... 211
Capítulo 9 Uma economia capitalizada ........................................................................................ 223 A força dos capitães (e outros oficiais) e seu impacto na economia do mundo das tropas ................ 224 Como se faz um capitão ....................................................................................................................... 232
Capítulo 10 Os Agentes do crédito ............................................................................................. 253 Credores e fiadores .............................................................................................................................. 258 Sua excelência, o devedor .................................................................................................................... 269
Capítulo 11 A loteria da Babilônia: um mercado diverso ............................................................ 280 Camadas de relacionamentos .............................................................................................................. 280 Sobre o que circula: uma dança das cadeiras ...................................................................................... 302
Capítulo 12 Esferas de troca e formas de crédito: geração, significado e manutenção ................ 311 Sobre bens e esferas de troca. E sobre o que ficava parado ............................................................... 311 A dinâmica do estático ......................................................................................................................... 318
9
Capítulo 13 De volta ao caminho ............................................................................................... 332 Fianças e cobranças: o peso da equidade ............................................................................................ 335 Um comércio hierarquizado ................................................................................................................. 345
CONCLUSÕES ...................................................................................................................... 355
FONTES ................................................................................................................................. 358
FONTES IMPRESSAS ......................................................................................................... 362
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 363
10
TABELAS
TABELA 1 ‐ POPULAÇÃO DE LOCALIDADES DA FRONTEIRA DO RIO PARDO (FINAL DO XVIII) ............................................ 71 TABELA 2 ‐ POPULAÇÃO DE LOCALIDADES DO VIAMÃO (FINAL DO XVIII) .................................................................... 77 TABELA 3 – POPULAÇÃO DA FREGUESIA DA LAPA (1781‐1809) .............................................................................. 92 TABELA 4 ‐ CLASSES UTILIZADAS NOS MAPAS GERAIS DE HABITANTES ...................................................................... 128 TABELA 5 ‐ LOCALIDADES DE ORIGEM DOS CHEFES DE FOGOS EM SOROCABA (1801) ................................................ 162 TABELA 6 ‐ LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DOS DEVEDORES DO ROL DE DÍVIDAS DE FRANCISCO DE PAULA TEIXEIRA .............. 341
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GRÁFICOS, IMAGENS E MAPAS FIGURA 1 ‐ MAPA DO CAMINHO DAS TROPAS NA AMÉRICA DO SUL (1780‐1810) ...................................................... 14 FIGURA 2 – MAPA DO CAMINHO DAS TROPAS (1780‐1810) .................................................................................. 15 FIGURA 3 – ESQUEMA SIMPLIFICADO DE RELACIONAMENTOS DA BASE DE DADOS “MALTA” ........................................... 22 FIGURA 4 – VISUALIZAÇÃO DA BASE DE DADOS “MALTA” ....................................................................................... 24 FIGURA 5 – MAPA DO CAMINHO DAS TROPAS (APROXIMADAMENTE 1760) .............................................................. 46 FIGURA 6 ‐ NÚMERO ANUAL DE TROPAS (NO REGISTRO DE CURITIBA, 1788‐1809) .................................................... 49 FIGURA 7 ‐ ESTIMATIVA DO NÚMERO DE ANIMAIS CALCULADA PELO VALOR DOS IMPOSTOS DECLARADOS NO REGISTRO DE
CURITIBA (1788‐1809) .......................................................................................................................... 50 FIGURA 8 ‐ PROPORÇÃO DOS ANIMAIS POR DÉCADA ............................................................................................... 51 FIGURA 9 ‐ TROPEIROS AGRUPADOS PELO NÚMERO DE VIAGENS QUE REALIZARAM E O PESO DE SEUS NEGÓCIOS (MEDIDO EM
TRIBUTOS DEVIDOS) ................................................................................................................................. 53 FIGURA 10 ‐ MAPA DA VILA DE RIO GRANDE E SEU ENTORNO (FINAL DO SÉCULO XVIII)................................................ 68 FIGURA 11 – MAPA DA BANDA ORIENTAL E FRONTEIRA DO RIO GRANDE (FINAL DO XVIII) ........................................... 68 FIGURA 12 – MAPA DA FRONTEIRA DO RIO PARDO (FINAL DO XVIII) ........................................................................ 70 FIGURA 13 – MAPA DE TRIUNFO E DO VIAMÃO (FINAL DO XVIII) ............................................................................. 78 FIGURA 14 ‐ MAPA DA PATRULHA, SÃO FRANCISCO E VACARIA (FINAL DO XVIII) ........................................................ 83 FIGURA 15 ‐ MAPA DE VACARIA, LAGES, LAGUNA E SANTA CATARINA (FINAL DO XVIII) ............................................... 87 FIGURA 16 – MAPA DE CURITIBA, CASTRO, LAPA E CAMPOS GERAIS (FINAL DO XVIII) ................................................. 95 FIGURA 17 – MAPA DE SOROCABA, SÃO PAULO E SEU INTERIOR (FINAL DO XVII) ...................................................... 104 FIGURA 18 ‐ DISTÂNCIAS DA ÉPOCA, MEDIDAS EM DIAS DE VIAGEM ......................................................................... 176 FIGURA 19 ‐ CORRESPONDÊNCIA ATIVA E PASSIVA DO TESOUREIRO ANTONIO MANUEL FERNANDES DA SILVA ................ 187 FIGURA 20 ‐ CARTAS ESCRITAS POR ANTONIO MANUEL FERNANDES DA SILVA (NÚMERO TOTAL E NÚMERO DAS CARTAS
RESPOSTA) .......................................................................................................................................... 188 FIGURA 21 ‐ ASPECTO DA BASE DE DADOS "CORRESPONDÊNCIAS" ......................................................................... 190 FIGURA 22 ‐ DETALHE DA SUB‐BASE "GENEALOGIA DA CORRESPONDÊNCIA" ............................................................ 191 FIGURA 23 ‐ CORRESPONDÊNCIA ENTRE ANTONIO MANUEL FERNANDES DA SILVA E MANUEL JOSÉ CORREIA DA CUNHA .. 192 FIGURA 24 ‐ CORRESPONDÊNCIA ENTRE ANTONIO FRANCISCO DE AGUIAR E ANTONIO MANUEL FERNANDES DA SILVA ..... 193 FIGURA 25 ‐ COMPARAÇÃO ENTRE AS CORRESPONDÊNCIAS ENVIADAS PARA ANTONIO MANUEL FERNANDES DA SILVA PELOS
INSPETORES DE CURITIBA E SOROCABA ...................................................................................................... 194 FIGURA 26 ‐ COMPARAÇÃO DO NÚMERO DE NOTAS ENTRE O 1º TABELIONATO DE PORTO ALEGRE E O 1º TABELIONATO DE
CURITIBA (1780‐1810) ........................................................................................................................ 255 FIGURA 27 ‐ COMPARAÇÃO ENTRE O NÚMERO DE DÍVIDAS ENCONTRADAS EM INVENTÁRIOS E EM REGISTROS DE NOTAS EM
PORTO ALEGRE, AO LONGO DOS ANOS 1780‐1795 .................................................................................... 257 FIGURA 28 ‐ HIERARQUIA DO CRÉDITO, EM FORMA ESCALONADA ........................................................................... 273 FIGURA 29 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE PORTO ALEGRE (1770‐1780) ...................................................... 285 FIGURA 30 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE PORTO ALEGRE (1770‐1780 ‐ NÚCLEO DENSO) .............................. 286 FIGURA 31 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE PORTO ALEGRE (1780‐1790) ...................................................... 287 FIGURA 32 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE PORTO ALEGRE (1780‐1790 ‐ NÚCLEO DENSO) .............................. 288 FIGURA 33 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE SOROCABA (1780‐1790) ........................................................... 290 FIGURA 34 ‐ REDE DE CREDORES E DEVEDORES DE SOROCABA (1780‐1790 ‐ NÚCLEO DENSO) .................................... 290 FIGURA 35 ‐ REDE DE ANTONIO FRANCISCO DE AGUIAR (INCLUINDO APENAS OS "PORTADORES" DE REMESSAS) .............. 297 FIGURA 36 ‐ REDE DE ANTONIO FRANCISCO DE AGUIAR (INCLUINDO PORTADORES E OUTRAS ALIANÇAS) ........................ 298
12
Introdução Em julho de 1797 um sujeito chamado Antonio Francisco de Aguiar
escrevia uma carta para outro, chamado Antonio Manuel Fernandes da Silva. Falava de
um terceiro, José Joaquim de Oliveira Cardoso, sob o qual pairava uma dúvida, se iria
formalizar as dívidas que tinha em juízo, se iria assumi-las como válidas. Aguiar
contava e esperava por isso, e acrescentava: me tenho esforçado [...] a que o Doutor
José Joaquim formalize as suas contas judiciosas e verdadeiras, por crédito seu, e boa
reputação as cinzas de seu pai.2 José Joaquim era filho do Capitão-mor de São Paulo,
Manuel de Oliveira Cardoso. Antonio Francisco de Aguiar era Tenente-Coronel e genro
de Paulino Aires de Aguirre, grande potentado em Sorocaba. Antonio Manuel
Fernandes da Silva era procurador e representante de Tomé Joaquim da Costa Corte
Real, Conselheiro Ultramarino.
Em janeiro de 1775, em meio aos conflitos entre os exércitos portugueses e
espanhóis no sul da América, o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria, na Praça de
Nossa Senhora dos Prazeres do Rio Iguatemi, escrevia ao Secretário de Estado e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, que se encontrava em Lisboa:
As cinco Companhias de Aventureiros são compostas de negros, mulatos, índios e criminosos, que continuamente estão a desertar para os castelhanos, gente esta de mui pouca confiança para qualquer ação nus, e descalços, sem brio nem honra, e receio que se houver alguma ocasião desamparem os oficiais, pois só desejam e procuram ver-se fora deste distrito e da sujeição em que estão violentos. Deixo a consideração de Vossa Excelência os progressos que poderá obrar um comandante com gente de tão baixo espírito. Quase todos estes aventureiros tem vindo em ferros por homicídios, furtos e outros delitos, e por não pagarem dívidas de que são dispensados, que por seu gosto, nem um único depois que souberam o que isso era.3
Este trabalho é sobre estes homens e seus negócios. Procura entender como
funcionava o acesso ao crédito, o crédito financeiro, mas também o crédito como
sinônimo de confiança. E aqui entram todos: mulatos, índios, criminosos, capitães,
brigadeiros, conselheiros ultramarinos e secretários de estado e ultramar. Alguns
elementos presentes nestas breves citações também povoarão este trabalho, o parentesco
e seu significado nas trocas, como o de José Joaquim e seu falecido pai, que era tão
expressivo que não passou despercebido por um terceiro que nem mesmo era o credor.
Ao comentar sobre um terceiro, neste caso particular, Aguiar e Fernandes da Silva não
2 BN-II-35,25,25-27-023 3 AHU. SPMG. 2691.
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apenas estavam reforçando regras sociais que conheciam, mas contribuíam para sua
aplicação, para o controle social daquele terceiro e deles próprios. E faziam isso da
forma de forma muito simples: pela conversa. A forma como as informações circulavam
entre os agentes, e seu impacto nos negócios e nas decisões, também será aqui tratada.
E não podemos esquecer a reputação e a confiança, elementos que marcam
as duas passagens acima. Tanto Aguiar esperava o melhor de José Joaquim como Sá e
Faria esperava o pior daquelas pessoas de baixo espírito. E o problema, penso, estava
longe da prática da deserção, dizia respeito, sim, à hierarquia social e sua naturalização.
Até porque, cerca de 10 anos depois o próprio Sá e Faria perguntava ao Vice-rei de
Buenos Aires se devia trocar de farda ou se usaria a mesma, já que ele também havia
desertado para os castelhanos.4 Mas ele era Brigadeiro e diferente daquelas pessoas que,
entre outras coisas, não pagaram suas dívidas. Nisso voltamos ao problema do crédito e
de como sua prática estava profundamente relacionada com os elementos mais próprios
daquele mundo.
Por outro lado, as citações acima apresentam dois contextos importantes. De
certo modo, a hierarquia social, tal como vimos no primeiro exemplo, foi gerada a partir
do processo no qual o segundo caso foi produzido. As patentes de muitos dos
renomados oficiais que comandavam o governo e a economia de fins do XVIII e início
do XIX no espaço que estamos tomando foram, em sua maioria, concedidas no processo
de guerra entre lusos e espanhóis, inclusive muitas das patentes que Antonio Francisco
de Aguiar obteve em sua vida, até chegar a ser Tenente-Coronel. Mas estaríamos
errando em cheio se apostássemos apenas na guerra como modelo de explicação: há
diversos outros fatores que devem ser incluídos, dentre os quais o parentesco, a
reputação, as relações com a monarquia e com aquela base social, na qual se incluíam
negros, mulatos e índios. E criminosos também, mas associar estes àqueles não explica
nada.
O objetivo principal é compreender aquela economia a partir do estudo das
formas como o crédito era praticado na dinâmica das relações pessoais, tendo como
pano de fundo uma sociedade católica, corporativa, com uma hierarquia social baseada
na política que incluía, no seu devido lugar, capitães, brigadeiros, pardos, donas, pretos,
4 AGI-GOB-BA-070-003
14
tenentes e forras. O contexto para isso é uma rota mercantil, que interligava as
localidades de Viamão e Sorocaba, passando por diversos outros lugares, mais ou
menos importantes, como Vacaria, Lages, Lapa, Castro e Itapetininga. Uma rota
comercial de um produto único, praticamente, os animais, especialmente mulas, cavalos
e reses. Neste sentido, aponto esta como uma economia de Antigo Regime, mas não
faço desta definição uma tosca forma de rotulagem, procurando, antes, tomá-la em suas
especificidades, procurando entender a originalidade de suas formas.
Figura 1 ‐ Mapa do Caminho das Tropas na América do Sul (1780‐1810)
Fonte: Mapas Particulares... BN. Mss. 005,04,035
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Figura 2 – Mapa do Caminho das Tropas (1780‐1810)
Fonte: Mapas Particulares... BN. Mss. 005,04,035
Aspectos teóricos e metodológicos
As referências teóricas e metodológicas deste trabalho são diversas e
passam por tendências como a micro-história italiana, a antropologia econômica
substantivista, a corrente neo-institucional, as social network analysis, a sociologia das
relações de Ronald Burt e, especialmente as obras de Fredrik Barth, Maurice Godelier e
Bartolomé Clavero. Também procurei dar alguma atenção à problemas de ordem
demográfica, assim como questões mais próprias da geografia. O resultado foi uma
infidelidade completa e uma total promiscuidade de idéias. Demógrafos, economistas,
sociólogos, antropólogos e historiadores podem não se dar por satisfeitos ao ler este
trabalho. Um dos meus principais objetivos ao escrever este trabalho foi não prometer
certezas disciplinares. A idéia, desde o início, foi ser mais provocativo, tratando de
temas nada fáceis de resolver e para os quais as fontes disponíveis não ajudavam. Para
tanto, a promiscuidade foi fundamental e peço desculpas, desde logo, pelos eventuais
deslizes de um aprendiz.
16
Falando de fontes, procurei apresentá-las ao longo do texto e tentei fazer da
crítica documental matéria para pensar elementos próprios daquele mundo. Ao
introduzir as listas nominativas, por exemplo, ressaltei que a forma como eram
construídas dizia respeito às próprias noções de classificação social da época. Ao tratar
dos inventários post-mortem, procurei enfatizar, dentre outras coisas, como a
preocupação com o patrimônio dos órfãos entrava no cálculo daqueles homens e
mulheres, e como a morte de um sujeito produzia uma série de reordenações na
economia doméstica e comunitária. Quando indaguei a correspondência, procurei
estudar a fundo como se dava aquela circulação de informações e como isso produzia
efeitos naquela economia. As principais fontes que utilizei neste trabalho foram as tais
correspondências, os inventários post-mortem, as escrituras públicas (livros de notas) e
as listas nominativas. Entretanto, acabei lançando mão de diversos outros conjuntos
documentais que me pareceram relevantes, e que serão devidamente apresentados e
referenciados ao longo do texto.
O crédito, como qualquer objeto de análise, pode ser abordado de diversas
maneiras. A hipótese principal deste trabalho, contudo, me levou a verificar como os
agentes sociais o praticavam no seu cotidiano. Como o problema do crédito está
diretamente relacionado com a confiança e a informação, de um modo geral, e com a
relação entre os contratantes numa sociedade de Antigo Regime, seria preciso tomar em
conta uma metodologia que fosse totalmente sensível às mais sutis dinâmicas da vida
daqueles agentes.
Uma saída conveniente seria a utilização da prosopografia. A dificuldade
residiria em identificar um grupo. Se recordarmos novamente a importância da
informação e da confiança nas movimentações de crédito, o grupo de análise teria que
abarcar toda a sociedade em questão ou, ao menos, todos aqueles de quem houvesse
dados e estivessem relacionados àquelas transações, mesmo que indiretamente. Se
tivéssemos escolhido apenas a elite do crédito, acabaríamos, provavelmente, chegando
às mesmas conclusões a que chegou a historiografia clássica do tema, tornando pouco
útil o trabalho.
Um estudo biográfico seria igualmente relevante, na medida em que
poderíamos verificar com detalhes as movimentações que nos interessam. Contudo, se é
17
o aspecto relacional do crédito o mais importante para este estudo, preciso extrapolar a
vida de um personagem, navegando pelas cadeias de endividamento. Tais problemas me
fazem tomar um caminho que mescla um pouco as duas perspectivas. A idéia seria
estudar com profundidade alguns indivíduos, mesmo que não tenham necessariamente
algo em comum além de terem deixado registro de algumas de suas dívidas e créditos.
Não seria possível fazer um estudo de um suposto grupo dos “endividados” mas, sim,
utilizá-los para compreender alguns aspectos mais gerais daquele mundo.
A forma de concretizar esta perspectiva surgiu a partir da reflexão sobre o
que aporta Jean Pierre Dedieu.5 A idéia principal é a de que é possível decompor a vida
dos agentes históricos em “eventos”. Neste sentido, para cada ato seria criado um
registro com informações como a data, o local, a interação com outro agente e um
campo de detalhamento, entre outros. A interação e a análise detalhada de cada ato são
os pontos fortes desta forma de coletar e organizar os dados. Tal perspectiva de trabalho
pode perfeitamente ser inserida dentro de um posicionamento metodológico maior,
como o que é proposto por Fredrik Barth. Ele propõe um modelo de estrutura para a
ação social, que é útil para regular nossos microscópios. Analisando um evento,
podemos descobrir muitas coisas sobre os atores e sobre os grupos dos quais estes
fazem parte, nas palavras de Barth:
...os atos são ao mesmo tempo instrumentais, nesse sentido mais restrito, e expressivos, ou seja, mostram a orientação, a condição e a posição do ator. Rastreando as ligações dos atos em direção às suas raízes, encontramos planos e estratégias, afirmações identitárias, valores e conhecimentos. 6
Esta metodologia é conveniente na medida em que abre espaço para estudar
a transformação dos grupos e suas diferentes dinâmicas e peculiaridades. A dinâmica de
que falo, que caracteriza as movimentações de crédito, poderia ser apreendida por esta
análise minuciosa, evento por evento. Mas a proposta de Barth vai mais além. Para ele,
há uma importante diferença importante entre “evento” e “ato”:
O primeiro refere-se ao aspecto externo do comportamento, aos dados objetivos e mensuráveis do positivismo. O segundo, ao significado intencional e interpretado do comportamento, o seu significado para as pessoas conscientes, com conjuntos
5 DEDIEU, Jean Pierre, "Les grandes bases de données: une nouvelle approche de l'histoire sociale. Le système Fichoz," (2005). 6 BARTH, Fredrik, O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas (Rio de Janeiro: Contracapa, 2000), p. 173.
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específicos de crenças e de experiências. O evento é um ato em virtude de ser intencional e interpretável.7
Nestes termos, poderíamos “navegar” pelos atos para trás, em busca das
intenções do ator e para a frente, buscando as interpretações feitas da atitude. Da mesma
forma, o evento pode ser estudado no sentido de se descobrir as interpretações que se
deram dele:
...o evento é percebido como algo que traz informações a respeito do outro e como uma fonte e conseqüências. O precipitado da interpretação dos atos na pessoa é a sua experiência e, sinteticamente, em um plano mais distanciado, seus conhecimentos e valores, que por sua vez podem retroagir sobre planos e objetivos futuros, bem como sobre futuras interpretações de atos. 8
Esta forma de conceber a investigação pode se revelar absolutamente útil
numa pesquisa sobre crédito. A questão seria ver como as pessoas constroem, a partir de
cada ato, uma idéia de confiança, de ganho e de solidariedade. Aperfeiçoando mais:
como as diferentes idéias de confiança, ganho e solidariedade (apenas para dar alguns
exemplos) que existem numa comunidade (ou numa rota mercantil) se reproduziam no
dia-a-dia e se articulavam a ponto da economia funcionar?
Seria viável e enriquecedor para a pesquisa fazer uma decomposição das
informações obtidas em arquivos, de forma a reorganizá-las de modo cruzado em
processos cronológicos, que unissem uma diversidade de atores e atos em torno a um
mesmo problema. Exemplo disso (em um caso hipotético) seria a agrupação de uma
série de dívidas e pagamentos entre duas famílias, ao mesmo tempo em que
monitoramos a ascensão/decadência de uma delas, ou os conflitos/aproximações
existentes entre seus membros. Mas esta não seria a única forma de reagrupar estes
fragmentos criados na investigação.
A perspectiva de trabalhar a partir dos atores sociais não invalida um estudo
serial. Tal perspectiva pode contribuir muito para a compreensão de algumas tendências
gerais de comportamento ou, ao menos, contribuir para a formulação de hipóteses ao
longo da pesquisa, em diálogo constante com as demais metodologias empregadas.
Trabalhos como Centro e Periferia de uno stato assoluto ou A Herança Imaterial, de
Giovanni Levi, são bons exemplos da utilização articulada da história serial com a
7 Ibid. 8 Ibid.
19
chamada micro-análise. A análise serial dos registros de compra e venda (no caso de A
Herança Imaterial) como de dotes (no caso de Centro e periferia) foram importantes
para a compreensão do mercado de terras e, em ambos os casos, para a compreensão
dos valores daqueles grupos estudados, numa perfeita articulação com a metodologia
proposta acima. O repertório de métodos de nossa pesquisa não poderia prescindir deste
recurso.9
O mesmo pode ser dito para as chamadas social network analisys. As
análises de redes sociais surgiram no final dos anos 60, através dos trabalhos pioneiros
de Mitchell, Boissevain e Barnes.10 Trata-se de uma metodologia que percebe nas
interações humanas o objeto de análise primordial, sem, contudo, dispensar o diálogo
com outras metodologias. A preocupação central desta abordagem são os tipos e forma
de relacionamentos mantidos pelas unidades de análise (que podem ser pessoas,
empresas, cidades, palavras) e como estes laços podem interferir no comportamento e
nas escolhas destas unidades.
Parte importante do método é a elaboração das matrizes e dos gráficos.
Estes gráficos diferem daqueles seriais, mais conhecidos, por não apresentar uma
linearidade modulada pelo tempo. Cada matriz, e seu gráfico correspondente, equivalem
a um instantâneo dos relacionamentos de um grupo. O gráfico é formado por nódulos
(que representam as unidades), linhas (que simbolizam as relações) e setas que indicam
os sentidos das ligações. De acordo com o tipo de gráfico utilizado, os desenhos e cores
dos nódulos variam, o que também ocorre com o cumprimento das linhas, de forma a
dar um significado visual ao que foi expresso na matriz pelo pesquisador. Para a
elaboração destes gráficos, existem softwares adequados, como o Cyram Net Miner e o
Pajek, disponíveis no mercado. Todavia, tal metodologia não pretende dar conta da
totalidade das relações mas, apenas, apresentá-las de uma forma ordenada e visualmente
inteligível para o investigador. Segundo Hanneman:
Una razón para la utilización de técnicas matemáticas y de grafos en el análisis de redes sociales es que permite representar la descripción de una red de manera concisa y sistemática. También posibilita el uso de ordenadores para almacenar y
9 LEVI, Giovanni, Centro e periferia di uno stato assoluto (Torino: Rosenberg & Sellier, 1985); LEVI, Giovanni, A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). 10 BOISSEVAIN, Jeremy, "Network Analysis: a reappraisal," Current Anthropology 20, no. 2 (1979). e MITCHELL, J. Clyde, "Social Networks," Annual Review of Anthropology 03 (1974).
20
manipular rápidamente la información y de manera más precisa que si se hiciese manualmente. A veces son las reglas y las convenciones las que permiten que nos comuniquemos con claridad.11
Tal metodologia apresenta-se como uma importante aliada na investigação
histórica. Contudo, é preciso ter alguns cuidados para não cair em simplificações. Para
Boissevain, as análises de redes sociais não se constituem em uma teoria, ainda que
tenham implicações teóricas em sua constituição. Alguns cuidados devem ser tomados,
não apenas na representação gráfica, mas, sobretudo na montagem das matrizes e na
atribuição do que é ou não um relacionamento, bem como das variedades de conexões
possíveis em determinado contexto. O fato de dois sujeitos se conhecerem é diferente de
uma amizade e provoca comportamentos muito distintos. Segundo Daniel Santili, em
seu estudo sobre o compadrio em Quilmes, entre 1780 e 1840, as relações de
parentesco, por exemplo, devem ser matizadas:
También podemos comprobar otros lazos que asumen rasgos de parentesco como la alianza por matrimonio o el parentesco ritual establecido por el compadrazgo. Este tipo de ligamento se produce con cierto grado de elección. Pero además podemos comprobar la existencia de otro tipo de lazos más allá de la genealogía y el casamiento, como los que son visibles a través de los escritos elaborados ante los estrados judiciales, que implican un compromiso de las partes en su relación entre ellos y hacia fuera, o en los contratos comerciales. En los dos primeros casos, con matices, estamos en presencia de la comprobación de la existencia de la red pero no de su funcionamiento o de su funcionalidad para algún objetivo específico, ya que los vínculos de parentesco pueden ser precisamente nada más que eso. 12
Semelhante metodologia já vem sendo empregada nos estudos históricos há
muitos anos. Podemos citar aqui os recentes trabalhos de Zacharias Moutoukias sobre as
redes das elites portenhas entre o final do XVIII e início do XIX, assim como o trabalho
de Susan Socolow e Juan Carlo Garavaglia. Tal método pode servir para os mais
diversos problemas, sendo uma forma complementar de resolução.13 Tal metodologia
tem sido pouco considerada para o estudo do crédito, ainda que a metáfora da rede seja
freqüentemente utilizada para seu estudo. Sendo que os atos de crédito sempre associam 11 HANNEMAN, Robert, Introdución a los métodos del análisis de redes sociales (Revista Redes, s/d). Acessado em junho de 2004. 12 SANTILI, Daniel, "Representación gráfica de redes sociales. Un método de obtención y un ejemplo histórico," Mundo Agrario. Revista de estudios rurales, no. 06 (2003). 13 MOUTOUKIAS, "Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIIIe siècle," Annales. Histoire, Sciences Sociales 47, no. 04 (1992).
21
duas pessoas, grupos ou empresas, e que isso fica expresso nas fontes, tal recurso
metodológico seria absolutamente viável. Com a agrupação de recortes temporais
maiores que um ano, como um lustro ou uma década, poderíamos ver como se
manifesta a corrente de empréstimos e os grupos que se vinculam através desta prática.
Neste sentido, tal metodologia poderia tornar visível a reprodução de laços pretéritos
através dos instrumentos de crédito ou, mesmo, a criação de vínculos novos, que
poderiam ser mapeados no tempo, de acordo com as possibilidades.
Há um problema crucial para a compreensão do crédito no mundo que
estamos investigando: a família. Segundo as definições dos tratadistas da época, a
família é um dos principais complicadores nos negócios de crédito.14 Mas qual família?
O entendimento deste conceito, no contexto que estamos estudando, ia além da própria
noção de família extensa. Incluía também os servos e “agregados”, e mesmo uma
irmandade significava um vínculo de parentesco que deveria ser considerado, assim
como o compadrio e outros formas de parentesco fictício.15
Assim, um passo importante seria o rastreio dos grupos familiares, levando
em conta as características acima mencionadas. Na medida em que estamos trabalhando
com um grupo irregular, heterogêneo e de universo desconhecido, as técnicas
tradicionais da genealogia não são suficientes, ainda que tampouco possam ser
desprezadas. Uma saída viável nos pareceu ser a fusão destas técnicas com o método
Henry. Através desta amálgama, poderíamos obter resultados rápidos sobre grandes
quantidade de famílias nucleares, utilizando uma codificação avançada para agrupar os
diferentes sujeitos e unidade domésticas.
Uma fonte, em particular, contribuiria bastante para este esforço: as listas
nominativas. Tais eram listagens de moradores produzidas para que as autoridades
coloniais tivessem conhecimento do número de homens em idade para a guerra. Eram
feitas fogo por fogo (unidade doméstica) e poderiam incluir as idades, o sexo e outras
informações sobre os viventes daquele lugar. Elas geralmente incluem dados sobre
agregados, escravos e outras pessoas associadas ao grupo familiar. Em nosso caso
particular dispomos deste tipo de fontes para boa parte do nosso recorte espacial,
14 CLAVERO, Bartolomé, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna (Milano: Giuffré, 1990). 15 Ibid.
22
dispondo também de fontes análogas, os “Róis de Confessados”, feitos para controle
dos fiéis e preparação para a Páscoa.
Na tentativa de dar conta dos problemas teórico-metodológicos expostos na
parte anterior, construímos uma base de dados que denominamos “Sistema Malta”, na
medida em que é composto de uma série de sete bases articuladas, além de outras feitas
para cada uma das fontes que serão utilizadas.16
Figura 3 – Esquema simplificado de relacionamentos da base de dados “Malta”
Fonte: Metadados da Base Malta (Relacionamentos)
A base principal, denominada MALTA, foi construída tendo em vista a já
mencionada proposta de Jean Pierre Dedieu, de fragmentar a vida em eventos para
poder reagrupá-los de diversas maneiras. Para solucionar o problema dos variados usos
e ao mesmo tempo aproximá-la das propostas de Barth, criei um campo denominado
“evento”, que classifica cada ato de forma que seja possível realizar diferentes
perguntas. Um mesmo evento pode ser descrito duas ou mais vezes. Para incluir
registros com vistas à seriação, indicamos no campo “evento” o tipo de fenômeno
16 O software utilizado foi o Filemaker 9.0Advanced
23
reiterativo que se trata. Por outro lado, quando se refere à descrição de um “ato” ou
“evento” nos sentidos apontados por Barth, é feita genericamente alguma informação no
campo “evento” e descrito o ocorrido com detalhes em um campo denominado
“detalhamento”. Assim, os dados mais interpretativos estão juntos com os dados mais
seriáveis, mas passíveis de separação pelos critérios de “rotulagem” utilizados.
Além de criar um campo “evento”, destoando um pouco da proposta de
Dedier, também criamos os campos “papel do agente” e “papel do interlocutor”, onde
atribuímos justamente um “papel” a cada agente e em cada ato. Como já dissemos, um
mesmo evento pode ser repetido mais de uma vez. Neste sentido, cada ação é duplicada
de forma a atribuir a cada um dos partícipes uma agência particular, partindo da idéia
que um evento não tem o mesmo significado para todos os seus participantes.17 Assim,
cada evento é visto ao menos de duas formas distintas, podendo, em alguns casos, ter
muitas versões. A forma com a base foi construída permite estas manobras. Há ainda
outros dois campos, criados para coletar informações sobre a forma como os agentes
eram qualificados em seu tempo (tais como Capitão, preto forro, dona: os campos
“qualificativo_agente” e “qualificativo_interlocutor”.
A base Malta também formas de visualização diferenciadas (os chamados
“formulários”, em termos técnicos). São formas diferentes de ver os mesmos registros,
filtrando apenas alguns aspectos. É possível, por exemplo, visualizar todos os feitos de
um sujeito em um canto da tela, enquanto se pode verificar, ao mesmo tempo, todos os
eventos e atos que envolveram seus interlocutores, um por um. Este mecanismo é
possível graças ao relacionamento que a base tem consigo mesma, o que permite cruzar
os dados de múltiplas maneiras. É possível também obter a simples biografia de um
sujeito, decomposta em registros, ou uma série específica de um evento particular, como
o número anual de tropas que passavam no caminho.
17 Importante salientar que os eventos seriados não são duplicados, apenas os que descrevem interações.
24
Figura 4 – Visualização da Base de dados “Malta”
Uma outra base integrante do sistema é a denominada “AGENTES”. Tal se
constitui numa listagem de todos os sujeitos que se encontram mencionados na base
principal. Para vincular as duas bases, de forma a permitir buscar de dados velozes, foi
criada uma matrícula para cada personagem. Desta forma é possível separar homônimos
e organizar melhor os dados de cada ator. Além do nome e do número de matrícula,
estão os campos “sexo”, “data de nascimento” e “observações”, que servem para uma
melhor identificação dos agentes. O campo “data de nascimento” está diretamente
vinculado com a base principal, de modo que podemos saber a idade de cada agente em
cada ato.
Este se constitui como o coração da base. Vinculadas a estas, há outras
tantas, específicas para cada tipo de fonte. Cada uma delas foi criada e modificada com
o objetivo de coletar o máximo de informação possível de cada documento, permitindo
posteriores decomposições de dados em diferentes formatos, servindo a diferentes
análises. Todas as bases de fontes estão interligadas com uma base coletora chamada
“integradora_fontes”, que reuni dados como os sujeitos mencionados, os locais
mencionados e os principais temas de todas as fontes, permitindo buscas gerais por
personagens, locais e certos assuntos.
25
Toda a discussão que realizamos até aqui é matéria básica da pesquisa
histórica: uso de diferentes metodologias, organização sistemática das informações,
cruzamento de dados, etc. O mais interessante do que foi exposto até aqui é pensar na
articulação de distintas metodologias de uma forma tão orgânica que os diversos
métodos possam se valer de uma única coleta e organização dos dados, de forma a
evitar discrepâncias. De modo geral, cada método exige uma organização distinta dos
dados. Neste trabalho, boa parte da riqueza de cada informação é perdida, quando não
desfigurada. Neste sentido, um sistema que mantenha forte controle sobre este manuseio
pode contribuir muito para o desenvolvimento geral da pesquisa.
A historiografia do crédito
Temas como crédito e endividamento, no que tange às sociedades de Antigo
Regime, foram pouco estudados pela historiografia. Motivos para isso podem ser
apontados. Até meados da década de 1970, de modo geral, a história econômica era
feita tendo em vista, principalmente, a produção e a circulação; eram privilegiados os
grandes movimentos econômicos, as flutuações das economias regionais e nacionais,
deixando em segundo plano os aspectos microeconômicos. Temas como o consumo e o
crédito (em termos de relações de crédito) ficaram, assim, relegados a problemas
menores.
A tão falada hegemonia da história econômica no pós-guerra foi, na
verdade, a hegemonia de uma história macroeconômica. Tal se deu principalmente pela
desconfiança que havia ao tempo curto e aos estudos de indivíduos, considerados
enganadores:
O historiador tradicional presta atenção ao tempo breve da história: o das biografias e dos acontecimentos. Esse tempo não é, em absoluto, o que interessa aos historiadores economistas ou sociais. As sociedades, as civilizações, as economias e as instituições políticas vivem a um ritmo menos precipitado.18
Um historiador do porte de Braudel mantinha, assim, uma grande distância
da análise das decisões humanas frente a problemas econômicos (ou outros quaisquer).
18 BRAUDEL, Fernand, Para uma economia histórica: História e Ciências Sociais (Lisboa: Editorial Presença, 1972), p. 72. Grifo meu..
26
Em seu clássico de 1979, Civilização Material, Economia e Capitalismo, o autor já
apresenta um quadro distinto, ainda que não de todo:
Colocar-nos-emos sucessivamente em duas perspectivas diferentes: primeiro, ao lado do mercador, imaginaremos o que possa ser sua ação, sua tática costumeira; depois, afastando-nos dele, amplamente independentes das vontades individuais, consideraremos os espaços mercantis em si mesmos, os mercados em sentido lato [...] sua realidade impõe-se ao mercador, envolve-lhe a ação, favorece-a ou constrange-a. 19
Fica a impressão de que o próprio mercado não é criação humana. O
restante do texto confirma esta imagem, ao apresentar os agentes históricos sempre
atuando dentro de quadros maiores, induzidos pelo mercado. É uma paisagem sem
surpresas; todos têm seu script bem conhecido.20 Aqui se encontra a preocupação de que
o estudo de casos pode levar a uma idéia distorcida do que seria o típico. Não se admite
o caso particular como algo possível num determinado contexto, simplesmente. A
tônica desta historiografia era a busca das regularidades macroeconômicas, inda que se
tenham como exemplos as ações humanas mais diretas. Tal não se dava à toa: a crise de
29, a depressão, o intervencionismo estatal no entre-guerras e, depois, a guerra fria
tinham seu peso na escolha dos objetos e conduziram, como disse Kula, historiadores e
economistas a colocar en un lugar preferente los objectivos investigadores
macroeconómicos.21 Isso acabou contribuindo para desprezar o crédito, como objeto de
estudo.
Isso não impediu, contudo, que Fernand Braudel dedica-se atenção ao
problema do crédito, especialmente em Os Jogos das Trocas. Neste livro, o autor
destaca a importância do crédito nas movimentações comerciais deste a Idade Média.
Através de uma análise de longa duração, com exemplos sacados de diversos períodos,
Braudel aponta o quão indispensável o crédito era para o funcionamento dos mercados e
o quanto os mecanismos de liquidez faziam parte do cotidiano dos mercadores, estando
difundido em todos os estratos da hierarquia mercantil.22
19 Ibid., p. 115. 20 Isso fica mais saliente quando Braudel fala da colaboração mercantil. Ibid., p. 125. 21 KULA, Witold, Problema y métodos de la historia económica (Barcelona: Ediciones Península, 1977).. e FRAGOSO, João, & FLORENTINO, Manolo, "A História Econômica," in Domínios da História: ensaios de Teoria e Metodologia, ed. CARDOSO, Ciro & VAINFAS, Ronaldo (Rio de Janeiro: Editora Campus, 1998). 22 BRAUDEL, Fernand, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas (São Paulo: Martins Fontes, 1998)..
27
Segundo Braudel, no topo da cadeia de crédito está o grande negociante e,
por vezes, acima dele, grandes fortunas de investidores ou grandes grupos de pequenos
investidores. Para exemplificar este último, o autor cita o exemplo do conjunto de
pequenos credores espanhóis e italianos que garantia os empréstimos de curto prazo que
os mercadores genoveses faziam a Felipe II, através de um sofisticado jogo de
endividamentos. O autor menciona três momentos entre a Idade Média e a Moderna que
presenciaram momentos de fôlego no fornecimento de crédito. A primeira seria a do
crédito bancário dos florentinos, manipulado entre os século XIII e XIV, que serviu,
entre outros para financiar diversas atos da monarquia inglesa. Um segundo momento se
daria com o apogeu do crédito comercial de Gênova e Veneza, que se manteria com
vigor ao longo do século XVI, e que testemunharia, inclusive, feiras de liquidação,
como a de Plaisance, onde os ativos e passivos europeus se encontravam. Um terceiro
grande momento teria Amsterdam como palco, e um pesado sistema bancário e
comercial como base de sustentação.
Para Braudel, estes três momentos, com seus altos e baixos, demonstram o
quanto de inovador representava o crédito. Ao comentar o declínio dos genoveses, o
autor apontava que:
Uma vez mais, um crédito sofisticado em moldes modernos, que se instalara no topo dos negócios europeus, só conseguiu manter sua posição por muito pouco tempo, nem sequer meio século, como se estas experiências novas excedessem as possibilidades das economias do Ancien Régime.23
Neste sentido, o autor percebe uma sobreposição de temporalidades nas
práticas econômicas. As movimentações de crédito eram praticas modernas
desenvolvidas em meio a uma economia de tipo antigo. Nestes termos, um crédito
próprio de uma sociedade de Antigo Regime, com características próprias, não seria
possível. A partir dos anos 1990 surgiram inúmeros trabalhos levando em conta análises
micro, especialmente no que se refere ao crédito. A revista Annales publicou em 1994
um dossiê sobre redes de crédito em sociedades de Antigo Regime, com artigos de Peter
Spufford, Laurence Fontaine, Ulrich Pfister, Gerard Béaur e Paul Servais. Sobre crédito
23 Ibid., p. 348.
28
na França dos séculos XVII e XVIII surgiam os trabalhos de Jean Laurent Rosenthal,
Philip Hoffman e Gilles Postel-Vinay24.
É difícil apontar semelhanças entre estes autores. De forma geral, suas
matrizes intelectuais são bem distintas. É bastante provável que o crescimento dos
estudos sobre as práticas creditícias seja reflexo da disseminação do crédito no mundo,
de uma forma cada vez mais impessoal e individualizada. Ainda assim, é certo que
todos estes trabalhos trouxeram grandes inovações, especialmente no que toca à
metodologia. Isso possibilita que encontremos uma grande preocupação com a
representatividade das amostras e casos, como nos trabalhos de Rosenthal e Hoffman, e
até mesmo análises de discurso como no caso de Laurence Fontaine. A perspectiva
teórica, contudo, é muito distinta.
Uma das contribuições mais significativas destes novos trabalhos em
história econômica é a ampliação do diálogo com outras disciplinas, especialmente a
antropologia. O trabalho de Laurence Fontaine se destaca neste sentido. A autora
24 BÉAUR, Gérard, "Foncier et crédit dans les sociétés préindustrielles. Des liens solides ou des chaînes fragiles ?," Annales. Histoire, Sciences Sociales 49, no. 06 (1994); FONTAINE, Laurence, "L'activité notariale (note critique)," Annales. Histoire, Sciences Sociales 48, no. 02 (1993); FONTAINE, Laurence, "Espaces, usages et dynamiques de la dette dans les hautes vallées dauphinoises (XVIIe-XVIIIe siècles)," Annales 49, no. 6 (1994); FONTAINE, Laurence, "Espaces, usages et dynamiques de la dette dans les hautes vallées dauphinoises (XVIIe- XVIIIe siècles)," Annales HSS 49, no. 06 (1994); HOFFMAN, Philip, ROSENTHAL, Jean-Laurent, & POSTEL-VINAY, Gilles, "Private credit Markets in Paris, 1690-1840," The Journal of Economic History 52, no. 02 (1992); PFISTER, Ulrich, "Le Petit Crédit Rural en Suisse aux XVI-XVIII siècles," Annales 49, no. 6 (1994); ROSENTHAL, Jean-Laurent, "The development of irrigation in Provence, 1700-1860: the French Revolution and economic growth," The Journal of Economic History 50, no. 03 (1990); ROSENTHAL, Jean-Laurent, "Rural Credit Markets and Aggregate Shocks: the experience of Nuits St. Georges, 1756-1776," The Journal of Economic History 54, no. 2 (1994); ROSENTHAL, Jean-Laurent, "Comments on Cowen, Hanley, and Voth," The Journal of Economic History 57, no. 02 (1997); ROSENTHAL, Jean-Laurent, "The size of the Ante: Inequality, Financial Markets and Growth in Paris 1780-1907," (s/d); ROSENTHAL, Jean-Laurent, & HOFFMAN, Philip, "New Work in French Economic History," French Historical Studies 23, no. 03 (2000); ROSENTHAL, Jean-Laurent, HOFFMAN, Philip, & POSTEL-VINAY, Gilles, "Redistribution and long-term private debt in Paris, 1660-1726," The Journal of Economic History 55, no. 02 (1995); ROSENTHAL, Jean-Laurent, HOFFMAN, Philip, & POSTEL-VINAY, Gilles, Priceless Markets: the Political Economy of Credit in Paris, 1660-1870 (Chicago: The University Chicago Press, 2000); ROSENTHAL, Jean-Laurent, HOFFMAN, Philip, & POSTEL-VINAY, Gilles, What Is Trust? Historical Evidence from Credit Markets in France. SUMMER SCHOOL 2003 - VENICE, 1 - 6 SEPTEMBER. 2003; ROSENTHAL, Jean-Laurent, POSTEL-VINAY, Gilles, & HOFFMAN, Philip, "Private Credit Markets in Paris," The Journal of Economic History 52, no. 2 (1992); ROSENTHAL, Jean-Laurent, POSTEL-VINAY, Gilles, & HOFFMAN, Philip, "Information and economic history: how the credit market in Old Regime Paris forces us to rethink the transition to capitalism," The American Historical Review 104, no. 01 (1999); ROSENTHAL, Jean-Laurent, POSTEL-VINAY, Gilles, & HOFFMAN, Philip, Through the Storm Slowly: Trust and Credit Markets in France 1740-1840. http://weber.ucsd.edu/~aronatas. s/d; ROSENTHAL, Jean-Laurent, POSTEL-VINAY, Gilles, & PIKETTY, Thomas, "Wealth Concentration in a Developing Economy: Paris and France, 1807-1994," (2004); SPPUFORD, Peter, "Les Liens du Crédit au Village," Annales, no. 6 (1994).
29
compreende o crédito como um problema não apenas econômico: ele tem um lugar
social, cultural e pode ser um instrumento político.25 Sua abordagem dá especial atenção
às formas pelas quais o crédito é praticado e recebido, tendo em conta principalmente os
relacionamentos familiares e comunitários. Uma de suas hipóteses é a de que tais
relacionamentos seriam fundamentais para a reprodução das estruturas sociais
comunitárias: as dependências morais geradas a partir dos negócios de crédito
reforçariam as teias das redes de relacionamentos e o poder das elites locais,
fornecedoras de crédito e proteção.
Entre suas preocupações estão a projeção geográfica do mercado de crédito
e os impactos locais e regionais de sua utilização. A autora parte do idéia de que a
diversidade de agentes envolvidos nas negociações provoca uma diversidade de práticas
creditícias, matizada pelas relações de subordinação, clientela, amizade, parentesco,
entre outros relacionamentos reais. Ao estudar os negócios praticados por algumas
famílias, algumas delas de protestantes, a autora foi capaz de perceber o quanto os
interesses deste grupo transcendiam os limites locais e estavam relacionados, em boa
parte, à diáspora protestante dentro da Europa. Estas relações de crédito e dívida
compunham uma grande rede que se confundia com a própria rede de negócios mantida
por aquelas famílias, envolvendo a própria família e outros tantos negociantes, de
alcance local e regional.
O ponto alto é quando a autora aborda o crédito envolvido nas relações
sociais dentro de uma comunidade, percebendo o quanto ele contribuía para reproduzir
a hierarquia social, os poderes e as fazendas familiares, além de modificar o significado
dos pertencimentos, especialmente, o de reforçar as identidades internas da comunidade.
Há uma tendência, contudo, de Fontaine não considerar estas relações com mais
flexibilidade, percebendo a dinâmica dos conflitos entre os agentes que estuda. O
esquema por ela criado é um tanto estático, especialmente quando a autora insiste em
enquadrar seus agentes dentro de categorias como protestante e católico, quando eles
poderiam estar atuando de acordo com outras orientações ou, mesmo, de forma
incoerente.
25 FONTAINE. Laurence. Espaces, usages et dynamiques de la dette dans les hautes vallées dauphinoises (XVIIe-XVIIIe siècles). Annales: histoire, sciences sociales, 49e année, nº6. Paris: Armand Colin, 1994.
30
Outros trabalhos mais recentes abordam o crédito de maneira variada, ainda
que tendam a convergir na importância que ele tinha na reprodução das sociedades de
Antigo Regime. Tais são os trabalhos de Pfister, Servais, Spufford. Todos eles se
concentram na análise do crédito comunitário, especialmente aquele consumido por
camponeses. Servais, em seu estudo do sistema de rendas entre camponeses,
comerciantes e senhores em Liège no XVIII, destaca o peso da cobrança de juros
naquela sociedade. Considera também como tais práticas serviam para a manutenção da
sociedade de Antigo Regime, afirmando que era desejo de todo camponês adquirir
terras, e que o faziam, especialmente, através do crédito que dispunham.26
Pfister, analisando a Suíça dos séculos XVI a XVIII, faz uma importante
apreciação do crédito envolto em relações clientelares. Ao estudar diversos cantões,
buscando as semelhanças e diferenças (procedimento questionável, na medida que induz
a confirmar a idéia de que já haveria uma Suíça no período que estuda) percebe a
importância que as relações pretéritas entre os contratantes eram importantes para a
existência de um mercado de crédito, ainda que não explique a metodologia utilizada
para tal investigação. As redes de crédito estariam sobrepostas às redes sociais. Tal
afirmação explora pouco a dinâmica das relações sociais, na medida que as próprias
relações de crédito serviam para tecer e reestruturar as redes humanas.27
O trabalho de Peter Spufford aponta a dimensão do mercado de crédito na
Inglaterra entre 1568 e 1740, onde cerca de 80% dos inventáriados possuíam dívidas
passivas.28 Trabalhando com uma enorme massa documental, o autor discute os
problemas metodológicos do uso de inventários post-mortem, destacando a riqueza de
informações e os perigos próprios desta fonte. Spufford destaca o papel do scrivener,
responsável pela confecção dos contratos (tal como o notário) que muitas vezes fazia a
ligação entre as partes interessadas, além de, muitas vezes, ele mesmo atuar como
fornecedor de crédito. Acompanhando a trajetória destes funcionários, o autor percebeu
que muitos acabaram se tornando banqueiros, especialmente a partir do século XVII.
26 SERVAIS, Paul, "De la rente au crédit hypothecáire em périod de transition industrielle: stratégies familiales em région liègeose au XVIIIe siècle," Annales: histoire, sciences sociales 49, no. 06 (1994).. 27 PFISTER, "Le Petit Crédit Rural en Suisse aux XVI-XVIII siècles.". 28 SPPUFORD, Peter, "Le liens du crédit ao village dans l’Angleterre du XVIIe siècle.," Annales. Histoire, Sciences Sociales 49, no. 06 (1994).
31
Por seu turno, a contribuição de Jean-Laurent Rosenthal, Philip Hoffman e
Gilles Postel-Vinay é bastante expressiva. Trazendo para o debate uma rigorosa
metodologia de trabalho, os autores exploraram o mercado de crédito parisiense, entre
1660 e 1870, valendo-se de vasta documentação. Seguindo uma vertente neoclássica,
especialmente tributária do pensamento de Douglass North, estes autores incorporaram
a análise do acesso à informação (e seu controle) pelos agentes econômicos,
contribuindo para complexificar a análise das práticas creditícias. Sua abordagem
neoclássica os afasta um tanto da abordagem antropológica, o que faz com que avaliem
com certo pessimismo as práticas católicas que envolviam os mercados de crédito no
Antigo Regime francês, especialmente as mediadas pelos relacionamentos prévios dos
contratantes.
No início dos anos 1980, como coroamento de anos de pesquisas, foi
publicado Structure and Change in Economic History, de Douglass North, quase como
uma resposta neoclássica a escola substantivista, e incorporando muitas das críticas
daquela escola. Mantendo o aparato conceitual básico dos neoclássicos, North estava
preocupado em corrigir diversas insuficiências daquela doutrina, especialmente para a
análise das diversas economias do passado. A crítica de North aos postulados
neoclássicos é tão forte que muito o consideram como fundador de outra corrente,
chamada de institucionalista. Contudo, o autor admite e se vale de muitas das categorias
dos neoclássicos, ainda que com forte crítica.
Entre as principais observações de North, estavam o problema da
incorporação das instituições ao cálculo econômico e, dentro desta perspectiva, o
desenvolvimento de uma nova teoria neoclássica do Estado (de forma que as
instituições políticas fossem consideradas dentro da análise, e não como algo alheio),
além da preocupação com os direitos de propriedade (que estavam dados para os
neoclássicos tradicionais) e com as diversas percepções da realidade que norteiam o
cálculo dos indivíduos.
Por 'estructura' entiendo esas características de una sociedad que consideramos determinantes básicos de los resultados. Aquí incluyo las instituciones económicas y políticas, la tecnología, la población y la ideología de una sociedad.29
29 NORTH, Douglass C, Estructura y cambio en la historia económica (Madrid: Alianza Editorial, 1994).
32
Ainda que estivesse interessado em avançar o pensamento marginalista, o
trabalho de North está longe de ser uma ruptura. Pelo contrário, o livro se enquadra
profundamente dentro desta perspectiva, mantendo noções como a da agência
individual, marcada pelo interesses destes em maximizar seus benefícios, inda que o
autor tenda a relativizar este último ponto, dados os exemplos de inúmeras atitudes
altruístas ao longo da história, o que não seria explicado pela teoria neoclássica. Outro
ponto comum é a percepção da existência real de um espaço econômico, perfeitamente
destacado da sociedade, com a qual teria contatos em diversos momentos. É verdade
que North avança, demonstrando que há muito mais pontos de encontro do que se
pensa, e que a incorporação das instituições ao cálculo econômico é fundamental. Mas
acaba, ainda assim, isolando a economia, inda que de forma mediada.
A preocupação principal de North é identificar o pano de fundo necessário
para o funcionamento das economias, ou seja, quais os elementos extra-econômicos
úteis para a sua compreensão, aqueles que criam as condições para o indivíduo
neoclássico tomar suas decisões. O autor aponta que: la solidez de los códigos morales y
éticos de una sociedad es el cemento de la estabilidad social, que hace viable un
sistema económico. Sem confiança nestes pressupostos, os agentes teriam custos muito
altos para investir, e a própria inversão estaria comprometida. Observando esta postura,
percebe-se o quanto o trabalho de North é uma resposta aos substantivistas, além de se
colocar dentro de um debate que incluiria Barrington Moore, anos depois.30
A assimilação de North no meio acadêmico (de economia) foi brutal. Isso a
tal ponto que os principais artigos sobre crédito, publicados na década de 1990, já não o
citavam explicitamente nem o reivindicavam. Não era mais necessário: já trabalhavam
diretamente com seus princípios e noções. Os trabalhos de Rosenthal, Hoffman e
Postel-Vinay, desenvolvidos ao longo dos anos 1990, incorporavam profundamente o
aparato teórico de North, inserindo as instituições dentro da análise do fenômeno do
crédito. Um dos trabalhos mais importantes dos três, que possuem uma série de artigos
escritos conjuntamente, é Priceless Markets: the Political Economy of Credit in Paris
30MOORE, Barrington, Aspectos Morais do Crescimento Econômico (Rio de Janeiro: Record, 2000).
33
1660-1870, uma obra que conjuga refinamento teórico, metodologia rigorosa e uso
massivo de fontes.31
A metodologia utilizada pelos autores é descrita com minucias em Priceless
Markets. Para dar alguma inteligibilidade aos quase cinco milhões de contratos de
crédito feitos em Paris, ao longo do período abrangido, os autores trabalharam com
amostragens. Contudo, tal amostragem pretende, segundo os autores, ser representativa
da totalidade dos contratos e não encontrar formas possíveis de práticas creditícias. Para
atingir este objetivo, bastante ambicioso, os autores lançaram mão de técnicas de
estatística populacional. A escolha das amostras foi calculada, sendo que foram
recolhidas fontes de dez cartórios ao longo de todo o período. Tais dados foram,
posteriormente, comparados com amostras gerais do restante da documentação, com o
objetivo de testar sua representatividade.
Outro aspecto interessante da metodologia é o trabalho com a
temporalidade. Em seu livro, e em outros artigos, os autores trabalham com longa
duração e com período curtos, como em Rural Credit Markets and aggregate shocks:
the experience of Nuits St. George, 1756-1776, de Rosenthal. De acordo com os
problemas lançados, diferentes recortes são feitos, demonstrando um profundo
conhecimento das ferramentas da história. No caso de Priceless Markets um recorte de
quase dois séculos foi, segundo os autores, fundamental para apanhar alguns momentos
de mudança das instituições em relação ao mercado de crédito, de relevância,
particularmente, o reinado de Luís XIV e a Revolução Francesa. Contudo, apesar da
abordagem ser de longa duração, os autores estiveram atentos às peculiaridades de cada
período.
A mesma atenção dada à periodização foi dada a inclusão de variáveis no
cálculo. A quantidade de custos, desde o acesso à informação, o contrato, a escolha da
modalidade de empréstimo, o pagamento dos juros e o acerto final, foram todos
computados na avaliação feita pelos autores. Esta preocupação obsessiva demonstra,
também, o alinhamento dos autores com a postura de North. Desta leitura apurada dos
autores, podemos perceber dois outros aspectos importantes: o acesso à informação com
objeto de estudo e a problemática da agência história no Antigo Regime. 31 ROSENTHAL, HOFFMAN, & POSTEL-VINAY, Priceless Markets: the Political Economy of Credit in Paris, 1660-1870.
34
Um tipo de personagem se destaca no cenário construído pelos autores de
Priceless Markets: o notário. Dentro os principais intermediários que movimentavam as
engrenagens do sistema de créditos parisiense ao longo do período abordado, os
notários se destacavam em virtude, especialmente, de seu acesso privilegiado a
informações dos interlocutores econômicos, ou seja, sabiam quem podia e quem
precisava emprestar, além de saber das condições de acesso e solvência destes mesmos
agentes. Neste sentido, o acesso à informação era crucial para a viabilidade dos
negócios. Esta questão acaba se colocando como um problema metodológico: para a
compreensão dos mecanismos de crédito, é fundamental a análise da rede de
informações subjacente a este mercado.
Os autores, contudo, não se detém sobre quem realmente são os
interlocutores do crédito, manipulando apenas dados brutos, sem atentar para as
relações extra-economicas mantidas entre estes. Consideram apenas os aspectos extra-
econômicos presentes, de modo geral, naquela sociedade, sem saber quais são mais
relevantes ou não para os sujeitos que estudam.
Um outro problema, mais sério, diz respeito à compreensão da agência
como individual na França do Antigo Regime. Seguindo na linha marginalista, de
acordo com os postulados de North, os autores acabam limitando o cálculo dos agente a
seus aspectos individuais. A importância das relações familiares, uma das marcas das
sociedades de Antigo Regime, foi minimizada neste trabalho, dando lugar a um
indivíduo tomador de decisões pessoais, muitas delas, determinadas por um certo
oportunismo.
Um último ponto deve ser ressaltado: a posição do Estado no mercado de
crédito. Segundo os autores, do início do recorte até 1789, a postura do Estado francês
tendeu a embaraçar o desenvolvimento do crédito, na medida em que não criou
garantias mínimas para a reprodução e aumento de tal mercado. Isso se manifestava não
apenas no controle sobre os juros, mas igualmente no calote do Estado e na ineficiência
das instituições que garantiam o cumprimento dos contratos. Este cenário de
estrangulamento do crédito em Paris é questionado pelos gráficos fornecidos pelos
próprios autores, que apresentam um crescimento muito grande até 1789, quando as leis
35
mudam (se tornam mais eficientes, segundo os autores) e, curiosamente, a quantidade
de negócios realizados despenca, para ser retomada somente cinqüenta anos depois.
Mesmo com estas ressalvas, entendo que a linha proposta por Rosenthal,
Hoffman e Postel-Vinay é rica e inspiradora. Exemplo disso é o trabalho de Maria
Manuela da Rocha, sobre a atividade creditícia em Lisboa.32 Seguindo a proposta de
Rosenthal, Hoffman e Postel Vinay, Maria Manuela Rocha, apresenta uma abordagem
criativa e sofisticada, ao inserir as relações pessoais e familiares no contexto da análise
da oferta e procura de crédito, assim como nas formas de pagamento. Mantendo um
constante diálogo com aqueles autores, especialmente com Rosenthal, em seus trabalhos
individuais, Rocha faz um denso estudo sobre a diversidade de manifestações
creditícias, chegando em alguns momentos a apresentar soluções metodológicas
inovadoras e complexas. Além de fazer um pesado levantamento documental e tratar as
fontes de forma análoga a de Rosenthal, a autora se propõe identificar as redes de
relacionamentos que estão por trás daqueles negócios.
Seu trabalho avança não só no que se refere ao estudo do crédito mas,
também, na própria identificação de grupos de identidade e solidariedade do Antigo
Regime. Mesmo uma obra refinada como a de Rosenthal, Hoffman e Postel-Vinay,
acabou contribuindo para reproduzir a noção de classe socio-profissional, tão duramente
criticada nos dias atuais por seu caráter anacrônico, dado que as identidades se davam
através de complexas tramas que envolviam parentesco, amizade, entre outros vínculos,
que podiam passar também pela profissão, mas não necessariamente, como tal
categoria pressupunha.
Esta inovação metodológica permitiu que a autora avançasse ainda mais na
perspectiva de Rosenthal. Ao observar os relacionamentos, ela pôde verificar que a
necessidade do intermediário é matizada por estes relacionamentos: quanto maior a
distância entre os elos, maior sua necessidade. As informações se distribuiriam com
uma fluidez maior do que a percebida por Rosenthal e, consequentemente, com um
32ROCHA, Maria Manuela da, Crédito privado num contexto urbano. Lisboa, 1770-1830 (Firenze: European University Institute (tese de doutorado), 1996); ROCHA, Maria Manuela da, "Actividade creditícia em Lisboa (1770-1830)," Análise Social 31, no. 136-137 (1996); ROCHA, Maria Manuela da, "Crédito Privado em Lisboa numa perspectiva comparada (séculos XVII e XIX)," Análise Social 33, no. 145 (1998).
36
custo muito menor. Da mesma forma, algumas instituições pouco exploradas por
Rosenthal, como a reciprocidade, foram objeto de atenção de Maria Manuela da Rocha.
Em outros aspectos, porém, a autora pouco inova: uma das suas principais
preocupações é, a exemplo de Rosenthal, identificar os principais grupos que controlam
o mercado de crédito. Da mesma forma, os trabalhos daquele autor é sempre o
contraponto para o debate por ela proposto. As principais conclusões por ela obtidas
dizem respeito a caso em particular, deixando a fértil metodologia e a discussão teórica
para um segundo plano, quando estas poderiam ocupar a parte central de seu trabalho,
dada a qualidade e, mais do que isso, sua fertilidade.
Outro recente aporte ao problema do crédito é o trabalho de Marjorie
McIntosh, Women, credit, and family relationships in England33, que estuda o papel das
mulheres nos empreendimentos familiares na Inglaterra, entre o final da Idade Média e
o início da época moderna. Sua linha de análise procura, de diversas formas, ver os
papéis desempenhados pelas mulheres ao longo do tempo, em suas diversas etapas de
vida, especialmente na vida antes do casamento, quando casadas e quando viúvas.
Trabalhando predominantemente com documentação judicial, coletados ao
longo do período abarcado, a autora destaca o papel das mulheres, demonstrando uma
participação nas decisões muito superior à esperada pela historiografia. Em muitos
casos, as mulheres estavam bastante interadas dos negócios de seus maridos,
participando em diversas transações. Tal papel teria importância redobrada quando do
falecimento do marido, com o envolvimento total da mulher nos negócios da casa.
Outro elemento importante seria o impacto das atitudes da mulher
(especialmente quando jovem) na reputação da família e da sua própria, o que poderia
provocar um constrangimento no crédito do grupo, inclusive em uma família extensa. A
autora dá diversos exemplos de situações onde a postura moral (especialmente de
aspectos relacionados a atos sexuais) significava diretamente na imagem pública de um
casal e, mesmo, de todo um grupo.
33 MCINTOSH, Marjorie, "Women, credit, and family relationships in England, 1300-1620," Journal of Family History 30, no. 2 (2005)..
37
Estes elementos são bastante interessantes para se pensar o crédito. Que
tipos de comportamento podem contribuir para modificar a confiança pública? Que
tipos (e que grau) de atitudes consideradas morais ou imorais podem interferir no
cálculo econômico ao longo do tempo? E talvez a temporalidade seja o problema menos
considerado por McIntosh. Ao trabalhar com um período de cerca de trezentos anos, a
autora pouca importância deu às transformações e mudanças de comportamento, o que
poderia enriquecer muito sua análise.
No Brasil, o crédito foi durante muito tempo ignorado. Muito se deve aos
mesmos motivos que apontei para a historiografia internacional, especialmente a
francesa. Mas não é só isso. Durante muito tempo a economia colonial foi explicada
como predominantemente exportadora e desprovida de flutuações externas; a própria
complexidade do objeto que estava em jogo, oscilando entre várias interpretações.34
Assim sendo, tal sociedade estaria longe de ter um sistema de crédito complexo. É claro
que há exceções, como o livro Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda.35
Neste livro, o autor indica a existência de um mercado bastante organizado de animais
do sul da colônia em direção a São Paulo e fala sobre as dívidas e fiança que se levavam
a cabo. Infelizmente, Sérgio Buarque não desenvolveu sua análise.
Os anos 1970 e 1980 foram de grande mudança neste sentido. O surgimento
de vários trabalhos com forte base empírica trouxe à luz novos aspectos da sociedade
colonial, como as obras de Maria Yedda Linhares, Riva Gorenstein, Lenira Martinho e
Maria Schorer Petrone.36
Maria Schorer Petrone, particularmente, tratou de uma das rotas que analiso,
o comércio terrestre de gado entre o sul e o sudeste. Para realizá-la, Petrone estudou a
documentação privada de Antonio da Silva Prado (Barão do Iguape), que atuou entre
1817 até meados do século XIX. Trata-se, sem dúvida, de um estudo microeconômico e
com grande atenção para a economia interna da colônia, representando uma grande
contribuição. Por estar em outro recorte temporal, onde as configurações nos parecem
bem distintas, optei por não expor aqui uma análise mais detida de tal obra, afirmando,
34 Para um detalhamento desta historiografia, vide FRAGOSO, João, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998).. 35 HOLANDA, Sérgio Buarque de, Caminhos e Fronteiras (São Paulo: Companhia das Letras, 1995).. 36 Ibid.
38
porém, quer será um importante interlocutor para nossa pesquisa, especialmente para
que possamos perceber as mudanças ocorridas naquela sociedade.
Para dar seqüência a esta revisão, me valerei de algumas escolhas
estratégicas. Utilizarei, a partir de agora, apenas autores que incluam em suas análises o
problema do crédito, inda que de forma muito secundária. Os trabalhos de Riva
Gorenstein e de Lenira Martinho37, inspiradas no trabalho de Maria Odila Leite Dias38
sobre a Interiorização da Metrópole, apresentaram um quadro refinado de análise das
operações mercantis no início do século XIX no Rio de Janeiro. Gorenstein se
interessou pelos comerciantes de grosso trato, enquanto Martinho deu especial atenção
aos caixeiros e demais auxiliares comerciais, reconhecendo inclusive a participação
escrava nestas atividades.
Ambos os trabalhos partem da idéia de que a mentalidade dos comerciantes
era escravista e patriarcal, o que pressupunha uma indefinição entre público e privado e
o predomínio das relações afetivas e familiares na atividade comercial, além da
manutenção da idéia de prestígio. Neste ponto, nossa proposta anda até bem alinhada
com o pensamento das autoras, tentando perceber a importância de aspectos extra-
econômicos naquelas relações mercantis. Outro ponto que se aproxima de nossa
proposta é a idéia de que haveria uma filiação moral entre patrão e empregado (os
termos são anacrônicos, ainda que a relação nos pareça adequada). Contudo, há algo de
conservador no pensamento destas autoras e com o que não concordo: todo este quadro
de uma economia doméstica, de negócios estabelecidos por via familiar e da
importância do escravismo e do patriarcalismo é apresentado pelas autoras como pouco
racional ou mesmo irracional. Os negociantes do início do século XIX estariam num
dilema diante de um mundo que se transformava:
...matizavam-se em seu comportamento os imperativos ditados pela necessidade de uma atuação mais racional frente aos negócios, ensejada pelo relativo alargamento
37 GORENSTEIN, Riva, Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1839) (Rio de Janeiro: PMCRJ - Biblioteca Carioca, 1993); MARTINHO, Lenira, Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbano em desenvolvimento (Rio de Janeiro: PMCRJ � Biblioteca Carioca, 1993). 38 DIAS, Maria Odila Silva, A Interiorização da Metrópole (São Paulo: Perspectiva, 1978).
39
do mercado interno e pela concorrência das lojas inglesas, mas também os norteava a ligação muito estreita entre relações familiares e negócios.39
Eram comerciantes que deveriam mudar de prática, mas que estavam ainda
presos, em certa medida, a um passado. Em momento algum se entende isso como uma
opção. Era na competição com os ingleses, que chegaram com a Abertura dos Portos,
que os negociantes portugueses começaram a adotar ...e criar mecanismos mais
apurados de crédito.40 Esta opinião expressa por Martinho também se reproduz no
trabalho de Gorenstein:
O volume de capital investido nos negócios, a presença no Rio de um órgão administrativo responsável pela organização e controle das atividades mercantis, o aumento da concorrência, vieram impor aos negociantes a necessidade de reorganizar a estrutura interna de suas firmas, de adotar técnicas de venda mais agressivas e a utilizar em suas transações comerciais os mecanismos de crédito que começavam a se difundir nas principais praças do Brasil.41
Há aqui a idéia de que a Abertura dos Portos teria criado condições para a
mudança de mentalidade dos comerciantes. Antes disso, aquela economia não dispunha
de recursos sofisticados de crédito (se é que dispunha de algum) mesmo que fossem
dentro da lógica patriarcalista e escravista. Essas características (patriarcal e escravista)
também serviriam para que no Brasil não existissem corporações de oficio como havia
na Europa, em virtude da pouca expressão quantitativa de trabalhadores livres, o que já
foi amplamente questionado pela historiografia, assim como a própria idéia de
Interiorização da Metrópole.42
Tendo como hipótese principal a existência de um mercado interno colonial,
com flutuações próprias, o trabalho de João Fragoso43 apresentou uma alternativa aos
modelos explicativos até então existentes. Fragoso apresenta um quadro onde a elite
mercantil tem grande destaque à frente desta economia, controlando a liquidez e,
consequentemente, o mercado de crédito, em meio a prática da usura. Este controle, por
sua vez, permitia aos grandes negociantes imporem sua demanda, subordinando, assim,
39 MARTINHO, Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbano em desenvolvimento, p. 76.. 40 Ibid., p. 75. 41 GORENSTEIN, Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1839), p. 160. 42 FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 43 FRAGOSO, João, & FLORENTINO, Manolo, O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).
40
uma série de outros negociantes menores. Esta hierarquia comercial era o cenário onde
se desenrolava uma ampla cadeia de adiantamentos e endividamentos que viabilizava o
crédito (e, pois, a própria reprodução de uma economia mercantil) [e] era constituída
por agentes residentes na própria economia considerada.44
Tal modelo para o mercado de crédito nos parece bastante relevante em
nossa investigação, já que pressupõe uma forte hierarquização entre mercadores e indica
relações de crédito generalizadas (visíveis na grande quantidade de dívidas passivas nos
inventários post-mortem) que serviriam, inclusive, para a viabilização de vários setores
daquela economia. Contudo, apesar da extrema relevância de sua análise, tal modelo
não dá grande destaque aos relacionamentos prévios entre as partes contratantes
(credor/devedor) e aos fatores extra-econômicos presentes nas manifestações de crédito
e endividamento, fatores estes que se insinuam em alguns dos casos que são
apresentados como exemplos.
Seguindo uma linha semelhante, Sampaio analisa a economia do Rio de
Janeiro entre 1650 e 1750.45 O autor atribui enorme relevância para o estudo do crédito
na América Portuguesa, afirmando que tal se dava por três razões. Em primeiro lugar,
destaca-se a concentração do fluxos monetários na mão de uma pequena elite mercantil,
que dominava o mercado de crédito. O segundo motivo seria a característica agrária
daquela sociedade, marcada pelo descompasso entre o ciclo agrário e a necessidade
imediata de insumos e alimentos para as unidades produtivas. O terceiro fator seria o
acesso à mão-de-obra escrava: as unidades produtivas estariam em uma contínua
dependência dos fornecedores de cativos, o que representava, muitas vezes, um
crescente endividamento.
Para Sampaio, o setor agrário não era o único que dependia do crédito, mas
isso também ocorria com o setor urbano, o que incluía o próprio comércio. Somada a
isso a permanente escassez de numerário, o crédito aparecia como crucial para a
totalidade social, algo que chegava até a senzala, envolvendo as estratégias diversas dos
escravos. Percebe-se a importância deste aporte para nossa proposta, pela sua riqueza
44 FRAGOSO, João, & FLORENTINO, Manolo, O arcaísmo como projeto : mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840 (Rio de Janeiro: Diadorim, 1993), p. 91. 45 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de, Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 –c.1750) (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003).
41
analítica. Contudo, tampouco aqui o mercado de crédito é analisado no enleio das
relações pessoais existentes entre as partes contratantes, algo que o próprio autor
lamenta não realizar.46
Também seguindo uma linha próxima, está o trabalho de Martha Hameister.
Neste caso, particularmente, além de dar atenção ao problema do crédito, a autora o faz
para uma parte do nosso recorte espacial, o Registro de Curitiba. Hameister percebe a
própria instituição atuando no fornecimento de crédito miúdo, que financiava a
subsistência e o desenvolvimento regional. Alerta para a diversidade dos consumidores
de crédito, entre artesãos, escravos, mulheres, entre outros agentes. Aponta também o
significado deste fornecimento creditício para o aumento de cabedais e prestígio dos
administradores do Registro. Entendo que tal contribuição será extremamente relevante
para nossa pesquisa, especialmente pela novidade de várias de suas colocações e pela
complexidade com que analisa o problema, percebendo a heterogeneidade da
paisagem.47
Os personagens
Como já disse, entram todos. Mas algumas figuras terão especial destaque e
nos acompanharão em nossa viagem. Antonio Francisco de Aguiar é o mais presente.
Mas temos que chegar em Sorocaba para encontrá-lo, depois de percorrer todo o
caminho do Viamão àquela vila. Aguiar era inspetor do Registro de Sorocaba, Tenente-
Coronel, genro de outro Tenente-Coronel, Paulino Aires de Aguirre, dentre muitas
outras atividades. Ele deixou vasta correspondência. E através desta correspondência
sabemos de muitos outros detalhes da sua vida, de seus conhecidos e negócios. Aguiar
vai estar disponível para nós como um guia do caminho, um vaqueano, ao longo de toda
nossa jornada.
Outro companheiro que se fará presente será Manuel José Correia da Cunha,
inspetor do Registro de Curitiba e observador agudo da paisagem. Ele nos conta muito
de sua vida em sua correspondência com Antonio Manuel Fernandes da Silva, seu
46 Ibid., p. 189. 47 HAMEISTER, Martha Daisson, O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002), p. 160-164.
42
superior. Através destes documentos sabemos, inclusive, que Manuel José gostava de
fazer queijos e manteiga, em pequenas quantidades, com os quais presenteava seus
colegas de Sorocaba e São Paulo. Sabemos que tinha dois escravos e que reformou a
casa onde trabalhava mais de uma vez, especialmente pelas goteiras que surgiam com as
tempestades de inverno.
E já que falamos nele, convém logo apresentar: Antonio Manuel Fernandes
da Silva é também um personagem importante. Ele não vai nos acompanhar em nossa
jornada, ficará em São Paulo onde atuava como tesoureiro da Casa Doada. Este era o
nome que se dava à administração da metade dos impostos cobrados no Registro de
Curitiba. O Registro era um posto de arrecadação fiscal localizado em Curitiba (havia
outros em outras partes) e metade dos impostos cabiam à Casa de Tomé Joaquim da
Costa Corte Real, que havia recebido esta doação de Sua Majestade. Por isso o nome
Casa Doada. É estranho, mas é preciso que o leitor se prepare para coisas mais
estranhas ainda. Era um mundo muito diferente do nosso. Mas, cuidado, é muito fácil
perder-se em desvios que nos parecem conhecidos ou iguais aos caminhos que hoje
trilhamos.
Outro sujeito com quem toparemos muitas vezes será o Coronel José Vaz de
Carvalho. Ele não nos dará muita atenção. Andava sempre muito ocupado com seus
negócios, seus amigos e aparentados, percorrendo sempre distâncias muito largas. Da
mesma forma, o Coronel Manuel Gonçalves Guimarães também será avistado, mas
sempre envolto em seus negócios. Mas teremos a oportunidade de vê-lo passar de
Guarda-mor à Coronel, ter seus filhos e casá-los. Assim como estes dois Oficiais de Sua
Majestade, também nos encontraremos com Paulino Aires de Aguirre. Foi negociante e
inspetor do Registro de Sorocaba. Ele aparecerá fazendo várias coisas, ao longo de toda
a viagem. Destaquei estes sujeitos pois são aqueles que a documentação mais trata e
seus nomes aparecerão inúmeras vezes ao longo do texto. Convém lembrar seus nomes,
pois Coronéis costumavam ser muito ciosos de sua imagem. Importante reparar que não
temos entre os personagens principais mulheres, escravos ou forros. A documentação
nos fala deles, mas com um lugar muito delimitado. Não devemos esquecê-los ao longo
de nossa viagem, agora que os sabemos discretos.
43
A organização
Este trabalho está dividido em treze pequenos capítulos. Eles estão em
ordem, mas algumas transgressões podem ser feitas. Ao final de cada um, deixo alguma
sugestão de outro capítulo que não seja o próximo, como seqüências de leitura paralelas
à linear. Assim, o leitor pode pular dois capítulos ou voltar ao anterior, mas sem fugir
muito do assunto. Dependendo de seu interesse, o leitor pode mesmo dispensar algumas
partes.48 O primeiro capítulo trata das tropas, a quantidade delas no tempo e dos
tropeiros. O segundo aborda a região produtora dos animais e suas principais
características, e vai além dos terrenos portugueses, já que os tropeiros iam longe buscar
seus animais. O terceiro trata do caminho propriamente dito e das características das
localidades que margeavam esta rota mercantil.
O quarto capítulo é uma proposta de abstração. Ele explora alguns
estranhamentos entre aquele mundo e o nosso, variando entre as formas como as coisas
eram medidas e como as pessoas eram classificadas. O quinto segue esta linha,
abordando alguns aspectos antropológicos das relações entre religião e negócios no
período, algo que será apenas introduzido, sendo explorado ao longo do resto do
trabalho. No sexto capítulo fazemos um retorno ao Viamão, saindo de Sorocaba, para
medir o quão conectadas estavam aquelas localidades umas com as outras, o quão
densas elas eram. No sétimo capítulo se aborda a informação, como ela circulava, como
ela contribuía para o controle social e era importante nos negócios. No capítulo oito, o
tema é a confiança, entendida como uma forma de medir o comportamento, e como este
fator interferia no comércio dos homens.
No nono capítulo saímos um pouco da rota, mas sem sair das margens do
caminho, e o tema são os capitães: sua força, sua liderança e seu peso naquela
economia. É onde se verifica mais detidamente as relações entre política e economia
naquela sociedade. No capítulo dez, são apresentados os agentes do crédito, credores,
devedores e fiadores. São feitas algumas análises sobre o perfil destes sujeitos e seu
significado social e econômico. No capítulo 11 se analisa a forma como as redes de
relacionamento interferiram no acesso ao crédito. No capítulo 12 se observam variações
nas formas de crédito e como foram geradas e mantidas entre aqueles homens e
48 Tal proposta é inspirada no Romance Rayuella, de Cortázar.
44
mulheres. Por fim, no capítulo 13, voltamos ao caminho, agora para testar as hipóteses
discutidas ao longo de todo o trabalho.
45
Capítulo 1 Tropas e tropeiros
A origem do caminho e seu movimento
Em 1732, Cristóvão Pereira de Abreu atingia Curitiba vindo de Viamão, por
onde se metera para abrir o caminho em 1731. Ele chegou com uma volumosa tropa,
sendo, além de “fundador”, o primeiro negociante de gados a cruzar aquele percurso.
Foi apenas o começo de uma rota que testemunharia, ao longo dos anos seguintes, uma
enorme movimentação de animais. O caminho estava sendo aberto desde 1727, por
Francisco de Souza e Faria sob ordem do Governador de São, Paulo Antonio da Silva
Caldeira Pimentel. O mesmo governador teria criado, em fevereiro de 1732, o Registro
de Curitiba, instituição que controlaria a cobrança dos impostos de circulação de
animais naquele novo caminho.
Logo nos seus primeiros anos o caminho já foi amplamente utilizado. Um
documento de finais do século XVIII49 estima que entre janeiro de 1734 e setembro de
1747, o rendimento foi de 42:326$580. Considerando-se que o tributo pago nesta época,
tanto para cavalos como para mulas, era de 1$000, concluímos que passou o equivalente
a mais de 42000 animais, ao longo de treze anos e alguns meses, numa média
aproximada de 3200 anuais. Entre outubro de 1747 e setembro de 1759, quando o
rendimento foi dividido em dois, metade para a Real Fazenda, metade para Cristóvão
Pereira de Abreu como mercê por seus feitos, o rendimento da metade da Real Fazenda
foi de 84:396$810. Para este período há uma listagem de tropas, individualmente
listadas e descritas, relativa ao ano de 1751, que registrou a passagem de 9502 cabeças
de gado.
Neste contexto também já operavam os Registros de Sorocaba e Viamão.
Viamão já possuía uma Guarda que recolhia tributos desde antes de 1740. O Registro
de Sorocaba foi instituído em 1750 já com uma importância capital. Era naquela cidade
que se desenvolvia o maior comércio de animais da rota, com a redistribuição das bestas
para diversas localidades. Este período também ficou marcado pela existência de
grandes tropas. Um exemplo disso seriam as tropas pertencentes a Francisco de Vila
Lobos. Ele recebeu autorização de Madrid para montar uma tropa em territórios
49 Em novembro de 1794 a Junta da Fazenda de São Paulo informava à Rainha sobre alguns tópicos da história do próprio Registro de Curitiba. Arquivo Nacional. Códice 448. Vol. 05. p. 54.
46
espanhóis, com destino às minas do Brasil, de 3824 mulas, ainda que tenha tentado
comprar mais de oito mil, sendo descoberto antes disso. Para 1751 ainda encontramos
referência a uma tropa que teria “cinco mil bestas”, e uma outra, de igual grandeza, para
o ano seguinte.50
Figura 5 – Mapa do Caminho das Tropas (Aproximadamente 1760)
']
']
']
']
']
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminho das tropas (1760)
'] Locais (1760)
1:7427820
N
Caminho das Tropas eRegistros de Passagem
- Década de 1760 -
Curitiba
Registro de Curitiba
Sorocaba (e seu Registro)
Registro de Santa Vitória
Viamão
Oceano Atlântico
Fonte: Diversas fontes (citadas ao longo do texto. Ver também FONTES)
A quantidade de animais se estabilizaria entre o início da década de 1750 e
o final da de 1760. Segundo Hameister, os anos de 1769, 1770 e 1771 registrariam,
respectivamente, 9710, 9651 e 10915 cabeças, entre mulas, bois, vacas e cavalos, com
notória predominância numérica destes últimos.51 Estes dados contudo, encontram
divergência no trabalho de Suprinyak e Marcondes52, que encontraram o ingresso de
50 GIL, Tiago, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810) (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007). 51 HAMEISTER, O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. 52 MARCONDES, Renato Leite, & SUPRINYAK, Carlos Eduardo, Movimentação de tropas no centro-sul da colônia: aspectos estruturais do mercado de animais na segunda metade do século XVIII. Setecentista, Anais da V Jornada. 2005.
47
5998 animais em 1766, com uma vantagem significativa para o gado vacum.53
Conhecendo os resultados de Hameister, aqueles autores não apontam uma razão para a
significativa diferença nas cifras, que pode ter relação com as guerras platinas, mais
exatamente com a tomada de Sacramento (1762) e Rio Grande (1763) pelos espanhóis.
Tais eventos poderiam ter desestabilizado a exportação de cavalos e mulas, já que os
vacuns, que mantiveram uma passagem estável54, provinham em boa parte de Vacaria e
Lages, zonas mais ao norte.
Os números de 1769 em diante poderiam estar refletindo uma forte
retomada dos negócios, logo após a momentânea estabilização das conquistas
espanholas. Contudo, os mesmo autores apontam para o período entre 1779 e 1782, um
panorama onde predominam os vacuns, sendo seguidos de perto pelos muares e de
longe pelos cavalos. Para o ano financeiro de 1779/80, contaram 2.365 cavalos, 6.330
muares e 5.720 vacuns, somando 14.415 animais; 1780/81 registraria 14.945 peças e
1781/82 outras 15.778, sempre com predomínio vacum, que atingiu 54% nesta última
leva. Estes dados, contudo, foram produzidos tendo em conta fontes do Registro de
Sorocaba, e incorporam as produções do interior paulista, de Curitiba e dos Campos
Gerais, que não passavam necessariamente pelo Registro curitibano. 46% dos vacuns
provinham do entorno de Curitiba e dos Campos Gerais.
Estes dados, para além da polêmica bois versus cavalos, contribuem para
apresentar alguns elementos importantes deste cenário: uma diversidade de locais
envolvidos na atividade tropeira, contribuindo com diferentes tipos de criações com
diferentes períodos de produção. Uma extensão de mais de mil quilômetros que era
integrada por um grupo significativo de negociantes, fiadores, peões e condutores.
Localidades como Viamão, Curitiba, Lapa e Sorocaba mantinham um ritmo social
muito marcado por este comércio.
Com o auxílio de uma documentação especial, ainda pouco explorada,
procurarei apresentar alguns traços daquela rota mercantil. Trata-se da correspondência
e documentação contábil da chamada Casa Doada, instituição encarregada de recolher a
metade dos tributos pertencente à casa do Conselheiro Ultramarino Tomé Joaquim da
Costa Corte Real, que recebeu esta mercê logo após a morte de Cristóvão Pereira de 53 Os valores, exatamente, foram: 1731 cavalos; 1162 mulas; 495 éguas; 2610 vacuns. 54 Variou entre 2174 (1769) e 2610 (1766). O de cavalos variou entre 5617 (1769) e 1731 (1766).
48
Abreu, autorizada pela Provisão Régia de 9 de maio de 1760. No início era feita a
cobrança de metade do valor arrecadado pelos contratadores ou pela Real Fazenda (nos
anos em que não havia rematação). Em algum momento, que não pude apurar
exatamente (antes da década de 1770)55, foram criados escritórios de representação da
Casa Doada em Curitiba, Sorocaba e São Paulo. Estes estabelecimentos se
encarregaram de cobrar a metade que lhes cabia, com seu próprio controle e meios.
Parte dos documentos gerados por estes escritórios foi parar na Biblioteca Nacional.
A documentação da Casa Doada é muito heterogênea e cronologicamente
muito localizada. A maior parte do material é formada por cartas recebidas pelo Inspetor
chefe, Antonio Manuel Fernandes da Silva, que trabalhava em São Paulo e é posterior a
1796, tendo 1812 como data limite. Tais documentos, todavia, fazem referência a fatos
ocorridos nos anos anteriores, já que boa parte trata da cobrança de dívidas antigas.
Neste caso, poderíamos estender retrospectivamente aqueles limites para 1788, mas com
maiores cuidados. Cada tropa que passou pelo Registro de Curitiba recebeu um número,
chamado de guia, com o qual era identificada até o pagamento total. Tal fato permitiu
traçar algumas estimativas, bastante precárias, mas que podem contribuir para esboçar
algo em um período deixado em branco pela historiografia.56
Considerando-se que temos informação sobre a data de passagem de
algumas tropas pelo Registro de Curitiba, é possível inferir as datas de outras,
estimando por alto uma série do movimento de passagem de tropas pelo Registro de
Curitiba. Calculei que entre 1788 e 1809 passaram cerca de 1015 tropas por Curitiba.
Ao mesmo tempo em que inferimos o movimento pelos números de guia, procurei, com
o cruzamento de diversos documentos da Casa Doada, identificar cada uma das tropas
que passou por Curitiba ao máximo possível. Tive algum sucesso com 615 (60%),
sendo que da maioria dela obtive o nome do tropeiro ou condutor, o valor dos meios
direitos e o ano em que passaram. De uma pequena parte, 41 pude saber até a
quantidade e qualidade de animais que levavam, assim como os dias exatos de sua
passagem e o nome dos fiadores. Os dados se tornam mais confiáveis de 1796 em
55 Se considerarmos a média anual (próxima de 50 tropas), podemos sugerir os anos entre 1768 e 1770 para o estabelecimento dos escritórios da Casa Doada junto aos Registros, com o início da cobrança direta por aquela instituição. 56 Desconheço trabalhos que apresentem dados para as últimas duas décadas do XVIII e a primeira do XIX. Aluisio de Almeida apontam a marca de 10000 muares anuais entre 1780 e 1800, mas sem indicar fonte alguma.
49
diante, quando é iniciada uma nova contagem com a chegada do novo inspetor: Manuel
José Correia da Cunha. Para este período contamos 742 tropas, sendo que destas pude
identificar 532 (72%).
Figura 6 ‐ Número anual de Tropas (no Registro de Curitiba, 1788‐1809)
Fonte: BN ‐ Manuscritos ‐ II‐35,25,05; II‐35,25,25‐27; II‐35,25,03; II‐35,25,62.
Para a grande maioria das tropas identificadas obtivemos o valor devido à
Casa Doada, o que permitiu fazer outras inferências. Tendo em conta os custos pagos
por cada tipo de animal (1$250 por cada mula, 1$000 por cada cavalo e $240 por cada
rês), foi possível estimar a quantidade de animais que passavam anualmente por
Curitiba. Todavia, há grande sub-registro nesta contagem, já que obtivemos dados
apenas das tropas que não pagaram o tributo à vista, tendo sido mencionas na
documentação por esta razão. De qualquer modo, serve como um número mínimo e
pode dar uma idéia da grandeza deste mercado. Os valores se tornam um pouco mais
fiáveis a partir de 1800, quando há maior cuidado na notação das tropas devedoras pelos
administradores da Casa Doada.
50
Figura 7 ‐ Estimativa do número de animais calculada pelo valor dos impostos declarados no Registro de Curitiba (1788‐1809)
Fonte: BN ‐ Manuscritos ‐ II‐35,25,05; II‐35,25,25‐27; II‐35,25,03; II‐35,25,62. (Universo: 615 tropas).
*Foi feito um cálculo a partir da média do valor de mulas, reses e cavalos.
Em comparação com os resultados apresentados por outras pesquisas57,
percebemos que não há um boom no número de animais, ainda que a primeira década do
XIX mantenha uma média superior aos períodos anteriores, insinuando um crescimento
lento e contínuo. O gráfico acima sugere um movimento mais acelerado, mas esta
imagem só é possível pelo sub-registro que encontramos no período entre 1788 e 1795.
Os dados apresentados foram produzidos pelo cálculo do valor dos tributos pagos sobre
as mulas e pela média de todos. Podemos prosseguir um pouco mais na polêmica
cavalos versus bois, mas agora dando destaque à terceira via: as mulas. É certo que
tenho poucos dados que permitam identificar com cuidado quais são os animais
predominantes na rota. De qualquer modo, a correspondência da Casa Doada e os
57 HAMEISTER, O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes; MARCONDES, & SUPRINYAK, Movimentação de tropas no centro-sul da colônia: aspectos estruturais do mercado de animais na segunda metade do século XVIII.
51
poucos dados quantitativos que disponho sugerem, já para a década de 1790, o
predomínio muar:
Figura 8 ‐ Proporção dos animais por década
Fonte: BN ‐ Manuscritos ‐ II‐35,25,05; II‐35,25,25‐27; II‐35,25,03; II‐35,25,62. (Universo: 41 tropas).
Caracterização dos tropeiros
Os tropeiros de gado da rota Viamão-Sorocaba não se constituíam como um
grupo social preciso. Não possuíam identidade étnica, política ou de classe, ainda que
sua performance social fosse orientada tendo em conta a imagem pública que estes
negociantes de animais possuíam. Em novembro de 1796, uma carta de Antonio
Francisco de Aguiar, inspetor do Registro de Sorocaba, ao seu tesoureiro Antonio
Manuel Fernandes da Silva, foi escrita tendo em conta esta imagem. Falando de um tal
José Lopes, dizia Aguiar que era morador de Araçariguama, é tropeiro velho, e de todo
o conceito e verdade. Em outra carta, escrita por Manuel José Correia da Cunha,
inspetor em Curitiba, havia uma impressão semelhante. Ao comentar da dificuldade que
52
tinha no envio de cartas para São Paulo, garantia que os portadores mais prontos e
seguros são os tropeiros que gastão mais de mês até Sorocaba.58
Nem todos os que trabalhavam no negócio de animais era chamados de
tropeiros. Muitos diziam viver do salário de conduzir tropas, ou de comprar e vender
animais, tal como se vê em algumas listas nominativas de São Paulo, no final do XVIII
e no início do XIX. Uma destas listas, feita na Lapa, em 1807, aponta mais de noventa
domicílios que dependiam da atividade de condução de tropas, geralmente tocada pelo
chefe da família, a maior parte deles, assalariados, contratados por algum negociante de
maior porte. Viviam ainda de uma pequena lavoura de subsistência e dificilmente
apareceriam em alguma listagem de devedores dos Registros de arrecadação: eles
provavelmente atuavam como peões e capatazes em tropas de outros.
Mesmo um negociante de gado de maior vulto não era considerado,
necessariamente, um tropeiro, tal como se vê na imagem criada por Antonio Francisco
de Aguiar. Apesar de ser listado entre os tropeiros, João José Coelho, que passou por
Curitiba em 1799, foi sempre referido como Capitão. Da mesma forma José de
Andrade, mesmo tendo conduzido (ou feito conduzir) mais nove tropas, sempre foi
referido como Capitão, não sendo identificado como tropeiro em nenhum dos outros
tantos negócios de que participou. Não parece haver, neste sentido, uma clara
associação entre a atividade de condução de gado e a imagem particular de cada um dos
tropeiros, ainda que houvesse certo prestígio ou respeito público por esta empresa.59
Montar uma tropa de animais, ir ao Viamão para comprá-los e depois
revendê-los em Curitiba ou Sorocaba, ou ainda em outras regiões, não parece ter sido
uma prerrogativa de grandes negociantes, pelo contrário. A grande maioria (74%) fez
apenas uma viagem, movimentando 50% do total dos valores que circularam naquela
rota mercantil.60 Aqueles que realizaram duas viagens equivaliam a 16% do total de
58 BN-II-35,25,25-27; BN-II-35,25,03; BN-II-35,25,17; BN-II-35,25,05. Os dados que não tiverem explicitada sua fonte, pertencem necessariamente a estes conjuntos. 59 BN-II-35,25,25-27; BN-II-35,25,03; BN-II-35,25,17; BN-II-35,25,05. 60 BN-35,25,03; BN-35,25,17; BN-35,25,25-27.
53
tropeiros e movimentaram 22% dos valores, sendo seguidos pelos que fizeram três
viagens (7%) e movimentaram 16% do total de importes.61
Figura 9 ‐ Tropeiros agrupados pelo número de viagens que realizaram e o peso de seus negócios
(medido em tributos devidos)
Fonte: BN‐II‐35,25,05; BN‐II‐35,25,25‐27; BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,62.
Este cenário nos indica uma economia onde não há uma predominância
visível de grandes mercadores ou, mesmo, uma especialização. Ainda que os tropeiros
que realizaram mais viagens possuam um melhor desempenho proporcional, a
importância do grupo daqueles que realizaram apenas uma viagem é muito grande.
Estes dados, contudo, devem ser tomados com cuidado, não somente pelo sub-registro,
mas pelo fato de que muitas vezes o tropeiro indicado na guia não era o proprietário da
tropa, mas apenas seu condutor ou, ainda, alguém que conduziu animais de amigos
juntamente com os seus.
61 Situação semelhante ocorre em outros contextos. Sobre isso, ver: BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas; FLORENTINO, Manolo, Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro - séculos XVIII e XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1997); FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).
54
De qualquer modo, parece que montar uma tropa e conduzi-la até Curitiba
ou Sorocaba era algo relativamente simples e acessível a uma grande quantidade de
agentes. O próprio Manuel José da Cunha, inspetor do Registro de Curitiba, andou
tratando com seu superior, Antonio Manuel Fernandes da Silva, da montagem de uma
tropa, lá pela virada do século XVIII para o XIX.62 Enquanto se preparava para a festa
da virada, Manuel José pensava nas cobranças que teria por fazer e na proposta que
havia recebido de Fernandes da Silva. Um dia antes o inspetor escrevia dizendo-se
honrado pela inclusão nos negócios de seu supervisor, e que andava mais inclinado à
compra de uma boiada já que o importe é menor e a saída mais pronta. Dizia também
que era melhor esperar o inverno para comprar bestas mais barato dos tropeiros já
desenganados. Pelo tom da missiva, ambos não dispunham de grossos cabedais, mas
estavam interessados em investir alguns recursos nesta atividade.
O mesmo Manuel José nos conta outra história interessante. Um sujeito,
referido como Capitão César (José Joaquim Mariano da Silva Cesar), andava tratando
da montagem de uma tropa. A primeira notícia que temos dele data de 13 de fevereiro
de 1796. Manuel José nos conta que o tropeiro já havia saído do sertão com 244 mulas,
mas que não havia chegado à Curitiba ainda e que sabia que sua tropa andava pesteada.
Ele chegaria nos dias seguintes. Em 3 de março, uma quinta-feira santa, e por conta de
uma moléstia, ele foi para a Capela do Tamanduá (razoavelmente próxima de Curitiba),
onde se encontrou com Manuel Gonçalves Guimarães, também envolvido na atividade
tropeira, para receber um dinheiro que havia acertado com um sócio para o custeio da
tropa, equivalente a 250$000 e alguma quantidade de sal. Até então, por conta da peste,
já havia perdido mais de vinte bestas. Pouco antes de 06 abril ele passava no Registro de
Curitiba com 223 animais pois algumas haviam morrido e outras ficavam doentes do
outro lado do posto arrecadador. Em maio ele andava pela Vila de Castro, ainda
próximo de Curitiba. Sabemos ainda que a venda foi rápida, pois já em dezembro do
mesmo ano ele pagava os tributos daquela tropa e de uma outra, de maior vulto, que
talvez fosse mais antiga.63
O grupo dos tropeiros que fez apenas uma viagem não apenas era a maioria,
como também movimentaram o maior volume de tropas. De qualquer maneira, o
62 BN–II-35,25,03. 63 BN–II-35,25,03.
55
tamanho médio de uma tropa era o mesmo dentre os levaram uma ou mais tropas. A
grande maioria pagava entre 100$000 e 500$000 ao tributo dos Meios Direitos de
Curitiba. Mesmo o tropeiro que mais tropas conduziu, segundo pude averiguar, Manuel
Nunes Vieira, fazia negócios deste mesmo montante e deixava passar algum tempo
entre uma aventura e outra. A primeira tropa (na verdade eram três, que passaram na
mesma ocasião mas com guias separadas) que encontramos com seu nome data de
meados dos anos 1790, a segunda de 1798, a quinta e a sexta, de 1803, e as últimas
quatro de 1806. Isso nos sugere que mesmo um grande negociante, neste contexto, fazia
seus investimentos com parcimônia, não somente pela longa distância, tempo necessário
e pelo investimento realizado, mas porque, como veremos mais adiante, o tempo dos
negócios era outro, mais lento, não apenas na comparação com os dias atuais, mas
igualmente com outros espaços mercantis daquela época.
A montagem da tropa podia começar no Viamão ou em outra das regiões
produtoras. A atuação de Antonio Ribeiro de Andrade pode ser relevante para verificar
isso na prática. Ele era o filho mais velho do Capitão-mor de Curitiba, Lourenço Ribeiro
de Andrade. Em 1787, há registros de sua presença no distrito do Caí, nas proximidades
do Viamão, onde ele teria comprado uma tropa de contrabando “produzida” por
Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, membro de um poderoso bando daquela
região, tendo inclusive o auxílio deste grupo para ludibriar as autoridades. Mesmo
assim, teve um pequeno número de animais apreendido nesta ocasião.64 Encontramos
novamente nosso tropeiro em 1793, passando com uma tropa de médio porte pelo
Registro de Curitiba, pagando 242$500 em tributos, o que significaria algo em torno de
duzentos animais.65 Nesta viagem, Andrade não pagou o tributo e foi mencionado em
uma listagem de dívidas de abril de 1794, quando então já consta como tendo pagado.
O encontramos em 1799, quando ocupa um dos postos de Oficial da Câmara
de Curitiba, quando do envio de uma carta de bons serviços do Bispo de São Paulo.66 A
partir de 1802, já o encontramos referido como negociante e proprietário de fazendas de
criar, além de Capitão-mor67, patente que foi confirmada em 1804, sucedendo assim ao
seu pai no comando local de Curitiba. Uma das menores tropas que encontrei passou
64 Arquivo Nacional. Códice 104. Vol. 09 65 BN-II-35,25,25-27-004 66 AHU. SPMG. 3924 67 AHU. SPMG. 4123
56
por Curitiba em 1800, propriedade de Antonio José de Oliveira Lima. A tropa pagou
25$000 e, juntamente com outra, conduzida na mesma ocasião e do mesmo proprietário,
somavam 86$980, o que representaria algo ao redor de oitenta animais. Depois desta
empreitada, não encontramos mais com Antonio no negócio de animais. Encontrei
apenas sua promoção a Capitão de Infantaria da Vila de Sorocaba, no ano de 1807.68
Já José de Miranda da Silva não parece ter tido o mesmo sucesso, apesar do
crescimento de seus negócios. Em 1797 ele passou pelo Registro de Curitiba deixando
127$900 em dívidas, o que equivalia a pouco mais de cem animais. Em 1800, ele
passava novamente, agora com uma tropa que deveria ter ao redor de cento e vinte e
cinco animais. Em 1805, contudo, ele deu uma grande cartada: uma tropa com mais de
mil animais, que só no Registro de Curitiba declarou em tributos mais de um conto e
trezentos mil réis.69 Tanto em 1800, como na sua grande tropa, ele ficou devendo
impostos em Curitiba por mais de três anos, quando a grande maioria dos devedores do
Registro conseguia saldar seu passivo em dois anos. Acabei sem saber se ele conseguiu
pagar suas dívidas. Só sei que em 1809 ele morava na periferia da Vila da Lapa, onde
dividia a vida com a esposa, Maria Ferreira, um filho exposto e com dois escravos,
Silvestre e Bárbara.70
Destino mais trágico teve Antonio Mateus Lima. Por volta de 1790, ele
passou com uma tropa no Registro de Curitiba, que deveria ter mais de quatrocentos e
cinqüenta animais. Não sei o que aconteceu para que ele não conseguisse vendê-los,
apalavrá-los ou obter alguma fiança, mas as bestas acabaram sendo confiscadas pelos
arrematadores de impostos do Registro de Sorocaba e vendidas para pagamento da
dívida. Quanto a Antonio, morreu Lazaro vivendo de esmolar.71
A constatação a que chego é que o negócio de animais não era manipulado
por um grupo especializado ou controlado por algum monopólio. Era uma possibilidade
mercantil aberta, disponível não apenas a membros salientes de uma elite local, mas
estava igualmente no quadro de possibilidades de uma grande quantidade de pessoas
que tinham condições de conseguir algum recurso ou um empréstimo. Mesmo com o
68 AHU. SPMG. 4715 69 BN-II-35,25,05 70 Lista Nominativa. Lapa. 1809. CEDOPE. 71 BN-II-35,25,25-27-006
57
receio de alguma peste entre os animais ou de uma possível dificuldade na venda em
Sorocaba, o risco neste mercado não era dos mais altos, e o acesso ao crédito poderia ser
o suficiente para a montagem de uma tropa, tal como vimos com o Capitão Cesar. E
justamente por isso que não era qualquer um que podia montar uma tropa.
Neste sentido, matizo a opinião de Gutiérrez, quando afirma que tal negócio
era lucrativo e fácil, isento de riscos, e acessível a todos que tivessem áreas de capim
com aguadas e matas, características que nas pradarias dos planaltos abundavam.72
Era certamente um negócio bem mais acessível do que o tráfico atlântico de escravos73,
ou mesmo o comércio mediterrânico da época moderna74, mas o acesso às áreas de
capim estavam dados pela posse, por um possível aluguel ou pelo crédito que permitia o
uso para posterior pagamento. E é preciso considerar que uma tropa deveria demandar
mais de uma invernada, talvez, no mínimo, de algum pasto temporário, em virtude de
algum problema, como no caso do capitão Cesar. Isso sem falar na necessidade de
fundos para a compra, o custeio da tropa e o pagamento dos altos impostos, ocasiões em
que o crédito e a fiança se faziam mais do que necessários. Era uma economia pobre
aquela do caminho, especialmente no sertão de Curitiba.
O trajeto percorrido pelo Capitão César nos informa bastante sobre as
dificuldades daquela atividade. A tropa movimentada não era das menores, ficando um
pouco abaixo da média em termos monetários, dentre as que pudemos identificar com
detalhe. Em tributos para o Registro, ela rendeu 291$000, numa média de 322$185.
Mesmo um tropeiro como este, que despertou a atenção direta dos administradores do
Registro, a ponto de ser monitorado pela correspondência daquela instituição, e com o
apoio direto de outros sócios e tropeiros importantes (como o era Manuel Gonçalves
Guimarães) teve diversas dificuldades em seu percurso e perdas significativas em seu
rendimento. O custeio de cada um dos animais foi por volta de 1$000 como nos sugere
o volume obtido para isso (os 250$000) e outras fontes que indicam este valor como o
suficiente e necessário.75
72 GUTIÉRREZ, Horacio, "Fazendas de gado no Paraná escravista," Topoi 05, no. 09 (2004). 73 FLORENTINO, Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro - séculos XVIII e XIX. 74 BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas. 75 Arquivo Nacional. Códice 448. Volume 05.
58
É difícil saber o quanto o Capitão César pagou pelos animais. Mas
considerando-se o relato feito pelo escrivão da Junta da Real Fazenda de São Paulo, em
1794, os tropeiros que vinham de Viamão com animais pagavam naquelas fazendas algo
em torno de 4$000 a 5$000 por cada besta muar, que renderiam entre 14$000 e 15$000
na Vila de Sorocaba.76 Isso significaria um investimento de 1.250$000 para um ganho
bruto de 3122$000. Afora os tributos, superiores aos 291$000 pagos em Sorocaba, já
que havia outros Registros, o Capitão César teria ganhado o suficiente para a montagem
de uma nova tropa, ligeiramente maior, ou terras e escravos nos Campos de Curitiba,
considerando-se que ali uma fazenda com animais, currais e benfeitorias podia custar
pouco mais de 150$000, onde igualmente se podia comprar um escravo adulto por
128$000.77 Alguns anos depois, em 1802, Manuel José Correia da Cunha comentaria
dos baixos preços praticados em Viamão: tem estado as bestas lá de sobre ano a 2000 e
2560 e criadas 3200 e 4000 porque ainda que estejam cá baratas se ganhará ao menos
4000....78
Um dos personagens citados acima, Manuel Gonçalves Guimarães, foi um
importante tropeiro de finais do XVIII e início do XIX. Ao longo de onze anos,
pudemos identificar várias tropas suas, entre 1798 e 1809. Certamente ele conduziu
outras muitas mais, já que em 1796 foi informado de algumas dívidas que mantinha
junto ao Registro de Curitiba:
O capitão Manuel Gonçalves Guimarães veio a este Registro para averiguar pelo livro que tropas eram as das guias que vossa mercê lhe escreveu estava devendo e como os livros já tinham ido me pede para vossa mercê pelo livro examinar que tropas foram de conta de que por ter guiado várias tropas alheias e se acorda de alguma das guias se fez algum pagamento e quem o fez para assim vir no conhecimento da pessoa a quem pertence.79
Manuel Gonçalves Guimarães era um dos maiores proprietários de escravos
de Curitiba. Na Lista Nominativa de 1795, só encontramos 4 senhores com plantéis
maiores que o seu. Ele aparece em diferentes listas como senhor de plantéis localmente
expressivos (média de 5 escravos por fogo com cativos). Na contagem de 1793, possuía 76 Arquivo Nacional. Códice 448. Vol. 05. 77 Livro de Notas do Primeiro Cartório de Curitiba. Vol. 25. CEDOPE. 78 BN-II-35,25,17. 79 BN-II-35,25,03.
59
13 cativos, 18 em 1795 e 17 em 1797.80 Ainda em 1796 ele aparece como Capitão, o
que mudaria até 1798, quando é referido na documentação da Casa Doada como
Tenente-Coronel, até 1809, quando seria mencionado como Coronel. Sua trajetória de
tropeiro era igualmente bem sucedida, tendo conduzido (até onde pudemos aferir) dez
tropas num mercado dominado por marinheiros de uma só viagem. Além disso, ele
sempre se manteve em dia com suas contas, pagando os tributos no prazo combinado (2
anos) e, como nos sugere a citação, preocupando-se com as dívidas.
Jerônimo Antonio de Barros, com cinco tropas verificadas, movimentou no
mínimo dois contos e oitocentos mil réis em tributos para o Registro de Curitiba.
Algumas de suas tropas, todavia, ficaram anos devendo tributos, especialmente uma, a
guia 97, que provavelmente passou por Curitiba em outubro de 1798, para não ser paga
até 1809, pelo menos. O fiador desta tropa era o Sargento-Mor Tomás da Costa, que
também fiava outras duas, igualmente inadimplentes, conduzidas por Gonçalo Bento
Moreira e José Fagundes Barreto. De Jerônimo, pouco sabemos além de suas tropas.
Mesmo com a inadimplência e com o volume de seus negócios, ele não é mencionado
na correspondência interna da administração da Casa Doada. Sobre Tomás da Costa,
voltaremos mais tarde.
Outro tropeiro com grande histórico de conduções foi o Capitão José de
Andrade. Ele também divide o primeiro lugar em número de tropas, dez, atuando
fortemente entre 1799 e 1804. Esta quantidade, contudo, deve ser matizada, pois as
primeiras quatro passaram todas juntas (sem que eu consiga explicar o porquê da
fragmentação em diversas tropas) assim como as cinco seguintes. Uma busca rápida nas
escrituras públicas de Curitiba nos revela a quantidade de negócios manipulados por
José de Andrade, onde se destacam os negócios com empréstimos e terras. Já na década
de 1780, encontramos dois empréstimos registrados em cartório (o que, como veremos
adiante, era uma atitude extrema) uma venda de terras e a compra de um escravo. Entre
setembro de 1791 e fevereiro de 1792, encontramos mais duas vendas de terras feitas
por este tropeiro. As movimentações creditícias eram realizadas com a cobrança de
juros e o estabelecimento de prazos, o que, como veremos adiante, não eram condições
óbvias, ainda que existentes.
80 Lista Nominativa de Curitiba. 1795. CEDOPE.
60
A capacidade de agir em diferentes negócios, fundiários ou de crédito, assim
como a solvência para a compra de escravos, mercadorias escassas na região, poderia
ter direta relação com a atividade tropeira. Se aplicarmos os mesmo cálculos que
utilizamos para a tropa do Capitão César, teremos que, apenas para as tropas de 1799,
que passaram juntas, ele teria pagado 1523$680 de tributos em Curitiba, o que deveria
equivaler a 1218 bestas muares. Neste caso, o investimento seria de aproximados 6
contos de réis, para um ganho de cerca de 15 contos, descontados impostos, custeio de
animais e eventuais perdas. A venda de terras e os empréstimos movimentavam valores
bastante inferiores, geralmente abaixo dos 100$000. Mesmo com todo este rendimento,
uma das tropas de Andrade ficou devendo por mais de dois anos, inda que as demais
tenham sido pagas dali um ano.
A maior tropa que encontrei para o período foi a da guia 168, conduzida por
João José Coelho. Foi a única viagem que identifiquei deste tropeiro, que pagou tributos
no mesmo ano, no valor de 1.918$610, o que significaria, apenas em mulas, uns 1500
animais. Parece ser o caso paradigmático do tropeiro “oportunista” (por falta de
expressão melhor) que investiu com força no negócio, pagando rapidamente os tributos
para não mais se aventurar. Mesmo assim, com apenas uma viagem ele obteve ganhos
superiores a 97% do total de tropeiros, uma imensa maioria de pequenos negociantes
que, por outro lado, somava 86% dos negócios realizados na rota. Um gigantesco
formigueiro que garantia a coerência daquela superfície mercantil, como diria Braudel.
Vamos agora avançar por este caminho. Comecemos no que chamo a “área
de produção” pecuária, o que inclui não apenas a produção propriamente dita, mas
também a produção social via contrabando.81 A Rota das Tropas interligava uma vasta
área dentro do continente americano, no atlântico sul ocidental. Ela se inicia numa
grande área de produção, que se estende da localidade de Cerro Largo, então sob
domínio da Coroa de Castela, até o Viamão, nos territórios portugueses. O caminho
segue por uma região de serra até um planalto de cerca de 900 metros de altura,
passando por alguns povoados como São Francisco de Paula, Vacaria e Lages, até
chegar à região da Lapa e Curitiba, passando por Castro e outras pequenas povoações
até a Vila de Sorocaba, de onde os animais eram redistribuídos para diversas regiões.
81 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).
61
Um percurso de mais de 1000 km, no qual pudemos contar mais de duas mil viagens de
transporte de animais, apenas no sentido sul-norte, entre 1760 e 1810, feitas por mais de
quinhentos negociantes com a ajuda de um número ainda maior de peões, capatazes,
fiadores, cobradores, fiscais, entre outros como os que forneciam víveres na viagem ou
os estancieiros que alugavam ou arrendavam campos de invernada.
Nestes primeiros anos, as únicas localidades expressivas existentes à margem da
rota eram Viamão, Curitiba e Sorocaba. Viamão estava no inicio de seu povoamento.
Curitiba havia sido feita Vila na última década do XVII, e contava com
aproximadamente mil e quinhentos moradores na época da abertura do caminho das
tropas, por volta de 1730. Sorocaba deveria ser um pouco maior, ainda que pouco se
saiba a respeito.82 Na década de 1760, foi iniciado o povoamento das localidades de
Lages e Vacaria, enquanto outras tantas localidades já próximas ao caminho, assim
como Viamão, Curitiba e Sorocaba, assistiam um crescimento constante, em muito
marcado pela própria existência do comércio de animais, mas também pela
reestruturação da Capitania de São Paulo, promovida pela Coroa Lusa. Mas a viagem é
longa e convém ir devagar.
É possível pular para o Capítulo 3 (ignorando a região produtora de
animais) ou para o 7 (indo direto ao debate sobre informação e daí ao crédito).
82 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX) (São Paulo: Fapesp/Annablume, 2001)..
62
Capítulo 2 A região produtora
É comum encontrar em listas nominativas feitas em Curitiba, na Lapa e em
outras regiões vizinhas àquelas duas localidades, fogos onde o chefe ou algum filho
estava ausente para o sul ou, mais especificamente, ausente para o Viamão. Esta
alternância entre uma imprecisão maior ou menor é sugestiva do fato que a maior parte
dos moradores do planalto paranaense não tinha muita clareza sobre aquelas regiões de
onde vinham tantos animais. Sabiam que era ao sul. E que se chamava Viamão. Da
mesma forma a correspondência da Casa Doada, instituição que arrecadava os Meios
Direitos em Curitiba e Sorocaba tem algo de interessante. Não encontrei referência à
Viamão nos escritos de Antonio Francisco de Aguiar, que redigia suas missivas de
Sorocaba. Por outro lado, Manuel José Correia da Cunha, em Curitiba, fez referência a
Viamão em nove das setenta e cinco cartas que encontrei. Esta situação tinha sua razão
de ser, e não era apenas por falta de cosmopolitismo dos habitantes do planalto.
Viamão parece mesmo ter sido uma região. E não apenas do ponto de vista
dos curitibanos. É comum a referência, nas escrituras públicas de Porto Alegre, na
década de 1780, apontar o local como Porto Alegre de Viamão. Fundada em 1772,
Porto Alegre ainda não tinha a força de capital que o governador Marcelino de
Figueiredo queria e mesmo com todo o seu esforço ela seguia sendo parte da periferia
viamonense. Mesmo com o passar dos anos, com o crescimento de sua importância e
com o debilitamento de Viamão, Porto Alegre continuaria, junto com sua antiga
“metrópole” a fazer parte de uma mesma região, que abarcava também as localidades de
Triunfo, Caí, Anjos e Santo Antonio da Patrulha. Por conveniência e por acatar a
denominação êmica, vou chamar todo este espaço de Viamão.
Podemos encontrar outras regiões que, à semelhança de Viamão,
exportavam animais pelo caminho das tropas. A maior parte delas fazia parte do
continente do Rio Grande, da capitania do Rio Grande de São Pedro. Todavia, como
podemos ver acima, tais regiões se organizavam de modo diverso ao administrativo e é
preciso ter isso em conta. Vou incluir no modelo espacial que estou propondo as
seguintes regiões: a fronteira do Rio Pardo, a fronteira do Rio Grande e os campos de
Montevideo, nos territórios espanhóis. Não deixaremos Viamão de fora, evidentemente.
Comecemos pelo mais distante do caminho.
63
As fronteiras
Os Campos de Montevideo, Cerro Largo e a Fronteira do Rio Grande
Em 1796, um carpinteiro de Curitiba era preso em Cerro Largo, nos
territórios espanhóis do Rio da Prata, nos chamados Campos de Montevideo. Joaquim
José da Silva, de cerca de 20 anos, havia sido preso por contrabando de animais, mais
exatamente éguas e potros. Segundo seu depoimento, ele havia chegado àquela fronteira
havia um mês, mais ou menos, com o objetivo de conduzir uma cavalhada comprada de
um tal “Don Juan”. Segundo ele, quando chegou àquelas paragens se deu conta que seus
companheiros, José Pereira e “El Rubio”, tinham interesse em apenas roubar as
estâncias espanholas e conduzir os animais e que não se afastou deles, mesmo sabendo
que eram ladrões, porque esperava que o levassem de voltar para sua terra, por não
conhecer ninguém naquele território. E ele jamais voltou. Poucos dias depois, antes do
julgamento, ele acabou adoentado e morreu na prisão.
Joaquim José não foi o único preso. Também foram detidos e processados
pela Coroa Espanhola, na mesma ocasião, Nicolas Corrales e Torquato Amata, com
duzentos cavalos e éguas que deveriam ser levados para Portugal, a las estâncias de El
Bacacay, por um acerto feito com um negociante de Santo Domingo Soriano chamado
Martin Camacho. Torquato Amata disse ser de Rio Pardo, nos territórios lusos, mas
vivia do ejercicio de conchabo83, e já fazia cinco anos que tinha saído de seu país.
Amata disse pensar que os animais deveriam ser entregues ao Tenente Antonio Pinto.
Por seu turno, Nicolás Corrales era de Montevideo, tinha 28 anos e trabalhava al lado
de su padre. Além de confirmar a condução de animais que fazia, informou que sabia
que Martin Camacho, que os havia contratado, havia levado 750 cavalos ao Passo do
Beca do Rio Negro, com o objetivo de levá-los a Portugal. Disse ainda que ia ao Rio
Pardo, também, para encontrar-se com um irmão que lá se encontrava.
Para além da veracidade dos testemunhos, o contrabando de animais por
estas fronteiras é bastante documentado.84 Os chamados campos de Montevideo
forneciam animais aos “produtores” do Rio Pardo e do Rio Grande, que os mesclavam
às suas produções próprias. Outras fontes confirmam um cenário de contínuos
83 Forma de trabalho livre, desempenhado por contrato, utilizado em estâncias para agregar trabalhadores. 84 Ver GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).
64
ingressos. Em uma carta escrita em fevereiro de 1783 para José de Galvez, Vertiz
adverte sobre a introdução de animais nas regiões lusas de Jaguarão, Taquari e Rio
Pardo,
como lo verificó poco ha una partida de cien hombres hasta el paraje llamado el Rio Negro llevándose once mil cabezas de forma que ya empieza a notarse falta de el en aquellos campos que estaban cubiertos de reses y hacen la fuerza de estas provincias por el interesante comercio de los cueros.85
A correspondência de autoridades espanholas tratando da devastação nos
Campos de Montevideo, patrocinada por portugueses ambiciosos, aliados de espanhóis
infiéis e desertores, segue contínua nos anos seguintes e é alvo de diferentes iniciativas
por parte da administração espanhola de Buenos Aires e Montevideo. É certo que tais
autoridades carregavam nas tintas do cenário que descreviam. No fundo, o problema
não era apenas o extermínio das vacarias em benefício dos portugueses. Eram as
disputadas dentro das intrincadas redes de poderes internas da administração espanhola.
Paralelamente às notícias de contrabando estavam as acusações dos oficiais espanhóis
envolvidos, o que gerava, com freqüência, devassas e inquirições. Mas no que todos
concordavam, inclusive os réus, era que uma grande quantidade de gado dos territórios
reivindicados pelo monarca espanhol iam parar em mãos portuguesas.
Para onde iam estes animais ditos espanhóis? Não apenas eram vendidos
para carpinteiros curitibanos. O principal destino eram as estâncias de súditos
portugueses nas proximidades do Rio Piratini, parte integrante da chamada Fronteira do
Rio Pardo. O entorno do Rio Piratini vinha sendo ocupada pelos portugueses
especialmente desde o final dos conflitos entre Espanha e Portugal, em 1777.86 A elite
local, especialmente os grupos envolvidos nas disputas de reconquista lusa de Rio
Grande, tratou de reservar para si o quinhão mais precioso daquelas terras.87
Percebemos que esta expansão territorial sobre novas terras se dá simultaneamente ao
surto de contrabando de gado e couros naquela região. Rio Pardo, entre 1780 e 1791,
85 AGI-GOB-BA-065 86 OSÓRIO, Helen, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822) (Niterói: CPGH/UFF, 1999). 87 Uma parcela da elite local esteve envolvida nestes conflitos, iniciados com a tomada de Sacramento e Rio Grande pelos espanhóis, a partir de 1762. Sobre isso ver: GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810); MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego, A dominação espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777). Anais do simpósio comemorativo do bicentenário da restauração do Rio Grande (Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979).
65
detinha o maior rebanho de reses, cavalos e muares.88 Certamente, boa parte deste
rebanho foi formada a partir da captura ou compra destes animais, até mesmo porque
havia pouco tempo que os portugueses estavam ali estabelecidos e não há registro de
deslocamentos de grandes manadas para aquela região.
Da mesma forma, a própria área ao norte da Campanha de Montevideo
estava sendo ocupada pelos espanhóis, em um ritmo mais lento, mas de forma
constante, o que fica sugerido inclusive pela preocupação das autoridades espanholas
em garantir a defesa de alguns súditos que povoavam aquela paragem.89 Mas quem
eram estes povoadores? A maior parte era formada por famílias imigrantes (muitos
indígenas) vindas de diversas partes do Paraguay, de Corrientes e Santiago Del Estero,
assim como um número expressivo provinha de Buenos Aires e Montevideo,
especialmente entre a elite local.90
Um historiador local, Victor Gannello, conseguiu identificar 142 unidades
familiares no período entre 1791 e 1801. Deste número, encontramos oito unidades
compostas por agentes provenientes da parcela lusa na América. Duas unidades eram
compostas por gente de Rio Pardo, duas por pessoas de Curitiba e uma por uma família
com origem na Sacramento lusa. As demais eram composições mistas, mas igualmente
lusas, com pessoas vindas de Viamão (1), São Paulo (2), Rio Grande (2), Rio de Janeiro
(1) e também de Rio Pardo (8) e Curitiba (5).
Estes portugueses não chegaram à Cerro Largo perdidos, como dizia ser
nosso carpinteiro Joaquim José, e a sua origem é sugestiva das localidades lusas que
mais mantinham contato com Cerro Largo, mas sobre isso falaremos depois. Quanto à
grande quantidade de paraguaios (ou que assim se apresentavam) havia uma razão de
ser: as economias de Corrientes, Santiago e do Paraguay não andavam bem, e os
campos de Montevideo se apresentavam como uma alternativa naquele momento.91 A
88 OSÓRIO, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822). 89 AGI-GOB-BA-065 e AGI-GOB-BA-333 90 GANNELLO, Víctor Humberto, Historia de Cerro Largo (Montevideo: Instituto de Estudios Genealógicos del Uruguay, 2002). 91 DJENDEREDJIAN, Julio, Un aire de familia? Producción agrícola y mercados desde Corrientes y Entre Ríos a Rio Grande do Sul, fines del XVIII y comienzos del XIX: algunas reflexiones comparativas. Comparada, Primeiras Jornadas de História. 2000; FARBERMAN, Judith, Migrantes y soldados. Los pueblos de indios de Santiago del Estero en 1786 y 1813., 04 vols., Cuadernos del Instituto Ravignani
66
mesma chegada de migrantes foi percebida por Ana Frega para a região de Santo
Domingo Soriano.92
A região de Cerro Largo e seus campos era caracterizada nas fontes oficiais
espanholas (correspondências e devassas, especialmente) como um território onde se
cometiam continuos excesos, uma área de difícil controle onde abundavam
contravandistas, foragidos desertores y demas clases de vagos y delincuentes. Este
cenário caótico fazia muito sentido para os projetos de alguns setores da administração
espanhola interessados em dispor dos gados e recursos existentes naquelas campanhas.
Porém, observando com atenção, é possível encontrar diferentes escalas de ordem
presentes: os bandos chefiados pelas elites locais, grupos de minuanos e charruas,
aldeias guaranis, imigrantes de Buenos Aires, Montevideo e da península; paulistas e
gente de Rio Pardo; funcionários régios.
Este agregado de agentes permitia o funcionamento de um sistema que
vazava uma substancial quantidade de animais para os territórios lusos. A passagem dos
gados, legalmente proibida, não deixava de ser uma forma de produção, já que o
sucesso na travessia dependia da performance dos agentes mais diretamente
interessados naquele negócio, mas dependia da participação de outros agentes. Em
termos mais práticos: contar com a ajuda do cacique minuano Chuanora ou com o
amizade do funcionário régio Antonio Pereira, era uma garantia maior de êxito. Por
outro lado, dificilmente um negociante conseguiria sair daquelas paragens sem a ajuda
de alguns peões oriundos do Paraguay, Corrientes e Santiago del Estero.
A Vila de Rio Grande e seu entorno não eram as áreas de maior produção
pecuária nos terrenos lusos, mas sua produção não era desprezível. Tinha um estoque
animal bastante expressivo, especialmente de bois mansos, mas também de eqüinos,
muares e reses. A maior força desta região, contudo, estava na forte agricultura,
especialmente de trigo e no dinâmico comércio com a Praça do Rio de Janeiro. A Vila
fora fundada em 1737 durante o esforço de povoação da parte sul da América
Portuguesa, em direção à Sacramento. Foi povoada por diversos grupos nos seus
(Buenos Aires: Instituto de História Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani. Facultad de Filosofía y Letras - Universidad de Buenos Aires, 1992). 92 FREGA, Ana, Pueblos y soberanía en la revolución artiguista. La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colonia a la ocupación portuguesa, 1ª ed. (Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2007).
67
primeiros anos de existência, até ser invadida pelas tropas espanholas em 1763, sendo
posteriormente recuperada pelo esforço luso em 1777, após os combates de 1774, 1775
e 1776. Os conflitos militares e o repovoamento luso do território devem ter sua parcela
de efeito no tamanho do rebanho riograndino, ainda que fosse um número de cabeças
impressionante para qualquer área consolidada dos territórios portugueses na América.93
Rio Grande manteve intenso tráfico de couros e animais com os territórios
espanhóis ao longo do período que estamos observando. Tal mercado se desenrolava
especialmente na Lagoa Mirim, saindo pelo Rio Cebolattí e Olimar e pelo Canal de São
Gonçalo, o chamado Sangradouro da Lagoa Mirim. Este comércio contribuiu para a
rápida recuperação da atividade pecuária na região, assim como para o enriquecimento
de diversos negociantes da vila que tinham no contrabando mais uma forma de câmbio,
além daqueles praticados com o Rio de Janeiro, Paranaguá, Santos e Bahia. Este
contrabando também contribuía, de certo modo, para a reprodução da hierarquia
política, já que era especialmente controlado por membros da elite local,
particularmente a família Pinto Bandeira, que não apenas o praticava como vetava a
concorrência.94
Paralelamente, um forte entorno agrícola se montava em áreas onde o
mesmo contrabando era realizado. Em 1787, Rafael Pinto Bandeira afirmava ter
desmantelado um foco de contrabandistas, o chamado Povo Novo. Talvez estivesse se
referindo ao povoado mais central com este nome, pois no Lista de Moradores de 1784
do Povo Novo, a maior parte dos habitantes eram pequenos agricultores, baseados na
força familiar e com pequenas produções, sem grande inserção mercantil, salvo a venda
da colheita e seu abastecimento. A maior parte destes lavradores era constituída por
oriundos das ilhas dos Açores.95
93 OSÓRIO, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822); PRADO, Fabrício, Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa no século XVIII (Porto Alegre: F. P. Prado, 2002); HAMEISTER, O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. 94 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). 95 AHRS. 1198 A e B; Ibid.
68
Figura 10 ‐ Mapa da Vila de Rio Grande e seu entorno (final do século XVIII)
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OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Tratado Santo Idelfonso
'] Povoações
1:383668
Vila de Rio Grande eseu entorno
- final do século XVIII -
LagoaMirim
"Sangradouro" da Lagoa M
irim
Vila de Rio Grande
São José do Norte
Povo Novo
Oceano Atlântico
Fonte: AHEX. 07.02.1425
Figura 11 – Mapa da Banda Oriental e Fronteira do Rio Grande (final do XVIII)
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SRio Grande
Estreito
Mostardas
Cerro Largo
Canguçu
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
Campos NeutraisTratado Santo Idelfonso
1:2433948
Banda Oriental e Fronteira do Rio Grande- Final do Século XVIII -
Campos de Montevideo- Território Espanhol -
Fonte: Diversos documentos (citados ao longo do texto).
69
A Fronteira do Rio Pardo
Em Cerro Largo, era necessário um grupo de peões para conduzir os
animais até os terrenos lusos. Um largo corredor unia aquele último povoado espanhol
com a freguesia lusa do Rio Pardo. O Comandante de fronteira espanhol, Antonio
Pereira, em 1786, nos descrevia o cenário:
Animada la ambición de los portugueses del interés que les ofrece su situación por la parte del Rio Grande y Rio Pardo, han formado muchas estancias de pequeñas poblaciones en los Arroyos Piratini, S. Gonzalo y otros sosteniéndolas puramente con sola la piratería de los ganados q roban sin que sus gobernadores y comandantes corrijan estas, ni otras extracciones indebidas. […] El Rio Grande desde la Vila de Rio Pardo hasta la laguna grande tiene 4 bocas conocidas para el comercio clandestino. La 1ª es etrenosa por parte de la sierra y pedregosa hacia la Villa llamada del Rio Pardo. La 2ª denominada de Sto. Amaro, es buen piso, dista de la primera 10 o 12 leguas. La 3ª llamada la feligresía dista de la segunda como 2 leguas y media; es mas ancha, y de mejor piso que las anteriores; por esta cuando el Rio esta bajo se pasa inmediato a una pequeña isla que tiene en su centro pero cuando va crecido se corta derecho. La 4ª se nombra Puerto de los costales, dista de la anterior 14 o 16 leguas; este paso no se facilita si no en canoas y no hay noticia que la badehen animales. Por el Primero, segundo y tercero de estos parajes, es por donde los portugueses extraen los ganados que roban, y el más frecuentado es el primero96
Estas seriam as quatro entradas principais no Rio Pardo: a freguesia de
mesmo nome, a de Santo Amaro, Triunfo97 e uma última que não soube identificar. Mas
para chegar até estes acessos, era necessário percorrer um bom percurso. Saindo de
Cerro Largo ou dos campos imediatos ao norte desta localidade, era preciso cruzar o rio
Jaguarão (chamado pelos espanhóis coevos de Arroyo Yaguarón), o que geralmente era
feito na altura do que depois se tornou o povoado de mesmo nome. Depois disso todos
os caminhos cruzavam o Rio Piratini e, ainda que houvesse mais de uma trilha, os
relatos que temos quase sempre indicam o caminho para a Encruzilhada, passando por
Canguçu (que só é formalmente criado em 1800) ou o caminho de Camaquã, pela costa
oeste da Lagoa Mirim.98 Na Encruzilhada o caminho ia direto para a freguesia do Rio
Pardo. Importa dizer que a demarcação de limites, mesmo tendo sido definida no papel
no final da década de 1770, seguia nos anos 1780, com a presença de astrônomos e
matemáticos definindo o local de colocação dos marcos. Tal processo durou muitos
96 AGI-GOB-BA-333 97 A chamada feligresía era, provavelmente, Triunfo, pois além de ser conhecida como Freguesia Nova, corresponde à distância descrita por Pereira. 98 AGI-GOB-BA-333
70
anos, até que em 1800, os portugueses puderam avançar sobre terras já efetivamente
sobre seu poder, mas não oficialmente.
Rio Pardo era, assim, uma das principais portas de entrada dos gados
espanhóis, mas não só isso. A produção pecuária nesta região, na época designada
fronteira, era muito grande.99 Compreendia diversas localidades: as freguesias de Santo
Amaro e Cachoeira, o distrito da Encruzilhada, o povoado de Canguçu (fundado
oficialmente em 1800, mas com ocupação lusa anterior) e a própria Rio Pardo. Mesmo
extensa, o crescimento desta localidade foi tanto, nos últimos vinte anos do XVIII, que
ela conquistava áreas ao Império Espanhol, especialmente às margens do rio Piratini.
Figura 12 – Mapa da Fronteira do Rio Pardo (final do XVIII)
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OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
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Fronteira do Rio Pardo- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
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do Rio Grande
Viamão
Fonte: BN. Mss. 005,04,035
Quem patrocinava este avanço da fronteira agrária? Como já dissemos, tal
processo era encabeçado por uma fração da elite de Viamão e Rio Grande, como uma
99 OSÓRIO, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822).
71
espécie de butim de guerra, um prêmio ao conquistador. Tal prêmio não foi privilégio
do comandante e sua corte, mas também de elementos da base social que o apoiavam e
ganharam, igualmente, seu quinhão de fronteira. É o caso de Miguel Martins Serra, que
recebeu um campo, talvez vizinho de José Romão Vareiro, que dizia ter comprado sua
estância, mas não tinha nenhum comprovante. Ambos atuaram nas décadas de 1770/80
como peões de contrabando de Rafael Pinto Bandeira, assim como também participaram
das guerras de reconquista dos territórios lusos. Talvez já habitassem aquelas paragens
antes dos conflitos, e estavam em busca de legitimidade, a qual acabou por ser garantida
por seus alinhamentos com a elite local.100
Tabela 1 ‐ População de localidades da Fronteira do Rio Pardo (final do XVIII)
Local 1780 1798Cachoeira 662 2633Rio Pardo 2374 3914Santo Amaro 720 1113
Fonte: BN. Mss.9, 4, 9, nº 134; AHU.RS. Cx. 09. Doc. 44
O comandante do Distrito da Encruzilhada era Felisberto Pinto Bandeira,
irmão de Rafael e, provavelmente, naquelas paragens, vizinho de Carlos José da Costa e
Silva, seu cunhado. Da mesma forma, no povoado de Canguçu, um dos primeiros
povoadores é Paulo Rodrigues Xavier Prates, um dos mais destacados proprietários de
terras da Freguesia dos Anjos. É neste cenário de demarcação de limites, contrabando e
controle de elites regionais que a produção pecuária (e mesmo agrícola) do Rio Pardo se
organizava no final do XVIII.
Em novembro de 1779, Baltazar Rodrigues de Oliveira, no Rio Pardo,
recebia uma Carta de Obrigação vinda de Lages, de Antonio Correia Pinto, para a
compra de uma porção de bestas e cavalos que deveriam ser levadas aos subúrbios da
cidade de São Paulo. Em 1785, Antonio Rodrigues da Silva comprou a Mateus Simões
Pires uma tropa com quatrocentos e quarenta e nove bois (além de vinte cavalos para
costeio da tropa). Da mesma forma, em 1788, o Sargento-mor de São Paulo, Joaquim
José de Macedo Leite, foi ao Rio Pardo buscar animais para o abastecimento das tropas
100 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).
72
militares de São Paulo. Ainda que Viamão fosse a grande referência e fornecesse
animais havia algumas décadas, Rio Pardo vinha se tornando uma alternativa para
muitos negociantes.101
A produção pecuária na fronteira do Rio Pardo era, já nos anos 1780, maior
que a de Viamão ou Rio Grande.102 Destacavam-se neste cenário a freguesia de Santo
Amaro e o distrito de Encruzilhada. Santo Amaro tinha uma produção pecuária que
ultrapassava as sessenta mil cabeças em 1784. Os animais produzidos eram bovinos,
eqüinos e asininos. A produção de mulas ocupava um lugar fantástico, com um rebanho
asinino (machos) superior a mil e oitocentas cabeças. Ao dizer isso, acho que convém
esclarecer o significado destes números e o que significa produzir uma mula. A mula é
um animal híbrido, resultado do cruzamento de um burro (equus asinus) com uma égua
(equus cabalus) e, assim, é um animal estéril. Para tanto, os criadores necessitavam
organizar de modo especial sua produção: havia a necessidade de separar os burros em
dois tipos, os burros hechores e os burros burreiros. Os hechores eram destinados à
cobertura das éguas de cria de mulas, enquanto os burreiros eram encarregados de
cobrir as burras, para a produção de seus semelhantes. O burro e a égua não procriam
naturalmente e a criação depende da indução humana. É correto que mesmo que os
outros animais (bois, éguas, cavalos, vacas, burras e burros) se reproduzissem
naturalmente, sua criação exigia um manejo constante.
Dos territórios espanhóis não vieram apenas as primeiras matrizes e nem
somente continuaram chegando tantos outras peças de gado para o enorme estoque
animais que se montava nas margens do Rio Jacuí: vieram também as técnicas de
produção, o que deixou traços inclusive na linguagem utilizada nestes territórios lusos
contíguos, tal como eychor e echor, dentre outras formas, para referir-se ao burro
hechor (o macho reprodutor), tal como se pode ver nas classificações utilizadas nos
inventários post-morten, que também dividem os animais em potros, vacas tambeiras,
reses de ano, dentre outras, indicando algumas preocupações técnicas e de manejo
correntes entre aqueles criadores, talvez de origem espanhola, talvez de origem
portuguesa, algo difícil de afirmar com certeza. Mas foi entre a experiência pecuária
101 1TABPOA-006-157; 1TABPOA-010-043; BN-II-35,25,62; Arquivo Nacional. Códice104. Vol.11. p.78 102 OSÓRIO, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822).
73
lusa e, principalmente, da adoção do sistema platino de criação que se estabeleceram as
estâncias do Rio Pardo (e também as do Viamão e de Rio Grande). Igualmente deve-se
considerar a experiência minuana e charrua nesta lida. Estes indígenas certamente
contribuíram para modificar a produção e circulação de animais, se não de forma
conceitual, ao menos no apuro técnico, já que eram excelentes cavaleiros. Em muitos
relatos, encontramos estes indígenas conduzindo ou negociando animais, em quais
atividades tinham grande destaque, já desde o início do século XVIII.103
Depois deste breve passeio, voltemos a Santo Amaro, em 1784, onde
deixamos o rebanho de mais de mil e oitocentos burros esperando uma explicação. Era
um número vultoso, especialmente se comparado com a produção na freguesia do Rio
Pardo da mesma época, onde contamos dezesseis machos, ou com a freguesia do
Taquari, onde havia dez animais deste tipo. Era um rebanho muar superior, inclusive, à
produção da poderosa vizinha Triunfo, abundante produtora, cujo rebanho asinino não
atingia mil e duzentas cabeças.
O Distrito da Encruzilhada, por seu turno, não tinha a mesma pujança de
Santo Amaro, somando pouco mais de cem burros, ainda que as demais produções
fossem mais significativas. Mas a presença de estâncias lusas naquela paragem garantia
não apenas a definição territorial em favor dos portugueses, mas garantia o avanço da
fronteira e os intercâmbios com Cerro Largo. E foi nesta área, ao sul do Rio Jacuí, até o
Rio Camaquã e na margem do Vacacaí, que se deu a consolidação mais densa de
fazendas lusas. Em um mapa da Fronteira do Rio Pardo de 1806 (relativo aos ramos
dos dízimos) encontramos este território já organizado e dividido em diferentes
distritos. Paralela à ocupação veloz, novas áreas, em litígio com Espanha, eram
apresentadas no mapa como “campos avançados”, alguns dos quais poderiam ser
incorporados ao ramo dos dízimos, ou deveriam ainda ser povoados, numa geopolítica
bastante pragmática.104
103 HAMEISTER, Martha Daisson, "O Continente do Rio Grande de São Pedro: Os homens, suas redes de ralações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763)" (UFRJ, 2002); GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810); CANEDO, Mariana, "La ganadería de mulas en la campaña bonaerense: una aproximación a las estrategias de producción y comercialización en la segunda mitad del siglo XVIII," in Huellas en la tierra: Indios, agricultores y hacendados en la pampa bonaerense, ed. MANDRINI, Raúl & REGUERA, Andrea (Tandil: IEHS, 1993). 104 AHEX. Mapoteca. 06.04.3196. Mapa da Fronteira do Rio Pardo.
74
A produção pecuária em Rio Pardo no início da década de 1780 é marcada
por um forte intercâmbio mercantil e de idéias (especialmente técnicas agrárias) com os
territórios espanhóis. Da mesma maneira, há uma forte presença de uma parcela da elite
ligada à reconquista aos espanhóis (assim como herdeira declarada dos primeiros
povoadores do Rio Grande de São Pedro), controladora do contrabando e com forte
participação no processo de concessão e reconhecimento de terras. Era uma produção
que se estabelecia visando o abastecimento de outras regiões da América lusa, a partir
da experiência que se estabelecia desde a década de 1730. Os grupos que interagiam
neste cenário poderiam ter várias divergências, mas estavam de acordo com as formas
de compor o rebanho, obter as terras e negociar, e tais atividades não passavam,
necessariamente, pelo mercado. A guerra, o contrabando e as relações pessoais tinham
um peso gigantesco.
Viamão
A região do Triunfo
Passemos um pouco mais a leste, chegando à região do Triunfo. Entendo
que esta é composta pela pujante Freguesia do Triunfo e, nas suas margens, a Freguesia
do Taquari. A Freguesia do Triunfo foi fundada em 1756 a partir do núcleo de
povoamento que se inaugurou com a chegada de algumas famílias vindas da Freguesia
de Viamão. Em 1760 tinha pouco mais de 600 habitantes, contando, em 1780, com
1200, duplicando a sua população em meio à conquista da fronteira agrária, com o
estabelecimento e expansão de diversas unidades de criação animal. A Freguesia de
Taquari (ou Tabiquari) tinha 689 habitantes em 1780, número superior à Triunfo da
mesma época. Todavia, em 1798, contava 954, tendo um crescimento bem inferior ao
da povoação vizinha. Taquari se caracterizava por uma produção predominante agrícola,
desenvolvida em pequenas propriedades, as chamadas datas de terra. Esta freguesia foi
ocupada, no início da década de 1770, por casais das ilhas.
Os noventa e sete proprietários mencionados na Relação de Moradores, feita
em 1784, em Taquari, somados, possuíam pouco mais de cinco mil animais, número
inferior ao rebanho de José Francisco da Silveira Casado, de Triunfo, que possuía mais
de nove mil cabeças, ou Antonio Ferreira Leitão, que mantinha um estoque de mais de
seis mil peças. Em ambos os casos, as grandes manadas eram bovinas. Entre os eqüinos
75
e asininos, animais de maior valor, se destacavam Vitorino José Centeno, com mais de
mil e quinhentas cabeças, que fazia parte de um grupo de cerca de oitenta criadores que
possuíam mais de dez cavalos em estoque, de um universo de cento e quarenta
proprietários em Triunfo. O rebanho total de Triunfo era certamente o maior, na
comparação com Rio Pardo, Rio Grande e Viamão. Ao todo, se contavam mais de cem
mil cabeças, sendo que mais da metade composta de bovinos, seguidos por um
expressivo número de eqüinos. Na comparação com outras regiões, o rebanho asinino e
muar era igualmente impressionante.105
Dentre estes, destacamos João Francisco de Almeida, que possuía, em 1784,
um rebanho superior a três mil cabeças, onde cavalos e burros tinham especial destaque
(na comparação com outros produtores). Em janeiro de 1779, ele vendeu uma porção de
animais para Luis Antonio de Albuquerque para a montagem de uma tropa. Eram
19$200 em animais, sem especificação, além de outros cem potros, no valor de
200$000. Percebe-se assim o quanto o estoque era importante na decisão de comprar de
um ou outro negociante. Quando a Albuquerque, sabemos que era de Curitiba, mas não
o encontramos em outras atividades relativas ao trato dos animais.106
Triunfo não era caracterizada apenas por seu amplo rebanho. Era ali também
que viviam alguns dos mais prestigiosos homens da Capitania do Rio Grande de São
Pedro, ou ao menos possuíam propriedades. Tal era caso do Capitão-mor do Continente,
Manuel Bento da Rocha, o Capitão de Ordenanças Manuel José de Alencastre, o
Sargento-mor Alexandre José Montanha, e mais sete capitães, dentre os quais dois
membros da família Pinto Bandeira, Felisberto e Evaristo, além de Antonio Ferreira
Leitão, falecido em 1810 e dono de uma das maiores fortunas da época e José Francisco
da Silveira Casado, sócio do mencionado Bento da Rocha e que, juntos, participavam
do que Kühn designou o bando dos cunhados, uma aliança horizontal forte e articulada
que atuava em diversos negócios no continente do Rio Grande no final do XVIII.107
105 AHRS. Relação de Moradores. 1198 A e B. 106 1TABPOA-006. 107 KÜHN, Fabio, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII, vol. Tese de doutorado (Niterói: PPGHIS. UFF, 2006).
76
O Viamão
A região do Viamão exportava animais para Curitiba e Sorocaba desde os anos
1730/40, o que continuou ao longo de décadas, só acabando fora dos limites desta
pesquisa, mesmo em tempos de guerra e mesmo com o crescimento constante da
fronteira do Rio Pardo. Neste trabalho, entendo o Viamão como uma região que se
estendia para além da freguesia, incorporando Porto Alegre, Anjos, Caí e a própria
Viamão. A primeira povoação neste território se iniciou a partir do estabelecimento de
propriedades agrárias na década de 1730, compostos por migrações vindas da Laguna,
especialmente por parte da elite daquela localidade. Tendo sido ocupada a Laguna por
volta de 1680, ela já começava a dispersar gente mais para o sul, processo que
continuaria ao longo do XVIII. A freguesia de Viamão foi criada em 1747.108 Porto
Alegre, em 1772 e, na mesma época, a dos Anjos.109 Caí era um distrito de Triunfo que
me parece tão próximo ao Viamão quanto àquela sua sede.
Durante a ocupação espanhola em Rio Grande, a Câmara daquela localidade
deslocou-se para Viamão, ali permanecendo até sua transposição para Porto Alegre, em
1773. Mas não só a Câmara. Viamão acabou recebendo uma grande leva de
“refugiados” da ocupação espanhola, inclusive o governo luso e a provedoria da
Fazenda, além de outras instituições oficiais. A partir do início da década de 1770, há
investimento do governo luso no estabelecimento de Porto Alegre como sede da
Câmara e do governo.110 Igualmente são criados tabelionatos já na nova localidade e
Viamão começa a perder algo que nunca teve, ou teve por pouco tempo. Contra a
imagem de decadência, difundida à época e reproduzida pela historiografia, Viamão
seguiu crescendo em termos demográficos e continuava a ser uma referência importante
em Curitiba, por exemplo, muito mais que Porto Alegre.
Chegamos aos anos 1780 e todas as localidades do Viamão estão em franco
crescimento. Porto Alegre contava 1300 almas em 1779 e, um ano depois, 1512. Anjos
registrava um número anual de batismos crescente. Viamão passa de 1300 habitantes,
em 1778, para 1891, dois anos depois. E todas crescem em boa proporção até o final do
século, à exceção da Freguesia dos Anjos:
108 Ibid. 109 Há divergência sobre o ano de fundação da freguesia dos Anjos. 110 KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII.
77
Tabela 2 ‐ População de localidades do Viamão (Final do XVIII)
Local 1780 1798Nossa Senhora dos Anjos 2355 1996Porto Alegre 1512 3268Viamão 1891 2119
Fonte: BN. Mss.9, 4, 9, nº 134; AHU.RS. Cx. 09. Doc. 44
Os núcleos populacionais de Porto Alegre, Viamão e Anjos distavam entre si
quinze a vinte e cinco quilômetros sem grandes acidentes geográficos. Considerando os
recursos disponíveis para aqueles homens, sua tecnologia de movimentação e
transporte, esta distância se manifesta em um dia de viagem, talvez um dia inteiro, no
caso da distância entre Porto Alegre e a Freguesia dos Anjos, ou uma tarde a cavalo
com uma boa velocidade. Tal foi a velocidade com que o Sargento-mor de São Paulo
Joaquim José de Macedo Leite pôde desenvolver em sua passagem pelo Viamão, em
1790. Saindo da Fazenda Sapucaia, ele chegou ao Rio dos Sinos, percorrendo
aproximadamente 8 km neste dia. No seguinte, percorreu cerca de 12 km para chegar à
Fazenda de Luis Leite. Nos seguintes, aumentou sua marca, até chegar ao Rio Pardo,
com média de 23 km por dia de jornada.
É muito provável que Macedo Leite não conhecesse o território e pisasse no
chão devagar, além do fato de que ia longe, ao Rio Pardo, e não podia abusar dos
animais. Mas era uma velocidade possível, dentro das limitações tecnológicas do
momento, dadas pelo uso do cavalo como instrumento mais veloz de transporte
terrestre. Manuel José de Alencastre, fugindo da prisão, como contava em 1786 ao
Vice-rei em uma carta, parece ter feito o percurso de sua estância, no Caí, até a casa do
Provedor Inácio Osório em Porto Alegre, que distavam 50 km, em um mesmo dia (o
documento não deixa isso claro). Era preciso considerar a distância final, o tempo
disponível em dias, as eventuais cargas, as condições da estrada (se estava alagada ou
embarrada, ou cheia de irregularidades) e o preparo e qualidade dos cavalos. Quando
havia cavalos. Uma viagem de mais de 40 km poderia demandar, sob certas
circunstâncias, dois dias ou mais.
78
Figura 13 – Mapa de Triunfo e do Viamão (final do XVIII)
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Anjos
Viamão
Porto Alegre
Taquari
Santo Amaro Triunfo
Santo Antonio da Patrulha
Conceição do Arroio
Cima da Serra(São Francisco)
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
1:817204
Triunfo e Viamão- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
N
Lagoa dos Patos
Fonte: BN. Mss. 005,04,035; Outras fontes (citadas ao longo do texto).
O Viamão se compunha de três núcleos urbanos, ou quase isso, e uma vasta
área de produção de alimentos e animais. Uma produção tritícola bastante desenvolvida
abastecia este espaço, garantida por pequenos lavradores que havia no Caí, no entorno
de Porto Alegre e na Freguesia de Viamão, ainda que fosse igualmente expressiva nas
grandes estâncias. A criação de animais estava largamente difundida, sendo encontrada
em praticamente todas as propriedades.111 Os núcleos populacionais eram abastecidos
de instrumentos domésticos com os trabalhos de barro feitos pelos indígenas da Aldeia,
na Freguesia dos Anjos.112 Camponeses vindos dos Açores, indígenas missioneiros
emigrados, minhotos enriquecidos (ou não), africanos de vários locais, paulistas e seus
descendentes, crioulos e aqueles que se reivindicavam descendentes dos conquistadores
atuavam neste cenário, compondo diferentes hierarquias e produzindo animais para o
caminho das tropas.
111 AHRS. Relação dos moradores de 1784. Códices 1198 A e B; OSÓRIO, Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura Portuguesa na América (Rio Grande de São Pedro, 1737-1822). 112 SIRTORI, Bruna, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784), PPGHIS/UFRJ (Rio de Janeiro: UFRJ, 2008).
79
A produção pecuária estava disseminada em todo este espaço, ainda que
algumas regiões, ou mais especificamente alguns produtores tivessem certa primazia. O
destaque maior estava para os criadores do Caí. Somente Custódio Ferreira de Oliveira
Guimarães tinha, em 1784, mais de cinco mil animais, dos quais setecentas éguas e
cinqüenta burros. Seu vizinho contíguo, Manuel José de Alencastre, possuía mais de
dois mil e quinhentas peças, das quais cento e cinqüenta éguas e quatorze burros. Anjos
também mantinha uma pecuária em crescimento, com destaque para a Estancia da
Taquara, de João Pereira Chaves, onde eram criados dois mil e duzentos animais. A
Fazenda Itacolomi, de Dona Bernardina de Jesus Pinto, possuía um expressivo rebanho
asinino, com cinqüenta animais, além de três centenas de éguas.
A freguesia de Viamão continuava a ser uma importante produtora de
animais no início dos anos 1780. Somente o padre João Diniz Alves de Lima possuía
mais de dez mil animais, em suas duas propriedades. Também na Fazenda de Itapuã,
Domingos Gomes Ribeiro mantinha mais de cinco mil animais.113 Kühn percebe uma
transformação na estrutura agrária desta freguesia que, segundo ele, estaria adquirindo
um “aspecto camponês”, com a contínua diminuição do tamanho dos plantéis e do
aumento gradativo do número de pequenas propriedades.114 Este fator, somado à fuga
das antigas famílias tradicionais do povoado, seriam argumentos para se considerar a
decadência daquela pequena urbe. Não pretendo discutir aqui o argumento da
decadência, mas me parece que, antes disso, houve um re-ordenamento espacial que
deslocou as grandes unidades produtivas para a fronteira agrária, no caso da região do
Viamão, o norte da Freguesia dos Anjos e o distrito do Caí, dentro de um processo que
já havia começado nos anos 1760. O mesmo fenômeno explicaria a expansão no Rio
Pardo, nas direções oeste e sul, assim como o contínuo crescimento da Freguesia do
Triunfo, especialmente no tamanho de suas fazendas. O avanço português fundava
postos avançados na fronteira imperial, mas também garantia o avanço na fronteira
agrária.
Os negócios entre tropeiros e produtores de animais se davam diretamente,
ainda que não tenha condições de saber exatamente como os tropeiros faziam sua
seleção. Encontro referências em Livros de Notas sobre compras fiadas de animais, mas
113 KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. 114 Ibid.
80
estes documentos quase nunca expõem algum vínculo prévio entre as partes, nem
mesmo sugere uma regularidade.115 Tal informação, somada a de que poucos foram os
tropeiros que fizeram mais de uma viagem, me faz pensar que a seleção do vendedor se
dava pelo preço ou por outra conveniência como o aceite de um fiador (talvez este sim
conhecido), proximidade da rota ou disponibilidade de animais na ocasião da viagem de
compra. Mas nem sempre a escolha era tão livre, ou a aquisição tão certa.
No momento em que foram produzidas as Relações de Moradores dos
Anjos, Viamão e Caí havia, nestas áreas, pouco mais de trinta produtores de animais
que dispunham de mais de dez mulas, de um universo de mais de quinhentos criadores,
com Rafael Pinto Bandeira, Bernardo José Pereira (cunhado deste último) e Custódio
Ferreira entre os maiores estoques, somando cerca de quatrocentas e noventa bestas.
Mas isso também confirma que havia outras possibilidades, dentro e fora do Viamão.
Quanto à oferta de cavalos, encontrei cem criadores com estoque superior a dez
unidades. O Caí mantinha o maior estoque e os maiores criadores, destacando-se João
Pereira Chaves, nos Anjos, com cem bestas. De qualquer maneira, a propriedade de
Chaves não ficava tão distante do Caí, no que poderíamos chamar de complexo pecuário
Sinos-Caí, que iniciava-se ao norte do rio Gravataí e acabava às margens do Caí, onde
estavam as maiores fazendas em número de animais de todo o Viamão.116
115 APRGS.1º e 2º Tabelionatos de Porto Alegre. 116 AHRS.Relação de Moradores de 1784. 1198 A e B.
81
Capítulo 3 Pelo arquipélago das tropas
Mar é igual a campo, com a desvantagem que afunda. O Analista de Bagé
Os animais produzidos por este imenso espaço, no qual se incluíam a
Fronteira do Rio Pardo, os Campos de Montevideo, o Triunfo, o Viamão e Santo
Antonio da Patrulha, eram escoados pela rota que se afunilava em São Francisco de
Paulo de Cima da Serra. Até ali havia uma diversidade de caminhos possíveis, dentre as
muitas regiões. Até onde pude explorar, havia duas possibilidades de subir a serra em
direção à São Francisco, uma pelo vale do Rio Rolante, próxima à Patrulha e outra pelo
vale do Rio da Ilha, na direção norte da Freguesia dos Anjos. Ruben Neis destaca o
caminho do Rolante, que interligava a localidade de Santo Antonio da Patrulha, junto à
Viamão, e São Francisco.117 Entretanto, em 1788, o Sargento-mor de São Paulo,
Joaquim José de Macedo Leite, escreveu um roteiro de uma viagem que teria feito ao
Rio Pardo, desde as proximidades de Vacaria, e me parece que percorreu outro
caminho, seguindo por uma escarpa mais ocidental ao Rio Rolante, passando pela “Ilha”
e pela então Fazenda Sapucaia. Em ambos os casos, era preciso enfrentar uma subida
abrupta, para uma altitude de cerca de 800 metros.
O mar
O Registro e os Campos de Cima da Serra
Tomemos o caminho de Santo Antonio, parando antes nesta localidade. Ela
foi fundada em 1763, pouco depois de Triunfo, pouco antes dos Anjos e quase na
mesma época que Lages, onde já chegaremos. Entendo que Santo Antonio fazia parte de
uma região maior, composta também pela Freguesia de Conceição do Arroio, pelo
Distrito de Cima da Serra e pela Vacaria. Uma extensa área, dedicada um tanto à
produção pecuária, um tanto às invernadas.118 Era nesta área também que estava o
caminho para Lages, de onde os animais partiam para Curitiba e Sorocaba. Não nos
demoremos muito. A viagem é longa. Por ali ficava o Registro de Viamão, unidade
arrecadadora dos tributos cobrados sobre os animais. No início dos anos 1780, a
117 NEIS, Ruben, Guarda Velha de Viamão (Porto Alegre: EST/Sulina, 1975). 118 Invernadas são pousos para descanso do gado, geralmente feitos ao longo dos meses de inverno. Por analogia, pode fazer referência ao descanso ordinário dos animais após uma viagem ou durante a noite.
82
administração daquele Registro estava concedida a contratador Manuel de Araújo
Gomes, do Rio de Janeiro. Em 1785, passou para o controle de Bernardo Gomes da
Costa, da mesma praça, para depois parar nas mãos de Anacleto Elias da Fonseca, outro
negociante carioca, entre 1788 e 1790.119 Tal Registro parece ter permanecido nas mãos
de negociantes cariocas até sua última arrematação, em 1805, quando José Antonio de
Azevedo assumiu a administração.120
Uma dúzia de casas cobertas de palha, e um galpão mal coberto de telha
em que se celebra o Santo Sacrifício da Missa: assim descrevia Manuel Carneiro da
Silva e Fontoura, em 1824, a Capela de São Francisco de Paula, que estaria estabelecida
desde a década de 1760. Para chegar aí havia uma ridícula picada que dava caminho
entre Santo Antonio e a Patrulha.121 Consultando os registros de Batismos de escravos
(único livro destes assentos que encontrei para Vacaria) percebi que ao menos um terço
dos batismos ocorria na Capela de São Francisco da Entrada da Serra, onde havia um
bom número de grandes propriedades. Dos quarenta e um proprietários de terras que
encontramos na Relação de Moradores de Vacaria, nove tinham terras na Capela de São
Francisco, onde os filhos dos escravos foram batizados. Este é o resultado do
cruzamento entre os registros de batismos e a Relação de Moradores. Os batismos
apontam a existência de cerca de 30 senhores de escravos presentes na Capela da
Entrada da Serra. Dentre estes encontramos, por exemplo, Pedro da Silva Chaves, que
possuía cinco propriedades na região, que somavam mais de dez mil animais.
Igualmente ali estava estabelecido Antonio Gonçalves Padilha, com duas propriedades
que somavam mais de cinco mil cabeças. Pelos registros de batismo, pude perceber que
ele possuía mais de oito escravos.
A partir de São Francisco de Cima da Serra, havia três possibilidades de
caminho para Vacaria, segundo um registro feito em 1824 que, ainda que posterior,
parece ser uma boa referência, além de ser a única que encontrei. O autor do relato,
Manuel Carneiro da Silva e Fontoura, informa que o caminho mais antigo, pelas
nascentes do Rio Tainhas e do Rio das Antas, era ainda bastante freqüentado. Por
119 NEIS, Guarda Velha de Viamão. 120 JACOBUS, André Luiz, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial," in Bom Jesus e o tropeirismo no Cone Sul, ed. RODRIGUES, Elusa Maria, et al. (Porto Alegre: EST, 2000). 121 SILVA E FONTOURA. IN: DUARTE, Miguel "Achegas documentais: Vacaria, São Francisco de Paula e Santa Vitória," in Raízes de Vacaria (Vacaria: Prefeitura de Vacaria, 1997), p. 206.
83
qualquer um deles, havia grandes dificuldades de passagem, não somente pela forças
das águas dos rios que deveriam ser cruzados, mas também pela presença de gentios não
aliados aos portugueses, com os quais os moradores de Cima de Serra mantinham um
histórico de sangrentos conflitos. Até a Freguesia da Vacaria, distavam de 25 a 30
léguas pelo caminho mais direto122, cerca de 150 km.
Figura 14 ‐ Mapa da Patrulha, São Francisco e Vacaria (Final do XVIII)
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SVacaria
Santo Antonio da Patrulha
Cima da SerraSão Francisco
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
1:1021505
Da Patrulha à Vacaria- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
N
Fonte: BN. Mss. 005,04,035; outras fontes (citadas ao longo do texto).
A Freguesia de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria foi criada no final de
1768, praticamente ao mesmo tempo em que era fundada a localidade de Lages. Já era
bem habitada anteriormente, o que se pode verificar na própria ata de ereção da
Freguesia:
Fazemos saber que atendendo Nós ao que por parte dos moradores do Sertão de Vacaria, distrito de Viamão, deste nosso Bispado, nos foi representado que eles padeciam a desconsolação de não terem Pároco, que lhes administrasse os Sacramentos, por ficarem em extraordinária distância para qualquer Freguesia, a que quisessem recorrer, e achando-se já bastante estabelecidos com suas famílias, e com a esperança de que concorram outros muitos para o dito lugar, por ser este de
122 SILVA E FONTOURA. IN: Ibid.
84
grande extensão, e de sua natureza muito fértil, e produzir com abundância todos os frutos da terra, pedindo-nos que para o bem das suas Almas quiséssemos erigir o dito lugar em Freguesia, concedendo-lhes licença para nele o terreno, que se julgasse melhor e mais cômodo para todos, poderem fundar uma Igreja para Matriz com o título de Nossa Senhora da Oliveira, para a qual já tinham tirado seiscentos mil réis de esmolas em dinheiro, e havia quem desse a Imagem de Nossa Senhora e todos os paramentos necessários para a celebração dos ofícios Divinos123
Em 1780, a localidade contava 571 habitantes. Nesta época há indícios de
que alguns habitantes teriam deixado a freguesia pela ameaça de indígenas. Em 1779 o
Capitão Joaquim José Pereira teria comandado um sangrento ataque ao gentio, o que
teria propiciado um retorno de antigos moradores.124 Em 1798, a povoação contava 746
habitantes, registrando um ligeiro crescimento. Em termos espaciais, a Freguesia da
Vacaria se dividia entre a povoação de mesmo nome e a Capela da Entrada da Serra de
São Francisco de Paula que, por outro lado, pertencia ao distrito de Cima da Serra, parte
integrante de Santo Antonio da Patrulha.
Em outubro de 1789, José de Saldanha, astrônomo de Sua Majestade
encarregado das demarcações de limites, escreveu uma carta ao Governador onde
diferenciava a qualidade das terras de Cima da Serra e da Vacaria. Segundo ele, haveria
uma contínua mortandade de animais devido a pouca quantidade de sal na vegetação da
Vacaria. Quanto aos campos de Cima da Serra, em São Francisco,
fronteiros à costa do mar [...] recebendo dos vapores do mar algumas partes salinas, produzem pastos mais próprios à procriação dos gados, o que não deixa de ser conhecido por alguns dos estancieiros daquelas paragens, que tendo campos nos dois distritos, mudam os seus animais dos da Vacaria para os de Cima da Serra.125
A análise dos registros de Batismo da Freguesia de Vacaria indica uma alta
concentração da propriedade de escravos nas mãos de cinco senhores que, juntos,
detinham ¼ de todos os rebentos cativos da localidade. Apenas o tenente José Antonio
dos Santos teve doze filhos de cativos seus registrados. O mesmo Pedro da Silva
Chaves, ou seus herdeiros, depois de sua morte, também possuía doze rebentos, mesmo
123 Ata de ereção da Freguesia de Vacaria. APUD: BARBOSA, Fidelis Dalcin, A Diosece de Vacaria (Porto Alegre / Caxias do Sul: EdUCS / Diosece de Vacaria / EST, 1984).pg. 22 124 BARBOSA, Fidelis Dalcin, Vacaria dos Pinhais (Porto Alegre / Caxias do Sul: EdUCS / EST, 1978). 125 SALDANHA, José de. IN: DUARTE, "Achegas documentais: Vacaria, São Francisco de Paula e Santa Vitória," p. 209.
85
número que Manuel da Fonseca Paes, Comandante da Guarda de Santa Vitória.126 Uma
localidade com muitos escravos e poucos senhores, alguns absenteístas, como Pedro da
Silva Chaves e João Batista Feijó, moradores no Rio de Janeiro, Antonio da Costa
Ribeiro, de Laguna, Antonio de Freitas Branco, de São Paulo, além de Manuel da
Fonseca Paes, comandante da Guarda de Santa Vitória que à época da Relação de
Moradores estava preso em Rio Grande.
Vacaria, em 1784, mantinha um estoque de animais superior a quarenta mil
cabeças, com destaque para os bovinos. O rebanho eqüino contava um número superior
a quinze mil cabeças, além dos mais de quatrocentos burros e burras, número elevado,
se comparado com as demais regiões produtivas, mas longe da grandeza dos rebanhos
de Triunfo, por exemplo. É difícil saber exatamente se estas produções são apenas fruto
da reprodução local ou se os campos de Vacaria eram apenas usados para invernadas.
Certamente a resposta esta em ambas as possibilidades, e variava de acordo com o
proprietário. Antero Ferreira de Brito, por exemplo, mantinha um campo de invernada
que, no momento da Relação de Moradores, estava vazio.
Pedro da Silva Chaves (e seus herdeiros) pareciam jogar com suas cinco
propriedades dando a cada uma delas um perfil. Uma delas era provavelmente um
campo de invernada, com destaque para éguas, mulas e uma pequena porção de cavalos
e bois. Já outra propriedade da mesma família armazenava seis mil bovinos,
caracterizando-se como unidade produtora destes animais. Inácio Álvares Machado
também parecia dispor de uma unidade para invernada, onde depositava eqüinos e
muares que somavam trezentas cabeças. Pelas dimensões do rebanho, é bem provável
que fosse a tropa de algum negociante. Já José de Campos Bandebur, um dos primeiros
povoadores, possuía uma propriedade onde parece criar bovinos e eqüinos para a venda,
sem que fique se fornecia campos de invernada para outrem.127
126 Fragoso argumenta que os registros de batismos, ainda que não sejam fontes adequadas para estimar o tamanho de plantéis, podem ser a fonte possível, na falta de outras melhores. Experimentos que utilizaram esta metodologia apontaram que, de fato, o número de escravos batizados pode ser um bom índice do tamanho dos planteis. Ver: FRAGOSO, João, "Principais da terra, escravos e a República: o desenho da paisagem agrária do Rio Seiscentista," Ciência e ambiente, no. 33 (2006).. Para experimentos com a metodologia ver: SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784). 127 AHRS. Relação de Moradores. F1198 A e B.
86
O acesso aos campos de invernada era um elemento fundamental para o
sucesso de uma tropa. E não apenas para a engorda dos animais, mas como ponto de
parada estratégico depois da primeira subida de serra. A engorda poderia ser em
Curitiba, de acordo com a conveniência do tropeiro. Mas as paradas do caminho
exigiam o acesso à campos, ao menos por poucos dias ou por uma noite, o que poderia
ser facultado ou negociado. A principal vocação dos campos da Vacaria, aos olhares de
Curitiba, particularmente para o inspetor do Registro de Curitiba, Manuel José, era de
campo de invernada.128
Em Vacaria o caminho seguia para o norte, na direção de Lages, cruzando o
Rio Pelotas, onde estava o “Registro de Santa Vitória”, unidade arrecadadora que era
concedida por triênios pela Coroa. No início da década de 1780 ela estava sob o
controle de Manuel de Araújo Gomes e seus sócios. Tal posto fora instalado em 1772,
quando passou a ser arrematado no Rio de Janeiro juntamente com o Registro de
Viamão.129 O caminho que ligava Patrulha à Lages era, em 1824, objeto da apreciação
de Silva e Fontoura. Dizia ele que naquela via
jamais houve o menor benefício, e nenhuma providência; tanto assim que a vereda por onde se transita tem sido feita pelos encontros de muitos animais vacuns e cavalares que ali têm passado, sendo ao mesmo tempo aquela estrada precisa, não só a benefício d’aqueles habitantes, como também ao giro do negócio130
Parece que a estrada das tropas, mesmo depois de quase um século de uso,
era muito semelhante à maioria dos caminhos coloniais, tal como nos fala Sérgio
Buarque de Holanda. Em geral, uma picada sem manutenção, larga o suficiente para um
animal passar por vez, sendo poucas carrroçáveis.131 E certamente esta tecnologia viária
favorecia ainda mais a demanda por animais de transporte, capazes de passar por
pequenas veredas por onde as carroças não cruzavam. Mas por este caminho vamos. De
Vacaria à Santa Vitória percorremos pouco mais de 30 km. Para Lages faltam uns 70
km.
128 BN-II-35,25,17. 129 JACOBUS, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial." 130 SILVA E FONTOURA. IN: DUARTE, "Achegas documentais: Vacaria, São Francisco de Paula e Santa Vitória," p. 208. 131 HOLANDA, Sérgio Buarque de, Monções (São Paulo: Brasiliense, 1990).
87
Lages
Em 1766, Antonio Correia Pinto chegava na paragem chamada Lages, com
o objetivo de estabelecer uma povoação, sob ordens do Morgado de Mateus. Neste
mesmo ano foram contabilizadas dezesseis propriedades, onde residiam cerca de oitenta
e duas almas.132 Em 1769, segundo uma planta da localidade, já estava feito o traçado
das ruas, terrenos estavam divididos, o espaço para Matriz apontado (não fica claro se
estava concluída, provavelmente não) e uma olaria estava prevista ou já em
funcionamento. Neste documento é possível verificar a existência de ao menos vinte e
três residências demarcadas. No final do século XVIII, Lages era composta por oito
bairro: o “circunvizinho”, Restinga Seca, Tributos, Pedras Brancas, Caveiras, Lageado,
Taipas e Costa da Serra.
Figura 15 ‐ Mapa de Vacaria, Lages, Laguna e Santa Catarina (Final do XVIII)
$T$T$T
#
#
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S
Ú
SÚ
SVacaria
Lages
Laguna
Santa Catarina
São José
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
1:1021505
Vacaria, Lages, Lagunae Santa Catarina
- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
N
Fonte: BN. Mss. 005,04,035
132 PEREIRA, Cláudio Nunes, Genealogia Tropeira. Santa Catarina, Lages e Nordeste do Rio Grande do Sul.Séculos XVII, XVIII e XIX (2008), p. 68.
88
Através dos maços de população, podemos verificar o crescimento da
localidade: em 1783, é possível contar quase quatrocentos habitantes, 553 em 1790, 606
em 1803 e 618 em 1810, numa curva lenta mas ascendente.133 Pelos dados do maço
populacional de 1798, podemos ver que a economia da localidade estava alicerçada em
três elementos: uma modesta agricultura, uma ainda mais modesta pecuária (na
comparação com as unidades produtivas do Continente do Rio Grande) e o comércio.
A cultura do milho, do feijão e do trigo eram as mais expressivas, nesta
ordem. A maior parte da produção, ao menos é o que diz a fonte, estava destinada ao
consumo familiar, com safras que variavam entre cinco e duzentos alqueires de milho,
por exemplo. Da produção destinada à venda, contabilizei apenas 205 alqueires de
milho, procedentes de cinco produtores, além de 43 de feijão e 12 de trigo, cujo destino
principal era provavelmente a própria aldeia.
A produção pecuária no ano de 1798 somou, entre bovinos, eqüinos,
muares, asininos e ovinos, quase três mil cabeças, com predomínio de eqüinos e
bovinos que representavam mais de 4/5 do total de bestas. As mulas contavam quase
trezentas peças e os burros e burras não passavam de dezessete. Parte destes animais era
exportada para Curitiba e/ou São Paulo. Em 1798, o número de animais vendidos para
fora da localidade foi de quatrocentos e vinte e cinco, bem distribuídos entre bois,
cavalos e mulas.
Em 1803 os negócios foram um pouco melhores. Temos os dados
contabilizados incluídos no próprio maço populacional. Foram exportadas 250 mulas,
300 potros, 500 bois e 102 couros, que geraram um receita de 1:632$640, considerando
todos os produtos vendidos para fora da localidade. Para este mesmo ano tempos
informação sobre os produtos importados de outras capitanias, e que chegavam à Lages
através da Marina de Laguna, distante 170 km de Lages: 16 barris de aguardente, 7
arrobas de açúcar e 50 alqueires de sal, além dos 50 rolos de algodão vindos de São
Paulo. No total, um débito de 534$000, com uma balança favorável para o pequeno
povoado.
133 AESP. Listas Nominativas de Lages.
89
Os produtos adquiridos na Laguna eram vendidos por alguns poucos
comerciantes. Os rolos de algodão, o sal e o açúcar podiam ser adquiridos no negócio de
Bernardino da Costa, que além de Guarda-mor, era o contratador dos dízimos da Vila.
Quem quisesse cachaça poderia procurar o secos e molhados de Vicente Rodrigues do
Azevedo, ou de Miguel Brando. Azevedo alegou ter ganhado 10$000 ao longo daquele
ano, enquanto Brando, que também era inspetor do Registro das Canoas, havia faturado
150$000.
O Capitão-mor Bento do Amaral Gurgel estava entre os maiores produtores
com 200 alqueires de milho, 40 de feijão e 18 de trigo, além de ser o maior criador de
animais, com mais de quinhentas cabeças. No outro extremo, um grupo amplo, como
era de se esperar: um sujeito como José do Amaral foi considerado como sumamente
pobre na lista de 1798, ainda que possuísse uma escrava e tivesse uma produção anual
de 60 alqueires de milho, 15 de feijão e 12 de trigo. Talvez pesasse o fato de ter nove
filhos e seis agregados. Mas não era, certamente, o mais miserável, para o que
competiam muitos, como Ana, viúva de 32 anos, mãe de Joaquim, de 8 anos e Ana, de
3, que viviam de esmolas dada sua suma pobreza.
A população escrava oscilou ao redor de 20% ao longo de todo o período.
Todavia, dos vinte e oito proprietários de 1790, onze tinham apenas um cativo e sete
tinham dois. Do outro lado, quatro senhores possuíam metade de todos os cativos. No
censo de 1798, a concentração era ainda maior: dos trinta proprietários de escravos,
apenas um senhor possuía quase a metade deles, e os cinco maiores detinham mais de
60%. Dentre estes estava Bárbara Maria, que adquiriu todos os seus sete cativos após a
morte de seu esposo, Angelo de Farias, e o Capitão-mor Amaral Gurgel, que nunca
aparece como maior senhor, ainda que possuísse sempre plantéis numerosos, na
comparação com seus pares locais. Fora desta elite senhorial, estava um sujeito como
José Damasceno de Córdoba, conhecido músico compositor de valsas, que possuía
quatro escravas. Damasceno é, inclusive, incluído entre os grandes músicos brasileiros
do barroco. Contudo, esta concentração de escravos não se manifestava no aumento do
90
número de cativos na área: a população escrava tenderia a se manter, em cada vez
menos mãos, enquanto a população livre tenderia a crescer.134
O mesmo Bernardino da Costa que vendia em seu secos e molhados fazia
negócios com animais. Ele devia aproximadamente 800$000 em impostos de suas
tropas no Registro de Curitiba, em 1798.135 Não fica claro se eram bestas produzidas
por ele ou apenas negociadas. De qualquer forma, não encontrei nos maços
populacionais registros de produções deste negociante. Foi um dos poucos que
encontrei em fontes diversas dos maços populacionais de Lages. Estas fontes, contudo,
apresentam outros tropeiros, tais como Francisco Simões e Francisco José de Santana,
que viviam de seu negócio de conduzir tropas, além de Jeronimo de Paes, do Bairro da
Restinga, e Severino Alves, do Bairro dos Tributos, que além de plantarem para seu
sustento, conduziam igualmente animais para Curitiba. Da mesma forma, Manuel
Gonçalves contava com a ajuda de seu agregado Pedro José de Arruda, que na ocasião
do censo de 1803 estava ausente para o sul. Neste mesmo censo, encontrei três ausentes
para Curitiba, quatro para o Viamão e cinco para o sul, sem que ficasse claro que iam
em tropas. E todos eles, Francisco, Jeronimo, Severino, Manuel e Pedro, assim como a
maioria dos ausentes, viviam entre os mais empobrecidos das Lages, sem dispor de
animais e com pequenas lavouras onde a mão escrava não chegava.
Já temos outros elementos para nosso cenário. À margem da estrada das
tropas, havia uma “micro-economia” local que tratava de aproveitar os negócios da rota
de escoamento dos animais do sul. E não estou falando da pequena produção pecuária
de Lages que seguia na mesma artéria até São Paulo, mas de um punhado de pastores,
condutores de animais e pequenos negociantes que encontravam alternativas de
sobrevivência naquela rota, em paralelo à pequena lavoura. Havia também fazendas de
criação de bom porte, com grande número de escravos, como a Fazenda Morro Agudo,
a Pedras Brancas e a São Luis, onde o proprietário, Joaquim José Pereira, criava um
bom número de animais para exportação. Da mesma forma, a Fazenda do Araújo, do
negociante do Rio de Janeiro Manuel de Araújo (Gomes) visava uma larga produção
para o abastecimento do mercado paulista.
134 PIAZZA, Walter, "A Escravidão numa área de pastoreio: os "Campos" de Lages," Estudos Ibero-Americanos XVI, no. 1,2 (1990). 135 BN-II-35,25,03-024
91
Em Lages havia outro posto fiscal, conhecido como Registro do Rio das
Canoas. Ele fora arrematado em 1783 pelo Capitão Manuel Antonio de Araújo, morador
em São Paulo, que arrematou conjuntamente os Meios Direitos de Curitiba. Em 1786, o
contrato passou para as mãos do Capitão-mor daquela Vila, Manuel de Oliveira Cardoso
e de seu sócio, o Tenente Coronel Paulino Aires de Aguirre, que igualmente tomaram os
Meios Direitos de Curitiba. Era mais uma forma de inserção de Lages em um contexto
maior, onde a Vila de São Paulo tinha grande destaque, juntamente com Sorocaba, e
toda esta economia estava voltada para o comércio de animais.136
Voltemos à rota, desta vez no caminho de Curitiba. Mas antes de chegar a
Lapa, precisamos passar por um dos pontos mais duros do caminho. Como já disse, a
rota não era uma via de qualidade, larga ou bem conservada. Era uma picada estreita e
irregular, como a grande maioria dos caminhos coloniais.137 Isso não significa que fosse
homogeneamente ruim – havido trechos piores que outros. Em março de 1806, o
governador de São Paulo, Antonio José da Franca e Horta escreveu ao Visconde de
Anadia, então Secretário de Estado e Ultramar, falando sobre um projeto para beneficiar
30 léguas de caminho do sertão que há na estrada que segue desta capitania para o Rio
Grande. Segundo ele, sob seu governo, os caminhos para Santos, Itu e o Rio de Janeiro
estavam em boas condições, porém
Não acontece assim com a estrada que há desta capitania para o continente do Rio Grande, estrada tão interessante ao público como a Sua Alteza Real, pois basta dizer-se que por ela passam anualmente tantos mil animais vacuns, mulares e cavalares [...] Nesta estrada que só da Vila de Curitiba até a Serra de Viamão se contam 160 léguas de maus caminhos há sobretudo um sertão de matos gerais que pouco excede 30 léguas situado entre a Freguesia de Santo Antonio da Lapa e a Vila das Lages na extrema desta capitania, em cujo sertão pelos maus passos que tem e passagens de rios se calcula morrerem todos os anos a metade dos animais que nele entram138
Certamente o governador exagerava um tanto em sua argumentação. Não
encontramos referências que confirmem tamanha mortandade, apesar das notícias de
dificuldades dos tropeiros serem freqüentes nos Registros de Curitiba e Sorocaba. De
qualquer modo, havia a noção de que Lages estava separada de Curitiba por um penoso
sertão, como sugere Manuel José Correia da Cunha, Inspetor de Curitiba, em 17XX, ao
136 AHU. SPMG. 3136; 1COAPOA-07-084; JACOBUS, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial." 137 HOLANDA, Caminhos e Fronteiras. 138 AHU-SP (avulsos). Doc. 1232.
92
falar de uma tropa do Capitão Cesar: O Capitão César já saiu do sertão ainda não
passou nem veio a este Registro esta com a tropa pestiada e com algum prejuizo de
mortandade e me vendo com ele hei de fazer tudo quanto puder a benefício da Casa.139
Da mesma forma, Antonio Francisco de Aguiar, de Sorocaba, falava das dificuldades de
algumas tropas, em 1801, parte delas pelo prejuizo que tiveram no sertão por
ameaçados de não chegar para os direitos.140 Era um périplo necessário para se atingir
o Arquipélago Curitiba, que começava na Lapa.
A Lapa, o Registro, Curitiba e Castro
Santo Antonio da Lapa tornou-se freguesia em junho de 1769, mas sua
povoação, ainda que discreta, data de finais do século XVII.141 No início da década de
1780, a população da Lapa estava próxima de mil moradores, oscilando levemente ao
crescimento ao longo dos anos seguintes:
Tabela 3 – População da Freguesia da Lapa (1781‐1809)
População escrava População Livre Total Ano # % # % #
1781 88 8,87 904 91,13 992 1782 134 12,77 915 87,23 1049 1785 168 14,61 982 85,39 1150 1790 201 16,09 1048 83,91 1249 1792 173 13,94 1068 86,06 1241 1796 200 15,86 1061 84,14 1261 1797 217 15,66 1169 84,34 1386 1807 192 12,67 1323 87,33 1515 1809 274 19,31 1145 80,69 1419
Fonte: Dados obtidos a partir dos maços populacionais da Lapa. ACERVO do CEDOPE/UFPR. Originais disponíveis no AESP. Para crédito das transcrições, ver item FONTES.
139 BN-II-35,25,03-002 140 BN-II-35,25,25-27-070 141 LOPES, José Carlos Veiga, Aconteceu nos pinhais. Subsídios para as histórias dos municípios do Paraná tradicional do Planalto (Curitiba: Editora Progressiva, 2007).
93
A localidade registra um lento crescimento, em paralelo ao gradual aumento
do número de escravos. E até onde se sabe, este tímido crescimento estava diretamente
relacionado ao negócio dos animais. A lista de moradores de 1798 apresenta um cenário
complexo, no qual o trato dos animais tem destaque.142 Quase a metade dos fogos da
Lapa estava envolvida na atividade de comércio de animais, especialmente com a
condução de tropas. Outra parcela importante estava organizada em torno à produção de
alimentos, para o mercado ou subsistência, além da criação de animais, ofícios diversos
e daqueles que diziam viver de esmolas. Um cenário em diversos pontos, semelhante ao
encontrado em Lages, baseado na pequena lavoura, no pequeno pastoreio e no comércio
de animais.
Os principais gêneros agrícolas produzidos na Lapa, em 1798, eram o trigo,
a farinha de trigo, o milho e o feijão. A produção pecuária tinha como principais
mercadorias os gados bovino, eqüino e suíno, produzidos em pequenas quantidades (ao
todo, 177 cabeças de todas as espécies em 1798) tendo Sorocaba como destino
preferencial. Tanto a lavoura como a criação não eram expressivas a ponto de tornar a
Lapa um “celeiro” regional ou rebanho importante. Os pastos de invernada e os
negócios com animais eram as atividades mais rentáveis e socialmente importantes na
localidade.
O abastecimento era feito principalmente através de Paranaguá, por onde
entravam cachaça, fumo, sal e vinho. Algodão vinha de Sorocaba, geralmente
transportado por José Maria Pereira, que disso vivia. Tais mercadorias eram negociadas
nas poucas casas de negócio que havia na localidade, dentre as quais a do Capitão de
Ordenança (em Santos) Salvador Gomes Ferreira, que também criava animais, ou
aquela de João Ferreira da Rosa, que também atuava como carpinteiro. O algodão podia
ser encontrado para venda no negócio do Alferes Joaquim Vicente, onde o pardo José
da Costa Colaço fazia as vezes de caixeiro, enquanto não cuidava de sua pequena
lavoura. Quem só quisesse fumo ou cachaça podia procurar o mulato Salvador
Rodrigues, onde a medida da aguardente podia sair 560 réis, geralmente o preço 142 Tal fonte foi examinada por Maria Luiza Andreazza em diversos trabalhos: ANDREAZZA, Maria Luiza, Olhares para a Ordem Social na Freguesia de Santo Antônio da Lapa (1763-1798). XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. 11/2002 2002; ANDREAZZA, Maria Luiza, "Casamento, solidariedade e compaixão. Nota prévia a um estudo das relações familiares de povoadores dos sertões de Curitiba: suas origens, seus arranjos familiares, suas relações com a organização administrativa e fundiária da região e do comportamento das gerações que os sucederam. (séculos XVII e XVIII)," (s/d).
94
cobrado nas outras vendas. Para outros serviços, a freguesia contava com cinco
carpinteiros, dois sapateiros e um alfaiate.143
Em 1807 as coisas não mudaram muito. A localidade agora conta com um
ferreiro e um fabricante de telhas, mas dois terço do total de fogos ainda incluía, entre
suas atividades, a prática da agricultura. 2/5 dos fogos se aplicava unicamente à lavoura,
quase sempre de subsistência ou de pequeno porte, e outros 1/5 dos fogos contavam,
além das colheitas, com o salário de conduzir tropas. 7% se diziam se viver,
unicamente, do salário de condutor de tropas. A “matriz produtiva” local continuava
plenamente baseada na pequena lavoura e no comércio de animais.
Francisco Teixeira Coelho foi o capitão na Lapa durante mais de vinte anos,
sempre figurando como primeiro das listas nominativas e tornando-se Capitão-mor
quando da elevação da Freguesia à Vila, em 1806, neste mesmo ano, ele mesmo se
apresentou como quem Vive de comprar e vender tropas de animais vacuns, e cavalares
além dos que vende de sua fazenda.144 Ele consta na documentação da Casa Doada
como tendo conduzido duas tropas, ambas em 1803.145 Bernardo José Pinto também
teve uma breve aventura com duas tropas, uma em 1793 e outra no ano seguinte,
dedicando-se, ao longo dos anos posteriores, à sua lavoura e à criação de animais.146 Em
1807 ele se tornou alferes de Milícias da Lapa.147
Antonio Gonçalves da Silva é indicado como alguém que vivia de ir ao
continente de Viamão comprar gado e vender nesta Capitania. Ele aparece com duas
tropas, uma em 1800 e outra em 1806. Em 1805 ele levou, por gentileza, um ancorote
de manteiga a pedido do Inspetor do Registro de Curitiba, Manuel José Correia da
Cunha, ao tesoureiro da Casa Doada em São Paulo, Antonio Manuel Fernandes da
Silva. Como Antonio e Francisco, na Lapa havia outros tropeiros de porte que tratavam
animais de sua propriedade. Entretanto, a grande maioria que vivia deste trato o fazia na
condição de peão, atuando na condução das bestas.
143 Lista de Moradores da Lapa. 1798. CEDOPE. 144 Lista de Moradores da Lapa. 1806. CEDOPE. 145 BN-II-35,25,05 146 BN-II-35,25,05; Listas de Moradores da Lapa. CEDOPE. 147 AHU. SPMG. 4824
95
Figura 16 – Mapa de Curitiba, Castro, Lapa e Campos Gerais (Final do XVIII)
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Lapa
Rio de São Francisco
Guaratuba
Paranaguá
Curitiba Antonina
Castro
Apiai
Itapeva
Cananéia
Iguape
Conceição do Itanhaem
ItapetiningaSorocaba
São Paulo
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
1:1596102
Curitiba, Castro eCampos Gerais
- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
N
Fonte: BN. Mss. 005,04,035
Na lista nominativa de 1798 encontro 109 peões condutores, dos quais ¾,
além de exercer esta atividade, ainda mantinham pequenas lavouras para seu gasto e 1/5
deles era qualificado como mulato ou pardo. Eles pareciam pertencer à ponta oposta dos
negociantes de animais, quase sempre senhores de escravos e qualificados com títulos
militares, mas nem sempre. A elite local da Lapa estava longe de ter o mesmo brilho das
famílias da elite local de Curitiba e Sorocaba. Se observarmos as listas nominativas
desta localidade, entre 1780 e 1809, veremos que não haviam muitas honras militares
distribuídas entre seus moradores. Francisco Teixeira Coelho foi o único capitão que
encontrei até 1809.148 O mesmo acontecia com os postos de sargento, tenente, alferes e
furriel, quase sempre com um único representante.
Muito perto da Lapa fica o Registro de Curitiba, cerca de 15 km ao norte, ou
umas 3 léguas, como se media na época. Era uma unidade fiscal que, à semelhança dos
Registros de Viamão, Santa Vitória e Lages, cobrava um valor fixo sobre cada animal
que por ali passasse e tal quantia era paga a um arrematador que tinha pago à Coroa
148 Salvador Gomes Ferreira também era capitão e habitava na Lapa. Contudo, era Capitão de Ordenanças de Santos e com baixa. Neste caso, não o inclui nesta avaliação já que sua patente não era local.
96
pelo direito de cobrar este imposto. Mas Curitiba tinha uma diferença em relação aos
outros três: apenas a metade dos rendimentos era arrematada por um contratador, eram
os chamados meios direitos de Curitiba. Tal prática se estabeleceu desde o começo,
quando o Registro foi fundado. Ao finalizar a abertura do caminho das tropas, em 1733,
Cristóvão Pereira de Abreu pediu, como mercê, a metade do rendimento da unidade
arrecadadora, que então já existia. Quando da morte de Cristóvão Pereira, esta mercê foi
passada para o Conselheiro Ultramarino Tomé da Costa Corte Real, por seus serviços, o
que continuou até o final da existência do Registro.
Em 1780, o arrematador dos Meios Direitos de Curitiba era Manuel de
Araújo Gomes com seus sócios, os mesmos que administravam os direitos do Registro
de Viamão e Santa Vitória. Esta sociedade controlou a arrecadação destes impostos até
1786, quando o Tenente Coronel Paulino Aires de Aguirre e seu sócio, o Capitão-mor
Manuel de Oliveira Cardoso entraram no negócio. Não tenho certeza sobre até quando
estes oficiais controlaram aquele Registro, mas em 1793, tenho informações de que
quem assumiu o controle foi a sociedade formada por José Vaz de Carvalho, José de
Andrade e Vasconcelos e Francisco José de Sampaio. Tal sociedade ficaria com os
meios direitos até 1808, principiando em 1806, para quando encontrei o último registro
de sua arrematação. A mesma sociedade, comandada por José Vaz de Carvalho,
também controlava a passagem do Rio do Registro de Curitiba e o rendimento que
pagam os animais do Registro de Sorocaba, isso em meados da década de 1790. Vale
ressaltar que Vaz de Carvalho e Aires de Aguirre eram sócios em diversos outros
negócios, desde ao menos 1786, particularmente, controlando os Dízimos da
Capitania.149
A outra metade dos rendimentos de Curitiba era dada como mercê. Até
1759, era Cristóvão Pereira de Abreu quem recolhia este tributo. Em maio de 1760
Tomé Joaquim da Costa Corte Real passava a receber estes valores.150 Era o início de
uma nova administração. Em 1794 a Rainha indagava diretamente sobre a observância
dos pagamentos dos meios direitos à Casa Doada. Segundo a resposta dada pela Junta
da Fazenda de São Paulo, aquela mercê tivera
149 AHU. SPMG. 3479; AHU. SPMG. 3136 150 Arquivo Nacional. Cód. 448. Vol. 05. pg. 054.
97
sua indefectível observância em todo o tempo que se arrecadaram por parte da Real Fazenda aqueles meios direitos pertencentes ao Donatário entregando-se-lhe a respectiva metade. E depois que este mandou fazer a sobredita arrecadação separada da outra metade, pertencente a Real Fazenda que uns anos se administra outros se arremata; tem os seus procuradores e administradores cobrado e arrecadado executivamente o dito rendimento com os mesmos privilégios com que se cobra a outra metade rematada ou administrada por conta da Real Fazenda.151
Até o momento não encontrei documentação referente ao período entre
1760 e 1780 que diga respeito aos meios direitos da Casa Doada. Como indica o trecho
acima mencionado, nos primeiros anos desta mercê o donatário, Corte Real, recebia a
metade do que era nominalmente arrecadado, seja pela Coroa, seja por arrematadores.
Em algum momento o doado decidiu inspecionar e cobrar esta arrecadação, ainda que
eu tenha conseguido saber o momento exato em que isso ocorre.
Em 1783, o inspetor da Casa Doada em Sorocaba era Paulino Aires de
Aguirre, membro de uma importante família local. O Capitão-Mor de São Paulo,
Manuel de Oliveira Cardoso, era o procurador de Tomé Joaquim da Costa Corte Real
em São Paulo e seu tesoureiro e, em Curitiba, trabalhava como inspetor Francisco de
Paula Teixeira, sobrinho de Oliveira Cardoso. Francisco apontava as dívidas que
deveriam ser pagas em Sorocaba, à Paulino Aires, que deveria enviar os recursos à São
Paulo, na pessoa de Oliveira Cardoso.152
Em meados da década de 1790 o grupo responsável pela cobrança da
metade dos direitos da Casa Doada muda. Antonio Manuel Fernandes da Silva assume
o cargo de tesoureiro, em São Paulo, Manuel José Correia da Cunha ingressa no
Registro de Curitiba, Antonio Francisco de Aguiar assume em Sorocaba e Luis Pereira
Machado atua como procurador de Tomé Joaquim da Costa Corte Real em Santos.
Tanto Antonio Manuel como Luis Pereira já trabalhavam para Corte Real pelo menos
desde o início dos anos 1790 mas, ao que tudo indica, assumem a cobrança dos meios
direitos apenas em 1795.153 Este grupo vai permanecer na arrecadação do doado até a
extinção desta cobrança, que se dá oficialmente em 1808. Contudo, as dívidas pretéritas
seguiriam sendo cobradas até os primeiros anos da década de 1810.154
151 Arquivo Nacional. Cód. 448. Vol. 05. pg. 054. 152 BN. Documentos da Casa Doada. 153 BN. Documentos da Casa Doada. 154 BN. Documentos da Casa Doada. As ordens da Real Fazenda para o encerramento das cobrança da Casa Doada por ser encontrada em Arquivo Nacional. Códice 469. Vol. 04.
98
Tanto os arrematadores da cobrança dos meios direitos, quanto a Casa
Doada, mantinham funcionários trabalhando no Registro de Curitiba. Os
administradores do contrato dos meios direitos poderiam dispor, ainda, de uma loja de
fazendas para assistência aos tropeiros. Tal estabelecimento foi previsto no contrato de
arrematação, provavelmente pela primeira vez, em 1793, quando além de estar prevista
a existência de uma loja dos contratadores, foi decidido que não poderia haver outra na
linha de cinco léguas por qualquer dos lados, pouco mais de 27 km. Tal determinação
provocou conflitos com a população da Lapa e do povoado da Capela do Tamanduá,
que ficavam dentro deste limite.155 A pressão local surtiu efeito, contraria à vontade dos
administradores do Registro e posteriormente o alcance da proibição foi reduzido a uma
légua, já que, como dizia um encarregado da Real Fazenda, avaliando o contrato, em
1805...
havendo mais lojas especialmente em Santo Antonio da Lapa cujos donos com o interesse de vender a fazenda quererão [sic] também fazer as assistências, ficam os tropeiros com liberdade de escolha, e livres daqueles males que podem resultar de um privilégio exclusivo que é como um monopólio. Ao menos não teram motivos para clamar contra os contratadores e fazer odioso o nome da Fazenda Real.156
Não encontrei dados sobre os negócios feitos na loja do Registro, por parte
dos administradores do contrato. Entretanto, há alguma dúvida sobre quem exatamente
estaria utilizando a possibilidade de manter uma loja, se os contratadores ou os
procuradores da Casa Doada. Há documentos onde Manuel de Oliveira Cardoso afirma
ser o maior interessado, junto com Francisco de Paula Teixeira, na manutenção de uma
loja no Registro.157 E talvez isso seja correto para este período da administração da
Casa Doada. Para a administração Manuel José Correia da Cunha, em Curitiba, não
encontrei nenhum indício de qualquer forma de comércio varejista desempenhada por
ele nas mais de setenta cartas de sua lavra. O que ele nos conta, e com freqüência, é dos
queijos e manteiga que fabricava ali mesmo, na cozinha do Registro.
Talvez pela preocupação de Manuel José com os queijos tenha investido
4$000 na reforma do telhado da casa e, nesta ocasião, nos conta que havia uma casa de
madeira para a Casa Doada e outra para a administração do contrato, vizinhas e vítimas
155 LOPES, Aconteceu nos pinhais. Subsídios para as histórias dos municípios do Paraná tradicional do Planalto. 156 Arquivo Nacional. Códice 474. Volume 02. pg. 100. 157 Documentos citados por LOPES, Aconteceu nos pinhais. Subsídios para as histórias dos municípios do Paraná tradicional do Planalto.
99
dos fortes ventos que com freqüência destelhavam as edificações, para pavor de
Manuel.158 Mais tarde, em 1810, encontramos nosso inspetor empenhado na reforma da
senzala de seus escravos. Ele estava disposto a cobri-la de telha, se o rendimento da
extinta Casa Doada bancasse, caso contrário, faria com palha, pois a madeira já
possuía.159 Mas entre escravos e coronéis, Manuel José ia tratando dos negócios das
tropas, que se concentravam entre a primavera e o fim do verão, época em que também
se ocupava de suas manteigas e queijos, 160 provavelmente pelo aumento da quantidade
de leite produzido pelas vacas. A primavera trazia novo alento para a economia local.
E já que Manuel José tocou no assunto, convém falar um pouco da
intempérie que os tropeiros enfrentavam. Os ventos que destelhavam a casa Doada não
os atingiam sempre. Só consegui encontrar a data exata da passagem de apenas 56
tropas, mas considero relevante analisar estes dados. A grande maioria das tropas, cerca
de 70%, passou na primavera e no verão. Apenas 7% no outono. Mas no rigoroso
inverno, de ventos fortes, chuvas contínuas e frio, 21% das tropas estavam em Curitiba.
Importa, contudo, salientar que a maioria destas passou em setembro, quando já se
encerravam os rigores do inverno.161
A correspondência produzida por Manuel José, Antonio Francisco de
Aguiar e Antonio Manuel Fernandes da Silva, da administração da Casa Doada, indica
duas estações claras: verão e inverno. O verão era o tempo da chegada das tropas e isso
começava em setembro, talvez fins de agosto. O inverno é o tempo que Manuel José
menos escreve cartas (sendo menos prolixo também) e é o tempo do desengano dos
tropeiros que se atrasaram e precisam vender a tropa com preços inferiores162. Este
período foi consagrado no mundo dos tropeiros com a expressão invernada, momento
da tropa parar e evitar a mortandade dos animais, como aconteceu em meados de 1796,
conforme Antonio Francisco de Aguiar escreveu em janeiro do ano seguinte.163 Sabe-se
ainda que no verão de 1805 e 1807 houve muita chuva. As precipitações complicava a
vida do tropeiro de várias formas mas duas são mais salientes: o aumento de volume de
158 BN-II-35,25,17-022 159 BN-II-35,25,17-043 160 As referências aos queijos e manteigas são quase sempre entre setembro e dezembro, sendo novembro o mês em que ele geralmente informa ter terminado sua produção. 161 Documentos da Casa Doada. BN-II-35,25,25-27; BN-II-35,25,03; BN-II-35,25,17. 162 BN-II-35,25,17-009 163 BN-II-35,25,25-27-032
100
água dos rios,164 que muitos precisavam ser cruzados e quase não havia pontes, e a piora
nas condições de tráfego na “estrada” das tropas, o que era agravado pela topografia do
percurso onde as serras eram abundantes. Em um roteiro de viagem pelo caminho das
tropas de 1745, havia a referência à consertos de barrancos, necessários para a
continuidade da viagem.165
Voltemos ao caminho. Precisamos chegar na Capela do Tamanduá, que fica
uns 10 km do Registro, umas duas léguas, como se media. Foi ali que Manuel José
participou da festa de São João, em 1798, onde se encontrou com o antigo inspetor,
Francisco de Paula Teixeira.166 Era uma localidade muito pequena, pertencente à
Curitiba, tal como a Lapa seria até 1806, que tinha cerca de 80 habitantes em 1790,
chegando a 200 em 1795, graças ao aumento da população livre mas, também, ao
aumento do número de escravos e de uns 22 administrados índios que ainda eram
utilizados como força de trabalho naquela região, tal como em Lages.
Mesmo com tão poucos moradores, o pequeno lugarejo tinha três capitães
que ali habitavam ou, ao menos, tinham propriedades em 1795: Francisco de Paula
Teixeira, José dos Santos Rosa e José Francisco Cardoso, os dois primeiros certamente
envolvidos no mundo das tropas.167 Veríssimo José Gomes, tenente, igualmente se
conduziu tropas suas em 1809.168 Com exceção destes capitães e tenente, que possuíam
mais de cinco escravos, havia alguns pequenos senhores com plantéis entre um e cinco
cativos, além de um número razoável de fogos chefiados por forros, sem cativos,
morando em casas que incluíam os filhos e os netos sob o mesmo teto.
Da Capela do Tamanduá vamos seguindo pelo caminho, passando próximo
às Fazendas Butuquara, Porcos de Cima e Porcos de Baixo. Poderíamos ter feito como
alguns tropeiros e evitado o Registro de Curitiba utilizando passos e picadas diversas e
atravessando fazendas, tudo para evitar o quinto. De fato, o valor de uma besta na Lapa
era de 6$000 e 1$250 ficariam naquele posto fiscal.169 Mas não nos demoremos mais
164 BN-II-35,25,17-029 165 JACOBUS, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial."pg. 76 166 BN-II-35,25,03-026. 167 Listas nominativas de Curitiba. 1790, 1791, 1792, 1793, 1795 e 1796. CEDOPE; BN-II-35,25,25-27-004. 168 BN-II-35,25,05. 169 Lista Nominativa de 1798. Lapa. CEDOPE.
101
aqui. Já cruzamos o paralelo de Curitiba, mas estamos no território da Vila, ainda que o
núcleo urbano diste uns 40 km do caminho. Curitiba foi fundada no final do século
XVII no contexto da exploração aurífera da região.170 Sua população no início da
década de 1780 era de aproximadamente 3800 moradores, descontados os habitantes da
Lapa, que era uma freguesia de Curitiba. Em 1795, a população havia crescido mais de
60%, com 5889 moradores.171 Em 1803, a Vila com suas freguesias (Lapa e São José)
contavam com 11334 habitantes que, ainda que distribuídos por um grande território,
formavam um contingente populacional significativo para os padrões da época na
América Lusa.
A estrutura social de Curitiba não sofre grandes alterações ao longo dos
últimos vinte anos do século XVIII. A população de cativos é sempre próxima a 1/5 do
total de habitantes e a população cresce de um modo equilibrado nas diversas áreas e
bairros da vila, com exceção da Capela do Tamanduá, que tem um crescimento mais
saliente, e do bairro dos Papagaios Novos, ambas as áreas de crescimento agrário, onde
há aumento constante no número de cativos. A área mais central da cidade,
proximidades da matriz, rocio e bairros circunvizinhos tendem a um aumento
populacional superior às demais áreas. Apesar da estabilidade deste cenário, observa-se
uma leve tendência ao empobrecimento da vila, pelo sensível aumento do número de
agregados que passa de 1,5% em 1782 para 2,6 em 1795, enquanto o percentual de
cativos passa de 21% para 19%. O número de administrados, provavelmente indígenas,
tende a se manter igual e números absolutos, mas diminui em números relativos.
A elite em Curitiba tende a se manter a mesma ao longo de todo o período.
Se observarmos os capitães referidos nas listas nominativas, percebemos que há grande
continuidade nesta listagem, com poucos acréscimos a cada década. Em 1782,
encabeçava a lista nominativa daquela Vila o Capitão-mor Lourenço Ribeiro de
Andrade,172 que se manteria nesta posição ao longo de todo o período, deixando o posto
para seu filho Antonio Ribeiro de Andrade em 1804. Ao tomar posse de seu novo cargo,
Andrade, que havia atuado como tropeiro, como vimos, prestou homenagem ao
governador tendo como testemunha outro tropeiro, o agora Coronel José Joaquim
170 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos, Vida material e econômica (Curitiba: SEED, 2001). 171 Listas Nominativas de Curitiba. CEDOPE. 172 Listas Nominativas de Curitiba. CEDOPE.
102
Mariano da Silva Cesar.173 Mas outras figuras tinham igualmente peso em Curitiba,
como Manuel Gonçalves Guimarães, arrematador de contratos174, tropeiro de muitas
viagens, capitão desde o início dos anos 1780, tenente coronel em 1798 e Coronel em
1809.175 Em 1804, quando Francisco Teixeira Coelho se torna Capitão de Ordenanças
da Lapa, é diante de Lourenço e Aguiar que ele presta juramento.176
Já percebemos a estabilidade que havia em Curitiba e seu total
envolvimento com o mundo das tropas de gado. Agora devemos seguir viagem,
tomando o caminho de Castro, onde faremos nova parada, não sem antes passar por
diversas fazendas à beira da estrada. Havia ao menos duas possibilidades de passagem
após o Registro passando pelo Tamanduá durante o período que estamos estudando.
Uma delas é o caminho que vai pelas fazendas São Luis, Butuquara, Porcos de Cima e
Porcos de Baixo, daí seguindo até chegar a Fazenda Maracanã, em Castro e daí para
Jaguariaíva. Este caminho parece ter sido o principal até o final do XVIII, cedendo
importância para outro, que fazia uma curva a partir do Tamanduá na direção da
Palmeira e de Ponta Grossa, passando por Carambeí e Castro até chegar, também, em
Jaguariaíva. Segundo Lopes, este caminho adquire importância a partir dos últimos anos
do século XVIII, tornando-se o principal no XIX.177
Castro tornou-se Vila em 1789178 e contava 2797 moradores em 1793, dos
quais aproximadamente 20% eram escravos e 5% eram agregados.179 Em 1803 a
população crescia 57%, atingindo os 4862 habitantes. Os bairros rurais mais povoados
eram, geralmente, os mais próximos do caminho que passava pela Palmeira e Ponta
Grossa: Fazenda São João, Carrapatos, Ponta Grossa, a própria área próxima da Matriz
e o Bairro do Lago. Talvez esta demografia explique, ou ajude a explicar, os motivos
que tornaram mais freqüentado este caminho a partir do final do XVIII. Talvez o fato de
que o capitão-mor de Castro habitar em Ponta Grossa, onde estava a maior escravaria,
também tivesse contribuído para tal modificação. Na lista nominativa de 1793 o
primeiro mencionado é o Reverendo Vigário José de Santa Teresa de Jesus, seguido do
capitão Inácio Taques de Almeida. A família Carneiro Lobo, umas das mais importantes 173 AHU. SPMG. 4170. 174 AHU. SPMG. 3479 175 BN-II-35,25,05 176 AHU. SPMG. 4307 177 LOPES, José Carlos Veiga, História da Fazenda Santa Rita (Curitiba: Edição do autor, 2005). 178 Ibid. 179 Lista nominativa de Castro, 1793. CEDOPE.
103
da localidade, estava no Bairro de Santo Antonio, o segundo mais populoso de cativos,
enquanto o alferes Luis Castanho de Araújo era encabeçava o Bairro do Lago.180 E esta
distribuição também deve ter sua parcela na mudança da rota, já que os Carneiro Lobo e
Luis Castanho de Araújo estavam profundamente envolvidos no negócio de animais.181
Os caminhos se afunilavam em Jaguariaíva, fazenda que em 1780 pertencia
a família Correia Penteado. Em 1795 a propriedade foi comprada por Luciano Carneiro
Lobo, onde passou a produzir animais. No inventário de sua esposa, em 1806, a
fazenda, na qual trabalhavam dezoito escravos, possuía mais de mil animais, dentre
estes, quase quinhentas éguas, sete burros, trinta potros e mais de seiscentas vacas, um
número muito expressivo para a região de Castro, que já despontava na produção
pecuária.182 Em 1825, ainda nas mãos dos Carneiro Lobo, a Fazenda Jaguariaíva estaria
entre as cinco maiores do Paraná, tanto em área e em cabeças de gado.183 Da Jaguariaíva
o caminho seguia por uma série de fazendas e chegava a Sorocaba.184 Não sem antes
passar por seu Registro.
Sorocaba
Nas últimas léguas do caminho está Itapetininga. Não nos demoremos muito
por aqui. Convém saber que tal localidade se destacava pela produção de animais,
realizada em grandes propriedades, boa parte delas, de grandes senhores de Sorocaba. O
próprio Capitão-mor de Itapetininga é um dos mais importantes homens daquela outra
praça, Salvador de Oliveira Leme, desde 1776185, posto que deverá ser passado para o
filho, Salvador de Oliveira Aires, em 1800.186 Ali também possuíam propriedades o
Capitão-mor de Sorocaba entre 1783 e 1800, Cláudio de Madureira Calheiros e seu
concunhado, o capitão-mor de Itu,187 Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, assim
como era morador, camarista e tabelião outro sócio de Calheiros, Francisco Marim
180 Lista nominativa de Castro, 1793. CEDOPE. 181 BN-35,25,05 182 LOPES, José Carlos Veiga, Primórdios das Fazendas de Jaguariaíva e Região (Curitiba: Edição do Autor, 2002). 183 GUTIÉRREZ, "Fazendas de gado no Paraná escravista." 184 JACOBUS, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial." 185 AHU. SPMG. 2794. 186 AHU. SPMG. 3823. 187 AHU. SPMG. 3094; BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX).
104
Machado.188 A povoação contava, em 1803, com mais de quatro mil moradores, a maior
parte envolvida nos negócios de tropas, de abastecimento dos tropeiros e nas faíscas de
ouro de Paranapanema, distrito da Vila.
Figura 17 – Mapa de Sorocaba, São Paulo e seu interior (Final do XVII)
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Apiai
Itapeva
Iguape
Conceição do Itanhaem
ItapetiningaSorocaba
São Paulo
Porto FelizItu
São Carlos
JundiaíAtibaia
Nova Bragança
Mogi Mirim
Mogi das Cruzes
Jacarei
São Vicente
Santos
São Sebastião
TaubatéPindamonhangaba
Guara
Parnaíba
São RoqueCotia
OCEANOCONTINENTEDRENAGEM (Rios e lagos)Caminhos
< Propriedades Agrárias$T POVOADOS (bairros)
Localidades (Pop. em 1800)# 1 - 1339# 1340 - 3400# 3401 - 5885# 5886 - 11334# 11335 - 24361
Localidades (Freguesia ou Vila)
Ú Freguesia
S Vila
1:1596102
Sorocaba e o interior daCapitania de São Paulo- final do século XVIII -
Oceano Atlântico
N
Fonte: BN. Mss. 005,04,035; AHU‐SP‐ Cx.23 ‐ Doc. 09
Pouco antes da Vila de Sorocaba está o Registro, que começou a funcionar
em 1750. 189 No início da década de 1780 ali atuava, como inspetor e recebedor dos
Novos Impostos190, Paulino Aires de Aguirre, importante personagem na comunidade
local,191 genro de Salvador de Oliveira Leme, que atuava no comércio da Vila de
Sorocaba desde os anos 1750, onde fazia negócios com fazenda seca.192 Paulino ocupou
188 AHU. SPMG. 3044. 189 ALMEIDA, Aluisio de, História de Sorocaba (Sorocaba: Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba, 1969). 190 Os chamados “Novos Impostos” foram criados para reconstrução de Lisboa, quando do terremoto de 1755, e deveriam valer por um período de dez anos. Passados os dez anos, foram renovados, desta vez para financiar as tropas auxiliares da Capitania de São Paulo. AHU. SPMG. 2916 191 AHU. SPMG. 2916. Sobre a importância de Paulino, ver BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 192 Ibid.
105
este posto até 1783193 e não sei quem o assumiu depois. Em 1788 o posto era ocupado
por Bernardo José Vieira Bessa, seguido por Manuel da Costa Cardoso e, em 1795,
Antonio Francisco de Aguiar, genro de Paulino Aires de Aguirre, que permaneceria ali
até a extinção. É a partir de Antonio Francisco que se temos fontes mais regulares e
ricas para a análise desta unidade fiscal.
Aguiar era, mais que inspetor do Registro, administrador de todos os
contratos das rendas Reais, como mencionou a Câmara de Sorocaba em 1798.194 Mas
cabia a ele administrar o Registro e, juntamente com Manuel José, em Curitiba, e
Antonio Manuel Fernandes da Silva, em São Paulo, fazer as cobranças para a Casa
Doada. A cobrança dos direitos do Registro de Sorocaba, diferentemente do que era
praticado em Curitiba, era uma prerrogativa da Câmara de Vereadores, que se
encarregava da administração indicando o funcionário.195 Até o início da década de
1780, tal tarefa não era remunerada, ainda que Paulino Aires de Aguirre tenha pedido
remuneração por seus serviços, o que não sabemos se foi deferido pela Junta da Real
Fazenda.196 Entretanto, Antonio Francisco de Aguiar recebia um pagamento regular por
parte da Casa Doada, que, no seu ponto de vista, nunca era suficiente.197
Ao longo do período entre 1795 e 1811, ele escreveu mais de cem cartas
tendo como objeto a administração da Casa Doada.198 Estava entre suas funções cobrar
os tropeiros ou exigir fiança, no caso de promessa futura de pagamento, e depois enviar
os valores para São Paulo, muitas vezes em barras de ouro e prata e moeda sonante.
Para fazer o envio destes valores contava com a ajuda de pessoas de sua confiança que
iam para São Paulo a outros interesses e que aceitavam conduzir tais quantias, já que o
sistema de cobrança não dispunha de mensageiros ou próprios. Esta correspondência
apresenta o cotidiano do trabalho de inspeção das tropas, de forma como os tropeiros
podiam negociar e de suas dificuldades. Por isso sei das dificuldades que tiveram os
tropeiros no inverno de 1796, da falta de sal e de pastos que havia para o costeio das
tropas. Uma nova crise surgiu em 1801, quando havia falta de compradores e houve
uma grande oferta, o que causou uma carência de pastos, enquanto os tropeiros
193 BN-II-35,25,67 194 AHU. SPMG. 3946 195 AHU. SPMG. 2916 196 AHU. SPMG. 2916 197 BN-II-35,25,25-27 198 BN-II-35,25,25-27
106
aguardavam a venda, fenômeno que se estendeu até o ano seguinte, mas só teve fim
após 1805.
As primeiras tropas de animais chegavam à Sorocaba em novembro e
seguiam no ritmo até o mês de maio, quase sempre um mês, pouco mais, após sua
passagem por Curitiba. Estimo que o número de tropas que chegavam por ano variou
entre 10 e 80, ao longo do período que vai de 1780 a 1810. A distribuição deste número
de tropas, ao longo dos meses preferenciais para a chegada das tropas, de dezembro a
março, dilui um pouco uma imagem corrente na historiografia da grandiosa feira de
animais que se armava na pequena Sorocaba. 199 Tal imagem, me parece, talvez faça
sentido para o alto século XIX, quando o volume de animais e de tropas parece
aumentar consideravelmente.200 Em dezembro de 1796, Antonio Francisco de Aguiar
nos deixou alguma pista de como se faziam os negócios na feira de Sorocaba:
será louvável facilitar com a segurança devida por ameaçar infalível prejuízo do nosso Doado pelas muitas tropas que aqui se amontoam sem pastos e sem compradores e parte delas pelo prejuizo que tiveram no sertão por ameaçados de não chegar para os direitos201
Chegados em Sorocaba, os tropeiros deveriam tentar vender rapidamente
seus animais, já que sua manutenção diária implicava gastos que comprometiam o
negócio. Mas o tempo da venda não era medido em horas, mas em dias. Era preciso
encontrar um campo de pasto, onde os animais pudessem permanecer até a venda. Em
diversas épocas, como vimos acima, os negócios não foram bons, pela oferta abundante,
pela falta de sal e de pastos. Em 1807, o guarda-mor de Araçariguama, Rodrigo Pedroso
de Barros, teve prejuízos com seus cavalos e bestas magros pela falta de pastos.202 Os
negócios se organizavam nos campos próximos ao núcleo mais arruado, mas
preferencialmente onde havia pastos. A feira ia ocorrendo assim, ao longo de toda a
Vila de Sorocaba.
199 De Aluísio de Almeida à Carlos Bacellar, passando até por Fernand Braudel. Ver: BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX); ALMEIDA, História de Sorocaba; BRAUDEL, Fernand, As Estruturas do Cotidiano: Civilização material, economia e capitalismo (São Paulo: Martins Fontes, 1995). Almeida é o único que matiza o número de tropas, estimando uma média de 30 por ano, número bastante razoável e de grandeza semelhante à que proponho. 200 PETRONE, Maria Thereza Schorer, O Barão de Iguape: um empresário da época da Independência (São Paulo: Ed. Nacional, 1976); WESTPHALEN, Cecília Maria, O Barão dos Campos Gerais e o Comércio de Tropas (Curitiba: CD Editora, 1995). 201 BN-II-35,25,25-27 202 BN-II-35,25,25-27-100
107
A população de Sorocaba em 1780 era de 6815 habitantes, chegando a 9576
em 1810, num crescimento constante com pequenas oscilações e com uma população
escrava ali variou entre 16,2% e 25,8% ao longo de todo este período, tendendo a
acompanhar o crescimento total da população.203 Com a lista nominativa de 1790204
podemos verificar a distribuição espacial dos habitantes. Neste censo, 6864 habitantes,
dos quais 1208 (17,6%) eram escravos e 5257 (76,6%) livres, além de um contingente
de 399 (5,8) agregados. Os bairros mais populosos eram os do Iperó, do Pirajibu e a
parte central, mais urbana e mais próxima da matriz. Estes fragmentos eram habitados
por 60% da população total, bem distribuída entre livres, escravos e agregados.
Na matriz205 fica o maior número de escravos, 400, que representava 1/3 do
total de cativos. Ali também estavam os maiores senhores: dos trinta maiores planteis de
toda a vila (que detinham a metade do total de cativos), 11 estavam na matriz. Os
demais grandes senhores (os trinta que possuíam mais de nove cativos) estavam
distribuídos entre os demais bairros ou zonas: havia 6 no Pirajibu, 3 “Rio Acima”, 3 em
Bacaetava, 2 no Iperó, 2 no Campo Largo, 1 no Itapevu, 1 no Capotera e 1 em
Bossoroca. E no Campo Largo, no Iperó, em Pirajibu e na matriz, os grandes senhores
correspondiam àqueles homens com maior patente sócio-militar, geralmente aqueles
que encabeçavam as listas nominativas. Tal é o caso, na matriz, de Cláudio de
Madureira Calheiros, dono do maior plantel e Capitão-mor, no Bairro do Parajibu, do
Capitão Manuel Álvares de Castro, e no Iperó, do Capitão João Pires de Almeida
Taques. Estes dados me remetem à idéia de que as elites de Sorocaba estavam
geograficamente distribuídas no espaço da vila, de modo que cada bairro tinha uma
liderança própria e sua hierarquia local, mesmo que inferior na comparação com os
capitães da matriz. Mesmo a localidade de Itapetininga, próxima de Sorocaba, tinha
como Capitão-mor Salvador de Oliveira Leme, membro de um importante clã
sorocabano, com propriedades na Vila.206
Mesmo a matriz tinha uma elite heterogênea. Em 1780, o capitão-mor era
José de Almeida Leme, que falecera em dezembro daquele ano. Sua sucessão foi um
203 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 204 AESP. Lista Nominativa de Sorocaba de 1790. 205 Utilizo a expressão matriz para designar a parte central da Vila, no núcleo mais urbano. Não se trata de uma designação encontrada na fonte. Bacellar encontra a expressão “vila” para designar o mesmo espaço. BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 206 Ibid.
108
pouco lenta. Em 30 de janeiro de 1782, após um ano de indefinição, a Câmara voltou a
carga exigindo a presença do corregedor da Comarca para presidir a nomeação de três
homens dentre os quais sairia o novo comandante. Justificavam os vereadores urgência,
pois:
...esta vila é a mais importante desta capitania; pois por ela passam as tropas que vêm [do Rio Grande] de São Pedro do Sul, os ouros que pagam os quintos a Vossa Majestade, vindos das minas de Apiaí e Paranapanema e as boiadas e potradas dos sertões de Curitiba [...] e por causa deste comércio há muitos ajuntamentos de homens da maior parte desta capitania, e fora dela, e por isso esta, mais que nenhuma outra, precisava de capitão-mor...207
Mas não era tudo. Aqueles mesmos vereadores temiam algo pior do que os
ajuntamentos e possíveis desordens de forasteiros. A preocupação tinha endereço certo:
Se acha esta vila em contínua desordem por miscelâneas e orgulhos do Tenente Coronel Auxiliar da Cavalaria Ligeira Paulino Aires de Aguirre, e seu sogro Salvador de Oliveira Leme, pretendente e interessante ao dito posto, sendo este um sujeito totalmente insuficiente para o exercer tanto pela sua qualidade por ser de baixa esfera e ter exercido nesta vila por si, e seus antepassados, anos bastantes, ofício de taberneiro público, como pela sua capacidade por ser de gênio orgulhoso e intrigante, e ter saído por vezes criminoso de vários crimes...
Assinavam o documento o juiz João de Almeida Pedroso, os vereadores
José Pires de Arruda, Felix Mendes da Silva, Joaquim José de Almeida e o escrivão da
Câmara Gonçalo Leite de Sampaio. Paulino não se tornou Capitão-mor de Sorocaba.
Salvador era Capitão-mor de Itapetininga, vila vizinha, desde 1776. É certo que a
Câmara de Sorocaba era mais prestigiosa e certamente os vereadores tinham razão em
argumentar pela importância daquela localidade. Na disputa entre grupos, venceu a
parcialidade de Cláudio de Madureira Calheiros, que assumiu o posto em 1783.
Não tenho como verificar as ligações entre os membros da Câmara e
Calheiros, mas sei que este último, além de ser um dos mais ricos da comunidade, tinha
parentesco com boas famílias da vizinha Itu (de onde muitos Sorocabanos provinham),
especialmente com o Capitão-mor, Vicente da Costa Taques Goes e Aranha,208 o que
devia vinculá-lo à nobreza local, de algum modo. Além de possuírem terras em
conjunto em Itapetininga (rota da passagem das tropas), em 1788, os dois capitães-
mores, em conjunto, fizeram uma proposta para criar uma fábrica de ferro e aço a partir
207 AHU. SPMG. 3009 208 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX).
109
do minério extraído de um morro em Araçoiaba.209 Um documento de 1797 talvez ajude
a compreender as razões que separavam Calheiros de Oliveira Leme, para além das
diferenças de qualidade que poderiam se borrar no fato de do primeiro também negociar
fazenda seca.210 Ambos eram interessados nas arrematações dos registros de passagem
de rios e tropas, Paulino em sua sociedade com José Vaz de Carvalho; Calheiros o fazia
juntamente com Francisco Marim Machado. Ambos os grupos arremataram diversos
contratos entre 1780 e 1810.211
Este me parece o cenário político da Vila de Sorocaba: uma elite rural
disseminada nos diversos bairros e zonas que compunham a paisagem daquela
localidade, mas tendo a referência de poder local da vila na matriz, nos grandes
senhores da urbe que disputavam o controle da Câmara, o posto de Capitão-mor e a
arrematação dos contratos e os negócios de animais, matizados, também, pelo tamanho
de seus plantéis. A economia não se baseava apenas no negócio de animais, ainda que
este fosse o mais saliente. A diversidade apresentada pelos vereadores é visível em
outras fontes, que também confirmam a opulência relativa de Sorocaba no cenário
regional. Manuel Cardoso de Abre narrou, em 1783, algumas impressões sobre a
capitania de São Paulo:
...os habitadores da cidade vivem de várias negociações: uns se limitam a negócio mercantil, indo à cidade do Rio de Janeiro buscar as fazendas para nela venderem; outros das extravagâncias dos seus ofícios; outros vão à Viamão buscar tropas de animais cavalares ou vacuns para venderem, não só aos moradores da mesma cidade e seu continente como também aos andantes de Minas Gerais e exercitam o mesmo negócio vindo comprar os animais em São Paulo para os ir vender a minas, e outros finalmente, compram alguns efeitos na capitania, como são panos de algodão e açúcar, e vão vender às Minas [...]Os moradores da estrada de Viamão, como são os da vila de Sorocaba, vivem do fabrico de algodão, de criar seus animais e tirar seu ouro das frasqueiras dos seus subúrbios e, ultimamente, do comércio dos que labutam neste negócio, e por isso há suas casas ricas. Os moradores da vila de Itapetininga, distantes dela 10 léguas, vivem de criar os seus animais, e de tirar algum ouro das frasqueiras, e vender mantimentos aos tropeiros, porém com tal tenuidade que não dá aumento.212
As produções de açúcar e algodão eram importantes atividades
desenvolvidas em Sorocaba e encontravam nas localidades do mesmo caminho das
tropas importante escoamento, como vimos, até Curitiba e à Lapa. O próprio Antonio
209 AHU. SPMG. 3207; AHU. SPMG. 3094. 210 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 211 AHU. SPMG. 3488 212 ABREU, Manoel Cardoso de. APUD: GODOY, Silvana Alves de, Itu e Araritaguaba na Rota das Monções (1718-1838) (Campinas: PPGHE - UNICAMP, 2002).
110
Francisco de Aguiar, inspetor do Registro de Sorocaba, era interessado neste ramo e
mantinha um funcionário que levava algodão à Lapa com alguma regularidade e do qual
o inspetor de Curitiba, Manuel José Correia da Cunha, se serviu algumas vezes como
portador de cartas, queijos e manteigas para Sorocaba.213 Dentro do mesmo clã, Paulino
Aires de Aguirre e Salvador de Oliveira Leme possuíam engenhos de açúcar, mostrando
a diversidade de negócios que aquela elite manipulava.214 Ainda que estas unidades
produtivas não fossem as maiores, estavam entre as quatorze que existiam em 1798,
quando a produção açucareira de Sorocaba crescia rapidamente, mas ainda era pequena
se comparada à da vizinha Itu.215
O espaço consumidor
Partindo de Sorocaba os animais trazidos do sul eram redistribuídos para
diversas regiões, onde o Rio de Janeiro, Minas e a própria capitania de São Paulo
tinham predominância, além de Goiás. Após o Registro de Sorocaba, havia outros que
cobriam a circulação regional destes animais, que certamente se somavam às produções
da capitania paulista, além das produções das Minas, que cresciam significativamente
no final do século XVIII e início do XIX.
O Rio de Janeiro se apresentava como um dos principais centros
consumidores. Marcondes aponta a circulação de reses que, pelo caminho de São Paulo,
chegavam a metrópole fluminense. Em dezembro de 1801, passaram por este caminho
cerca de 874 cabeças de gado; em 1802, cerca de 6807; em 1803, umas 8310 e em 1806,
7663. O número chegaria a 13671 em 1811. O mesmo autor destaca que o principal
consumo carioca de animais que vinham do caminho das tropas era o de reses, carne
verde, para o abastecimento alimentar da cidade.
O consumo de cavalos e bestas muares seria mais forte nas capitanias de
São Paulo e Minas, especialmente para o transporte de cargas diversas do interior até os
principais corredores de circulação e portos. Relembro aqui que o próprio caminho das
tropas era uma via muito rudimentar, e que vários poderiam ser os exemplos de estradas
213 BN-II-35,25,17 214 AHU-SP (avulsos). Doc. 698. 215 AHU-SP (avulsos). Doc. 698.
111
em péssimas condições ou mesmo muito simples que ligavam pontos importantes da
América Lusa, como nos lembra Sérgio Buarque216. O cavalo e a mula eram, deste
modo, os principais meios de transporte, capazes de circular por qualquer picada, em
oposição às carroças, para as quais haveria ainda poucos caminhos em condições de
trafegar. Mesmo a estrada São Paulo – Rio de Janeiro, que ainda passava por
importantes vilas paulistas, era bastante primitiva e sua circulação restringiu, por
diversas vezes, a própria passagem das tropas de animais com destino ao Rio de
Janeiro.217
De acordo com Suprinyak e Restitutti218, os animais vindos de Sorocaba
abasteceram de forma elástica a região das Minas ao longo do século XVIII e XIX. Os
animais seguiam de Sorocaba para o Vale do Rio Paraíba, onde permaneciam algum
tempo para descansar, antes de tomar o montanhoso caminho da capitania mineira.
Tomando dados de Angelo Carrara, eles apontam alguns números que, apesar do sub-
registro, seriam relevantes para considerar o movimento de tropas de animais para o
abastecimento das Minas. Entre 1788 e 1799, teriam entrado cerca de 1700 mulas pelos
Registros de Mantiqueira e Jacuí, além 105 cavalos. Certamente estes eram números
mínimos, e não consegui dados mais precisos para esta circulação.
Considero que o maior consumidor dos animais vindos do Viamão, de
Lages e Curitiba fosse mesmo a capitania paulista. Apenas em 1813, o movimento do
planalto paulista aos seus portos demandou 91000 viagens de tropas de mulas
carregadas com artigos.219 Além disso, havia a própria capitania de São Paulo tinha
grande carência de cavalos. Encontro constantes referências a viagens de militares
paulistas ao sul em busca de cavalos para as tropas regulares. Em 1790, o Sargento-Mor
de São Paulo, Joaquim José de Macedo Leite foi buscar 200 cavalos no Rio Pardo220, e
216 HOLANDA, Monções. 217 MARCONDES, Renato Leite, "Formação da rede regional de abastecimento do Rio de Janeiro: a presença dos negociantes de gado (1801-1811)," Topoi 02 (2001). 218 SUPRINYAK, Carlos Eduardo, & RESTITUTTI, Cristiano Corte, "Os muares e as minas: relações entre a demanda mineira e o mercado de animais de carga nos séculos XVIII e XIX," in Anais do XII Seminários sobre a Economia Mineira, ed. Paula, João Antonio de (2006). 219 Ibid. 220 BN-II-35,25,62
112
em 1808, Antonio Francisco de Aguiar, José de Andrade e Vasconcelos e João Lopes
França foram encarregados de ir ao sul comprar cavalos e mulas para a Fazenda Real.221
Acabamos de cruzar o enorme arquipélago, pontilhado de povoados,
fazendas e postos fiscais. Observamos alguns traços de cada ilha e sua relação com o
alto-mar, o comércio de animais. Todas as ilhas eram importantes, nem que fosse para
um pouso, para o abastecimento ou para algum negócio. É claro que o Viamão, Curitiba
e Sorocaba eram as estrelas de maior magnitude daquela pequena constelação. Mas
vejamos este cenário em partes. Entendo que é possível pensar a Campanha de
Montevideo, a Fronteira do Rio Pardo, a região de Triunfo e o Viamão como áreas
distintas dentro de um grande espaço de produção de animais. O caminho, por sua vez,
me parece ser dividido em quatro trechos: a Patrulha e Cima da Serra, Lages e o sertão,
Lapa, Curitiba e Castro e Sorocaba e sua adjacências.
Para quem quer continuar observando o caminho e suas características é
possível pular ao Capítulo 6.
221 Arquivo Nacional. Códice469. Vol. 04.
113
Capítulo 4 Organizando aquele mundo
Organizando as coisas
Distanciemos um pouco nosso mundo daquele. A própria forma de contar as
coisas era diferente. Era muito mais fácil agrupar em dúzias que em dezenas ou
centenas. A própria forma de contar os anos de vida, a idade, era imprecisa. Em diversas
fontes, as pessoas diziam ter tantos anos mais ou menos. Nas Listas Nominativas, de um
ano para outro, uma mesma pessoa salta muitos, ou permanece com a mesma idade.
Outro exemplo, a moeda, particularmente, era dividida e subdividida de muitos modos.
No mundo luso, o real era a moeda base. Vinte réis formavam um vintém; quatro
vinténs ou oitenta réis formavam um tostão; quatro tostões ou trezentos e vinte réis
formavam uma pataca; três patacas, doze tostões, quarenta e oito vinténs ou novecentos
e sessenta réis juntavam um patacão. Somando oitenta vinténs, vinte tostões, cinco
patacas ou 4 cruzados, se formava um escudo. E uma dobra era composta de doze mil e
oitocentos réis, seiscentos e quarenta vinténs, cento e sessenta tostões, quarenta patacas
ou trinta e dois cruzados.
Não apenas era este o sistema como a economia popular se baseava nestes
valores: uma missa, por exemplo, se encomendava pagando em patacas. Em Sorocaba e
Curitiba custava uma. Em Porto Alegre, duas. Tudo isso sem falar nos pesos e pesos
fortes, moedas espanholas que circulavam bem na rota das tropas, e estavam presentes
nas casas dos tropeiros e seus sócios. No conjunto documental que utilizei, referências
monetárias mais comuns foram os réis propriamente ditos, mas também agrupados em
patacas, dobras e, especialmente, cruzados. Os pesos também eram muito utilizados.222
Seguindo nos padrões numéricos, as principais medidas de cumprimento
eram a polegada (ou dedo), o palmo, o pé (pé de rei), o côvado, a vara, a braça e a
légua.223 A polegada era formada de um dedo ou quatro grãos de cevada. O pé era
constituído de um palmo e meio. O palmo, de oito polegadas. Três palmos, um côvado.
222 Encontrei referências em inventários de Sorocaba a pesos castelhanos, assim como são fáceis de serem encontrados nos livros de notas de Porto Alegre. 223 Esta parte é inspirada na leitura de KULA, Witold, Las medidas e los hombres (México D.F.: Siglo Veinteuno, 1999); TUCCI, Ugo, "Pesos e medidas," in Enciclopédia Einaudi - 28, ed. ROMANO, Ruggiero (Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1995).
114
Uma vara somava cinco palmos. Duas varas ou dez palmos formavam uma braça. Duas
mil e quinhentas braças compunham uma légua. Um texto anônimo de 1793, o
Dicionário Universal das Moedas224, falava sobre o uso das medidas em Portugal:
Nas medições de terrenos há diversidades, motivo porque apontamos aquelas que temos. Em Lisboa, medem-se os terrenos com vara de cinco palmos craveiros; na comarca de Santarém medem-se os campos por firgas de dezessete varas; nos campos de Coimbra medem-se as terras com aguilhadas de 14 palmos...225
Na seqüência do livro, há uma digressão sobre outras formas de se medir
particulares de algumas regiões, como a geira, além das diversas medidas existentes
para se mesurar produtos, cada um com sua forma específica de ser medido. E também
havia as medidas secas (conceito de volume): a unidade básica era o alqueire, que era
dividido em meias, quartas e oitavas. A oitava era formada por duas maquias; uma
maquia, por dois selamins. E com sessenta deles se fazia um moio. Os líquidos tinham
igualmente sua mensuração: doze onças formavam um quartilho; quatro quartilhos, uma
canada; seis canadas, um alqueire ou pote; dois potes, um almude; vinte e seis almudes,
uma pipa.226 Os pesos se organizavam em arrobas, formadas por trinta e dois arráteis; o
arrátel, por dois marcos; o marco, por oito onças; a onça por três dinheiros; o dinheiro
por vinte e quatro grãos. 227
Até aqui apresentei as principais formas de medir e contar que encontrei, ou
melhor, os sistemas numéricos mais comumente adotados no Império Luso, os quais
eram, como vimos, fracionados, divisíveis de diversas formas e empregados em
diferentes conjuntos. A medida decimal era praticada em diversos setores como, por
exemplo, no imposto dos dízimos, 1/10 da produção que era recolhida. Mas esta medida
convivia com uma diversidade de formas de mensurar que eram igualmente adotadas e
empregadas em diferentes lugares e para resolver problemas de naturezas diversas.
Longe de ser uma idiossincrasia, era a forma que aquele mundo encontrara para medir
as coisas. Nem todas estas medidas eram empregadas na rota das tropas. Algumas eram
224 ANÔNIMO, Diccionario universal das moedas assim metallicas, como ficticias, imaginarias, ou de conta, e das de fructos, conchas, &c. que se conhecem na Europa, Asia, Africa e America. (Lisboa: Off. de Simão Thaddeo Ferreira, 1793). 225 Ibid. 226 Segundo BLUTEAU, a pipa de Lisboa é meio tonel, ou duas quartolas, faz trezentas & doze canadas, ou vinte & seis almudes de doze canadas cada almude. As pipas do Porto são maiores. [grifo meu]. 227 ANÔNIMO, Diccionario universal das moedas assim metallicas, como ficticias, imaginarias, ou de conta, e das de fructos, conchas, &c. que se conhecem na Europa, Asia, Africa e America. Encontrei referências a pesos e medidas semelhantes em BLUTEAU, Raphael. Vocabulários português e latino. Rio de Janeiro: UERJ.
115
preferenciais e diversas do que se praticava em outras áreas de conquista lusa. Como
nos sugere o autor anônimo, cada região tinha suas formas peculiares de medir e isso
também variava de acordo com o produto.228
As formas mais comuns que encontrei na rota das tropas estão orientadas
por boa parte daquelas mesmas medidas e pesos que descrevi acima, de influência lusa.
A medida mais comum, especialmente nas listas nominativas, na descrição dos volumes
de colheita e venda de grãos, era o alqueire, medida seca, de volume. Não encontrei
subdivisões do alqueire, nem mesmo o uso do moio. Os alqueires eram utilizados tanto
para indicar a produção doméstica de cada domicílio como para indicar a produção
exportada nos portos da Capitania paulista.229 Como medida para líquidos, tudo o que
pude encontrar, dentre o modelo acima apresentado, foi a canada, utilizada para
descrever alguns cascos de propriedade de Paulino Aires de Aguirre, em seu
inventário.230
Encontrei outras formas correntes na rota, que não estavam nos manuais
portugueses. Na Lapa, na lista nominativa de 1798, alguns mediam mãos de milho e
alqueires de feijão, enquanto outros mediam só usando alqueires. Não encontrei
referência do uso da mão em Portugal, ainda que ela seja utilizada em diversas partes do
Brasil, até os dias atuais.231 Encontrei referências a seu uso em outras partes da América
lusa. Da mesma forma, na Lapa, em 1798, se negociava cachaça utilizando a medida,
forma que não encontrei em outros locais, ainda que a falta de fontes seja um problema
claro, neste caso.232 A medida utilizada para aguardente nos portos paulistas era sempre
a pipa. Para secos, o alqueire e arroba predominavam. A arroba era preferencial para
228 Bluteau nos apresenta algumas passagens que reforçam este cenário. No verbete PESO, fala que Em Portugal fez um curioso a tábua dos pesos de algumas cidades de maior comércio, reduzidos aos pesos de Lisboa, em que declara que o quintal de Goa, & Cochim é o mesmo que deste Reino, que três arráteis de Veneza fazem três dos nossos; que um quintal nosso de 128 arratéis, responde em Paris a 120 arratéis de 16 onças; que 102 arratéis de Londres fazem 100 arratéis de Lisboa; que o nosso peso é maior que o de Amsterdão seis por cento [...] a mão cheia das ervas, que é quanto se toma com uma mão, se escreve assim, M. O punho das sementes, que é quanto se pode tomar com três dedos, se escreve assim P. 229 Para a produção dos domicílios, utilizei as listas nominativas e os relatórios (mapas) produzidos na época com seus dados. Para os dados de exportação dos portos paulistas, cito um único documento, ainda que existam outros: AHU. SP (Avulsos) Doc. 831. Por Portos paulistas, faço referência à Paranaguá, Ubatuba e Santos. 230 AESP. Inventário de Paulino Aires de Aguirre. 231 Segundo o HOUAISS, mão é um regionalismo brasileiro que significa medida para comercialização de milho não debulhado equivalente a 50 espigas em Pernambuco, 25 em Alagoas, 60 em São Paulo e 64 no Rio Grande do Sul. 232 Segundo o HOUAISS, medida é regionalismo português que soma 20 litros, também sendo regionalismo do norte do Brasil, onde soma 10 litros.
116
açúcar, café, fumo e anil, enquanto o alqueire era utilizado para goma, feijão, farinha de
trigo, arroz e milho. O arroz também era contado em sacas.233
As distâncias não eram sempre medidas em léguas. Era uma unidade muito
conhecida e utilizada, mas o tempo de viagem era um recurso bastante comum,
especialmente na rota das tropas. Os poucos relatos de viagem de tropeiros existentes
para o século XVIII medem o trajeto em dias de jornada, assim como era também
considerado o tempo de parada em alguns locais.234 Os funcionários da Casa Doada, em
sua correspondência, utilizam o mesmo sistema para calcular as viagens dos tropeiros,
assim como usavam o calendário para medir as suas próprias cartas.235
A medição das propriedades também variava. A braça surge como a medida
de cumprimento mais freqüente, junto com as léguas. Geralmente as léguas eram
utilizadas para medidas distâncias entre locais, caminhos e grandes propriedades. As
braças, até onde pude ver, foram utilizadas para medir terrenos e pequenas
propriedades. De um modo geral, as braças são mais utilizadas para unidades agrárias
em Sorocaba e Curitiba. Já em Vacaria, Viamão, Rio Pardo e nos territórios mais ao sul,
a légua me parece mais comum, nem que seja a referência para unidades menores, como
o quarto de légua em quatro, medida comum para designar pequenas propriedades.
Ainda assim, nos registros de notas dos tabelionatos de Porto Alegre do século XVIII se
encontram diversas medições de propriedades rurais com as braças e urbanas com
palmos.236
Dentre as formas de medir as propriedades, contudo, há uma gama bem
maior. Em Sorocaba era muito comum “medir” a propriedade apontando suas
confrontações, sem utilizar nenhuma tábua de medidas. Uma venda de terras de 1793
delimitava o terreno tendo um vizinho como referencia, um rio e correndo o sertão
entre as mesmas [terras do vizinho] para a parte do morro.237 Este comportamento não
parece ser uma prática em decadência, já que encontrei seu uso ao longo de todo o 233 AHU. SP (Avulsos) Doc. 831 234 JACOBUS, "A Estrada das Tropas e seus três Registros: vectores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial." 235 BN-II-35,25,25-27, BN-II-35,25,03 e BN-II-35,25,17. 236 Para a Capitania de São Paulo, consultei diversos registros de notas do Tabelionato de Sorocaba e Curitiba. Para a Capitania do Rio Grande, utilizei referências à concessão de terras existente no AHRS. F1246, F1247 e F1248, assim como também verifiquei livros de notas do Tabelionato de Porto Alegre. Ver item Fontes. 237 AESP. Livro de Notas de Sorocaba. 1793-95.
117
período estudado e, ainda que eu não tenha feito quantificações, não acho que se extinga
com o tempo no recorte proposto. Aliás, tal sistema coexiste perfeitamente com o uso
de medidas, em alguns casos até mesmo é complementar, como em uma propriedade
vendida em 1796, também em Sorocaba, que tinha duzentas e oitenta braças de terras
de testada, e sertão em até onde esbarrar com as terras de José da Cunha.238
Em Curitiba também é fácil encontrar esta forma de medição.
Contemporâneas com formas mais exatas de medição, como as que mostrei acima,
encontramos descrições como esta, feita em 1781:
desde a Restinga que parte com o campo grande pertencente a eles vendedores correndo pelo Ribeirão do Pacheco abaixo até entestar na Restinga Seca que parte com o campo que foi do defunto Francisco da Siqueira Cortes.239
Ou ainda esta, de 1792:
parte da parte do este com o capitão-mor João Pereira Lima fazendo divisa por um charco acima que faz cabeceira com o córrego da aguada do dito Capitão-mor, correndo pelo córrego abaixo até o Rio da Contenda e para a parte do sul com Dona Maria dos Santos.240
E era ainda praticada em 1806: cujas terras partem de uma parte com Maria
de Terço e de outra parte com Policarpo de Andrade cujo sítio tem um monjolo e pilão
de pé e seus arvoredos e a casa coberta de capim.241 Em Viamão e Porto Alegre a
maior parte das vendas de terras que encontrei utilizavam alguma tábua de medida. Mas
a forma imprecisa de delimitar o terreno, tal como descrita acima, quando praticada,
“atingia a perfeição”, como se percebe nesta venda de um rincão em Viamão, em 1780:
...parte de uma banda com os herdeiros de José Brás e por outra com os herdeiros de Salvador Brás, e pelas mais partes com terras do dito Manuel de Ávila e Souza [...] descendo o morro seguindo para o mesmo Rincão ficará servindo de divisa uma restinga não a primeira que passa o caminho pelo meio, mas sim a segunda, seguindo para o mesmo rincão que nasce no mato grosso e vai fazendo divisa cortando a outro mato que vai para cima da lomba a qual serve de divisa as terras do mesmo Manuel de Ávila e Souza cujo rincão com todo o mato grosso que se achava ao pé do corgo [sic] do sítio das casas, correndo este ao morro da banda do norte confrontando com terras do referido Manuel de Ávila e Souza, indo o dito
238 AESP. Livro de Notas de Sorocaba. 1796-99. 239 1TABCUR-021-030. 240 1TABCUR-024-009. 241 1TABCUR-029.
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mato pela banda do nascente da vertente do mesmo morro até a ponte e pela banda poente seguindo a mesma vertente do morro às dividas da restinga já dita242
Ou ainda nesta descrição de 1796: pela parte do sul por um boqueirão em
um capão alto que fica pertencendo a metade deste ao dito comprador e os fundos
fixam pela parte do nordeste com o encontro de dois pântanos.243 A medida “à olho”
aparece como uma possibilidade adequada, praticada ao longo de todos os territórios à
margem do caminho das tropas. É preciso que fique claro, contudo, que esta forma de
medir as terras coexistia com formas mais exatas de mensuração. Eram formas
alternativas que poderiam mesmo se mesclar, como vimos.
A forma mais comum de avaliar as coisas, ao menos do que se entende na
leitura da documentação, especialmente dos inventários, é classificar pela qualidade das
coisas, não a quantidade. Agrupavam-se em tipos de materiais, em formas comuns. A
primeira divisão é a qualidade, a segunda, a quantidade, a terceira, a medida exata ou à
olho. Isso se manifesta tanto para os bens descritos nos inventários como para as terras
negociadas em cartório. Mais importante que a medida é a qualidade da terra, se era
usada para lavoura, se estava vazia, se eram matos, se tinha árvores frutíferas, dentre
outras possibilidades. A mesma precisão qualitativa era utilizada na descrição dos bens
de raiz dos inventários. A forma como os inventários post-mortem são construídos em
cada lugar, tendo em conta as diferentes classificações dos bens, o grau de detalhe das
descrições e as divisões e subdivisões utilizadas para hierarquizar as coisas é uma forma
de compreendermos os diversos pesos e medidas adotados em cada contexto.
A descrição dos animais, por exemplo, em alguns inventários é feita com
maior cuidado, com diversas divisões e subdivisões. Nem todos os inventários são
assim, mas alguns dividem os eqüinos em uma diversidade de tipos, como cavalos
mansos e xucros, éguas mansas e xucras, potros, éguas de cria (muar ou cavalar), burros
burreiros, burros eixores, dentre outros. Paulino Aires de Aguirre, por exemplo, dividia
os machos das fêmeas para depois subdividi-los em diferentes grupos pela cor do
pelame. De forma diversa, na Capitania do Rio Grande as subdivisões estavam
geralmente associadas a faixas de idade dos animais, “vocação” produtiva, como éguas
242 1TABPOA-006, p. 96. 243 2TABPOA-022-113
119
próprias para a cruza com burros ou cavalos, e pela “instrução”, digamos, do animal, se
manso, xucro ou redomão.
Voltamos à variedade de formas de organizar o mundo. Nem mesmo na
própria rota das tropas havia um consenso sobre a classificação dos animais, ainda que
tanto em Sorocaba como em Viamão houvesse uma preocupação com estas
mercadorias. Kula argumenta que, nas sociedades pré-industriais, os laços mercantis
costumam unificar as medidas.244 Não acho que as diferentes formas de classificar os
animais prejudicassem os negócios entre Viamão e Sorocaba, mas certamente não há,
aqui uma unificação. O que encontramos aqui é uma pluralidade de formas de
mensuração, tanto nos casos específicos da rota das tropas, como nas formas mais gerais
utilizadas no Império Luso, como nos apresentam Bluteau e aquele anônimo que citei.
Mas isso certamente não era um capricho lusitano. Era uma prática comum em todas as
nações européias da época moderna.245 Neste sentido, há aqui a presença de certos
valores próprios daquele mundo, que compreendiam autonomias regionais, direitos
diferentes para diferentes qualidades de pessoas e formas diversas de medir objetos
diversos. Como disse Kula,
…el paño de lino no tiene nada en común con el camino a la ciudad […] Y como no hay nada en común, es por tanto preciso medirlos con medidas diferentes. […] cada objeto debe ser medido con una medida diferente, y ninguna de ellas es reducible a las demás.246
As mesmas autonomias que as localidades tinham para seu governo eram
também manifestas nas formas como utilizavam os pesos e medidas. É certo que as
medidas praticadas na América lusa eram todas de origem européia (vindas de Portugal,
mas muitas tinham origens romanas e gálicas), com uma provável exceção da mão de
milho, que pode até ter origem indígena. Mas tanto em Portugal como no Brasil as
medidas eram determinadas pelo uso local. De qualquer maneira, era de Lisboa que
vinham as ordens para a distribuição das terras, especificadas segundo padrões do reino,
como as sesmarias de três léguas por uma ou os quartos de légua em quatro. É certo
que as elites locais tinham grande ingerência nestas concessões fundiárias, já que eram
elas quem, de algum modo, decidiam sobre isso e repassavam as informações a Lisboa.
Mas os poderes extraordinários de outorgar as terras cabiam à cabeça da monarquia e 244 KULA, Las medidas e los hombres. 245 Ibid. 246 Ibid., p. 115-116.
120
neste jogo a coroa interferia na formação das hierarquias locais e reproduzia a si própria
como poder especial.
A mesma monarquia controlava as concessões de terras e, em finais do
século XVIII na cidade de São Paulo e sua comarca, tinha na figura de José Vaz de
Carvalho o Juiz das Demarcações de terras de Sesmarias.247 Era a cabeça da monarquia
quem decidia a concessão das terras, mas era o Coronel Vaz quem as media. O mesmo
José Vaz que também era arrematador dos Dízimos de São Paulo e diretamente
interessado no aumento das unidades produtivas, como ele mesmo dizia ao Conselho
Ultramarino em 1806, quando pediu a remuneração de seus serviços, já que aquela
região por ele demarcada tinha resultado grande aumento ao comércio e dízimos da dita
capitania.248 Com o Vaz temos um encontro marcado no Capítulo 9. Quem tiver pressa,
pode ir antes.
Organizando as pessoas
Vejamos um pouco como aquele mundo era organizado. Para isso temos
boas fontes: as listas nominativas e os róis de confessados. Ambas são (cada uma com
sua construção específica) documentos que em sua elaboração classificam e
hierarquizam os homens e mulheres que estamos investigando. Tais fontes não trazem
informação de todos os personagens contidos naquele mundo. Não falam da Rainha
Dona Maria e nem do Príncipe, que certamente importavam naquele meio, ou dos
santos, ou das onze mil virgens. Mais do que incluir todos, aqueles dois documentos
falam das réguas que eram utilizadas para classificar as pessoas.
Comecemos com as listas nominativas. No conjunto desta pesquisa, utilizei
32 destas fontes, entre 1776 e 1810.249 O fato de ser feita para cada vila já era um
indicativo das noções geográficas contemporâneas: a capitania paulista, como também 247 AHU. SP (Avulsos) Doc. 1223. 248 AHU. SP (Avulsos) Doc. 1223. 249 Curitiba: 1976, 1777, 1781, 1782, 1783, 1786, 1789, 1790, 1791, 1792, 1793, 1795, 1796, 1797; Lapa: 1781, 1782, 1792, 1796, 1797, 1798, 1807, 1809. Sorocaba: 1780; 1790; 1801; 1810. Lages: 1782, 1783, 1786, 1787, 1789, 1790, 1791, 1792, 1794, 1796, 1797, 1799, 1803, 1804, 1805, 1810. Castro: 1793. Para referências, consultar FONTES.
121
as demais, era compreendida como composta por aquelas pequenas unidades chamadas
de vilas, e não por uma representação espacial uniforme, homogênea e abstrata, como
atualmente se pensa o território. Cada vila era dividida de diferentes modos, de acordo
com suas especificidades, mas geralmente havia a preocupação em organizar a
população dentro das companhias militares, o que nos faz lembrar as preocupações
bélicas de produção desta fonte. Mas é também comum encontrar tais listas divididas
em bairros ou áreas, de acordo com uma leitura do espaço comum na localidade e/ou
própria de quem produziu a fonte.250
Curitiba, por exemplo, foi “descrita” de um modo geralmente igual na
maioria das listas, ainda que com algumas variações, reflexos de seu desenvolvimento
espacial e urbano, mas também baseado na percepção geográfica dos produtores das
listas. Em 1786, o Barigui, que aparece com este nome em outros tantas listas, foi
“mesclado” com a parte mais central da cidade. Em 1796 aparece um bairro chamado
circunvizinho que no ano seguinte foi mesclado com o Rocío. Miguel Gonçalves de
Sampaio não se mudou, mas foi registrado em diferentes classificações, passando do
Rocío aos Circunzinhos ao longo do período entre 1776 e 1795, período no qual
encontrei este personagem. Este dado não me parece tão útil para entender o
pensamento da época, mas mostra como as listas variam de acordo com os valores do
seu produtor, com suas orientações valorativas. Além disso, o espaço, aparentemente
estático, é uma realidade dinâmica e socialmente determinada.
Uma coisa, contudo, deve ficar clara: as listas não organizavam os
habitantes. Organizavam os fogos251, ou seja, domicílios, célula básica das listas. A
ordem dos domicílios muda em cada lista, ainda que traga geralmente o capitão-mor
como primeiro mencionado e deva seguir uma orientação geográfica, partindo do
pressuposto de que quem a preparava seguia a lógica de esgotar uma região antes de
partir para outra, colocando, assim, os vizinhos mais ou menos em ordem. Por exemplo,
em Curitiba, entre 1776 e 1783, João Batista Dinis, Francisco Xavier Pinto, Miguel
Ribeiro Ribas, José de Andrade e Lourenço Ribeiro de Andrade aparecem sempre muito
próximos nas listas, ainda que em posições diferentes em cada lista. Francisco Xavier
Pinto segue sendo vizinho do agora capitão-mor Lourenço Ribeiro de Andrade em 250 Nossa interpretação das listas nominativas está baseada (servindo-se aqui de algumas idéias) em NADALIN, Sergio Odilon, História e demografia: elementos para um diálogo (Campinas: ABEP, 2004). 251 Para uma discussão mais profunda sobre o tema, ver Nadalin, Ibid.
122
1793, 1795 e 1797. Isso sugere que a ordem de coleta dos dados em cada domicílio não
é sempre a mesma, mas é feita em “blocos” de vizinhança. A ordem dos bairros, me
parece, foi mais ou menos a mesma ao longo do período estudado.252
Cada registro de fogo incluía todas as pessoas que habitavam aquele
domicílio, seguindo uma ordem, a qual, claramente nos fala daquele mundo. Começava
pelo chefe de família e seu cônjuge, seguido pelos filhos homens, pelas filhas, expostos,
e enjeitados (em alguns casos, sobrinhos e netos aparecem também). Se o fogo tivesse
agregados e escravos, eles apareciam, nesta ordem, ainda que muitas vezes os escravos
fossem apenas contados, sem ter seus nomes incluídos. O chefe da família era,
geralmente, o homem mais velho. Mas mesmo aqui há um problema: há diversos casos
onde esta regra não se aplica. Ainda que a maioria dos maiores de 60 anos fosse chefe
de seu fogo, alguns eram, de algum modo, dependentes de chefes mais jovens. Neste
caso, a perfomance dos agentes mais jovens, talvez socialmente mais ativos ou bem
relacionados, poderia significar uma mudança nas relações de poder dentro do fogo.
Da mesma forma ocorria com as mulheres. Há um grande número de casos,
em praticamente todas as localidades que estamos observando, de fogos chefiados por
mulheres, geralmente em casos de maridos ausentes, falecidos ou inexistentes (mulheres
com filhos de “pai incógnito). Apesar da misoginia própria daquela sociedade, muitas
mulheres acabavam assumindo perfomances masculinas, que de algum modo mudavam
seu estatuto social particular. É importante destacar que com esta performance elas
podiam mesmo liderar o domicílio convivendo com filhos homens adultos. Diante de
um filho adulto, capaz para chefiar, a manutenção do poder materno era uma
possibilidade bastante plausível.253
A listagem dos filhos seguia um padrão sexual, priorizando os homens,mas
isso nem sempre acontecia. A idade dos filhos poderia ser um motivo para alterar esta
lógica. Em alguns casos a ordem dos filhos segue suas idades. É o que se vê em alguns
fogos, particularmente, no censo de 1789 de Curitiba, onde em mais de um fogo a
ordem escolhida para hierarquizar os filhos foi a etária e não a sexual. Mas no mesmo
252 Para outros estudos que tentam recuperar o movimento feito por quem produziu censos e listas, ver: GARAVAGLIA, Juan Carlos, Pastores y labradores de Buenos Aires (Buenos Aires: Ediciones de la flor, 1999), p. 61. 253 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX)..
123
documento se encontra exemplos diversos, onde são citados primeiros os homens e
depois as mulheres. Mais raros, mas não inexistentes, são os casos onde as filhas mais
jovens aparecem antes, como um fogo de Lages em 1803, chefiado por Maria da
Conceição. Ainda que parece irregular, havia uma regularidade dentro de cada fogo e
provavelmente a ordem dos filhos não era “produzida” apenas por quem fazia as listas,
mas também pelos membros do fogo que descreviam seus membros.
Em seguida vinham os agregados e escravos. A ordem não é sempre a
mesma. Há casos onde os escravos vêm antes dos agregados ou onde ambos vêm
misturados ou sem uma ordem muito exata. Em certo sentido, me parece, estes grupos,
ainda que juridicamente distantes, não pareciam tão diversos diante dos olhos de quem
produzia a lista ou mesmo diante do chefe do fogo. Não esqueçamos de Antonia
Pachedo de Arruda, que misturou agregados, administrados e escravos em uma de suas
oferendas. Em alguns casos esta mistura tinha sua razão de ser. Por outro lado, diversos
trabalhos apontam a presença de agregados como uma espécie de “índice” social tal
como a posse de cativos o era, ainda que, no caso de quem recebia agregados, com
menos poder e menos prestígio. Mas ainda assim era uma forma de hierarquizar
pessoas.254
A presença e menção dos cativos e agregados, em certo sentido e em alguns
casos, pode nos indicar que certos “dependentes” como estes poderiam, de alguma
forma, fazer parte da família daquele domicílio, tal com os demais membros
aparentados o faziam. Isto nos remete a discutir os tipos de família que povoam estas
vilas. Há toda uma produção historiográfica que, partindo das listas nominativas,
reforça a idéia de que a família nuclear seja a predominante no contexto exato que
estamos tomando. E a considerar a maioria dos domicílios que encontrei nas listas que
utilizei, tenderia a concordar com estas observações. A maior parte dos domicílios são
simples, tendo, quando muito, algum aparentado, agregado ou escravos. Exceções
havia, como o Capitão-mor Cláudio Calheiros, de Sorocaba, que contava sua mulher,
seus filhos e 87 escravos.
254 MACHADO, Cacilda, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX), Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Rio de Janeiro: UFRJ, 2006).No trecho citado, a autora faz uma referência à obra de Maria Luiza Marcílio; FERREIRA, Roberto Guedes, Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850, vol. Tese de doutorado, PPGHIS (Rio de Janeiro: UFRJ, 2005).
124
Alguns elementos, contudo, devem ser considerados. De fato, os aspectos
demográficos reforçam a importância numérica do domicílio simples, composto pela
família nuclear. Mas isso não significa que não houvesse uma tendência para a
“complexificação” destas famílias “simples”, um desejo de parte dos membros de um
grupo simples, talvez do chefe, mas não necessariamente, de, ao longo do tempo,
conforme as possibilidades, ir ampliando as relações nucleares domésticas, tendo como
objetivo a ascensão à (na maior parte dos casos, impossível) patriarca. Neste sentido,
estou me baseando em Machado, que em obra recente aponta que:
...o predomínio estatístico de domicílios simples (com famílias nucleares) não necessariamente significa que as ‘famílias colocadas em um nível intermediário ou inferior não se apresentam constituídas nesses termos’ [isto, é, patriarcais]. Significa apenas, de um lado, que muitas delas não eram bem sucedidas em seus intentos, e de outro, que para a maioria das chefias, somente com o correr do tempo aquele empenho se expressava na conformação de seus domicílios, como se viu no cruzamento da composição domiciliar com a idade do chefe do fogo. [...] o desejo de autonomia, e de se tornar um “pequeno patriarca”, acabava por seduzir mesmo os mais modestos, posto que sua concretização seria fonte de enriquecimento e de distinção social, portanto,de mobilidade ascendente.255
Utilizando o argumento de Machado, podemos pensar que, mesmo com a
predominância numérica da família nuclear nas listas, modelos ampliados de família,
patriarcal, extensa ou ampla, eram desejados e promovidos pelos atores sociais, com
maior ou menor sucesso. Em alguns casos este esforço conduziu a criação de
verdadeiros clãs, ainda que a maioria tenha fracassado e se emaranhado na trama das
vontades que ajudou a construir.256
Há, contudo, outros problemas. A própria fonte, a forma como ela foi
construída, conduz a investigação à importância da família nuclear, já que divida as
vilas em domicílios. Esta forma de produção da fonte pode ser um reflexo do
pensamento social, neste caso, sobre a organização familiar. Até aqui estamos
abordando as listas como um produto mental de uma sociedade. Mas no que se refere à
255 MACHADO, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX). A citação feita por Machado nesta parte selecionada é de uma obra de Maria Luiza Marcílio. 256 Ibid.
125
família, mais exatamente à divisão da vila por fogos, tal comportamento pode ser uma
simples “metodologia de coleta de dados”, conveniente para quem vai buscar as
informações requeridas pelo governo da capitania e recomendada pelas autoridades.
Deste modo, não estou seguro que tal forma de coleta de dados corresponda a uma
leitura das estruturas familiares gerais.257
É preciso considerar a crítica da fonte e tomar com cuidado os dados que
reforçam o cenário de predominância da família nuclear. Acredito, como disse acima,
que ela seja realmente predominante, mas as conclusões de Machado, acrescidas ao
problema de construção da fonte, devem servir para questionar o volume desta
predominância. A crítica da fonte me recorda outro problema, de difícil percepção
justamente pela forma a qual a fonte foi confeccionada: os modelos de família ampliada
que não se baseiam na co-residência, ou melhor, as famílias patriarcais, clânicas ou
extensas que, tendo consciência de si e sendo reconhecidas como tal, habitam em casas
e localidades diversas, mas ainda assim se constituem em grupos de alta densidade. A
família Pinto Bandeira, do Rio Grande de São Pedro, notoriamente coesa, densa e
articulada, estava distribuída por uma vasta região, sem perder suas prerrogativas
familiares, antes, utilizando esta distribuição espacial estratégica em benefício do grupo.
Entendo, assim, que esta sociedade está permeada pela noção de “casa”,
com a presença de um pater familias (que até pode ser uma mater familias, se assumir
uma performance masculina), seu cônjuge e filhos, cercados, até onde é possível de
dependentes, agregados e escravos e, até onde foi possível, índios administrados. Estas
“casas” variavam entre um pequeno rancho e uma estrutura mais complexa, com
dependentes organizados e membros distribuídos por um determinado território, sem
perder a identidade doméstica. Esta mesma noção era utilizada para pensar a monarquia
e seu cabeça, nos moldes da sociedade corporativa e até mesmo a corte celestial, como
se dizia nos testamentos, formada por anjos e santos que tinham na Santíssima Trindade
a cabeça do universo.
Deste modo, é preciso incluir os escravos dentro da “casa”, sem que eles
sejam necessariamente aparentados do senhor, ainda que este parentesco não esteja
excluído, em hipótese alguma. Os súditos portugueses, por mais inferiores que fossem 257 Encontrei um espécie de “manual de instrução” para o preparo das listas, onde a divisão por fogos já era indicada como padrão. AHU. SP (Avulsos) Doc. 831.
126
considerados, ainda faziam parte da grande “casa” que era o Império Luso, assim como
os pecadores seguiam sendo filhos de Deus. A própria fonte nos confirma isso: ela não
separava os escravos dos livres na comunidade, separada dentro de cada domicílio.
Podendo listar os livres e depois os cativos de uma localidade, a opção era sempre por
diferenciá-los dentro do fogo, e isso por uma razão “gramática”: ser escravo é verbo
transitivo, parafraseando Mario de Andrade, é ser escravo de alguém, precisa de
complemento, de uma família, de um pater familias. As referências que encontrei aos
negócios de escravos entre as dívidas de inventários, por exemplo, sempre situavam o
cativo em uma relação. Era, também, uma forma de lembrar a hierarquia que havia entre
os homens brancos.
Antes de prosseguir, convém chamar a atenção para um elemento que
tangenciou o que foi dito acima: o olhar como medida social. Era a observação de quem
produzia as listas nominativas que atribuía rótulos aos observados. Não havia uma
forma métrica para classificar a riqueza e a pobreza, por exemplo, mas quem produzia
as listas acreditava ter condições de classificar alguns fogos como sumamente pobres e
outros como apenas pobre ou vivendo pobremente. Da mesma forma, havia outras
classificações atribuídas aos fogos, como vadios, mendigos e sem ocupação. E por mais
óbvia que fosse a situação, no critério da época ou no nosso, não deixava de ser uma
classificação baseada na medida “à olho”, deliberadamente imprecisa e própria da
lógica daquele mundo, como vimos na parte anterior. Nenhum critério era exigido, nem
mesmo para definir se um fogo dependia mais da agricultura ou da pecuária, como
ocorria, por exemplo, com a Relação de Moradores feita na Capitania do Rio Grande de
São Pedro por volta de 1784.
A medida social baseada no olhar não era, evidentemente, uma prerrogativa
das listas nominativas ou de quem as produzia. Era a forma mais comum de rotulação
social, de classificação dos homens e mulheres. A julgar pela certeza presente nas
afirmações de quem produzia as listas, nunca deixando qualquer dúvida sobre o que
estava vendo (poderia afirmar que tal família parecia ser pobre ou viver da agricultura),
a avaliação visual era uma forma considerada adequada de medir e tal aferição deveria
ser amplamente utilizada. João Figueiroa Rego aponta que a noção de honra própria da
época moderna estava profundamente baseada no bom-sangue e no bom-nome, mas não
somente nisso:
127
dependiam, também, do grau de visibilidade, reconhecimento e tratamento público que estes tivessem. O valor dado às aparências, enquanto bitola aferidora de “estado”, foi levado às alturas e quase deificado ao longo de Setecentos. Presumia-se, etiquetava-se e rotulava-se, à medida do olhar. Do olhar e do rumor...258
* * *
Apenas utilizando algumas formas possíveis de se confeccionar uma listas
nominativas já podemos apontar alguns elementos que são importantes para apresentar
o contexto que estamos trabalhando: uma sociedade onde os homens têm predominância
política sobre as mulheres, os velhos sobre os novos e os livres sobre os cativos e
agregados. Se isso não é nenhuma novidade, ao menos é importante de ser lembrado e,
da mesma forma, seguimos com o método que nos trouxe até aqui, de utilizar um
contexto que seja, também, resultado da pesquisa e não seu pressuposto.
Continuemos observando as listas. O que era feito com os dados obtidos
“em campo”? Os dados eram reorganizados e tabulados em “mapas”, resumos
semelhantes àquilo que chamamos de tabelas na atualidade. A forma como estes
“mapas” eram construídos nos interessa diretamente pois se a forma de organização dos
dados brutos já nos falava daquele mundo, que dizer das formas eleitas para seu
processamento. O primeiro processamento era o resultado total do número de fogos, o
que não incrementa muito nossas idéias.
O procedimento seguinte era a construção de um Mapa Geral dos
Habitantes, como o feito em Lages em 1803, mas cujo método era aplicado em todas as
outras partes. Os fogos eram “desmontados” e os habitantes reorganizados segundo
critérios sexuais, etários, de hierarquias sociais e civis. Havia dez classes de pessoas,
segundo critérios etários e sexuais:
258 REGO, João Figueiroa, A limpeza de sangue e a escrita genealógica nos dois lados do Atlântico entre os séculos XVII e XVIII: Alguns aspectos. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. 2005.
128
Tabela 4 ‐ Classes utilizadas nos Mapas Gerais de Habitantes
Classe Sexo Faixa etária Primeira classe masculino 0 a 7 anos Segunda classe masculino 7 a 15 anos Terceira classe masculino 15 a 60 anos Quarta classe masculino 60 anos ou mais Quinta classe feminino 0 a 7 anos Sexta classe feminino 7 a 14 anos Sétima classe feminino 14 a 40 anos Oitava classe feminino 40 anos ou mais Nona classe ambos nascimentos do ano Décima classe ambos óbitos do ano
Fonte: Listas Nominativas consultadas; NADALIN, 2004
Se esta divisão pode sugerir a preocupação em identificar a quantidade de
homens prontos para o serviço de Sua Majestade, neste caso, entenda-se a guerra, como
nos indica Nadalin, tal organização também poderia refletir resquícios de atitudes
tradicionais em relação ao sexo, visíveis também, como vimos, na própria descrição do
interior dos fogos nas listas, digamos, “brutas” ou “de campo”. Em algumas listas, como
a de Sorocaba em 1790, encontramos as mulheres divididas em critérios diferentes dos
acima apontados, com classes de 7 a 12 e de 12 a 50 anos.259 De qualquer maneira, há
aqui uma clara diferenciação entre homens e mulheres que tem em conta diferentes
épocas da vida para cada sexo, o que contribuía para reproduzir a idéia de que homens e
mulheres tinham, naturalmente, atribuições diferentes e, assim, deveriam ser avaliados
de modo diverso.
Os 7 anos marcaram, em princípio, e para os dois sexos, o início do católico nos sacramentos da confissão e comunhão. O agrupamento das idades do sexo feminino entre 14 e 40 anos leva a supor imediatamente um critério biológico e da natureza político-institucional. Nessa faixa etária situa-se grosseiramente a fase potencialmente fértil da mulher.
Para os homens, o período compreendido entre os 15 e os 60 anos (3ª classe) correspondia, em primeiro lugar, à faixa etária em que, de acordo com as Ordenações do Reino, os elementos deviam pertencer às Companhias de milícias da terra: um critério militar, portanto. Contudo poderia representar, igualmente, a
259 AESP. Lista nominativa de Sorocaba. 1790.
129
faixa de idade economicamente ativa, o potencial de força de trabalho adulta masculina. Neste caso, um critério de natureza econômica.260
No final do XVIII, contudo, há uma transformação dos padrões de
confecção das listas, com novas ordens vindas “de cima”, a partir do governo da
Capitania de São Paulo. Estas medidas previam a uniformização das faixas etárias, com
períodos decenais (qüinqüenais até os 10 anos) e para ambos os sexos. Cada vez mais as
listas de diferentes lugares continham mais dados, como a naturalidade dos chefes de
fogos e sua produção doméstica, além de referências à ausência de alguns membros da
família, nascimentos e óbitos em cada núcleo familiar.
As descrições da produção de cada fogo eram sumárias na maioria dos
casos, indicando o ramo a que o domicílio se dedicava. Em alguns casos, notoriamente
os mais abastados, havia a referência precisa da quantidade de animais produzidos e
exportados, além do volume de produtos agrícolas e sua comercialização, quando era o
caso. Com o conjunto dos dados de produção obtidos em cada fogo era produzido um
“mapa” que indicava uma espécie de “balança de pagamentos” da vila, com o total
produzido, o total comercializado, o destino das vendas e o total importado e sua
origem. Era uma preocupação com a balança comercial, mas que tinha no povoado, na
comunidade, o ponto de referência para este cálculo. Essa balança de pagamentos
localistas, de algum modo, confirma a noção de vila (distrito ou freguesia) como “país”,
expressão vulgarmente usada no XVIII para referir a povoações.
A referência às produções de cada fogo, por outro lado, nos revela o caráter
das formas de produção daquela economia: prioritariamente familiares e domésticas,
não só quando o domicílio todo está articulado em função de uma atividade, caso
comum dos camponeses, notória maioria dentro da amostra, como naqueles fogos onde
a família se organiza distribuindo atividades entre si, com dedicação à lavoura, à
pecuária, a algum artesanato e ao comércio, especialmente no caso dos tropeiros.
Daqui é possível ir ao Capítulo 8 e ver como se media a confiança.
260 MARCÍLIO, Maria Luiza (1977). APUD: NADALIN, História e demografia: elementos para um diálogo.
130
Capítulo 5 O passivo sobrenatural e outras categorias
...para grande desespero dos historiadores, os homens não têm o hábito, a cada vez que mudam de costumes, de mudar de
vocabulário.261
Os homens e mulheres que estamos estudando parecem pouco diferentes de
nossos contemporâneos: formavam famílias, trabalhavam, se divertiam, encontravam
seus amigos e parentes, se alimentavam, emprestavam dinheiro a juros, brigavam,
compravam para revender, rezavam e procuravam, muitas vezes, passar a perna em
alguém. E poderiam ser ainda mais semelhantes se não fossem tão diferentes. Para um
historiador, no meu lugar, é muito fácil encontrar pontos de identidade com aqueles que
estudo. Boa parte das coisas que sei que fizeram me são conhecidas. Eles batizavam os
filhos, se casavam, iam ao cartório reconhecer documentos, escreviam cartas e
passavam testamentos. E tudo isso pode ser encaixado facilmente na mentalidade de
hoje, sem que deixe de fazer sentido. Aliás, é muito fácil rir e descartar alguns indícios
estranhos que chegam do passado, como as cômicas descrições de bens de inventários
ou certos caprichos dos testadores, quando tudo isso poderia servir para repensar o
significado que os agentes históricos davam a suas práticas, algumas que até hoje
existem, ainda que tenham sido, ao logo do tempo, re-significadas.
O passivo sobrenatural
A cerimônia começava com a preparação do corpo, envolto em tecidos especialmente preparados para este ritual que expressavam as filiações sobrenaturais do morto. O corpo, assim, era colocado dentro de uma grande caixa, também preparada para a cerimônia. Tudo era conduzido em um cortejo fúnebre do qual participavam o sacerdote principal e alguns auxiliares que oravam aos deuses pelo espírito do morto e invocavam a sua piedade. A grande caixa era então conduzida a um altar onde permaneceria publicamente exposta por algum tempo, enquanto se faziam rezas a diversas forças espirituais. Novamente em cortejo, o morto era conduzido ao local onde seria, como era costume, enterrado. Nesta cerimônia o morto era acompanhado por diversas pessoas, entre aliados, parentes, vizinhos e religiosos, além de pessoas interessadas em potenciais esmolas que fossem distribuídas aos pobres por honra de seu espírito, solicitadas antes do falecimento. O ritual não se acabava assim. Antes de morrer, o morto indicava suas vontades pela realização de outras futuras cerimônias pela defesa de seu espírito, pelo espírito de seus parentes e criados mortos e daqueles com quem havia feito comércio. Para sua alma, pedia cerimônias especificas de suas preferências sobrenaturais. Havia aqueles que cultuavam certos mistérios, mas a grande maioria cultuava a figura da mãe de um dos deuses e de certos espíritos especiais. Dentro os mistérios, havia o culto da Santíssima Trindade, uma tríade de deuses, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
261 BLOCH, Marc, Apologia da história ou o ofício de historiador (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001), p. 59.
131
Santo que eram entendidos como um só e verdadeiro deus. Além disso, o culto das Cinco Chagas de Cristo (o Deus “filho”), e as Onze Mil Virgens eram adorações possíveis, invocadas diante da morte.
O mundo dos tropeiros que estudamos era um mundo profundamente
católico, mas há muitas formas de ser católico. Nos capítulos anteriores esquecemos de
incluir alguns atores sociais importantes, mas que não estavam particularmente em
nenhuma das localidades que abordamos, ou no caminho. Estavam em todos os lugares.
Um, em especial, não apenas estava em todas as partes como sabia de tudo. Mas não
negociava com animais, para sorte dos tropeiros. Mas todos eles entravam de algum
modo nas contas dos negociantes e daqueles seus contemporâneos. Vejamos como
funcionava a balança de pagamentos de alguns homens com o além. Para esta tarefa,
vou apresentar algumas análises de uma fonte pouco utilizada e muito rica: os
testamentos.262
Analisando os testamentos, percebe-se que a maior parte deles foi produzida
dentro de um modelo formal, uma fórmula, que invocava informava sobre o contexto da
redação do documento, geralmente uma enfermidade aliada a dúvidas sobre o que deus
guardava ao testador. Clemência era pedida à Santíssima Trindade, aos santos e santas
da corte dos céus, ao santo do nome da pessoa e ao(s) santo(s) de devoção, em especial,
e ao seu anjo da guarda. As variações dentro desta fórmula são, na maioria dos casos, de
estilo, mas havia a possibilidade de também aqui inventar. Este foi o caso de Inácio de
Souza Lima, em 1789, em Sorocaba. Não sei exatamente que forças o motivaram, mas
ao manifestar suas últimas vontades, ele frisou não ter dado a devida adoração em vida à
Santíssima Trindade e à Virgem Maria, pontuando cada um de seus erros, como ao deus
filho que, deixando na Santa Igreja remédios para que eu me aproveita-se sendo que
tão ingrato que não soube aproveitar-me como devia, da mesma forma ele pedia
perdão ao Santo Anjo de minha guarda, porque guiando-me sempre pelo caminho da verdade eu lhe repudiava o ministério da sua obrigação com as minhas maldades. Da mesma sorte ao santo do meu nome que devendo venerá-lo e o imitar somente fiz coisas que contradissessem o nome que tinha.263
262 AESP. Testamentos de Sorocaba; ACMPOA. Testamentos de Porto Alegre. Livro T1. 263 AESP-C05478. Testamento de Inácio de Souza Lima.
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As partes em negrito são a exceção à regra, fragmentos não encontrados em
outros documentos, mas que provavelmente eram compartilhados ou conhecidos pelos
contemporâneos do mundo em que Inácio vivia. Talvez tenha sentido algum remorso
antigo quando começou a sentir as dores no peito que Deus foi servido dar-me. Talvez
fosse apenas para causar uma boa impressão. Mas eram idéias possíveis e nos ajudam a
perceber que as contínuas repetições da fórmula do testamento não eram inócuas, mas
ainda faziam sentido para aqueles homens e mulheres, que se preocupavam, na hora da
morte, em afirmar um santo de sua especial devoção, o santo de seu nome e invocar seu
anjo da guarda. A referência ao santo do nome do testador parece ser apenas uma rotina,
ainda que em alguns casos não fosse. Paulino Aires de Aguirre, por exemplo,
mencionou exatamente qual São Paulino era o exato, já que havia mais de um, e
dedicou-lhe uma capela de missas (50 celebrações), um número que parece vultoso, mas
era a oferta mais baixa de missas feita por Aires de Aguirre.
Para além da fórmula de escrita usada nos testamentos e raramente
subvertida pelos testadores, havia um razoável espaço de decisões. De uma fonte
controlada, padronizada, o testamento se tornava, até certo ponto, um documento cujo
formato não possuía muita ordem. Podemos encontrar casos onde apenas fica expressa a
vontade do testador sobre seu funeral ou apenas seus acertos de contas de dívidas e
créditos. Havia quem descrevesse cada um de seus bens e aqueles que diziam que seus
herdeiros sabiam de tudo o que possuía. Alguns faziam uma breve partilha, enquanto
outros se dedicavam a indicar com mais afinco como sua terça devia ser gasta em
missas, tantas para um santo, tantas para outro... De um modo geral, estas eram as
preocupações dos testadores e este era, geralmente, o seu limite. Ao final do documento
um certo padrão era retomado, quando o testador pedia às justiças de sua majestade
fidelíssima que aceitassem suas últimas vontades expressas naquele testamento. Ainda
no começo do documento, logo depois das ressalvas sobrenaturais, o testador deveria
indicar quem gostaria que fossem seus testamenteiros, aqueles que deveriam se
empenhar em cumprir aquelas últimas vontades.
Os testamentos podem servir à diversas análises. Neste momento particular,
vamos observar a contabilidade dos homens com as forças sobrenaturais, aquilo que
deviam, mais exatamente, já que as forças do além tinham formas diversas de cobrar e
de controlar e podiam indicar seu descontentamento de muitas maneiras, até mesmo na
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hora do juízo final de cada devoto. Estas forças sobrenaturais não se resumiam aos
deuses (Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo ou a santíssima trindade), à virgem Maria
ou aos santos e santas e anjos da corte celeste. Incluíam também as almas dos mortos,
conhecidas e desconhecidas. Ambas eram boas para fazer negócio. As almas do
purgatório, por exemplo, eram boas para se fazer caridade, tal como se faziam com os
pobres e necessitados das vilas. As almas de mortos conhecidos eram parceiras
econômicas diferentes. Não fica muito claro o seu poder, mas há algum temor de sua
intervenção, nos céus ou na terra, ou pela sua alma não ter atingido o melhor dos
caminhos. Vejamos mais detalhadamente.
Computei mais de dois contos de réis oferecidos de diversas formas, missas,
doações, esmolas, ao longo do período entre 1782 a 1812, em Sorocaba, encontrados em
18 dos 30 testamentos que localizei para esta vila no período recortado, o que resulta
uma média de aproximadamente 110$000 por cada testamento, ou seja, o valor de um
escravo264. Este número é indicativo de duas coisas: nem todos faziam doações (em 13
não encontrei oferendas para seres sobrenaturais) e aqueles que o faziam eram
generosos. Mas não podemos acreditar muito neste último dado, já que esta média não
considera o quanto cada um podia dar e efetivamente deu, além do fato de o desvio
padrão ser gigantesco. Só Paulino Aires de Aguirre contribuiu com mais de 45% de
todas as doações. Há ainda outro problema: alguns deixaram tudo o que possuíam ou
suas terças em oferendas, valores que não pude recuperar, mas que aumentariam
consideravelmente o total de ofertas.
O que mais importa para nossa análise não é o peso das oferendas, algo um
pouco mais difícil de ser calculado, já que precisaríamos dispor do monte-menor dos
testadores, algo que não dispomos. O único caso claro, ao menos se acreditarmos no
testador, é o do nosso já conhecido Inácio de Souza Lima, que dos setecentos mil e
tantos que dispunha líquidos, gastou pouco mais de seis mil com missas para si e seus
pais, ou seja, menos de 1%. Mas ele mesmo se considerava um sujeito mau e estava
muito preocupado com a possível pobreza de sua esposa. Logo, é preciso ter cuidado.
Paulino Aires de Aguirre, que deixou um monte-mor de 29 contos, fez oferendas no
264 Refiro-me a um escravo adulto do sexo masculino sem especialização. Inventários do Primeiro Tabelionato de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, 1780-1810.
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valor de 896$000, ou seja, cerca de 3%. Ainda que estes números sejam pouco
confiáveis, podem ser úteis para se ter uma noção.
O ponto mais relevante para esta análise não é o total doado, ou seu valor
em relação ao que o testador possuía, mas saber que ofertas eram as mais recorrentes,
valorizadas ou possíveis, simplesmente, ou seja, quais eram as devoções mais
recorrentes. Tal análise pode permitir avaliar as diferenças de catolicismo existentes e
possíveis sincretismos. Para confrontar, recolhi algumas amostras de testamentos de
Porto Alegre do mesmo período, o que permitirá algumas comparações. Do que pude
contabilizar, os maiores investimentos eram as missas pela alma dos próprios testadores,
seguido das esmolas aos pobres e necessitados. Logo atrás vinham as missas e esmolas
para as Nossas Senhoras, que agrupei para este cálculo, mas que depois serão todas
detalhadamente. Na seqüência, estava uma categoria interessante: missas para os vivos e
mortos que haviam feito negócios com o testador. Logo após encontramos ofertas à
Santíssima Trindade, ao Santíssimo Sacramento, à Santa Ana, às Onze Mil Virgens e
aos Anjos da Guarda, além de outras tantas. Em Porto Alegre, havia uma razoável
preocupação com os pais dos testadores, numa notória variação de comportamento em
relação à Sorocaba.
Pela própria alma e pelos pobres: o potlatch funeral
As almas dos testadores foram as maiores beneficiadas. Como já foi dito por
outros autores, está prática remete à difusão da idéia de purgatório no Brasil colônia e
ao culto das almas.265 Na preparação de sua passagem para o além, os testadores
procuravam colocar sua alma no caminho da salvação e, assim, a crença de que havia
um estágio intermediário entre os céus e o inferno, somada às dúvidas sobre quais eram
os desígnios que o senhor tinha para com cada um, eram matéria suficiente para o
investimento em missas, já que havia igualmente a noção de que as orações feitas na
terra podiam, quando oportunamente acumuladas, livrar a alma do purgatório e permitir
sua entrada definitiva no céu. Mas apesar de seu caráter sobrenatural, de ser uma forma 265 CAMPOS, Adalgisa Arantes, "São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração na Época Moderna," Memorandum, no. 07 (2004); CAMPOS, Adalgisa Arantes, "A veneração às almas do Purgatório: um contraponto entre Portugal e a Colônia," (Belo Horizonte: s/d); SANTOS, Raphael, Trânsito material e práticas creditícias na América Portuguesa - Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais, século XVIII. Anais da V Jornada Setecentista. 2003.
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simplificada de se obter a salvação, elas também tinham um caráter social,
hierarquizante. Penso que posso colocá-las, de uma forma especial, é claro, dentro do
mesmo quadro em que coloco os serviços funerais e as doações fúnebres.
Analisando os pedidos de funerais, encontrei diversas solicitações, sem
saber se foram exatamente cumpridas. Mas sei que foram desejadas e imaginadas pelos
testadores, ou seja, eram instrumentos mentais disponíveis naquele contexto, ainda que
não fossem igualmente distribuídos na sociedade. Os pedidos variavam desde aqueles
que deixavam aos testamenteiros a decisão sobre todo o ritual até aqueles que
manifestavam detalhadamente como tudo deveria ocorrer, indicando inclusive por onde
o cortejo deveria seguir e sobre a velocidade das missas de corpo presente. Entre as
variáveis mais relevantes, estavam: o tecido com o qual seria envolto o corpo, se
religioso, de especial confecção ou um simples lençol; que ordens religiosas e quantos
padres deveriam acompanhar a procissão; o número de missas de corpo presente; a
distribuição de valores entre os pobres que acompanhassem o cortejo ou carregassem o
caixão.
Germanda de Camargo pediu um cortejo muito diverso, uma verdadeira
procissão. Além de ser enterrada na matriz da vila, queria que seu corpo fosse...
...carregado na tumba das almas acompanhada do Reverendo Vigário e coadjutor e rezaram quatro responsos o primeiro em casa, o segundo na rua ao pé da casa do Capitão Francisco Luis de Oliveira, o terceiro junto à casa do Guarda-mor João de Almeida Leite, e o quarto na Igreja e se dirão missas de corpo presente que ocupe todos os sacerdotes da ocasião.266
Uma grande cerimônia, como poucas que encontrei entre as solicitadas,
mesmo tendo em conta que dentre os testadores havia grandes figuras da elite
sorocabana do período. O que mais chama a atenção, para além do espetáculo, é o fato
de que Germana era provavelmente a dona de uma venda, onde devia atender ao balcão,
além do fato de ser aparentada de escravos e filha de pai incógnito. Ela se casou com
mais de sessenta anos com Inácio Pereira Viana que, segundo ela, nada trouxe ao monte
antes me constava ocultara o dinheiro que tinha dizendo lhe custara muito a ganhar e
que se eu apanhasse havia gastado todo em libertar os meus parentes. É possível
encontrá-los na lista nominativa de Sorocaba de 1790, onde aparecem agregados ao
fogo chefiado pela mãe de Germana, o que confirma, em parte, sua história. Pela 266 AESP-C05490. Testamento de Germanda de Camargo.
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cretinice do marido267, ela o julgava isento de herança, até mesmo porque agora sabia
que ele havia morrido no sertão da Bahia.
A herança de Germana, em nada desprezível, composta de casas, objetos de
ouro e prata, mercadorias, dentre outras coisas, foi deixada às tias Luiza e Rita, à prima
Joana, à sua afilhada Ana Esméria, que fora criada como filha por Germana, e à Nossa
Senhora das Dores, à quem especificava uma quantia. Fora isso, havia investido 41$600
em missas, das quais 50 (16$000) eram por sua alma. Para além da intenção de
Germana de salvar sua alma, surgia como resultado mais concreto o benefício de suas
herdeiras, não apenas pelos valores transmitidos, mas pela imagem pública e
reconhecimento da grandiosidade da falecida, na hora de sua enterro e por ocasião das
missas. Ao fazer isso, Germana de algum modo borrava eventuais motivos de estigma e
produzia, no longo prazo, a ascensão dos seus. E dentre as missas que encomendava,
havia também 50 por sua mãe, 10 por seu marido e outras 10 por restituição de
negócios malfeitos por ela própria, pela mãe e pelo marido. Não deixava de ser, no
mundo dos vivos, uma purificação de sangue retroativa de alguém que tinha um pé na
senzala e outra na venda, em uma sociedade escravista onde, geralmente, negócio era
coisa de homem. A estrela de Germana também iluminava o passado de seu grupo
familiar, não apenas seus herdeiros, ainda que isso também fosse parte da herança.
Até o momento, não sei se Germana atingiu seus objetivos espirituais, mas
sei que não foi a única a tentar. Bem acima dela na sociedade sorocabana dos
setecentos, Paulino Aires de Aguirre também queria atingir o paraíso, para o qual,
acreditava, Deus havia criado sua alma. Também ele sofria do estigma de ter sido dono
de venda ou, como diziam os vereadores de Sorocaba, em 1780, por ser de baixa esfera
e ter exercido nesta vila por si, e seus antepassados, anos bastantes, ofício de
taberneiro público.268 Em seu testamento ele não ficou para trás de Germana. Não pediu
o funeral desejado por ela, mas uma cerimônia comum, na qual seria envolto no hábito
da mãe santíssima do Carmo, com missas de corpo presente no altar privilegiado da
Matriz, de onde partiria para ser enterrado em um campo próximo ao altar da Senhora
do Carmo na Capela do Rosário. Para um dos homens mais ricos da Capitania de São
Paulo, foi até humilde. Mas pediu nada menos que duas mil e oitocentas missas, das
267 Juízo feito por mim, ela não o avaliou com esta palavra, mas não duvido que concordasse comigo. 268 AHU. SPMG. 3009.
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quais duas mil eram por sua alma. Ao todo, ele gastou 832$000 em missas, o suficiente
para comprar nove escravos. Isso fora outras oferendas e doações que fez às suas
devoções, que ao todo, juntamente com as missas, totalizaram 1:163$000.
Paulino e Germana escreveram seus testamentos em 1798 e 1801,
respectivamente. Mas além deles, podemos encontrar em outros momentos de fins do
XVIII e começos do XIX funerais imponentes ou requisitantes vultuosos de missas. Em
1784, José Vieira Nunes fazia seu testamento e ali pedia para que seu corpo fosse
acompanhado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, da qual era irmão, e pela
Irmandade das Almas, a quem se pagaria 12$000 de esmola. Da mesma forma, mandava
distribuir 8$000 aos pobres que o acompanhassem à sepultura, e 50$000 para os demais
pobres e necessitados da vila ou paragem onde ele falecesse. Pedia também 450 missas
para si e 150 para seus pais. Tudo somado, previa gastar 415$200 em seu funeral.
Este comportamento, este gasto vultoso de recursos por ocasião do funeral,
poderia ser entendido como uma espécie de “potlatch funeral”. Tanto no caso de
Paulino, como no de Germana, ele parece ter relação direta com o desejo de ascensão
social. No caso de José Vieira Nunes, não me parece diverso. Ele vinha da Ilha Terceira,
Açores, e não me consta tivesse adquirido um status muito elevado, a despeito de sua
riqueza. O consumo de cerimoniais e dos artefatos necessários para tal, como velas,
trajes (os hábitos), esmolas aos pobres, dentre outros, era uma forma de troca que
envolvia forças sobrenaturais, sacerdotes, membros de irmandades chamados a
participar na cerimônia, pobres, dentre outros. Com cada um o morto fazia um câmbio
diferente, ainda que o maior interlocutor fossem as forças divinas que avaliavam as
doações aos pobres, tinham seus representantes uma vez mais legitimados e autorizados
e ainda recebiam serviços religiosos e doações vultosas.
O resultado paralelo desta troca sobrenatural era o reforço da ordem social,
o reconhecimento de quem era pobre, de quem era irmão e da hierarquia da própria
Igreja Católica. Um movimento conservador, de certo modo, mas que permitia àqueles
próximos ao morto um reforço de suas posições e um relativo enobrecimento,
reconhecido e legitimado, ou não, pelos presentes no cortejo, no funeral e nas missas
posteriores, que poderiam se repetir por anos. Não sei se os deuses se sentiram pagos,
mas os homens tinham a exata dimensão do valor daquelas oferendas. É importante
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ressaltar que este não era o comportamento padrão ou mais regular. Foi um
comportamento diferencial que encontrei, dentre muitas possibilidades, onde não
encontrei um padrão claro. Mesmo dentre aqueles que realizaram funerais, havia quem
deixasse tudo aos cuidados dos testamenteiros ou pedisse apenas uma missa de corpo
presente ou que fosse enterrado em um pobre caixão com tudo feito sem vaidade.269
Talvez fosse mais uma forma de diferenciação social, no escopo das fronteiras étnicas
locais.
Como vimos, os benefícios adquiridos em uma cerimônia destas ou em
demandas vultosas de missas poderiam ser repartidos com o grupo denso mais próximo
ao testador, especialmente seus herdeiros, mas também poderia valer retroativamente no
tempo, beneficiando também as almas (ou a imagem pública) dos ancestrais. Este
parece ter sido um claro desejo de Germana de Camargo, ainda que não tenha sido a
forma mais comum em Sorocaba. Em Porto Alegre, contudo, as encomendas de missas
para as almas dos pais falecidos, considerando a pequena amostra que coletei270, eram
expressivas, tendo em conta que ali há menos missas encomendadas a divindades e
santos, algo mais comum em Sorocaba.
Nossa Senhoras
Continuemos nossa análise, considerando agora, um pouco mais, as forças
sobrenaturais e suas relações com os nativos que estamos observando. Dentre os 18
testamentos onde encontrei encomendas de missas e oferendas a divindades, 8 incluíam
Nossa Senhora, somando 13 oferendas. Esta entidade não deixava de ter seus mistérios.
Além de ser mãe de deus filho e seguir virgem, ela também tinha muitas formas. Não
precisamos nem sair de nosso caminho para perceber isso. Os tropeiros, com seus
animais, saíam, geralmente, de Nossa Senhora da Conceição do Viamão ou de Nossa
Senhora Madre Deus de Porto Alegre, cruzando, talvez, Nossa Senhora dos Anjos para
chegar em Nossa Senhora das Oliveiras de Vacaria, de onde seguiam para Nossa
Senhora dos Prazeres de Lages, Nossa Senhora dos Pinhais de Curitiba (mais
269 AESP-C05479. Testamento de Antonio de Arruda Penteado. 270 Apenas oito casos, nos quais encontrei três referências às almas dos pais.
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exatamente na Capela de Nossa Senhora da Conceição do Tamanduá) e finalmente
atingir Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba.
Mas nem todas tinham a mesma popularidade. Quatro delas tinham especial
destaque: Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da
Ponte (Padroeira de Sorocaba) e Nossa Senhora do Carmo. Uma doação, em particular,
foi feita em missas às dores de Nossa Senhora. O destaque maior, na região, era para
Nossa Senhora da Conceição, também conhecida como Nossa Senhora da Imaculada
Conceição ou, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, numa referência específica à
Virgem cultuada em Guaratinguetá, que tinha seus fiéis também em Sorocaba. Ela
também era a virgem de Jacareí, de Itanhaé e de Cunha, além das já mencionadas
Viamão e Tamanduá. Nossa Senhora Aparecida aparece em duas oferendas, uma de
missas outra de uma promessa. Eram primórdios da dimensão que o culto tomaria nos
séculos seguintes.271 A Conceição era também padroeira de Portugal, e um culto
especialmente apreciado pelos Padres Jesuítas.
Nossa Senhora das Dores não ficava para trás, sendo a favorita entre as
mulheres. Das três doações que encontrei, todas eram de testadoras. Mesmo Bárbara
Maria de Jesus, natural da Capela do Tamanduá, onde a padroeira era a virgem da
Conceição, fez sua oferenda à Senhora das Dores, sem mencionar a Conceição. Em
Porto Alegre também há expressiva referência à Virgem das Dores, onde há também
uma Irmandade desta devoção que, em 1807, inicia a construção de uma igreja de
grande porte, em uma área central da localidade. A Senhora das Dores tem profunda
relação com a maternidade, com as dores que a Virgem Maria teria sentido nos
momentos finais da vida de Jesus.
Nossa Senhora da Ponte aparece quase sempre relacionada ao fato de ser
padroeira da vila de Sorocaba. Aos oferendas ocorreram em 1780, 1781 e 1784 em três
testamentos. Em dois deles encontramos apenas uma missa para esta virgem,
juntamente com outras tantas oferendas, a maioria delas mais significativas. Chama a
atenção uma oferta de 50$000, de 1784, que era maior até que o valor gasto com as cem
missas encomendadas pela alma do testador, no caso, Antonio de Barros Lima. O mais
curioso é que Lima vivia trafegando com mercadorias entre Tocantins e Sorocaba, 271 SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de, "Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na colonização do Novo Mundo," Tempo, no. 11 (2006).
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passando ainda boa parte do tempo em Minas, tendo, ainda, filhos naturais expostos em
Tocantins.
A Virgem do Carmo foi devoção especial de apenas dois dos testadores que
encontrei para o período, em Sorocaba. Salvador de Almeida Lara pediu, em 1781 uma
missa, dentre outras tantas, para a Senhora do Carmo, enquanto Paulino Aires de
Aguirre, em 1798, fez a maior oferta que encontrei para uma Virgem: 200 missas, onde
gastou 64$000, ainda que fosse um valor pequeno, diante da totalidade de anúncios de
investimentos sobrenaturais realizados por Paulino quando de seu testamento. A Ordem
das Carmelitas tinha grande penetração no Rio de Janeiro e em São Paulo colonial, onde
havia estabelecimentos carmelitas para o abrigo de mulheres.272
Até aqui fomos um tanto “terrenocentristas”, dando voz aos testadores mas
tirando agência dos santos. E Nossa Senhora, independente de sua forma, não pode ser
entendida sem capacidade de agência. Ela era uma excelente intercessora, em suas
diversas aparições. Nos testamentos ela era sempre mencionada na abertura, um texto
baseado em uma fórmula de escrita, como já apontei, com pedidos de proteção e
intercessão junto ao Senhor. Ela tinha este papel claramente definido e, a despeito do
fato de que todos realmente acreditavam na vida após a morte, não havia jeito de
descobrir se ela era mesmo eficiente neste ministério. Mas ela podia ser muito boa em
outras atividades. Como vimos, Jeronimo Paes de Almeida fez uma promessa à Nossa
Senhora Aparecida, provavelmente em troca de algum pedido, e fez menção pública
disso em seu testamento. E como vimos, Germana de Camargo deixou uma doação à
Nossa Senhora das Dores, diretamente, enquanto outros optaram por deixar doações à
religiosos. Não era a mesma coisa.
As virgens marias ainda podiam ser madrinhas. Sirtori apresenta três casos
para a Freguesia dos Anjos, onde encontra a Conceição, a dos Anjos e da Oliveira ao
lado de padrinhos da melhor elite local, ao longo do período entre 1760 e 1784, assim
como também encontrou muitos outros exemplos desta prática na Freguesia de Viamão,
onde encontra um bom número de afilhados da Conceição e alguns da Senhora da
272 ALGRANDI, Leila Mezan, "Os livros de devoção e a religiosa perfeita (normatização e práticas religiosas nos recolhimentos femininos do Brasil colonial)," in Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz, ed. SILVA, Maria Beatriz Nizza (Lisboa: Editorial Estampa, 1995).
141
Oliveira, entre 1759 e 1769.273 Utilizando também os livros de batismos de Viamão e
Porto Alegre, encontrei a Senhora do Rosário batizando em 1782 (em Viamão) e Nossa
Senhora, sem especificação, batizando em 1774 e 1789 (em Porto Alegre).274 Hameister
também encontra este comportamento em Rio Grande para as últimas décadas do
XVIII, assim como Brügger o faz para São João del Rey no final do XVIII e início do
XIX.275
É preciso ter em conta a agência histórica da Virgem, independente de sua
existência. Na interação com ela, real ou não, os homens e mulheres daquele tempo
moldavam seu comportamento. Recursos eram transferidos, decisões eram tomadas,
parentescos eram organizados tendo em conta sua existência e sua intervenção nos céus
e na terra. Isso tudo sem falar de seu significado na estruturação da identidade dos
agentes, tanto entre cristãos (os que a adoravam e os que não o faziam), como dentre a
diversidade de devoções possíveis dentro do catolicismo. Como vimos, a devoção à
Nossa Senhora poderia tomar feições de diferença de gênero, como no caso da Senhora
das Dores, ou étnica, como no caso da Senhora do Rosário.
Santas e santos
Encontrei quatro ofertas à Santíssima Trindade. Paulino Aires de Aguirre
ofertou 100 missas, enquanto Antonia Pacheco de Arruda e José Vieira Nunes ofertaram
30 cada um e Salvador Almeida Lara ofereceu uma. Em todos os casos foram ofertas
“medianas”, sem grande destaque ou pouca importância. Mesmo sendo a mais alta
entidade sobrenatural do mundo católico, a tríade divina não agradava tanto como a
Virgem, nas suas diversas aparições. Mas ainda assim era um culto relevante. Na
aclamação popular, mesmo com a ampla difusão da idéia de unidade composta de três
pessoas num único deus, era o deus-filho, Jesus Cristo, o mais aclamado.
273 SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784). 274 ACMPOA. Livro de Batismo 01 de Porto Alegre; Livro de Batismos 04 de Viamão. 275 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim, Minas Patriarcal. Família e sociedade (São João del Rei - séculos XVIII e XIX) (São Paulo: Annablume, 2007), p. 303; HAMEISTER, Martha Daisson, "Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)" (UFRJ, 2006), p. 298.
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Somente a figura do corpo de Cristo na forma da eucaristia, o chamado
Santíssimo Sacramento, recebeu mais missas que toda a trindade, ainda que fosse pela
iniciativa de Paulino Aires de Aguirre, que ofertou 300 missas para esta devoção, mas
foi também lembrado por outras duas pessoas. Da mesma forma, o culto das chagas de
Cristo e o da paixão e morte de Cristo também estavam disponíveis. Antonia Pacheco
de Arruda, assim como José Vieira Nunes fizeram ofertas para estes cultos, assim como
para a Santíssima Trindade.
Em todos estes casos, o fato destas ofertas terem existido não indica, ao
menos para mim, uma alta popularidade destes cultos, mas apenas a sua disponibilidade
naquele universo mental. Por outro lado, me parece que há um peso desigual no
consumo de deuses da trindade, com o filho tendo uma popularidade superior aos
demais deuses. Mais do que isso, parece que a figura do deus filho está sempre
associada à idéia de sofrimento, na imagem das chagas, da paixão e morte, do corpo de
cristo na eucaristia e, até mesmo, na própria figura da senhora das dores, na compaixão
sentida pelo filho. Até mesmo as populares festas de Corpus Christi, comuns na
América Portuguesa, eram referentes à paixão e morte do mesmo deus.276 Isso parece
ter forte relação com a presença jesuítica nestas regiões.
Outra festa comum na América lusa era a procissão às Onze mil virgens.
Era um culto católico que fazia referência ao sacrifício de supostas onze mil
acompanhantes de uma moça chamada Úrsula, que teria ocorrido nas proximidades de
Colônia, no baixo Reno, entre 238 e 451.277 As tais virgens teriam resistido bravamente
ao assédio dos hunos e, por isso, acabaram todas mortas. Faltou conversa. Úrsula virou
santa, assim como todas as suas acompanhantes que de onze passaram a onze mil, já
que a má interpretação de narrativas deste acontecimento fez o número aumentar
sensivelmente.278 Tal culto chegou a Portugal em 1517, através da doação de umas
relíquias destas virgens pelo Imperador Maximiliano à sua irmã, Dona Leonor, Rainha
de Portugal. Em 1575, chegaram a Salvador, vindas no galeão São Lucas, as cabeças de
duas das onze mil virgens, que foram, na ocasião, declaradas padroeiras da América
276 TINHORÃO, José Ramos, As festas no Brasil Colonial (São Paulo: Editora 34, 2000). 277 Ibid. 278 Há várias explicações para isso. Umas delas seria a que Úrsula teria doze anos, o que, numa leitura atrapalhada do latim, teria sido lido como onze mil.
143
(lusa) pelo Bispo de Salvador, que ainda recomendou festas locais na passagem das
cabeças pelas vilas americanas.279
As festas das virgens na Bahia começaram ainda no XVI e se estenderam
até o XVIII. Em São Paulo havia, igualmente, uma das cabeças das virgens.280 Não sei
identificar o momento em que as festas na capitania paulistas em honra às virgens foram
iniciadas, mas em 1728 os estudantes do colégio jesuítico promoviam estes festejos, que
se alargavam em muitos dias, entre o preparo e a realização.281 A difusão desta devoção
é perceptível em outras fontes. Encontrei o nome Josefa de Santa Úrsula em Curitiba no
final do XVIII nas listas nominativas, e também outras Úrsulas em geral, não só em
Curitiba, mas também na Lapa, em Lages e Sorocaba.
Encontrei duas oferendas de missas a estas onze mil virgens, as duas em
Sorocaba, uma em um testamento de 1780, de Antonia Pacheco de Arruda, outra com o
testador Salvador Almeida Lara, em 1781. Ambas foram doações expressivas, tendo em
conta as o conjunto ofertado. Depois destas duas, próximas temporalmente, não
encontrei mais nenhuma incidência desta devoção. Analisando a amostra de testamentos
de Porto Alegre, não encontrei nenhuma referência. No Rio Grande de São Pedro, em
geral, nem mesmo o nome Úrsula era muito disseminado, como pude observar em róis
de confessados e livros de batismos.282 Nos livros de batismos, nas poucas vezes em que
aparece, está associado a pessoas vindas de Braga, Bahia (lugares onde havia o culto às
virgens) ou Laguna, fundada por paulistas.283
O culto das onze mil virgens tinha grande inclinação jesuítica e sua
disseminação no América lusa sempre esteve associada às atividades festivas
promovidas pelos estudantes de colégios da Companhia, especialmente em São Paulo e
279 CYMBALISTA, Renato, "Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna," Anais do Museu Paulista 14, no. 02 (2006). 280 No XVI havia seis cabeças das onze mil virgens na América lusa. Três na Bahia, uma em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e outra em Pernambuco. TINHORÃO, As festas no Brasil Colonial. 281 Ibid. 282 ACMPOA. Róis de confessados de Gravataí (1780, 1782, 1784, 1789, 1790 e 1791); Rol de Confessados de Viamão (1778); Rol de Confessados de Triunfo (1758); Livro 01 de Batismos dos Anjos; Livro de Batismos 01 de Porto Alegre; Livro de Batismos 03 e 04 de Viamão. 283 ACMPOA. Livro 01 de Batismos dos Anjos; Livro de Batismos 01 de Porto Alegre; Livro de Batismos 03 e 04 de Viamão. Sobre o culto das Onze mil virgens em Portugal, ver MARTINS, Fausto Sanches, "Culto e devoções das igrejas dos jesuítas em Portugal," in A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos séculos XVI e XVII. Espiritualidade e cultura., ed. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Porto: Instituto de Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Centro Inter-universitário de História da Espiritualidade da Universidade do Porto, 2004).
144
Salvador. A difusão geográfica deste culto mais concentrada em São Paulo e muito
menos nos localidades mais ao sul, também confirmam esta hipótese. E não deixa de ser
interessante que das três crianças que encontrei sendo batizadas com o nome de Úrsula
nos livros de Porto Alegre, Viamão e Anjos, uma fosse filha de guaranis vindos da
Missões, que também haviam tido uma educação jesuítica.284
É possível verificar, contudo, a historicidade destes cultos associados ao
sofrimento de Cristo. As referências que encontramos de ofertas a estas manifestações
foram todas da primeira metade da década de 1780. Os anos seguintes assistem ao
crescimento das ofertas feitas aos pobres e necessitados, à redenção dos cativos
cristãos, enquanto a adoração à Virgem Maria e aos santos segue contínua até o final da
nossa amostra. Vovelle sugere, tendo em conta seus estudos sobre Provence no século
XVIII, que a laicização poderia ser avaliada a partir das fórmulas dos testamentos:
...encontramos na maioria das curvas que o exame dos testamentos provençais permitiu estabelecer: missas, escolhas de sepulturas, legados ou filiação a confrarias. Mais profundamente, surpreendemo-nos com a laicização das próprias fórmulas e a redução, nesses atos, da invocação à Virgem e aos santos protetores. 285
Comparando com os casos que estamos observando, não apenas as fórmulas
da abertura dos testamentos não se altera, e segue invocando a trindade, a virgem, os
santos e anjos, assim como as encomendas de missas seguem referindo à mãe de deus,
aos anjos e santos. O que percebo é uma transformação no estilo católico, rumando de
um culto barroco para uma crescente adoração mariana. E não acho que se tratasse de
um câmbio apenas religioso. As ofertas de Antonia Pacheco Arruda são eloqüentes,
neste caso: entre as ofertas às chagas de Nosso Senhor Jesus, as chagas de São
Francisco, as dores de Nossa Senhora e as Onze mil virgens, encontramos, mais
importante que estas, ao menos em valores, uma oferenda às almas de seus escravos,
administrados e agregados. Eram os estertores da escravidão indígena em Sorocaba, que
de algum modo coincidiam com o fim daquele culto pesado, que facilmente podíamos
rotular de barroco. Eram os últimos anos do século XVII na capitania paulista.
284 ACMPOA. Livro 01 de Batismos dos Anjos; Livro de Batismos 01 de Porto Alegre; Livro de Batismos 03 e 04 de Viamão. 285 VOVELLE, Michel, Ideologias e mentalidades (São Paulo: Brasiliense, 1987), p. 357.
145
No início do XIX, encontramos Germana de Camargo ofertando à Nossa
Senhora das Dores, e não às dores da Senhora, enquanto Jeronimo Paes de Almeida
invocava São Francisco, mas sem as suas chagas. Acredito que a manutenção deste
estilo católico mais pesado estivesse relacionada com os padres da companhia. Não só a
devoção às onze mil virgens, mas a filiação à imagem mariana das Dores e da
Conceição, assim como a Santíssima Trindade e o Santíssimo Sacramento, eram
argumentos espirituais muito ligados ao culto jesuítico.286 Mas isso é mais uma hipótese
que uma afirmação. Restaria investigar com cuidado a circulação dos preceitos
jesuíticos em São Paulo colonial, para verificar até que ponto eles tinham difusão. De
qualquer maneira, as oferendas feitas ao sobrenatural no década de 1780, nos
testamentos sorocabanos, me parece um forte indício.
A mesma historicidade encontrada para o culto das chagas de cristo, e outras
passagens do martírio divino, pode ser vista para o culto dos santos, de um modo geral.
A maior parte das oferendas feitas a santos ocorrem também no início da década de
1780, só se repetindo em 1798, com o grande potlatch de Paulino Aires de Aguirre. E
também aqui encontramos algumas marcas jesuíticas. Os santos preferidos estão no
panteão principal da Companhia de Jesus: São Miguel e Santa Ana aparecem com certo
destaque. Mas não são os únicos. Também há espaço para São Francisco, São Francisco
de Paula e São José.287 Mas o mais interessante, ainda que não seja exatamente o mais
recorrente, são algumas ofertas especiais a santos “caseiros”.
Salvador Almeida Lara, em 1782, pediu missas para o Glorioso Santo
Antonio de Domingos Vaz, para o Senhor Bom Jesus de minha casa. Em 1797, Antonio
de Arruda Penteado dedicava um dobra (12$800) ao Santo Antonio de sua casa e em
1798, Paulino Aires de Aguirre dava instruções de como queria construir um nicho para
colocação de um São Francisco de Paula na esquina de sua casa. Eram manifestações
diversas de um catolicismo familiar, muito ligado ao culto dos santos e que tendo
origem em Portugal, certamente encontrava referência nos cultos africanos e americanos
e poderia mesmo se remodelar a partir destas experiências.288
286 MARTINS, "Culto e devoções das igrejas dos jesuítas em Portugal." 287 Ibid. 288 AESP-C05476-1; AESP-C05479-4; AESP-C05484 Testamentos de Sorocaba.
146
O fogo do purgatório
Semelhante ao inferno, o purgatório era uma possibilidade bastante concreta
para todos os cristãos, especialmente se lembrarmos o grande repertório de pecados
existente. As poucas pessoas que podiam se orgulhar de não ter pecados já estavam
pecando por soberba e o purgatório já era uma instituição popular entre os fiéis. Como
já vimos antes, a prática de encomendar missas à própria alma era recorrente nos
registros que encontramos e está perfeitamente relacionada com a expectativa do
purgatório, que para muitos poderia ser até otimismo. Melhor que o inferno, o
purgatório era temporário e com saída paga em missas. Mas não era apenas a salvação
da própria alma que inquietava. As vicissitudes da vida e as relações terrenas acabavam
tendo longa continuidade no além, e de diversas formas. Vejamos primeiro o que nos
dizem nossos amigos.
Os testamentos de Porto Alegre nos apresentam uma grande preocupação
com os pais e aparentados dos testadores, o que já interpretamos como um problema
terreno e social. Mas o problema certamente não se resume a isso, especialmente porque
havia casos que não supunham a ascensão dos pais, mas a salvação de sua alma. Mesmo
em situações onde não havia herdeiros que pudessem engrandecer-se com as
encomendas de missas, este investimento era feito e foi, depois das encomendas das
almas dos testadores, a maior inversão em “produtos de consumo além-túmulo”, sem
contar o fato de que eram geralmente as únicas duas oferendas feitas.289
Em Sorocaba o cenário era um pouco diverso, mas também confirma a
preocupação com os espíritos da casa e amigos: Antonia Pacheco de Arruda, de uma
importante família local, ofereceu 20 capelas às almas dos Pais, irmãos e demais de
obrigação e 25 capelas às almas dos escravos, administrados e agregados. Salvador
Almeida Lara ofereceu bulas pela alma do seu pai, de seus padrinhos, do Padre José de
Anhaia, de José, seu escravo, e pelas almas dos que tem morrido por estes sertões,
curiosa oferenda, semelhante à feita por Jeronimo Paes de Almeida muito tempo depois,
em 1807, à alma de um camarada que morreu no sertão. Da mesma sorte, Germana de
Camargo legou missas à alma da mãe, marido, parentes e benfeitores.
289 Talvez estas diferenças entre Porto Alegre e Sorocaba seja grande devido ao “filtro” realizado pelos escrivães ou sacerdotes. Uma crítica mais apurada deste documento e das orientações valorativas dos escrivães poderia apontar detalhes importantes para investigação. ACMPOA. Livro 01 de Testamentos.
147
Eram igualmente comuns e importantes as oferendas feitas àqueles defuntos
com quem tive negócio. Jeronimo Paes de Almeida foi precavido e mandou rezar 80
missas pelas almas daqueles defuntos com quem tive negócios e poderia ter algum
encargo, não havendo encargo, as missas serviriam para as almas de seus parentes e
escravos falecidos. Esta era visivelmente a maior oferta que ele fazia, cerca de 90% de
todo o seu passivo sobrenatural, além de duas promessas de baixo valor, três bulas e
doze bois. Também em Sorocaba, Paulino Aires de Aguirre ofereceu 50 missas aos
vivos e mortos que com ele negociaram e Germana de Camargo, já nossa conhecida, fez
uma Restituição por negócios malfeitos oferecendo dez missas. Nestes dois últimos
casos, o valor desta oferta específica era relativamente baixo, tendo em conta todo o
passivo de ofertas.290 Da mesma sorte, em Porto Alegre, encontrei José Joaquim Pereira
oferecendo três cerimônias à mesma causa.291 Em 1802, em Porto Alegre, Manuel
Francisco Ribeiro anunciava dever míseros 480 réis (doze tostões) a uma senhora em
Lisboa, que pela idade calculada, já deveria ter morrido e determinava seu pagamento
em forma de missas pela alma da mesma.
Encontrei também algumas oferendas às almas do purgatório em geral,
prática bastante comum e recorrente na América lusa.292 Estas ofertas eram feitas não
por interesse direto neste benefício, situação já criada pelas missas à alma do falecido,
mas principalmente pela insegurança que os vivos tinham em relação às capacidades de
ação das almas no plano terreno ou no seu real sofrimento, no caso de parentes, amigos
e aliados. Da mesma forma, quando as almas atingissem um plano superior, o céu,
poderiam também orar pelas que ficaram no purgatório e até mesmo interceder pelos
vivos. João José Reis apresenta alguns elementos que podem ajudar a aumentar as
possibilidade de “problemas de relação” entre os vivos e mortos, que certamente fazia
parte da vida dos homens e mulheres que estamos observando:
A doutrina do castigo purgatorial, entretanto, se incorporou ao imaginário popular sem eliminar antigas concepções. Por exemplo, se no discurso eclesiástico as almas penavam no purgatório, uma longa tradição que entre nós remonta a Portugal, sugere que elas podiam circular entre o Purgatório [...] e a Terra, ou vagar sem
290 AESP. Testamentos de Paulino Aires de Aguirre (C05484), Germana de Carmargo (C05490) e Jeronimo Paes de Almeida (C05489). 291 ACMPOA. Testamento de José Joaquim Pereira. Livro T1; p. 132. 292 SANTOS, Trânsito material e práticas creditícias na América Portuguesa - Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais, século XVIII; CAMPOS, "A veneração às almas do Purgatório: um contraponto entre Portugal e a Colônia."; RODRIGUES, Cláudia, "Os africanos e as apropriações das representações católicas sobre a morte no Rio de Janeiro colonial," Especiaria, no. 18 (2007).
148
rumo entre os vivos. Essa inquietação errante representava uma punição ainda mais dura do que o Purgatório. Mais dura, tanto para os vivos quanto para os mortos, porque contrapunha mundos e seres essencialmente antitéticos.293
Bem ou mal estes agentes sobrenaturais se faziam presentes e interferiam
nas decisões dos vivos, ainda que fosse só na hora da morte. Isso produzia um
significado importante. Ainda que fosse uma doação preocupada com aspectos do
mundo dos vivos, era orientada por aspectos sobrenaturais. As dívidas com os deuses
orientavam o acerto das dívidas entre os vivos e suas inversões, ao menos no momento
da morte.
Alguns modelos nativos
Em abril de 1778 chegava à Lisboa um requerimento enviado por aqueles que se
denominavam os negociantes que vivem de comprar cavalos, mulas e gados nos
continentes do sul.294 Tal carta tinha em foco claro: denunciar o contratador do Registro
de Curitiba, Santa Vitória e Viamão, Antonio Fernandes do Vale. Isso porque aquele
sujeito mantinha uma atitude danosa, na visão dos requerentes, que prejudicava seus
negócios.
Escrita numa linguagem confusa, a carta dos tropeiros, nem por isso, deixa
de ter seus artifícios retóricos. É certo que seu redator pretendia convencer seus leitores
e, para tanto, utilizou-se de alguns recursos que dispunha, ainda que não fossem muito
sofisticados. O primeiro deles é a identificação de um inimigo, no caso, Antonio
Fernandes do Vale, arrematador da cobrança dos direitos dos Registros de Curitiba,
Viamão e Santa Vitória. O texto tenta caricaturizá-lo como um mau sujeito, em
oposição aos pobres tropeiros, vítimas de sua opressão, gerando um antagonismo
explícito, que foi apresentado como sendo de longa data.
O texto inicia com uma apresentação do cotidiano daqueles homens: pagar
um valor expressivo na passagem dos Registros, com tempo para pagamento de seis
meses findos dos quais se cobrariam juros da lei (5%), tudo isso depois de chegarem
293 REIS, João José, A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São Paulo: Cia das Letras, 2004), p. 203-204. 294 AHU-São Paulo (avulsos) Cx. 9 -Doc. 475.
149
cansados de uma tão dilatada jornada, caminhos tão ingremes, como o de uma mata,
onde gastam vinte e mais dias, todo sertão. O pagamento destas dívidas se dava após a
venda dos animais e o recebimento do dinheiro. Isso poderia levar mais de dois anos. O
valor da tributo de passagem dos gados seria uma constante para eles, mas nunca com
aqueles juros, inda que fosse freqüentemente arrematado por diversas pessoas.
O argumento de Fernandes do Vale seria simples: o tempo que se passou, o
que não foi bem aceito pelos requerentes. Eles insistiam na novidade da cobrança,
afirmando que outros contratadores não procediam desta maneira, e que pouco
importava quem fosse o arrecadador, esse não era o costume. Fernandes do Vale
também argumentaria que ele próprio tomava dinheiro a juros para não lhe faltar a
palavra. Para os requerentes, isso não era motivo para repassar a cobrança e ressarcir-se
nos bens dos pobres negociantes. Ao fim e ao cabo, este problema atingiria até a
Fazenda Real:
Tem vossa majestade imensuráveis prejuízos e há de ter conservando rematantes como este que se cogita por todo o modo, de esgotar aos negociantes vexando-os, rematando-lhes seus bens e tomando e comprando crédito para cobrar dos ditos negociantes a frieza do contrato, cobrando juros ilicitamente homem tão terrível que não consente vender animais sem que primeiro se lhe pague quanto se lhe dever.295
Os requerentes argumentavam pelo fim dos remates e pela administração
régia das unidades arrecadadoras, o que traria maiores ganhos a Sua Majestade, além de
pedirem tempo para dispor das suas tropas, de forma a poderem tratar de seus negócios
e pagar adequadamente os tributos.
As petições, contudo, não paravam por aí. As práticas de Antonio Fernandes
do Vale voltariam a ser assunto na carta, mas havia outros problemas igualmente
importantes, que se misturavam com este naquela representação-desabafo: o acesso à
justiça, a participação e financiamento dos corpos militares Auxiliares, a liberdade de
circulação de animais de ventre e o abuso perpetrado pelos dizimeiros.
Em meio à lista de solicitações, uma dizia respeito pontualmente à falta de
justiça. Os requerentes pediam em seu nome, do bem comum e do serviço de Deus que a
Rainha ordenasse que qualquer pessoa, de qualquer qualidade, poderia dirigir-se a Sua
295 AHU-São Paulo (avulsos) Cx. 9 -Doc. 475.
150
Majestade ou algum seu representante para pedir justiça, único remédio para o sossego
desta capitania. Acabavam igualmente pedindo proteção para quem fizesse queixas,
desde que verdadeiras e, uma vez apuradas, com a punição das falsas.
Outro problema capital era o serviço nas tropas Auxiliares. Eles não
queriam mais passar pela vexação de ser tornarem soldados de pé e cavalos, tendo que
fardar-se de suas custas sem podermos tratar de nossos negócios, e [ilegível] ouro nas
nossas Lavras tratarmos dos nossos Animais, sem que haja operação de guerras. Na
continuação, manifestavam sua fidelidade, afirmando que a Rainha certamente não
ignorava que os vassalos do Brasil, especialmente os da capitania de São Paulo, eram
tão firmes e leais que se não rendem. Parece razoável pensar o impacto do alistamento
de um filho de uma destas famílias quando lembramos que, como vimos no capítulo 03,
boa parte das famílias do caminho das tropas se dedicava à lavoura, atuando
simultaneamente, em certo casos, no comércio de animais. A fidelidade, contudo, estava
alicerçada em outras coisas: pediam que não lhes fossem tiradas as conveniências em
postos e ofícios, conveniências em fundições e erários régios já que aqueles que
recebessem conduzidos da obrigação, honra, e espírito, mais fácil será morrer, do que
entregar sem ação alguma.
Os impostos também entravam na pauta de reivindicações, mas não de todo.
Se queixavam de uma nova tributação sobre cada animal para o pagamento dos
ocupantes dos postos de Sargento-mor e Ajudantes. Segundo os requerentes, haveria
pessoas suficientes para aqueles serviços que poderiam servir sem nenhum soldo.
Concluíam pedindo a suspensão daqueles tributos. Da mesma forma, pediam permissão
para circularem com animais de ventre, como éguas e vacas entre diferentes distritos,
para que assim pudessem criar os animais onde nos parecer melhor. Igualmente pediam
isenção dos direitos de passagem daqueles animais, já que a produção dos mesmos já
era tributada.
Um último problema dizia respeito aos dizimeiros. Segundos os requerentes,
os cobradores daquele tributo não estariam dando atenção aos mandamentos da Madre
Igreja, que ordenavam a cobrança de dez um, mas cobrariam mais quatro mil réis por
pessoa, cobrando juros quando houvesse demora. Argumentavam ainda das dificuldades
que tinham nas suas produções, que só aumentava com aqueles tributos exagerados.
151
Todas estas coisas se passavam pela distância que havia até Sua Majestade: nada nos
havia suceder se Vossa Majestade estive se mais perto de nós, ou se o mar nos não
impedisse. Diziam ainda que as queixas se suspenderiam se formos governados como
éramos antigamente.
Em seu final, a carta retornava ao problema de Antonio Fernandes do Vale,
contando o caso de um incidente envolvendo tropeiros e contratador: este último havia
proposto a não cobrança de metade dos importes e, além disso, mais tempo para pagar,
caso aqueles passassem suas tropas antes de uma determinada data (quando o Antonio
Fernandes temia perder o contrato, numa nova arrematação). Após este acordo, o
mesmo contratador teria seguido em suas cobranças como sempre fizera, ignorando a
proposta que havia feito e exigindo de muitos o pagamento integral, além de manter
cobrança de juros. Os autores da carta, que se reinvindicavam os de maiores tropas e
mais conhecimento, não teriam passado por este problema pois haviam recorrido à Real
Junta de Comércio. Os juros, contudo, ainda foram cobrados, por ser Antonio Fernandes
do Vale tesoureiro daquela mesma instituição régia.
Como entender este documento? Como caracterizar seus autores? Podemos
iniciar apontando alguns eixos principais por onde caminham os argumentos.
Entendemos que tal carta se concentra, basicamente, em dois pontos chave: um certo
entendimento de como deve funcionar a economia e uma relação ambígua com certas
manifestações do processo que levaria a fortalecimento do Estado luso, ainda bastante
incipiente naquela região. Há também neste texto uma clara diferenciação que considera
a existência de juros legítimos, em contraposição àqueles cobrados ilicitamente.
Segundo o critério aparente na avaliação destes tropeiros, o problema estaria no grande
prejuízo que estas cobranças causavam ao negócio das mulas, especialmente aos
pequenos mercadores, o que fica implícito em várias passagens.
Outro aspecto, relacionado com a avareza, era a ambição. O antagonista
principal, Antonio Fernandes do Vale, era, por esta característica, considerado um
homem terrível que, além de contratador, também estava interessado no negócio de
animais, sob os quais não pagava os tributos de passagem. Fica claro que os tropeiros,
na sua estratégia argumentativa de apresentar Antonio Fernandes como um antagonista,
indicam seu provável interesse em prejudicar os demais negociantes, o que provocaria
152
grande ruína ao comércio e aos interesses da Coroa, tendo S. Majestade inumeráveis
prejuizos e há de ter conservando rematantes como este.
Este apelo faz referência bastante clara a uma outra noção que parece
importante para aqueles sujeitos: o bem comum. Não era apenas um problema individual
ou exclusivo do grupo de negociantes. A ambição de Antonio Fernandes prejudicava o
conjunto dos súditos de Sua Majestade, uma vez que tal negócio era manipulado por
inúmeras famílias. O mesmo panorama se mostra no repúdio a certas práticas dos
dizimeiros, numa ambição que prejudicava a economia local. Aqui novamente
encontramos o problema com a cobrança de certo tipo de juros. Para aqueles homens,
identificar quem mantinha esta prática era uma forma de separar o joio do trigo.
Um elemento apresentado em certa altura da carta é particularmente
interessante. Os tropeiros afirmavam que Antonio Fernandes comprava créditos para
cobrar a frieza do contrato. Tal prática pode ser bem relacionada à emissão de letras de
câmbio, comum em outros espaços americanos e europeus296 e que era igualmente
possível na Curitiba de finais do XVIII, como indicam as escrituras, ainda que pouco
aparecesse naqueles documentos. De qualquer forma, o modo como a narrativa é
construída pelos autores utiliza mais este dado para corromper ainda mais a imagem de
seu antagonista, o que era estrategicamente válido. Mesmo tendo isso em conta, não
deixa de ser sonora a forma como tal problema era tratado. Não era uma coisa
totalmente aceita, se fosse, nem seria mencionado, ainda que pudesse ser praticada pelos
próprios redatores.
Alienar a relação existente entre as partes contratantes de um crédito, algo
possível quando um crédito é comprado ou vira letra, era saliente para aqueles homens,
algo do que se podia temer, algo que remodelava o próprio significado daquele negócio.
O fato de que a pressão exercida pelo contratador (e por outros, como os dizimeiros)
importunava aqueles tropeiros a ponto de se queixarem a Coroa sugere que a atitude
daquele sujeito já acabava prejudicando muito os negócios dos tropeiros, atrapalhando
296 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de, Crédito e circulação monetária na colônia: o caso fluminense, 1650-1750. Encontro da ABPHE. 2003; FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). FLORENTINO, Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro - séculos XVIII e XIX. BRAUDEL, Fernand, Civilização material, economia e capitalismo: os jogos das trocas (São Paulo: Martins Fontes, 1998).
153
seus projetos de enriquecimento ou sobrevivência. As queixas do documento são claras
neste sentido, ainda que fossem, evidentemente, apresentadas de forma a dramatizar
ainda mais o cenário. Podemos compreender melhor o real significado daquelas queixas
se tivermos em conta outros problemas expostos na mesma carta.
Os tropeiros pediam dispensa do serviço militar nas tropas auxiliares. Na
verdade, sua queixa era ao fato de servirem como soldados daquelas tropas, algo
socialmente pouco expressivo, ainda que os postos de comandância daqueles
regimentos pudessem ser atrativos. Por outro lado, se diziam prontos a ocupar postos de
comandância como o de Sargento-mor e outros, como aqueles que garantiriam a
fidelidade em caso de conflito nas fronteiras. Os autores da carta não pareciam estar
entre hierarquicamente no topo da elite local ou mesmo situados entre os grupos de boa
qualidade. Sua reivindicação por justiça a quem lhe faltar, independente de sua
qualidade, parece indicar que aqueles negociantes sentiam certo desconforto com sua
posição, certamente reforçado com o fato de se verem na posição de soldados auxiliares,
ainda que manejassem com as maiores tropas.
Parece que estamos diante de um grupo de comerciantes que viram em
Antonio Fernandes do Vale alguém que atrapalhava suas expectativas de ascensão
social, talvez possível através de seu crescimento econômico, em algum momento de
suas vidas ou das de seus filhos e netos. Naquele momento, a possibilidade de galgar
degraus sociais a curto prazo, naquelas paragens, era realmente muito pequena.
Analisando a localidade de São José dos Pinhais (e apresentando dados semelhantes
sobre Curitiba), Machado apresenta um cenário onde mesmo a elite tinha dificuldades
em incorporar terras, escravos e dependentes aos seus domínios.297
Antonio Fernandes do Vale não era a única pedra no caminho daquele
tropeiros. Algumas medidas advindas da governança lusa eram questionadas, ainda que
de forma parcial e ambígua. Os novos impostos eram indesejados, assim como a
proibição do movimento de animais de ventre entre diferentes partes da capitania. Da
mesma forma, como já foi dito, o serviço militar era igualmente visto como um
problema. Ao mesmo tempo, a concessão de postos era desejada, assim como a
intervenção da Coroa na justiça e na economia local. 297 MACHADO, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX), pps. 117-118.
154
Estes elementos nos indicam certa reação daqueles homens com algumas
das medidas centralizadoras que partiam de Lisboa e passavam por São Paulo, sede da
capitania. Tal ainda era reflexo dos esforços realizados pelo Morgado de Mateus, que
havia recentemente saído do governo daquela região. Esta reação se vê claramente
quando os tropeiros afirmam que gostariam de ser governados como éramos
antigamente. Tal movimento, contudo, é estrategicamente ambíguo, na medida em que
procura utilizar esta centralização no controle dos inimigos, no caso, de Fernandes do
Vale e dos dizimeiros. Não era uma atitude saudosista, mas demandas racionais dentro
do quadro de perspectivas de ação vislumbrado por aqueles homens.
Em janeiro de 1782, os vereadores de Sorocaba escreviam à Sua Majestade,
Dona Maria, tratando de um sujeito bastante peculiar, Paulino Aires de Aguirre:
Se acha esta vila em contínua desordem por miscelâneas e orgulhos do Tenente Coronel Auxiliar da Cavalaria Ligeira Paulino Aires de Aguirre, e seu sogro Salvador de Oliveira Leme, pretendente e interessante ao dito posto, sendo este um sujeito totalmente insuficiente para o exercer tanto pela sua qualidade por ser de baixa esfera e ter exercido nesta vila por si, e seus antepassados, anos bastantes, ofício de taberneiro público, como pela sua capacidade por ser de gênio orgulhoso e intrigante, e ter saído por vezes criminoso de vários crimes, assim nas devassas dos corregedores como nas ordinárias, e entre esses por usar de pesos e balanças falsificadas, o que tudo não foi bastante, para que deixasse de conseguir o ser inspetor do Registro desta Vila, dos direitos de animais, vindos do continente de São Pedro do Sul e Viamão, que pagam a Vossa Majestade os tropeiros e comerciantes em cujo emprego se ensorbebeceu [sic] ele, locupletou muito vexando aos ditos miseráveis tropeiros com capa dos Direitos de Vossa Majestade em tal maneira que uns para não sentirem maior prejuízo lhe tem dado e dão bestas; outros, cavalos; outros reses e outros finalmente tem desertado deixando seus animais com gravíssimo prejuízo seu, com prejuízo do comércio e dos mercadores que fazem assistências às ditas tropas, que ficam muitas vezes por se pagarem vindo ele inspetor a pegar em tudo e fazer rematar executivamente por preços ínfimos, para seus pagamentos particulares com o pretexto de Direitos de Vossa Majestade, e outros absurdos maiores cometeria se continuadamente não estivesse reprimindo o Exmo. General que nos governa.298
Apesar da posição social notoriamente distinta destes vereadores em relação
aos tropeiros, impressiona a semelhança dos argumentos. Mesmo com a diferença de
estatuto, os vereadores convergiam com os tropeiros em diversos pontos. A técnica
discursiva é semelhante. Também os vereadores iniciam com a construção do
antagonista, um sujeito ambicioso que locupletou muito vexando aos ditos miseráveis
tropeiros. Neste caso, diante da nobreza dos redatores, o elemento de comparação eram
“eles”, os tropeiros, novamente. A “fronteira” que os vereadores estabeleciam entre si e
298 AHU-SPMG. 3009.
155
aquele homem de gênio orgulhoso e intrigante era a hierárquica: além de sua ambição,
salientavam sua vileza, sua baixa estatura social de taberneiro público que falseava os
pesos e as medidas utilizadas, o que só reforçava sua imagem de ambicioso.
Neste sentido, a relação entre ambição e prejuízo do comércio e dos
mercadores é um elemento comum. Tropeiros e vereadores, mesmo com estatutos
diferentes, compartilhavam a idéia de que o ganho desmesurado de uns gerava o
desequilíbrio. Este argumento se assemelha à idéia predominante em outra manifestação
escrita, esta no Rio Grande, em 1783. Uma carta anônima, dirigida ao Vice-rei,
denunciava a demasiada ambição de Rafael Pinto Bandeira em seus negócios de
contrabando na Lagoa Mirim. De forma semelhante aos vereadores e aos tropeiros, esta
carta constrói o antagonista em oposição aos pobres da Fazenda Real, aqueles que mais
sofreriam com as atitudes do monstro.299 Dentre uma série de denúncias, o argumento
do prejuízo causado pela ambição era o principal, ratificado por uma série de
argumentos que reforçavam aquela acusação.300 Concluíam pedindo ao Vice-rei
medidas para conter o poder avassalador de Pinto Bandeira na região.
Os vereadores, por um lado, deixam claro que não reivindicam igualdade,
mas eqüidade, ou seja, que cada um ganhasse conforme sua posição, e a de Paulino era
baixa. Se os tropeiros parecem preocupar-se com as dificuldades de ascender
socialmente, os vereadores, tendo em vista o mesmo universo, preocupavam-se com a
facilidade com que um sujeito da baixa esfera pretendia se alçar a Capitão-mor. Se este
era um contexto onde a ascensão social era difícil, como fica sugerido na carta dos
tropeiros e conforme nos diz Machado301, certamente tinha muito a ver com a força das
elites locais estabelecidas nos postos de governo. No caso de Sorocaba, era uma elite
muito ciente de si, que em seus espelhos via a nobreza da descendência dos
conquistadores e das famílias mais importantes da Capitania paulista, e que controlava a
Câmara e o posto de Capitão-mor.
299 Arquivo Nacional. Códice 104. Volume 06. p. 143. 300 Sobre a carta de 1783 de Rio Grande, ver os seguintes trabalhos: SILVA, Augusto da, Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro (Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999); GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). 301 MACHADO, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX).
156
A hierarquia era um valor plenamente compartilhado naquela sociedade e
entendido como resultado da colocação de cada um segundo sua qualidade. Mesmo
quando pediam justiça independente de critérios de qualidade, os tropeiros não estavam
exigindo direitos iguais e, ao fim e ao cabo, queriam condições para que dentro de suas
reduzidas possibilidades pudessem garantir alguma ascensão, por mérito. Esta
hierarquia se formava, especialmente, através de concessões de mercês, ofícios e mais
postos, como os desejados pelos tropeiros. Esta ordem nascia, então, das relações entre
os súditos e a monarquia e garantia os equilíbrios necessários para a manutenção do
Império. E este equilíbrio significava desigualdade. A mesma hierarquia pode ser vista
nas listas nominativas, como já vimos, e em muitos outros documentos. Particularmente
eloqüente é a forma como Manuel José Correia da Cunha, do Registro de Curitiba,
marcava suas fronteiras com outros membros daquele mundo:
pois quando o senhor coronel José Vaz me não serve em semelhante ridicularia [compra de uma faixa] quanto mais em coisa de maior suposição quando eu me persuado que de alguma forma me devia servir ainda que é sub-coronel e eu não sou nada espero de vossa mercê resposta para me poder desculpar em que ma encomendou302
As relações entre os poderes locais e os poderes centrais (tanto Lisboa como
aqueles presentes nas localidades) permeavam as três cartas. Os tropeiros não
compartilhavam com os vereadores de Sorocaba a preferência pelo então governador,
Martim Lopes Lobo de Saldanha, que assumira no lugar do Morgado de Mateus. Mas,
para ambos, a presença do poder central era uma peça chave na resolução dos conflitos
locais. Os tropeiros entendiam aquela ação como necessária para equilibrar o jogo
contra Antonio Fernandes do Vale e sua política que levava à ruína do comércio.
Os vereadores de Sorocaba, igualmente, percebiam na ação do governador a
atitude necessária para conter os excessos e miscelâneas de Paulino Aires de Aguirre e
pediam a chancela da Rainha para reforçar seus próprios poderes locais. Da mesma
forma, a carta anônima escrita em Rio Grande pedia a ação da Coroa, na figura do Vice-
rei, contra o abuso do poder local, ainda que este poder tivesse a chancela de Lisboa,
simultaneamente. A monarquia permitia, assim, que todos pudessem encomendar seu
principal produto oferecido: a justiça, entendida como equilíbrio desigual de
302 BN-II-35,25,17-005.
157
possibilidades. Enquanto a Corte Celestial não fazia seu trabalho, cabia ao monarca
arbitrar os homens e casas que constituíam seus domínios.
Há ainda outro elemento que permeia as três cartas, que extraímos do
negativo daquelas três fotografias: a violência. Todas as manifestações apresentaram
antagonistas violentos, sempre associados a pratica de crimes diversos. A esta lista
ainda poderíamos incluir o Capitão-mor de São Paulo Manuel de Oliveira Cardoso e seu
sobrinho Francisco de Paula Teixeira, que foram acusados por muitos de assassinar,
cobrar abusivamente e coagir diversas pessoas a tomar determinadas atitudes para
benefício próprio.303 A denúncia da violência sempre associa núcleos parentais: Paulino
e seu sogro, Manuel de Oliveira Cardoso e seu sobrinho, Rafael Pinto Bandeira e seus
cunhados e irmãos304, apenas para ficar nas denúncias citadas até aqui. Por um lado,
estas acusações fazem parte do cenário armado pelos redatores das cartas, mas
certamente não era uma informação completamente fora de contexto ou inverídica. A
própria reiteração das denúncias, em alguns casos, sugere o quão precisas elas eram.
Parece-me claro que a violência era um valor importante compartilhado por
aqueles homens e mulheres, associado, em certas condições, à bravura, à honra e ao
poder, ainda que passível de crítica em dose elevada ou feita sem justiça. Ela podia vir
dos céus, das justiças de Sua Majestade ou de outras Casas. E me parece que a prática
organizada da violência fosse um dos principais atributos das Casas mais poderosas, dos
grupos familiares mais consolidados, como uma forma eficiente de impor seu nome e
seus projetos aos demais membros da sociedade.305 Esta violência tinha reflexos diretos
na economia e, mais do que isso, na concepção coeva de economia. Fazia parte do jogo
das trocas a coação, o roubo, dentre outras práticas consideradas, também naquele
momento, agressivas. Tal como o prestígio, a prerrogativa do uso da violência estava
desigualmente distribuída na sociedade.
Por último, é importante salientar um aspecto que está presente com força
na carta dos tropeiros: a noção de uma economia fortemente edificada nas relações 303 LOPES, Aconteceu nos pinhais. Subsídios para as histórias dos municípios do Paraná tradicional do Planalto, p. 503-504. 304 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). 305 Maria Sylvia de Carvalho Franco observou para o século XIX a manutenção da violência como um valor importante no Vale do Paraíba, a tal ponto de compreendê-la como o “código do sertão”. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Unesp, 1997).
158
sociais. Ao ressaltar a atitude de Antonio Fernandes do Vale de vender dívidas e cobrar
a frieza do contrato, os tropeiros estabeleciam uma fronteira entre suas práticas e as dele
(mesmo que fosse contraditório) e reivindicavam trocas personalizadas e orientadas por
uma ordem de valores difícil de definir claramente. Tais valores incluíam uma relativa
recusa dos juros, o receio da ambição e defesa do bem comum e pelo controle da
violência e maior presença da autoridade monárquica naquela economia, o que, no
entender daqueles homens, garantiria suas possibilidades de sobrevivência e ascensão.
159
Capítulo 6 Um tanto de ilha, um tanto de mar
Durante o século XVIII, uma moça de Sorocaba costumava casar antes dos
vinte anos. Deveria ser com alguém do sexo oposto, normalmente mais velho e,
especialmente, afim com o lugar da moça na hierarquia social. Isso restringia muito a
escolha, independente de quem a fizesse, mas não inviabilizava as uniões, ao menos da
maioria. A maior parte dos noivos destas moças era de Sorocaba ou de localidades que
ficavam num raio de 100 km. Ou seja: havia um bom estoque de moços disponíveis na
comunidade, ainda que em alguns casos fosse interessante dar atenção a propostas
vindas das redondezas e, eventualmente, de mais longe.
E um sócio, como se escolhe? De onde ele pode ser, seu status e sua idade
eram questões que poderiam interferir na escolha? Há relações para as quais não há
muito que escolher, ao menos entre estes nativos que estamos estudando, como é o caso
dos vínculos consangüíneos. Mas há casos onde isso é possível, ainda que haja
limitações, como os sócios, os esposos, os amigos e, até certo ponto, os vizinhos. Em
ambos os casos é possível romper com a relação. Mas divorciar-se, assim como
deserdar um filho, eram práticas mais complicadas. Para desempenhar a vida, o
trabalho, os negócios, a religião, as festas, enfim, para o que quer que estas pessoas
quisessem, elas necessitavam de relacionamentos, o que é uma obviedade. Importa
saber qual é a hierarquia destas relações e porque algumas pessoas eram preferidas a
outras. Isso nos fala desta sociedade.
Neste capítulo pretendo introduzir algumas idéias que permitirão elaborar
um conceito de “mercado relacional”. Os critérios de seleção das relações gerais variam
a ponto de incluir o casamento, como uma delas. Mais do que responder como funciona
este mercado, neste capítulo espero apenas introduzir o problema e tratar das limitações
espaciais para os relacionamentos.
Boa parte da historiografia discute a mobilidade sem matizar as variações
possíveis do movimento.306 Migrar para outro continente é muito diferente de mudar de
306 Sobre isso ver: FARIA, Sheila de Castro, A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998); NADALIN, Sérgio Odilon, "A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade," Topoi 04, no. 07 (2003).
160
bairro ou para o povoado vizinho. Tendo em conta os projetos e desejos dos homens e
mulheres que estou estudando, é preciso apontar diferentes velocidades possíveis para
diferentes atividades/projetos que se estariam implementando, conscientemente ou
não.Tenho certeza que nenhum tropeiro Sorocabano disse à sua esposa “Vou ao Viamão
buscar mulas e volto ainda hoje. Mas não me espere para jantar.” Uma tropa era um
negócio que envolvia uma grande preparação, arrecadação de fundos, em muitos casos e
a certeza de um empreendimento que levaria muitos meses. O mesmo pode ser dito para
uma atividade como a agricultura, que dependia do trabalho diário, mas também, de
elementos ambientais e do tempo de amadurecimento de cada planta. Diferente de tudo
isso era, por exemplo, a decisão de ir à missa ou não, ou de combinar feijão e milho ou
milho com feijão no alimento diário. Diferentes atividades têm tempos de resolução
diferentes, e é preciso ter isso em conta. E migrar para 5, 50 ou 5000 quilômetros fazia
diferença na vida daquelas pessoas, tendo em conta as dificuldades de transporte da
época. E os relacionamentos. Mas vamos devagar.
Qual o estoque de amigos, noivos e sócios potenciais disponíveis para uma
família no contexto que estamos vendo? Vamos utilizar as próprias fontes para
responder esta pergunta, e diferentes fontes. Vou lançar mão de uma grande quantidade
de documentos, a maioria deles reiterativo, como registros de batismos, de casamento,
escrituras, listas nominativas e inventários, dentre outros. Isso vai permitir fazer um
mapeamento amplo e tosco dos universos de cada localidade. Apesar de sua imprecisão,
tal mapeamento poderá ser útil para compreender as limitações destes agentes. O
problema é cada uma destas fontes foi elaborada tendo em conta um conjunto específico
de relações e necessidades e, neste caso, não podem ser comparadas diretamente. Mas o
que pretendo fazer aqui não é definir a totalidade das áreas que mantém relações com
cada um dos lugares que são objeto deste trabalho. A idéia é apresentar os parceiros
relacionais mais freqüentes e, repito, a imagem que resulta é imprecisa.
Para se discutir as relações sociais no espaço, certamente é preciso pensar
em movimento. Nadalin propõe um modelo para se compreender a mobilidade na
colônia, como um comportamento bastante recorrente, tanto quanto a opção pela
estabilidade.307 O autor associa certas práticas como próprias da vida estável, como a
agricultura, a família nuclear e suas ramificações, dentre outras atividades que exigiriam
307 NADALIN, "A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade."
161
uma maior permanência em um território. Acredito que esta questão seja importante
para o problema que aqui proponho. Diferentes relações envolvem diferentes formas de
mobilidade e/ou estabilidade.
É preciso ter em conta que a vida é forma de diferentes ritmos, de acordo
com as diferentes atividades e relações mantidas pelos homens e mulheres. Há certas
coisas que se devem medir em dias e horas, como o trabalho regular, o tempo para arar
uma área, a missa e uma festa. Há aquelas que se medem em meses ou estações: as
colheitas, o tempo de condução de uma tropa, uma viagem mais longa. Há também
ritmos mais longos, que se medem em anos, décadas. E há aquelas coisas que são para
toda a vida, assim como aquelas que se transformam em gerações, como a posição
social ou sua mobilidade, por exemplo.
Navegando pelo arquipélago atlântico sul ocidental
Sorocaba no continente paulista
Para tentar definir vagamente a geografia das relações, seria necessário usar
os mais diversos documentos, tendo em conta a forma como cada um foi construído, de
modo a definir alguma hierarquia. Para Sorocaba utilizarei os dados sobre casamentos,
produzidos por Bacellar em seu estudo sobre a vila308, os dados de origem dos
moradores, contidos na lista nominativa de 1801309. Estas fontes são distintas e se
referem a diferentes ritmos de relações, tal como defini acima. A relação de matrimônio
e de compadrio, por exemplo, são encaradas pelos coevos como feitas para toda a vida.
Logo, eu as colocaria dentro do ritmo vital. Como tal, exigem uma criteriosa seleção.
Estudando a vila de Sorocaba nos séculos XVIII e XIX, Carlos Bacellar
chegou a importantes dados sobre a relação daquela localidade com outros espaços.
Concluiu que de 1094 homens, chefes de família, que encontrou nas fontes que
pesquisou, 61,52% eram da própria vila de Sorocaba. Outra parcela importante, 26,59%,
eram provenientes de Cotia, São Roque, Araçariguama, Itu, São Paulo, Santo Amaro,
Paranapanema, Porto Feliz e Parnaíba, localidades que ficam a menos de 100km da vila,
308 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 309 AESP. Lista Nominativa. Sorocaba. 1801.
162
a maioria dentro de uma raio de 60 km. Para as mulheres chefes de fogo, o quadro era
semelhante. 80% delas eram originárias da própria Sorocaba, 5,94% eram de
localidades dentro de um raio de 60 km e 5,99% vinham de um raio de 100 km. As
localidades de origem eram as mesmas dos homens.310
Tomando os registros de casamento entre 1679 e 1830, Bacellar aponta
outros dados. Em relação à origem dos noivos, 68,86% deles era originário da mesma
Sorocaba, enquanto 12,57% vinham de localidades dentro do raio de 60km e 6% vinha
de um raio de 100km. O restante vinha de localidades mais distantes, a maioria dentro
da Capitania de São Paulo, como Curitiba (1,33%) e Taubaté (0,49%). Em relação às
mulheres, 85,59% eram provenientes de Sorocaba, 6,22% eram de menos de 60km e 3%
vinha de um raio de 100km. Estes dados devem ser analisados tendo em conta dois
elementos importantes, afora o sub-registro: eles incluem dados do período formativo
da vila, no final do século XVII, quando o crescimento da vila esteve muito baseado na
recepção de imigrantes; são dados de matrimônios realizados na Igreja, o que sugere
que há certa seleção dos noivos, sendo provável que a elite esteja mais representada.
A lista nominativa de 1801, apesar de incompleta, indica a origem dos
chefes dos fogos.311 Como estou interessado em estabelecer uma geografia das relações,
mesmo que incompleta312 esta lista pode trazer informações relevantes. Contei 414
chefes de fogos com informação clara sobre sua origem. Deste total, 308 (74,4%) eram
da mesma Sorocaba. Vejamos:
Tabela 5 ‐ Localidades de Origem dos Chefes de Fogos em Sorocaba (1801)
Local de origem # % Média de idade
Sorocaba 308 74,40 40
Itu 22 5,31 48
Porto Feliz 10 2,42 47
Cotia 10 2,42 42
Santo Amaro 9 2,17 50
São Paulo 8 1,93 42
Curitiba 5 1,21 49
Paranapanema 3 0,72 45
310 Reorganizei os cálculos mas respeitei os dados do autor: BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 311 AESP. Maço de população de Sorocaba. 1801. 312 Diversos bairros que aparecem em outras listas não estão nesta e o número total de moradores é bem inferior aos das demais, ficando notoriamente incompleta.
163
Parnaíba 3 0,72 43
Itapetininga 3 0,72 32
Mogi 3 0,72 60
Cidade do Porto 3 0,72 45
Lapa 3 0,72 41
Europa 2 0,48 38
Minas Gerais 2 0,48 35
Jundiaí 2 0,48 54
São Roque 2 0,48 33
Goiases 1 0,24 38
Santos 1 0,24 42
Sagoari 1 0,24 36
Lorena 1 0,24 46
Lisboa 1 0,24 30
Cuiaba 1 0,24 77
Ilhas 1 0,24 48
Juquiri 1 0,24 67
Araçariguama 1 0,24 33
Itapeva 1 0,24 22
São Francisco 1 0,24 27
Ubatuba 1 0,24 48
Apiaí 1 0,24 60
Cidade de Angra 1 0,24 65
Atibaia 1 0,24 64
Paranaguá 1 0,24 80
Totais 414 100 46Fonte: Lista Nominativa de Sorocaba. 1801. AESP.313
Se considerarmos estes dados, veremos que 82% dos chefes tem origem
num raio de 30km. Outros 6,5% vêm de localidades de um raio de 100km. Curitiba,
Itapetininga e a Lapa são as únicas localidades do caminho das tropas que aqui
aparecem, somando míseros 2,66%. Mas o espectro se alarga um pouco mais. Agora
temos também oriundos do Porto, de Lisboa, de Lorena e de Goiás. Lorena e Goiás
faziam parte da rota de escoamento dos animais, mas também somaram 0,5%. A
distância física parece ter um impacto relevante neste cenário. Mas é preciso ter
cuidado. Se observarmos bem, veremos que Araçariguama, ou Parnaíba, apesar de
próximas, não tinham uma relação tão estreita com Sorocaba como Cotia, Santo Amaro
e São Paulo, que ficavam um pouco mais distantes. Da mesma forma, Itu e Porto Feliz,
313 É importante salientar que esta lista, no seu original, parece não estar completa.
164
sendo igualmente próximas, tinham pesos completamente diferentes, sendo Itu muito
mais relacionada com Sorocaba.
Há outro elemento a ser considerado: a média de idade. A idade média do
chefe de família sorocabano, nesta amostragem, é de 40 anos, o que sugere uma certa
estabilidade espacial consolidada no comportamento dos jovens sorocabanos. Por outro
lado, me parece que as relações com Itu e Porto Feliz, ou foram mais intensas nos anos
pretéritos ou homens destas localidades escolhem casar-se ou residir em Sorocaba
depois de certa idade. Ambas as possibilidades me parecem razoáveis, já que vários dos
apontados em 1801 já estavam instalados em Sorocaba quando da lista de 1790, que
utilizei para comparar.
Sorocaba tinha em Itu, Porto Feliz, Cotia, Santo Amaro, São Paulo, São
Roque, Araçariguama e Parnaíba um bom estoque de relacionamentos potenciais, tanto
no espectro de uma migração regional (inferior a 100km, neste caso) como em possíveis
casamentos. Como vimos, há diferença entre a relação com as localidades de acordo
com necessidade. Os noivos vêm de um grupo de cidades, não exatamente igual ao das
noivas e os imigrantes regionais vêm de localidades diversas. Ou seja: para cada tipo de
relação, há uma geografia particular, às vezes semelhante, mas não exatamente igual. E
esta geografia é marcada pelo tipo de relação e não o contrário, ainda que as distâncias
limitem um pouco as vontades e os projetos daqueles homens e mulheres. Os noivos
vinham mais de fora da comunidade que as noivas e mais de Itu do que de Porto Feliz,
podendo vir até de Portugal, de onde não vinham noivas. Jundiaí, mesmo próxima, não
parecia ter muito a trocar com Sorocaba. Eram diferentes mercados matrimoniais, que
nos sugerem que a economia relacional de Sorocaba era bastante sofisticada e seletiva.
O estoque demográfico de Sorocaba supria boa parte dos relacionamentos
necessários para a vida daqueles homens e mulheres. A mesma comunidade oferecia
noivos e noivas de acordo com as exigências das famílias, a gosto dos clientes, assim
como era capaz de suprir de pequenos créditos seus próprios moradores, respeitada, é
claro, a dimensão dos negócios, ainda que por vezes fosse necessário recorrer a outros
espaços e isso também seguia uma hierarquia. A densidade das relações existentes em
Sorocaba era eclipsada pela densidade de São Paulo, com suas Freguesias de Cotia,
165
Santo Amaro e a própria capital. Parnaíba, mais próxima que São Paulo, não oferecia
tantos produtos sociais quanto a cidade.
Percebo, assim, que a demografia influía profundamente no mercado
relacional, oferecendo uma gama maior de opções de acordo com a necessidade dos
consumidores. É por esta razão que o caminho das tropas não representa um parceiro
relacional tão expressivo para Sorocaba. Com uma população rarefeita ao longo da
estrada, Curitiba constituindo uma exceção; ele não representava um bom estoque de
mercadorias sociais, muito mais cômodas de serem adquiridas na própria vila, em Itu ou
na capital. Esta mesma ordem de problemas foi percebida por Carlos Bacellar em sua
análise das famílias do oeste paulista entre meados do XVIII e do XIX.314 Ele percebe
uma expressiva endogenia geográfica como comportamento de famílias da elite do oeste
paulista:
Haveria uma área, ou mesmo uma vila, em que o grosso dos membros de um tronco, caracterizados por uma ascendência genealógica em comum, se concentrariam. Desse modo, indivíduos primos entre si estariam residindo no mesmo local, ou muito próximos, tornando mais prováveis casamentos consangüíneos.315
Para além do grande número de uniões consangüíneas que encontra em seu
estudo, ele detecta uma estabilidade geográfica como comportamento regular de certos
grupos e, mesmo, de comunidades inteiras. Analisando a permanência de indivíduos
que casaram na vila em que nasceram, ele apresenta altos índices, em paralelo à
migração regional, nas mesmas localidades do oeste paulista e, igualmente, com um
comportamento seletivo, com algumas localidades sendo preferidas por migrantes de
determinadas outras:
os naturais de Porto Feliz foram encontrados em Campinas, Moji-Mirim e Piracicaba, mas não em Jundiaí ou Itu [...] os nativos de Jundiaí foram localizados residindo em Itu e Campinas, mas não em Porto Feliz, Moji-Mirim ou Piracicaba.316
O autor ainda estabelece uma importante diferenciação de gênero na relação
entre movimento migratório e matrimônio. Segundo ele, os homens da elite migravam
previamente ao matrimônio, enquanto as mulheres migravam com os pais ou para/com 314 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado, Os senhores da terra: família e sistema sucessório de engenho no oeste paulista, 1765-1855 (Campinas: CMU/UNICAMP, 1997). 315 Ibid. 316 Ibid., 99-113.
166
os maridos, e tudo se articulava visando o acesso à terra. Estou de acordo com esta
posição e ressalto a importância da incorporação de homens vindos de fora, como
genros, no comportamento das famílias de elite de São Paulo, de modo geral.317 Isso
poderia ser uma garantia para a manutenção do movimento regional, para que os
homens da elite, quando migrassem, tivessem alguma expectativa de encontrar noivas
de status equivalente disponíveis em outras áreas. Este mesmo comportamento, a
uxorilocalidade, poderia garantir a permanência de imigrantes vindos de terras mais
distantes, atraídos por um mercado matrimonial que estivesse aberto para eles. A
uxorilocalidade poderia ser entendida, me parece, como uma abertura seletiva de um
mercado que, como nos mostra Bacellar, era bastante restrito.
Vejamos algumas conclusões parciais. Há vários elementos restringindo as
escolhas de relacionamentos na comunidade que estamos observando. Há uma limitação
demográfica, baseada no tamanho do estoque de parceiros potenciais (noivos, sócios,
amigos, aparentados). Se o tamanho do estoque local for bom, ele deve atender a boa
parte das necessidades locais. Contudo, diferentes atividades humanas exigem
diferentes tipos de relacionamento, gerando, assim, diferentes “necessidades de
consumo”. A família de uma moça casadoira pode considerar que o estoque de moços
disponíveis na localidade é grande, mas nenhum deles serve para ela. Da mesma forma,
um negociante com vista a vôos mais altos pode não encontrar um sócio com recursos
na mesma comunidade, assim como pode não encontrar alguém que lhe empreste um
valor avultado no seu próprio bairro. Este problema demográfico, contudo, não é
resolvido por um acesso indiscriminado às povoações vizinhas. Ele é seletivo, baseado
em dois elementos: o tamanho do estoque das comunidades acessíveis, por um lado, e
as próprias relações que atualmente vigoram e as portas que elas podem abrir. Afinal, é
de bom tom que noivos e sócios sejam devidamente apresentados.
Sorocaba possuía um bom mercado e mantinha uma discreta e seleta
balança comercial de noivos, como vimos. Mas nem tudo é tão perfeito. Passemos ao
estudo de algumas empresas econômicas, algumas sociedades, particularmente, na
tentativa de estabelecer uma “prova dos nove” que não apenas teste esta geografia das
relações como também traga novos elementos para refinar o modelo.
317 NAZZARI, Muriel, O Desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900 (São Paulo: Companhia das Letras, 2001).
167
O Arquipélago Curitibano
Para Curitiba não tenho muitas fontes. Disponho de um precioso artigo de
Ana Maria Burmeister, de 1981, sobre a nupcialidade naquela vila, utilizando os
registros de casamento. Ao longo do texto, a autora expõe como se dava a endogamia
geográfica na escolha dos cônjuges, com a qual 51,4% eram nascidos em Curitiba. A
maior parte dos egressos de fora seriam homens, majoritariamente de localidades da
Capitania de São Paulo, segundo a autora, principalmente de vilas situadas na rota do
gado. Antonina, Paranaguá, Campo Largo, Castro, Lapa e São José estariam também
entre as principais localidades fornecedoras de noivos.318 Note-se que das localidades
especificadas, a maior parte estava em um raio de 100km, com exceção de Castro, que
pelas rotas mais comumente usadas, distava uns 150km.
Outra fonte que disponho são as escrituras públicas de crédito, dívidas e
obrigações. Não são fontes muito preciosas para este tipo de estudo, mas podem dar
alguma noção. De um total de 358 referências espaciais que pude encontrar, 289 (4/5)
faziam referência à própria vila, especificamente. Cerca de 5% indicavam São José
como uma localidade relevante naquelas fontes. Tais negócios são reflexo da
importância da Confraria do Rosário dos Pretos, instituição localizada em São José.
Paranaguá ocupava a terceira posição, seguida do Rio de Janeiro, ambas com pouco
mais de 2%. Esta é a fatia “relacional” dos vínculos comerciais de Curitiba com o
comércio atlântico de cabotagem entre Paranaguá e Rio de Janeiro. Em quinto lugar
vinha a pequena, mas prestigiosa, Capela do Tamanduá, distante 50km de Curitiba,
onde poucos e ricos fazendeiros com suas famílias e escravarias formavam a população.
Lages e o continente do sul não somavam 1% das referências nas escrituras.319
A lista nominativa de Antonina, de 1808, seria uma terceira possibilidade de
observar este problema, ao indicar a origem dos chefes de família. Das 74 indicações
que encontrei, 33 apontavam a vizinha Paranaguá (cerca de 35km) com origem de
metade do total. Curitiba e Lisboa empatavam em segundo, seguidas de Iguape (cerca
de 150km, mas com ligação marítima com Antonina). Talvez o contraponto entre a
sertaneja Curitiba e a costeira Antonina seja relevante. Certamente as distâncias tinham
318 BURMEISTER, Ana Maria, "A Nupcialidade em Curitiba no século XVIII," História: Questões e Debates 02, no. 02 (1981). 319 Escrituras do Primeiro Tabelionato de Curitiba. CEDOPE.
168
pesos diferentes em viagens terrestres ou embarcadas e isso também tinha seu
significado nas relações de uns lugares com outros.
Os recifes do sertão: a pequena Lages
A população de Lages variou entre 400 e 600 moradores ao longo do
período que estamos observando. Mas sendo uma Vila e tendo seus próprios bairros, ela
era menor que um bairro Sorocabano de bom porte, como o Iperó. E ela ficava distante
da Lapa mais de 200 km, mais de 100 de Santa Catarina (atual Florianópolis) e Laguna,
e uns 100 km de Vacaria. Onde a população tampouco era muito grande, sendo
aproximada à de Lages. Fundada em 1766, era uma povoação que crescia, não apenas
pelo caminho das tropas mas igualmente porque era um espaço onde o acesso à terra era
relativamente fácil, haja vista a quantidade de pequenas propriedades. Era uma
localidade com um mercado relacional reduzido e distante de qualquer estoque razoável
que garantisse o abastecimento contínuo. Mas ela vinha recebendo contínuas levas de
imigrantes, especialmente de Curitiba, Santa Catarina, Laguna, São Paulo, Minas,
Parnaíba, Rio de Janeiro, Viamão, Rio Grande, Santos e Sorocaba, nesta ordem.
Por outro lado, as listas nominativas também informam os fluxos comerciais
de que Lages fazia parte. Havia um comércio regular de secos e molhados vindos da
marina da Laguna e da Ilha de Santa Catarina, sendo que ao menos sete sujeitos
indicaram esta atividade como desempenhada por seu núcleo familiar. Paralelamente,
havia uma exportação pequena, mas regular, de animais para São Paulo (provavelmente
Sorocaba), com algodão vindo no fluxo contrário. O fato de São Paulo ter impacto no
número de migrantes talvez se explique, por um lado, pelo fato de Lages ter sido
ocupada, já nos seus primeiros anos, por membros da família Amaral Gurgel. Talvez
por isso o músico santista João Damasceno de Córdova tenha migrado para aquela
localidade, já que era casado com uma Amaral. Ao chegar ali, arrumou um noivo
santista para sua filha Maria Jacinta, provavelmente aparentado: Bento Ribeiro de
Córdoba.
Motivo semelhante pode ter feito Baltasar Joaquim de Oliveira, vindo da
Parnaíba, se casar com Maria Joaquina do Amaral Gurgel. Em Lages, ele passa em
poucos anos de Tenente à Comandante da Cavalaria e Juiz Ordinário da vila. E talvez
169
estas possibilidades de ascensão, mais prováveis numa pequena vila em crescimento,
com Câmara e todos os postos locais de governança, fosse um elemento atrativo para
alguns paulistanos com alguns recursos. A maior parte dos indicados como vindos de
São Paulo era composta por fazendeiros e pequenos arrematadores. E havia um mercado
matrimonial interessante para certos recém-chegados: mesmo que o número de moços
em idade para casar fosse sempre superior ao de moças (entre 1790 e 1803), havia um
bom número de moços que acabava se encontrando união com outros, fora do mercado
local. Certamente porque a qualidade daqueles moços locais não satisfizesse os desejos
das melhores famílias locais e, diante de um mercado tão pequeno, não havia muito que
esperar.320
Lages me parece interessante para pensar alguns elementos já expostos.
Primeiramente, casos como o de João Damasceno de Córdoba, que parece ter vindo por
contatos e trouxe, posteriormente, um noivo para a filha ou mesmo, o de Baltasar
Joaquim de Oliveira, vindo por relações familiares pretéritas, me parecem
paradigmáticos do efeito das relações pretéritas na construção de novas relações. Porém,
mesmo com a iniciativa de Córdoba, Santos tinha um impacto pequeno no mercado
relacional de Lages, dominado por Curitiba, Laguna e Santa Catarina. Mesmo sendo
mais próxima, Vacaria não oferecia um estoque populacional muito atraente. Laguna
possuía uma população próxima a 4000 habitantes em 1805 e Santa Catarina (também
referida como “Desterro”) e São José possuíam, juntas, mais de 7000 habitantes na
mesma data.321 Curitiba, por seu turno, somava mais de 11000 habitantes, em 1803.322
Uma vez mais, a rota das mulas, mesmo tendo aqui um peso superior a outras
localidades, não se apresentou como elemento mais importante para explicar o universo
de relação da pequena Lages. Testemos outros casos.
As ilhas Vacarias e a Patrulha
De Vacaria tenho apenas os registros de batismos de escravos. E para medir
o alcance destas relações, vou utilizar a origem dos pais e padrinhos e, igualmente, a
localização atual dos padrinhos. São coisas diversas: Vacaria, tal com Lages, são
320 AESP. Listas Nominativas. Lages. 321 AHU-SC-Doc. 523 322 AHU. SP (Avulsos) Cx.23. Doc. 09
170
localidades recentes e de expansão onde há a contínua chegada de muitos imigrantes, o
que provoca uma distorção na análise da origem dos pais. Explico: o fato de haver
açorianos e benguelas numa pequena comunidade do sertão não me parece indicativo de
que esta localidade tenha Angola e as Ilhas como parceiros relacionais, com os quais se
faz uma troca reiterativa ao longo do tempo, tal como Lages e Laguna faziam. Mas os
registros de batismo de Vacaria, apesar de suas limitações, podem contribuir para
observarmos algum padrão.
Nem todos os padres foram caprichosos e apontaram os origens ou as
residências de padrinhos, madrinhas, pais e avós. Mas tenho informação para 95 pessoas
(92 padrinhos e madrinhas, 2 pais e 1 senhor), dentre 209 registros de batismo, sobre o
local de residência. Com exceção do senhor de Francisco da Costa Sena, que habitava
em Viamão, todos os demais eram da própria localidade de Vacaria, menos dois de São
Francisco de Paula, apontado quando das visitas que o padre fazia para batizar naquela
Capela. Este dado me sugere uma grande endogenia geográfica no comportamento
destes agentes. Tal imagem se agrava se considerarmos que foram 100 padrinhos para
batizar 209 crianças. Destes 100, 48 eram claramente apontados como moradores de
Vacaria ou São Francisco, além de terem relações de parentesco na localidade
explicitadas na fonte.
Talvez as escolhas dos escravos possam dar alguma luz sobre os critérios
geográficos de escolha do padrinho. Dos 209 registros, 3/4 preferiram escolher
padrinhos livres, e dentre estes, boa parte era da própria comunidade, ainda que seja
difícil mapear sua localização precisa. Dentre aqueles que escolheram padrinhos
cativos, cerca de 1/4, ao menos 20 continham padrinhos da mesma senzala enquanto 28
escolheram padrinhos de senzalas diversas. Todavia, dentro destes 28, encontramos
algumas regularidades, duas pequenas “redes” de compadrio se estruturando a partir das
senzalas de Joaquim José Pereira, Miguel Felix de Oliveira, Manuel da Fonseca Paes,
Manuel de Campos Bandebur e Antonio Pinto Ribeiro.
Outra rede, mais discreta na documentação, unia as senzalas de João Batista
Feijó, Antonio Gonçalves Padilha e dos herdeiros de Pedro da Silva Chaves. Noto uma
possível proximidade geográfica entre as propriedades destes sujeitos, especialmente
tendo em conta que a primeira rede se estruturava mais ao norte de Vacaria, nas
171
proximidades da Guarda de Santa Vitória, enquanto a outra seria mais ligada a São
Francisco de Paula, dentro da densidade daquela “capela”. Mas me parece que, além
disso, tais relacionamentos podem ser explicados pelas agências daqueles escravos ou,
como disse Hameister, pela reinvenção escrava das relações de seus senhores.323
Em oposição, 5 andantes que foram padrinhos, além de Agapito de Matos,
casado em Sorocaba. Agapito chama a atenção. Em maio de 1790 ele aparece como
padrinho de uma criança escrava (da qual não apareciam nem os pais, mas eram
escravos de Antonio Gonçalves Padilha), e é nesta ocasião que ele é descrito como
casado em Sorocaba. Em outubro ele aparece como pai de João, filho de Felisberta,
escrava dos herdeiros de Antonio Gonçalves Padilha, que provavelmente morreu no
parto. Ele não apenas assume o rebento como paga por sua alforria com duas doblas em
dinheiro, entregues formalmente pelo padrinho, Antonio Manuel Velho, morador local e
senhor de vários escravos. Por alguma razão, Matos criou alguma raiz na senzala de
Antonio Gonçalves Padilha e talvez a relação com Felisberta fosse esta razão. Ou o seu
resultado.
Outros indícios apresentam um espaço relacional maior. Há um registro de
batismo de uma criança livre, feito por engano, no livro dos escravos, e assim sabemos
que um sujeito de São Paulo era casado com uma moça da Freguesia do Estreito,
próximo à vila do Rio Grande. Os pais da moça, entretanto, eram também de São Paulo.
Da mesma forma, encontramos entre os padrinhos alguns sobrenomes bastante
peculiares. Catarina Aires de Aguirre, Emerenciana Bárbara dos Prazeres Gurgel. Sobre
Dona Emerenciana, pouco sabemos, além do fato de que ela era senhora da Estância
Grande. Já Catarina, há fortes indícios de que ela seja irmã do nosso caro Paulino Aires
de Aguirre, negociante de Sorocaba, ainda que fossem ambos nascidos em São
Sebastião. Ela era casada com Joaquim da Silva Chaves (matrimonio realizado em
Sorocaba em 1772), filho de Pedro da Silva Chaves, que se casara em Itu com dona
Gertrudes de Godoi Leme em 1726, e já estava atuando nos Campos de Cima da Serra
em 1766.324
323 A autora estuda a vila do Rio Grande no século XVIII: HAMEISTER, "Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)". 324 PEREIRA, Genealogia Tropeira. Santa Catarina, Lages e Nordeste do Rio Grande do Sul.Séculos XVII, XVIII e XIX..
172
Outro caso relevante é o de Antonio Rodrigues de Oliveira Fam. Ele aparece
nos registros de Lages casado com Maria Inácia do Amaral Gurgel, em 1790. Juntos,
eles batizaram Vasco, filho de Joana, escrava de Dona Ana Maria. Da mesma forma
havia ao menos mais cinco pessoas que pude identificar como sendo de Lages nos
batismos de escravos de Vacaria, sem que fossem descritas como vindo de Lages. Em
um caso específico, o de Joaquim José Pereira, ele não apenas possuía terras nas duas
localidades como também possuía terras próximas à fronteira entre ambas, junto à
Guarda de Santa Vitória. Outro exemplo, o do casal Alexandre da Silva Esteves e
Liberata Maria de Jesus, que foram padrinhos em junho de 1800 de João, filho de João e
Maria, escravos de Capistrano João da Costa Pereira.
Da mesma forma, Brígida Maria da Silva apadrinhou Gertrudes, filha de
José e Lucrécia, escravos dos herdeiros de Pedro da Silva Chaves, em 1782, assim como
em Mateus José da Silva, em 1779, havia batizado Miguel, filho de Francisco
Gonçalves e Ana Maria da Silva Cardoso. São todos indícios do quanto Vacaria
manteve contato, ao longo do tempo, com a Vila de Lages. Certamente a presença de
Vacaria também era sentido em Lages, mas, como vimos, ela deveria se esmaecer com
o peso que locais como Curitiba, Santa Catarina e Laguna. É preciso ainda considerar
que muitos senhores de Vacaria eram absenteístas, mantendo-se à distância do pequeno
povoado. João Batista Feijó vivia no Rio de Janeiro, assim como Antonio de Freitas
Branco era morador de São Paulo e Antonio da Costa Ribeiro era da Laguna.
Parece que mesmo mais distante da Laguna e de São Paulo, aquelas duas
localidades também se faziam sentir na Vacaria. Lages também tinha ali seu peso. Por
outro lado, as escolhas dos escravos nos sugerem uma maior endogenia geográfica no
comportamento daqueles agentes, ainda que contassem gente de boa cepa vinda de
Lages para apadrinhas alguns de seus filhos. Mas, mesmo em relação à endogenia, não
seria este um problema de hierarquia social, onde a elite teria mais recursos para se
movimentar?
De volta ao Viamão e seu arquipélago
Os Registros de Batismos de Viamão podem nos fornecer informações
relevantes sobre a geografia das relações.325 É fato que o povoamento desta localidade,
325 ACMPOA. Livro de Batismos n.04. Viamão.
173
bem como dos locais mais próximos, foi a partir da imigração de grupos de diversas
origens: São Paulo, Sacramento, Minho, Sorocaba, das Ilhas Atlânticas portuguesas e
mesmo do continente do Rio Grande. Ao observarmos o critério espacial de seleção de
padrinhos (não pela sua origem, mas pela residência no momento do batismo)
encontraremos um cenário bem diferente. Tomando apenas os registros onde há
referência ao domicílio (20 registros) encontrei dezesseis para Porto Alegre, um para
Rio Pardo, um para Santo Antonio da Patrulha, um para Rio Grande e um da própria
Viamão. Como havia igualmente um expressivo número de batismos por procuração
(59), acreditei ser importante dar atenção a estes registros, que poderiam comprometer
os resultados, já que eram potencialmente de pessoas de fora de Viamão.
Do total dos 1944 registros, 1865 (97%) era provavelmente da própria
localidade ou de áreas muito próximas, num raio de 15 km. Outros 2% era de padrinhos
vindos de localidades vizinhas, como Porto Alegre, Anjos e Santo Antonio da Patrulha,
num raio de 40km. As localidades mais distantes, nas quais estariam Santo Amaro, Rio
Pardo e Rio Grande (ainda dentro do continente do Rio Grande) e talvez Paranaguá326,
somadas àqueles casos que não pude identificar o agente (14 casos), chegariam a 1%,
num total de dezenove casos. Estes dados me pensar que a geografia das relações de
Viamão inclui Porto Alegre, Anjos e Santo Antonio da Patrulha, em sua parte mais
central, tendo como “periferia” a região do Caí e Triunfo, estas últimas, povoadas
originalmente por famílias vindas de Viamão.327
Este cálculo esbarra em alguns problemas sérios, dos quais o leitor deve ser
avisado. Considerei que a grande maioria dos padrinhos para os quais não havia
informação de localidade eram de Viamão ou das proximidades. Não busquei cada um
dos padrinhos em diversas fontes, o que seria mais rigoroso. Mas considerei que aqueles
registros que informavam a localização, somados àqueles que foram feitos com
procuração, seria uma amostra que tenderia a contrariar a hipótese que estou apontando,
a de que o espaço relacional de Viamão era restrito, tão restrito quanto o de Sorocaba, e
que apenas algumas poucas pessoas podiam estender suas relações para mais além.
Outro problema é o da fonte. Os batismos são qualitativamente diversos dos
registros de casamento. Inclusive optei deliberadamente por não considerar os
326 Tratava-se de um nome bastante comum. 327 KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII.
174
matrimônios de Viamão, aparentes nos batismos, por considerá-los inadequados para a
análise que aqui apresento. Tenho motivos: ao contrário de Sorocaba, que considero, era
uma zona de estabilidade demográfica, nos termos propostos por Nadalin, Viamão ainda
estava recebendo levas de imigrantes, dada sua ocupação relativamente recente, o
contexto recente de guerra (até 1777) e a expansão da fronteira agrária na região do Caí,
do Triunfo e, também, no Rio Pardo. Neste sentido, a análise dos matrimônios de
Viamão, para a pergunta que estou fazendo, apresentaria um cenário caótico. A
migração de uma região como Portugal ou Minas para Viamão não significava o início
de uma troca constante, tal como pensamos para Vacaria.
Tomando o mesmo procedimento para Porto Alegre, com os registros de
batismos de livres e escravos entre 1772 e 1797, encontrei resultados próximos, mas
com algumas diferenças. Entre mais de 2000 registros, dentre os quais a grande maioria
não fazia referência à localidade, encontrei 24 referências à “residência” de padrinhos
além de 58 padrinhos por procuração. Dentre aqueles 24, 11 eram de Porto Alegre, 3 de
Viamão, 3 do Rio dos Sinos (proximidades de Gravataí), 3 do Rio Grande, 2 de Triunfo,
1 de São Paulo e 1 do Rio de Janeiro. Dentre os padrinhos por procuração, fiz o mesmo
procedimento executado para Viamão, ou seja, rastrear nas bases de dados. Encontrei 32
dos 58, dos quais 10 eram de Porto Alegre, 7 de Rio Grande, 4 dos Anjos, 3 de Triunfo,
3 do Rio de Janeiro e 2 do Caí. Viamão, Lages e Curitiba tinham, cada uma, um.
A conclusão é a de que para o compadrio, o mercado relacional mais
interessante (ou possível) era o local. Em uma comparação entre os padrinhos de Porto
Alegre, os de Viamão e Anjos, verifico que a maior parte dos padrinhos acabou se
restringindo a sua localidade, sendo poucos os que o faziam em mais de uma, quase
sempre, pessoas da elite, disputadas para apadrinhamento em muitos quilômetros.
Viamão e Porto Alegre, entretanto, parecem ter uma proximidade maior neste aspecto,
com a troca de padrinhos ocorrendo com maior freqüência. Mesmo com esta densidade
local, a região de Viamão, Porto Alegre, Anjos, Sinos e Caí parece manter um mercado
relacional maior, que incluía Rio Grande, prioritariamente, Patrulha, Rio Pardo e o
Triunfo.
Em termos demográficos, o conjunto formado por Viamão, Porto Alegre,
Anjos, Triunfo e Patrulha somava, em 1780, mais de oito mil habitantes, chegando a
175
superar os onze mil em 1798. Talvez isso explica a densidade das relações entre estas
localidades, que eventualmente recorriam a outras “praças” do mercado relacional. Para
uma relação como o compadrio, a escolha seguia uma geografia muito restrita, local
mesmo, talvez porque a organização política local propiciasse padrinhos e madrinhas de
prestígio em quantidade suficiente para a demanda local, especialmente se
considerarmos quantos capitães e donas haviam ali, além do fato de que um mesmo
capitão podia batizar muitas crianças, como de fato ocorria.328 Já em relação aos
relacionamentos econômicos, medidos parcialmente através da análise das dívidas, as
coisas eram um pouco mais complicadas. Os recursos locais não garantiam todas as
necessidades e um intercâmbio maior e mais abrangente era necessário.
Acredito que a análise dos diversos tipos de documentos que apresentei aqui
seja um bom começo para pensar sobre os limites demográficos e geográficos que se
apresentavam para os agentes que estudo. Acho que, de algum modo, as distância
acabavam complicando um pouco a vida daqueles homens e mulheres e dificultando a
expansão de seus relacionamentos. Por outro lado, a densidade demográfica podia, de
algum modo, resolver ou complicar esta limitação. Os diferentes tipos de relação
envolviam diferentes geografias, de acordo com a oferta local e com os contatos
previamente estabelecidos. O esquema abaixo apresenta as distâncias da época medidas
não em léguas ou quilômetros, mas com a medida que encontrei como mais indicada
para os deslocamentos na época: os dias de viagem. Assim, temos um mapa deformado,
mas coerente com a experiência cotidiana daqueles agentes. As viagens marítimas estão
em contraponto para mostrar que, afinal, África e Portugal ficavam longe, mas os
pontos terrestres também estavam muito afastados entre si.
328 SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784).
176
Figura 18 ‐ Distâncias da época, medidas em dias de viagem
Fonte: BN‐II‐35, 25, 03; BN‐II‐35, 25, 17; AHU‐São Paulo (avulsos) Cx. 9 ‐Doc. 475; SCHWARTZ, 1999
Apresentei um modelo que parte do pressuposto que os agentes sociais
tendem a construir suas relações dentro de comunidades densas, preferencialmente,
recorrendo ao “mercado externo” apenas em caso de escassez interna, seja de
quantidade ou qualidade. É momento de esclarecer algumas coisas. Acredito que a
grande maioria não estava muito preocupada com o fato de seus interlocutores sociais
serem nascidos na sua comunidade, serem de outra ou serem andantes. Elas
necessitavam de relacionamentos e procuravam tecer os melhores possíveis, tendo em
conta as orientações valorativas que possuíam. Mas a proximidade geográfica (ou a
distância), a densidade demográfica e as relações pré-existentes eram forças
177
constrangedoras desta iniciativa. É apenas neste sentido que penso que a densidade local
era alternativa fácil para os sujeitos que estudo, já que ela era produzida por todos
aqueles elementos cotidianos da vida. Ela era quase inevitável.
Até aqui me detive a observar a reiteração de relações no espaço, tendo
como objeto as localidades que se vinculavam à rota das tropas. A conclusão que se
salienta é a fragmentação do caminho, de acordo com outros tantos interesses e
possibilidades de cada comunidade que pude observar. Mas tomar apenas as relações
práticas, a partir de algumas fontes, de alguns tipos de relações, apenas, não basta. É
preciso ter em conta como os nativos percebiam o espaço onde atuavam. Talvez eles
concordem com o modelo que apresentei, talvez não. Indaguemos.
Da percepção geográfica coeva
A percepção que as pessoas têm do espaço varia socialmente, e é em muito
determinada pela experiência do observador, por sua própria intervenção no espaço.329
Vejamos um pouco como os contemporâneos organizavam mentalmente o caminho e as
localidades marginais, como construíam seus mapas mentais. Comecemos em Sorocaba,
utilizando não qualquer visão, mas a de Antonio Francisco de Aguiar, inspetor do
Registro de Sorocaba e diretamente interessado nos negócios de tropas e neste
caminho.330 Curitiba tem destaque na sua escrita. Por razões óbvias, o controle das
tropas, ele deveria tratar muito daquela localidade, mas não era apenas isso. Ele sabia da
ordem política local, quem era o capitão-mor, quem eram os demais comandos locais,
além de saber, por sua necessidade, que tropeiros e tropas estavam em Curitiba à espera
de tomar o rumo de Sorocaba, por invernadas ou falta de recursos. Em seu discurso,
Curitiba é muito próxima, enquanto locais como Itu, São Roque ou Cotia não aparecem.
De um modo geral, as localidades importantes do interior de São Paulo, tão relevantes
para Sorocaba, como vimos em outros documentos, aqui são esporadicamente referidas:
Taubaté, Jundiaí e Araçariguama surgem apenas como locais de onde veio algum
tropeiro. A Lapa, nas vizinhanças de Curitiba e do Registro, era tão importante quanto
Taubaté.
329 LYNCH, Kevin, A imagem da cidade (São Paulo: Martins Fontes, 1997). 330 Utilizarei as cartas escritas por Aguiar para a administração da Casa Doada. BN-II-35,25,25-27.
178
A cidade de São Paulo aparece com maior destaque, já que era para lá que
os recursos obtidos por Aguiar eram enviados. A proximidade entre as duas urbes fica
patente não apenas no discurso de Aguiar, mas na quantidade de viagens entre ambas
por ele anunciadas. Da mesma forma, fica a impressão de um movimento importante
entre Taubaté, São Paulo, Sorocaba e Curitiba, especialmente pela descrição que Aguiar
fazia do comportamento dos tropeiros.
Mesmo falando pouco das vilas do interior de São Paulo, havia precisão
nesta narrativa. O mesmo já não ocorria com áreas mais distantes. Para além de
Curitiba, havia de nítido o Registro da mesma, o de Santa Vitória e o da Patrulha,
unidades arrecadadoras que aparecem em seu discurso como o lugar de onde algumas
listas de tropas chegam. O espaço de onde vêm os animais é um nebuloso continente do
sul ou o sul. Viamão, Rio Pardo, Triunfo ou Porto Alegre não aparecem em sua escrita.
O mesmo pode ser dito para Minas. Não há exatidão: alguns tropeiros vêm de Minas
para ir ao sul buscar animais. A pequena Lages sequer é mencionada.
De Curitiba, da lavra de Manuel José Correia da Cunha,331 inspetor daquele
Registro, temos um espaço organizado de modo um pouco diverso. Sorocaba ocupava o
maior destaque, de forma espelhada, mas Correia da Cunha era um pouco mais prolixo
que seu “amigo” de Sorocaba. Enquanto Aguiar só fez 45 referências à lugares, Cunha o
fez para 91. Deste total, a maior parte era para se referir a localidades ou espaços mais
próximos do Registro, como Curitiba, Lapa, Castro, Lages, a Capela do Tamanduá e o
sertão próximo à Lapa. Localidades mais próximas à Sorocaba, como Itapetininga,
Taubaté ou Jundiaí aparecem, mas sem o mesmo destaque.
Viamão, diferentemente do mapa feito por Aguiar, tem uma posição clara. É
a segunda localidade mais referida, atrás apenas de Sorocaba e fica claro que, para
Cunha, é de lá que vêm os animais. Lages tem igual destaque, sendo a terceira
localidade mais mencionada. Da mesma forma, Porto Alegre, Vacaria e Cima da Serra
são lugares bem situados e diferentes de Viamão, ainda que, eventualmente, Cunha
utilize também a fórmula Continente do Rio Grande ou sul, para falar genericamente de
algum problema. Tal precisão não parece ter sido adquirida ao longo do tempo. Ele
sempre manteve cuidado em referir-se ao espaço e Viamão e Lages, por exemplo,
331 BN-II-35,25,03 e BN-II-35,25,17
179
ausentes no discurso de Aguiar, aparecem com distinção desde as primeiras cartas de
Cunha.
A visão do sul como um lugar, diferente de perceber diferentes localidades,
tal como fez Manuel José, não era algo próprio apenas de Antonio Francisco de Aguiar.
Era a percepção, grosso modo, que vigorava em Sorocaba sobre a origem dos animais.
Em 1794, Jeronimo da Costa Guimarães ditou seu testamento (curiosamente o escrivão
era o próprio Antonio Francisco de Aguiar) onde anunciava dever uma quantia a um
homem do
continente do sul a quem passei crédito cujo nome ignoro e sabe João Ribeiro filho do defunto Antonio José Guimarães e tenho feito diligência pelo pagar e por não saber do homem ordeno se indague e no caso de se não saber dele ou seus herdeiros se entregará a referida quantia ao Reverendo Vigário para aplicar conforme for justo
Era uma percepção geográfica comum em Sorocaba compreender as
diversas localidades do sul como algo genérico, uma região específica. E me parece que
este era o padrão compartilhado. Encontrei, todavia, alguns exemplos que demonstram
diferentes percepções. Na Lista Nominativa de 1801, em Sorocaba, havia 6 ausentes, 3
para o sul e 3 para Viamão, ou seja, havia diferentes percepções sobre os espaços de
onde provinham as manadas. De modo diverso, encontrei algo semelhante em Lages,
onde a maioria tinha destino certo: Curitiba, São Paulo ou Viamão, mas havia quem
fosse para os Campos Gerais e para o Sul, ambas referências bastante imprecisas. A
conclusão é interessante: quanto mais distante a localidade com a qual se tem algum
contato, mais borrada fica a imagem de sua geografia. Isso, evidentemente, varia de
acordo com o perceptor. É certo que um tropeiro que andou pelo sul tinha uma idéia
mais precisa dos terrenos. Mas mesmo assim, sua comunicação com quem não conhecia
passava também pela generalização. Mas sobre a forma como as pessoas modificam
suas opiniões (ou reforçam) no diálogo com outras, veremos mais adiante.
* * *
Voltando ao problema da mobilidade e dos diferentes ritmos de
relacionamento, penso que a grande maioria dos homens e mulheres que viveram nas
comunidades à margem da rota das tropas não tinha condições iguais de mobilidade.
Como vimos no primeiro capítulo, a maior parte das pessoas que viviam em Lages,
180
Lapa e Sorocaba, por exemplo, estava envolvida na agricultura, boa parte plantando
para seu gasto. No Viamão, como no Rio Pardo, em Cerro Largo, em Cima da Serra,
em Curitiba e castro, a maior parte das pessoas estava envolvida na criação e na
agricultura. Este fato, reforçado pela estrutura demográfica das localidades, onde as
mais povoadas criavam um campo de atração às vizinhas, e pelas dificuldades de
transportes e pelas distâncias (dias de viagem para se atingir um povoado vizinho)
garantiram a produção de uma forte endogenia geográfica, relativizada por uma
mobilidade regional, esta última, matizada pelos estoques relacionais vizinhos.
Diferentes tipos de atividades produziam, como resultado, diferentes tipos
de relações. E em diferentes espaços. A estabilidade tinha como seu corolário a
dificuldade na ampliação de laços. A mobilidade, por seu turno, garantia a expansão de
vínculos, em número e no espaço. Este mesmo contexto, contudo, garantiam a
mobilidade para um pequeno grupo, que não dependia de seus braços para trabalhar a
lavoura ou costear os animais. Havia um grupo de senhores que podia circular entre
diversas localidades. Mas não era sempre que eles se topavam. Havia uma teia de
contato que os ligava intermitentemente. Uma teia formada por relações diárias, na
vizinhança, no trabalho diário, na circulação dos tropeiros entre os postos de
arrecadação, entre os andantes que percorriam os caminhos entre Sorocaba, São Paulo e
o Rio de Janeiro.
Daqui é possível pular para o Capítulo 8 (indo direto ao debate sobre
confiança) ou para o 11 (indo direto ao problema do crédito).
181
Capítulo 7 A informação: movimento, intensidade e controle
faz um ano em Janeiro, que aqui pousou um tropeiro, o cujo prometeu de, na derradeira lua, trazer notícia tua, se vive ou se
morreu Elomar
A informação
Na sociedade que se está abordando, o principal veículo de informação era a
conversa. A circulação de livros era relativamente escassa332 (além do elevado índice de
analfabetismo) a transmissão oral cumpria uma importante função na circulação das
idéias e das informações. De qualquer modo, há diversas formas de se fazer circular
informações a partir da oralidade, e a identificação destas formas pode contribuir para
compreender como aquela sociedade se organizava. Um agente faz escolhas,
selecionando conteúdos e interlocutores (dentre outros elementos) ao transmitir
determinados dados.
A antropologia econômica já salientou a importância do parentesco nas mais
diversas economias e não caberia relembrar aqui a diversidade de contribuições sobre
este tema.333 A família era um destacado meio de circulação de informações,
especialmente pela confiança criada através da experiência prévia dentro do núcleo
parental. Jorge Pedreira, ao estudar o corpo mercantil da praça de Lisboa, aponta a
relação tio-sobrinho como uma das chaves de reprodução daquele grupo. Um dos
primeiros empregos dos sobrinhos seria de caixeiro, administrando as contas do tio e,
necessariamente, buscando e recebendo informações para o controle contábil.334
O parentesco fictício também cumpria uma função importante no acesso à
informação. Paloma Fernandez, em seu estudo sobre os comerciantes da cidade de
Cádiz no século XVIII, destacou a função primordial do matrimônio para a atividade
mercantil e continuidade dos negócios através da figura do genro:
332 Ignoram-se estudos sobre este tema para nosso contexto. Uma análise da posse de livros e biblioteca em Inventários Post-Mortem do Rio Grande de São Pedro apresenta um cenário de escassez de publicações, com algumas raras exceções. 333 Para uma revisão da bibliografia sobre família e economia, ver CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna.. 334 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana, Os homens de Negócio da Praça de Lisboa - de Pombal ao Vintismo (1755-1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. (Lisboa: Faculdade de CIências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, 1996).; COSTA, Eleonor Freire, "Entre o açúcar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII)" (paper presented at the Seminário Internacional: Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no Mundo português, Rio de Janeiro, 2006).
182
El matrimonio permitía en estos años a la masa de migrantes recién llegados del resto de Andalucía, Castilla, el Levante y el Norte peninsular y el resto de Europa obtener apoyo humano, información y, en los casos que medió la entrega de dote, un capital necesario para más adelante poder matricularse y comprar mercancías que vender en territorios de la América española.335
O parentesco não apenas servia para a seleção dos quadros da empresa
mercantil como também garantia um controle sobre os agentes. O conjunto dos parentes
teria formas de punir um membro que eventualmente não honrasse a confiança
depositada ou agisse de uma forma não-cooperativa. A mesma Paloma Fernandez
argumenta que na Cádiz do XVIII era bastante comum a uxorilocalidade, com maior
incorporação e controle do genro ao grupo familiar, especialmente pela manutenção do
dote na mesma unidade doméstica. A obediência ao “patriarca” era também uma
constante naquele meio.
Em 1779, quando da confecção do inventário da falecida Maria Rodrigues
de Lima, houve um litígio (uma Autuação de Ação de Justificação de Crédito) entre o
viúvo Domingos Gomes Ribeiro e André Pereira Maciel a respeito de negócios
efetuados entre ambos. O Juiz de Órfãos, responsável pela preparação do inventário, fez
interrogatórios sucessivos a diversas pessoas, com o objetivo de dirimir dúvidas sobre o
conflito. Desta fonte, nos interessa não exatamente o negócio entre Gomes Ribeiro e
Pereira Maciel, mas a forma como as testemunhas narravam seus conhecimentos. João
Pereira dos Santos disse que sabia pelo ver que Gomes Ribeiro comprara coisas de
Maciel. Antonio Mendes Pacheco sabia por ver e ouvir do próprio Ribeiro sobre a
compra efetuada. Inácio Luis da Cunha disse que sabia por ser notório que Ribeiro
devia a Maciel. As três testemunhas haviam ido por solicitação de Maciel. Mas mesmo
que tendenciosas, certamente pertencentes ao “círculo fechado” de Maciel, utilizavam
argumentos aceitáveis para aquele mundo: ver e ouvir sobre os negócios dos outros
eram coisas públicas e notórias, para usar a expressão de Inácio Luis.
Em outro litígio semelhante, José Joaquim Flores declarou que sabia
tão somente pelo ouvir dizer que o dito Francisco da Costa tinha deteriorado em sua vida a legítima da dita sua mulher o que era público e constante no Quartel do Rio Pardo mas que não sabe se com ela pagou a algumas dívidas do tempo de solteiro
335 FERNANDEZ PEREZ, Paloma, El rostro familiar de la metrópoli: redes de parentesco y lazos mercantiles en Cadiz, 1700-1812 (Madrid: Siglo XXI, 1997), p. 132.
183
E ainda acrescentava:
sabe de certo ser falecido o dito Francisco da Costa Navais e que depois a mulher do dito se casara com Luis Severino José de Carvalho o qual recebera todos os bens da dita sua mulher e que os vai governando de forma que ainda há pouco tempo comprara um campo misto ao da dita sua mulher e que outrossim sabe pelo ouvir dizer como coisa pública que o dito Luis Severino pagara uma dívida de quatrocentos mil réis ao Padre Francisco Rodrigues Xavier Prates pelo dito seu antecessor do tempo de solteiro de uma sociedade oculta que com ele tivera
Nem mesmo a sociedade oculta ficou de fora do conhecimento público.
Importa ressaltar que todas as quatro testemunhas comentaram deste pagamento. Tanto
em Viamão, no primeiro caso, como em Porto Alegre, no segundo, percebe-se um
contexto onde a disseminação de informações é dinâmica. Em outra disputa, o capitão
Manuel Bento da Rocha disse conhecer um dos litigantes por um dos homens
comerciante da cidade do Rio de Janeiro, tratando sempre boas contas e verdade em
todos os seus negócios. Em todos os outros casos, foi possível verificar a presença de
circuitos fechados de relacionamentos. No depoimento de Bento da Rocha, percebem-se
relacionamentos não tão próximos, mais amplos, característicos das redes abertas, no
caso, vinculando diferentes espaços.
Uma instituição importante era aquela que chamo de banco de
informações. Refere-se a um agente ou estabelecimento que, independente de sua
função mais aparente, acaba servindo como local onde os agentes trocam dados, sem
que isso signifique uma troca equilibrada. Um exemplo deste tipo de agente ou
estabelecimento é perceptível no trabalho de J. L. Rosenthal, onde assinala a
importância dos notários para o encontro entre quem dispunha de dinheiro e quem
precisava dele. Por estarem envolvidos diretamente com todo o tipo de transação e por
conhecerem razoavelmente o patrimônio de seus clientes, os notários eram procurados
de modo informal para obtenção de informações, o que viabilizava o funcionamento do
mercado de crédito.336
Os Registros de Curitiba e Sorocaba eram exemplares deste fenômeno.
Eram paradas obrigatórias para os tropeiros que iam negociar animais do sul em
Sorocaba. Neste sentido, o administrador do Registro e outros empregados neste
trabalho acabavam recebendo informações de diversos tropeiros, trocando dados e,
336 ROSENTHAL, HOFFMAN, & POSTEL-VINAY, Priceless Markets: the Political Economy of Credit in Paris, 1660-1870..
184
mesmo, mantendo o controle sobre a cobrança de tributos devidos. Sobre uma cobrança
efetuada em 1796, Manuel José da Cunha dizia ter recebido ...a [carta] de 19 do mesmo
com uma inclusa para o alferes Antonio Borges de Almeida o qual ainda não chegou a
este Registro mas tenho notícia que breve chegará.337
Neste trecho não fica claro quem fora o seu informante. Entretanto, em
outra carta o mesmo administrador recebia informações diretamente de um tropeiro
sobre seus negócios: o capitão Cezar ainda não recebeu a sua carta de que faz menção
na minha e em conversa me disse tem mandado pedir dinheiro no D.or José Joaquim
para custeio da tropa.338 Em outra correspondência, sabe-se que Manuel José também
era informado de uns tropeiros por outros, e como estes se dirigiam ao Registro de
Curitiba para trocar dados:
O Capitão Cezar já saiu do sertão e ainda não passou nem veio a este Registro esta com a tropa pesteada e com algum prejuízo de mortandade e me vendo com ele hei de fazer tudo quanto puder a benefício da Casa. João Fernandez Cruz não há notícia de que saia este verão e só o dito Cezar poderá dar notícias mais certas de quando chegará e de tudo que passar a este respeito o participarei a vossa mercê. 339
Não se tratava apenas de receber ou dar informações dos tropeiros
aleatoriamente. Os próprios interesses e curiosidades manifestados no diálogo acabavam
informando seus partícipes sobre as intenções do outro. Os Registros cumpriam assim a
função de dispersar informações, mas de forma muito desigual, já que a proximidade
entre os administradores do Registro e seus diversos interlocutores (através da amizade,
parentesco, etc.) acabava fazendo com que uns tivessem uma “conta-corrente” mais
abastada que outros, em matéria de informação.
A circulação de novas através do caminho não estava baseada apenas nos
Registros. Em janeiro de 1781, em Porto Alegre, um sujeito chamado Fabiano encerrava
a redação de uma longa carta, a quem não sei, mas provavelmente a alguém em
Curitiba, na qual falava de diversos assuntos da intimidade do remetente e destinatário.
Em certa altura da escrita, falava sobre algumas dúvidas sobre a saúde:
o que vossa mercê me diz que lhe sucedeu das misérias que passou e que não tinha quem lhe desse reconsolo [sic] de água mas com a chegada do filho de Salvador
337 BN. II – 35, 25, 03. 338 BN. II – 35, 25, 03. Grifo meu. 339 BN. II – 35, 25, 03.
185
Martins que me deu notícias certas de que estava logrando boa saúde que para mim foi a melhor notícia que me podia dar que para mim tanto me serviu de alegria como de contentamento porque em havendo saúde tudo o mais se remedeia não posso deixar de lhe dizer que quanto a alegria e gosto tive com as primeiras notícias quanto tenho sentido duas que tive haverá cousa de um mês que me deu um sujeito que dessa veio mas como são coisas do caminho não sei o que será, mas muitas vezes do longe se sabem as coisas mais depressa do que do perto340
Não fica claro se o portador das novas era um tropeiro, mas seria bem
possível, já que trazia notícias de Curitiba para Porto Alegre. E como diz a própria carta,
ao contrário do esperado, muitas vezes as notícias vindas de longe poderiam chegar
mais rapidamente que as vindas de perto. Coisas do caminho. O vai-e-vem dos tropeiros
contribuía para a difusão das informações e de algum modo alinhavava os vínculos
sociais entre regiões que, como o próprio autor da carta dizia, ficavam longe uma da
outra.
Em 1782, em Santo Antonio da Guarda Velha, um sujeito, provavelmente
da Lapa341, Manuel Antonio Resende dava instruções a Manuel da Silva Lira
(provavelmente de Curitiba)342 de como deveria proceder. Pedia que Lira tomasse uns
animais de sua tropa e os levasse para Sorocaba. Mas não falava apenas da tropa, pedia,
dentre diversas outras providências, que Lira falasse
na Ponte da Cotia com Gertrudes de Almeida Mota sobre o seu negro.[...] Falará com o Antonio José da Silva e saberá dele o que tem passado em Minas com Antonio Teixeira Pena e caso Antonio José da Silva tenha trazido créditos ou dinheiro de Minas vossa mercê mo remeta para cá ou os mesmos recibos que param em poder do mesmo Antonio José. [...] Saberá de Cláudio de Madureira o que passou a respeito de um crédito que devia o defunto Chapéu de Palha [...] Saberá de João Pinto se uma carta que lhe dei de abono para o surdo lhe assistir no Registro teve efeito caso não tivesse veja se pode recolher a carta a si343
Estes são apenas alguns exemplos do périplo que Lira teria pela frente em
sua jornada pela Capitania paulista. Em pouco tempo ele receberia e transmitiria
diversas informações sobre diversos negócios paralelos às tropas de animais e que
envolviam diversas regiões.
340 1TABCUR-021. Pg. 119. 341 Maços Populacionais da Lapa. CEDOPE; Encontrei sujeito de mesmo nome, mas pela idade não tenho certeza que seja o mesmo. 342 O único sujeito com este nome que encontrei em Listas Nominativas era de Curitiba. 343 1TABCUR-022-051
186
Os caminhos da novidade: a correspondência da Casa Doada e o controle das
informações
A principal fonte que dispomos para esta pesquisa é a correspondência
trocada entre os administradores da Casa Doada. São mais de duzentas cartas das quais
priorizamos o conjunto formado pelo tesoureiro Antonio Manuel Fernandes da Silva, o
inspetor de Sorocaba, Antonio Francisco de Aguiar e o inspetor de Curitiba, Manuel
José Correia da Cunha. Na verdade, não dispomos da correspondência ativa de Antonio
Manuel, mas acabamos conhecendo muitos dos argumentos de suas cartas e a
regularidade das mesmas a partir das respostas dos inspetores de Curitiba e Sorocaba.
Estes dois funcionários escreveram ao longo do tempo 192 cartas, das quais 189 foram
dirigidas ao tesoureiro Antonio Manuel. Destas, 115 foram enviadas por Antonio
Francisco de Aguiar e 74 por Manuel José. Pelas cartas destes dois, sabemos que
Antonio Manuel escreveu ao menos 154 missivas, 100 na interlocução com Antonio
Francisco de Aguiar, uma com o ex-funcionário Bernardo de Souza Bessa e o restante
na troca com Manuel José.
As cartas que saíam de Curitiba eram enviadas para Sorocaba, onde eram
reenviadas para São Paulo. O meio disponível eram os próprios negociantes de gado
que cruzavam o espaço entre Curitiba e Sorocaba, ou os chamados portadores seguros,
na designação muitas vezes feita por Antonio Francisco de Aguiar, que se referia a
conhecidos e amigos que percorriam o caminho entre Sorocaba e São Paulo. A
freqüência das cartas teve seus altos e baixos ao longo do período entre 1795, quando se
inicia a série, até inícios da década de 1810, quando acaba. Tomaremos como ponto de
referência o ponto de vista de Antonio Manuel Fernandes da Silva, em São Paulo,
espécie de epicentro da administração dos meios direitos.
187
Figura 19 ‐ Correspondência Ativa e Passiva do Tesoureiro Antonio Manuel Fernandes da Silva
Fonte: BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,17; BN‐II‐35,25,25‐27
A perfeita sincronia entre ativo e passivo não se dá apenas pela intenção,
visivelmente percebida nestes documentos, de que para cada correspondência houvesse
uma resposta. Há um problema de fonte: não dispomos das cartas escritas por Antonio
Manuel. Sabemos das cartas que escreveu através de sua correspondência passiva,
escrita por Antonio Francisco e Manuel José. Ambos tinham, notoriamente, instruções
para mencionar na sua correspondência a carta que estavam respondendo. No seguinte
estilo: Recebi a de vossa mercê de 18 do passado em resposta a minha de 8 e com ela
os necessários documentos da remessa que a mesma acompanhou.344 Talvez fosse um
protocolo de escribas da época, mas certamente Antonio Manuel exigia isso de seus
colegas/subordinados. Antonio Francisco de Aguiar nunca se esquecia deste
procedimento enquanto que Manuel José, de Curitiba, o esqueceu mais de uma vez,
tendo que explicar-se em cartas posteriores, talvez a pedido de Antonio Manuel.
Neste sentido, é possível mapear seqüências lineares de cartas e respostas ao
longo do tempo, através das indicações de continuidade presentes nestes documentos.
Apenas entre Antonio Francisco e Antonio Manuel encontramos séries inteiras de 344 BN-II-35,25,25-27-012
188
“perguntas e respostas”, de correspondências ativas e passivas em seqüência. Em suas
cartas, Antonio Francisco sempre lembrava à que missiva respondia, salvo quando
escrevia uma carta nova, para falar de um tema novo ou algo excepcional. Da mesma
forma, como o material que disponho é exatamente a correspondência passiva de
Antonio Manuel Fernandes da Silva, pude quantificar as anotações deste último que
indicam se respondeu suas cartas e em que data. Isso permite o rastreamento do
“diálogo” constante, propiciado pelo detalhamento presente nesta interessante
documentação.
O gráfico a seguir apresenta o total da correspondência ativa e passiva de
Antonio Manuel Fernandes da Silva e o número anual de cartas com resposta em
seqüência. Não encontramos este tipo de “seqüência” para a correspondência que
Antonio Manuel mantinha com Manuel José Correia da Cunha, de Curitiba. A
comunicação com este último era um tanto mais inconstante que a mantida com
Sorocaba, na figura de Antonio Francisco de Aguiar.
Figura 20 ‐ Cartas escritas por Antonio Manuel Fernandes da Silva (Número total e número das cartas resposta)
Fonte: BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,17; BN‐II‐35,25,25‐27
A primeira seqüência de vulto que encontramos vai de 14 de dezembro de
1795, primeira carta que encontramos, até 12 de dezembro de 1796. Foram dez cartas
189
escritas por Antonio Manuel que receberam dez respostas de Antonio Francisco. Ainda
durante este período, em 20 de novembro de 1796, inicia-se outra série, esta de 10
cartas, que vai acabar em 4 de maio de 1797. Uma terceira seqüência inicia-se em 24 de
janeiro de 1798, acabando em junho daquele ano.345 Encontrei ainda mais três séries de
cartas e respostas, uma pequena, de quatro cartas, no segundo semestre de 1801, uma
intensa, de onze, nos primeiros oito meses de 1803 e uma última, de seis missivas, no
primeiro semestre de 1808.
A saliente queda no número total de cartas tem certa relação com a escassez
de missivas com resposta em seqüência no final do período tomado. Isso, me parece, se
deve a diversos fatores. Em primeiro lugar, parece que depois de uma intensa
comunicação nos primeiros meses, os administradores adquiriram um certo know how
da atividade fiscal, o que contribuiu para reduzir o número de cartas, já que muitas eram
para instruções. Para além dos problemas próprios de organização das atividades de
arrecadação e da forma como os administradores combinaram suas formas de
comunicação, estes dados nos fazem ter uma idéia mais exata de possíveis faltas na
documentação. O recurso de buscar as séries de cartas respondidas em seqüência, como
as apresentadas no gráfico acima, possibilita que olhemos para os dados com maior
crítica. Percebemos que faltam alguns “exemplares” de cartas, mas temos mais condição
de saber em que momento.
A contabilização das referências à “genealogia” da carta, quando eram
indicadas à que original a missiva atual estava respondendo, permitiu identificar a
correspondência ativa de Antonio Manuel, da qual não encontramos as cartas, assim
como outras tantas cartas referidas na documentação. Este procedimento metodológico
apurou a crítica da documentação, facilitando a compreensão da lógica que orientava a
produção daqueles documentos. Ao se examinar este problema, aprendemos um pouco
mais sobre as preocupações daqueles sujeitos, que serão abordadas no restante do
trabalho. Por outro lado, este procedimento salientou as próprias debilidades da
documentação.
Apesar de ser uma série bastante completa, onde o cuidado com o manejo
da correspondência era evidente, certamente está longe da totalidade do “diálogo” 345 Nestas últimas duas séries, nem todas as cartas que colocamos em seqüência estas anunciadas como resposta, mas pelo ritmo e pelo tempo das resposta, parece ser o caso.
190
existente entre aqueles funcionários. A mesma documentação, nas suas narrativas, faz
referência a outras cartas, além das escritas por Antonio Manuel, e também noticia uma
série de outros diálogos e comunicações que se davam de forma exclusivamente oral
entre os homens daquele tempo. Em termos de escrita, era uma sociedade relativamente
“silenciosa”, como diria Marc Bloch346. Seus recursos faziam com que recorressem
pouco ao escrito. A mesma documentação relata grande número de negócios acertados
apenas oralmente, desde a cobrança das dívidas, a organização de tropas de animais, a
compra e venda dos animais. E estamos diante de um corpo documental particularmente
especial, onde as informações sobre estes negócios, minimamente, aparecem. A regra
seria o “silêncio” das transações orais, baseadas na memória, individual ou coletiva.
Para organizar os dados das correspondências, desenhei uma base de dados
que procurasse dar conta das especificidades destas fontes. Foi desenvolvida uma tabela
com 54 campos, dos quais 18 são exclusivos da fonte. O restante são campos que
permitem cruzamentos de dados ou o funcionamento de ferramentas de análise.
Vejamos como tal tabela se apresenta visualmente na base:
Figura 21 ‐ Aspecto da Base de Dados "Correspondências"
Destacam-se os campos “Remetente”, “Destinatário”, “Local”, “Data”,
“Título” e “conteúdo”, como os mais básicos de uma missiva. Criamos ainda os campos 346 BLOCH, Marc, A Sociedade Feudal (Lisboa: Edições 70, 1998), p. 147.
191
“sujeitos mencionados”, “locais mencionados” e “objetos” (temas tratados), assim como
atribuímos campos para referir à forma como os interlocutores se tratavam mutuamente.
A base prevê ainda o controle do material anexo, a confecção de um resumo e a
separação semi-automática de partes relevantes do texto, que podem ser classificadas
como “recursos discursivos” ou “recortes gerais” (que variam de acordo com a proposta
da pesquisa). Foram criadas ferramentas para busca textual dentro do campo
“conteúdos”, além de marcadores automáticos coloridos que destacam no texto palavras
procuradas, indicando ainda o percentual de sua recorrência no texto.
Para dar conta da “genealogia” da cartas, criamos uma tabela vinculada, na
qual se apontavam cada uma das cartas indicadas como prévias àquela missiva, ou seja,
àquelas cartas que a missiva tratava de responder. Muitas vezes uma carta respondia a
muitas, ou muitas respondiam a uma, o que justificou a criação de uma tabela vinculada,
que estivesse adaptada à diversidade de casos. Vejamos a tabela vinculada à base de
correspondência:
Figura 22 ‐ Detalhe da Sub‐base "Genealogia da Correspondência"
Destacam-se os campos “pré-original”, “original”, “atual” e “resposta”.
“Atual” é a carta que possuímos, resposta à “original”. A “original” é, por sua vez,
resposta à “pré-original” e “resposta” é a própria resposta à “atual”. Fazendo analogia
com termos genealógicos, a “atual” seria como um sujeito, a “original” seu pai, a “pré-
original”, seu avô e a “resposta”, seu filho. Entretanto, a “pré-original” e a “atual” são
as datas de cartas escritas por um sujeito, enquanto a “original” e a “resposta”, são de
outro autor. Da forma como construí, uma mesma carta pode informar as quatro datas,
possibilitando o rastreamento da seqüência.
Até aqui dei atenção prioritária para Antonio Manuel, deixando Antonio
Francisco e Manuel José um pouco de lado. Voltemos a eles, em busca de mais indícios
192
de seu mundo. Comecemos vendo seu “saldo” de cartas com São Paulo. Comecemos
em Curitiba, onde o inspetor escreveu sua primeira carta em 10 de janeiro de 1796,
dezenove dias após sua chegada na região.
Figura 23 ‐ Correspondência entre Antonio Manuel Fernandes da Silva e Manuel José Correia da Cunha
Fonte: BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,17; BN‐II‐35,25,25‐27
Após um primeiro ano de muita comunicação com seu supervisor em São
Paulo, lentamente a correspondência vai diminuindo. É bastante provável que algumas
cartas se tenham perdido, mas o problema está longe de se reduzir a isso. O tempo das
respostas entre Curitiba e São Paulo, que sempre foi lento, torna-se cada vez mais
vagaroso. No biênio 1796-97, a correspondência que saía de Curitiba levava cerca de 40
dias para ser recebida e respondida por Antonio Manuel em São Paulo. Nos anos de
1808 e 1810, para os quais temos informação, esta média sobe para 73 dias. Do mesmo
modo, a média de dias para uma carta sair de São Paulo, ser recebida e respondida,
passou de 50, no últimos anos da década de 1790, para 112, no final da década seguinte.
A tecnologia de envio continuava a mesma: ainda eram os tropeiros que levavam as
cartas.
193
Figura 24 ‐ Correspondência entre Antonio Francisco de Aguiar e Antonio Manuel Fernandes da Silva
Fonte: BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,17; BN‐II‐35,25,25‐27
A partir de 1806 Manuel José cada vez mais reclama, em suas cartas, da
falta de portadores que pudessem levar as cartas ou da falta de recebimento de outras.
Nos anos anteriores ele se limitava a avisar que a brevidade de suas cartas se devia à
pressa do portador. Entretanto, paralelamente, o número de tropas passando por Curitiba
aumentava ou, no mínimo, estava estabilizado, como veremos adiante. Se eram
desculpas fáceis, verdade ou enrolação, não sabemos, mas o tempo para a recepção de
cartas não diminuiu ou, pior, aumentou. E o incremento no número de tropas e tropeiros
não parece ter significado uma transformação que desautorizasse as explicações de
Manuel José, verdadeiras ou não. Manuel José parecia ter uma predileção por certos
tropeiros, que deviam gozar de maior confiança, especialmente quando necessitava
enviar livros contábeis e remessas de dinheiro. Não era qualquer um que poderia levar
as cartas.
Há informação mais precisa para 14 missivas. Nestas cartas, Manuel José
indicou a data que recebeu a original, o que nos permite saber quanto tempo a carta
viajou. A média geral, até 1803, era de 43 dias, variando entre 22 e 78, ou seja, entre um
e dois meses para a entrega. Em 1806, das três cartas que Manuel José recebia, uma
chegaria após cinco meses e outra após seis. Isso significa que durante vários meses, as
cartas ficaram retidas em algum ponto, ou nas mãos de algum tropeiro ou portador.
194
Parece que as condições de comunicação existentes neste espaço incluíam problemas
como estes. Em diversas passagens Manuel José comenta da demora na entrega das
cartas. Tal idéia se reforça se considerarmos que a política de respostas do trio que
estudamos incluía a já analisada referência à carta original que estava sendo respondida,
como forma de permitir a cada um deles perceber se um extravio havia ocorrido. Neste
caso, parece que o extravio ou o simples atraso era algo previsível. O trio sabia das
fragilidades de seu sistema.
Figura 25 ‐ Comparação entre as correspondências enviadas para Antonio Manuel Fernandes da Silva pelos inspetores de Curitiba e Sorocaba
Fonte: BN‐II‐35,25,03; BN‐II‐35,25,17; BN‐II‐35,25,25‐27
Em contrapartida, a correspondência entre São Paulo e Sorocaba tem uma
dinâmica diferente. Ao longo de 14 anos, as cartas escritas em São Paulo dirigidas à
Sorocaba em uma data eram respondidas aproximadamente 20 dias depois, variando
entre 6 e 65 dias. Os únicos anos em que este tempo passou de 25 dias foram 1799,
1801 e 1807, o que demonstra uma grande agilidade neste “canal” de comunicação. O
caminho contrário, de Sorocaba para São Paulo, até 1805, era tão rápido ou até mais
veloz. De 1795 a 1805, uma carta levava 22 dias para, desde sua redação em São Paulo,
ser respondida em Sorocaba. No mesmo período, sendo escrita em Sorocaba, uma carta
era respondida 18 dias depois. Entretanto, para o período seguinte, entre 1806 e 1811
há um aumento sensível para a média de 61 dias, chegando a 84 em 1807 e 119 em
195
1810. É difícil saber o porquê desta demora crescente, mas talvez seja igualmente
motivada pela falta de pessoas confiáveis como portadores, ao menos em alguns
períodos.
Resumindo, importa destacar que a media das respostas para as cartas entre
Curitiba e São Paulo era de aproximadamente 60 dias, enquanto que Sorocaba era de 30.
Considerando as distâncias, a “quilometragem” de uma carta partindo ou chegando à
Curitiba era de aproximadamente seis quilômetros por dia, enquanto que as cartas com
destino ou origem em Sorocaba percorriam na média 2,8 Km por dia. Mesmo com todas
as dificuldades do caminho, como vimos no capítulo 3, o sistema de comunicação do
Registro de Curitiba funcionava bem, tendo no caminho das tropas seu “correio”, no
fluxo humano garantido pela atividade dos tropeiros.
Informação e controle contábil
Em 1494 era publicada em Veneza a Summa de Arithmetica, geometria,
proportioni et proportionalità, escrita por Luca Pacioli. Era a primeira vez que alguém
descrevia detalhadamente o chamado sistema italiano ou, mais precisamente, a forma de
contábil alla veneziana. Pacioli fazia referencia a um modo eficiente de controlar as
contas de negociantes, amplamente utilizado pelos mercadores vênetos e em diversas
regiões da península italiana, especialmente Florença e Gênova. Tal aplicação foi uma
das grandes inovações no mundo comercial europeu do medievo, juntamente com a
introdução dos números árabes, em substituição aos romanos, com a obra do
matemático e mercador Leonardo de Pisa, Liber abaci, em 1202.347
O sistema descrito por Pacioli, também conhecido como método das
partidas dobradas, ainda hoje utilizado pelos contadores, não se tornou um sucesso no
século XV nem pelo esforço de Pacioli nem pela preponderância comercial das cidades
italianas. Sua disseminação é muito posterior. Ela chega entre os mercadores franceses
no início do século XVIII, ainda que outras formas contábeis coexistissem ainda até
347 YAMEY, Basil, "Bookkeeping and accounts, 1200-1800," in L'impresa industria commercio banca secc. XIII-XVIII. , ed. CAVACIOCCHI, Simonetta (Prato: Istituto Internazionale di storia Economica, 1990).
196
finais do século.348 A difusão das partidas dobradas em Portugal se deu a partir da
década de 1760. Três obras literárias da época ilustram o crescimento da preocupação
metodológica contábil, visível também nas reais ordens para o uso do método
veneziano. O Mercador exacto nos seus livros de contas, de João Baptista Bonavie,
escrito em 1758, o Tratado sobre as partidas dobradas de 1764, editado em Turim em
língua portuguesa, de autor desconhecido e Arte e diccionario do commercio e
economia portuguesa são provavelmente as mais antigas obras lusas sobre
contabilidade e, particularmente, sobre as partidas.349
As três obras procuravam servir como manuais práticos para pequenos e
grandes negociantes. O Tratado sobre as partidas dobradas, por exemplo, usava a forma
de perguntas e respostas para facilitar o entendimento do novo método. O mesmo era
pretendido pelo Mercado exacto, onde abundavam exemplos de negociações possíveis e
as formas adequadas de se registrar cada evento nos novos livros, para que todos
negociem e governem seus bens por cálculo e não por conjectura350. Um excerto da
obra de Bonavie é significativo:
Considerando não há em Portugal uma regra geral para a arrimação das contas dos mercadores por um método claro, para em poucas horas um mercador exacto saber ao certo o estado do seu negócio sem mais escrita do que a que se acha nos seus livros, intentei fazer este método formado pelo princípio das partidas dobradas.351
Estas inovações contábeis chegaram aos mercadores de formas desiguais.
Na administração da Casa Doada ela se estabelece formalmente com a ascensão do
novo grupo, em meados da década de 1790, ainda que já fosse precariamente
empregada há alguns anos. Quando Manuel José assumia a administração de Curitiba,
noticiava ao seu tesoureiro que seu antecessor
348 CARRIÈRE, Charles, Négociants Marseillais au XVIIIe siècle. Contribuition à l'étude des économies maritimes (Marseille: Institut Historique de Provence, 1973). 349 ANÔNIMO, Tratado sobre as partidas dobradas (Turin: Officina de Diego José Avondo, 1764); ANÔNIMO, Arte e diccionario do commercio e economia portuguesa (Lisboa: Oficina de Domingos Gonçalves, 1784); BONAVIE, João Baptista, Mercador exacto nos seus livros de contas (Porto: Oficina de Antonio Alvares Ribeiro Guimarães, 1771). 350 ANÔNIMO, Arte e diccionario do commercio e economia portuguesa. 351 BONAVIE, Mercador exacto nos seus livros de contas.
197
Entregou-me todas as clarezas precisas para a boa Administração e igualmente a cópia dos mapas anuais de seu tempo: os mais livros do Registro não se acham em seu poder352
Antonio Manuel Fernandes da Silva passa a exigir o uso de livros
específicos, variedades de papéis, a identificação dos documentos e a correspondência
regular. O resultado é uma mudança qualitativa no material usado como fontes neste
trabalho. O controle numérico de tropas é mantido e constantemente atualizado, sendo
regularmente remetido para a tesouraria de São Paulo. O cuidado com os livros é
constante. Em uma carta de 1796, Antonio Francisco de Aguiar apontava a necessidade
de usar um livro novo para registrar a nova numeração, recentemente adotada. Algumas
dezenas de cartas depois (onde tal assunto era recorrente), em março de 1809, Aguiar
tornava ao tema, em uma carta escrita somente para isso:
Meu amigo. O livro que Vm mandou para o Registro das guias doadas se não pode escrever nele pela má qualidade do papel que todo se trespassa em termos que eu mesmo que escrevo o não leio e isto já VM veria nas rúbricas do ministro e declarações feitas no princípio e fim não se pode escrever de outro lado, conhecendo VM que para livros se precisa do bom e melhor papel e por isso veja VM que este foi despesa facilitada e perdida e necessito o quanto antes de outro que não seja da qualidade do papel deste e quero logo a decisão.353
O manejo contábil da administração da Casa Doada se apresenta aqui dentro
de dois quadros ou estruturas. Por um lado, havia a preocupação com aquilo que os
contemporâneos chamavam de boas contas, a exatidão dos valores; por outro lado, este
sistema era importante por algumas das características daquela unidade arrecadadora,
que deveria garantir o recebimento “impessoal” dos tributos em uma economia
profundamente “pessoal”. O problema das contas bem feitas não era um simples
capricho mercantil. A exatidão nos cálculos, a ausência de erros, era uma sinalização da
honestidade do negociante e falava sobre seu modo de fazer negócio. A mesma idéia
estava presente no pensamento de um contemporâneo dos administradores da Casa
Doada, Manuel Bento da Rocha, criador de animais em Viamão que, ao servir de
testemunha em um litígio, argumentava pela honestidade de um dos acusados,
afirmando que este andava tratando sempre com boas contas e verdade.354 Ao
352 BN-II-35,25,03-001 353 BN. II-35,25,25-27. 354 1 COAPOA. L. 08. 105.
198
apresentar seu livro sobre o “Mercador exacto”, João Baptista Bonavia argumentava que
o método apresentado servia para
...segurar a verdade, e boa fé indispensável entre os negociantes [...] Não faltavam até agora nesta Nação as virtudes para sustentar o negócio e mercancia com a honra, e singeleza, que gera a boa fé nos contratos. Muitas pessoas tenho conhecido neste Reino que podiam servir de exemplares nesta matéria; mas a ignorância de outras na falta de mestres, ou diretores impedia (algumas vezes inculpavelmente) o exercício dessas virtudes, por que carregados os homens com a multiplicidade de negócios, em que eram diferentes os sucessos, nem se lembravam de todos...
Mas era mais do que isso. A aplicação do método das partidas dobradas e de
todo o aparato contábil e de controle poderia se dar de muitas formas. Se ao “doado”
interessava a arrecadação, uma simples numeração das tropas bastaria para o controle,
mas não era assim que funcionava aquela sociedade. O sistema da Casa Doada
funcionava assim: um tropeiro chega ao Registro de Curitiba; sua tropa recebe um
número e os animais são contados para a definição do valor da cobrança. Se ele possui
dinheiro, paga e isso é registrado, juntamente com o nome do tropeiro responsável e o
valor. Se não tem, os mesmos dados são anotados e serão, futuramente, incluídos no
“mapa” das tropas que passaram, regularmente enviado para a tesouraria em São Paulo.
O valor pode ser pago em Sorocaba, antes da chegada na vila ou, dependendo, uma
fiança pode ser aceita e os animais liberados para venda. Aparentemente, um sistema
bastante impessoal.
A impessoalidade, contudo, ficava apenas na aparência. A simples
preparação das listas dos devedores e pagantes já respeitava as hierarquias daquela
sociedade ao apresentá-los com qualificativos como capitão, preto, tenente e reverendo
vigário. Mas havia mais. Os devedores eram especialmente “cadastrados” em listagens
especiais, onde outras informações eram incluídas, especialmente sobre os
relacionamentos sociais daqueles sujeitos, ou seja, das redes a que pertenciam e através
das quais se poderia fazer a cobrança. Em uma sociedade onde a noção de indivíduo
ainda era muito incipiente, se é que existia, relacionar uma pessoa a um grupo maior era
como pedir seus documentos.
Esta preocupação estava na ordem do dia para Manuel José Correia da
Cunha quando, em 1798, ele trabalhava na cobrança de alguns devedores
199
que estão para Viamão para pagarem e alguns que moram para a Vila de Curitiba e por eu os não conhecer tenho dado essa incumbência e dizem-me que respondem que nada devem quero pela Páscoa ir aquela vila a ver se me encontro com eles para me desenganar355
Uma cobrança para a Casa Doada poderia prescindir do conhecimento
prévio entre cobrador e cobrado? Não era o que pensava o novato Manuel José.
Igualmente Antonio Francisco de Aguiar, conduzia assim sua obra na Casa Doada.
Quando chamado a esclarecer algumas dúvidas sobre os pagamentos de certos tropeiros,
explicava que
Nas relações que tenho da Patrulha e Santa Vitória, não encontro se não com o nome de Manuel Francisco de Sales e Manuel Francisco de Lima, aquele é bem conhecido nessa cidade e este vou sobre o mesmo a [?] diz-me ser cunhado de um José Lopes de Oliveira, que foi ao continente fazer uma tropa de certo valor dessa cidade, que pertence, hoje ao capitão João Lopes França.356
Em outra circunstância, agora para cobrar uma dívida certa, Manuel José
dirigiu-se a um membro da família:
procurei o tenente coronel Manuel Gonçalves Guimarães como fiador do filho por este não estar na terra ele me pediu espera até setembro eu lhe concedi se vm.ce conviesse na dita espera e fiz por ver que o nosso Doado não recebe o dinheiro357
Neste caso, um membro da família foi acionado na falta do primeiro,
indicando o quão familiar era aquele empreendimento. Poderíamos minimizar esta
situação lembrando que o pai era o fiador, argumento este mesmo indicado por Manuel
José. Contudo, a decisão de ter como fiador a um membro da família partiu da própria,
se quisermos fragmentar, pela escolha do filho e aceitação do pai. Do mesmo modo
Manuel José sondava um devedor, em 1800, para saber notícias de seu paradeiro. José
Manuel Tavares da Cunha devia 7$960 “com título de afilhado do Coronel José Vaz
sem dizer onde era morador, e quando aqui esteve procurei lhe pelo mesmo e diz estar
casado em Jundiaí.” Também o devedor entendia sua vinculação parental como uma
espécie de confirmação de endereço, dentro de Jundiaí.
Não se tratava de uma postura dos cobradores, um meio de associar as
pessoas a determinados grupos ou localidades com um objetivo pragmático. Era a
própria forma da sociedade se organizar em termos de referências, de modo a atribuir ao
355 BN-II-35,25,03-029 356 BN-II-35,25,25-27-026 357 BN-II-35,25,17-004
200
membro do grupo toda uma série de prerrogativas do conjunto a que ele pertencia. A
associação, a facilidade na identificação era apenas o corolário disso, a forma que
aquela sociedade havia inventado para orientar cada um de seus membros.
Uma listagem de 1796 é particularmente interessante. Ela indica uma série
de devedores e porta informações preciosas sobre cada um deles, além dos valores
devidos. Francisco Borges da Costa, por exemplo, foi um simples capataz do falecido
João de Oliveira Preto. Outro, José Lopes da Costa, havia sido açoitado na Vila de
Castro e se passou para o Rio de Janeiro. José Plácido Moreira, por sua vez, era
apontado como morador em Sorocaba e irmão do Cônego Lourenço, do qual cobrei
[Antonio Francisco de Aguiar] 4$000. De Antonio Mateus Lima, Aguiar sabia que o
tropeiro havia morrido Lazaro e vivendo de esmolar. Já Vicente José, que devia há
muitos anos, era difícil de encontrar: Deste tropeiro nada sei, foi inspetor no tempo
desta guia Bernardo José Vieira Bessa, morador hoje na Freguesia de Aritataguaba
[sic] o qual pode bem responder. Com este último caso paramos um pouco para
observar.358
Comecemos com a falta de informação. Sobre Vicente José, devedor
incógnito, o meio para se obter algo era através de Bernardo José Vieira Bessa, ou seja,
baseado na memória e no conhecimento pessoal daquele antigo fiscal. A idéia de fichas
individuais não existia e mesmo a simples menção em uma lista era carregada de
vinculações familiares, hierárquicas e de amizade.
Antonio Mateus Lima havia morrido lázaro e esta informação não escapou
ao controle fiscal da Casa Doada, nem quando da captação da informação e nem na sua
transmissão ao tesoureiro em São Paulo. Até mesmo este dado trágico era importante.
Não era à toa. Ela situava o devedor na sociedade, tal como as outras informações, e
sugeria que ele não mais possuía vínculos sociais que lhe permitissem sobreviver de
outra forma antes da morte e nem herdeiros para depois dela. Um indivíduo não era um
indivíduo nem quando estava sozinho no mundo, nem mesmo em termos fiscais. Ele
possuía um lugar na sociedade e uma inserção dentro do que se poderia chamar caridade
cristã.
358 BN-II-35,25,25-27-006 (1796).
201
Os administradores da Casa Doada trabalhavam com um público possível de
tropeiros muito grande, considerando-se que a atividade tropeira era relativamente
viável mesmo a um pequeno produtor, como já vimos. Somente na capitania de São
Paulo, onde residia a maioria dos tropeiros que pudemos identificar, havia mais de
150000 habitantes, dos quais mais de 40000 eram homens entre 15 e 60 anos, onde se
enquadravam praticamente todos os tropeiros.359 Ainda assim um número absurdo, onde
um controle relacional, baseado nas relações pessoais, diádicas ou não, aparentaria um
total fracasso. Mas não era assim e, como vimos, o controle das cobranças era bastante
eficiente e garantia que poucas fossem as dívidas que ficassem para trás ou que nunca
fossem pagas. Como era possível?
O primeiro trunfo dos administradores era que nem todos os 40000
potenciais tropeiros realmente se interessaram ou podiam negociar animais. De qualquer
forma, eles não conheciam pessoalmente todos os mais de quinhentos tropeiros e peões
que passaram pelos Registros entre 1796 e 1810 e estes mesmos tropeiros eram uma
amostra, digamos, aleatória, dentro da população masculina entre 15 e 60 anos,
oriundos de diversas localidades das Capitanias de São Paulo e Rio Grande, além das
Minas.360 A pergunta continua. Como era possível? A resposta estava nos próprios
administradores.
A vasta correspondência produzida por Aguiar e Correia da Cunha nos
informa muito sobre os relacionamentos mantidos durante o período que estamos
analisando pelos administradores da Casa Doada, e não apenas por Aguiar e Cunha, mas
também por Antonio Manuel Fernandes da Silva. Seus contatos não incluíam todos os
tropeiros, mas incluía gente que conhecia gente que conhecia outros, o que possibilitava
aos administradores estender sua presença para além de seu campo visual, para além do
seu conjunto mais imediato de relacionamentos. Certas relações garantiam a “cobertura”
de uma grande quantidade de grupos sociais, e em certo sentido, acabava cobrindo
praticamente toda a capitania de São Paulo, especialmente no entorno da capital, além
de parte significativa das Minas e do Rio Grande. Estas redes amplas, pela sua
359 AHU. SPMG. 3507 360 Não descarto a possibilidade de mulheres e maiores de 60 anos atuarem no negócio de tropas. Não encontrei registros de mulheres na lida de animais e excluímos os maiores de 60 anos deste raciocínio por obter dados coevos com esta divisão, além de que se os incluísse, o número seria ainda maior, favorecendo ainda mais o argumento.
202
dimensão espacial, acabavam repercutindo nas densas redes locais, onde a fofoca
cumpria um papel regulador.
Daqui é possível ir direto ao Capítulo 11.
203
Capítulo 8 A confiança: geração, valor e manutenção
Em outubro de 1788 o tropeiro Antonio Gonçalves Guimarães passava pelo
Registro de Sorocaba sem pagar, alegando como fiador Francisco Luis de Oliveira. O
tropeiro não pagou e Oliveira acabou oferecendo o pagamento em algodão, o que não
foi aceito e somente em 1793 o fiador fazia o depósito em dinheiro para este e outra
tropa. O dinheiro foi entregue pelo Padre Manuel Caetano de Oliveira, filho de
Francisco Luis, no montante de 445$946 réis.361
Alguns anos depois, provavelmente em 1792, uma outra tropa do mesmo
fiador, passava por Sorocaba, e novamente o próprio Francisco Luis acabava ficando
responsável pelo pagamento, agora no valor de 51$500 réis. Em outubro de 1796 era
notificado o pagamento da dívida, depois de alguns anos de dúvidas sobre a real
responsabilidade de Francisco Luis. O fiador foi diversas vezes ao encontro de Antonio
Francisco de Aguiar para discutir esta dívida e outras, relativas ao pagamento dos
dízimos e, em uma destas, respondeu de honra e verdade sobre as contas que mantinha
junto a Aguiar e os demais responsáveis pela arrecadação da Fazenda Real. Afirmava
dever “quatro mil e tantos cruzados” pelos tributos de uma boiada e que mandara
alguma “porção de dinheiro” para saldar os dízimos devidos.
Pouco mais de seis meses depois, o filho de Francisco Luis, o cônego
Manuel Caetano de Oliveira, era encarregado pelo administrador Aguiar para ser
portador de 629$730 réis de Sorocaba para São Paulo, dinheiro arrecadado na cobrança
de tributos. Dois meses depois ele levaria mais 215$860 para a mesma cidade, e em
outubro de 1797 levaria documentos da contabilidade da Casa Doada de Curitiba para
São Paulo, por pedido do inspetor Correia da Cunha, que ficava no Registro de Curitiba.
Manuel Caetano ainda faria outras remessas nos anos seguintes: três contos e meio em
dezembro de 1798, um conto em fevereiro de 1800, outro conto e meio em abril daquele
ano e quatro contos e meio em 1807. Paralelamente, a partir de 1798 ele aparece na
correspondência ativa de Antonio Francisco de Aguiar como o compadre e amigo
Cônego.
361 BN-II-35,25,62; BN-II-35,25,25-27.
204
Francisco Luis mantinha boas contas, o que criou e manteve sua reputação.
Assumiu as falhas de quem foi fiador e sempre se preocupou em saber de suas dívidas.
Sua palavra “sincera” foi o suficiente para os cobradores da Casa Doada. Em diversos
momentos ele poderia ter assumido a postura daqueles de quem foi fiador, mas sua
opção foi outra. Esta postura o aproximou do pequeno grupo dos administradores das
Rendas Reais, mas não apenas de si. Aqui se percebe uma reputação passada de pai para
filho. Manuel Caetano, que também deve ter se beneficiado da imagem austera
provocada pela batina, acabou ingressando juntamente com seu pai nos negócios da
Casa Doada. E Manuel Caetano soube como manter e aumentar a confiança depositada
por Antonio Francisco de Aguiar.
Este parece ser um modelo relevante de construção de confiança, baseado
no acumulo de boas experiências mutuas ao longo do tempo, coroado, simultaneamente,
por outras aproximações, de parentesco fictício, no caso. Mas certamente não era a
única forma possível. Antes, contudo, convém verificar o peso disso que chamamos de
confiança naquela sociedade e como os próprios contemporâneos definiam este valor.
Definições êmicas e seu significado social
Bluteau nos apresenta alguns significados para a palavra crédito, a maioria,
relacionado diretamente à idéia de confiança, como fé que se dá a alguma coisa, ou
seguindo o parecer de alguém, ou dando fé ao que ele diz, com frases de efeito como
por meio de coisas pequenas o engano se granjeia crédito ou a suspeita de que o ódio e
a paixão os fizesse obrar, foi causa de que não se desse crédito ao que eles
testemunhavam. E havia os ditos populares, como a velhice dá crédito. Podemos
encontrar exemplos discursivos nas fontes que utilizamos de todas estas formas de
compreender crédito e confiança, neste caso, entendidos como sinônimos. Mas esta
última forma, velhice dá crédito, é particularmente eloqüente. Ela pode ser interpretada
de forma abstrata, de modo semelhante àquele modelo de construção de confiança que
apresentei acima, associando tempo e experiência nas relações à confiança. Por outro
lado, ela pode ser entendida literalmente, dentro de uma visão de mundo que percebe
nos mais velhos maior reputação e respeito.
Esta mesma concepção pode ser vista, por exemplo, em uma carta da Casa
Doada de 1796, em que Antonio Francisco de Aguiar nos fala de um tropeiro velho, e
205
de todo o conceito e verdade.362 Muitos anos depois, em 1807, ele viria ratificar o
significado daquelas palavras, ao confiar do Tenente Coronel Francisco Antonio e fazer
dele o conceito devido.363 Sem querer ser confuso, a noção de conceito era um recurso
discursivo útil para classificar as pessoas e avaliar seu comportamento, ou melhor, para
classificar a opinião que uns tinham sobre os outros. Mas só encontrei este verbete na
pena de Antonio Francisco de Aguiar. Mais popular parece ter sido o vocábulo crédito.
Em uma devassa realizada em 1787, no Rio Grande de São Pedro, diversas testemunhas
afirmaram saber de certos fatos por pessoas dignas de crédito, um, particularmente que
falava de um escravo que fez o possível para defender o crédito de seu senhor, depois
de escutar de vizinhos que não aprendesse a ser ladrão com seu senhor.364
Forma prática de classificar as pessoas e monitorar seu comportamento, as
noções sinônimas de crédito e conceito eram extremamente importantes nos jogos
cotidianos, como nos sugere novamente Antonio Francisco de Aguiar, agora em carta de
1796. Ele dizia das dívidas que José Joaquim de Oliveira Cardoso, filho do falecido
Capitão-mor de São Paulo, pois esperava
que o Doutor José Joaquim formalize as suas contas judiciosas e verdadeiras, por crédito seu, e boa reputação as cinzas de seu pai, e daquilo que se liquidar, se pagou com os bens e isto já sem demora, para sossego de tantos espíritos desinquietos ao que me satisfaz ter no princípio procurado liquidá-los comutando vários partidos [...] a conta do seu crédito o que como homem de bem e conceituado, declarasse a quem desse paga... 365
A mesma preocupação que vinculava o sossego das almas com o crédito
público pode ser percebida no testamento de Antonio Carvalho da Rosa. Naquele maio
de 1783, instruía sua esposa e testamenteira para que se aparecesse alguma pessoa de
reconhecida verdade dizendo que lhe devo alguma coisa se lhe satisfaça para descargo
[sic] de minha alma.366 Além disso, estava claro para ele que havia pessoas de
reconhecida verdade que poderiam ser facilmente identificadas.
Vou partir destas definições êmicas para elaborar meu referencial teórico,
entendendo confiança, ou crédito, como o conceito que as pessoas têm umas das outras,
362 BN-II-35,25,25-27-026 363 BN-II-35,25,25-27-106 364 Arquivo Nacional. Códice 104. Vol. 09. 365 BN-II-35,25,25-27-023 366 APERGS. Inventário de Antonio Carvalho da Rosa. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Rio Grande. 1783.
206
um instrumento de medição, uma forma de classificar o comportamento social, avaliar
quem eram os homens de bem. Uma pessoa só pode ser confiável conforme é avaliada
como tal por outro(s), ou seja, o uso do instrumento de medição vai variar de acordo
com quem o usa, o que pode trazer resultados muito diversos, considerando que os
recursos estão desigualmente distribuídos, especialmente as informações e os fatores
que modificam as opiniões. E a própria circulação de opiniões diversas vai contribuir
para modificar este cenário, num quadro dinâmico, que pode mesmo ser dinamicamente
conservador. Todavia, a medida que devemos usar para isso não é a métrica. Deve ser
uma medida semelhante à utilizada naquele momento, como já vimos anteriormente.
Deve ser equitativa, com uma medida própria para cada um.
Há quem pense que confiança é uma predisposição correlata a
relacionamentos fortes, e que relacionamentos fracos produzem desconfiança ou falta de
confiança. Boa parte da teoria sociológica sobre o tema aborda o problema a partir deste
pressuposto. É o caso, por exemplo, do clássico Família e Rede Social, de Elizabeth
Both,367 no qual a autora aponta a densidade das relações368 como um elemento que
determinaria o comportamento dos agentes, no caso, famílias nucleares de Londres em
meados do século XX. Para ela, a forma como o casal distribuía seu tempo e suas
atividades domésticas (em função de gênero, por exemplo, se quem cuidava da casa era
a mulher ou se dividiam as tarefas) tinha direta relação com o círculo mais próximo de
relações do casal, e da forma como cada um ou ambos construíam suas relações com
terceiros. O tema da confiança não é abordado diretamente nesta obra, mas a idéia de
que as redes moldam o comportamento é desenvolvida.
Avner Greif, trabalhando com os negociantes Maghribis no mediterrâneo do
século XI apresenta outros elementos. Partindo de uma vertente neo-institucional e
questionando vários pressupostos neo-clássicos, ele procura entender os mecanismos
que tornavam possível a economia mediterrânea, onde judeus, árabes e cristãos de
diferentes lugares movimentavam mercadorias em um arriscado comércio onde as
perdas acidentais eram comuns, mas desvio poderiam ocorrer por oportunismo dos
agentes, tudo isso em um contexto onde os contratos não garantiam minimamente a
367 BOTH, Elizabeth, Família e rede social. Papéis, normas e relacionamentos externos em famílias urbanas comuns (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976). 368 Ela utiliza o termo conexidade, mas em textos posteriores adota densidade, seguindo a tendência da maioria dos sociólogos.
207
segurança do negócio e os tribunais de comércio eram considerados muito lentos. Greif
salienta que, mais importante que os sistemas de controle social e a ética, a visão de que
o ganho a longo prazo era mais interessante (maior) que o ganho oportunista de curto
prazo induzia os agentes a não se arriscarem em quaisquer formas de desvios. O registro
público, social, coletivo das atitudes dos agentes ao longo do tempo formaria sua
imagem pública, sua reputação, e informariam os demais agentes. 369
Para Greif, contudo, os negociantes mediterrâneos do século XI
encontraram formas mais práticas, rápidas e baratas de resolver o problema da
confiança, criando, ao longo do tempo, ligas (coalition) de mercadores, de modo que o
pertencimento a uma liga era sinônimo, para os pares, de honestidade do agente.
Desvios poderiam significar a exclusão do agente da liga e uma mancha na reputação
que poderia provocar um longo ostracismo do meio mercantil. Neste sentido, a
perspectiva de Greif é análoga: a rede densa da liga é capaz de determinar o
comportamento de seus membros. Ainda que ele insista que o principal fator seja a
visão de longo prazo, ela só é possível pelos benefícios garantidos pelo pertencimento à
liga.
A análise de Greif permite avanços nos estudos sobre confiança e redes
densas de cooperação mercantil. Contudo, a paisagem relacional que ele apresenta é
uniforme, tanto para o espaço mediterrâneo (mesmo que apresente algumas diferenças
culturais entre grupos identitários que ali atuam) quanto, especialmente, para o interior
das ligas. A impressão que fica da leitura é que as ligas eram ilhas de informação
simétrica num oceano de incertezas. Há muita expectativa de coerência no
comportamento dos membros da liga. É certo que destacar o papel destas instituições no
cenário mercantil medieval é um avanço, como salienta o autor, ao afirmar que a família
não era a única forma de empresa medieval. Mas deste postulado, ficam algumas
dúvidas sobre o quanto família e liga podiam estar associadas no cotidiano daqueles
agentes, através de parentesco, por exemplo, ritual ou consangüíneo (como a sucessão
de pai para filho na condução dos negócios). E até que ponto a visão de cooperação de
longo prazo não estava orientada por práticas religiosas370, por uma visão de maior
369 GREIF, Avner, "Reputation and coalitions in medieval trade: evidence on the Maghribi Trades," The Journal of Economic History 49, no. 04 (1989). 370 E convém ressaltar que há diversos elementos em comum entre as culturas judaica, muçulmana e cristã. Ver: LEVI, Giovanni, "Reciprocidad mediterránea," Hispania LX, no. 204 (2000).
208
longo prazo, visando a salvação da alma? De certo modo, a forma como o autor
manipula separadamente categorias ditas “econômicas” e “sociais” provoca um
indesejado mecanicismo nas suas análises.
Cenário mais interessante é o apresentado por Biagio Salvemini, ao estudar
pequenos mercadores no final do século XVIII na Puglia, dando especial atenção às
formas orais de circulação de informações, em um contexto onde boa parte daqueles
pequenos mercadores era analfabeta. A relevância de seu estudo reside no fato de
priorizar um pequeno mercado obscurecido por outras grandes rotas do Adriático, onde
os pequenos negociantes precisavam articular redes muito sólidas e densas para fazer
sobreviver diante de companhias bem estabelecidas. O problema é que ele apresenta um
cenário de grande homogeneidade na circulação de informações dentro das redes
daqueles “marinheiros”. A mesma noção de uniformidade é presente na análise de
Greif. A informação circulava entre os portos do Adriático com estrema facilità. Neste
caso, restaria indagar sobre aquilo que não circula com facilidade. Aquelas informações
que poucos têm acesso e que distinguem uns negociantes dos outros, contribuindo para
a peculiar hierarquização que marcava a vida daquela gente. Por outro lado, se a
informação circulava tão rapidamente, o que dizer da fofoca? E até que ponto uma
informação equivocada, vinda de um aliado confiável, podia levar a péssimos negócios
ou perda de tempo?371
Estudando grupos de empresários atuais, Ronald Burt propõe uma rediscutir
alguns elementos clássicos da teoria sobre redes sociais. Para ele, há duas “escolas” de
interpretação do chamado capital social: os defensores do primado das redes fechadas,
densas, na formação deste capital e os defensores da brokerage (mediação). Para Burt,
não há correlação direta entre densidade das relações e confiança, como postula boa
parte da teoria sociológica sobre redes, que geralmente utiliza um modelo de duas
posições, ego e alter, cuja interação contínua promoveria a criação de confiança. Burt
inclui o contexto social no modelo, ao considerar a presença de terceiros na dinâmica
das relações de ego e alter. E neste sentido, o papel da fofoca, para ele, é muito
relevante372. E agora ego sabe coisas de alter não apenas por seu contato direto, mas
371 SALVEMINI, Biagio, "Far negozio senza informazioni. "Marinai" pugliesi nell'adriatico settecentesco," Quaderni Storici 124, no. 01 (2007). 372 O autor usa uma definição funcional de fofoca, como a simples troca de notícias com as pessoas com quem mantemos relações. Passo a adotar esta definição.
209
pelo que sabe por terceiros, e o volume destas notícias vai variar de acordo com o
número de conhecidos em comum que ambos tenham. E estas avaliações alteram a
visão de um sobre o outro.
Tomando elementos da psicologia social sobre interação, Burt acredita que
mais do que reforçar laços, redes densas podem reforçar predisposições de uns sobre os
outros. O que ego ouve repetidamente dizer de terceiros sobre alter não significa a
aceitação de ego sobre estas opiniões, e talvez signifique um reforço das idéias de um
sobre o outro, em direção a opiniões polarizadas no que se refere à confiança, se
honesto ou desonesto, por exemplo. E ego vai transmitir a terceiros as informações
sobre alter que forem consistentes com sua predisposição. Esta visão permite um
aprofundamento no problema, apontando caminhos alternativos à linearidade proposta
por outros autores e abrindo espaço para se pensar o desequilíbrio dentro de relações
densas. E permite que pensemos além da causalidade relações densas mais interação
igual à confiança. Se seguíssemos pensando nestes termos, não haveria razões para
pensarmos conflitos dentro de grupos. Mas eles existem. E existiam. Logo, abre-se
caminho para pensarmos diferentes densidades de relacionamento atuando ao mesmo
tempo. 373
Tenho, contudo, alguns pontos para observar sobre o trabalho de Burt.
Tendo um diálogo de ego e terceiros sobre alter, ele dá demasiada atenção ao que muda
na opinião de ego e terceiros sobre alter, e pouca atenção ao que muda entre ego e
terceiros ao falar de alter. Simplificando: ele se ocupa da fofoca, da opinião dos
fofoqueiros, mas não da relação entre os fofoqueiros, o que pode mudar nela. Não se
atém ao fato de que a fofoca, mesmo reforçando as posições de uns e outros, pode unir
ou afastar os fofoqueiros. E podemos discutir isso tendo em conta os mesmos
pressupostos. Se há uma tendência para que haja reforço, é possível que a conversa se
dirija (como o próprio Burt afirma ao longo do texto) a um consenso nas posições, de
modo que possa criar ou reforçar laços entre os interlocutores, ou uma briga. O que
importa ressaltar é que a fofoca não serve apenas para fazer circular informação
aproveitável ou não, mas para criar/impedir relações entre os fofoqueiros. E neste caso,
o tema não precisa ser outro agente, mas as opiniões sobre qualquer tema, se a virgem 373 BURT, Ronald, "Bandwidth and Echo: trust, information, and gossip in social networks," in Networks and Markets: contributions from Economics and Sociology, ed. CASSELLA, Alessandra & RAUCH, James (New York: Russel Sage Fundation, 2001).
210
era virgem mesmo. Mas este não foi um bom exemplo, pois, nesta obra, a virgem era
agente.
Um elemento pode enriquecer muito este modelo, a noção de escala. Se
pensarmos no Império luso, os tropeiros do caminho do Viamão à Sorocaba talvez
pudessem ser considerados uma rede densa. Mas se observarmos a própria rota,
veremos que há diferentes relações com diferentes densidades sendo mantidas e
reproduzidas neste recorte. Neste sentido, talvez os habitantes de Curitiba possam ser
entendidos como uma rede densa. Já vimos que havia um mercado matrimonial
endógeno naquela localidade. Mas se tomarmos como referência o espaço de uma vila,
veremos que ali também há diferentes grupos com relações desiguais, distribuídos por
um espaço onde as distâncias tinham seu peso para os contatos diários. Neste caso,
poderíamos considerar a família Pinto Bandeira, do Rio Grande, como uma rede densa.
Também ali, entretanto, veremos que há um “núcleo duro” formado pelos genros,
cunhados e pelo capo Rafael Pinto Bandeira, e que, por outro lado, este núcleo denso
tinha relações amplas que se estendiam por todo o território do chamado Rio Grande de
São Pedro, pela Banda Oriental e chegavam até Curitiba, metade do caminho das tropas.
Mesmo que consideremos as diferentes densidades, até que ponto as redes
densas contribuem para criar confiança? Existe alguma escala privilegiada para isso?
Qual era a hierarquia (ou hierarquias) de relações que vigorava naquela sociedade? A
partir de agora vou tentar confrontar estes modelos que apresentamos com alguns casos
empíricos. Mas neste momento estou mais interessado em tentar mapear as formas e os
limites do comportamento disponível no caminho das tropas do que em aceitar ou
refutar imediatamente aspectos teóricos. Mais do que responder, interessa agora refinar
as perguntas. Antes, contudo, é preciso indagar sobre último aspecto teórico que é
central para compreender o período que estamos observando. Os modelos expostos
acima, com exceção daquele proposto por Salvemini (e até certo ponto, Both), tem
como pressuposto que a unidade básica social é o indivíduo, o que me parece
teoricamente adequado se considerarmos que estudam contextos onde esta me parece
ser a regra. Mas e no caminho das tropas de fins do XVIII, até que ponto podemos
utilizar este referencial? Até que ponto havia agência individual? Não seria a família a
unidade social básica? Deixemos as perguntas por ora. Vejamos alguns casos.
211
Alguns casos
Comecemos com umas dúvidas surgidas sobre quem deveria pagar os
impostos de uma tropa, os direitos da Casa Doada, em Sorocaba. O inspetor Antonio
Francisco de Aguiar era responsável pela cobrança e o tesoureiro Antonio Manuel
Fernandes da Silva era igualmente interessado em receber as remessas cobradas por
Aguiar. Em abril de 1803 Antonio Francisco de Aguiar precisava fazer o envio de uma
remessa de dinheiro acumulado, da Casa Doada, em Sorocaba. Como muitos dos
tropeiros devedores eram afiançados por ele, acabou assumindo o compromisso e
passou uma letra para o amigo Tenente Coronel Francisco Antonio de Souza pagar em
São Paulo ao tesoureiro da Casa, Antonio Manuel Fernandes da Silva.374
Passados mais de dois anos, em setembro de 1805, Aguiar comentava em
carta ao seu tesoureiro que o tenente coronel Francisco Antonio de Souza tendo de
afiançar a guia n.470 de 362$250 me avisa o cônego de que teve prazo de vossa mercê
para o fazer quando lhe fosse oportuno.375 Alguns meses depois, em junho de 1806,
Aguiar escrevia mais uma vez tratando do tenente Coronel Francisco Antonio de Souza:
Sequioso fico por saber que efeito ou produção teve a carta do C. Pedro Ortiz de
Camargo escrita ao Tenente Coronel Francisco Antonio de Souza.376 Em novembro de
1807 esta transação tem continuidade e surge uma dúvida sobre a honestidade de Souza:
Sendo certo termos outros devedores que se [ilegível] para dentro deste Registro em pior figura que deles não dou cópia por fiar na mesma incansável diligencia algum fruto, e só receber sobre mim a falta do capitão Pedro Ortiz de Camargo. por eu confiar do Tenente Coronel Francisco Antonio e fazer dele o conceito devido, porém faltou como vossa mercê sabe em paliando-me com a espera que dizia vossa mercê lhe dava e tratando com vossa mercê de pagar tudo afim de fazer marchar a tropa, temendo fosse seqüestrada e logo que marchou se desdisse como vossa mercê sabe e portanto inda lhe rogo vossa mercê me faça o obséquio escrever ao dito Ortiz com as palavras últimas deste embolso e ele não dando de avanço se quer se os termos judiciais por essa executoria nossa privativa o que espero na nossa recíproca fé, e sua urbanidade sem poupar-me para outra igual comissão e nem me eximir não os t.e o proposto.377
Cenário: o amigo de confiança, o cônego Manuel Caetano de Oliveira falou
ao Inspetor Antonio Francisco de Aguiar que seu amigo Tenente Coronel Francisco
Antonio de Souza tinha recebido prazo do tesoureiro Antonio Manuel Fernandes da
374 BN-II-35,25,25-27-077 375 BN-II-35,25,25-27-089 376 BN-II-35,25,25-27-097 377 BN-II-35,25,25-27-106. Grifo meu.
212
Silva para pagar os tributos e, assim, poderia passar com sua tropa. Mas, pelo que
parece, o Tenente Coronel Francisco Antonio não tinha falado nada com o tesoureiro e
blefou para poder passar com sua tropa. Ao menos foi isso que disse o tesoureiro.
Vejamos a continuação do evento. Pouco mais de três meses se passaram e em março de
1808 o Inspetor Aguiar escrevia novamente para o tesoureiro Fernandes da Silva.
Refletindo melhor sobre Pedro Ortiz e inúteis as nossas diligências sobre a paga da guia n. não devemos ter com este homem ação judicial que boa seja por que com o aviso que vossa mercê me fez em 16 de março de 1806 em que diz Francisco Antonio ainda não pagou por que me disse não tinha dinheiro mas que com brevidade possível satisfaria. Estas palavras o constituem devedor em virtude das quais desonerei ao tal Pedro Ortiz entreguei a fiança ao fiador que prestamos na passagem e quando o dito Francisco Antonio sua isenção ou sequer excluir de pagar já não tinha lugar pelas razões ponderadas378
Havia dúvida sobre se o Tenente Coronel Francisco Antonio assumiria sua
dívida, ainda que o Inspetor Antonio Francisco de Aguiar tivesse motivos para acreditar
que ele não poderia voltar atrás pelo que havia dito, que era devedor, mas não tinha
como pagar no momento exato. Mas o faria. E Aguiar sabia disso tudo pela pena do
tesoureiro Antonio Manuel Fernandes da Silva. Mas algo de novo surgiu um mês e meio
depois, em primeiro de maio de 1808. O inspetor Aguiar escrevia ao seu tesoureiro
Fernandes da Silva dizendo:
vejo que VM adiantadamente me pondera respeito ao tenente Francisco Antonio de Souza a quem escrevi o que consta do Ss [rasgado] e a proposta real e judiciosa e a resposta que do mesmo tive em que nega as palavras da sua de 16 de março de 1806 e se desta me repete e nelas se funda todo o meu direito por serem do próprio tesoureiro e sobre o objeto de que se trataram sustentadas e provadas sem da resposta se brazonar [sic] em cumpri-las e pagando ao contrato como da mesma deve o nosso doado é de em [rasgado] condição, e inda dizendo que Pedro Ortiz lhe pagará como pagou por [?] aquele. Eu desejo a proposta consertada e sem que se perceba quem é ou seja Francisco.379
Aguiar agora tinha duas versões do mesmo fato. E ambos, poderíamos dizer,
faziam parte da mesma rede densa. Não que ambos fossem amigos íntimos de Aguiar ou
aparentados dele, mas me parece que, na comparação, estavam no mesmo “nível” de
densidade relacional. Neste momento, a primeira notícia, dada pelo Cônego Manuel
Caetano não tinha mais importância. Talvez fosse melhor deixar o velho amigo fora
378 BN-II-35,25,25-27-107. Grifo meu. 379 BN-II-35,25,25-27-108. Grifo meu.
213
desta dúvida. O desfecho desta história (se é que teve) ocorreu pouco mais de um mês
depois, quando Aguiar dizia ao tesoureiro:
Sobre a nossa questão com o Tenente Coronel Francisco Antonio de Souza me não conformo a resposta dos consultados que tendo em vista o nome de quem se questiona quiseram obsequiar com meu prejuízo salvo se o tesoureiro da Ilma Casa Doada Capitão Antonio Manuel Fernandes da Silva me faltasse a fé nas suas palavras que me escreveu em carta de 16 de março de 1806 mas é impossível que ele em causa própria faltasse a fé quando elas só conformam indo dito Tenente Coronel na inclusa escrita a Pedro Ortiz pedindo-lhe a guia das bestas para as afiançar que precisava delas para aquele fim estas palavras com as da dita carta que merecerem conceito e atenção e constituem devedor e fazem a proposta real e judiciosa.380
A conclusão é confusa. Aguiar coloca em xeque a palavra do tesoureiro
Fernandes da Silva e imediatamente afirma confiar naquele personagem. Ao mesmo
tempo, questiona os consultados pelo tesoureiro sobre uma pessoa, o Tenente Coronel
Francisco Antonio, que parece aos olhos de Aguiar como confiável, ainda, mas que ao
final é confirmado como o devedor. A confusão não se deve apenas ao complicado
cenário onde a trama se desenrola, mas à pena de Aguiar e suas opiniões ambíguas,
intencionalmente ambíguas, melhor dizendo, estratégicas. Na mesma carta, ao final,
Aguiar dizia ao seu superior que “o gosto e incômodos desta laboriosa administração
sendo o prêmio por VM ampliado insignificante ao trabalho, esperando que VM como
bom amigo faça em meu nome requerer por maior prêmio”.
E não seria a única vez que Aguiar agiria com astúcia diante da dúvida entre
duas pessoas confiáveis. Em julho de 1810, o tesoureiro indagou Aguiar sobre a
diferença entre o valor escrito na correspondência e o que receberá em mãos. Os valores
e as cartas haviam saído da mão de Aguiar para as de seu cunhado, Américo Antonio
Aires e destas para as do tesoureiro. A resposta de Aguiar é exata e salomônica: da fé do
condutor não duvido e quanto mais da sua.381 Estamos diante de um rico e complexo
emaranhado onde é possível fazer alguns testes com os elementos teóricos que
apresentamos acima. A primeira avaliação que faço é que a opinião de terceiros e o
disse-que-disse presente no caso acima não parecem ter transformado a opinião de
Antonio Francisco de Aguiar, o que reforça o argumento central de Burt. Contudo, me
parece que no caso de Aguiar a manutenção de suas posições se deve a uma estratégia
claramente definida deste agente, à sua astúcia.
380 BN-II-35,25,25-27-110. Grifo meu. 381 BN-II-35,25,25-27-124.
214
Por outro lado, o diálogo entre o tesoureiro e o inspetor tomou um rumo
tenso, onde a dúvida sobre a verdade das palavras do tesoureiro foi explicitada de forma
que, me parece, variou entre a elegância e a ironia. A relação entre ambos parece ter se
mantido a bom termo, o que não invalida o argumento que a discussão sobre terceiros
pudesse gerar um conflito entre ambos. E Antonio Manuel Fernandes da Silva, o
tesoureiro, não parece ter insistido na dúvida sobre a falta de dinheiro da remessa feita
pelo cunhado de Antonio Francisco de Aguiar. Mais uma vez, diante da dúvida, a
tendência foi a conservação das posições de cada um. E talvez Fernandes da Silva não
tenha insistido, pois devia saber da forte relação de Aguiar com seus cunhados e sabia
que brigar por esta diferença significava romper com Antonio Francisco de Aguiar e,
conseqüentemente, arrumar fortes inimigos. Era um cálculo conservador. E começamos
a ter alguma noção de como a agência envolve a família, neste cálculo.
Este caso nos mostra um elemento interessante: as informações de terceiros,
notícias sobre outras pessoas, conversas, são matéria corrente dos administradores da
Casa Doada. Neste ponto, o uso de um instrumental teórico que tenha em conta a
interação cotidiana na transformação das relações sociais e seu impacto na forma como
os agentes classificam o mundo, a si próprios e aos outros, se mostra muito relevante. A
forma como a fofoca funcionava entre os administradores da Casa Doada produzia
densidade relacional própria do caminho das tropas. Não era a mais forte densidade que
podia haver. A familiar podia ser muito maior, ainda mais se tomarmos um grupo como
os genros e filhos de Paulino Aires de Aguirre ou Francisco Pinto Bandeira. Mas era tal
densidade que dava liga para aquele comércio e garantia uma dose de confiança
suficiente para que poucas tropas fossem registradas em cartório. Mas não era só a
fofoca que circulava entre os funcionários da Casa Doada que cumpria esta missão.
Uma série de redes cruzava o espaço e garantia as bases necessárias para o
funcionamento daquela economia. Sobre estas redes veremos no capítulo XXX (os
engenheiros – densidade relacional).
Há algo mais a acrescentar sobre a fofoca entre os funcionários da Casa
Doada. Ela ocorre num ritmo lento, anual ou mensal. As notícias sobre Francisco
Antonio de Souza e o disse-que-disse se assumiria a fiança da tropa número 470
duraram anos. Isso permitiria muito espaço para o comportamento oportunista. Um
tropeiro endividado poderia se valer desta lentidão e fugir, tal como um marinheiro do
215
mediterrâneo medieval de Greif. Outro caso pode aportar detalhes sobre esta situação.
Em dezembro de 1796, Antonio Francisco de Aguiar era consultado sobre um devedor
em particular: o Alferes Manuel Antonio Abrantes. Este devia dinheiro não para a Casa
Doada, mas para o Sargento-Mor das Ordenanças do Arraial de Nossa Senhora da
Conceição (Minas Gerais) João Lopes Batista, de quem Antonio Manuel Fernandes da
Silva, tesoureira da Casa, era primeiro procurador. E Aguiar fora incumbido de
localizá-lo para cobrar.382
Aguiar sabia bastante de Abrantes. Sabia que ele era cunhado do Capitão-
mor de Taubaté, João Francisco, e havia conduzido mulas pelo Registro de Sorocaba,
onde, com esperteza, evitou pagar os tributos e aplicou um logro. Tudo isso Aguiar
narrava no dia primeiro de dezembro de 1796. Alguns dias depois, ainda em dezembro,
Aguiar já sabia algo. Abrantes estivera em Curitiba havia oito dias.383 O próximo passo
de Abrantes só seria conhecido em fevereiro de 1805, quando finalmente Aguiar pode
atuar:
lhe não pude fazer embargo tanto pela falta de procuração do Sargento-mor João Lopes Batista como pela incúria dos documentos do tinteiro de tinta deitado neles: contudo, fazendo oficio de bom procurador tive várias falas e alegrias com o dito Abrantes e deixando de contar histórias que são fatigosas ao credor em suma se constitui devedor do principal do crédito protestando-me mostrar documento do mesmo Batista em que lhe perdoa quantia do principal e no todo os juros384
Apesar dos muitos anos de espera, quando teve a oportunidade Aguiar foi
bastante convincente em cobrar a dívida. Talvez fosse a prática de cobrança dos
tropeiros que os anos lhe deram. Talvez fosse a esperteza já demonstrada. Mas o que
importa discutir aqui é a velocidade dos negócios. E o que ele obteve, neste momento,
não fora a quantia, mas a confirmação da dívida. O pagamento só se processou em abril
de 1806, quando Aguiar remetia o montante de 691$011.385 Em um contexto como este,
haveria farta possibilidade para um sujeito como Abrantes “dar no pé” depois de muito
se endividar. Mas ele não fez isso. Assumiu a dívida e voltou para pagar. O credor não
deu a dívida como perdida. E Abrantes ainda voltou a passar no Registro de Curitiba em
1809, com uma das últimas tropas. Ou seja, teve crédito para montar uma tropa e não
devia mais nada à Casa Doada ou aos contratadores do Registro. De onde vinha a
382 BN-II-35,25,25-27-028; BN-II-35,25,25-27-095; AHU-MG-Avulsos-Doc. 005. 383 BN-II-35,25,25-27-029 384 BN-II-35,25,25-27-083 385 BN-II-35,25,25-27-094
216
certeza que motivou Aguiar a cobrá-lo, mesmo depois do logro? E não era uma certeza
“otimista”, ou pura insistência. Ela funcionava.
A primeira medição de confiança que se faz é a confirmação da dívida.
Dever não é considerado algo condenável. É uma sociedade onde a moeda sonante é
escassa, o tempo de concretização dos negócios é lento e a chance da perda
(considerando que boa parte da população vive da agricultura ou da pecuária) é grande.
Ficar devendo e demorar no pagamento não é um problema tão sério quanto negar a
dívida.386 Constituir-se devedor é agir com boa fé, honrar a palavra empenhada na hora
da obtenção do capital (usado aqui em um sentido amplo). É possível acreditar nas
palavras de um devedor “assumido”. Foi o que fez Antonio Francisco de Aguiar ao
obter do Abrantes a confirmação da dívida e ele estava certo. E foi a confirmação de
que Francisco Antonio de Souza assumia a fiança que encerrou a outra polêmica.
Devedor e obrigado eram formas corteses de se auto-referir na correspondência. Aguiar
e Correia da Cunha sempre usam estes instrumentos discursivos ao final das cartas. E
eram as Dívidas e Obrigações as escrituras públicas mais comuns para o acerto de
contas.
É claro que quando afirmo que a primeira medição de confiança é confirmar
a dívida, estou me referindo especificamente às práticas creditícias de outorga de
capital, como empréstimos, vendas fiadas, dívidas, etc. Em termos mais gerais, assumir-
se devedor significava “dizer a verdade”, ou como disse Aguiar em outra carta, ser uma
pessoa de todo o conceito e verdade. Era merecer crédito. É claro que havia outras
graduações. O mundo não se dividia apenas entre aqueles que mereciam e aqueles que
não mereciam crédito. E isso ainda era passível de mudança. A “pontuação” ou o
“confiancimetro” de Abrantes mudou ao longo do período, ainda que não de forma
absoluta. A pontuação do Tenente Coronel Francisco Antonio oscilou ao longo de
meses, durante a polêmica de Aguiar e Fernandes da Silva, mesmo que em uma
hipotética média decenal da confiança apontasse um cenário estável. Novamente em
termos de outorga de capital, podemos dividir as pessoas entre as que negam e as que
assumem as dívidas. As diferenças entre quem assume incluem outras variáveis como o
ato de negociar condições de pagamento, arranjar um fiador, pagar uma parte ou os
juros (quando são cobrados), reforçar a intenção de pagar.
386 Agradeço a Tiago Bernardon de Oliveira por me chamar a atenção sobre estas práticas.
217
Negar a dívida não era uma prática alheia àquele mundo, evidentemente.
Falando de vários devedores à Casa Doada, Manuel José Correia da Cunha apontava
em setembro de 1798 que quanto aos mais alguns dizem hão de pagar outros dizem não
devem e outros não há noticia deles outros mortos a seu tempo darei a devida solução
deles na forma que me tem determinado.387Alguns anos depois, em 1806, ele novamente
se queixava da dificuldade que havia em cobrar, em uma relação de devedores de
Castro e Curitiba que não posso cobrar por bem como todos são pessoas que andam no
sertão e não há dinheiro no contrato se desculpam com isso.388
Vejamos algo das escrituras. Escolher as escrituras como fonte para estudar
a confiança é uma escolha quase estúpida. Como veremos depois, as escrituras
representam um pequeno percentual do total de negócios e, particularmente, são mais
representativas dos casos onde falta confiança. Só não é pior pois, me parece, este é um
problema que atinge muitas outras fontes. Há uma grande tendência para que quando há
confiança, não haja documentação, salvo aquilo que fica dos testamentos, inventários e,
eventualmente, nas correspondências. Mas há um “caldo” a ser extraído das escrituras e
não podemos desperdiçá-lo.
Um caso interessante é o de Manuel Leite Valente. Ele tomou vários
empréstimos ao longo do período entre 1779 e 1785, e em algumas destas vezes
ultrapassou o prazo combinado sem apresentar nenhuma oferta.389 Isso não foi
impedimento social para que em 1785 ele fosse o fiador do importante cargo de
Escrivão dos Órfãos, quando Manuel Felix Correia assumiu este posto. E aquelas
dívidas não impediram que Valente dispusesse de outro crédito no valor de 1:200$000,
concedido alguns meses depois por um antigo credor que ainda esperava pelo
pagamento de 1:800$000, Antonio de Carvalho da Silva. Silva, contudo, em janeiro de
1786, acabou registrando em Cartório de todos aqueles negócios.390 Esta medida não
significa a perda da confiança em Valente, pois ao que me consta, o mesmo teria
falecido em fins de 1785, e aquele registro era a validação das dívidas de Valente com
387 BN-II-35,25,03-027 388 BN-II-35,25,17-028 389 1TABPOA-006-060; 1TABPOA-006-062; 1COAPOA-08-101; 1COAPOA-08-103; 1COAPOA-09-119 390 1TABPOA-009-084; 1TABPOA-009-085
218
Carvalho da Silva diante dos herdeiros daquele. E o próprio Silva teria atuado como
inventariante.391
Outro caso é igualmente interessante. Silvino Pedroso de Morais tomou
300$000 do Capitão André Alves Pereira Viana em abril de 1804, para o aumento de
seu negócio. Ele deveria pagar dali 16 meses, mas de forma diversa do comum. Ele
estaria livre dos juros se com o dinheiro comprasse touros e novilhos (dos melhores no
peso e tamanho) no Distrito de Cima da Serra e Vacaria e os conduzisse até Santo
Antonio da Patrulha. Caso contrário, pagaria aquele prêmio. Passado tempo superior ao
combinado, ele apareceu ao credor com dois couros de tigres e outros 3$200, o que
somaria a quantia de 8$320, descontados 1$280 que o Capitão supriu novamente ao
devedor, pouco tempo após esta primeira parcela. Passados mais de dois anos, o
devedor procurou novamente o Capitão para ratificar a dívida em cartório, o que foi
feito em agosto de 1806.392 Era o que podia oferecer por ora. Como diria Antonio
Francisco de Aguiar, constituiu-se devedor, não negando nem esquecendo aquele
débito.
Estes foram casos em que vimos que dever não era sinônimo de enganar. E
estas dívidas não parecem ter afetado a imagem pública dos devedores e nem sua
relação com o credor, ao menos não de todo. Mas isso não significa que todos os
credores andavam tranqüilos. João Antonio Costa, por exemplo, foi fiador de Agostinho
José de Farias em uns negócios que havia feito com o Rio de Janeiro, na Curitiba da
década de 1780. Agostinho não pagou e Costa foi acionado, pagando o empenho. E não
titubeou. Ao pagar a despesa de seu fiado, registrou aquela despesa em Cartório sem
perda de tempo. Quem num momento teve confiança para ter fiador, no outro não
contava nem com este.393 Há outros diversos casos nas escrituras onde uma sucessão de
bons negócios acaba em desconfiança. A recepção da desconfiança de um, a do antigo
fiador de Agostinho, por exemplo, não significa o fim dos negócios do devedor, como
vimos nos casos acima. As notícias sobre calotes circulavam de modo muito irregular, e
a crença nas notícias variava muito em função do agente.
391 1COAPOA-09-124 392 1TABPOA-030-098 393 1TABCUR-022-142
219
Havia aqueles que sequer precisavam assumir, pois jamais deixavam
qualquer dúvida sobre seu comportamento. Talvez isso seja mais um ideal que uma
realidade, mas era em busca desta imagem que Manuel Gonçalves Guimarães foi à
casinha da Casa Doada, no início de 1796, para informar-se de dívidas que ignorava:
O capitão Manuel Gonçalves Guimarães veio a este Registro para averiguar pelo livro que tropas eram as das guias que vossa mercê lhe escreveu estava devendo e como os livros já tinham ido me pede para vossa mercê pelo livro examinar que tropas foram de conta de que por ter guiado várias tropas alheias e se acorda de alguma das guias se fez algum pagamento e quem o fez para assim vir no conhecimento da pessoa a quem pertence.394
Em janeiro de 1800, a família era novamente consultada sobre dívidas à
Casa Doada. Manuel José Correia da Cunha procurou o tenente coronel Manuel
Gonçalves Guimarães como fiador do filho por este não estar na terra ele me pediu
espera até setembro eu lhe concedi se vossa mercê conviesse na dita espera.395 Apesar
destas duas dúvidas, de um modo geral, os Gonçalves Guimarães nunca ficaram
devendo por muito tempo a Casa Doada, figurando, no máximo, nas listas anuais de
devedores do ano posterior ao da tropa. O mesmo comportamento se percebe nas
escrituras públicas de Curitiba, onde os Gonçalves Guimarães aparecem como
tomadores de empréstimos do Cofre dos Órfãos, como fiadores e como credores, mas
jamais sendo acionados como devedores.396
Antonio Francisco de Aguiar também demonstrava sua preocupação com os
devedores em uma carta de 1795, antes mesmo de Manuel José assumir seu posto em
Curitiba. Ele fazia observar algumas regras importantes que o novo inspetor de Curitiba
deveria praticar, como o cuidado em numerar todas as guias (inclusive as pagas à vista)
e cuidar para que as fiança fossem com fiador idôneo, e não com os de costume.397
Novamente temos aqui a imagem ideal do homem de conceito e verdade, como um tipo
social disponível naquele mundo, cuja imagem deveria resistir à todo o tipo de
conversações e fofocas. Este personagem, o homem de conceito, estava disponível (e
era esperada) ao longo da rota. Como já vimos antes, na Rio Grande de 1783, Antonio
Carvalho da Rosa a instruía seus herdeiros para que se surgisse pessoa de reconhecida
verdade dizendo que lhe devo alguma coisa se lhe satisfaça. E ele parecia estar certo
394 BN-II-35,25,03-002 395 BN-II-35,25,17-004 396 Escrituras do Tabelionato de Curitiba. Diversas escrituras de dívida, crédito e obrigação. Ver Fontes. 397 BN-II-35,25,25-27-001
220
que alguns de seus credores conhecidos se encaixavam naquele perfil, já que para pelo
menos quatro deles não especificou quanto devia, mas disse que se deveria pagar o que
ele disser.398 A mesma imagem era esperada por Jeronimo Paes de Almeida, na
Sorocaba de 1807, quando instruiu seus testamenteiros que
se houver alguma pessoa de conhecida verdade que diga lhe sou devedor de alguma quantia em que pelas conjecturas dos meus negócios e costume se verifique ou haver me pago alguma quantia pede a minha mulher estejam pelas contas sendo assim averiguadas.399
Estes elementos me remetem ao índice coletivo de confiança, uma média
desproporcional de todos os conceitos, a imagem pública dos agentes, aquilo que
chamarei de reputação. Ela era produzida nas experiências diárias, no convívio
cotidiano e no disse-que-disse comunitário, podendo inclusive ser exportada para outras
comunidades ou outros contextos. E me parece que a reputação tendia a assumir um
caráter familiar, de grupo, de forma que a má atuação de uns podia obscurecer a boa
atuação de outros. E isso podia acontecer mesmo em “corpos” que não fossem
estritamente familiares mas estivessem baseados neste modelo, como as Irmandades, as
Confrarias e as Corporações de Ofício. E certamente esta expectativa pública sobre a
atuação presente e futura de um “familiar” (entendido aqui como membro de um corpo)
fosse uma pressão bastante grande para condicionar o comportamento dos agentes, por
um lado. Por outro, a densidade interna do grupo proporcionava um reforço que guiava
o agente a atuar conforme o esperado, dentro de um comportamento adequado ao seu
lugar no grupo e na sociedade. Quando falo de densidade interna, penso no convívio
diário e nas inúmeras vezes que o agente é “lembrado” de sua posição e de suas
obrigações.
Este modelo que apresento faz muito sentido para grupos familiares que
tenham uma reputação favorável consolidada ou estejam caminhando para a construção
desta imagem. Também há, naquela sociedade, grupos com reputação desfavorável,
para os quais não há muitas opções de melhoria. Nas Listas Nominativas de várias das
localidades aqui estudadas (Lapa, Lages, Curitiba) é possível encontrar diversos núcleos
familiares designados como vadios, vivem de esmolar ou vadios sem ocupação.
Acredito que nestes casos, a pressão para o comportamento fosse igualmente forte, mas 398 APERGS. Inventário de Antonio Carvalho da Rosa. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Rio Grande. 1783. 399 AESP-C05489. Testamento de Jeronimo Paes de Almeida. AESP-C05489.
221
diferenciada. Era esperado que assumissem suas dívidas, mas não o pagamento. Ao
menos não era o mínimo esperado.
Isso pode ser visto de forma mais enfática em diversas fontes onde se
apontam as dívidas de devedores falidos. Elas aparecem em alguns inventários,
especificadas dentro das listagens de dívidas ativas, indicando a impossibilidade do
pagamento, mas informando da sua existência, geralmente comuns em processos de
negociantes de loja ou grosso trato. Encontrei um caso para 1802 em Porto Alegre.400
Mas tal é igualmente visível nas contas da Casa Doada de Curitiba. Em janeiro de 1798
Manuel José da Cunha informava sobre algumas dívidas:
Os mais devedores que não tem pago alguns estão inteiramente falidos por ausentes e falecidos outros são peões que quando vem em tropa lhe poderei tirar na assistência o seu dever ou parte assim como Bento Franco e Francisco Franco que me deram fiador para pagar quando chegassem do sertão e por isso me persuado os não devo dar por falidos os seus deveres.401
Voltando ao tema de como era difícil criar e manter uma reputação
favorável, podemos acompanhar alguns negócios do Capitão Cesar. Entre fevereiro e
março de 1796 cada passo dele era informado por Manuel José ao tesoureiro Antonio
Manuel em São Paulo. César devia há meses e esperavam pelo pagamento. O problema
é que César não tinha dinheiro e havia comprado uma tropa pesteada. Neste meio
tempo, ele obteve um dinheiro emprestado para costeio da tropa, das mãos de Manuel
Gonçalves Guimarães, nosso conhecido, a pedido do Doutor José Joaquim de Oliveira
Cardoso (filho do falecido Capitão-mor de São Paulo). César passou no Registro de
Curitiba sem pagar, novamente. Melhor que isso: passando por Sorocaba, o Capitão foi
consultado por Antonio Francisco de Aguiar se poderia ser portador de uma carta e de
uma remessa de dinheiro. O dinheiro o Capitão preferiu não levar, mas a carta sim. Ou
seja, o mesmo sujeito que tinha os passos mapeados era confiável o suficiente para levar
uma remessa e uma carta.402
É certo que ele pagou a suas dívidas recentes, mas isso não faria o
“confiancimetro” oscilar tão bruscamente. É que ele era sócio dos administradores do
Registro de Curitiba, pessoa conhecida e reputada dentro daquele grupo. Mesmo com o
400 1COAPOA-015-297 401 BN-II-35,25,03-029 402 BN-II-35,25,03; BN-II-35,25,25-27
222
monitoramento, nunca fica sugerido que ele não pagaria. A dúvida era sobre se isso
aconteceria rapidamente ou tardaria mais. Havia grande expectativa no comportamento
do Capitão César e ele, pertencendo àquela rede densa que juntava alguns tropeiros, os
inspetores, os arrematadores e outros associados, era monitorado e controlado de
diversas maneiras. Por essas razões, após o êxito de seus negócios, todas as tropas
foram pagas e isso continuou assim, em paralelo com a ascensão de títulos, até chegar
ao posto de Coronel. O mesmo acontecia com outra figura, Antonio Ferreira Amado.
Ele era caixeiro do Registro de Curitiba já no início da década de 1790 e atuou nesta
função até 1808. Conduziu ao menos quatro tropas e nunca ficou devendo por mais de
um ano, geralmente menos. Havia expectativa e controle sobre sua pessoa e isso
condicionava seu comportamento.
Mas ao contrário de Greif, acredito que outros elementos importem até mais
que a visão de longo prazo. Quando todos os indivíduos se comportam buscando a
cooperação, como hierarquizá-los? Vimos anteriormente que o elementos como o
potlatch funeral, a hierarquia social e a pertença a famílias produziam uma imagem
pública que, me parece, era mais eloqüente aos olhos daquelas pessoas que um
comportamento cooperativo de longo prazo. Manuel José arrumou inimigos e isso pode
ter sido por uma discordância de posições ou pela negação da cobrança. E esta
demonstração de força violenta influía nesta economia.
Daqui é possível passar direto ao Capítulo 12.
223
Capítulo 9 Uma economia capitalizada
O Brasil é uma república generalizada. Barão de Itararé
Em 1932, Aparicio Torely, o Barão de Itararé, disse que o Brasil era uma
república generalizada, ou seja, cheia de generais. Parafraseando o Barão, argumentarei
que a economia que estamos sondando era uma economia capitalizada: repleta de
capitães. Eles estavam por toda a parte e em desigual proporção. Se observarmos as
patentes de oficiais concedidas nas capitanias de São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, no final do XVIII e início do XIX, veremos que havia mais capitães que
oficiais inferiores. De um total de 377 postos concedidos e confirmados entre 1760 e
1807, 156 (41%) eram capitães, enquanto 61 (16%) eram tenentes e 66 (18%) eram
alferes.403 Poderia ser um problema de fonte. Vejamos como os próprios habitantes da
capitania de São Paulo se apresentavam, por exemplo, nas listas nominativas de
habitantes.404 Neste caso, aparecem soldados e outros subalternos, como cabos e
sargentos. Do total, encontrei 1142 referências à postos militares. Deste total, 569
(50%) eram soldados, 182 (16%) eram cabos e 125 (11%) eram capitães. Havia 80
tenentes, 97 alferes e 55 sargentos. Em quem mandavam aqueles capitães?
Outros indícios reforçam este cenário. Em 1824, falando do distrito de São
Francisco de Paula, Manuel Carneiro da Silva e Fontoura dizia que:
Há no mesmo distrito uma Companhia de Milícias, e tão mal organizada, que todavia não tem certeza a que Regimento pertença: não juraram Bandeiras, e se acha incompleta, pois de Oficiais só existe o Capitão. Há no mesmo distrito um Capitão de Ordenanças, mas esta Companhia é imaginária, ao mesmo passo que existem homens, que por sua idade só podem servir neste Corpo.405
Ou seja: capitães havia, e por todas as partes, mesmo sem ter quem
comandar. Mas isso do ponto de vista militar, o que, acredito, não era exatamente o
mesmo raciocínio dos habitantes das capitanias de São Paulo e Rio Grande de São
Pedro. E mesmo no Rio de Janeiro do período, João Gomes Barroso era Coronel,
enquanto Antonio Gomes Barroso e Brás Carneiro Leão eram capitães. Se a lógica do 403 Ofícios da Chancelaria. Arquivo da Torre do Tombo. 404 Não se trata da totalidade das listas, mas de uma amostra. Ver: Fontes 405 SILVA E FONTOURA. IN: DUARTE, "Achegas documentais: Vacaria, São Francisco de Paula e Santa Vitória."
224
mercador-fidalgo cruzou o Atlântico e moldou o comportamento econômico, ela acabou
incorporando a hierarquia militar como régua social. Neste sentido, mais do que as
armas, os capitães comandavam seus escravos, sua casa, suas regiões, e, assim,
controlavam a economia.
Além do mando sobre os escravos, os capitães também controlavam a
política. Nos distritos, havia um comandante capitão. Nas vilas, o capitão-mor. Na
capitania, o capitão-general. Sem falar dos capitães de ordenanças da nobreza. Mas ser
capitão não era algo inato, ainda que em muitos casos fosse quase hereditário. Ser
Capitão era algo desejado, um reconhecimento da ascensão ou manutenção da posição
social. E quem acabava regulando, desta forma, a reprodução da hierarquia no ultramar,
era a Coroa que tinha o poder de conceder e confirmar aqueles postos, assim como os
demais.
A força dos capitães (e outros oficiais) e seu impacto na economia do mundo das
tropas
Em Sorocaba, 1790, os oito maiores senhores de escravos detinham 27% do
total de cativos da Vila. Somente o Capitão-mor era proprietário de 7% do total,
somando oitenta e sete pessoas. Em seguida vinha o capitão Manuel Alvares de Castro,
do bairro do Piraíbu, com cinqüenta e um escravos. Os demais eram o Alferes Francisco
Paes, os Guardas-mores Joaquim José de Almeida e João de Almeida Leite, o Tenente
Coronel Paulino Aires de Aguirre, José Pires de Arruda e o Capitão Francisco Luis de
Oliveira. Como se percebe, os maiores proprietários, com apenas uma exceção, eram
todos portadores de patentes expressivas, e há uma notória correlação entre patentes e
número de escravos, especialmente aquela maior da governança local, o posto de
Capitão-mor.
Em Curitiba o maior senhor era, também, o Capitão-mor, Lourenço Ribeiro
de Andrade, por volta de 1789, com vinte e cinco escravos. O também capitão Francisco
Xavier Pinto era o segundo senhor, com vinte e quatro cativos. O Capitão Manuel
Gonçalves de Sampaio era o terceiro, com dezenove pessoas, seguido de Antonio José
225
Ferreira, com quinze, e Rita da Conceição França, com onze. Juntos, estes maiores
senhores possuíam 26% do total dos cativos da vila de Curitiba. E todos, com exceção
de Rita da Conceição, eram capitães no momento de elaboração da lista nominativa.
Na Lapa, na Capela do Tamanduá e em Castro a situação era a mesma. Em
Castro, o Capitão Francisco Carneiro Lobo, o Alferes Luis Castanho (no Bairro do
Lago) e o Tenente Jeremias de Lemos (em Ponta Grossa) eram os maiores senhores. No
Tamanduá imperavam os capitães e, na Lapa, o tenente Domingos Pereira da Silva era o
maior proprietários de cativos, ainda que a proporção de grandes senhores com patente
fosse menor que nas demais localidades. Em Lages, o Capitão Joaquim José Pereira era
senhor de ¼ dos escravos, seguido do Sargento-mor Joaquim José Monteiro e do
Capitão-Mor Bento do Amaral Gurgel.406 Também em Vacaria os maiores senhores
eram também capitães ou possuíam patentes próximas. Os maiores senhores eram os
capitães Joaquim José Pereira, Antonio da Costa Pereira, Manuel da Fonseca Paes e
Pedro da Silva Chaves. Na região do Viamão, igualmente, há esta correlação. Nos
Anjos, João Pereira Chaves, alferes e depois tenente, é o maior senhor, um dos maiores
do Continente do Rio Grande de São Pedro Da mesma forma, há uma grande
concentração de cativos na mão de outros oficiais e o maior plantel que pude localizar
era o de Rafael Pinto Bandeira, Coronel durante a década de 1780 e Brigadeiro a partir
de 1789.407
E não apenas baseados no número de escravos, os capitães controlavam suas
regiões e localidades. Ainda no Viamão, em finais do XVIII, no Distrito do Caí, o
Capitão Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães era figura respeitada e impunha sua
força aos demais vizinhos. Nos Anjos, o Capitão Paulo Rodrigues Xavier Prates era
igualmente prestigiado na comunidade, assim como o acima referido Pereira Chaves.408
Tanto Custódio como Prates eram grandes proprietários de terras com grandes porções
de rebanhos, assim com João Pereira Chaves e Rafael Pinto Bandeira, estes últimos dois
406 Para a análise que compara a patente com o tamanho da escravaria, utilizei as listas nominativas das referidas localidades. 407 Para Vacaria, utilizei dados dos Registros de Batismos; para a Aldeia dos Anjos, SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784). Sobre o plantel de Pereira Chaves, outros oficiais e Rafael Pinto Bandeira, ver também: KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. 408 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810); KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII; SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784).
226
entre os maiores patrimônios registrados em inventários no período.409 Analisando as
Relações de Moradores, vemos que os capitães estão entre os grandes proprietários de
animais de Rio Pardo, Triunfo e Viamão.410 Em São Francisco de Paulo, Antonio
Gonçalves Padilha parece ser uma forte liderança, enquanto que na mesma Vacaria, mas
ao norte, Manuel da Fonseca Paes parece ter certa proeminência, mesmo que houvesse
um número maior de capitães naquele espaço.411 Tanto Manuel da Fonseca como
Padilha, assim como outros capitães, alguns dos quais absenteístas, estavam entre os
maiores proprietários de terras e produtores de gado.412
Em Lages, através da Lista Nominativa, é possível perceber uma relativa
distribuição geográfica dos postos. Na matriz, Bento do Amaral Gurgel era Capitão-mor
e no censo de 1803 seu filho João Anes aparece também com um fogo e com patente de
Capitão. No bairro das Caveiras, Joaquim José Rodrigues é o único capitão, assim como
Joaquim de Santana Alves, no bairro das Taipas. No bairro do Lageado estava o
Tenente José Antonio da Silva. E o referido tenente era o único que não acusava a posse
de cativos. E todos os demais tinham outro ponto em comum: eram proprietários de
fazendas de criação de animais. Nem todos os criadores eram capitães ou oficiais, mas
todos os capitães eram criadores e acumulavam ainda outras atividades como a
agricultura, em todos os casos, e o Juizado Ordinário, com Joaquim de Santana Alves.
Seguindo para a Lapa, os capitães Francisco Teixeira Coelho e Salvador
Gomes Ferreira negociavam fazendas secas e molhadas, além do comércio de animais.
Os demais oficiais se dedicavam quase que exclusivamente à lavoura, alternada com o
negócio das tropas, em muitos casos, atuando como condutores. Também em Curitiba,
os capitães, alferes e tenentes se ocupavam com os mais diversos negócios, atuando
predominantemente no comércio, nas lavras de ouro e na criação de animais. A grande
maioria se ocupava da lavoura, ainda que diversos outros, não oficiais, também
estivessem interessados no comércio, criação e mineração.413
Em Curitiba, Lourenço Ribeiro de Andrade, além de Capitão-mor, fora
também Juiz Ordinário e era proprietário da Fazenda do Tucum, nas proximidades da
409 KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. 410 AHRS. Relação de Moradores. 1198 A e B. 411 Registros de Batismo de Vacaria. Cúria de Vacaria. 412 Arquivo Nacional. Códice 104. Relação dos Moradores de Cima da Serra. 413 Diversas listas nominativas da Lapa. CEDOPE.
227
vila de Castro.414 Antonio José Ferreira tinha negócios com animais, ao menos no final
da década de 1770, e possuía terras na paragem Santa Cruz, em Castro, a partir de 1796.
Mas Curitiba tinha ainda outros dois importantes capitães, que figuravam entre os seus
mais poderosos homens: Manuel Gonçalves Guimarães e José de Andrade. Guimarães
sempre teve um bom número de escravos, e sempre crescente. Era negociante de
animais e proprietário de terras em diversas partes nas proximidades de Curitiba, além
de arrematador de contratos, especialmente o dos Dízimos da Vila de Curitiba.415
Andrade era negociante de animais e igualmente possuía diversas porções de terras na
região entre Curitiba e Castro.416
Em Castro, o capitão Francisco Carneiro Lobo e sua família possuíam várias
propriedades, em especial, duas grandes fazendas, Varge e Nhoaíva. Ele havia
participado da fundação da localidade e também das campanhas de conquista do sertão
de Tibagi, durante a década de 1770.417 Também na fundação da vila estavam o Capitão
Inácio Taques de Almeida e o tenente Jeremias de Lemos Conde, que nesta ocasião foi
eleito Juiz de Órfãos. Em Castro, particularmente, se percebe notoriamente, tal como em
Lages, a divisão geográfica destes pequenos potentados, ainda que todos participassem
da governança local. Lemos Conde tinha sua área de atuação na Ponta Grossa, mais ao
sul da vila, enquanto o Alferes Luis Castanho atuava no bairro do Lago e os Carneiro
Lobo no centro da mesma, mas com interesses em áreas mais ao norte, assim como no
Bairro de Santo Antonio.418
Em Sorocaba não era diferente, ainda que houvesse uma maior disputa entre
as elites locais. O tenente-coronel Paulino Aires de Aguirre era um sujeito com muita
força, alianças locais e negócios. Investia no contrato dos Dízimos, no contrato das
passagens das bestas, em tropas e em negócios de fazenda seca e molhada. Em posição
política oposta estava o Capitão-mor Cláudio de Madureira Calheiros que igualmente
era negociante de animais e fazendas, além de ser aliado e parente do Capitão-mor de
Itu, Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, como já vimos em capítulo antecedente.
Da mesma forma, em Sorocaba havia também uma certa divisão espacial da área de
atuação de certos capitães, ainda que a maioria fosse apresentada nas listas nominativas 414 LOPES, José Carlos Veiga, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí (Curitiba: Torre de Papel, 2004). 415 Ibid. 416 Primeiro Tabelionato de Curitiba. CEDOPE. 417 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí, p. 191.; AHU. SPMG. 2588. 418 Lista Nominativa de Castro. 1793. CEDOPE; Ibid.
228
como residente na matriz. Mas encontramos o capitão Jacinto José de Abreu no
Capotera, Manuel Álvares de Castro e Francisco Manuel Fiuza no Piraibu, um tanto
distantes um do outro; Manuel Gomes de Carvalho e João Pires de Almeida Taques
estavam no Iperó, mas em sub-divisões diferentes deste bairro, que era bastante grande
se comparado com os demais.419
O conjunto destes dados nos traz algumas informações importantes. Em
primeiro lugar, deve-se ter em conta a importância dos oficiais, especialmente os
capitães, na economia local, como agentes econômicos diretos, comandando negócios,
criações de animais, lavouras, lavras de minérios, dentre outras atividades que
constituíam a base da economia regional, como vimos nos primeiros anteriormente. É
certo que era uma economia relativamente pobre, se comparada, por exemplo, com os
negócios desenvolvidos na Praça do Rio de Janeiro na mesma época.420 Mas eram estes
capitães locais, à exemplo dos capitães e coronéis Carneiro Leão e Gomes Barroso, que
comandavam a dinâmica econômica. No caso da rota das tropas, os capitães eram os
senhores daquela pobre economia, como os do Rio de Janeiro eram de grossa aventura.
O controle social geograficamente limitado também caracterizava a ação
política dos “capitães”, que poderiam ser tenentes, alferes ou detentores de postos
maiores. E talvez nem fosse o caso de ser capitão, pelo menos até a chegada da carta de
concessão da patente. Estes postos também estavam profundamente relacionados com o
comando de escravos e de posições chave na economia e na governança local. Não era
apenas o poder distrital e/ou local sobre livres e escravos, mas a pertença ao grupo dos
homens bons. Estas prerrogativas de mando garantiam inclusive a possibilidade de
utilizar a violência como uma forma de controle e de reprodução da hierarquia.
Um elemento, contudo, chama a atenção: teriam as mesmas prerrogativas
um capitão de bairro da vila de Lages e um Capitão-mor de Sorocaba? O capitão de
Distrito do Caí e um Capitão de Ordenanças? Ou mesmo o Capitão-mor de Lages e seu
par de Curitiba? Demograficamente, alguns bairros de Sorocaba eram maiores que a
população inteira de Lages. Mas, como já vimos, não era através deste tipo de medida
que aqueles homens e mulheres faziam suas contas. Mesmo com a diferença de tamanho
419 AESP. Lista Nominativa de Sorocaba. 1790. 420 FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).
229
das localidades, os capitães-mores eram pares e, até onde pude ver, não encontrei
distinção notável no que se refere ao peso político destes personagens, mesmo se
comparando localidades muito diversas. Mas é preciso ter em conta que os casos da rota
das tropas não eram tão discrepantes. O capitão-mor de São Paulo, me parece,
desfrutava de posição superior, mas isso provavelmente estava associado ao fato de ele
estar na cabeça da capitania e ser, ao menos simbolicamente, seu capitão, mesmo
disputando poder com o governador.
A diferença maior estava entre os capitães-mores e os demais capitães, os de
tropas pagas, milicianos (auxiliares) e de ordenanças. A maior parte daqueles capitães
que mencionamos acima era composta de milicianos, das diversas companhias que,
divididas, por sua vez, nas vilas e sob comando dos capitães-mores. Estes capitães, uma
vez confirmados para seus postos, deveriam prestar juramento diante do capitão-mor e
outros oficiais superiores, como tenentes-coronéis e coronéis. De certo modo, havia
diferenças qualitativas entre os ordenanças, os milicianos e as tropas pagas. Ordenanças
eram tropas superiores, da nobreza, sob comando direto do capitão-mor. Mas é
igualmente certo que, em um conflito entre dois oficiais, era extremamente importante a
performance de cada um e de seus grupos familiares. Como vimos anteriormente, o
Capitão de Auxiliares, Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães pôde perseguir e vencer
o Capitão de Ordenanças Manuel José de Alencastre, por razões pessoais, durante a
década de 1780 no Distrito do Caí, no Triunfo.
Para medir e comparar estes oficiais, especialmente se temos em conta a
isonomia dos capitães-mores, é preciso ter em conta algumas noções importantes
daquela sociedade e sua forma peculiar de mensurar. Vimos anteriormente que havia
medidas precisas para cada tipo de coisa e disso não escapavam os oficiais. Os
ordenanças, particularmente, não seguiam a mesma estrutura das tropas pagas ou das
milicianas e, por outro lado, eram iguais aos seus pares de outras localidades, o que
tinha relação com a forma como o próprio império era organizado, composto por uma
diversidade de localidades e não por um espaço contínuo abstrato.
Já vimos a forte presença dos capitães nas atividades econômicas locais e
regionais, mas ainda não sabemos de seu impacto na rota das tropas. Talvez seja
eloqüente, para começar, informando que, de todas as palavras utilizadas nas cartas da
230
Casa Doada, por Manuel José Correia da Cunha e Antonio Francisco de Aguiar, o
vocábulo “capitão” foi o mais utilizado, entre verbos, substantivos e adjetivos, sendo
empregado mais de quatrocentas e cinqüenta vezes em quase duzentas e cinqüenta
cartas.421 Por outro lado, do total de tropas que pude identificar (783)422, cerca de 4%
eram conduzidas por pessoas designadas como “capitão” e ao redor de 10% eram
propriedade de oficiais em geral, como ajudantes, tenentes, tenentes-coronéis e alferes,
incluindo capitães. Números pouco expressivos, mas significativos se considerarmos o
peso relativo dos capitães e outros oficiais no total da população e o enorme sub-
registro na elaboração das listagens de condutores de tropas.423 E salientam os capitães
em relação aos demais oficiais.
Os tropeiros, como vimos no início deste trabalho, são um grupo muito
heterogêneo e difícil de definir, o que salientado pelo caráter oportunista e episódico
deste negócio, pouco freqüentado por profissionais e aberto a iniciativas “aventureiras”
de famílias com poucos recursos. Talvez isso também explique o baixo percentual dos
capitães. Se considerarmos que 2/3 dos capitães (com os dados que pude coletar)
fizeram mais de uma viagem e 42% mais de duas, enquanto 2/3 daqueles apresentados
sem títulos fizeram apenas uma viagem e 10% mais de duas,424 podemos concluir que
os capitães tinham maiores condições de participar (diversas vezes) deste comércio de
animais. Mais do que isso, é preciso ter em conta que, afinal, não eram tantos capitães
assim, mas um número limitado (identifiquei vinte e um) que fez ao longo do tempo
considerado mais de uma viagem. Não significa, de modo algum, negar a possibilidade
de alguém sem patente fazer muitas viagens. Há diversos exemplos neste sentido. Mas
os que possuíam patentes, particularmente a de capitão, levavam certa vantagem.
Por outro lado, se observarmos as fianças de tropas, considerando que
encontrei apenas 53 destes registros, veremos que o cenário varia um pouco. Se no
421 Correspondência da Casa Doada. BN-II-35,05,03; BN-II-35,05,25-27; BN-II-35,05,17. 422 A maior parte destas tropas está cronologicamente situada no período entre 1796 e 1810. 423 Nem sempre o título era mencionado na passagem da tropa. Apenas para fins de experimento, apliquei o qualificativo “capitão” a todos aqueles que foram mencionados em alguma outra tropa como tal, nas ocasiões em que nenhum qualificativo foi aplicado (denunciando esquecimento ou o fato que ainda não eram capitães). Tal procedimento dobrou os valores totais manipulados por estes sujeitos (de 4,8% para 9,2% do total das tropas que encontrei), assim como seu número absoluto passou de 32 para 55. Tal experimento me sugere que os números que apresento acima são valores mínimos. 424 Para este cálculo apliquei o qualificativo “capitão” a todos aqueles que foram mencionados em alguma outra tropa como tal, nas ocasiões em que nenhum qualificativo foi aplicado, tal como no experimento acima mencionado.
231
negócio de condução de tropas os capitães tinham predominância numérica sobre outros
oficiais, absoluta e relativa, inclusive sobre tenentes-coronéis e coronéis, no trato das
fianças de tropas a vantagem está notoriamente entre os coronéis, com larga vantagem
no total e na média. Apesar de aqui também trabalhar com sub-registros e com lacunas,
acredito que esta informação seja sugestiva de uma hierarquia mercantil baseada na
hierarquia política, que de algum modo contribuía para reproduzir esta mesma
hierarquia. Por outro lado, o fato de os coronéis atuarem mais na fiança que nas trocas
me faz pensar que a reputação pública dos agentes poderia ter profunda correlação com
seus lugares na hierarquia social.
Os coronéis foram responsáveis por aproximadamente 1/5 (19,3%) do valor
total das fianças que encontrei, enquanto os capitães representavam 12,8% deste mesmo
total. Ambos, juntamente com o Sargento-mor Tomás da Costa, representavam cerca de
40% do total daquelas fianças. Eram três os coronéis em questão. José Vaz de Carvalho
foi fiador em pelo menos quatro ocasiões e, sozinho, representa 8,7% do total. Francisco
Xavier dos Santos e Francisco Pinto Farias são os outros dois coronéis. Santos foi fiador
em, no mínimo, três ocasiões e representa 5,7% do total. E Farias, apesar de eu ter
encontrado apenas uma fiança, representa 4,8% do total.
Parece clara a presença estratégica de sujeitos com patentes prestigiosas na
economia das tropas de animais e nas economias regionais à margem da estrada. Eles
participavam da governança local, da política nos seus distritos, do conjunto das
atividades produtivas e comerciais, tendo garantida ainda uma reputação por seu lugar
na hierarquia social, sem falar no comando dos seus escravos. E, não se deve esquecer,
um lugar muito privilegiado na hierarquia militar e no comando dos outros homens
livres. Mas de onde saem os capitães? De que matiz de azul é feito o sangue destes
periféricos plebeus? Até aqui observamos a “capitalização” da economia da rota das
tropas de uma forma estática. Sabemos das condições e poderes dos capitães, bem como
de seus negócios e seu prestígio. Mas não sabemos como alguém se torna capitão,
tenente ou coronel. Vejamos agora, a partir de alguns casos concretos, como se dava
esta formação e como alguém podia almejar algo mais em sua carreira.
232
Como se faz um capitão
Os Aguirre Aguiar
Salvador de Oliveira Leme, também conhecido como Sarutaiá, era Capitão-
mor de Itapetininga em 1778. Ele já atuava como negociante de fazenda seca e animais
havia algumas décadas e ao longo deste tempo seu patrimônio só cresceu.425 Há
igualmente indícios de que ele atuasse como tesoureiro dos tributos da passagem dos
animais em Sorocaba, já na década de 1750.426 Na década de 1770, era administrador do
Registro de Sorocaba, negociante de animais e produzia grande quantidade de
alimentos.427 Ele havia lutado nas guerras do sul, provavelmente nas lutas de
reconquista de Rio Grande, onde foi encarregado dos soldados doentes que fez curar e
assistir a sua custa.428 Em 1776, a Câmara de Itapetininga o indicava Capitão-mor,
ainda que o posto fosse provido pelo governador da Capitania, Martins Lopes Lobo de
Saldanha, por ser Oliveira Leme homem de possibilidades para decoro do mesmo posto
e por ter naquela paragem uma propriedade. A própria criação do posto pelo governador
foi questionada, anos depois, ainda que nada fosse alterado.429
Em 1795, assumia o posto de Sargento-mor de Itapetininga Salvador de
Oliveira Aires, neto do Sarutaiá. Não sei até que ponto agiram os filhos de Oliveira
Leme, mas certamente a figura com a performance mais destacada entre filhos e genros
foi Paulino Aires de Aguirre, incorporado ao grupo familiar ao se casar com Ana Maria
de Oliveira Leme, em 1765. Ele vinha de uma bem relacionada e tradicional família de
São Sebastião (litoral da capitania) e rapidamente ocupou espaços relevantes dentro do
grupo dos Oliveira Leme. Ele já havia combatido, soldado, com Bobadela na Campanha
das Missões e na Praça de Santos como Cabo de Esquadra, segundo o governador de
São Paulo, o Morgado de Mateus, que em 1766, logo após seu matrimônio, o fez
Capitão de Auxiliares.430
Com o fim dos combates entre portugueses e espanhóis, Paulino parece
voltar-se para a vila de Sorocaba e ao núcleo parental de sua esposa, assumindo o posto
425 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 426 ALMEIDA, História de Sorocaba. 427 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 428 AHU. SPMG. 3067. 429 AHU. SPMG. 2884. 430 AHU. SPMG. 2498.
233
de inspetor do Registro de Sorocaba em 1779, sucedendo assim a seu sogro.431 Nas
décadas de 1780 e 1790, ele entraria em diversos negócios de animais, fazendas secas e,
principalmente, arrematações de contratos, inclusive os Dízimos de toda a Capitania e
os Registros de Passagem de animais.432 Em 1784, Paulino foi feito Tenente-Coronel do
Regimento de Cavalaria Ligeira Auxiliar de São Paulo, quando tinha cerca de 50
anos.433 Importa lembrar, contudo, que no início da década de 1780 em uma provável
tentativa de tornar-se Capitão-mor de Sorocaba, Paulino foi rechaçado pelos oficiais da
Câmara, sendo acusado de ambicioso e de baixa esfera.434
Em 1796, Antonio Francisco de Aguiar substituía seu sogro, Paulino Aires
de Aguirre, na administração do Registro de Sorocaba. Sua trajetória era razoavelmente
semelhante. Aguiar era, provavelmente, natural de Sorocaba. Havia servido as tropas
em Santos, por ocasião da guerra com os espanhóis e depois fora para Sorocaba onde
seguiu carreira na Companhia de Auxiliares de Paulino Aires de Aguirre. Em 1776, ele
passava de Porta-bandeira para Tenente, sendo logo depois enviado para Santos. Em
1784 ele fora promovido a Capitão do Terço da Infantaria Auxiliar de Serra Acima,
quando Paulino fora promovido a Tenente-Coronel. Entre 1788 e 1795 ele foi
encarregado em diversas ocasiões de organizar diligências para a captura de prisioneiros
fugitivos e criminosos, cumprindo um papel de polícia.435
Todas estas atividades foram destacadas pelos membros da Câmara de
Vereadores em 1799, quando passaram um atestado no qual salientava, inclusive, que os
seus soldados ou subordinados além de uma cega obediência lhe tinham amor paternal
e os pais de família o procuravam para na Companhia do mesmo terem seus filhos
praça pela boa doutrina com que os dirigia.436 Em 1797, era a vez de Aguiar se
reformar como Tenente Coronel, tendo pouco mais de 40 anos. De 1795 até o início da
década de 1810, Aguiar atuou como administrador do Registro e em outros contratos de
arrematação nos quais estava interessado.437 Durante este tempo, construiu e reforçou
diversos relacionamentos que tinha com senhores importantes de outras localidades,
431 Arquivo Nacional. Códice 457. Vol. 01. pg. 124v. 432 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 433 AHU. SPMG. 3946 434 AHU. SPMG. 3009 435 AHU. SPMG. 3946 436 AHU. SPMG. 3946 437 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX).
234
vereadores, oficiais e negociantes, o que garantiu uma ligeira expansão dos interesses da
família para fora da vila.438
Temos aqui três gerações de capitães e tenentes-coronéis. Estamos diante de
um clã que pôde e soube ascender no plano local e, ao longo das gerações, estender seus
interesses em um espaço maior. Não há dúvida que os conflitos na parte sul, tanto a
chamada Guerra Guaranítica quanto os diversos embates posteriores à tomada de Rio
Grande pelos espanhóis foram ocasião apropriada para a aquisição de status por aqueles
cabeças de família. Mas neste caso, não podemos exagerar, afinal, em comparação com
outros grupos, mesmo de São Paulo, os nossos heróis não estiveram no front ou perto
dele, com exceção de Paulino na Guaranítica, já que mesmo Salvador de Oliveira Leme
ficou encarregado dos doentes, ou seja, na retaguarda. Mas o simples fato de terem
estado alistados e participado em alguma convocação ou contexto de perigo era motivo
para reconhecer formalmente suas prerrogativas de mando na sociedade, em tempos de
guerra ou de paz.
Tanto no caso de Oliveira Leme, como no de Paulino e Antonio Francisco,
há alguma relação direta entre aquele núcleo familiar e os poderes de centro atuantes na
região. Paulino torna-se capitão pouco depois de esposar a filha de Salvador, assim
como este último é feito Capitão-mor pelo governador em ato que ao seu tempo foi
considerado ilegítimo. E também o fato de Antonio Francisco de Aguiar seguir de perto
os passos de seu sogro na hierarquia militar tinha as bênçãos do governador Lobo de
Saldanha. E a presença da monarquia como instituição que outorgava e legitimava
poderes é, neste caso, fundamental. Era ela que garantia a ordenação social em última
instância e regulava o acesso àqueles postos. E ao reconhecer a verdadeira nobreza,
também se reconhecia.
Um elemento em particular caracterizou as primeiras duas gerações do caso
acima citado: a atividade comercial como base para o engrandecimento do grupo. Tanto
Salvador como Paulino aparecem associados à imagem de baixos negociantes,
promotores da ruína do comércio e cobradores ambiciosos. O grupo, contudo, soube
modificar esta situação ao longo do tempo, através de várias estratégias, dentre as quais
estavam as doações faraônicas de Paulino para os poderes sobrenaturais, por ocasião de
438 BN-II-35,25-25-27.
235
seu testamento, como vimos no capítulo do passivo sobrenatural.
Se no início da década de 1780 vemos a Câmara de Sorocaba considerar
Aires de Aguirre uma pessoa da baixa esfera, que fazia uso de pesos e medidas falsos e
tinha um gênio intrigante, no final da de 1790 vemos o mesmo Senado atestar as
qualidades de Antonio Francisco. É certo que não eram os mesmos vereadores, mas a
imagem pública da família, particularmente da nova geração, também não era mais a
mesma. Nela já se encontravam elementos de boa doutrina. Aguiar fazia sucesso com
os pais de família.
É certo que o controle do posto de Capitão-mor de Itapetininga era algo
relevante e ostentado pelo clã. Antonio Francisco de Aguiar, em suas cartas, se referia a
Salvador de Oliveira Aires como meu cunhado Capitão-mor.439 Mas o controle do
Registro de Sorocaba era, talvez, mais atraente em um grupo que crescia em termos
econômicos, políticos e sociais. Era uma forma simples de garantir contatos com
negociantes de locais muito diversos. Não sei até que ponto Paulino soube aproveitar
este posto e criar relações com aqueles homens, ou se os camaristas realmente tinham
razão em apontá-lo como alguém que perseguia os pobres tropeiros. Mas Antonio
Francisco de Aguiar, em suas cartas, salienta com alguma regularidade as dificuldades
dos tropeiros e a necessidade de se facilitar o pagamento e a concessão de fianças. Em
1806, diante de um cenário desfavorável aos negócios dos tropeiros que vinham do sul,
Aguiar argumentava em tom forte ao tesoureiro da Casa Doada:
A vista do meu exposto real fé do meu ofício deve vossa mercê mudar de projeto e fazer ver estes conceitos ao nosso constituinte [a Corte Real, o “Doado”] com as expressões desta verdade que ignora e que a mim me lembra a fosse dos míseros tropeiros...
No ano seguinte, ele voltava a carga, agora com um caso em particular:
O Guarda-mor Rodrigo Pedroso de Barros portador desta se acha no termo desta Vila com sua tropa de bestas e cavalos magros pela falta de pastos compradores e o inverno aporta e sendo o prejuízo do mesmo e de nosso constituinte infalível deve vossa mercê acautelar do modo que vou ponderar. Dando o mesmo Rodrigo fiador abonado, concede-lhe vossa mercê tempo suficiente de ele passar os animais engordar, vender, cobrar, a pagar, pois destes milagres já não posso por mim...440
439 BN-II-35,25,25-27. 440 BN-II-35,25,25-27-100
236
E o dito Guarda-mor não foi o único que teve o benefício da intercessão de
Antonio Francisco de Aguiar. Vários outros tropeiros, mas não todos, foram
devidamente atendidos pelo inspetor de Sorocaba. Aguiar se valia desta possibilidade
para incrementar seus relacionamentos externos e, desta forma, ampliava o espaço de
atuação de seu grupo familiar. Através desta tática, mantida ao longo do tempo, Rafael
Tobias de Aguiar, filho de Antonio Francisco, chegou ao posto de Brigadeiro, ocupando
o Governo da Província para, em 1842, liderar a Revolta Liberal Paulista, dispondo de
aliados e contatos que iam do Rio Grande ao Rio de Janeiro, ainda que com forte ênfase
em São Paulo.441
O trabalho de ascender, contudo, não passava apenas pelos sucessos do
campo de batalha, pelo enriquecimento e boas relações. Uma boa política doméstica era
necessária. Para a conquista, a Casa devia estar em ordem. A trajetória deste núcleo
familiar sugere uma clara política de seleção de quadros de comando dentro da família,
melhor dizendo, o sucessor do chefe era escolhido em uma seleção da qual podiam
participar filhos, genros e cunhados. O investimento da família na formação de quadros
podia resultar em mais de um homem (até vários) preparado para o comando da Casa,
momento em que o grupo poderia dividir seus interesses em áreas de concentração e
“distribuir tarefas” entre os “comandantes”. Tal foi o caso na geração de Paulino: seu
filho Salvador era bom candidato para ocupar os postos do avô Salvador, ainda vivo, e
do pai. O grupo, entretanto, havia feito uma importante contratação: Antonio Francisco
de Aguiar, que ficou encarregado de uma parte dos negócios, mais exatamente a
administração do Registro de Sorocaba, enquanto o neto sucedia o avô no comando da
Vila de Itapetininga.
Este cenário promissor para o grupo, agora rico em comandantes e
coincidente com uma época economicamente boa, não fora o mesmo encontrado por
Salvador de Oliveira Leme. Até onde pude investigar, ele até fez de seu filho Francisco
Xavier de Oliveira herdeiro de parte de seus negócios,442 mas isso até a figura de
Paulino Aires de Aguirre eclipsar o rapaz. E nestes casos, a performance dos agentes,
suas habilidades e seus recursos, faziam a diferença e podiam representar uma
441 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX); MARTINS, Maria Fernanda Vieira, A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889) (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005). 442 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX), pp. 105-106.
237
transformação na estratégia familiar. Em termos estritamente familiares (numa operação
de desmonte para observação) a relação entre Oliveira Leme e Francisco Xavier era de
pai e filho. Mas em termos de política familiar, ser filho significava, mais que ser
herdeiro, suceder o pai no comando. Neste sentido, entendo que genros, cunhados e
filhos podiam, ainda que desigualmente, disputar o cargo de filho político. O príncipe
doméstico não precisava ser de sangue, mas precisava de certas qualidades que eram
cobradas destes nobres “de segunda”, como a valentia.
Assim, acredito que genros e cunhados, em certas circunstâncias, poderiam
passar por um processo de filiação política ao grupo familiar, enquanto os filhos
podiam re-filiar-se. Com tudo isso quero salientar o quão dinâmica era a constituição de
um núcleo familiar com vistas maiores, como poderia ser conflituoso, no plano interno,
o “fazer-se” de um bando, por exemplo. No caso particular, não encontrei semelhantes
conflitos e a família Aguirre/Aguiar pôde organizar-se bem para buscar vôos maiores.
Tal processo de re-filiação era semelhante ao que ocorria nos processos de filiação da
Casa Real, quando o Rei, informado pelo Mordomo-mor, decidia sobre aqueles que
desejavam tornar-se fidalgo, filiar-se à Casa Real.443 E tanto o Rei escolhia seus
cavaleiros como o pai escolhia seus filhos, e estes não precisavam ser naturais. E tanto
os cavaleiros eram moradores da Casa Real como os genros e cunhados, na tradição
paulista, muitas vezes residiam na casa de seus sogros e cunhados. Todavia, como isso
fazia parte da política familiar, nada impedia os filhos de opor-se aos planos paternos.
Nazzari apresenta vários exemplos de como os filhos podiam opor-se ao dote
estabelecido pelo pai.444
Há outro elemento relevante que vêm à baila na política interna: as
diferentes densidades de relações dentro de um mesmo núcleo familiar. No caso da
família Aguirre/Aguiar, é possível perceber que no ano de 1796 o grupo possuía quatro
figuras proeminentes, com seus lugares específicos de mando, mas articuladas entre si:
Salvador de Oliveira Leme, o velho patriarca; Paulino Aires de Aguirre, o patriarca
sucessor, Salvador de Oliveira Aires, o futuro Capitão-mor; Antonio Francisco de
Aguiar, o genro promissor. Mas a família era composta de muitas outras pessoas e,
evidentemente, as mulheres não faziam parte daquele núcleo duro de poder doméstico. 443 SILVA, Maria Beatriz Nizza Ser nobre na colônia (São Paulo: Editora Unesp, 2005). 444 NAZZARI, O Desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900.
238
Em 1806, Oliveira Leme e Paulino estavam mortos: a densidade interna se reordenava e
os poderes se concentravam. Se voltarmos no tempo, para os anos 1760, por exemplo,
veremos Oliveira Leme como um pequeno patriarca alçando seus primeiros vôos e
pensando em um bom marido para sua filha.445
Trazer membros selecionados para este grupo reduzido dentro da família é
uma forma de se compreender o matrimônio das filhas. E não era uma tarefa fácil
encontrar noivos de igualha naquele mercado matrimonial. Neste sentido, a prática do
dote pode ser entendida dentro do jogo de dádivas e contra-dádivas que relaciona ou
ressalta a relação sogro-genro. E me parece que o matrimônio é mais um momento de
confirmação dentro de uma seqüência de transações bem sucedidas que o início de um
processo, ainda que tampouco seja o fim. Mas nem todos os genros se colocavam da
mesma forma dentro do grupo do genro. Antonio Francisco não fora o único a se casar
com filhas de Paulino Aires. Poucos dias antes desta união, ainda em 1793, Escolástica
Maria de Oliveira, filha de Paulino, se casava com o Alferes José Ferreira Prestes, de
uma conhecida família sorocabana, morador do Bairro do Pirajibu, onde tinha sete
escravos.446
Não encontrei nenhum indício de um envolvimento estável de Prestes na
política doméstica dos Aires de Aguirre. Talvez isso esteja associado à posição inferior
dele na comparação com Aguiar e Oliveira Aires. Era alferes, o que parece pouco para
as pretensões do grupo naquele momento e não me consta que estivesse entre os mais
ricos ou bem relacionados. Procurei na lista nominativa de Sorocaba de 1790 e concluí
que Ferreira Prestes era um dos poucos homens aptos para desposar uma filha de Aires
de Aguirre naquele momento, já que os demais sujeitos com um perfil minimamente
adequado estavam, em sua maioria, casados.447 Mas aqui há pouco material para
afirmações mais categóricas. De qualquer maneira, a pouca visibilidade de Ferreira
Prestes contribuía para fazer brilhar a estrela de Antonio Francisco e seu espaço no
núcleo familiar de Paulino.
445 A expressão “pequeno patriarca” tomo da leitura de MACHADO, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX), p. 126., que se baseia por sua vez em texto de Carlos Lima. 446 AESP. Lista Nominativa de Sorocaba. 1790. 447 Usei os seguintes critérios, que me parece, foram também utilizados por Paulino: homem, entre 18 e 40 anos, senhor de escravos com patente: encontrei dois capitães (casados), quatro alferes (dois disponíveis, entre eles, Ferreira Prestes) e quatro sargentos (dois disponíveis). De qualquer forma, alferes está hierarquicamente acima de sargento.
239
Torno a um ponto chave: a existência de uma rede com distintas densidades
sobreposta ao núcleo familiar que, em certo sentido, se confundia com o próprio núcleo,
mas que dentro de si tinha diferentes forças de atração. Havia o núcleo dos
comandantes, Havia outro, um pouco mais extenso, que incluía algumas mulheres e
outros homens. Havia a família, em um sentido bem amplo, que reunia todos, inclusive
agregados e escravos, como parte constitutiva da Casa. Este último elemento deve ser
particularmente ressaltado: a presença de escravos e agregados como parte do grupo,
como base social e, inclusive, como indicador de status. Como bem salienta Machado,
em momentos de dificuldade de aquisição de escravos, as famílias da elite disputavam
agregados entre si e com famílias livres pobres.448 O núcleo familiar de Aires de
Aguirre tinha, em 1801, somados 163 escravos, aproximadamente 1/10 do total dos
cativos da Vila, 449 o que de algum modo deixava o grupo numa situação confortável em
no quesito dependentes a ponto de poderem dispensar agregados. Na Lista Nominativa
de 1790, Paulino acolhia apenas Francisco Antonio, de 19 anos, nesta condição.450
Com o que vimos até aqui, podemos concluir que para se tornar capitão não
bastava ser tenente e talvez isso nem fosse necessário. Posso destacar alguns elementos
importantes: comandar a política doméstica (ou figurar entre os comandantes); construir
relações no plano extra-familiar; a posse de escravos (e seria conveniente uma boa
relação com estes, para garantir apoio aos projetos); uma dose de aliança com os
poderes de centro presentes na localidade; recursos econômicos e, em certa medida, a
participação militar na conquista ou na guerra.
Os Pinto Bandeira
Ligado ao mundo das tropas de animais, ainda que não tivesse nesta
atividade sua principal negociação, o grupo familiar dos Pinto Bandeira atuava em uma
região bastante extensa, que incluía a Vila do Rio Grande e seu sertão, o Viamão,
Triunfo e o Rio Pardo. Na década de 1750, Francisco Pinto Bandeira era Capitão de
Dragões e se destacava na Campanha das Missões, a Guerra Guaranítica, a mesma da
qual teria participado Paulino Aires de Aguirre. Nos anos 1760, ele providenciou
casamentos para suas filhas com recém chegados ao Viamão, um dos quais, Bernardo
448 MACHADO, A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social (São José dos Pinhais - PR, passagem do XVIII para o XIX). 449 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX), p. 107. 450 AESP. Lista Nominativa de 1790.
240
José Pereira, era negociante, o outro, Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, iniciou-
se nos negócios após a Campanha das Missões, da qual também participara, para
estabelecer-se também no Viamão.451
Ambos se casaram quase na mesma época que Paulino desposava, em
Sorocaba, a filha de Salvador de Oliveira Leme. Mas Custódio e Bernardo se aliaram a
família Pinto Bandeira alguns dias após a tomada da Vila do Rio Grande, o que pode ter
acelerado a política de atração daquele família, dado o contexto de guerra. Neste
momento, o filho mais velho de Francisco, Rafael Pinto Bandeira, já havia contraído
núpcias com Bárbara Vitória, filha de um cacique minuano chamado Miguel Carai.
Após a morte desta esposa, Rafael se casaria novamente com Maria Madalena, uma
guarani missioneira. Após nova viuvez, Rafael se casaria pela terceira vez com Josefa
Eulália de Azevedo, de origem portuguesa e filha de importante família da Colônia do
Sacramento.
Tanto no caso de Rafael e seu sogro Miguel Carai, como na relação entre
Custódio, Bernardo e Francisco Pinto Bandeira, percebe-se a força, também neste
contexto, da relação sogro-genro. Rafael manteve relações com Dom Miguel até mais de
duas década após o matrimônio e a boa relação dos seus cunhados com seu pai foi
deixada de herança. Na década de 1780, os negócios entre o novo chefe do grupo
familiar e seus cunhados e irmãos iam de vento em popa. Mas é preciso considerar
alguns eventos importantes ocorridos na década de 1770. Durante este período, Rafael
pôde destacar-se em dois sentidos. Promoveu diversos saques a propriedades de
espanhóis no outro lado da fronteira e comandou as tropas lusas na reconquista nos
embates de reconquista da Vila de Rio Grande.
Tais fatos garantiram um enriquecimento acelerado em paralelo ao aumento
de sua posição de comando e ao aumento de seu prestígio público, além de um
451 Para a análise da família Pinto Bandeira, utilizei as seguintes obras: GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810); HAMEISTER, "O Continente do Rio Grande de São Pedro: Os homens, suas redes de ralações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763)"; HAMEISTER, Martha Daisson, & GIL, Tiago, "Fazer-se elite no Extremo-sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII) " in Conquistadores e negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII., ed. FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de, & ALMEIDA, Carla (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007); KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII; SILVA, Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro.
241
estreitamento em suas relações com os poderes centrais. Para tanto, contou com a ajuda
dos minuanos e de uma grande quantidade de pequenos lavradores e criadores que
participaram dos combates, nos quais igualmente recebiam um butim. Todas estas
conquistas e ganhos se juntaram ao Hábito de Cristo, que Rafael recebia por suas
vitórias militares, e a patente de Coronel da Cavalaria Ligeira, uma tropa sob seu
comando. Durante a década de 1780, Rafael alternou o governo interino da Capitania do
Rio Grande de São Pedro com a prática de contrabando, além de numerosas
propriedades com grandes quantidades de animais produzidos anualmente, aumentando
seu cabedal político, social e econômico. O grupo possuía, ainda, um grande número de
escravos. Todos estes recursos eram de alguma forma redistribuídos dentro do núcleo
familiar, mas não apenas entre estes.
Em meados da década de 1780, os investimentos familiares já tinham
tomado um volume muito grande e Rafael era também o Coronel de sua família,
liderando diversos capitães, entre seus cunhados e irmãos. Em 1785, Evaristo Pinto
Bandeira e Felisberto Pinto Bandeira, irmãos de Rafael, eram capitães, assim como
Bernardo José Pereira (Capitão Auxiliar), Custódio Ferreira (Capitão Auxiliar) e Carlos
José da Costa e Silva (Capitão de Dragões). Vasco, irmão mais jovem, era apenas
Tenente e só se tornou Capitão após a morte do irmão mais velho, em 1796. Durante a
década de 1780, os Pinto Bandeira comandavam mais que um grande núcleo familiar.
Formavam um bando, algo difícil de ser construído e ainda mais difícil de ser mantido,
o que, até certo ponto, fora possível pela performance de Rafael Pinto Bandeira, que
conduziu a política doméstica de seu grupo com uma política contínua de aquisição de
dependentes, aliados e apoio do centro. Toda esta ação permitiu atingir o posto de
Brigadeiro em 1789.452
Inácio Xavier Mariano, um modesto criador de animais e tenente de
auxiliares no Distrito do Caí, foi chamado a testemunhar em uma devassa. Nesta
ocasião, ele confirmou que seu vizinho, Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães (que já
vimos, tinha uma enorme produção) havia obrigado um
homem tropeiro que lhe parece chamar-se Antonio de Almeida, para que casasse com uma índia, ou que lhe desse a dita china a tropa que levava para São Paulo; e
452 Sobre o conceito de bando, ver FRAGOSO, João, À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c.1600 – c.1750), Historia (Rio de Janeiro: UFRJ (Tese apresentada ao concurso para professor titular), 2005).
242
que depois de várias dúvidas entre o dito tropeiro e o sobredito capitão se viu na necessidade de casar para se livrar da prisão em que ele informante ouvira dizer o tivera posto453
Outro vizinho, Antonio da Silva Barros, também pequeno produtor de animais,
confirmou este comportamento, agregando que
por ser voz pública e constante que o dito capitão Custódio Ferreira por ter a inspeção de registrar as tropas para obviar os contrabandos, costuma confiscar alguns animais dos quais depois se utilizava vendendo-as, e que isto fazia principalmente aos que não lhe compravam os animais da sua estância, e que ele informante ouvira dizer a um Raimundo de tal capataz de uma tropa de Antonio Machado, que chegando ele dito capataz a Estância do Capitão Custódio Ferreira montado em uma mula que havia [p. 343v] com a marca do confisco e também contrato do tempo do capitão Mor Manuel Bento da Rocha, o dito capitão Custódio Ferreira lhe confiscara dizendo por ser de contrabando; mas que passados poucos dias, ele mesmo capataz Raimundo vira passar a própria mula carregada, e que perguntando a quem conduzia a dita mula por que título ela lhe pertencia, lhe respondera que a tinha comprado ao capitão Custódio Ferreira454
Estas denúncias, confirmadas por outros moradores do Caí, tiveram origem em
uma grande carta denúncia escrita por Manuel José de Alencastre, antigo morador
daquele distrito e Capitão de Ordenanças do Continente. Este ainda teria acusado
Custódio de forçar preços de animais através da intimidação dos tropeiros. Cunhado de
Custódio, Rafael Pinto Bandeira também fora acusado nesta devassa de vender animais
de contrabando para tropeiros, a partir de sua estância “Gravataí”, na Freguesia dos
Anjos, alegando que mesmo sendo visível sua ilícita origem, passariam nas inspeções
sem problemas. Outro Pinto Bandeira, Evaristo, fora acusado de passar animais de
contrabando pelo Registro da Patrulha, para Cima da Serra. Eram mãos bastante visíveis
que atuavam na economia das trocas animais. Não podemos deixar de lado estes
constrangimentos em nosso modelo. A ação do “bando” de Rafael Pinto Bandeira e
Custódio Ferreira certamente repercutia naquela economia e marcava seu caráter.
Verdadeiras ou não, tais notícias circulavam para além do Viamão.
A mesma investigação nos revela outro instantâneo interessante, narrado
pelo tenente de Dragões Manuel Carvalho de Souza. Custódio teria tentado prender um
filho de um capitão fulano Carneiro morador em Curitiba, o qual teria conseguido fugir
mas perdera seus animais. Acreditando terem sido confiscados pela Fazenda Real, o 453 Arquivo Nacional. Códice 104. Vol. 09. 454 Arquivo Nacional. Códice 104. Vol. 09.
243
antigo proprietário encontra os animais sendo conduzidos para uma fazenda de
Custódio, que ficaria nas proximidades do Camaquã. Contud’o, vendo-os marcados com
a marca do dito capitão Custódio Ferreira, quando os supunha confiscados para a Real
Fazenda, se resolveu a tirá-los do poder do condutor e assim o pôs em execução. Na
mesma devassa encontro relatos que destacam outra atuação semelhante. Uma partida
de soldados à mando da Fazenda Real havia confiscado animais de contrabando na
Estância de Evaristo Pinto Bandeira, contudo, vindo o dito capitão Evaristo em
seguimento da partida a alcançara no curral do dito Antonio Joaquim, de onde
violentamente tirara os cavalos e os levara para a sua estância. A ousadia, a destreza e
a violência eram valores daquele mundo e, tal como vimos nas performances de
Custódio, Evaristo e do filho do Capitão Carneiro de Curitiba, eram elementos que
atuavam nos jogos das trocas. Mas o recurso a este comportamento não cabia em todos
os negócios e muitos acertos eram firmados por outros elementos, como o crédito e a
liquidez.
Na comparação com o grupo dos Aguirre/Aguiar, a vantagem dos Pinto
Bandeira é saliente. Rafael era feito Brigadeiro pouco depois de Paulino se tornar
Tenente-Coronel, posto que sequer ocupou. Isso sem falar que Rafael era alguns anos
mais jovem que Paulino e sequer pôde participar da Campanha das Missões no tempo
de Bobadela. Pelo que pude perceber, Rafael pôde jogar mais alto com o sucesso dos
empreendimentos bélicos e, no limite, nos seus negócios de contrabando e saques,
atividades que não estavam disponíveis para Paulino e seu grupo. Se a América era
conquista, as fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo, onde Rafael atuava, o eram ainda
mais. Mas o comportamento social, me parece, era bastante similar. A filiação política
doméstica dos genros e a re-filiação dos filhos ao comandante máximo da família é um
elemento importante a ser destacado.
Por outro lado, a relação imbricada entre família, negócios e política é
visível em ambos os casos. A comandância regional de Custódio Ferreira de Oliveira
Guimarães no Distrito do Caí só se processou após seu ingresso ao grupo familiar dos
Pinto Bandeira e só se manteve como decorrência direta deste fato, ainda que eu deva
ressaltar aqui a performance de Custódio em suas atuações locais, intimidando a
população e perseguindo com convicção seus inimigos mais diretos. Ascensões
semelhantes, como vimos, foram produzidas pelo grupo Leme/Aguirre/Aguiar,
244
relacionadas com a ascensão familiar e do ator social dentro da família. Aqui também a
filiação teve um significado importante na dinâmica interna dos grupos.
A violência como forma de ação política e como prerrogativa de poder local
era também uma prática comum em ambos os grupos, mas não o tempo todo. Rafael
pôde exercê-la, assim como Paulino e Salvador o podiam. De acordo com o processo de
consolidação da família na esfera local e sua projeção e reconhecimento em esferas
mais largas, chegando até a Corte, no caso de Rafael, os grupos poderiam mudar sua
estratégia, como de fato parecem ter feito. A morte de Rafael, em 1795, e as mortes de
Paulino, em 1798 e Salvador de Oliveira Leme, em 1802, são momentos interessantes
para se acompanhar o peso da perda destes chefes e a estratégia de transmissão de
liderança. Isso pode trazer luz sobre o significado de uma filiação bem elaborada.
Rafael não tinha um herdeiro para o posto de comandante do grupo e sua
posição extremamente centralizada dentro do seu grupo era eficiente no funcionamento
do bando, mas acabou significando uma enorme dificuldade para a manutenção desta
estrutura após sua morte. De certo modo, seu primo, Manuel Marques de Souza, acabou
se tornando uma espécie de herdeiro político, mas sem o peso carismático e uma parcela
importante das relações de Rafael. Os negócios da família continuaram sendo
desenvolvidos pelos irmãos e cunhados capitães, especialmente as ligações com a
economia das tropas de animais, através de Evaristo Pinto Bandeira, e do negócio de
couros de contrabando, agora, mais do que nunca, administrado por Vasco Pinto
Bandeira. De qualquer maneira, há um notório esfacelamento do bando.455
Na família Aguirre/Aguiar, a concentração dos negócios em Antonio
Francisco e seu cunhado, Salvador de Oliveira Aires, garantiu certa coesão e
continuidade ao longo dos primeiros anos do século XIX, o que permitiu ao grupo
condições para, ao longo deste período, investir em espaços maiores, ampliar o quadro
de relações externas com o objetivo de concentrar oportunidades para o grupo. No Rio
Grande, diversamente, os herdeiros de Rafael acabaram abrindo definindo uma
estratégia ampla de alianças que permitiu a inclusão de uma grande quantidade de
pequenos grupos antes supervisionados pelos Pinto Bandeira, dentre os quais alguns
455 HAMEISTER, & GIL, "Fazer-se elite no Extremo-sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII) ".
245
negociantes de Rio Grande e de São José do Norte, assim como diversos criadores de
animais, que antes orbitavam de modo inconstante ao redor do núcleo “duro” da família.
O processo era inverso: enquanto os Aguirre/Aguiar tinham condições de
iniciar um processo de concentração de forças baseado nos relacionamentos, os Pinto
Bandeira acabavam dividindo sua torta com antigos apoiadores, em um momento de
enfraquecimento e divisão do grupo. Vasco Pinto Bandeira acaba se aliando a
negociantes de Rio Grande e toma uma ligeira distância do núcleo familiar. Manuel
Marques acaba assumindo a Comandância da Capitania e esta conquista, apesar de
vultuosa, não parece ser capitalizada em benefício do grupo, de um modo geral, como
os postos alcançados por Rafael o eram. Em caminho contrário, Antonio Francisco de
Aguiar começa a centralizar, ou ao menos insinuar a centralização, de uma importante
rede de chefes locais, negociantes e aparentados, que provavelmente será a base para a
ascensão política de seu ilustre filho. Os Marques de Souza têm vida longa no Rio
Grande, mas me parece que são os únicos herdeiros dos Pinto Bandeira a obter este
sucesso.
Os Carneiro Lobo
Família diretamente interessada nos negócios de animais, os Carneiro Lobo,
de Castro, foram um grupo bastante coeso em finais do XVIII. Francisco Carneiro Lobo
ficou logo viúvo de sua primeira esposa e casou pela segunda vez em 1767, com Maria
de Jesus, filha do então Capitão-mor de Curitiba, Leão de Vasconcelos. Neste momento
Francisco já tinha um bom volume de negócios, terras e escravos. O inventário de sua
primeira esposa, de 1762, indicava um patrimônio de mais de um conto de réis,456 que
pode ser considerado pouco, mas nem tanto se considerarmos a pobreza daquela
região.457 Seu título de Capitão já estava consolidado quando, em 1769, comandou um
ataque aos índios arranchados junto ao Rio Tibagi, que segundo seu relato, produzido
logo após o fim dos ataques, constantemente atacavam as povoações portuguesas na
região, especialmente na pequena aldeia de Castro que começava a ser ocupada.458 Nos
456 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 457 Mais adiante trataremos de discutir a pobreza relativa de Curitiba. 458 AHU. SPMG. 2486.
246
anos seguintes ele voltaria a ação, novamente em combates contra gentios
circundantes.459
Francisco continuou ao longo das décadas de 1760 e 1770 com
investimentos da criação de animais, em uma pequena lavoura familiar e no comércio, o
que devia incluir animais e fazenda seca, ainda que eu não tenha conseguido identificar
exatamente. Em 1776, eles já eram possuidores de onze escravos, o que, se estivessem
em Curitiba, seria suficiente para estarem entre os dez maiores senhores locais. Neste
ano, o filho Luciano já fazia negócios junto ao seu pai e isso deve ter permitido ao rapaz
arrumar casamento no ano seguinte, com Francisca de Sá, filha de Inácio de Sá Arruda.
Esta família era de Parnaíba e seu filho mais velho, Luis Castanho de Araújo nasceu em
Araçariguama e, mais tarde, o grupo foi estabelecer-se na estrada das tropas, em
Castro.460
Ao longo dos anos 1780, parece haver um interesse crescente da família nos
negócios de tropas. Encontrei um relato de 1787 falando sobre os negócios, entre 1784 e
1786, do nosso (neste momento da leitura) amigo Custódio Ferreira com um filho de um
capitão fulano Carneiro morador em Curitiba, que muito provavelmente seria
Luciano,461 que estava no Viamão para tratar da compra de animais, que quase foram
apreendidos por Custódio.462 Ao longo dos anos 1790, encontro ao menos três tropas
conduzidas por Luciano, sendo que duas delas, pelo valor, poderiam ter mais de cem
mulas, pagando, somente no Registro de Curitiba, mais de 170$000, ou seja, apenas em
impostos, pagou o valor de uma grande fazenda de criação de animais.463
Os negócios conduzidos entre as décadas de 1770 e 1780 devem ter sido
promissores o que possibilitou ao grupo, na década de 1790, casar os filhos com
membros de importantes famílias da região. Em 1792, Joaquim, seu filho natural, fugiu
com Ana, filha de Jeremias de Lemos Conde,464 um dos maiores senhores de escravos
459 AHU. SPMG. 2588. 460 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 461 Não encontrei outra família Carneiro entre Castro, Curitiba e a Lapa no período mencionado que tivesse algum capitão entre seus membros, muito menos pai de um rapaz com idade para ir ao Viamão. 462 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). 463 BN-II-35,25,25-27-004. Encontrei diversos exemplos de propriedades com valor abaixo deste. Livros de Notas do Primeiro Tabelionato de Curitiba. 464 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí, p. 192.
247
de Castro, segundo a lista de moradores do ano seguinte,465 o qual fora criado pelo
antigo Capitão-mor de Curitiba Rodrigo Felix Martins.466 Em 1795, pouco depois da
morte do patriarca, Francisco, uma das filhas, Francisca, contraiu núpcias com Antonio,
filho do então Capitão-mor de Curitiba Lourenço Ribeiro de Andrade. Importante
reparar, neste caso, que Lourenço (quando ainda não era o cabeça da vila de Curitiba)
fora companheiro de Francisco Carneiro Lobo numa das campanhas do Tibagi, ocasião
em que ambos eram Capitães de Auxiliares.467
Em 1797, Francisco, o filho, casou-se com Isabel de Sá, filha de Inácio de
Sá Arruda, que já era sogro de seu irmão Luciano desde 1777. Era o reforço destes
vínculos. Em 1798, um filho de Luciano, José, casava com Gertrudes Maria do Espírito
Santo, do Viamão. Em 1806, outro filho de Luciano, Manuel, desposava Ana Teixeira,
filha de Francisco Teixeira Coelho, Capitão-mor da Lapa. Encontramos este último
casal vivendo junto do pai da noiva na lista nominativa da Lapa de 1806, onde já
possuíam três escravos e Manuel, já Alferes de Milicias, vivia de comprar e vender
animais. Ao menos uma das escravas, Ricarda, parece ter sido doada pelo pai da
moça.468
Em paralelo à boa política de casamentos, percebemos a continuidade dos
negócios da família, especialmente no ramo de animais. Fora as menções ao fato de
serem negociantes de vacuns e cavalares que surgem nas listas nominativas,
encontramos mais referências às tropas conduzidas pelos Carneiro Lobo. Entre 1803 e
1805, encontrei três tropas de vulto (valores superiores a 100$000, uma delas de quase
400$000) conduzidas por Manuel e José, filhos de Luciano. Ambos estavam entre os 25
e os 28 anos, o que reforça a idéia de que a atividade tropeiros, nestas famílias,
corresponde a um momento do ciclo de vida, neste caso, entre os 20 e os 30 anos, mas
que em alguns casos poderia ser praticado até os 40, eventualmente mais. De qualquer
maneira, acredito que a condução de tropas era tida como uma atividade adequada para
jovens que iniciam seus negócios, particularmente aqueles que recentemente haviam
casado ou que estavam para casar, como vemos com nosso amigos Manuel e José.469
465 Listas Nominativa de Castro. 1793. CEDOPE. 466 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 467 AHU. SPMG. 2588. 468 Listas Nominativas de 1798 e 1806. Lapa. CEDOPE. 469 BN-II-35,25,05.
248
Estamos diante de uma família com grande prestígio regional. Eram das
mais importantes famílias de Castro, estando dentre os fundadores da localidade, e
casaram seus filhos, entre legítimos e naturais, com a nobreza correspondência ao seu
status de localidades contíguas, Curitiba e Lapa. Eram negociantes expressivos e
puderam manter seus negócios com a incorporação dos filhos à atividade, como forma
de engrossar os pecúlios para o início de novas unidades domésticas. Além disso, o
patriarca Francisco Carneiro Lobo soube tirar proveito das campanhas que participou e
não apenas como moeda de troca com os poderes centrais, mas para costura de
relacionamentos que, muitos anos mais tarde, puderam valer preciosas uniões para seu
grupo, que ao longo do tempo foi tomando ares de bando.
Guimarães, Ferreira e o fabuloso Coronel Vaz
Manuel Gonçalves Guimarães nasceu no início da década de 1740, no
povoado de São Salvador de Dalaens, Arcebispado de Braga. Ainda jovem foi para o
Rio de Janeiro onde se casou e teve uma filha. Em pouco tempo ambas haviam morrido.
Guimarães foi para Paranaguá onde se casou com Maria Madalena de Lima, filha de
Manuel Nunes Lima,470 que já era ou estava para se tornar Capitão-mor de
Paranaguá.471 Da vida de Guimarães entre seu casamento e a década de 1780 tenho
pouca informação. Sei apenas que teve dez filhos e fez bons negócios, o que justifica
seu lance e arrematação do Contrato das Passagens do Cubatão de Curitiba e do Rio de
São Francisco em 1780, pelo período de três anos, quando Manuel tinha cerca de 40.
Em 1786, Manuel venceu novamente a arrematação. Não sei se também fora
o vencedor em 1783. Em 1780 ele superou a oferta anterior passando o valor da
arrematação de 50$000 para 114$000. Em 1786, contudo, ele superou muito os limites,
oferecendo 1.420$000, 12 vezes o valor de 1780, o que mostra a liquidez de Manuel
Gonçalves, fosse em dinheiro, fosse em crédito. E ele permaneceu no controle deste
Contrato até, pelo menos, o final da década de 1790, quando devia cerca de 160$000 à
Real Fazenda por pagamento deste mesmo contrato. Um valor pequeno, considerando o
montante das ofertas anteriores. Este período também coincide com sua ascensão social, 470 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 471 AHU. SPMG. 2657; Nunes Lima foi capitão entre 1768 e 1777, mas não consegui identificar o ano do casamento de Manuel com a filha dele. AHU. SPMG. 3154.
249
e ele passa de Sargento-mor da Vila de Curitiba para Capitão (provavelmente
Auxiliares). No final da década de 1790 ele já se destacava como tropeiro de animais,
conforme no indica Manuel José Correia da Cunha em uma carta de 1797:
O capitão Manuel Gonçalves Guimarães veio a este Registro para averiguar pelo livro que tropas eram as das guias que vossa mercê lhe escreveu estava devendo e como os livros já tinham ido me pede para vossa mercê pelo livro examinar que tropas foram de conta de que por ter guiado várias tropas alheias e se acorda de alguma das guias se fez algum pagamento e quem o fez para assim vir no conhecimento da pessoa a quem pertence.472
De 1798 até 1809, é possível encontrar Manuel Gonçalves Guimarães em ao
menos sete tropas, todas elas valores expressivos, sendo que uma, de 1801, pagou mais
de 500$000 em tributos no Registro de Curitiba. Se levasse apenas mulas, deveriam ser
mais de 400. Ele aparece na lista de moradores de 1806 como vivendo de negociar
tropas e de uma fazenda de criar animais vacuns e cavalares.473 E neste período
Guimarães segue em plena ascensão hierárquica, passando de Capitão para Tenente-
Coronel por volta de 1797 e daí para Coronel, em 1808. Faleceu em 1815, mas sua filha
Ana Ubaldina do Paraíso Guimarães casou-se com João da Silva Machado, que se
tornaria, muitos anos depois, Barão de Antonina.
Tomemos outro exemplo: José Vaz de Carvalho. Ele chegou em São Paulo
em 1774, vindo do Aveiro, depois de formar-se em Coimbra. Logo que chegou, casou-
se com a filha de um grande negociante local, mas de origem lusa, Manuel de Macedo,
de algum modo herdando sua posição no grupo de mercadores locais.474 Nas décadas
seguintes, vai atuar na contratação de importantes tributos da Capitania de São Paulo,
por períodos ininterruptos, junto com sócios como Paulino Aires de Aguirre, Francisco
José de Sampaio e José de Andrade e Vasconcelos. Paulino já conhecemos. Francisco
José era negociante e, depois, se casou com uma filha de José Vaz. José de Andrade e
Vasconcelos era Capitão-mor de Taubaté.
José Vaz inicia sua carreira na hierarquia militar já como Mestre de Campo
do Regimento Auxiliar da Marinha de Paranaguá, o qual ocupa por seis anos até tornar-
se Coronel da Cavalaria de Milícias de Curitiba. Mas estes não são os cargos mais
472 BN-II-35,25,03-002 473 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 474 ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros, José Vaz de Carvalho, contratador da capitania de São Paulo. Simpósio de Pós-graduação em História Econômica. 2008.
250
destacados por Vaz de Carvalho em sua folha corrida, apresentada em 1806 para
requisitar mais honrarias. Ele salientava o fato de ter atuado como Juiz das demarcações
de terras, encarregado de medir as concessões fundiárias locais, além de ser um dos
maiores interessados em contratos da Capitania e sempre doando avultadas quantias
para obras públicas.475
Ele apontou algumas viagens que fez para conduzir valores no imediato pós-
guerra, em 1778. Ainda ressaltava o cargo de Juiz Ordinário de São Paulo, ocupado nos
anos imediatamente anteriores à redação da sua carta, que visava, diretamente a
concessão do Hábito de Cristo, o que aconteceu logo depois. O Coronel Vaz ainda foi
fiador de diversos tropeiros que passavam pelo Registro de Sorocaba, os quais só
poderiam passar com o pagamento ou com fiança.476 Por outro lado, parece ter feito um
bom investimento de relações de compadrio. No Registro de Curitiba, esta relação
chegou a ser utilizada como garantia de pagamento futuro, pelo afilhado José Manuel
Tavares da Cunha, de Jundiaí, em novembro de 1797.477 Ele ainda mantinha negócios
em Curitiba, dentre os quais o próprio Registro, assim como era sócio de gente em
Sorocaba, Guaratinguetá e São Paulo.
Em paralelo à ascensão de José Vaz, ia seu cunhado, Joaquim José de
Macedo Leite.478 Segundo seu sobrinho, Joaquim Roberto de Carvalho e Macedo (que
havia ganhado de herança os serviços do tio, através da herdeira sua avó), ele tinha
trinta anos de serviços prestados, iniciados em 1774, quando sentou praça, pela ocasião
da Guerra do Sul, sendo que em 1776 já comandava uma Companhia a sua custa, tendo
se recolhido em 1779. Era Capitão de Cavalaria do Regimento de Voluntários Reais em
1781, passando a Sargento-mor (Major) daquela Companhia em 1788.479 Naquele
mesmo ano, ele produz um relato de viagem ao sul, onde destaca pontos de parada para
descanso dos tropeiros. Na volta traz animais para as tropas da Capitania Paulista, além
de outros animais para seus negócios. Ele morreu em 1803.480 José Vaz, antes de
morrer, havia chegado a Brigadeiro.
475 AHU. SP (Avulsos) 1223. 476 BN-II-35,25,05. 477 BN-II-35,25,03-023. 478 AHU. SPMG. 4801. 479 AHU. SPMG. 3516. 480 AHU. SPMG. 5019.
251
O grupo doméstico do qual o Coronel Vaz fazia parte promoveu várias
filiações durante o período que estamos observando. Antes mesmo do Vaz, Antonio
Fernandes do Vale ingressou no grupo e, bem antes, Manuel de Macedo, falecido sogro
do Coronel, havia feito. Mas tal prática continuou funcionando, com a incorporação de
Francisco José de Sampaio Peixoto, ao se casar com uma das filhas de seu sócio. O
filho do coronel, por outro lado, foi re-filiado e apontado como herdeiro dos serviços de
seu tio, Joaquim José de Macedo Leite, material suficiente para que ele, já iniciado no
comércio, desfrutasse também, como o pai, do Hábito de Cristo. Neste sentido, também
neste último grupo se percebe uma grande mescla que envolve negócios e família. Os
investimentos familiares e de relacionamentos dos membros do grupo poderiam ter
como conseqüência a formação de um bando. Mas a estratégia relacional de José Vaz
de Carvalho alternou entre os investimentos externos e familiares, ainda que estivesse
orientada por estes últimos.
* * * * * * *
Acredito que a hierarquia sócio-militar, expressa nos títulos de Capitão,
Tenente, Coronel, Tenente-Coronel e Brigadeiro é um excelente “índice de
desenvolvimento” das economias domésticas. Ser Capitão era comandar uma
oikonomia. Ser Coronel era comandar diversas, entrecruzadas. Por economia doméstica,
ou oikonomia, entendo a unidade produtiva familiar, que pode variar entre um pequeno
rancho com mãe e filho, até os negócios de um grande bando articulado e recheado de
capitães.
Vimos que os feitos bélicos eram bons motivos para a ascensão, mas não
foram todos os exitosos capitães que estudamos que foram bravos no campo de batalha,
a despeito de terem participado em alguma escaramuça. Acredito que, mais que a
bravura, o aspecto militar fazia a ligação entre súditos e Coroa, de forma que os poderes
naturais e mágicos do Rei pudessem sacralizar a ordem social dos vassalos, carregando
de significado aqueles postos das tropas auxiliares, vistos como títulos de nobreza local.
Neste sentido, é importante salientar o papel do Coroa lusa neste processo. Os homens e
mulheres que estamos observando puderam inventar, até certo ponto, uma hierarquia,
mas não dispunham de poderes para sacralizar aquela ordem, que só adquiria sentido
252
quando era confirmada pela cabeça da monarquia o qual, desta forma, também
organizava sua própria economia doméstica.481
Algo comum a todos os nossos heróis foi o enriquecimento. Mas não o
simples enriquecimento. Ele sempre esteve associado à possibilidade de potencializar o
controle político local, enobrecer os membros e reordenar o controle familiar. Como
vimos, há uma grande correlação entre as associações mercantis, familiares e pluri-
familiares, comércio e ascensão política. Neste sentido, parecem fazer sentido algumas
noções expostas por Clavero, quando nos fala que a finalidade do comércio era a
difusão do amor cristão, um amor orientado pela amizade e pela família:
No hay economía general, pero existen particulares, de cada casa no arbitrariamente, sino según su estado. Composición oiconómica no supone dispersión familiar. La sociedad sigue integrándose, no por imposición política, sino por prácticas propias que a la política alcanzan. La propia oiconomía establece sus reglas. Hay clases de familia y, conforme a ellas, regímenes económicos; hay clasificación y así tipificación, esto es, regulación.482
Ainda falta acrescentar alguns elementos neste modelo, conforme o que
vimos até aqui. Havia certa circunscrição territorial de atuação dos capitães. Eles nunca
eram capitães simplesmente. Estavam sempre vinculados a uma determinada área de seu
controle e em muitos casos isso se tratava de bairros ou distritos. Mesmo os Coronéis,
que comandavam organizações pluri-familiares tinham um espaço geográfico de
atuação, que em muitos casos era bastante maleável. Apesar disso, alguns capitães
circulavam por espaços muito amplos, construindo relações e multiplicando
possibilidades. O Coronel Vaz, por exemplo, circulava entre Curitiba, Sorocaba,
Taubaté, Guaratinguetá e Jundiaí, ainda que tivesse residência em São Paulo. E isso
tinha seu peso no fato de ele ser Coronel: ele movimentava o amor, através do
comércio, numa área muito maior, fazendo parentes pelo caminho.
Daqui é possível voltar ao Capítulo 2, para quem não o leu.
481 Baseado em GODELIER, Maurice, O Enigma do Dom (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001). 482 CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna, p. 165.
253
Capítulo 10 Os Agentes do crédito
Passemos a observar como funcionavam algumas tendências do crédito no
mundo dos tropeiros. Trataremos de saber quem eram os principais credores, devedores
e fiadores daqueles negócios, o volume de operações, o tempo e outras variáveis. Para
apresentar este cenário, utilizarei basicamente dois tipos de fontes: os inventários post-
mortem e os registros de notas e transmissões. Disponho das notas e transmissões do
Primeiro Tabelionato de Porto Alegre483, do Primeiro Tabelionato de Curitiba484 e
alguns livros do Tabelião de Sorocaba.485 Conheço também os documentos do Segundo
Tabelionato de Porto Alegre, mas não utilizei esta documentação sistematicamente.486
Quanto aos inventários, não pude trabalhar com os documentos de Curitiba, mas tenho o
material do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre487 e os inventários
de Sorocaba.488
Os registros de notas e transmissões eram feitos por um tabelião, tal como
previam as Ordenações do Reino. Ele deveria manter seu escritório aberto e disponível
pela manhã e pela tarde para que as partes que houverem mister para fazer alguma
escritura, os possam mais prestes achar.489 Era sua função identificar as partes, redigir
os documentos requisitados e lê-los para que os interessados assinassem ao final. Era
sua obrigação registrar todos os documentos nos chamados livros de notas e preservar
este acervo por ao menos 40 anos. Tive alguma sorte. O Primeiro Tabelionato de Porto
Alegre iniciou suas atividades em 1763, antes mesmo da chegada da Câmara de
Vereadores. Até 1780, havia produzido mais de 790 notas, algo em torno de cinqüenta
escrituras por ano, em meio aos conflitos territoriais entre Portugal e Espanha (1763-
1777).
483 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Tal fonte, para o período, totaliza quase 5000 registros. Agradeço a Gabriel Santos Berute pela ajuda com este material. 484 Utilizei o material fornecido pelo CEDOPE/UFPR, cópia do Cartório Giovanetti. Para o período, totaliza mais de 1300 escrituras. Agradeço à Prof.a Maria Luiza Andreazza pelo acesso ao material. 485 Arquivo do Estado de São Paulo. Boa parte do material está em péssimas condições (e foi necessário pedir permissão especial para seguir utilizando o material) e há pouquíssimos registros de crédito e dívidas. 486 A não utilização dos dados do Segundo Tabelionato de Porto Alegre não foi propriamente uma escolha metodológica. Por questões de tempo, não pude levantar com detalhe todos estes documentos, realizando apenas uma indexação geral. A escassez de tempo me fez optar pela exclusão deste Cartório. 487 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Esta amostra totaliza cerca de 100 inventários post-mortem. 488 Arquivo do Estado de São Paulo. Totalizando cerca de 56 inventários. 489 Livro Primeiro das Ordenações Filipinas.
254
Entre 1780 e 1810, contei 4967 registros, o que gera uma média de 165 por
ano, algo como um a cada dois dias. Em 1805, contudo, o número de registros atingiu
seu ápice, chegando a 352, quase um por dia. O tabelião ainda fazia um serviço
itinerante, circulando por toda a Capitania do Rio Grande de São Pedro fazendo
registros, especialmente em Rio Grande e em Rio Pardo, onde atendia quem o
procurasse. A área e a população de abrangência do Primeiro Tabelionato, assim, vão
muito além de Porto Alegre. Os tipos de escrituras variam muito e se distribuem de
forma muito desproporcional. As procurações são a maioria ao longo de todo o período,
representando 47% do total. Os registros de compra e venda ficam em segundo lugar,
representando 24%, seguidas das alforrias, com 10%. As escrituras de crédito, dívida,
hipotecas, fianças e obrigações, somadas, representavam 5%, totalizando 222 registros,
numa média de 7 por ano.490
O Primeiro Tabelionato de Curitiba já funcionava no início do século XVIII,
e pelo que pude constatar, cobria toda a área do planalto no entorno de Curitiba. Os
documentos para o período abordado são em número bem menor, somando 1325 entre
1780 e 1810, numa média de 44 por ano, menos de uma por semana. O pico ocorre em
1808, chegando a 86 registros, cerca de uma a cada 4 dias. Assim como em Porto
Alegre, os tipos de documentos variam muito, mas com uma diferença: em Curitiba, o
primeiro lugar está com os registros de compra e venda (31%) seguidos das procurações
(28%). Mas a diferença maior está na proporção de créditos, dívidas, hipotecas, fianças
e obrigações, que atingia 14%, somando 190 registros, ao redor de 6 por ano, número
não muito diferente daquele de Porto Alegre, ainda que esta última tivesse dois
cartórios. A comparação ente os dois tabelionatos tem a seguinte feição:
490 A classificação das escrituras foi feita sob critério por mim adotado, de acordo com as perguntas que orientam este trabalho. Não há, me parece, outra razão para unificar as fianças, obrigações, créditos, hipotecas e dívidas, tal como fiz aqui. Por comodidade, passarei a chamar estas notas de “escrituras de crédito”.
255
Figura 26 ‐ Comparação do número de notas entre o 1º Tabelionato de Porto Alegre e o 1º Tabelionato de Curitiba (1780‐1810)
Fonte: Livros de Notas do Primeiro Tabelionato de Porto Alegre, APERGS; Livros de Notas do Primeiro Tabelionato de Curitiba, Cartório Giovanetti (Cópia do ACERVO do CEDOPE).
Os inventários post-mortem do Juízo dos Órfãos eram processos de
levantamento patrimonial de um recém-falecido, para comprovação de seus ativos e
passivos e partilha dos resultados, com o objetivo de preservar o patrimônio dos
herdeiros. Por se tratar de um documento relativo aos bens dos órfãos, a confecção dos
inventários tinha foro próprio, o Juizado de Órfãos, encarregado de não apenas realizar
o inventário, mas zelar pela propriedade dos órfãos solteiros menores de 25 anos, no
que devem ter grande cuidado pela muita confiança que neles é posta.491 Este ofício
não era exercido por técnicos, mas concedido para os vassalos na forma de mercês
régias, sendo bastante valorizado pelas elites locais.492 Mais que honrarias, o acesso a
este cargo significava possibilidades econômicas interessantes. Fragoso ressalta o
controle da “Arca dos Órfãos” (como previam as Ordenações), cofres onde o dinheiro
em espécie pertencente ao conjunto dos órfãos era depositado, o que conferia ao seu
“portador” a possibilidade de fazer negócios, já que era exigido dos juízes que fizessem
“aproveitar” os bens dos órfãos, como previam as Ordenações.493
491 Ordenações Filipinas, Título LXXXVIII. Dos Juízes de Órfãos. 492 HESPANHA, Antonio Manuel, As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político (Portugal - século XVII) (Coimbra: Livraria Almedina, 1994). 493 FRAGOSO, João, "A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)," Topoi 1, no. 1 (2000).
256
Os inventários eram divididos em quatro partes: abertura, avaliação dos
bens, apresentação dos documentos comprobatórios e partilha.494 A avaliação dos bens
distribui os ativos materiais em categorias, geralmente bens de raiz, escravos, artefatos
metálicos, dívidas, dentre outras tanta possíveis. As dívidas eram geralmente descritas
depois dos bens de raiz. Em alguns casos eram divididas entre ativas e passivas, além de
outras divisões possíveis, como as dívidas pagas recentemente, as dívidas em sociedade,
as dívidas anotadas em livros de controle contábil, entre outras. A própria forma como
as dívidas estavam dispostas nos inventários pode contribuir para o conhecimento do
inventariado. Os negociantes, quase todos, mantinham em separado as chamadas
“dívidas de borrador”, geralmente relativas a compras fiadas. A grande maioria das
dívidas incluia apenas o nome do credor ou devedor e o valor. Em alguns casos, há uma
breve observação sobre o sujeito, como a referência a um posto militar, profissão, se
eram escravos ou libertos, etc. Algumas dívidas continham observações sobre o negócio
que as originou, geralmente algum empréstimo ou compra.
O processo de criação e produção dos inventários post-mortem do Juízo dos
Órfãos (e, conseqüentemente, a listagem de dívidas ativas e passivas) é totalmente
diferente das escrituras e, por isso, constitui um interessante contraponto. As escrituras
de crédito eram produzidas em função de um contrato de duas partes, podendo referir à
uma dívida antiga, tornada pública e oficial no momento do registro, ou à criação de
uma transação nova, oficial e pública desde o princípio. As condições para a produção
de um registro de notas são resultado direto da interação entre os agentes e da sua
necessidade de tornar pública e oficial a transação. Os inventários não. Se é certo que as
dívidas ali contidas são fruto da interação social, a produção da fonte é aleatória, dada
pela fatalidade da morte de um dos agentes e do início e término do seu inventário. Por
outro lado, a produção do inventário não significa a inclusão das dívidas ou a
preocupação em incluir todas.
A qualidade dos dados, assim, é totalmente diversa e isso produz séries de
dados muito discrepantes. Enquanto as dívidas de escrituras podem ser fruto de um
momento específico da transação, início, meio ou fim (o que permite a separação dos
atos no tempo), as dívidas de inventários são um “consolidado” de transações não 494 Tal descrição está em diálogo com FRAGOSO, João, & PITZER, Renato Rocha, "Barões, homens livres pobres e escravos - notas sobre uma fonte múltipla. Os Inventários Post-mortem," Revista Arrabaldes 1, no. 2 (1988)..
257
resolvidas, juntando negócios antigos e novos sem discriminação. Nesta diferenças
reside a vantagem da comparação entre as duas fontes, permitindo uma crítica da fonte
que nos alerte dos limites de cada testemunho. Uma simples comparação do total de
dívidas anual nos livros de notas e nos inventários já nos indica o tamanho da diferença,
mas não só isso.
Figura 27 ‐ Comparação entre o número de dívidas encontradas em inventários e em registros de notas em Porto Alegre, ao longo dos anos 1780‐1795
Fonte: Livros de Notas do Primeiro Tabelionato de Porto Alegre, APERGS; Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS.
Estes dados nos indicam também diferentes tipos de negócios. A grande
maioria das dívidas de inventários não era registrada em cartório, sem falar naquelas
produzidas entre agentes dos quais não se procedeu ao inventário post-mortem. São
dívidas de qualidades distintas que encontramos em cada fonte, ainda que possamos
encontrar coincidência. Nesta pesquisa, só encontrei uma, que João Antonio Fernandes,
de Porto Alegre, devia a Domingos Rabelo Leite e Cia, do Rio de Janeiro, anunciada em
escritura poucos meses depois de ter sido listada no inventário. Tal situação reforça
ainda mais o argumento da diferença de tipos de crédito em cada fonte. As dívidas
contidas nos inventários poderiam ser acertos orais ou feitos através de papéis
particulares, que poderiam depois ir parar em algum Cartório, mas não necessariamente.
258
Além da aleatoriedade da morte e do sub-registro, poucas eram as pessoas
que faziam inventários, geralmente as mais abastadas. Esta seletividade, contudo, tem
seu lado bom: ao “selecionar” os mais abastados, se estará provavelmente incluindo
aqueles que tem maiores negócios, dívidas e créditos. Neste sentido, teremos nos
inventários dos negociantes uma enorme quantidade de pequenos devedores, o que nos
permite uma aproximação àqueles grupos que ficam ainda mais sub-registrados em
outras fontes. Em alguns dos inventários que tomei, alguns devedores eram
classificados como China, Índio, Velho, Crioulo, entre muitas outras.
Estamos, assim, diante de duas fontes diferentes e complementares e
acredito que seguindo numa perspectiva comparativa, possamos obter alguns resultados
interessantes sobre o crédito naquela sociedade.
Credores e fiadores
Os Credores
Comecemos com estes, e pelos documentos de Porto Alegre. Uma rápida
comparação entre os inventários post-mortem e as escrituras reforça a imagem que
tracei antes, que são fontes que apresentam diferentes qualidades de dívidas. Os valores
manipulados nas escrituras são em média quatro vezes maiores que as dívidas de
inventários. Tal cenário se repete no detalhe. Dividi os dados em décadas, como forma
de acompanhar a mudança no tempo.495
Comecemos com a década de 1780. Agrupando os dados dos inventários
com as escrituras, formei um conjunto de 472 dívidas deste período. Separei as 236
maiores dívidas das 236 menores. Não havia nenhuma dívida de escritura dentre as 236
menores. As dívidas de inventário, por sua vez, incluíam um número maior de dívidas
pequenas (57%), ainda que um número expressivo estivesse entre as grandes. De
qualquer maneira, fica notório que as escrituras tendem a acolher as dívidas mais
preciosas, de maior vulto, enquanto os inventários incluem todo tipo de transação.
495 Considerei este o modo mais adequado. A divisão em lustros não me pareceu adequada pois a distribuição dos documentos no tempo tornaria este recorte desigual. Amostrar anuais também teriam o mesmo problema.
259
Dentre os dez maiores credores do período, nesta amostra, apenas três tinham seus
negócios registrados em inventários e apenas um em ambos.
Quem eram estes sujeitos? As próprias escrituras nos esclarecem, ainda que
parcialmente. O maior deles Sebastião Francisco da Cunha, não aparece como um
grande prestamista. Ele tinha negócios de fazendas no Rio Pardo, em sociedade com
Antonio Gomes da Silva, e o valor de 15 contos de réis que o coloca como grande
credor era o acerto de contas do fim daquela sociedade, ocorrido havia três anos, e a
dívida deveria ser paga em outros quatro. Cunha era Tenente de Auxiliares em Rio
Pardo, pelo menos desde 1781.496
Antonio Carvalho da Silva, o segundo maior credor, tinha muitos interesses
e tudo leva a crer que fosse negociante. Já na década de 1770, era credor de importantes
figuras da governança local, como João Pereira Chaves (figura importante na Vila dos
Anjos), o Capitão Francisco Xavier de Azambuja e o Guarda-mor João Antunes da
Porciúncula. Ele aparece com destaque tanto nos inventários como nas escrituras, ainda
que isso tenha sua cronologia. Nos anos 1770 ele surge em diversos inventários. Nos
anos 1780 ele segue realizando empréstimos, se valendo agora das escrituras,
geralmente para outros negociantes, a maioria para aumento de negócios. Neste período,
Manuel Leite Valente recebeu dois empréstimos, um em 1783, para adiantamento de
negócio (deixando de garantia uma embarcação com seus tripulantes escravos) e outro
anos depois, para a compra de uma tropa de mulas. Carvalho da Silva parece estar mais
perto da figura do credor-financiador do que Sebastião Francisco da Cunha, já que este
último só era credor de um único sujeito, antigo sócio. Ele faleceu no final da década.497
O terceiro maior credor, Manuel Francisco de Sá, é também figura repetida
nas escrituras, aparecendo em sete delas, mas sempre como devedor, tudo no início da
década de 1780, sempre valores entre 40$000 e 125$000, a maioria, para a compra de
fazenda seca. Seu único registro positivo foi um crédito de mais de 3 contos, em 1787,
quando parece ter virado sua sorte e se tornado um negociante local expressivo, com
possibilidade de outorgar um montante deste volume por um prazo de dois anos.
Durante a década de 1770, ele aparece várias vezes à pia batismal em Porto Alegre,
496 1TABPOA-009-037; AHRS. F1245, 19v. 497 1COAPOA-03-24; 1COAPOA-04-38a; 1COAPOA-03-27; 01-03-1COARG; 1COAPOA-07-090; 1COAPOA-08-108; 1COAPOA-08-091; 1TABPOA-009-085; 1TABPOA-009-084; 1TABPOA-012-131.
260
assim como seus escravos.498 Na mesma época, a partir de 1772, ele foi nomeado
Escrivão Supranumerário da Contadoria da Fazenda Real da Capitania do Rio Grande,
cargo que ocupou até o final da década e não tenho registro para os anos 1780.499
Antonio Rodrigues Guimarães é o quarto grande credor e este não parece ter
se valido dos tabeliães para registrar seus negócios, que devem ter sido muitos, ainda
que muito pequenos. Ele surge como credor em dois inventários alheios, um de 1782,
com 6$550 e outro de 1787, com 21$530. No inventário de sua esposa, Antonia Pereira
de Souza, em 1790, ele aparece como credor de Brás Domingues Nobre, de um
montante de 1.404$415, além de outra quantia de 1.684$980 de ativos de diversas
pessoas, que o credor não teve paciência de discriminar, e talvez até incluíssem aqueles
dois devedores de 1782 e 1787. Ele foi padrinho de diversos rebentos entre 1776 e 1791
em Viamão e Porto Alegre, atuando como Almoxarife da Fazenda Real entre 1780 e
1783, chegando ao posto de Capitão das Ordenanças de Conceição do Arroio em
1800.500 Não pude descobrir mais sobre seus negócios, mas em uma carta do Inspetor de
Curitiba, Manuel José, de 1798, ele faz referência à um Antonio Rodrigues Guimarães
do continente do sul, em Porto Alegre, que bem poderia ser este nosso.501
Manuel Alves de Carvalho é o quinto maior credor, e nunca encontrei seus
negócios em escrituras, mas em quatro inventários diferentes, quase sempre como
credor. No final da década de 1760, ele devia uma pequena quantia para o Capitão
Francisco Xavier de Azambuja. Não tenho dados para a década de 1770, mas no início
dos anos 1780 (quando do inventário de sua esposa) ele já tem diversos devedores,
variando entre 20$000 e 850$000. Dentre os devedores, o Guarda-mor de Sorocaba,
João de Almeida Leite, João José Cherem, morador do Rio de Janeiro (no valor de
850$000), Belquior de Arantes, da vila de Lages e José da Silva, tropeiro, cuja dívida
estava na mão do Tenente Coronel Paulino Aires de Aguirre, de Sorocaba, para a
cobrança. Quando Manuel falece, em 1785, tanto Belquior quanto João José Cherem
seguiam devedores, ainda que com valores um pouco menores.502
498 ACMPOA. Livro de Batismos de Porto Alegre 01. 499 AHRS. F1244, 19, 20, 22 e 181v. 500 AHRS. F1244, 173v; F1249, 218v; ACMPOA. Livros de Batismos. Porto Alegre 01. Viamão 03 e 04. 501 BN-II-35,25,03-025. Não encontrei homônimos e as referências que tenho do mesmo agente são detalhadas, o que me faz acreditar que seja o mesmo. 502 1COAPOA-03-27; 1COAPOA-08-108; 1COAPOA-09-120; 1COAPOA-01-10f.
261
Passemos para Curitiba, onde não encontrei inventários.503 Só teremos as
escrituras como informantes e não são muitas, ao todo 190, distribuídas de modo
desigual ao longo do tempo. Contei 39 para a década de 1780, 70 para a de 1790 e 81
para a primeira do século XIX. Optei por analisar em detalhe a década de 1780 e a de
1800, na tentativa de perceber a transformação da economia. Tomando os anos de 1778
até 1790, estabeleci uma listagem de grandes credores.
O primeiro deles era o Capitão e depois Sargento-mor Francisco Xavier
Pinto, credor de pouco mais de dois contos de réis, ambos no ano de 1786. Francisco
vinha de Portugal e havia se casado com a filha do Sargento-mor João Ferreira de
Oliveira. Em 1762, já estava em Curitiba, onde se apresentava como negociante. Um
dos créditos, no valor de 1.780$500, era relativo à venda de uma boiada e umas mulas,
feita para Domingos Inácio de Araújo, conhecido tropeiro.504 A outra dívida fora de um
empréstimo e também de venda de fazendas, o que nos indica que Francisco Xavier era
negociante de loja, além de possuir várias propriedades, com grande plantel de escravos
onde devia produzir gado, já que vendeu uma porção a Domingos Inácio.505 Seus filhos
se casaram com filhos de importantes famílias locais, como os Ribeiro Ribas, Sá Souto
Maior e Carneiro Lobo.506 Ao longo de sua trajetória, Francisco ocupou os postos de
Capitão, Sargento-mor, Juiz Ordinário e membro da Câmara, participando também da
Campanha do Tibagi, junto com Carneiro Lobo.507
O segundo maior credor era Antonio Teixeira Álvares. Deste pouco
descobri. Sei que vivia sozinho com seus escravos em sua propriedade no centro da Vila
de Curitiba, até 1781, com certeza, sendo que a partir de 1793 reside com ele um
sobrinho de nome Francisco, que permaneceria ali até o final da década.508 Já em 1778,
ele financiava a compra de animais que iriam de Viamão para Cima da Serra, um
montante de 400$000, para João Rodrigues Furtado. Um ano depois ele fazia
empréstimo para Lourenço de Andrade509 no valor de pouco mais de cem mil réis. Ao
longo dos anos 1780, fez empréstimos e vendeu fazenda fiada por diversas vezes, assim
503 Tenho notícia de sua existência, mas não houve tempo pra consulta 504 1TABCUR-022-126; BN-II-35,25,05; LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 505 Ibid.; Listas Nominativas de Curitiba. CEDOPE. 506 Ibid. 507 Ibid. 508 Listas Nominativas de Curitiba. CEDOPE. 509 Talvez o Capitão-mor, Lourenço Ribeiro de Andrade, mas como não foi especificado, não tenho nenhuma certeza.
262
como emprestou a José Pedro da Costa dinheiro para a compra da casa onde morava.
Até 1801, ele aparece diversas vezes, sempre na posição de credor, ainda que não tenha
mais a liquidez que dispunha nos anos 1780. Ele parece ter falecido no final da década,
pois em 1810 o Capitão-mor Antonio Ribeiro de Andrade é referido como seu
testamenteiro.510
O terceiro maior credor era Estevão José Ferreira. Ele fez dois empréstimos
ao longo do período que analisamos, um em 1779 para João Gonçalves Nogueira
assistir a uma tropa de gado de João de Macedo, com valor superior a 1 conto e
duzentos. Dois anos depois ele registrava uma escritura para garantir a dívida de
177$390 que fez a Antonio Portes del Rei, de um empréstimo e de fazendas, o que
sugere que atuasse como negociante de loja, mas sobre isso não tenho mais elementos.
Sei que ele morava em Curitiba já no final da década de 1770, sempre próximo da
matriz. Atuou também ao menos uma vez como tropeiro, por volta de 1792, tendo como
fiador o Padre Manuel Caetano de Oliveira.511
O quarto maior credor era Manuel Domingues Leitão. Ele era Padre Vigário
em Curitiba, em já fazia empréstimos para assistência a tropas de gado na década de
1750, quando forneceu 128$000 para João Francisco Cardoso de Meneses, quantia que
só foi plenamente paga décadas depois. Durante as décadas de 1770 e 1780 ele realizou
vários empréstimos, dos quais alguns foram se acumulando, particularmente na mão de
alguns devedores específicos, até que foram registrados nas escrituras. Antonio dos
Santos Teixeira era um destes. Ao longo do tempo, formou uma dívida de 557$894 com
o Padre, assim como Escolástica Maria de Albuquerque o fez, agregando 288$178 em
débitos. Ele faleceu nos últimos anos da década de 1780, deixando o Capitão-Mor
Lourenço Ribeiro de Andrade como seu testamenteiro.512
Percebe-se que o perfil dos “grandes” credores de Curitiba na década de
1780 é marcado pela força dos mercadores locais. É claro que eram negociantes
pequenos, de pouca expressão regional, mas atendiam algumas necessidades de
510 1TABCUR-021-093; 1TABCUR-021-011; 1TABCUR-021-053; 1TABCUR-022-065; 1TABCUR-022-099; 1TABCUR-023-043; 1TABCUR-022-091; 1TABCUR-027-022; 1TABCUR-029-004; 1TABCUR-031-097. 511 1TABCUR-020-151; 1TABCUR-021-026; BN-II-35,25,25-27. 512 1TABCUR-023-095; 1TABCUR-021-014; 1TABCUR-021-028; 1TABCUR-021-027; 1TABCUR-022-089.
263
liquidez. Ainda assim, é preciso ter em conta outros elementos. Ainda que Francisco
Xavier Pinto fosse negociante de fazenda, seu principal ativo nas escrituras era da venda
de animais, uma venda fiada. Da mesma forma, Estevão José Ferreira fez empréstimos
mas também direcionados para negócios de animais, nos quais também atuava. E o
Padre Manuel Domingues Leitão podia até garantir algum recurso para certas pessoas,
mas não poderia ser considerado um prestamista, ainda mais se considerarmos as
condições fáceis que proporcionava, das quais falaremos depois. E este pequeno grupo
era credor de 55% do total das dívidas de escrituras da década de 1780 em Curitiba.
Na década de 1800, as coisas mudam um pouco. O maior credor deste
período é o Capitão-mor Antonio Ribeiro de Andrade, filho do também Capitão-Mor
Lourenço Ribeiro de Andrade. Ele atuou alguns anos como tropeiro, e chegou ao século
XIX um tanto mais rico que o pai. De qualquer forma, ele era credor de três dívidas,
uma de 1806, de 119$681, outra de 1808, 132$770 e uma última, de 1810, no valor de
quatro contos, para Francisco de Paula Ribas, seu irmão.513
O segundo grande credor é o Cofre dos Órfãos, e nisso está a grande
novidade. Somando 33 créditos para 21 devedores, o Cofre dos Órfãos respondeu por
43% de todas as dívidas registradas em escrituras na década, 18% do valor total dos
empréstimos, com dívidas entre 27$690 e 496$196, uma média de 150$000.514 O
terceiro era o Tenente João Antonio da Costa, cunhado do Capitão-mor Antonio Ribeiro
de Andrade. Ele fez um empréstimo de 1.200$000 para Manuel Lopes Branco e Silva,
além de um empréstimo a juros feito em 1802, para Luciano José de Chaves. O tenente
também havia atuado como Juiz Ordinário e Juiz de Órfãos, por volta de 1789, em
Curitiba.515
O cenário parece não ter variado muito da década de 1780. Um mercado de
crédito controlado pela elite local, interessada em diversos negócios e estabelecida por
uma hierarquia política. Da mesma forma, também neste caso encontramos poucas
513 1TABCUR-029-029; 1TABCUR-030-111; 1TABCUR-031-097. 514 1TABCUR-030-040; 1TABCUR-030-042; 1TABCUR-030-052; 1TABCUR-030-005; 1TABCUR-030-031; 1TABCUR-030-054; 1TABCUR-030-060; 1TABCUR-030-082; 1TABCUR-027-067; 1TABCUR-027-071; 1TABCUR-027-072; 1TABCUR-027-073; 1TABCUR-027-074; 1TABCUR-027-075; 1TABCUR-027-079; 1TABCUR-027-086; 1TABCUR-027-087; 1TABCUR-029-016; 1TABCUR-029-026; 1TABCUR-029-055; 1TABCUR-031-005; 1TABCUR-031-032; 1TABCUR-031-035 515 LOPES, História da Fazenda Santa Rita.; 1TABCUR-027-080; 1TABCUR-031-101.
264
dívidas, ainda que vultosas, na mão dos grandes credores, e muitas vezes por negócios
familiares.
Para Sorocaba temos o problema oposto de Curitiba. As escrituras não são
muitas, estão em péssimas condições e há pouquíssimas de crédito.516 Os dados de
inventários são mais generosos, ainda que eu não tenha encontrado estas fontes para o
período 1800-1810. Feitas estas ressalvas, vejamos o que há neste material. Comecemos
com a década de 1780. Encontrei ao todo 298 dívidas, que paravam na mão de 106
credores, ainda que 70% deles fosse credor de apenas uma dívida, a maioria de pouco
valor. Enquanto isso, os dez maiores credores detinham 84% dos valores devidos. Mas
o leitor não deve se impressionar com esta concentração: o montante em jogo é
relativamente pequeno, somando, ao todo, pouco mais de oito contos de réis,
praticamente a metade do que dois sócios de Rio Pardo negociaram entre si, nesta
mesma época. Os valores negociados em Porto Alegre atingiam 26 contos e estamos
falando da periferia mercantil do Rio de Janeiro.
O maior ativo estava no inventário de Ana Maria de Oliveira, esposa do
Tenente Coronel Paulino Aires de Aguirre, e somava 2,8 contos de réis, um terço do
total de Sorocaba. Logo atrás vinham Antonio José da Silva e João Batista, que ao que
tudo indica eram sócios e mantinham contas entre si. As dívidas que os colocam na
segunda e terceiras posições do ranking de credores de Sorocaba são de um para o
outro. O quarto da listagem é Domingos Vaz Monteiro, que pelo que parece era
negociante de loja, tendo 61 devedores que juntos somavam pouco mais de 700$000.
Entre os dez maiores ainda estavam Luis Castanho de Morais, com pouco mais de
200$000 em 22 créditos e o Capitão-mor da Vila de Sorocaba, Cláudio de Madureira
Calheiros, com 136$000 distribuídos em 5 dívidas.
Na década seguinte, algumas coisas são notoriamente diversas. O valor total
das dívidas de inventários pulou da casa de 8 para 19 contos. O número de credores
subiu para 136, dos quais a grande maioria ainda tinha parcos ativos para receber. A
maior fonte de crédito ainda era a família de Paulino Aires de Aguirre, que agora (no
inventário do patriarca) contava quase oito contos de ativos, cerca de 40% do total
devido na Vila, somando mais de 400 devedores. O segundo credor era agora o Capitão 516 Há uma nota no Livro de Notas do Tabelião de Sorocaba (1790-1792), acusando o Tabelião de relaxado.
265
Manuel Alves de Castro (pelo inventário de sua esposa, Andreza de Almeida Pacheco),
que contava 4,5 contos de réis, dentre 257 devedores. Em ambos os casos, é notório que
se somavam dívidas grande e dívidas de loja. Ambas famílias eram negociantes de
varejo, ainda que também fizessem negócios de maior fôlego, como Paulino, que era
sócio da arrematação dos Dízimos da Capitania paulista.
A maior novidade, entretanto, não está no aumento da concentração na mãos
dos Aires de Aguirre/Aguiar. Está nos terceiro, quarto e quinto credores: Antonio
Gomes Barroso, Manuel Velho da Silva e Brás Carneiro Leão, todos grandes homens de
negócio do Rio de Janeiro. Eles possuíam 10% dos créditos de Sorocaba e, interessante,
todas estas dívidas eram da mesma família, encontradas no inventário de Maria
Francisca de Paula, esposa de João de Araújo Azevedo. Enquanto isso, Cláudio de
Madureira Calheiros seguia entre os dez maiores credores, agora com 268$055 réis em
haver.
Os fiadores e os fiados
Voltemos a Curitiba, já que para Sorocaba não temos informações sobre os
fiadores. Vamos analisar agora quem eram os fiadores e quem fiavam. Comecemos com
a década de 1780. Encontrei apenas 5 fianças para este período. Das 5, 3 eram entre
aparentados. Ana Maria de Jesus, por exemplo, apresentou como seus fiadores seu filho
Francisco Teixeira de Azevedo e seu genro, Francisco Bueno da Cunha. O filho seria,
anos mais tarde, genro do Tenente Coronel Manuel Gonçalves Guimarães. No momento
da fiança, ele ainda estava pleiteando o posto de Alferes, tendo então 25 anos
aproximadamente.517 Do genro não pude descobrir nada. A dívida de Ana Maria era
com o Cofre dos Órfãos, no valor 59$175.518
As dívidas de Ana Maria, contudo, não eram as mais valiosas. Boaventura
Pereira fiou para seu irmão, João Batista Pereira, o valor de 129$090, em 1781.
Boaventura era senhor de uma propriedade no Descoberto do Cardoso, em Curitiba,
onde vivia sozinho com seus dez escravos. E nesta época Boaventura era acionado por
uma dívida anterior, de 1778, de uma compra de potros. Mas isso não foi problema para
517 LOPES, Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. 518 1TABCUR-022-056
266
o Padre Manuel Domingues Leitão, credor, que só registrou a dívida porque Boaventura
Pereira pediu mais dinheiro emprestado e se obrigou por ele e pelo irmão. E ainda
recebeu para criar o sobrinho Marcelino, de 15 anos, em 1782.519 Do irmão, João
Batista, não pude descobrir mais nada.
A maior fiança foi de 381$554, que João Antonio da Costa (parece ser o
genro do Capitão-mor Lourenço Ribeiro de Andrade) fez para Agostinho José de Farias.
Farias era, por sua vez, fiador de outra dívida, no Rio de Janeiro, de um sujeito que
devia para o negociante Antonio Ribeiro Avelar, uma das maiores fortunas cariocas do
período.520 Não consegui identificar alguma ligação entre Costa e Farias, mas é
interessante notar que a pobre elite curitibana podia agir como fiadora de negócios no
Rio de Janeiro, por pouco expressivos que fossem. A proximidade de Costa com o
Capitão-mor de Curitiba, seu lugar dentro desta família, foi um lastro suficiente para o
credor. E por mais pobre que fosse, o Lourenço Ribeiro de Andrade era o Capitão-mor.
Passando para a década de 1800, o maior fiador foi Manuel Soares do Vale,
ao garantir uma dívida de 673$805 que Gertrudes Batista tinha com Antonio Luis
Fernandes, do Rio de Janeiro. Não consegui identificar como fiador a fiada se
conheciam, além do fato de morarem na mesma vila há muito anos, ainda que em
bairros diferentes.521 O que sei é que se tratava de uma dívida antiga do marido,
disputada na justiça e vencida pelo credor, que agora exigia o pagamento. A viúva
queria não precisar entregar os escravos que serviam de garantia e ofereria Soares do
Vale como fiador para evitar a perda dos cativos, segundo ela, necessários para sua
lavoura.522
O maior destaque, porém, estava na família Gonçalves Guimarães. Neste
núcleo estava o segundo maior fiador, o Tenente Coronel Manuel Gonçalves
Guimarães, que fiou cerca de 630$000 a duas pessoas: Manuel Vaz Torres, um valor de
135$132, e a seu filho, o Alferes Joaquim Gonçalves Guimarães, no valor de 496$196.
Manuel Vaz Torres devia dinheiro, em 1808, para a Confraria da Senhora do Rosário
dos Pretos, ainda que fosse tesoureiro desta mesma instituição. Joaquim, por seu turno,
519 1TABCUR-021-027; Lista Nominativa de Curitiba. 1777 e 1782. 520 1TABCUR-022-142; FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 521 Listas nominativas de Curitiba. CEDOPE. 522 1TABCUR-029-032
267
havia feito, em 1802, uma série de pequenos empréstimos ao Cofre dos Órfãos, todos
com o seguro de seu pai. Mas não parava por aí. Em 1807 era a vez do agora Tenente
Joaquim Gonçalves Guimarães (terceiro maior fiador da década) fiar o pai, também
junto ao Cofre dos Órfãos, no valor de 207$240. Em 1809, Joaquim também fiaria
Antonio José de Almeida. Em julho de 1810, o então Capitão Joaquim fiava seu irmão,
o também Capitão Manuel Gonçalves Guimarães, com uma dívida de 131$660. E
quatro meses depois, em novembro, era o mesmo Capitão Manuel, filho do Tenente
Coronel de mesmo nome, que fazia as vezes de fiador, para Antonio Eugênio de
Miranda Tavares.523 O quarto maior fiador era Manuel José Natel, que havia sido fiador
do Tenente Brás José Natel, seu pai, no montante de 312$250. Brás era figura
importante em Curitiba, havendo sido Vereador. Seus filhos, Manuel e José, aparecem
fazendo outros negócios, como com os Amaral Gurgel de Lages, por exemplo.
Passemos para Porto Alegre. Aquele mesmo cenário curitibano onde o
parentesco tem um papel relevante no sistema de fianças não se mostra aqui tão saliente.
Ao menos não evidente, com as fontes que disponho. O maior fiador que encontrei para
os anos 1780, Pedro da Silva Chaves (a dívida foi lançada em cartório em 1780, mas a
fiança era anterior a 1777), acabou se desobrigando da fiança dois anos depois.524 Não
sei exatamente como um virou fiador do outro, mas mantinham mais de um negócio no
final dos anos 1770.525 Do segundo maior fiador, Joaquim Vicente e seu favorecido,
Antonio Rodrigues da Silva, não sei nada de conclusivo, especialmente por serem
nomes muito comuns, sendo difícil separar os homônimos. O terceiro maior fiador, José
Guedes Luis, era provavelmente negociante, como sugerem os vários negócios que
realiza ao longo das décadas de 1770, 1780 e 1790.526 As fianças com que aparece em
minha lista, contudo, não se referem a negócios, mas às duas fianças que fez para que
Francisco Antonio da Silveira assumisse o posto de Escrivão dos Órfãos, em Porto
Alegre em 1779 (sendo que uma delas foi invalidada). E igualmente aqui ignoro os
vínculos entre ambos. A fonte não apresenta indício algum.527
523 1TABCUR-030-031; 1TABCUR-030-095; 1TABCUR-027-071; 1TABCUR-027-072; 1TABCUR-027-073; 1TABCUR-027-074; 1TABCUR-031-077; 1TABCUR-031-005; 1TABCUR-031-097 524 1TABPOA-006-104 525 1TABPOA-006-103; 1TABPOA-006-104; 1TABPOA-006-041 526 1COAPOA-04-38a; 1COAPOA-07-082; 1COAPOA-08-108; 1COAPOA-09-131; 1TABPOA-012-131; 1TABPOA-006-018; 1TABPOA-006-034; 1TABPOA-006-067 527 1TABPOA-006-018; 1TABPOA-006-034
268
Para a virada do XVIII para o XIX, não percebo grandes mudanças, mas
algo há. O maior fiador foi Domingos Pereira Chaves, que participou de apenas uma
operação, em 1798, ao fiar uma compra de 645 mulas que João Inácio de Azevedo
comprou de Domingos Fonseca de Araújo, tudo isso no Povo Novo, próximo de Rio
Grande. Ignoro qualquer vinculação entre eles além desta, fora o fato de serem ambos
de Rio Grande. O segundo maior fiador era José Antonio da Silveira Casado, que em
1805 afiançou Dionísio Macarthy [sic] e Diogo Ihuhy [sic] que enviaram uma letra para
Lisboa a pedido da Fazenda Real, sendo ressarcidos na Capitania e tendo Silveira
Casado como fiador. Sei que Macarthy e seu fiador eram negociantes bem estabelecidos
na praça de Porto Alegre, mas não sei de maiores detalhes das relações entre ambos.528
O terceiro maior fiador, Antonio Monteiro de Barros, estava entre os
negociantes mais estabelecidos de Porto Alegre em 1808.529 Havia três anos, ele havia
feito a única fiança que encontrei para Mateus José da Silva, no valor de 662$225, por
uma compra fiada de fazenda seca que Silva tinha feito com o Capitão José Gonçalves
dos Santos. Antonio Monteiro de Barros não apenas fiou como pagou a despesa,
registrando em escritura, tempo depois, a dívida que Silva teria com ele. Mateus José da
Silva era padrinho de Antonio, filho de Antonio Monteiro de Barros, batizado em 1791
em Porto Alegre.530 É bem provável que tivessem relações anteriores, talvez já desde
quando Mateus chegou à Porto Alegre, vindo de Santa Catarina, lá pelo final dos anos
1770.531 Mas aquele compadrio aumentou a relação entre ambos. Mas, como vimos,
nem tudo eram flores. Se por um lado Monteiro de Barros pagou a dívida, por outro
registrou seu compadre como devedor em cartório, única ocasião em que o encontrei
nas escrituras. Não sei como os compadres resolveram suas dúvidas.
Este não foi o único caso em que o parentesco funcionou durante esta
década. Também José Rodrigues Martins, em 1810, fiou para que sua filha Joaquina
Angélica Nunes pudesse ser tutora de seus filhos, depois de receber autorização para tal.
Me parece que o parentesco vai ganhando força em Porto Alegre nas relações de fiança,
ainda que os fiadores mais comuns fossem como Francisco Soares Viana. Mercador
regional expressivo, Viana afiançou Luis Inácio Pereira de Abreu em 1801, de uma 528 Almanack de 1808. FREITAS, Décio, O Capitalismo Pastoril (Porto Alegre: EST - SLB, 1980).; 1TABPOA-028-113 529 Almanack de 1808. Ibid.. 530 ACMPOA. Livros de Batismos de Porto Alegre 01, p.183v. 531 BVA-01-12v-03
269
dívida de 410$018. Não consegui encontrar relação anterior entre eles. Mas se
observamos o comportamento de Viana, vemos que na década de 1780 ele estabeleceu
compadrio com outros negociantes ou autoridades locais, chamando para padrinho de
seus filhos Antonio Caetano Ramalhosa, negociante local, Inácio Osório Vieira,
Provedor da Fazenda Real e o Boticário Pedro José de Almeida. Não sei se tais relações
funcionaram ao longo do tempo, mas as sementes foram plantadas e poderiam levar
anos para florescer.532 Em 1805, diante de alguns embaraços, Viana acabou recorrendo
ao Reverendo Mateus da Silveira e Souza para um empréstimo de 4 contos.
Sua excelência, o devedor
“O banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de
dinheiro” (Barão de Itararé)
A historiografia do crédito sempre deu pouca importância para os
devedores, focando, prioritariamente, a atenção sobre os credores, detentores do poder
de outorgar.533 Mas acredito que a chave do problema não está nesta agência, mas na
dos devedores. Não eram estes, justamente, que tinham crédito? Darei maior atenção a
estes que aos credores e fiadores. Não que fossem mais importantes, mas seu
comportamento é base para compreender os problemas que estamos observando. E eram
mais numerosos. Além disso, não me surpreende o fato de alguém ter dinheiro e passá-
lo para outro. Surpreende o fato de alguém que não tem convencer os outros de que é
um bom negócio deixar o recurso com ele. Melhor dizendo, é mais relevante tentar
compreender as razões que fazem os homens e mulheres promover a circulação dos
recursos. Isso ajuda a compreender, inclusive, como alguns tem para emprestar,
voltando ao problema anterior. Parto do princípio de que quem deve, é porque tem ou
teve crédito em algum momento. E já vimos que ficar devendo não era o fim dos
negócios de um sujeito.
532 Sei que Ramalhosa e Viana depois foram vizinhos, na Rua do Comércio, em Porto Alegre, durante a década de 1790. AHRS. F1247, 154; F1248, 78. 533 Para alguns exemplos, ver: BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo: os jogos das trocas; ROCHA, Crédito privado num contexto urbano. Lisboa, 1770-1830; SAMPAIO, Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 –c.1750). Tal constatação não se traduz em crítica, mas como um posicionamento teórico distinto daqueles autores.
270
Antes de ver pontualmente o perfil de alguns devedores, vamos dar uma
olhada como eram classificados, ou seja, como era “apresentados” na documentação,
com que referências e indicações, como por exemplo, “capitão”, “primo de”, “esposa
de”, “morador em”, dentre muitas outras. Observar estas referências pode nos permitir
uma aproximação à hierarquia do crédito daquele contexto, ou seja, o quanto cada tipo
de agente social dispunha de crédito. Para tanto, vamos utilizar as denominações
êmicas, ainda que estabelecendo algumas distinções por minha conta.
O procedimento metodológico foi o mesmo de antes. Dividi as dívidas de
inventários e escrituras por décadas nas diferentes localidades e hierarquizei os agentes
pelo valor em moeda outorgada. Neste caso, separei apenas aqueles devedores para os
quais havia alguma informação extraordinária, algum título, alguma indicação
geográfica, de parentesco ou étnica, tomando o valor médio por categoria (a média dos
capitães, por exemplo, ou dos “filhos de”). De modo geral, um aspecto foi saliente e
todos os experimentos: a hierarquia dos devedores têm grande correlação com a
hierarquia social socialmente reconhecida da época. Em todas as décadas e localidades,
os maiores devedores eram aqueles que ocupavam os “lugares” mais prestigiosos da
sociedade, como os capitães, coronéis, tenentes-coronéis e doutores. Do lado oposto,
pretos, soldados, forros e china534 se alternavam nas décadas e nas localidades. Mas
vejamos com detalhe.
Em Porto Alegre, começamos com a década de 1770 e com as dívidas de
inventários. De um total de 302 dívidas, encontrei 132 referências qualitativas dos
devedores. A lista era encabeçada por um Doutor, um Coronel, e um Sargento-mor. No
outro oposto, um soldado e outro sujeito que cobre casas. Na década de 1780, a
situação não variava muito, com um Guarda-mor, um contratador, um tropeiro e um
Capitão encabeçando a lista. Entre os menores devedores, um filho de e uma china. Nos
anos 1790, um Capitão-mor, um Tenente e um Tenente-Coronel lideravam o ranking de
devedores, enquanto no fim da lista estavam pretas, Padre e Cabos. Nas escrituras, o
cenário não era tão nítido, já que o número destes registros era bem menor. De 156
escrituras, apenas 20 tinham referências qualitativas. Para a década de 1780, encontrei
apenas 9 referências, que juntavam Alferes, Coronel, Tenente, Capitão, Reverendo
Padre, Tenente Coronel e um escravo (e ele não ocupava o último lugar). Para os anos
534 China deve tratar-se de mulher indígena.
271
1800, com 11 registros, a situação fica um pouco mais nítida, com os capitães e Alferes
ocupando o topo, enquanto a base era formada por viúvas.
Em Curitiba, trabalhando apenas com as escrituras, encontrei 29 referências
dentre 123 dívidas. Para a década de 1780, que continha apenas 4 indicações
qualitativas, só havia 1 Alferes, 2 viúvas e 1 Capitão. Para a década de 1800, com 25
referências de qualidade, o cenário ficou um pouco mais nítido. No topo estavam
Tenente Coronel, Doutor e Capitão-mor, distantes, assim, de Dona, Furriel e Padre. Em
Sorocaba, onde só utilizei os inventários, o cenário era um pouco diverso das outras
duas localidades. Para a década de 1780, de 297 dívidas, encontre 145 referências de
qualidade. Os maiores devedores eram um irmão da inventariada, Alferes e Filho. No
outro extremo, negra, pai e pardo formava a base. Para os anos 1790, de 1124 dívidas,
havia referência qualitativa para 438. Nesta lista, encabeçada por um Tenente Coronel e
um Capitão-mor, a base estava formada por oficiais mecânicos, mestre, mestre
sapateiro, mestre forro e ourives.
O que apresentamos acima são apenas os limites sociais do crédito, no que
se refere à hierarquia social.535 É possível fazer uma espécie de sociologia dos
devedores, utilizando uma escala que, apesar de produzida com valores exatos em
moeda do Reino, o real, acaba utilizando uma tábua de valores menos precisa, mais
flexível, tendo em conta a noção de equidade, ou seja, sabendo que naquela sociedade
se buscava dar a cada um o que lhe era devido. A variedade de referências qualitativas
relativas aos devedores (e também aos credores) nas fontes, especialmente no
inventários, é bastante grande, e procurei dividir em grupos, criando uma tipologia.
Contudo, procurei adotar critérios comuns à época.
Dividi em sete categorias: a que denominei sócio-política, que inclui os
postos de Oficiais, tais como Capitães, Tenentes, Coronéis, e títulos como Doutor e
licenciado, geralmente associados à governança local; outra, que denominei sócio-
jurídica, que inclui diferentes tipos de escravos (pertencentes à diferentes tipos de
senhor, por exemplo), assim como agentes ainda ligados à imagem do cativeiro, como
pardos, forros e pretos forros; uma categoria que recolhia referências ao parentesco,
tais como filho de, pai de, irmão de, primo de, genro de, cunhado de, dentre outras, 535 Como notou sabiamente o Barão de Itararé “o banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro”.
272
tendo em conta se o aparentado possuía uma referência, como filho do Alferes, primo
do Tenente; outra ocupacional, que inclui os oficiais mecânicos, assim como outras
ocupações, como lavrador, mestre-escola e que cobre casas; outra com referência à
hierarquia da Igreja, entre padres, padres vigários, reverendos padres, freis e outras;
uma outra, referente ao espaço, juntando todos que eram referidos como morador em,
mas divididos por localidade; e por último, uma classificação que talvez não fizesse
sentido para aquelas pessoas pois era demasiadamente óbvia: por gênero, na qual
reparei nos valores recebidos por homens e mulheres em posições semelhantes em
outras categorias, como pardo forro e parda forra, preto e preta, etc.
Agora que temos os critérios parcialmente definidos, vejamos como estas
posições faziam o crédito variar, mas com maior sutileza do que fiz observar antes. Vou
apresentar apenas os valores das dívidas de inventários para poder comparar com maior
cuidado, utilizando, neste caso, apenas as fontes de Porto Alegre e Sorocaba.
Observemos os capitães. O valor médio de endividamento de um agente qualificado
como capitão em Porto Alegre, nos anos 1770 é de 89$200. Na década seguinte,
125$545 e na de 1790, 72$923. Em Sorocaba o mesmo personagem 76$645 na década
de 1780 e 52$151 na de 1790. Ou seja, no conjunto, variou entre 52$151 e 125$545.
Um escravo de alguém devia em média 1$230 em Porto Alegre da década de 1770,
1$940 na seguinte e 1$220 na posterior. Em Sorocaba, na década de 1790, um escravo
de alguém devia em média 1$498. Ou seja, variava entre 1$220 e 1$940. Com isso não
quero dizer que cada status tivesse sua cota de crédito disponível (por menor que fosse),
mas que a correlação entre crédito e hierarquia social era grande.
Esta correlação, contudo, não era linear, mas escalonada. Um pardo na Porto
Alegre da década de 1770 recebia em média $640 de crédito e 4$346 na década de
1790. Em Sorocaba, durante a década de 1780 o mesmo pardo poderia se endividar na
média de $240 e 4$027 na década de 1790. Entendo que os pardos, mesmo com uma
ligeira vantagem, estavam dentro da mesma escala de crédito que os escravos, assim
como os tenentes e coronéis estavam dentro da mesma dos capitães.
273
Figura 28 ‐ Hierarquia do Crédito, em forma escalonada
Fonte: Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS; Inventários de Sorocaba, AESP.
Alguns detalhes são interessantes. Um posto como o de Alferes, por
exemplo, considerado subalterno na classificação militar, estava sempre bem cotado nos
valores de dívidas, especialmente em Curitiba e Sorocaba. E isso parece ter um sentido.
Encontrei diversos casos onde os filhos de Capitães eram alferes.536 Parece que se o
Capitão era uma espécie de Rei local, seu filho Alferes era o Príncipe, filho de alguma
Dona. E isso deve ter contribuído para a melhoria da imagem pública dos alferes. Mas
há outros casos onde o parentesco e hierarquia social se encontravam. Se observarmos
as referências ao parentesco, encontramos uma diversidade de formas, especialmente
nos inventários de Sorocaba, tais com genro de alguém, filho de alguém, irmão de
alguém, esposa de, cunhado de, etc.
Estas formas eram re-significadas na hierarquia, formando qualificativos
compostos como genro do alferes, primo do tenente, filho do alferes, filho do capitão,
536 Encontrei ao menos doze casos onde isso acontecia, em Curitiba, Lages e Sorocaba, e sempre com Capitães importantes. Para tal utilizei as Listas Nominativas. Ver FONTES.
274
viúva do alferes. E estas formas tendiam a garantir um poder de endividamento maior
para tais agentes que para outros análogos. Na Porto Alegre da década de 1770, por
exemplo, um filho do capitão devia mais que um filho do velho, que devia mais que um
filho da viúva, que por sua vez devia mais que um filho de alguém sem qualificativo.537
Em Sorocaba da década de 1790, um genro do Alferes devia bem mais que um genro de
alguém sem qualificativo, o mesmo ocorrendo para a Esposa do Alferes. Já o filho do
alferes devia mais que os filhos de, mas não quanto o filho de Dona.
Com isso tudo não quero estabelecer uma régua exata para medir aquela
hierarquia, pelo contrário. Mas ao apontar de forma quase caricatural estas diferenças,
quero ressaltar que as pessoas eram avaliadas por seu lugar na ordem social e por suas
relações, mais que isso, era possível compartilhar parcialmente a posição de outro na
ordem social, e as relações de parentesco eram muito próprias para isso. Por outro lado,
qualificar as pessoas pelo parentesco, como primo de, irmão de, etc, eram formas
práticas de localizar social e espacialmente as pessoas, permitindo aos credores (ou
devedores) a cobrança ou pagamento.
Esta prática de identificar as pessoas por suas relações não era algo óbvio.
Era uma forma muito praticada em Sorocaba, especialmente visível na década de 1790,
para quando há um número maior de dívidas. Pude encontrar 64 referências de
parentesco naquela Vila, distribuídas entre 22 formas. Tomando o mesmo período em
Porto Alegre, encontrei apenas 25 referências, dentre 6 formas possíveis. Contudo, na
mesma Porto Alegre, abundavam referências a lugares diversos, inclusive próximos, tais
como Miraguaia (na Freguesia dos Anjos), em casa de, Chácara do falecido, Rincão do
defunto, Sítio que foi de, Lombas, morador ao pé de outro sujeito. Esta diferença, me
parece, está associada ao fato que Sorocaba mantinha uma população em lento
crescimento, onde as referências parentais tinham significado coletivo, dada a densidade
relacional daquela vila. Porto Alegre, ao contrário, crescia e se transformava
rapidamente e as referências ao espaço se tornavam uma forma eficiente de fazer
indicações. Uma coisa é o devedor ser conhecido pelo credor, outra é ser conhecido pelo
inventariante, pelo juiz e pelo escrivão dos Órfãos. Era preciso uma referência de
consumo coletivo.
537 Um filho de capitão devia em média 30$775, enquanto um filho de alguém devia $960.
275
Se tomarmos algumas categorias femininas, como dona, mulher de alguém e
viúva, também podemos observar alguns padrões semelhantes. Em Porto Alegre, na
década de 1780, uma Dona devia em média 5$790 e uma viúva 4$840. Na década de
1790, uma viúva devia em média 8$905 e uma mulher de alguém devia 4$510. A sutil
vantagem das donas sobre as viúvas e das viúvas sobre as mulheres de alguém é
confirmada em Sorocaba, onde, na década de 1790, uma Dona devia em média 17$458,
uma viúva 4$120e uma mulher de alguém devia 3$050. Se continuarmos em Sorocaba
da década de 1790 e ainda observando as dívidas das mulheres, veremos que apesar à
diferença de gênero se acrescentava a diferença da hierarquia social. Uma Dona esposa
de alguém, tal como uma esposa do Alferes, deviam ao redor de 5$000, enquanto pardas
e forras deviam em média menos de 1$000. Uma china em Porto Alegre, na década de
1780, devia $280.
Também o endividamento daqueles referidos como oficiais mecânicos pode
ser interessante. De um modo geral, eles povoam a base da escala dos devedores, abaixo
dos parentes de alguém, mas acima dos escravos, próximos aos pardos e forros, sendo
que muitos destes oficiais tinham também um forte vínculo com o mundo das senzalas,
e tivessem nestas atividades formas de ascender socialmente, ainda que pouco.538 Mas
tomando os dados de Porto Alegre e Sorocaba da mesma época, a década de 1790 (a
melhor documentada), percebe-se que há uma expressiva vantagem dos artesãos de
Porto Alegre na obtenção de crédito. Isso parece ser um fenômeno novo, já que nas
décadas anteriores o padrão parece ser o mesmo de Sorocaba, ainda que em 1781 um
carpinteiro tenha obtido 40$600 em crédito, valor muito acima do normal para os
demais oficiais, abaixo de 15$000 em Porto Alegre e de 5$000 em Sorocaba.
Compartilhar o brilho de uma patente como a de Capitão, Tenente ou
Alferes não era uma exclusividade dos laços de parentesco. Este brilho poderia se
estender também aos cativos. Um escravo do Tenente Antonio Mendes (de São Roque),
por exemplo, pôde endividar-se em 5$000, acima de vários pardos e forros de Sorocaba.
Isso, porém, era pouco se comparado com o Pardo Francisco Leite, que morava na casa
de João Leite de Godoi, que obteve 14$660. E algumas vezes a relação com algum
personagem reputado havia, mas era um pouco diluída pelo número de mediadores, tal
538 FERREIRA, Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850.
276
como aconteceu com João, Forro filho de João crioulo, escravo dos filhos do falecido
Capitão Moraes.
Ainda não exploramos plenamente a questão de gênero. Antes, observamos
as diferenças entre os qualificativos de homens e mulheres, ou seja, demos atenção
apenas às formas como aqueles agentes podiam ser apresentados ou eram qualificados.
Resta calcular do total de dívidas por década deviam homens e mulheres. Para tanto,
diferenciamos o sexo a partir do nome ou, em alguns casos (quando o nome era ilegível
ou não constava) pelo qualificativo, o que nos permitiu identificar a grande maioria dos
devedores.539 Comecemos observando os dados de Sorocaba. Na década de 1780, era
muito mais fácil para um homem obter dinheiro emprestado que para uma mulher. Ao
menos é o que pude estimar com as fontes que tenho. Das 297 dívidas, apenas 28 foram
para mulheres (10%) e os valores outorgados são igualmente menores, em média
11$202, enquanto os homens podiam receber em média 31$719. Para a década de 1790
temos bem mais fontes. Das 1123 dívidas deste período, 260 eram de mulheres (23%), o
que significa um aumento absoluto e relativo da importância destas devedoras. Contudo,
o maior impacto não foi no número de dívidas, mas no valor manipulado. Neste
momento, elas se endividavam em média 17$618, superando os homens que deviam
17$168. Uma vantagem sutil, mas uma vantagem.
Em Porto Alegre, o cenário era de maior continuidade. Das 302 dívidas que
encontrei para a década de 1770, apenas 23 paravam em mãos femininas, que deviam
em média 59$499, enquanto os homens deviam 97$833. Na década seguinte, das 421
dívidas, 74 eram de mulheres, que se obrigavam em uma média de 47$285, enquanto os
homens deviam 56$086. Este foi o momento de maior aproximação, quando as
mulheres deviam 15% do valor total das dívidas. Na década de 1790 se assistiria ao
retorno da importância dos devedores masculinos, com as mulheres devendo apenas 2%
do valor total das dívidas de inventários.
Considerando ainda o fato que em Sorocaba as relações parentais são mais
utilizadas que em Porto Alegre para identificar os agentes do crédito, além do fato que
naquela Vila havia maior referência a agentes do sexo feminino, acredito que haja certa
relação entre a agência feminina no crédito e a densidade das relações nas comunidades. 539 Para Porto Alegre pude identificar todos. Para Sorocaba, apenas dois agentes não puderam ser identificados na década de 1780 e somente sete na de 1790.
277
Como já disse antes, Sorocaba não teve um crescimento muito grande ao longo do
período, e boa parte dos recém-chegados acabou encontrando abrigo dentro dos núcleos
familiares já estabelecidos, sendo que boa parte destes sujeitos vinham de áreas
próximas, e outros mantinham parentesco com famílias locais. Neste ponto, baseio em
parte minha análise no trabalho de Hameister, onde a autora aponta a importância das
mulheres na produção da unidade do grupo familiar, estendendo esta unidade para o
conjunto da elite local.540
Depois de tantos dados abstratos sobre os devedores, passemos àqueles de
carne e osso, de forma a testar os resultados até aqui obtidos. Comecemos por Porto
Alegre, com as dívidas de inventários. Para a década de 1770, o maior devedor que
encontrei era o Alferes João Pereira Chaves, um dos sujeitos mais ricos da região e
proprietário de um dos maiores plantéis de escravos.541 Ele devia mais de 12 contos de
réis (o inventário de sua esposa, Gertrudes de Lima, foi feito neste década, em 1777, e
por isso estes dados têm grande representatividade). Atrás dele, vinha o Doutor Miguel
Pinheiro de Souza, que devia 2,7 contos para o mesmo João Pereira Chaves. Não pude
encontrar maiores informações sobre Pinheiro de Souza. Em terceiro vinha o Coronel
Rafael Pinto Bandeira, que competia em número de escravos com Pereira Chaves e era
um dos maiores potentados locais. No momento desta dívida, acabava de comandar as
tropas portuguesas que reconquistaram parte do território do Rio Grande de São Pedro,
estando para receber um Hábito de Cristo.542 Ele já é referido como Coronel da
Cavalaria Ligeira na própria dívida do inventário, sendo também seu credor João
Pereira Chaves, com um crédito no valor de 1,7 contos.
Para a década de 1780 disponho de duas fontes complementares, os
inventários e as escrituras. Tendo em conta os inventários, o maior devedor deste
período foi o Doutor Antero José Ferreira de Brito, formado em Direito em Coimbra e
sobrinho do então falecido Antonio Pinto Carneiro, aliado, nos anos 1770, de Rafael
Pinto Bandeira. Em seu inventário, de 1787, devia mais de 2 contos de réis para um
540 HAMEISTER, "Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)". 541 SIRTORI, Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784); KÜHN, Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. 542 SILVA, Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro; GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).
278
grupo de 14 pessoas. Entre seus credores, estava o segundo maior devedor do período,
João Antonio Fernandes (na verdade, uma viúva devia para outra). Fernandes, no ano de
seu inventário, devia pouco menos de 2 contos de réis para 5 credores, sendo o maior
deles Domingos Rabelo Leite, com quem já fazia negócios desde a década de 1760.
João Antonio Fernandes aparece em alguns registros de Batismo de Viamão ao longo da
década de 1770, tendo em 1771, como padrinho de seu filho, o Provedor da Fazenda
Real Inácio Osório Vieira.543 Era também credor de diversas pessoas na mesma época.
Nas escrituras, o cenário é outro. Para a década de 1780, o maior devedor é
o negociante Antonio Gomes da Silva, que é também, como vimos um dos maiores
credores. Antonio Soares de Paiva é o segundo maior. Vindo da Colônia do
Sacramento, Paiva se casou com a filha do Capitão Domingos de Lima Veiga,
importante senhor de escravos da Vila do Rio Grande e padrinho de muitos afilhados.544
O próprio Paiva atuou ao menos em três oportunidades como padrinho, durante a
década de 1780 em Porto Alegre.545 Sua maior dívida era com o Capitão João Manuel
de Figueiredo, do Rio de Janeiro, no valor de 2,8 contos. Já nos anos 1800, o maior
devedor é o negociante João Ferreira da Silva, que deve mais de 9 contos,
provavelmente de negócios de atacado. O segundo maior devedor era Antonio José
Pereira Machado, do qual não pude obter maiores informações, mas sei que andou
construindo uma grande casa no início da década de 1800, o que talvez tenha
demandado aqueles recursos.
Em Curitiba, o maior devedor da década de 1780 era Domingos Inácio de
Araújo, bem relacionado e que mais tarde se tornaria Capitão. Os recursos tomados
foram todos do mesmo sujeito, o Sargento-mor Francisco Xavier Pinto, e eram para a
montagem de uma tropa.546 Já nos anos 1800, o maior devedor, é o Tenente-Coronel
Francisco de Paula Ribas, tomados de seu irmão Capitão-mor Antonio Ribeiro de
Andrade. Em Sorocaba, o maior devedor dos anos 1780 era Gaspar Aires de Aguirre,
irmão de Paulino, que era também seu credor. Já nos anos 1790, as coisas haviam
mudado um tanto. A maior devedora era Maria Francisca de Paula, cujos maiores
passivos eram com três grandes negociantes do Rio de Janeiro: Antonio Gomes 543 ACMPOA. Livros de Batismos de Viamão 03. 544 HAMEISTER, "Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)". 545 ACMPOA. Livro de Batismos de Porto Alegre 01. 546 1TABCUR-022-126
279
Barroso, Brás Carneiro Leão e Manuel Velho da Silva, cujas famílias ocupavam o topo
da hierarquia mercantil.547
Daqui é possível continuar no Capítulo 8 ou 9 (se ainda não foram lidos).
547 AESP-INVC00604
280
Capítulo 11 A loteria da Babilônia: um mercado diverso
Camadas de relacionamentos
Se observarmos os lugares referidos nas dívidas de inventários de Porto
Alegre e Sorocaba, veremos que a maior parte deles aponta para uma certa endogenia
no mercado de crédito, assim como vimos uma certa este fenômeno no mercado
matrimonial e na escolha dos padrinhos. Para Sorocaba, encontrei cerca de 1627
referências nos inventários da vila entre 1780 e 1810.548 A grande maioria delas não
aponta a origem geográfica de credores e devedores e seria difícil comparar cada um
dos nomes que surgem com listas nominativas, por exemplo, ou com outras fontes, já
que a grande maioria é de nomes de grande repetição, impedindo alguma segurança
maior. Mas para alguns casos temos esta informação e é com isso que iremos trabalhar.
Encontramos 79 referências geográficas de credores/devedores549. Deste total, 40 eram
da própria vila de Sorocaba; São Roque tinham 5 dívidas registradas; São Paulo e Itu 4
cada uma; Rio de Janeiro, Porto Feliz e Paranapanema apareciam com 3 registros para
cada uma; Itapetininga, Parnaíba e Apiaí apareciam duas vezes cada; um grupo maior,
que incluía Viamão, Minas, Cima da Serra, Mato Grosso, Curitiba, Ponta Grossa, Mogi
das Cruzes, Cotia, Vila do Príncipe e Minas do Cuiabá, registrava uma dívida para cada
local.
O Rio de Janeiro poderia ter mais destaque neste cenário se os Capitães
Antonio Gomes Barroso e Brás Carneiro Leão fossem, nestes documentos, referidos
como sendo do Rio de Janeiro. Todavia, eles aparecem uma vez cada um (e no mesmo
inventário), o que colocaria o Rio ao lado de São Paulo mas, ainda assim, bem abaixo
da quantidade de dívidas que se estabelecia na mesma localidade. De qualquer modo, se
eu tentasse rastrear cada um dos nome das mais de 1500 dívidas, certamente São Paulo
apareceria com mais de 4 transações, assim como Sorocaba teria muitas mais já que,
como eram credores/devedores conhecidos da comunidade, dispensavam apresentações.
Assim, Itu, São Roque e São Paulo aparecem, novamente, como dois
espaços muito próximos de Sorocaba no que se refere aos relacionamentos sociais. O
Rio de Janeiro não era representava um estoque de noivos ou noivas, mas aparecia no 548 Agradeço à Sherol Santos pela ajuda com a preparação deste material. 549 O universo de inventários disponível, para Sorocaba, entre 1780 e 1810, é de 101 processos. Em apenas 56 encontrei dívidas As referências à localização aparecem em apenas 10 processos.
281
universo Sorocabano como um bom lugar para fazer negócios, provavelmente para a
compra de escravos. E mesmo com a ampla circulação de animais, pela continuidade no
tempo e pela importância deste comércio para Sorocaba e São Paulo, as localidade que
ficavam à margem do caminho não se apresentam aqui tão próximas de Sorocaba.
Podemos comparar estes dados com outros, resultado do processamento das
dívidas contidas em inventários post-mortem de Porto Alegre. Este corpo documental é
formado por inventários produzidos em diversas localidades próximas à Porto Alegre,
particularmente, Viamão, Patrulha, Anjos e Triunfo. Logo a análise deste material serve
mais para medir se as relações locais são mais impactantes que as regionais e, ainda
assim, de um modo um pouco simplificado. Para elaborar esta análise, utilizei 95
inventários entre 1764 e 1802, do 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre,550
dentre os quais encontrei cerca de 1020 dívidas. As referências à localização dos
credores e devedores são escassas. Este dado me sugere que em boa parte dos casos são
credores/devedores locais, dos quais não era preciso fazer observações maiores.
Há dois tipos de informação “geográfica” nas dívidas. Algumas dívidas se
referem a lugares (por exemplo, “em Brasília deve tanto a Fulano”), enquanto outras
posicionam o sujeito (credor ou devedor) em algum lugar (“deve tanto ao Fulano de Tal,
morador em Belo Horizonte”). Em relação ao primeiro caso, do qual tenho 26 notas
sobre lugares, encontrei o Rio de Janeiro como primeiro, com 5 referências. Em
seguida, Barrancas, Bahia e São Paulo, cada uma com duas indicações. As demais 15
tinha, cada qual uma referência. Entre elas estavam Benguela, Angola, Casa de Rosa
Gerônima, Santa Catarina, Casa do Provedor, Sorocaba, Areias Gordas e Castro. Em
relação aos dados que qualificavam os credores/devedores, encontrei um cenário
diverso, sendo que o universo é maior: há 96 referências. O que mais se destaca são as
indicações “familiares” de credores/devedores, como rincão do defunto Almeida, casa
de Salvador dos Santos, ao pé de Manuel Rodrigues Paes. Somei este tipo de
referência, que classifiquei como “local” (porque se remete a um ponto familiar da
localidade) com aquelas indicações que pude identificar claramente, como Miraguaia
(na Freguesia dos Anjos), ou Rio do Caí. Com isso, contabilizei 38 referências “locais”
contra 24 de Rio Pardo, 9 de lugares de Cima da Serra, 7 da Patrulha e litoral (costa que
550 Agradeço a Lauro Allan Duvoisin e à Sherol Santos pela ajuda com este material.
282
fica à oeste da Patrulha), 5 para Triunfo, 5 para Rio Grande e 2 para São Paulo. Rio de
Janeiro, Laguna, Lages, Curitiba e Viamão tiveram uma referência cada um.
Parece que havia, mesmo entre as dívidas, uma contínua predominância da
densidade local. As dívidas, entretanto, aumentaram a área total de relacionamento do
Viamão e acrescentaram importância a certas localidades. Rio Pardo aparece com maior
destaque, e mais do que a vila do Rio Grande, enquanto o Rio de Janeiro aparece com
maior força, superior a São Paulo, apenas para tomar distâncias proporcionais. Isso me
sugere novamente o quão seletivo é o mercado relacional. Mais do que isso, me sugere
que aparte toda a economia das tropas de animais que rumavam para Curitiba, o
mercado relacional do Viamão, podendo incluir aí Triunfo, seguia outros vetores, mais
restritos, por um lado, e com expressiva ligação ao Rio de Janeiro, por outro. De
qualquer forma, mesmo distantes, São Paulo e Sorocaba ainda mantinham certa
presença, apesar já um tanto borrada. O mesmo se pode dizer para Curitiba e Laguna,
que ainda se sentiam de longe.
Retomando a discussão sobre a construção da confiança em redes densas,
temos que ter em conta alguns problemas. Se os dados acima nos sugerem que há uma
densidade local que garante o suprimento de crédito até certo ponto, eles não nos falam
sobre os conflitos locais e sobre as rupturas existentes em cada comunidade. Um cenário
hipotético onde todos os habitantes de uma comunidade se conhecessem (o que não está
muito longe de acontecer, ao menos entre as famílias) não significaria que todos
confiassem em todos. Pelo contrário. Como nos indica Burt, há uma série de
complicadores próprios de redes densas que impedem, em muitos casos, a criação de
confiança ou sua manutenção.551 Bacellar nos lembra dos conflitos entre grupos
familiares antigos em São Paulo, e já vimos diversos conflitos intra-elites até aqui.552
Se a densidade local contribui no contato e criação de confiança, ela
também é capaz de gerar conflitos, resolvê-los ou agravá-los. Acredito que muitos
escravos puderam aceder à algumas formas de crédito se valendo de contatos e relações
construídas no seu dia-a-dia, com alguns daqueles que fizeram suas pequenas dívidas
em Porto Alegre e Sorocaba. Os espaços de interação, de conversação, como bem
551 BURT, "Bandwidth and Echo: trust, information, and gossip in social networks." 552 BACELLAR, Os senhores da terra: família e sistema sucessório de engenho no oeste paulista, 1765-1855.
283
saliento Maria Sylvia de Carvalho Franco, eram importantes no mundo escravista, mas,
como bem salienta a mesma autora, eram também espaços de violência, inclusive de
violência entre iguais.553 Logo, resta saber exatamente como se davam as articulações
dentro das comunidades, até que ponto incorporavam forasteiros e de que modo se
reproduziam.
A pista para começar esta no número de dívidas que estão nos inventários e
nas escrituras. É claro que há grande sub-registro, assim como a produção dos
inventários não é representativa da quantidade de habitantes, incluindo apenas aqueles
credores e devedores que mantiveram negócios com gente falecida e inventariada
durante o período que estamos estudando. Mas é o que temos. Somando as dívidas de
inventários e escrituras e Porto Alegre, Curitiba e Sorocaba que utilizamos até aqui,
temos um total de 2674 dívidas, manipuladas por 2291 agentes, entre credores e
devedores (muitos estão nas duas posições). Em Porto Alegre, com uma população que
variou entre 1512 habitantes (em 1780) e 3268 (em 1798), temos um total de 974
dívidas de inventário, manipuladas por 832 agentes ao longo de todo este período, sendo
que alguns eram de fora da localidade. Em Sorocaba o problema era análogo: as 1422
dívidas de inventários entre 1780 e 1799 foram realizadas por 1086 pessoas, enquanto a
população local variou entre 6815 (em 1780) e 7177 (em 1798). Ou seja, em ambos os
casos, há uma grande concentração das operações de crédito dentro de um grupo
reduzido, atuando como credores e devedores.
Mas este grupo podia ser ainda mais seleto. Tanto em Porto Alegre como
em Sorocaba, 77% dos agentes do crédito (credores e/ou devedores) participaram de
uma única transação. Em cada uma das duas localidades, 13% dos agentes do crédito
participaram de duas transações e entre 3% (Porto Alegre) e 4% (Sorocaba)
participaram de três operações. Temos assim um pequeno grupo de 6% a 7% dos
agentes do crédito que participaram de diversas operações. Em Sorocaba, no inventário
de Paulino Aires de Aguirre se contavam 431 operações e no de Andreza de Almeida
Pacheco, 292. Em Porto Alegre, no inventário de José dos Santos Loureiro se contavam
272 dívidas ativas e passivas, e 141 no de José Alves Veludo. E todos os quatro eram
negociantes de loja, o que os colocava numa posição central no mercado de crédito. E
553 FRANCO, Homens livres na ordem escravocrata.
284
com isso não quero concluir que eles controlavam o crédito em suas localidades,
conclusão já apontada por diversos outros autores.
O que quero salientar é que tanto estes quatro negociantes como outros
tantos que faziam parte daquela pequena fração formavam uma corrente de débitos e
créditos que fez, historicamente, os recursos circularem naquelas localidades. Na
verdade, a maior parte destes agentes estava em ambas as posições, credor e devedor,
mas em diferentes momentos de suas vidas. Em certas épocas se destacavam
outorgando e em outras, recebendo. Os ativos e passivos que pude encontrar nos
inventários e nas escrituras permitem visualizar um mercado de crédito muito particular,
manipulado por um pequeno grupo que fazia os recursos circularem entre si ao longo
dos anos, uma dança das cadeiras da liquidez, e era isso o que permitia àquelas
localidades relativamente pobres e com pouco numerário manterem sua economia em
funcionamento. Ao longo do texto, apresento alguns gráficos de redes que mostram a
densidade dos negócios de crédito (a partir das dívidas dos inventários) nas localidades
e como os credores e devedores que mais freqüentavam este mercado estavam
profundamente ligados, direta e indiretamente.
Comecemos a ver isso mais de perto. Em 1796, na Capela do Tamanduá, o
Capitão Manuel Gonçalves Guimarães concedia a 250$000 para o Capitão José Joaquim
Mariano da Silva Cesar, a pedido do Doutor José Joaquim de Oliveira Cardoso. Estes
recursos eram para o costeio de uma tropa que César conduzia.554 Em meados de 1802,
o filho de Manuel Gonçalves Guimarães, o Alferes Joaquim Gonçalves Guimarães,
tomava 496$196 de diversas pessoas através do Cofre dos Órfãos, instituição que reunia
os ativos de órfãos e os administrava, inclusive emprestando numerário. No final
daquele mesmo ano, Joaquim registrava em cartório uma venda fiada a José de Lima
Pacheco, no valor de 451$340, tudo em fazenda seca, provavelmente comprada com os
recursos obtidos junto ao cofre e agora vendida para um terceiro.555
Uma família importante como os Gonçalves Guimarães de Curitiba
ocuparam ao longo de poucos anos diferentes posições no mercado de crédito, ora como
credor, ora como devedor, e sempre de valores expressivos. Vejamos o trajeto dos
554 BN-II-35,25,03-004 555 1TABCUR-027-090; 1TABCUR-027-071; 1TABCUR-027-072; 1TABCUR-027-073; 1TABCUR-027-074.
285
recursos: da mão de Manuel, os recursos foram para o Capitão Cesar, que gastou ao
longo do caminho em produtos para manter os animais. Depois, da mão de diversos
órfãos os recursos se concentraram na de Joaquim Gonçalves, que repassou o crédito
para Lima Pacheco. Importante: Joaquim pagava juros ao longo de todo o tempo que fez
os empréstimos ao Cofre. Enquanto isso havia oferecido a Lima Pacheco um prazo para
pagamento sem juros.
Figura 29 ‐ Rede de credores e devedores de Porto Alegre (1770‐1780)
Fonte: Dívidas dos Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS.
286
Figura 30 ‐ Rede de credores e devedores de Porto Alegre (1770‐1780 ‐ núcleo denso)
Fonte: Dívidas dos Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS.
E não para por aí. Lima Pacheco havia falecido entre a compra e o registro
em Cartório de sua dívida. Provavelmente Joaquim registrou o crédito pois temia ser
esquecido pelos inventariantes. Lima Pacheco não morreu pobre. Ainda em 1802 o
Cofre dos Órfãos emprestava 100$000 pertencentes à Maria, sua herdeira e em 1808,
mais 126$200. Umas destas quantias, a de 1802, foi para João da Silva Pereira, que em
1806 passava em Curitiba com sua tropa, talvez montada com recursos que fizeram tão
longo caminho.
João Pereira Chaves devia muito dinheiro, quando do inventário de sua
esposa, Gertrudes de Lima, em 1777. Entre seus credores, estavam alguns negociantes
de peso na localidade, como José Guedes Luis, assim como gente do Rio de Janeiro,
como José Rodrigues Ferreira, e criadores de animais da região, como Francisco José
Martins. Somente para estes, ele devia 7:660$800. Por outro lado, ele era credor de
alguns dos mais poderosos homens do Continente do Rio Grande, tais como o Coronel
Rafael Pinto Bandeira, o negociante e Capitão Manuel Fernandes Vieira, o Capitão
Domingos de Lima Veiga e o Capitão-mor Manuel Bento da Rocha. Não posso dizer
quando tais dívidas foram feitas, nem em que ordem. Mas de algum modo Pereira
287
Chaves fez circular uma grande quantidade de recursos entre nomes poderosos na região
e fora dela.
José Guedes Luis, um dos credores de Pereira Chaves, surgia, quatro anos
depois como devedor, no inventário de Eufrásia Maria da Conceição, esposa do Tenente
Manuel Alves de Carvalho. O tenente, por sua vez, fora devedor de Francisco Xavier de
Azambuja em 1769, que nesta ocasião era também credor de Rafael Pinto Bandeira e
devia à Ventura Pereira Maciel e ao Padre Tomas Clarque. Não nos afastemos muito do
Tenente Carvalho. Naquele mesmo ano de 1781, quando do inventário de sua consorte,
ele era credor de boas quantias à diversas pessoas, entre as quais, João José Cherem,
morador no Rio de Janeiro, Belquior de Arantes, da Vila de Lages e do tropeiro José da
Silva, cuja dívida estava na mão de Paulino Aires de Aguirre, para ser cobrada. Entre
estes também estava o Guarda-mor de Sorocaba, João de Almeida Leite, com quem
pegamos uma carona para aquela vila.
Figura 31 ‐ Rede de credores e devedores de Porto Alegre (1780‐1790)
Fonte: Dívidas dos Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS.
288
Figura 32 ‐ Rede de credores e devedores de Porto Alegre (1780‐1790 ‐ núcleo denso)
Fonte: Dívidas dos Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, APERGS.
O Guarda-mor Almeida Leite devia para Manuel Alves de Carvalho em
1781, mas era credor de Antonio Bicudo de Almeida quando este último foi
inventariado, em 1791. Bicudo devia para muitas pessoas, mas era credor de outras
tantas. Entre seus credores estavam o Capitão-mor Cláudio de Madureira Calheiros e
Vicente José de Camargo. Entre os devedores, estava Anacleto de Souza Coutinho, que
também devia para Paulino Aires de Aguirre e Andreza de Almeida Pacheco, assim
como o Sargento-mor Francisco Ribeiro de Moraes, que era também devedor de Ana
Maria de Anhaia, esposa de Antonio Leme Cavalheiro. Anhaia e Leme Cavalheiro, por
seu turno, eram credores e devedores (simultaneamente) do Capitão-mor Calheiros, que
fora credor de Salvador de Almeida Lara. Lara também devia para Antonio de Godoi
Diniz que também devia para o Capitão-mor. Godoi Diniz também devia para Salvador
de Oliveira Leme, que devia para seu genro, Paulino Aires de Aguirre, e era credor de
Antonio Leme Cavalheiro.
Acabamos de verificar algumas cadeias de crédito que se estendiam pelo
caminho das tropas, mas que se concentravam nas localidades. Mais interessante,
contudo, é o fato de que na maior parte dos casos, a obtenção de recursos não significa
289
acumulação, mas circulação. Um sujeito obter recursos e tempos depois acaba
repassando aqueles importes. Isso tudo me faz chamar a atenção para dois problemas
que quero aqui discutir: 1) a volatilidade dos recursos, sua rápida circulação, que faz
com que não permaneçam entesourados; 2) a existência de diferentes camadas de
densidade relacional, o que faz os recursos circularem com ritmos e modos diversos ao
longo da rota.
Comecemos abordando o segundo ponto. Vimos que a parcela da população
que atua no crédito em Porto Alegre e Sorocaba é pequena tendo em conta o número de
habitantes das duas localidades. Acresce o fato de que parte daqueles agentes do crédito
eram de fora das localidades. Para Curitiba temos as escrituras, que tendem a provocar
uma imagem ainda mais elitista. Os exemplos que apresentamos acima nos sugerem que
há, dentro da população que atua no crédito, um grupo ainda menor que é composto de
sujeitos relacionados entre si.
Temos, assim, diversas “camadas” de relações: uma primeira, que através de
alguns agentes específicos une os pontos do caminho das tropas; uma segunda, dentro
das localidades, composta pelas inte-relações dos habitantes, do convívio diário, que
não é responsável pela maior parte dos negócios mas que pode garantir, ao menos,
algumas compras fiadas; uma terceira, dentro da anterior, formada pelos agentes mais
atuantes dos negócios de crédito nas localidades; uma quarta e última, que reúne os
grandes credores e devedores, sujeitos que realizam diversas operações ao longo dos
anos e que interligam universos existentes dentro das mesmas localidades. Esta mesma
elite dos relacionamentos e negócios é responsável pela interligação dos pontos do
caminho, ou seja, são os mesmos agentes que ligam as localidades. E é por isso que
Manuel Alves de Carvalho, sujeito central na teia de créditos e dívidas de Porto Alegre,
tinha passado uma dívida para que Paulino Aires de Aguirre cobrasse um tropeiro.
290
Figura 33 ‐ Rede de credores e devedores de Sorocaba (1780‐1790)
Fonte: Dívidas dos Inventários de Sorocaba, AESP.
Figura 34 ‐ Rede de credores e devedores de Sorocaba (1780‐1790 ‐ núcleo denso)
Fonte: Dívidas dos Inventários de Sorocaba, AESP.
291
Unindo os pontos: algumas redes de longo alcance
Já vimos como as informações circulavam com alguma dificuldade entre os
espaços que estamos tratando e que as novas não navegavam aleatoriamente pelo
arquipélago das tropas. Vimos também que havia uma hierarquia social muito clara e
que quem estava no topo desta estrutura era muito cioso de sua posição e tinha formas
para se manter nesta posição. Da mesma forma, vimos como havia diferentes camadas
de confiança, diferentes densidades de relacionamentos, que envolviam os agentes em
diversos grupos simultaneamente. Isso me faz lembrar a noção de escala.
Algumas redes densas poderiam sobrepor-se, mas em escalas diferentes. A
localidade de Viamão era perpassada pelo caminho das tropas de animais, que no século
XVIII abastecia de gado eqüino, bovino e muar a Feira de Sorocaba. Tal rota pode ser
igualmente entendida como uma rede densa, na medida em que a maior parte dos
tropeiros sabia dos negócios dos outros. A documentação privativa dos Registros de
Curitiba e Sorocaba apresenta uma diversidade de evidências neste sentido. Como
unidades arrecadadoras de impostos, os Registros mantinham um sistema de controle e
cobrança dos devedores, já que a grande maioria dos tropeiros não pagava o imposto da
passagem dos gados à vista. O próprio sistema de controle desenvolvido pelo Registro
era baseado na “conversa” e busca “relacional” de informações. Por outro lado, dentro
desta rede densa das tropas, havia redes mais densas ainda, dentro das comunidades,
resultantes do contato diário das pessoas, dos vínculos de parentesco, vizinhança e
amizade.
Este capítulo procurará tratar de algumas redes densas que “uniam os
pontos”, ou seja, articulavam as diversas localidades à margem do caminho das tropas e
outras. Já vimos, em capítulo anterior, que o mercado relacional era bastante restrito.
Havia uma tendência bastante grande, na maior parte das localidades da rota, para se
buscar um parceiro relacional (noivos, padrinhos, sócios, amigos) na mesma localidade
onde cada agente atuava. Entretanto, algumas pessoas conseguiam construir e manter
relações que rompiam barreiras regionais e permitiam a realização de empreendimentos
de vulto superior aos permitidos nas localidades. Para tanto, vamos explorar as ligações
de alguns importantes grupos familiares do caminho das tropas e suas ligações extra-
regionais.
292
Os Calheiros Taques
Em agosto de 1788, o Capitão-mor de Itu, Taques Goes e Aranha e seu
cunhado, o Capitão-mor de Sorocaba, Cláudio de Madureira Calheiros, manifestaram ao
Governador Lorena e à Rainha a vontade de estabelecer uma fábrica em Araçoiaba,
Sorocaba, para a produção de ferro e aço. O ferro viria de um monte naquela localidade,
cujas reservas deveria, segundo Calheiros, durar enquanto o mundo for mundo.556 Mas
para isso os dois capitães faziam algumas exigências: um bom mestre de fundição,
indicado por Sua Majestade, que entraria como terceiro sócio nos lucros; isenção de
impostos por oito anos e exclusividade na exploração do ferro.
Seria um novo investimento em comum dos dois capitães, que já possuíam
uma fazenda em conjunto em Itapetininga desde antes de 1784.557 A idéia parece ter
partido do governador Lorena, que havia lido no 5º Volume da História Filosófica do
Abade Raynal que em Sorocaba havia uma serra com ferro e outros metais. Lorena
encontrou-se em São Paulo com Calheiros que dizem ser de boa conduta e tem seus
créditos de rico e seu cunhado o Capitão-mor de Itu que não sei se pode tanto mas tem
juízo.558 Tal empreendimento, até onde pude verificar, se arrastou por muitos anos, entre
o desinteresse da Coroa em perder os impostos daí resultantes e o desinteresse da
sociedade em arriscar, o que, devido ao preço do ferro na importação, foi considerado
por Calheiros como desvantajoso.
De tudo isso ficam alguns elementos para o problema que ora nos interessa.
Em primeiro lugar, a sociedade feita dentro do vínculo pretérito de parentesco, entre
cunhados, e dentro de uma esfera regional. Restaria explicar porque ambos inventaram
este vínculo, ao casar-se Calheiros com a irmã de Goes e Aranha. Mas a este tipo de
problema tornaremos depois. Além da relação entre os cunhados, havia ainda uma
condição que ressaltava o caráter familiar da empreitada, exigindo que nenhuma pessoa
se possa nela intrometer, e seja somente permitida a nós e a nossos filhos.559 Mas a
aparente prioridade do parentesco na formação da sociedade fica um pouco balançada
pelo fato desta companhia estar a espera de um desconhecido para ocupar o lugar de
terceiro sócio: o mestre fundidor.
556 AHU. SP (Avulsos) Doc.625. 557 AHU. SPMG. 3094. 558 AHU. SPMG. 3207 559 AHU.SP (avulses) Doc.625.
293
Calheiros também fazia negócio com outros que, até onde pude verificar,
não eram membros da família. Em 1797 ele arrematou o contrato das passagens dos
Rios Paranapanema, Apiaí, Itapetininga e Jaguari em sociedade com Francisco Marim
Machado.560 Até este ano, pelo que pude ver, Calheiros arrematava o contrato
sozinho,561 mudando seu comportamento nesta ocasião. Machado era escrivão da
Câmara de Itapetininga e Tabelião na mesma localidade. Não tenho fontes que detalhem
este relacionamento, mas novamente a alternância entre negócios de família e negócios
com terceiros parece ser uma constante do comportamento de Calheiros. Da mesma
forma, a recorrência de sócios de localidades vizinhas (mas não de Sorocaba, ao menos
fora da família) é para nós relevante.
A rede dos Aguirre/Aguiar
Vejamos também o comportamento de outro grupo, a família de Paulino
Aires de Aguirre. Ele era genro de Salvador de Oliveira Leme, do qual já falamos, e
ambos foram acusados pela Câmara de Sorocaba por desordens que estariam
provocando com o objetivo de assumir o posto de Capitão-mor. Poucos anos depois
desta acusação e da vitória de Calheiros, Paulino fazia sociedade com José Vaz de
Carvalho e Francisco Rodrigues de Macedo e, juntos, arrematavam o Contrato dos
Dízimos da Capitania de São Paulo, no valor de 61:100$000. No mesmo ano, Paulino
arrematava também os Meios Direitos de Curitiba, no valor de 31:220$000, os direitos
do Registro das Canoas, no valor de 1:000$000 , os direitos da Passagem do Rio
Curitiba, avaliado em 260$000 e os direitos da Entrada das Minas, de 250$000, mas,
neste últimos, em sociedade com Manuel de Oliveira Cardoso.562
Quem eram os sócios de Paulino? José Vaz de Carvalho vinha de Portugal,
do Aveiro, formado pela Universidade de Coimbra, chegando em São Paulo em 1774
onde logo se casou com a filha de um importante mercador local, também de origem
lusa, Manuel de Macedo, que já havia falecido, e de Escolástica Maria de Matos,
unindo-se, assim, a um importante grupo de negociantes de São Paulo. Em 1786, junto
com Paulino, arremata os Dízimos, onde vão permanecer por muitos anos. 563 Em 1798,
não sei se antes ou depois da morte de Paulino, Carvalho, juntamente com novos sócios,
560 AHU. SPMG. 3488 561 AHU. SPMG. 3136. 562 AHU. SPMG. 3136. 563 ARAÚJO, José Vaz de Carvalho, contratador da capitania de São Paulo.
294
José Arouche de Toledo Rendon, Luis Antonio de Souza e José Manuel de Sá, fazem
novo lance que eleva o valor dos Dízimos de 61:100$000 para 89:200$000, vencendo,
assim a disputa com negociantes reinóis que tinham interesse neste estanco. Em 1806
ele escreveu à Sua Majestade pedindo remuneração por seus serviços, argumentando,
entre tantas realizações, o fato de que “tem o suplicante tratado-se a lei da nobreza
como honrado cidadão e compreendido na mercê de Fidalgo, cavaleiro que concedeu o
Augustíssimo Senhor Dom João V [...] aos que na dita Cidade de São Paulo servissem
de Juízes Ordinários e vereadores.564
O outro sócio, Manuel de Oliveira Cardoso, era Capitão-mor de São Paulo.
Manuel já era arrematador dos direitos do Novo Registro de Lages.565 Em 1786,
participa de todos aqueles rendimentos junto com Paulino e, paralelamente, é o
procurador de Conselheiro Ultramarino Corte Real para a administração dos Meios
Direitos da Casa Doada. Seu filho natural, José Joaquim de Oliveira Cardoso, se
tornaria Desembargador em São Paulo, anos depois.566 Mesmo com a morte de Manuel
de Oliveira Cardoso, em meados da década de 1790, Paulino vai seguir atuando nas
arrematações ao lado de José Vaz de Carvalho, de Francisco José de Sampaio Peixoto e
de Manuel da Silva Reis, Capitão-mor de Guaratinguetá.567 Em 1797, o quarteto
arremata os Novos Impostos de São Paulo e todas as vilas, no valor de 18 contos de
réis, além dos Meios Direitos de Curitiba, no valor de 34 contos.568
Paulino fez também diversos negócios dentro de seu núcleo familiar,
especialmente com seu sogro e seu genro, Antonio Francisco de Aguiar, que lhe
sucedeu na administração dos direitos de Sorocaba. Da mesma forma, seus sócios
também alternaram entre o local e o regional: José Vaz de Carvalho atuava junto com
Sampaio Peixoto, que acabou se integrando a sua família ao se casar com sua filha.
Além disso, logo que chegou à capital, Carvalho logo se integrou a um denso grupo de
negociantes daquela localidade. Também Manuel de Oliveira Cardoso articulava
negócios dentro da família simultaneamente a empreendimentos com não familiares e
pessoas de outros espaços. Ele era procurador de Tomé da Costa Corte Real, em Lisboa,
564 AHU. SP (avulsos) 1223. 565 AHU. SPMG. 2975 566 AHU. SPMG. 3159. Manuel reconhece oficialmente seu filho em 1784 e indica ter pago os estudos no Rio de Janeiro e em Coimbra. 567 AHU. SPMG. 3316 568 AHU. SPMG. 3477
295
senhor da Casa Doada. E para dar conta desta administração, da qual estava
encarregado, se valia de seu sobrinho Francisco de Paula Teixeira.569
Por seu turno, o Capitão-mor de Guaratinguetá, Manuel da Silva Reis,
também foi arrematador dos direitos do Rio Paraíba,570 junto com José Dias dos Santos,
vereador e Capitão de Milícias em Lorena, vila vizinha da qual o próprio Silva Reis fora
Capitão-mor, em caráter excepcional, e na qual mantinha interesses.571 Silva Reis atuou
em concordância com as Câmaras de Lorena e Guaratinguetá, além de ter o apoio do
governador e de outros membros da elite local, tudo em função dos abusos atribuídos ao
Sargento-mor de Lorena, Antonio Lopes de Lavre. Importa ressaltar, ainda que José
Vaz de Carvalho e Manuel da Silva Reis eram vizinhos, em fazendas que tinham em
Guaratinguetá,572 além de sócios.
Este último elemento, somado aos interesses conflitantes de Calheiros e
Aires de Aguirre em Sorocaba, me fazem lembrar outro elemento importante que limita
a ação dos sujeitos que estamos observando, os conflitos locais intra-elites. Segundo
Bacellar, Famílias estabelecidas na mesma vila excluíam-se mutuamente, e seus filhos
não se casavam entre si. [...] rixas políticas e econômicas locais promoviam a
aproximação ou o afastamento de famílias.573 Estes conflitos certamente entravam no
jogo e complicavam a agência daqueles homens e mulheres, podendo exigir alternativas
fora da localidade para as necessidades de relacionamentos das famílias.
A rede da qual Paulino Aires de Aguirre fazia parte funcionou
eficientemente entre o início dos anos 1780 e os anos 1800 pelo menos. Mas ele faleceu
em 1798, sem que isso tenha comprometido os alinhamentos entre os demais aliados.
Paralela à rede de Paulino, nos anos 1790, havia outra, que de algum modo se inseria
naquela, a de Antonio Francisco de Aguiar. Aguiar era genro de Paulino e membro
relevante dentro do arranjo familiar. Após a morte de Paulino, a família não perde a
totalidade de seus vínculos, mas os investimentos relacionais sofrem alguma alteração.
A família perde, parcialmente, a proximidade com o núcleo de sócios que participava
569 BN-35,25,25-27; BN-35,25,17; BN-35,25,03. 570 AHU. SPMG. 3136 571 AHU. SPMG. 3316 572 AHU. SPMG. 3011 573 BACELLAR, Os senhores da terra: família e sistema sucessório de engenho no oeste paulista, 1765-1855, 90.
296
ativamente das arrematações, mas direciona seu foco para uma política de relações
muito mais vasta.
Sendo administrador do Registro de Sorocaba e da Casa Doada, ele devia
regularmente enviar barras de ouro e prata, além de dinheiro de contado, para São
Paulo, tarefa para a qual não dispunha de ajudantes. Um grupo que somou cerca de
vinte pessoas, ajudava na administração da Casa Doada, sem receber nenhuma
remuneração. Era um seleto grupo que contava com a total confiança de Aguiar, e que
era encarregado de levar os ricos malotes de Sorocaba para São Paulo, de onde
partiriam para Santos e daí para Lisboa. É com base nestes sujeitos que farei a análise
da rede de Antonio Francisco. É certo que é um procedimento muito diverso daquele
que utilizei para observar as relações de Paulino, mas em ambos os casos, é o material
que disponho e com ele se pode fazer muita coisa.
Este pequeno grupo de “portadores” voluntários vinculados a Antonio
Francisco de Aguiar era uma fração bastante prestigiosa. O maior portador era o Padre
Manuel Caetano, filho do Capitão Francisco Luis de Oliveira, que havia sido vereador
em Curitiba em 1780. O segundo maior emissário de valores de Antonio Francisco, em
termos monetários, foi seu cunhado, o Capitão-mor de Sorocaba, Salvador de Oliveira
Aires. O terceiro colocado, também em termos monetários, José Fernandes Nunes, era
vereador em São Paulo em 1797, além de ser Tenente-Coronel. Do quarto, Antonio de
Godoi Diniz, sei que era mercador de loja, no que tinha ganho, em 1801, cerca de 1
conto de réis e possuía doze cativos. Do quinto, Américo Antonio Aires, já era Capitão
de Milícias havia alguns anos quando fez sua primeira remessa de valores a pedido de
Aguiar, além de ser seu parente próximo. Dentre os demais estavam o Capitão Bento
José Leite Penteado, o compadre e Coronel Francisco Xavier dos Santos, o Coronel
Bento Manuel de Almeida Pais, o sogro e Tenente-Coronel Paulino Aires de Aguirre, o
Capitão Domingos Inácio de Araújo, o Cirurgião-Mor Manuel Magalhães dos Santos
Rego, o vereador em São Paulo, João Lopes França e o Alferes José Correia de Toledo.
Destaca-se neste seleto grupo, que gozava da mais alta confiança do
administrador Aguiar, uma preferência pelos vínculos de parentesco. Mas o que é mais
saliente é o elevado nível hierárquico dos homens confiáveis de Aguiar, a grande
maioria deles com altos postos militares e quase sempre lideranças locais. Note-se que o
297
critério para a seleção deste grupo, feito por Aguiar e por mim adotado, era de pessoas
confiáveis e aptas para conduzir valores de Sorocaba para São Paulo, ou seja, além de
reputadas aos olhos de Paulino, deveriam ter, casualmente, uma viagem programada
para a capital, mais ou menos no momento em que Aguiar tivesse dinheiro em caixa.
Isso deve conduzir a uma grande concentração de sorocabanos e paulistanos nesta
seleção, como de fato acontece. Ainda assim, pudemos identificar um vínculo que
chegava até Curitiba, através do padre Manuel Caetano e seu pai. Afora isso havia o
Capitão-Mor de Itapetininga, seu aparentado, além de José de Andrade, que era amigo
de Aguiar e capitão em Taubaté. Os gráficos abaixo apresentam as posições destes
agentes nas suas transações com Aguiar.
Figura 35 ‐ Rede de Antonio Francisco de Aguiar (incluindo apenas os "portadores" de remessas)
Fonte: BN‐II‐35, 25, 25‐27
298
Figura 36 ‐ Rede de Antonio Francisco de Aguiar (incluindo portadores e outras alianças)
Fonte: BN‐II‐35, 25, 25‐27
Ainda estamos no campo de visão mais restrito de Antonio Francisco de
Aguiar. Se ampliarmos um pouco a análise da rede, veremos que ela atinge diversas
localidades bem distribuídas geograficamente, chegando com força à Itapetininga,
Curitiba e Taubaté. Domingos Inácio de Araújo, por exemplo, era o procurador de
Manuel Gonçalves Guimarães, que era tenente-coronel naquela praça. Para além das
relações de Aguiar, havia a própria unidade arrecadadora de Curitiba, onde Manuel José
Correia da Cunha fazia seu trabalho e criava suas relações. Em Santos havia,
igualmente, parte do aparato da Casa Doada, representado pelo irmão de Antonio
Manuel Fernandes da Silva, Luis Pereira Machado. Mas antes de nos determos nestes
contatos, vejamos um pouco mais a projeção espacial e demográfica da rede de Aguiar.
Devemos considerar que cada um daqueles personagens, secundários na
rede de Aguiar, tinha por sua vez suas próprias redes, de diferentes densidades, em
diferentes localidades. Se medirmos o impacto demográfico, apenas com estes vínculos
com as elites locais destas localidades ele teria condições de atingir indiretamente um
contingente populacional enorme em um espaço bastante estendido. Esse impacto se
amplia se considerarmos o peso dos capitães nas diversas regiões onde atuavam, seus
299
recursos locais, suas parentelas, escravarias e relações. O leque de relações de Aguiar se
amplia apenas se considerarmos pontualmente algumas de suas relações. Importante
negociante da capital, José Vaz de Carvalho tinha negócios em Taubaté e Curitiba, além
de outras localidades do interior. Era arrematador dos meios direitos de Curitiba, dos
direitos do Registro de Cima da Serra e dos “novos impostos” de toda a Capitania de
São Paulo.
Some-se a isso a própria circulação no Registro de Sorocaba, onde Antonio
Francisco tomava contato com diversos tropeiros, podendo criar ou reforçar laços
pretéritos ou apenas tomar informações. Entre os tropeiros, encontramos diversos que
ocupavam postos de poder local em diversas comunidades da Capitania de São Paulo.
Antonio Ribeiro de Andrade era oficial da Câmara de Curitiba e Capitão-mor da
Freguesia de São José, na mesma vila. Também fora vereador em Curitiba Estevão José
Ferreira e Manuel Soares do Vale. Eleutério da Silva Prado fora vereador em Jundiaí,
assim como Francisco Martins do Monte e José Mariano de Oliveira. Veríssimo José
Gomes fora vereador em Paranaguá, além de pertencer ao Regimento de Cavalaria de
Curitiba. José Carneiro Lobo era da Câmara de Castro onde sua família tinha grande
importância. Antonio da Cunha Fortes era Oficial da Câmara de Pindamonhangaba e na
mesma instituição, em Mogimirim, estiveram Joaquim de Morais Bueno e Demétrio
José de Macedo. Em Lages, Antonio José Pereira era Juiz presidente da Câmara e
alferes da Cavalaria Miliciana local.
É certo que, como nos indica Nuno Monteiro, as Câmaras de localidades
periféricas não tinham o mesmo significado dos conselhos municipais de grandes
localidades, como o do Rio de Janeiro no final do XVIII ou de Lisboa. De qualquer
modo, não deixava de ter alguma importância numa sociedade sem hierarquias
institucionais (tais como a diferença entre nobreza e terceiro estado), onde pertencer a
uma Câmara, à Misericórdia ou deter algum posto de comando já significava algum
prestígio e distinção. E, como vimos, diversos destes sujeitos ocupavam igualmente
postos militares e políticos em suas localidades. Pude encontrar ao menos 44 tropeiros
referidos com postos militares ou eclesiásticos, dos quais se destacam 14 capitães, 12
tenentes, 5 alferes, 4 padres e 4 tenentes coronéis. Não estamos querendo dizer, com
isso, que tivessem algum relacionamento com Aguiar e seus amigos da Casa Doada
apenas por passar no Registro. O que queremos dizer é que esta atividade propiciava um
300
“meio ambiente” favorável para o contato entre as elites regionais, favorecia a criação
de uma densidade deste grupo.
Observando os negócios e o raio de alcance de Antonio Francisco de Aguiar
e seus parceiros da Casa Doada, não apenas da administração da mesma unidade
arrecadadora, mas das próprias oikonomias de seus membros (já que, como vimos, estas
coisas se confundiam) percebemos que há certa circunscrição espacial, um limite
geográfico não muito claro. Na medida em que saímos da zona formada por São Paulo,
Sorocaba, Jundiaí, Santos e Curitiba, a presença daqueles administradores vai se
diluindo. Em direção ao sul, por exemplo, já em Lages anda apagada para escurecer-se
ainda mais nos Campos de Cima da Serra e finalmente se apagar em Viamão, onde
tinham pouco alcance. Mesmo em Curitiba o brilho não era o mesmo que em Sorocaba
e São Paulo. Para o norte, pouca força dispunham nas Minas e mesmo no Rio de
Janeiro. Em termos locais era uma elite importante e densa, mas sem um alcance muito
maior.De qualquer maneira, o espaço de atuação de Aguiar era imenso, e
particularmente privilegiado para poder, entre outras coisas, monitorar tropeiros e
cobrá-los.
Em um outro trabalho concluí que a elite do Rio Grande de São Paulo,
capitania mais ao sul, apesar de forte naquela região, não dispunha de força em outros
espaços e não buscava disputar interferir em outros espaços, apesar de investir em
relações com outras elites regionais. For por isso que Evaristo Pinto Bandeira,
importante membro de uma das mais fortes facções da elite local, casou-se com
Cristina, da família Pacheco de Miranda, importantes negociantes de animais da região
de Curitiba. Isso nos faz pensar que as elites do centro sul do Estado do Brasil tinham
sua densidade maior na localidade e apenas estendiam seus laços junto a outras elites
regionais. A principal costura era com os grupos que constituíam sua base social e com
seus vínculos familiares mais próximos (e em ambos os casos havia relações ainda mais
densas). Um “arremate” ligava as diferentes elites regionais, feito a partir de negócios e
parentescos. Hipoteticamente, para um membro da elite de Sorocaba acessar um peão
em Viamão, lançaria mão de uma rede de contatos através das elites regionais até a elite
301
viamonense, que rapidamente teria como localizar aquele peão em sua densidade
local.574
Justamente nestes laços intra-elites regionais estava um dos pontos chave na
reprodução das próprias elites. Além do fato óbvio de que elas se reconheciam
mutuamente, eram estas alianças que favoreciam a aquisição de informação e permitiam
um maior controle social, o que contribuía para a manutenção daquela ordem. Neste
sentido, as elites regionais atuavam na mediação (brokerage) dos contatos inter-
regionais e garantia assim uma recepção privilegiada daqueles recursos advindos do
controle da informação. Eram eles que alinhavavam os pequenos retalhos da grande
colcha que me parecem ser os territórios do sul da América.
É claro que a informação e o controle social também estavam, digamos,
disponíveis para os estratos mais baixos daquela sociedade, mas num nível muito local.
Podemos ainda avançar nesta hipótese e argumentar que este mesmo panorama se dava
em uma escala menor, dentro das próprias localidades, intra-bairros, o que permitia a
saliência de outros “mediadores”, menores, mas igualmente importantes no conjunto
social. Tais relações se constituíam nos principais recursos daqueles homens e
mulheres.
Este modelo, estaticamente descrito, não era nem um pouco estático. Ele
permitia uma concentração de poder crescente. Da maneira como descrevemos, com as
elites locais estabelecidas e tendo prioridade nos contatos com as demais, tal parece
iniciar-se nas no último quartel do XVIII. Antes disso não percebemos, especialmente
no Rio Grande, uma consolidação visível dos arranjos de poder local, dinamizados
durante e após as guerras de reconquista. Da mesma forma, os mesmos conflitos
favoreceram grupos na Capitania de São Paulo, como o próprio Antonio Francisco de
Aguiar e sua família. O comércio dos muares reforçou este cenário, permitindo a
comunicação e o enriquecimento. Uma evidência maior disso é a herança deixada por
aquelas elites do final do XVIII ao século seguinte: o Brigadeiro Rafael Tobias de
Aguiar, neto de Antonio Francisco, seria uma das maiores lideranças em São Paulo no
XIX, representando Itu nas Cortes de Lisboa e governando a Província, logo após a
independência. No Rio Grande, igualmente, a herança dos Pinto Bandeira foi a que se 574 GIL, Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).
302
consolidou nas décadas seguintes, através de seu primo Manuel Marques de Souza, e
que permaneceu, em boa medida, ao longo do século.
Sobre o que circula: uma dança das cadeiras
Já vimos que os grandes credores não estavam socialmente abaixo dos
grandes credores, pelo contrário. Não apenas pelos qualificativos que ostentavam, mas
por sua agência e performance dentro da sociedade local, os devedores estavam entre os
mais poderosos agentes de suas localidades, comandando escravos e soldados,
ocupando diversas propriedades, concentrando relacionamentos e fazendo circular um
grande volume de recursos. Darei atenção, agora, à forma e à velocidade com que estes
sujeitos faziam circular os recursos. Para tanto, é conveniente tentar compreender que
mercados existem nesta sociedade. Diversos antropólogos já salientaram a forma como
certas sociedades classificam diferentemente certos tipos de troca, as comerciais
vulgares daquelas consideradas nobres (o kula, por exemplo), as dádivas comuns e as
agonísticas (como o potlatch), assim como as oferendas destinadas para os seres
sobrenaturais.575 Ao classificar estas formas de circulação, é preciso, contudo, lembrar
que aquelas pessoas organizavam o mundo de um modo muito diverso do nosso.
Ao observar as coisas que eram trocadas no recorte que estamos
observando, podemos apontar diferentes qualidades de mercados, classificados de modo
diversos por serem considerados diferentes entre si, segundo as definições êmicas. O
dote, por exemplo, é uma troca onde se dá uma filha (sem aliená-la, ela segue sendo
filha) e certa quantidade de recursos em troca de um genro, objeto precioso na política
doméstica e local, candidato ao posto de chefe do grupo familiar. As oferendas feitas ao
sobrenatural, o potlatch funeral, era igualmente uma forma de fazer circular os bens em
troca de salvação e prestigio familiar. Neste mesmo sentido, a caridade também era uma
forma de circulação de bens que previa a salvação como contra-dádiva, um
investimento a longo prazo. Isso tudo sem falar das heranças e da compra e venda,
575 Podemos citar os trabalhos de Malinowski e de Mauss como exemplos desta avaliações. Sobre este tema, estamos partindo de algumas idéias desenvolvidas por Godelier. MALINOWSKI, Bronislaw, "Kula; the circulating exchange of valuables in the archipelagoes of Eastern New Guinea," Man 20 (1920); MAUSS, Marcel, "Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas," in Sociologia e Antropologia (São Paulo: Cosac Naify, 2003); GODELIER, O Enigma do Dom.
303
considerando a variedade de formas que estas poderiam ter. Da mesma forma, o
mercado de crédito fazia os recursos circularem entre aqueles homens e mulheres.
Em 1941, Jorge Luis Borges publicava Ficciones, livro no qual estava um
conto intitulado La Lotería en Babilonia, onde Borges narrava a história de um jogo de
origem plebéia, promovido na Babilônia, que de uma simples brincadeira de apostas se
transformou, com o passar do tempo, em um grande sistema que decidia o destino de
todos os habitantes. Já não havia apostadores, todos participavam. E não só havia um
vencedor como também havia perdedores. De acordo com os resultados, os vencedores
ascendiam ao topo da sociedade, enquanto os perdedores poderiam ser presos, mortos
ou escravizados, e tudo isso poderia mudar em questão de alguns sorteios.
Guardadas algumas proporções, movimento semelhante era promovido
entre os homens que estamos observando. No seu comércio, os homens acabavam
tomando algumas posições ao longo de suas vidas. Alguns enriqueciam, muitos
sobreviviam e outros se desesperavam. E aqueles que sobreviviam podiam promover
certos atos que, de acordo com seu sucesso, poderia garantir o enriquecimento ou a
miséria. Quanto aos enriquecidos, havia um momento em suas trajetórias que as coisas
eram redefinidas e uma espécie de loteria da babilônia ocorria. Este momento era a
morte, e por diversas razões. Era neste momento, em muitos casos, que se fazia a
partilha dos bens, muitas vezes através de um inventário. Era neste momento que se
promovia o acerto de contas das dívidas ativas e passivas, ou ao menos se reconheciam
estas transações. Também era neste momento que se faziam gastos com enterro, luto,
missas e outras oferendas, assim como outros desejos expressos em eventuais
testamentos, onde também se encontram, muitas vezes, acertos de contas terrenas.
O momento da partilha e da execução do testamento, contudo, é a versão
mais pirotécnica, digamos assim, de um movimento maior, silencioso, que se
desenrolava de forma cotidiana. A montagem de uma tropa de animais, por exemplo,
era antecedida de uma acumulação de recursos, o que poderia ocorrer através de
negócios vários: empréstimos, compra e venda, heranças, dotes, adiantamentos, etc.
Estes recursos eram empregados em animais, em sal, aluguel de campos, contratação de
peões para o costeio das bestas, impostos e na manutenção diária das necessidades dos
tropeiros, especialmente alimentares. Muitos destes gastos eram pagos à vista, mas
304
outros tantos eram fiados. A venda dos animais em Sorocaba poderia significar a
obtenção de um grande valor, se bem vendidos, e este recurso seria, com o passar do
tempo, usado para pagar os tributos, devolver os empréstimos (alguns com juros), e
promover outras formas de circulação, como dotes ou empréstimos para outros. E tudo
isso poderia levar meses, até anos.
O mesmo processo poderia ocorrer em cada safra. Vimos que a maior parte
das populações que habitavam as margens do caminho vivia prioritariamente da
agricultura. Uma boa safra ou sua perda poderia significar um casamento bem
arranjado, com um bom dote, ou a frustração. Ou ainda a falta de recursos para a
montagem de uma tropa ou, quem sabe, a compra de mais animais. A própria montagem
de um casal era um “sorteio”. Muitas vezes era algo lento, com a união religiosa seguida
da residência junto aos pais da noiva ou do noivo, para a posterior constituição de um
novo fogo. Mas a união de dois grupos familiares, dos eventuais recursos do rapaz com
um aguardado dote era uma forma de modificar a posição dos agentes no jogo social. E
tudo isso continha sua parcela de azar. Contudo, interessam aqui, mais que o azar, os
elementos sociais que orientavam o comportamento dos atores. Até porque, no mais das
vezes, o azar de uns era produto da sorte de outros.
A série de dívida, a cadeia de endividamentos que vimos, era uma forma
aparente da série de eventos que formava a lenta loteria da babilônia entre os homens
que estamos observando. E isso tudo poderia significar muito no cotidiano daqueles
homens e mulheres, inclusive em termos de mudança de status, de condição jurídica ou
situação econômica. O que deveria ser para um escravo poder entrar neste lento jogo
tornando-se devedor de uma soma, o suficiente para a alforria ou, mais provável, um
tanto que simplesmente o distinguiria da malta sem crédito algum. O mesmo pode ser
dito para a China Ana. E tudo isso, por mais sutil que pareça, era muito em uma
sociedade onde ser agregado de alguém ou receber agregados significava uma enorme
distância social. E isso não significava algo apenas para os grupos mais empobrecidos.
Em uma economia pouco monetarizada como esta que estamos estudando, o acesso ao
numerário era um requinte que poucos agentes podiam dispor.
Quando Paulino Aires de Aguirre morreu, em 1798, tinha cerca de 7,8
contos de réis em dívidas ativas, que estavam nas mãos de mais de 400 devedores. Não
305
sei se todas estas dívidas foram cobradas neste momento, mas acredito que não. De
qualquer forma, elas foram distribuídas, junto com os outros ativos, entre os herdeiros, e
agora contavam como recursos de qualidades diversas em diferentes mãos. Por mais que
fossem da mesma Casa, talvez fosse diferente dever para Paulino e dever para Antonio
Francisco de Aguiar, seu genro e um dos herdeiros, sujeito que Paulino fez incluir em
sua família havia alguns anos. Mas o mais interessante não é, como já disse, o brilho
deste momento de ruptura, a morte de Paulino, mas o lento e silencioso deslizamento de
recursos patrocinado por ele ao longo de muitos anos para um grupo de centenas de
pessoas e o quanto isso podia significar para aqueles devedores e para a produção diária
das relações entre Paulino, seus interlocutores econômicos e o restante da comunidade.
Talvez o dinheiro que Josefa Duarte devia em 1797, por exemplo, só pudesse ter sido
obtido porque Pedro Domingos da Silva, seu credor, sabia que poderia contar com
Paulino no futuro, ou talvez já tivesse contado no passado.576
A própria fortuna de Paulino, que ia muito além de suas dívidas ativas, foi
em boa parte constituída por dois lucrativos negócios nos quais ele atuava: o contrato
dos Meios Direitos de Curitiba e a cobrança dos Dízimos da Capitania. Deste modo, a
concentração de sua riqueza estava baseada na diminuição da riqueza dos outros, e
melhor, o aumento deste contrato dependia do sucesso dos negócios alheios: boas
colheitas, muitas e volumosas tropas e boas criações propiciavam a concentração de
recursos pelos demais agentes, com a posterior desconcentração coletiva no pagamento
dos dízimos, momento em que estes recursos vertiam para os cofres do contrato, de
Paulino e seus sócios. Mas estes recursos não ficavam presos à comunidade. Boa parte
deles vinha de outras áreas, trazidos pelos tropeiros ou por outros negociantes, assim
como uma parte substancial seguia para os cofres de Sua Majestade, quando da
arrematação dos contratos. Assim, aqueles homens e mulheres se encarregavam de
concentrar e desconcentrar recursos, que de mãos de tropeiros antes endividados e então
endinheirados, iam para a Casa de Paulino e dali para tantas outras Casas, inclusive a
Real.
Algo interessante ocorreu com Escolástica Maria de Matos. Filha do rico
negociante paulista Gaspar de Matos, casou-se com outro mercador, Manuel de
576 AESP-INVC00570. Inventário de Paulino Aires de Aguirre; AESP-INVC00569. Testamento de Josefa Duarte.
306
Macedo, que se incorporou ao núcleo familiar. Mortos os dois, seus recursos
concentrados ao longo de anos de comércio foram parar nas mãos de Escolástica e de
sua filha Escolástica Joaquina de Macedo. Em 1775, José Vaz de Carvalho se casa com
Escolástica Joaquina e passa a controlar todos aqueles recursos. Com certa ajuda de um
novo aparentado, Antonio Fernandes do Vale, passa a se envolver em diversos negócios
e promove, assim, uma concentração ainda maior. Não tenho registros de empréstimos
feitos por Vaz de Carvalho, mas sua concentração de riqueza, somada ao crescimento de
sua posição social (passando rapidamente para postos relevantes da nobreza local, como
Coronel) junto de sua reputação fizeram que ao longo dos anos, ele atuasse diversas
vezes como fiador. Em uma delas, particularmente, um sujeito chamado José Manuel
Tavares da Cunha ficou devendo no Registro de Curitiba com título de afilhado do
Coronel José Vaz.577 Era uma forma diversas de fazer os recursos circularem. Sem
querer diminuir a riqueza material de Carvalho, seus recursos relacionais eram
impressionantes.578
Em 1779, Luis Antonio de Albuquerque comprou uma centena de potros de
João Francisco de Almeida para montar uma tropa. Menos de um mês depois, ele
pagava uma pequena parcela de sua dívida, mas seguia devendo 100$000.579 Não sei
quando Albuquerque pagou sua dívida. Mas sei que pagou, pois no inventário de
Almeida, em 1791, o nome daquele tropeiro não aparecia. De qualquer forma, ele
dispôs dos animais para poder vendê-los, provavelmente antes de pagar. E João
Francisco de Almeida também contribuiu, através de outros negócios, para aquela lenta
loteria. Ele também outorgou recursos para outros sujeitos, como Evaristo Pinto
Bandeira e Manuel José Machado. Além de dever para outros, inclusive para o Contrato
dos Dízimos, o que formaria, à sua maneira, uma nova concentração de recursos para
ser desfeita em concessões e empréstimos. Interessante notar que ao menos os três
devedores que listei aqui tinham ligações com Curitiba: Pinto Bandeira, Machado e
Albuquerque. Chamo a atenção disso, pois o próprio Almeida era originário daquela
Vila, e talvez estivesse fazendo negócios com antigos conhecidos.580
577 BN-II-35,25,03-023; BN-II-35,25,05. 578 ARAÚJO, José Vaz de Carvalho, contratador da capitania de São Paulo. 579 1TABPOA-006-038 580 1COAPOA-10-159; 1TABPOA-006-038; 1TABPOA-006-039. ACMPOA. Livros de Batismos de Viamão 04. Fl. 102, 147.
307
Estes dois últimos exemplos nos lembram que para que os negócios
ocorressem, era preciso que quem necessitava de recursos encontrasse quem dispunha
deles e já vimos que as pessoas se inseriam socialmente através de camadas de
diferentes intensidades relacionais e dependendo disso e de sua necessidade (assim
como da reputação que tinham dentro destas esferas de relações) poderiam obter
sucesso. Aqueles homens e mulheres, contudo, inventaram uma forma eficiente de
acelerar a concentração de recursos para posterior redistribuição. Falando mais
claramente: criaram uma instituição que poderia reunir recursos diversos e oferecê-los.
Era o Cofre dos Órfãos. Coordenado pelo Juiz dos Órfãos, servia para guardar os
valores pertencentes àquelas pessoas consideradas de menor idade (menos de 25) cujos
pais haviam morrido. Em certos casos um tutor era designado para administrar os bens,
em outros, os recursos iam para o Cofre.
Em Curitiba, especialmente durante a década de 1800, o Cofre funcionou
plenamente, realizando diversos empréstimos ao longo do período. Vimos que Joaquim
Gonçalves Guimarães obteve quase meio conto de réis no Cofre de Órfãos, da soma de
quatro ativos de Órfãos, tudo em meados de 1802.581 Da mesma forma, em 1786, Ana
Maria de Jesus pode valer-se do Cofre obtendo 59$175, valor proveniente dos ativos de
diversos Órfãos, que somados formaram a quantia que Ana Maria necessitava.582 No
lado oposto, o numerário dos Órfãos de Francisco Xavier Pinto eram dispostos a João
Ferreira de Oliveira em 1806, no valor de 88$958. E não era a primeira vez que os
recursos concentrados por Xavier Pinto eram distribuídos: em 1786 ele registrava duas
transações, uma com animais, no valor de 1.780$500 que havia concedido para
Domingos Inácio de Araújo e outra, provavelmente de empréstimo que havia feito para
Antonio dos Santos Teixeira. E não seria difícil encontrar uma série de trocas que
tiveram Araújo como agente principal, o que certamente só aconteceu com a ajuda de
gente como Xavier Pinto.
Ao todo, na década de 1800, o Cofre foi responsável por 33 empréstimos,
feitos com os recursos de diversos órfãos, somando 3.187$049, o segundo maior ativo
em circulação na Vila, 18% dos empréstimos feitos em escrituras, patrocinando
inclusive negócios que engordariam as caixas de gente que dentro em breve poderiam
581 1TABCUR-027-071; 1TABCUR-027-072; 1TABCUR-027-073; 1TABCUR-027-074. 582 1TABCUR-022-056
308
retornar ao Cofre, como vimos no caso de José de Lima Pacheco. Tal instituição pode
até soar como impessoal, mas não o era. Cada transação feita com dinheiro dos órfãos
especificava de que órfãos provinha o dinheiro. Cada vintém estava associado à uma
família. O dinheiro não era, digamos, homogeneizado e redistribuído, como se faz no
atual sistema bancário, onde nunca se sabe a quem pertencia o dinheiro que tomamos
emprestado. O devedor, mesmo tomando através do Cofre, sabia que a quantia era de
uma pessoa em carne e osso, e sabia quem era ela.
Em meados de 1810, dois sujeitos tomaram quantias do Cofre de Curitiba.
José Mendes Machado arrecadou 292$454 e o Capitão Manuel Gonçalves Guimarães,
filho do então Tenente Coronel de mesmo nome, 131$660. A origem era a mesma: os
ativos dos órfãos de Manuel Vaz Torres. Não sei ao certo para onde iam estes valores
ou mesmo exatamente como Vaz Torres os havia obtido. Mas sei que este último fora
muitos anos ocupado como Tesoureiro da Confraria da Senhora do Rosário dos Pretos,
em São José, próximo à Curitiba e pode, em 1806, tomar uma quantia emprestada ele
também. E tal como as anteriores que havia concedido a outros, esta também havia sido
registrada em Cartório. E quem fiou o crédito de Manuel Vaz (mesmo sendo tesoureiro
teve que apresentar fiador) foi o Tenente Coronel Manuel Gonçalves Guimarães, pai
daquele que receberia os recursos dos Órfãos depois. Lentamente, os recursos
deslizavam entre os agentes e acabavam voltando para as mesmas mãos.583
Os cofres eram previstos nas Ordenações Filipinas, mas seu uso é desigual
em todo o território luso ao longo do tempo. Em Porto Alegre e Sorocaba, há diversas
referências de devedores do Cofre, ainda que isso quase não apareça nas escrituras,
como em Curitiba. De qualquer maneira, tal concentração de recursos era fonte de
liquidez para uma diversidade de agentes, ainda que o acesso à tal crédito fosse mediado
por outros fatores. Não pude investigar profundamente como isso se dava em Curitiba, e
ainda menos em Porto Alegre e Sorocaba. Para o Rio de Janeiro, Fragoso aponta um uso
seletivo do Cofre, baseado nos relacionamentos dos grupos próximos ao Juiz de
Órfãos.584
583 1TABCUR-030-095; 1TABCUR-031-077; 1TABCUR-031-071 584 FRAGOSO, À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c.1600 – c.1750).
309
De modo análogo ao Cofre, Irmandades e Confrarias acabavam também
concentrando riqueza que poderia ser distribuída, depois, especialmente entre os
membros. Em Curitiba, a Confraria do Rosário dos Pretos fez ao menos três
empréstimos ao longo do período que tomei, registrados em escrituras. As Irmandades
tinham função semelhante. Em Porto Alegre, Sorocaba, Rio Grande e Rio Pardo,
encontrei diversos créditos destas instituições, ainda que a maior parte fosse de dívidas
relacionadas ao pagamento regular dos membros. Mas ao menos uma foi por um
empréstimo a juros, em 1791 no Viamão, no valor de 366$800, para José Borges Pinto
do Azevedo. De qualquer maneira, estas instituições tinham outro objetivo, considerado
mais elevado que o fornecimento de crédito, que era proporcionar ao seus membros uma
filiação sobrenatural que garantiria sorte no “sorteio” final, na hora do juízo da cada um,
diante do perigo de uma existência breve ou longa no fogo do purgatório ou mesmo no
inferno.
Para isso basta recordar o que já vimos do potlatch funeral. Paulino Aires de
Aguirre aplicou mais de um conto só em oferendas e missas, fazendo circular uma
grande quantidade de recursos. José Vieira Nunes também investiu quase meio conto
em missas e oferendas, sendo que boa parte disso era destinado à duas irmandades das
quais fazia parte. E todos estes recursos, somados às doações para obras pias e capelas,
era redistribuído à uma grande quantidade de sujeitos. Há diversos casos em Curitiba,
Sorocaba e Porto Alegre, de religiosos, especialmente padres, emprestando dinheiro
para diversas pessoas, inclusive valores superiores a um conto de réis. Não sei se isso
era feito com recursos obtidos pelos religiosos, especialmente sua côngrua, ou se
contavam com dinheiro das Paróquias. De qualquer maneira, os recursos circulavam. A
construção de edifícios religiosos, templos, altares, sedes de irmandades, conventos e
outros, era outra forma eficiente de movimentar aqueles recursos doados por gente
como Paulino, tendo como destino alguns mestres pedreiros e carpinteiros, dentre outros
braços, o que levava muitos anos.
A lentidão desta loteria era própria do ritmo de vida daquelas pessoas, muito
relacionado à lavoura e ao próprio ciclo das tropas. Os empréstimos para tropas, por
exemplo, eram muitas vezes concedidos com prazo de 18 meses, tempo considerado
310
suficiente para a viagem, venda e retorno dos tropeiros.585 Por outro lado, a própria
movimentação entre as localidades, o ritmo de circulação de informações, era de um
modo geral bastante lento, e poucas atividades podiam ser medidas em horas. A grande
maioria das escrituras estabelece o prazo em meses ou anos, pouquíssimas em dias. E
ainda podia ser pior: as missas que eram encomendadas para a salvação das almas, em
alguns casos, só seriam cumpridas ao longo de meses e anos, permitindo, talvez, uma
temporada maior no purgatório. Paulino Aires de Aguirre, por exemplo, deve ter
esperado algum tempo para que as 1000 missas que encomendou para si fossem ditas e
fizessem efeito, garantindo sua transferência para a bem-aventurança que esperava. É
claro que os benefícios terrenos vieram antes, e foram redistribuídos entre os membros
de sua família.
585 1TABPOA-011-138; 1TABPOA-012-093; 1TABCUR-022-126; 1TABCUR-030-099; 1TABPOA-008-083
311
Capítulo 12 Esferas de troca e formas de crédito: geração, significado e
manutenção
Sobre bens e esferas de troca. E sobre o que ficava parado
Que bens circulavam e em que esferas? Comecemos com um recurso muito
especial naquela sociedade: os serviços, termo utilizado para referir aos feitos de algum
sujeito em benefício do Império, sua “folha de serviços” (participação em batalhas, uma
longa atuação como oficial, atitudes em benefícios de necessitados, etc). Tais bens não
podiam circular entre os homens, servindo apenas para a economia restrita entre o Rei e
o súdito que realizou os serviços. Era uma espécie de moeda de troca que podia ser
convertida em títulos e comendas, desfrutáveis pelo autor dos serviços e de algum modo
compartilhados com sua família. Tal bem, contudo, poderia entrar numa esfera de trocas
muito específica, dentro da economia doméstica, através da herança. Em 1807, Joaquim
Roberto de Carvalho e Macedo, filho de José Vaz de Carvalho, pediu a confirmação dos
serviços que havia herdado, através da avó, de seu tio, o Sargento-mor de Voluntários
de São Paulo, Joaquim José de Macedo Leite, para a obtenção do Hábito de Cristo. O
deferimento deste pedido indica que tanto Joaquim quanto o Conselho Ultramarino e
Sua Majestade estavam de acordo com esta forma de circulação de bens.586
E quanto às mulheres e homens? Tal como os serviços, não podiam ser
comprados em uma venda, mas entravam igualmente em alguma esfera de trocas. Eram
moedas de trocas que faziam parte do mesmo mercado. Dependendo das condições da
família e de seus projetos, uma filha ou irmã poderia ser uma moeda de troca na compra
de um genro, desde que acrescido algum recurso extra, conhecido como dote. Mas isso
não significa um desprezo absoluto das mulheres nesta economia. É que para a
economia doméstica, a compra de um bom genro ou cunhado tinha um significado
muito grande. Na maior parte dos casos que pude observar ao longo do caminho, os
genros passavam a fazer parte da família da noiva e poderiam passar pelo que chamei de
processo de re-filiação, ou seja, eram candidatos à sucessão do patriarca. E mesmo não
se tornando o cabeça da família, poderiam assumir papéis importantes na organização
doméstica. E neste caso, não era qualquer mulher que poderia ser trocada: era
586 AHU. SPMG. 4801.
312
necessário portar algum símbolo importante, como ser filha de um capitão, um tenente
ou, ao menos, um alferes. Não sendo assim, seu valor de mercado era baixo, e o valor
do dote precisaria compensar sua falta de predicados.
Os escravos, por seu turno, também podiam ter valores diferentes, de acordo
com sua posição na ordem doméstica. É certo que boa parte deles era negociada como
vil mercadoria e adquiridos de negociantes, com valores e condições de pagamento
claramente definidos. Mas também havia aqueles cativos que entravam em outra esfera
de circulação, a doméstica, tal como ocorria com genros, filhas e serviços. Em seu
testamento, Paulino Aires de Aguirre deixou em herança para seus descendentes alguns
cativos. E me parece que alguns dos escravos listados por ele eram diferentes de outros:
Deixo a meu filho Paulino Lourenço o meu pajem mulatinho Teodósio filho da mulata Gertrudes. Deixo a minha filha Maria do Monte a mulatinha de Maria Basilia e a crioula Benedita filha de José Barbeiro. Deixo a minha filha Antonia Carlota a mulatinha Justicia e a crioula Manuela filha de Pedro.587
Por outro lado, a outorga das legítimas, direito dos herdeiros na partilha da
herança, foi feita em numerário e também em escravos. Contudo, neste momento, a
referência aos cativos é diversa:
Meu filho Manuel que vive em minha companhia tem sua legítima materna em ser por conta da qual lhe apontei um mulatinho menor. Minha filha Ana e Maria Perpétua que ambas também vivem em minha companhia também tem suas legítimas em ser; a dita Ana dei uma mulatinha menor e a dita Maria Perpétua uma crioula e uma cabra menor.588
Alguns escravos, me parece, tinham uma posição diversa dentro da
economia familiar, circulando apenas entre os membros da família, ao menos do ponto
de vista de Paulino (nada impedia que os herdeiros tivessem opinião contrária) e eram
conhecidos e relacionados de modo especial (por serem filhos de alguém, por ter sido
pajem). Outros sequer tinham nomes e eram utilizados para “fechar as contas” da
legítima dos filhos. E eram as relações que estes escravos construíam entre si e com a
família de seus senhores que garantiam seu pertencimento a esta outra esfera de trocas,
doméstica, ou seja, só podiam circular dentro daquele grupo. E a herança era uma forma
prevista desta circulação, ainda que ela também pudesse significar a concessão de bens
qualificáveis como vil mercadoria.
587 AESP-C05484 Testamento de Paulino Aires de Aguirre. 588 AESP-C05484 Testamento de Paulino Aires de Aguirre.
313
A salvação das almas também era um bem que se podia adquirir, e havia
várias formas de pagamento. Uma delas era ser um bom cristão, seguir os preceitos da
Igreja, os mandamentos e sacramentos. O problema era que o pagamento das parcelas
levava a vida toda, sem chance de negociação. E qualquer deslize poderia significar um
aumento das parcelas. Havia quem preferisse o pagamento à vista, no final da vida, ou
alguns “adiantamentos”. As bulas, como as das Cruzadas, podiam ser bons
adiantamentos, tal como algumas formas de caridade. Dos pagamentos à vista, a melhor
forma era em missas, muitas, de preferência, além de doações. E este pagamento tinha a
vantagem de promover a família de quem partia, com funerais pomposos, missas
rememorativas e o significado das doações. Tal troca de bens não poderia ser feita
diretamente entre as forças sobrenaturais e os viventes. Devia ser executada por
sacerdotes e só eles poderiam fazer estes ofícios, assim como era com eles que
permaneceriam os recursos advindos dos serviços (missas, enterro) e das demais ofertas
e produtos (como as bulas).
Podemos também entender o crédito como um bem. Uma outorga de
recursos que poderia fazer circular muitos outros bens naquelas economias. Mas a
venda é também uma outorga de recursos, assim como a dádiva. A especificidade do
crédito reside no tempo que há entre prestação e contraprestação. Deste modo, ao
outorgar um recurso, quem o fazia estava concedendo três coisas: o obséquio da
concessão, o objeto e tempo para a devolução. Em troca se esperava o obséquio da
devolução e o objeto. O tempo poderia ser faturado de algum modo, mas isso nem
sempre ocorria. Deste modo, uma compra pode ganhar status de crédito, se há um acerto
que umas das partes poderia entregar a sua em momento posterior. É na variação entre
estes fatores que poderemos pensar o crédito atuando em diferentes esferas.
Havia manifestações de crédito circulando dentro de lógica caritativa: um
emprestava (ou vendia fiado) para outro pensando num terceiro (sobrenatural); quem
recebia pensava apenas no primeiro. Havia créditos dentro de uma esfera familiar, onde
o obséquio era esperado, onde a outorga poderia servir para a transmissão do amor
cristão, como diria Clavero. E havia formas de crédito ligadas a lógica mercantil, onde o
objetivo era o aumento e concentração dos recursos, tanto de devedores como de
credores. Estas três lógicas estão presididas pela equidade: aos maiores se dá mais prazo
e maiores cabedais. Aos homens mais que às mulheres. Aos livres mais que aos cativos.
314
Outorgar às viúvas, aos escravos e pobres, assim como lembrar os órfãos, já poderia, em
certos casos, ser considerado caridade.
Recuperando o conceito de esferas econômicas de Bohannan589 e realizando
um longo debate com algumas análises de Mauss, Godelier propõe um modelo que
inclua uma categoria especial de bens, uma esfera particular, onde estariam aqueles bens
que não poderia ser alienados, que deveriam permanecer guardados: pontos fixos,
pontos de ancoragem das relações sociais e das identidades coletivas e individuais; são
eles que permitem a troca e fixam seus limites.590 Há bens únicos, sagrados, que são
mantidos fora das trocas justamente porque são eles que garantem o valor dos demais
bens:
Para que um objeto precioso circule como moeda, é preciso que seu valor “imaginário” seja partilhado pelos membros das sociedades que fazem comércio entre elas. Uma moeda não pode existir, ter “curso”, sem ter “força de lei”. E a lei não é do âmbito do indivíduo. Uma moeda tem de ter em si a presença dos deuses, ser marcada com seus símbolos ou com o selo do Estado ou com a efígie de um rei.
E os valores “imaginários”, compartilhados pelos agentes, fazem com que
diferentes bens tenham diferentes esferas de circulação. É preciso que haja um código
comum quanto ao valor daqueles bens e quanto ao fato de serem trocáveis. Os serviços
de Joaquim Macedo Leite, dos quais falamos antes, que foram herdados pelo sobrinho
dele, são exemplares: são bens que se produziram na economia restrita feita entre súdito
e soberano, uma economia que ao mesmo tempo organizava o mundo, estabelecendo
uma hierarquia de poderes e a compensação da subordinação. Os serviços só se
tornaram um bem porque estas partes entendiam que aquilo tinha um “valor de
mercado” (lembrando sempre da restrição deste mercado). Era algo que deveria ser
remunerado e isso tudo estava baseado na naturalização do poder do rei e na
naturalização da idéia de sociedade corporativa, onde Macedo Leite também teria seus
poderes, proporcionais ao seu lugar social. Mas os próprios serviços, uma vez criados
por aquela economia restrita, podiam entrar na esfera familiar, circulando como dádiva
589 A noção de esferas econômicas, desenvolvida por Bohannan pressupõe a coexistência, num mesmo contexto, de mercados de qualidades diferentes, divididos hierarquicamente, sendo que não há (ao menos em tese) possibilidade de conversão de entre bens de esferas diferentes, ainda que a circulação seja livre dentro de cada esfera. Os “serviços”, por exemplo, não podem ser trocados por terras, são esferas diferentes e a eventual ocorrência deste negócio sofreria sansões sociais. Ver: BOHANNAN, Paul, "The Impact of Money on an African Subsistence Economy," The Journal of Economic History 19, no. 04 (1959). 590 GODELIER, O Enigma do Dom, p. 240.
315
e jamais como objetos de troca. Os serviços de Macedo Leite eram únicos e com seu
falecimento foram, de algum modo, sacralizados. Nunca mais seriam repetidos. E isso
honrava e enchia de desvanecimento a família do morto, o que só fazia carregar de valor
àqueles serviços. E uma vez transmitidos ao sobrinho, se converteram em um bem que o
próprio morto jamais teve: o Hábito de Cristo.591
Atitude semelhante teve Rafael Pinto Bandeira, no Rio Grande, em 1789.
Ao pedir uma mercê, ele apontou os feitos de sua família, em particular os serviços de
seu pai, dando especial ênfase ao heroísmo demonstrado em uma batalha, quando teria
sido flechado no braço em um combate com indígenas. Ao fazer isso, Rafael
transformava um braço ferido num bem precioso, um bem que poderia ser trocado
naquela economia restrita entre o filho do agora lendário Francisco Pinto Bandeira e o
soberano a quem a família estava vinculada.592 Um braço ferido que não teria nenhuma
outra utilidade, nenhum valor fora daquela esfera. Mas no lugar certo poderia
proporcionar acesso a recursos trocáveis em outras esferas.
Era esta economia restrita entre súditos e rei, a certeza desta possibilidade,
que garantia o ponto fixo para a criação de outra moeda, o título, a posição social, lastro
importante que orientava, e de fato orientava, o comportamento dos agentes na hora de
outorgar tempo, liquidez e obséquios. Mas isso não basta. Já vimos como se criava um
capitão. E vimos como o sobrinho se valeu deste esfera de trocas doméstica para galgar
postos. A naturalização da família garantia outro ponto fixo para a ancoragem das
relações, para a ancoragem do crédito, desta moeda que é a outorga de moeda, mesmo
quando falamos de trocas não monetárias. E a economia doméstica só também não
basta. Era uma economia pouco acessível às mulheres. Elas não podiam ser capitãs, se
distinguindo entre Donas, Viúvas e esposas de... Era mais uma naturalização que dava
ordem ao mundo e garantia os pontos fixos para que tudo o mais circulasse. E para que
tudo se mantivesse como tal.
Vimos anteriormente a importância dos vínculos de parentesco na forma
como as pessoas eram referidas nas dívidas de inventários, a forma como os filhos de,
primos de e mulheres de tinham destaque e especialmente se vinculada com agentes
portadores de títulos, como Capitães, Tenentes e Alferes. Era o hau do Capitão, se 591 AHU. SPMG. 4801. 592 AHU. RS. Cx. 3. Doc. 236.
316
quiséssemos ironizar Mauss. Na verdade, a sacralização da figura do monarca e da
forma como ele podia transformar homens comuns em pessoas de qualidade, aceitando
em troca braços feridos ou serviços feitos por outros, garantia a ordem necessária para
que tais postos fossem reconhecidos e naturalizados, e tivessem também eles um pouco
daquele brilho Real, o que de algum modo iluminava também sua família. Isso tudo, é
claro, dentro do respeito à equidade: mulheres eram espelhos opacos. Filhos homens
(talvez genros ou cunhados) refletiam melhor. Neste caso, a própria noção de equidade
era também ponto fixo de ancoragem, que orientava o comportamento dos agentes no
momento dos negócios.
Tais pontos fixos, além de garantir o funcionamento da economia, também
produziam sua própria naturalização e a identidade de cada grupo familiar. Joaquim
Roberto de Carvalho e Macedo reforçava sua vinculação com seu tio, através de sua
avó, enquanto Rafael Pinto Bandeira reivindicava os fundadores do clã. Ambos
tratavam de dar ainda mais significado aos seus grupos familiares, aos seus sobrenomes,
que afinal, eram também suas identidades. E ao fazer isso, contribuíam, igualmente,
para manter a naturalização dos laços de parentesco como organizadores do mundo,
uma das bases sólidas pelas quais os bens eram transferidos. O mesmo pode ser dito em
relação aos dotes, trocas controladas onde o chefe do grupo, entendido seu pequeno rei,
tinha especial pode de decisão, o que era aceito por todos.
Também a religião, o culto católico, mais especificamente, era um ponto
fixo. Vimos o quanto o potlatch funeral fazia os bens circularem e tudo isso baseado na
idéia da salvação das almas e mesmo se considerarmos o quanto de prestígio familiar se
buscava com estes gastos, ainda assim devemos ter em conta que era através da pratica
católica que tal enobrecimento era buscado. Mas não era apenas através de volumosas
oferendas, centenas de missas e funerais suntuários que se trocava com o sobrenatural.
Os atos de caridade também eram uma forma de fazer os bens circularem e isso tinha na
doutrina cristã a base fundamental. Além disso, aqueles homens e mulheres
compartilhavam a crença de que uma dívida não paga poderia comprometer a passagem
do purgatório para o céu e que os negócios pendentes deveriam ser resolvidos para
sossego das almas. O medo do purgatório criava condições para que os bens
circulassem e para que os créditos voltassem aos seus devidos proprietários. O mesmo
317
pode ser visto nos chamados Juramentos das Almas, escritas onde os devedores
assumiam publicamente seus débitos e prometiam ressarcir.593
Até aqui salientei elementos daquele mundo que dizem respeito à
constituição das dívidas de um modo geral. Elementos que interferiam nas decisões dos
agentes e que havia sido feitos pelos mesmos homens e mulheres, ainda que estivessem
sacralizados, que fossem esquecidas suas origens humanas e ressaltadas suas bases
naturais e sobrenaturais, como salienta corretamente Godelier. E todos estes pontos
fixos permitiam a estabilidade necessária para que as trocas, incluindo empréstimos,
vendas fiadas e outras outorgas feitas com tempo, pudessem ocorrer normalmente, para
que a economia funcionasse. Muitas vezes, contudo, toda esta ancoragem não era
suficiente. Era preciso apresentar outros pontos fixos, mais concretos, mais materiais e
absolutamente alienáveis. Eram as garantias, também conhecidas como hipotecas. As
escrituras estão cheias delas.
Boa parte das dívidas anuncia esta forma de lastro. Mas é preciso lembrar
que muitos destes negócios se referem a dívidas antigas e mal resolvidas, acertos
refeitos e condições renegociadas. Cerca de 2/3 das dívidas de escrituras incluem
acertos com garantias, ainda que boa parte delas o bem apresentado fosse a pessoa e
bens, e não fica claro até onde isso significa algo ou é apenas mais uma fórmula de
redação das dívidas. Os bens mais comumente apresentados como garantia eram
escravos, propriedades agrárias e casas. Contudo, embarcações apareciam junto com
dívidas mais altas, e o mais comum mesmo era alternar escravos, propriedades, casas e
embarcações. Os bens lastro, contudo, variavam conforme a localidade. Como utilizei
as escrituras, só podemos acompanhar Curitiba e Porto Alegre.
Em Porto Alegre o destaque é para escravos, casas e embarcações. As três
maiores dívidas que encontrei eram avalizadas com estes bens. Todas as dívidas que
tinham barcos como garantia eram superiores a 1 conto de réis e a maioria na década de
1800. Em Curitiba, o destaque também era para os escravos e propriedades, sendo que
os animais são mais freqüentemente apresentados como segurança do que em Porto
Alegre. Isso parece ter relação com um fenômeno bastante conhecido, a maior ligação
593 SANTOS, Trânsito material e práticas creditícias na América Portuguesa - Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais, século XVIII; SANTOS, Raphael, "O Crédito nas Minas Setecentistas" (UFMG, 2004).
318
de Porto Alegre e Rio Grande (que também registravam seus negócios em Porto Alegre)
com a Praça do Rio de Janeiro, assim como a interiorização dos negócios de Curitiba, já
que o centro mercantil marítimo mais próximo era Paranaguá, e era lá que os registros
eram feitos. Com o início do XIX em Porto Alegre, diversos bem passam a constar
como forma de garantia. As charqueadas e a própria carne salgada começam a aparecer,
assim como estoques de mercadorias.
A dinâmica do estático
Há muitas formas de emprestar, assim como há muitas formas de ficar
devendo. E uma mesma outorga de recursos pode ter significados diferentes para quem
toma e quem recebe. Para um pode significar a sobrevivência, para outro, apenas mais
um negócio. A cobrança de juros, o peso das garantias, os valores e prazos negociados
são variáveis que complicam ainda mais o trabalho de quem tenta decifrar o
comportamento destes agentes. E há outro problema: as fontes mais detalhadas sobre o
crédito (dentre as que utilizamos aqui) são as escrituras. As dívidas de inventário pouco
têm em riqueza de detalhes, ainda que muito numerosas. Neste sentido, a tendência
deste capítulo é a circulação restrita entre Porto Alegre e Curitiba. Não poderemos ver
de perto o que acontecia em Sorocaba.
A primeira coisa que é relevante para se analisar é o tempo que passa desde
a criação da dívida até seu registro em Cartório. Já vimos que as dívidas de escrituras
são uma seleção particular de débitos, geralmente mais valiosos que os de inventários, e
justamente por isso surgem nestes registros. Há dívidas nas escrituras que só foram
registradas após muito tempo depois do final do prazo original negociado entre as
partes. Há outras dívidas que se iniciaram com o registro. Calculei o tempo que levava
para que credor ou devedor comparecesse ao cartório para tornar público o débito. A
maior parte das dívidas que são registradas traz a data do acerto original e foi possível
fazer a contagem dos dias. Estou partindo da data de registro, ou seja, tomei as
escrituras do período que recortei e busquei suas origens. Sendo assim, não fui além de
1810 procurando dívidas feitas no período do recorte.
319
Em Porto Alegre, as dívidas registradas na primeira metade da década de
1780 tiveram origem, em média, 2000 dias antes. Isso significa que as dívidas tinham
mais de 5 anos quando iam parar no Cartório. Na segunda metade da década de 1780,
este tempo médio caiu para 500 dias, quase um ano e meio. No início do XIX, primeira
metade da década de 1800, o número médio de dias caiu ainda mais, chegando a 100. E
na metade de década seguinte, atingiria 60 dias, dois meses. Em Curitiba as coisas são
um pouco diversas, mas não de todo. Na primeira metade da década de 1780, o número
médio de dias para o registro era ao redor de 1300, caindo para 1100 no lustro seguinte.
Na primeira metade da década de 1800, era de pouco mais de 1000 dias. Ao todo, uma
queda singela, quebrada, contudo, no lustro seguinte, despencando para pouco mais de
100. Ambas localidades sentem o mesmo fenômeno, ainda que com uma diferença de
tempo.
O que ocorre não é apenas uma redução de tempo para o registro. Ela de
fato acontece, e com um ritmo estrondoso. Mas também, cada vez mais, as dívidas são
criadas já em forma de escritura, e o acerto entre as partes, oral ou escrito em papel
(mas sem registro formal) vai diminuindo. Na década de 1780, tanto em Porto Alegre
como em Curitiba, praticamente não há ano em que não se registre em cartório uma
dívida já acertada entre duas partes. Esta situação muda em Curitiba em 1800, primeiro
ano em que as 2 dívidas registradas foram iniciadas naquele ato. Em Porto Alegre, o
primeiro ano a ter todas as dívidas iniciadas em cartório foi 1803, e eram 4. É certo que
há um problema de fonte aqui, já que muitas dívidas com histórico longo não aparecem
desta forma, parecendo recentes nas escrituras. Mas isso poderia ocorrer mesmo em
outras épocas e por isso acredito que, mesmo borrada, esta tendência seja correta.
O que esta mudança significa? Acredito que estes dados sejam indicativos
de mudanças que estavam em processo tanto em Porto Alegre como em Curitiba neste
período. Não acredito que se possa atribuir isso ao crescimento demográfico
experimentado em Porto Alegre e Curitiba (que chegou a ser próximo de 10% em
ambas), já que os devedores e credores que aparecem nas escrituras da década de 1800
(até onde pude identificá-los) já estavam naquelas localidades há mais tempo, ao menos
é o que se pode avaliar tendo em conta uma série de outros documentos onde eles
320
aparecem com alguma referência espacial.594 Acredito que estes dados nos falem de
transformações maiores que ocorriam no comportamento econômico dos agentes,
mudanças na forma de construir suas relações econômicas, na própria forma de tomar e
receber emprestado ou fiado. Para responder mais adequadamente esta pergunta,
convém dar uma observada em outras variáveis dos negócios de crédito registrados nas
escrituras, tais como os prazos de pagamento, a cobrança de juros, os relacionamentos
entre credor e devedor, a natureza da dívida (como ela começou) e outros elementos.
No início do século XIX, em Curitiba, não deve ter faltado quem se
queixasse dos juros. Um par de décadas antes era bem mais fácil fazer uma compra
fiada sem tomar conhecimento deles. Agora havia gente que não os cobrava ou, ao
menos, concedia um tempo de vantagem antes de cobrar. Não bastasse esta dificuldade,
não era tão fácil conseguir dinheiro. O mesmo sujeito se espantaria estando em Porto
Alegre. Talvez ele não conseguisse comprar a crédito, já que, como vimos, não era para
qualquer um. Mas se conseguisse, deveria obter um prazo bom para pagar antes de se
pensar nos juros. E melhor: haveria grande possibilidade dele conseguir fazer uma
compra fiada gorda, pelo menos se comparada com aquelas minguadas que conseguiria
em Curitiba.
Explico: para a década de 1780, em Curitiba, encontrei 9 compras fiadas
registradas em cartório. Nenhuma iniciava com juros. Elas ofereciam prazos diferentes
para o pagamento antes desta cobrança. Outras 7 não especificassem, e é difícil saber o
que se fazia nesta circunstância. Em compensação, para a década de 1800, das nove que
especificavam a cobrança de juros, apenas 4 ofereciam prazo para o pagamento sem este
“prêmio”. O valor para as compras fiadas sem juros se mantinha na casa de 500$000,
mas aquelas feitas com juros estabelecidos desde o início eram de importâncias bem
inferiores, na faixa de 100$000. Em Porto Alegre, nos anos 1780, encontrei 14 compras
fiadas que especificavam a modalidade de cobranças de juros (outras 17 não
informavam). Destas, 11 estabeleciam um prazo para o pagamento antes da cobrança do
“prêmio” e apenas 3 iniciavam com esta taxa. Na década de 1800 o cenário é
semelhante: havia 13 compras fiadas com especificação sobre os juros (e outras 7 sem
594 Para Curitiba, utilizei principalmente as listas nominativas. Para Porto Alegre, diversos documentos. ParaPorto Alegre experimentou um crescimento populacional de 8% ao ano entre 1780 e 1798, caindo para 3% no início do século XIX, o que ainda era significativo. Curitiba teve um crescimento de cerca de 9% ao ano, entre 1782 e 1803.
321
informação), sendo que 10 davam prazo sem este pagamento. O que muda
completamente é o valor deste tipo de contrato: pula da uma média de 450$000 para
1.400$000.
Tudo isso para as compras fiadas. Quanto aos empréstimos, as coisas são
um pouco diversas. Encontrei 5 créditos provenientes de empréstimos em Curitiba na
década de 1780 e nenhum deles oferecia prazo sem juros. No início do XIX, dois
ofereciam uns meses de prazo antes do início de pagamento dos juros, enquanto 29 já se
iniciavam com esta cobrança. Em Porto Alegre na década de 1780, de 12 empréstimos
que encontrei, 2 davam prazo sem juros, 1 iniciava com este pagamento e 9 não
especificavam. No início do XIX, de 25, 9 cobravam juros de saída e 4 davam alguns
meses, enquanto 12 não especificavam. Mas o mais interessante são os valores totais
das localidades. Curitiba passou de 1.400$000 na década de 1780 para 5.400$000 duas
décadas depois. Enquanto isso, Porto Alegre passou de 6.200$000 para 29.200$000.
Todos valores que foram colocados em circulação na forma de empréstimos. Todavia,
em Curitiba ao longo deste tempo o valor médio do empréstimo caiu da faixa de
278$000 para 146$000. Enquanto isso, em Porto Alegre, passava da casas de 522$000
para a média de 1.168$000.
Os dados dos empréstimos nos dão mais detalhes sobre o cenário que
estamos observando. De um modo geral, nas duas localidades o tempo trouxe mais
facilidades de obter empréstimos. Todavia, o valor médio caiu em Curitiba, o que nos
sugere uma sensível diminuição da liquidez local. Este cenário se agrava se tivermos em
conta que as escrituras dizem respeito àquilo que seriam os negócios mais importantes,
mais caros e arriscados e por isso a necessidade de sua oficialização pública. Neste caso,
podemos inferir que enquanto Porto Alegre registrava dívidas acima de 94$000,
chegando à 8 contos, Curitiba já via quem registrasse papéis de 12$000 e 13$000,
chegando no máximo a 1.200$000. E a maior parte dos empréstimos feitos em Curitiba
neste período foram através do Cofre dos Órfãos, que concentrava os recursos de
diversas famílias, disponibilizando-os a terceiros. Em Porto Alegre, o crédito era
oferecido a partir dos negociantes.
Estes dados são mais bem compreendidos quando comparamos o volume de
créditos feitos nas duas localidades e por década. Em Porto Alegre, o valor total
322
negociado em dívidas (nas escrituras) passou de 52 contos na década de 1780 para 76
contos na década de 1800. Em Curitiba, tal cifra passou de 9 para 16 contos. Na média,
o desempenho desta última caiu de 307$000 por dívida para 257$000. Enquanto isso, a
média de Porto Alegre de 840$000 para 1.270$000. E ainda seria relevante acrescentar
que Porto Alegre dispunha de um segundo cartório, que nem sequer utilizamos nesta
pesquisa. De um modo geral, acredito que Porto Alegre está experimentando um
crescimento acelerado, enquanto Curitiba e o planalto estão passando por uma calmaria
mercantil aguda, com uma gradativa escassez de recursos. Neste caso, estamos diante de
dois casos relevantes e complementares para se observar como as práticas creditícias
mudam ao longo do período entre 1780 e 1810. Melhor dizendo, como os agentes de
uma sociedade corporativa, católica e regida por uma hierarquia política ciosa de sua
nobreza manejam o crédito em um cenário de empobrecimento; e como o fazem numa
conjuntura de crescimento.
O primeiro ponto que podemos abordar é a própria cobrança dos juros e a
forma como é feita. Nas duas localidades há um ponto em comum: o juro utilizado é
praticamente sempre o juro da lei, de 5%.595 Como vimos, não eram sempre que ele era
cobrado, sendo um prazo estabelecido para livrar o devedor deste pagamento. As
compras que iam parar nas escrituras eram geralmente combinadas sem juros, quando
do acerto inicial, com prazos que variavam entre 1 e 48 meses, sendo que a média era de
um ano de espera. Depois deste prazo os juros eram cobrados. De um modo geral, no
período que abordei, há um sensível aumento do número de transações feitas com juros
desde o início do acerto, sem prazo “facilitado”. Na Curitiba da década de 1780,
encontrei 6 negócios que estabeleciam juros desde o começo. Este número subiu para 41
na década de 1800. Em Porto Alegre, havia 6 acertos nestas mesmas condições nos anos
1780 e 14 no início do XIX.
Este cenário, contudo, não significa o fim do crédito com prazo sem juros.
Em Curitiba ele diminui um pouco. De 10 transações nos anos 1780 restam 7 na década
de 1800. Mas a despeito da queda do valor médio dos empréstimos, o valor destas
outorgas aumentou, de uma média de 530$000 para 600$000. Em Porto Alegre as
coisas eram semelhantes. A década de 1780 registrou 15 operações, com valor médio de 595 5% era o valor estabelecido em lei em Portugal. Encontrei uma escritura que confirmava este percentual: 1TABPOA-010-010. Para uma discussão sobre o valor legal do juro no Reino, ver: ROCHA, Crédito privado num contexto urbano. Lisboa, 1770-1830.
323
350$000. Nos anos 1800, o número de negócios subiu para 20, com valor médio de 1,2
contos. De certo modo, o aumento de Porto Alegre acompanha o crescimento geral dos
negócios. Forma semelhante ao que aconteceu com aqueles negócios feitos com juro
desde o início, que cresceram, mas não se tornaram os principais. Estes dados de Porto
Alegre nos sugerem que o crescimento não trouxe uma transformação radical do
comportamento quanto à cobrança de juros. Em Curitiba, o relativo empobrecimento fez
acabou produzindo (através de um processo muito peculiar, como veremos) uma série
de negócios que iniciavam já com a cobrança de juros, mas não eliminou uma parcela
da sociedade que seguia oferecendo prazo antes desta cobrança.
Em 1802, Agostinho José da Silva comprava gêneros de fazenda e
quinquilharias com Antonio Gomes da Silva no valor de 3.139$065 (os chamarei pelo
nome, já que ambos são “Silva”). O contrato feito entre ambos, registrado em Cartório
logo no início, estipulava 24 meses para o pagamento antes do início da cobrança de
juros. Melhor: os preços seriam aqueles praticados no Rio de Janeiro e na Bahia, sem
prêmio algum de avanço e sem fiador.596 Era uma condição excepcional. É certo que
Antonio Gomes havia oferecido, em 1777, 10 meses para que José Ortiz da Silva
pagasse sua dívida sem incorrer em juros, e ainda esperou mais dois anos antes de
registrar a pendência em Cartório.597 Mas encontrei dois outros negócios de venda fiada
feitos por ele para José Martins Ávila e Manuel Alves Matoso onde as vendas foram
realizadas com pouco prazo e com juros desde o início. E Silva não esperou muito para
registrar estes negócios pendentes.598
Voltando a Agostinho, o beneficiado pela compra de quinquilharias, ele não
esperou nem um mês e passou toda a compra que fizera para Antonio José Teles e
Menezes. Não fica claro se foi um acerto prévio, mas parece que sim, que Agostinho
apenas intermediou a compra de Teles e Menezes, sabe-se lá por que motivo. Talvez
este último devesse a Antonio Gomes. E Agostinho repassou exatamente as mesmas
facilidades que havia ganho de Antonio, inclusive o prazo. Teles e Menezes, contudo, se
obrigou a pagar no mesmo prazo, contudo, dois dias antes da obrigação de
Agostinho.599 Era uma forma de equiparar os obséquios que havia recebido. E nesta
596 1TABPOA-022-032 597 1TABPOA-006-091 598 APERGS. Assignações de Dez Dias. 1º Cartório Cível. Maço 139. 599 1TABPOA-022-032
324
cadeia de obséquios, ressaltada pelo tratamento especial com alguns e cru com outros, o
mesmo Antonio Gomes já havia sido beneficiado: ao acertar as contas de uma
sociedade, em 1782, com Sebastião Francisco da Cunha, Gomes teve 24 meses para
pagar sem juros, e outros 24 para pagar com aquele prêmio uma dívida de 15 contos de
réis.600
Domingos Borges Freire fez algo semelhante. Ele fez diversas outorgas de
recursos ao longo de sua trajetória de negociante, muitas a juros.601 Mas em 1803 ele fez
registrou em escritura uma dívida acumulada de José Antonio Fernandes Lima,
composta de abonos de fazenda seca e empréstimos que o devedor havia recebido
diversas vezes, ou seja, o devedor tinha uma conta corrente enorme junto a Borges
Freire, que atingiu 1,8 contos de réis. E mesmo registrando em cartório, Borges Freire
aceitou um contrato que oferecia 48 meses para que Lima pagasse sem juros.602 Não sei
bem o que motivou a concessão destas condições, mas desconfio que Lima fosse
aparentado de João Antonio Fernandes Lima, falecido em 1781 e acredito que este
último tivesse relações com Freire, já que tinham conhecidos em comum. Mas é apenas
uma possibilidade.603
Acerto interessante foi aquele feito entre o Capitão André Alves Pereira
Viana e Silvino Pedroso de Morais em abril de 1804. Este último precisava de dinheiro
para seus negócios (não fica claro que negócios são) e toma 300$000 em moeda. As
condições foram muito particulares: Silvino teve até agosto do ano seguinte para pagar
sem necessidade de juros, o que significava 16 meses. O problema é que a contra-dádiva
do prazo sem juros teria um preço alto. Com o dinheiro na mão, Silvino deveria ir os
Campos de Cima da Serra e Vacaria comprar bons novilhos e touros e os conduzir até
Santo Antonio da Patrulha. Não sei se Silvino achou mais conveniente não fazer isso e
pagar os juros ou se não conseguiu o dinheiro, simplesmente. Mas apareceu, passado
algum tempo do fim do prazo, com dois couros de tigres e 3$200 para iniciar o
pagamento. Depois tomou outro empréstimo com o mesmo credor no valor de 1$280.
Tempos depois ambos foram ao Cartório ratificar aquela dívida.604 Parece claro que
600 1TABPOA-009-037 601 1COAPOA-10-139; 1TABPOA-011-054; 1COAPOA-04-38; 1COAPOA-08-102 602 1TABPOA-022-178 603 Para verificar as relações em comum de Freire com João Antonio Fernandes Lima, utilizei o conjunto das dívidas dos inventários Post-mortem. Ver FONTES. 604 1TABPOA-030-098
325
ignorar os juros era um obséquio e, neste caso particular, foi exigida uma reciprocidade
pré-definida que talvez até fosse considerada usurária de acordo com a tratadística
católica. Por outro lado, o registro da dívida em cartório era uma forma de contra-dádiva
paliativa, era como constituir-se devedor uma vez mais.
Antonio do Rego Chaves, também de Porto Alegre, fez ao menos 3 outorgas
de recursos ao longo do tempo que investiguei e todas elas foram com prazo antes do
pagamento de juros.605 Passando para Curitiba, encontrei Antonio Teixeira Alves, que
ao longo do período fez diversos empréstimos e vendas fiadas, sendo que ao menos 3
foram com prazo sem pagamento de juros, com período de espera entre 6 e 12 meses.
Isso me sugere que a concessão de tempo para pagar antes de se cobrarem juros está no
acerto e varia de acordo com a relação das partes. Não se trata de um repúdio deliberado
à cobrança de juros ou sua adoção absoluta, mas faz parte das escolhas daqueles
agentes. E nisso se incluem os enganos, as incoerências e as vontades.
Um caso interessante é o de Manuel Domingues Leitão, vigário em Curitiba
ao longo de décadas, aparecendo como emprestador usurário na década de 1750, não
apenas nos registros que falam de negócios, como também na opinião de alguns
membros da Câmara local.606 Nas escrituras de Curitiba que utilizei, para a década de
1780, ele aparece diversas vezes. Uma destas fontes oficializava uma dívida da década
de 1750, quando o devedor obrigou-se a juros de 6%, os maiores que encontrei em toda
a pesquisa, o que reforça a imagem de usurário daquele representante de Deus. Todavia,
na década de 1780, ele segue aparecendo como emprestador. Algumas são dívidas
antigas, mas não parece ser o caso de todas. O importante é que nestas dívidas seu perfil
é diverso. Em novembro de 1780 o Alferes Antonio dos Santos Teixeira recebia 36
meses para pagar, antes de se iniciarem os juros, a quantia de 557$894. Em junho de
1781, Escolástica Maria de Albuquerque registrava em cartório várias dívidas anteriores
dela e do seu falecido, que somavam 288$178, e recebia 48 meses para pagar antes dos
juros. O mesmo com Boaventura Pereira, em julho do mesmo ano, que recebia 36 meses
para pagar.
605 1TABPOA-032-033; 1TABPOA-031-006; 1TABPOA-030-086 606 BORGES, Joacir Navarro, O processo de endividamento em Curitiba no século XVIII. VII Jornada Setecentista. 2007.
326
O caso do Reverendo Manuel Domingues Leitão é relevante para avaliar a
forma como o comportamento pode mudar ou alternar-se de acordo com os
relacionamentos. Talvez ele estivesse ficando senil, talvez o tempo tivesse amolecido
seu coração, tenha tido uma visão de Nossa Senhora ou fosse muito ligado àquelas
pessoas a quem facilitou os empréstimos. Excluindo a senilidade, tanto o amolecimento
do coração, como a visão de Nossa Senhora e as ligações pessoais eram produtos sociais
próprios daquele mundo. Ao fim e ao cabo, as decisões de Leitão não eram assim tão
individuais e sua variação contribuiu para compreendermos os limites da ação. Não
tenho como saber qual foi afinal o motivo que fez Leitão mudar de comportamento, mas
sua ação é exemplo de um padrão que não segue a discreta tendência de aumento dos
negócios feitos com juros desde o início. Não era um fenômeno linear.
E como fica o parentesco diante da cobrança de juros? A resposta não é
simples, por uma razão simples: há poucos registros de dívidas de pessoas apontadas
como parentes nas escrituras. Isso é fácil de explicar: a densidade das relações
familiares que gerou a dívida seria igualmente suficiente para garantir o pagamento,
dispensando o registro em Cartório. Mas alguns exemplos temos e podem ser úteis.
Encontrei apenas 4, dentre 300, registros de dívidas em escritura com o parentesco
declarado entre as partes. Estes dados por si é indicativo de quão alheios aos cartórios
são os assuntos da esfera doméstica. Dos 4 registros, nenhum cobrava juros e um
particularmente, destacava o fato de ser sem juros, quando o filho, Tenente Joaquim
Lopes de Santana, era credor da mãe, Dona Joana Gonçalves, na Curitiba de finais de
1808.607 Pude identificar um quinto registro, onde não havia referência ao parentesco
mas eu sabia desta relação, talvez óbvia demais para ser anotada: o Capitão-mor de
Curitiba, Antonio Ribeiro de Andrade, emprestou 4 contos para seu irmão, o Tenente-
Coronel Francisco de Paula Ribas, em 1808.608 E tampouco foi feita qualquer
observação sobre juros, prazos ou outros detalhes, salvo a garantia feita, a de uma antiga
fazenda da família que o Tenente-Coronel havia herdado.609
Selecionei também outras 18 escrituras de dívidas que me pareceram
interessantes, pois cada uma era um acumulado de diversos negócios realizados
607 1TABCUR-029-046; 1TABCUR-030-127; 1TABCUR-030-119; 1TABPOA-034-045 608 A referência ao parentesco entre ambos que tenho está no Livro Mestre de Matrícula de Praças e Oficiais. AESP. E04695. 609 1TABCUR-030-111
327
anteriormente entre devedor e credor, o que poderia indicar algum tipo de vínculo, tal
como o parentesco, amizade ou vizinhança. Destas, 2 estabeleciam os juros da lei,
outras 3 ofereciam um prazo antes da cobrança de juros, que variou entre 36 e 48 meses.
As demais não especificavam juros, mas concediam prazos de pagamento igualmente
largos, entre 12 e 84 meses, com uma média de 44. Três delas eram particularmente
interessantes. Uma dizia respeito à dívida de 600$000 em moeda corrente e trigo para
acudir aos vexames passados pelo devedor, Bento José Ribeiro dos Santos, concedida
por Raimundo Ferreira, com 48 meses para pagamento, sem especificação de juros. Ela
foi registrada em Porto Alegre, em 1804.610
Outra, com 36 meses de prazo e sem informação sobre os juros, era a que
Antonio José Ribeiro devia para Luís Teodósio Machado, em Porto Alegre, 1805.
Segundo o devedor, aquela conta era relativa a uma quantia anterior, que não poderia
pagar com a brevidade exigida e por isso se obrigava. A terceira é mais interessante:
José Antonio de Araújo Ribeiro havia feito vários socorros para Luis Inácio Pereira de
Abreu concluir um sobrado de pedras na Rua do Comércio. O valor total atingia 4,2
contos de réis e recebeu um prazo de 84 meses, sem nenhuma referência à cobrança de
juros.611
Dados para o caso contrário, para a cobrança de juros da lei desde o início
do contrato, são comuns ao longo de todo o período, como já aferimos. Mas estas
situações que apresentei mostram que não há, ao menos no período que observei, um
crescimento linear do uso dos juros. Em Curitiba, no início do século XIX há um
grande crescimento desta prática, em termos quantitativos. Mas se observarmos no
detalhe, veremos que este crescimento diz respeito, pontualmente, à grande quantidade
de dívidas feitas através do Cofre dos Órfãos. Em Porto Alegre, o crescimento das
dívidas com juros após um prazo é proporcional ao crescimento geral, inclusive ao
aumento de negócios com juros desde o início dos contratos. Acredito que o
crescimento econômico daquela localidade pôde permitir a continuidade de um crédito
“barato”, ou seja, a ampla concentração de recursos naquela praça, especialmente com
os negociantes, proporcionou um acesso fácil aos bens, e teve como corolário a
continuidade das práticas creditícias. E por essa razão que vemos, em meados dos anos
610 1TABPOA-025-051 611 1TABPOA-028-116; 1TABPOA-029-004
328
1800, negociantes manejando prazos folgados e juros facilitados para sujeitos que
precisavam de trigo e para quem precisava de um imponente sobrado de pedra na Rua
do Comércio.
Encontrei um registro de dívida com o Cofre dos Órfãos (nas escrituras do
Primeiro Tabelionato) para Porto Alegre, em 1786 e dois para Curitiba, na década de
1780. Para os anos 1800 há 33 destas transações e isso transformava tal instituição na
maior fonte de recursos da região, com pouco menos de metade dos créditos registrados
em escrituras neste período e totalizando 18% do valor, pouco mais de 3 contos. E o
significado desta instituição não para por aí. Um poderoso grupo da elite local, a família
do Tenente-Coronel Manuel Gonçalves Guimarães, tomou 6 daqueles 33 empréstimos,
se apropriando de ¼ do valor total oferecido pelo Cofre na década, 835$096. Ou seja:
era uma fonte de recursos que interessava diretamente àquela elite, diante de um cenário
de escassez acentuada dos recursos. O único grupo familiar que teve maior impacto na
oferta de crédito foi o do Capitão-mor Antonio Ribeiro de Andrade, no valor de 4
contos, mas se tratava daquele empréstimo feito ao próprio irmão, fazia parte da
econômica doméstica do grupo.612
Este destaque do Cofre nas escrituras devia ter o dedo do então Tesoureiro
dos Órfãos, Francisco Teixeira Camelo, que ocupou este posto ao longo de todo o
período. Prevista nas Ordenações Filipinas (ainda que seu uso seja anterior) a idéia do
Cofre, assim como dos próprios cargos de Juiz, escrivão e Tesoureiro dos Órfãos, era
zelar pelo patrimônio dos menores de 25 anos cujos pais tivessem morrido. O Juiz , logo
que informado do falecimento de alguém, deveria checar se havia órfãos e se estes
teriam bens por haver. Neste caso, o inventário orfanológico deveria ser feito, onde
seriam descritos todos os bens, assim como dívidas ativas e passivas, que seriam
612 1TABCUR-027-087; 1TABCUR-027-071; 1TABCUR-027-079; 1TABCUR-027-086; 1TABCUR-027-073; 1TABCUR-027-72; 1TABCUR-027-074; 1TABCUR-027-075; 1TABCUR-027-067; 1TABCUR-029-026; 1TABCUR-029-055; 1TABCUR-29-016; 1TABCUR-030-040; 1TABCUR-030-031; 1TABCUR-030-005; 1TABCUR-030-042; 1TABCUR-030-042; 1TABCUR-030-042; 1TABCUR-030-042; 1TABCUR-030-082; 1TABCUR-030-054; 1TABCUR-030-060; 1TABCUR-030-52; 1TABCUR-031-032; 1TABCUR-031-032; 1TABCUR-031-035; 1TABCUR-031-005; 1TABCUR-031-084; 1TABCUR-31-080; 1TABCUR-031-083; 1TABCUR-031-071; 1TABCUR-031-077; 1TABCUR-031-048
329
divididos entre os herdeiros. No caso dos órfãos, eles só receberiam sua parte ao
completar 25 anos ou ao casar.613
Enquanto os órfãos não atingiam a idade adulta, o Tesoureiro dos Órfãos
deveria fazer aproveitar os bens deles e tornar a seu estado com os frutos e rendas, que
deles poderão haver, se aproveitados foram. Mas não poderiam nunca fazer qualquer
tipo de contrato em que houvesse alguma espécie de usura. Não vou entrar aqui na
discussão do que poderia ser entendido como usura, tema de dezenas de tratados da
época moderna.614 Mas quando da criação desta lei, não havia nenhuma norma jurídica
que autorizasse qualquer tipo de cobrança de juros, passível de ser classificada de
usurária ou não. E ainda assim, a lei filipina era clara, não deixando espaço para muitas
possibilidades. A edição das Ordenações que utilizei, feita por Candido Mendes de
Almeida, contém comentários sobre cada lei. Quando à cobrança de juros pelo Cofre
dos Órfãos, Almeida traz interessante nota:
Depois da lei de 24 de outubro de 1832, que facultou às partes a convenção quanto aos juros, esta pena [se refere às penas pelo crime de usura] foi abolida. Tomando o Governo por empréstimo os dinheiros dos Órfãos, o prêmio foi fixado em 6% no ano [...] Antes que se tomasse esta providência, os particulares obtinham esses dinheiros com o prêmio da lei (5 e 6%)615
Esta breve nota nos traz uma importante informação: dentre a criação da
norma, no início do XVII e meados do XIX, a postura quanto à cobrança de juros pelo
Juízo dos Órfãos se modifica. E quando da década de 1780, início do recorte que tomei,
não apenas há cobrança daquele prêmio como ela é feita sem ao menos estabelecer um
prazo para pagamento sem aquele acréscimo baseado no tempo. Mais do que isso: tal
transformação acabou criando condições para a consolidação, lenta, fique claro, da
cobrança de juros naquela sociedade, assim como para a sobrevalorização do registro
oficial em cartório em oposição aos contratos orais ou papéis emitidos entre as partes.
Segundo Clavero, na época moderna: Las relaciones de crédito tendían a
remitirse a este terreno de la amistad familiar no estrictamente consaguínea y de la
fraternidad mercantil tampoco cerradamente familiar...616, ainda que nem sempre fosse
o caso. Aqui entra a idéia de oikonomia. É a economia doméstica entendida como
613 Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Edição de Cândido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro, 1870. 614 CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna. 615 Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Edição de Cândido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro, 1870. 616 CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna, p. 172.
330
paradigma de uma sociedade. Confunde-se, muitas vezes, com a própria idéia de
família, e não sem motivo. Ainda que houvesse uma pluralidade de oikonomias atuando
com suas diversas matizes e particularidades, Sabemos las maneras que articulavan a la
família em su diversidad de especies, de las menos a las más artificiales, todas
naturales: la reverencia y el obsequio, la correspondencia y la amistad.617 Era ao
mesmo tempo uma economia familiar e servil, corporativa e senhorial. Ainda que se
manifestasse dentro de uma corporação, como a de mercadores, onde havia a idéia de
irmandade, a heterogeneidade das relações garantia uma hierarquização dentro do
próprio grupo, tal como, numa família, havia também uma ordem.
Acredito que a obra de Clavero pode ser frutífera na análise do material que
apresentei. A família, a economia doméstica, e a caridade davam a tônica naquele
mundo. Ao menos assim aquele mundo o compreendia, um mundo que fazia oferendas
vultosas às forças sobrenaturais, que fazia os negociantes se aparentarem e trocarem
obséquios entre si. E por caridade se entende, como nos fala Clavero, o simples ato de
emprestar. Já vimos o poder da família. E o juro, com ou sem prazo antecipado, era
considerado um ganho compensatório, dentro da lógica da antidora, como
compensatório e caritativo era todo o esforço de preservação dos bens dos órfãos.
Aquela mesma noção de caridade, acredito, foi base para a adoção ao longo do tempo
do uso dos juros nos contratos do Cofre dos Órfãos. E isso contribuiu para a lenta
habilitação dos juros, mesmo numa Curitiba que vivia tempos de escassez, onde o
dinheiro não parecia ter forças para violentar a natureza, como pensavam diversos
tratadistas modernos.618 Com o pretexto de salvar os órfãos, aquela economia visava
preservar a si mesma, aquela ordem, mas acabou criando condições para sua
transformação.
Em porto alegre, os obséquios seguiam sendo praticados e ficavam no limite
da corporação mercantil. Os casos que vimos anteriormente, de obséquios sendo
trocados entre mercadores, inclusive dois ex-sócios, é sintomático disso. Mesmo que
tenhamos percorrido algumas dezenas de léguas e deixado uma terra empobrecida por
uma mais rica, como repetiria Clavero, de un mundo no se sale.619 Uma sociedade que
acreditava que o aumento de cabedais poderia e deveria significar a transmissão de bens 617 Ibid., p. 161. 618 Ibid. 619 Ibid., p. 168.
331
como caridade e propagação do amor cristão criou condições para a preocupação única
com o aumento de cabedais. Mas isso foi um longo processo, e ultrapassa muito os
limites deste trabalho.
332
Capítulo 13 De volta ao caminho
Se alguém tentasse estimar o número de tropas de animais que circularam
entre Viamão e Sorocaba em fins do XVIII e inícios do XIX apenas utilizando
inventários post-mortem e escrituras, teria uma grande surpresa. Seria lógico supor que
aqueles documentos apresentassem diversos casos de negócios com gado, se outras
tantas fontes nos indicam a importância daquela atividade na vida daqueles sujeitos. As
próprias listas nominativas são bastante eloqüentes. Bacellar chega a fazer uma
estimativa mínima dos negócios de gado apenas com estas fontes.620 E se observarmos
aqueles fogos onde a renda familiar estava baseada na pecuária e no negócio de tropas,
somando isso àqueles fogos que anunciavam membros ausentes para o Viamão,
teríamos ainda mais certeza disso tudo. Mas só pude encontrar 14 tropas em escrituras e
inventários, sabendo, por outros documentos, que foram mais de 1000, ao longo do
período que tomei.
Algumas ressalvas devem ser feitas. Concentrei esforços nas escrituras de
crédito, dívida, obrigação e hipoteca. Sei que há tropas anunciadas em documentos
como compra e venda, recibos, tratos e sociedades, mas pelo que pude verificar e tomar
nota, não creio que tais fontes fizessem triplicar o número, já bastante irrisório. E de
qualquer maneira, estou diretamente interessado em saber como as tropas eram
financiadas, como se acertava o crédito para sua existência e certamente as fontes de
crédito, dívida, hipoteca e obrigação são mais adequadas para isso. Quando aos
inventários, acredito que este silêncio se deve à habitual pouca quantidade de detalhes
nas dívidas ativas e passiva. Não li integralmente todos os inventários, me concentrei
nas dívidas, mas acho que este esforço não faria aparecer nem metade do total das
tropas que pude averiguar por outros documentos, e que também é inferior ao número
total de negócios, ainda que mais próximo da realidade.621
Isso não significa que os tropeiros fossem pessoas rudes, avessas aos
trâmites burocráticos ou todos analfabetos. É certo que era um grupo muito
heterogêneo, mas muitos deles estiveram registrando negócios em cartório ao longo de
suas vidas. O Capitão José de Andrade, por exemplo, aparece ao menos duas vezes, ao
620 BACELLAR, Viver e sobreviver em uma vila colonial (Sorocaba - século XVIII e XIX). 621 Não pude consultar os inventários de Curitiba e do Planalto Paranaense. Acredito que tais fontes teriam mais informações sobre os tropeiros que suas similares de Porto Alegre e Sorocaba.
333
longo da década de 1780, e em uma delas era por negócios de crédito, ainda que não
tivesse relação com tropas.622 Da mesma forma, José da Silva Castanhede e Francisco
Teixeira de Azevedo foram presentes em escrituras de dívidas, em posições diversas.623
Isso sem falar da família Gonçalves Guimarães, que aparece ao longo do tempo em
muitos registros de diferentes tipos. Entre o Primeiro Tabelionato de Porto Alegre e seu
similar curitibano, encontrei pelo menos 36 tropeiros que em algum momento
participaram da produção de alguma escritura pública, a grande maioria em Curitiba.
Por outro lado, acreditar que este dado, o relativo silêncio das tropas nas
dívidas de escrituras e inventários, seja um indicativo que tal mercado dispensasse o
crédito, me parece um equívoco. Já vimos como as outorgas temporárias de recursos
eram extremamente importantes nas diversas atividades econômicas desenvolvidas ao
longo da rota, o que também já foi salientado por outros autores, inclusive para outras
áreas da América Lusa, em particular, e para economias pré-industriais, por outro.624
Acredito que tal economia se valesse de instrumentos de crédito baseados na
experiência cotidiana, nas conversações diárias, nos contatos e relações que
reproduziam todos os dias, baseados em acertos orais. Mais do que isso, acredito que os
recursos para tal empreitada provinham de uma esfera econômica silenciosa, a esfera
doméstica, da inter-relação de diversas economias domésticas, controladas por
“capitães” e garantidas pela atuação de todo o núcleo familiar, inclusive os escravos.
Já falei anteriormente da forma como o Capitão César pôde obter recursos
para uma tropa que montava no início de 1796. Ele fez contato com o Doutor José
Joaquim de Oliveira Cardoso, filho do falecido Capitão-mor de São Paulo, para que
pudesse obter algum recurso em dinheiro. O Doutor escreveu de volta e a carta serviu
para que César obtivesse junto do Capitão Manuel Gonçalves Guimarães, o recurso
622 1TABCUR-021-039; 1TABCUR-023-001. 623 1TABCUR-022-056; 1TABCUR-027-108 624 BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo: os jogos das trocas; FIRTH, Raymond, & YAMEY, B. S., Capital, saving and credit in peasant societies (London: George Allen & Unwin Ltd, 1969); FONTAINE, "Espaces, usages et dynamiques de la dette dans les hautes vallées dauphinoises (XVIIe-XVIIIe siècles)."; FRAGOSO, Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830); FRAGOSO, & FLORENTINO, O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de, "Os homens de negócios do Rio de janeiro e sua atuação nos quadros do Império Português," in O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), ed. FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda, & GOUVÊA, Maria de Fátima (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001); SAMPAIO, Crédito e circulação monetária na colônia: o caso fluminense, 1650-1750.
334
necessário.625 Meses depois, ainda em 1796, Antonio Francisco de Aguiar comentava
sobre o Doutor José Joaquim, que devia algumas quantias à Casa Doada, esperando que
ele formalize as suas contas judiciosas e verdadeiras, por crédito seu, e boa reputação
as cinzas de seu pai, e daquilo que se liquidar, se pagou com os bens e isto já sem
demora, para sossego de tantos espíritos desinquietos.626
O Doutor nunca perderia o vínculo familiar e suas atitudes poderiam
comprometer a imagem de seu pai mesmo depois de morto. Além das suas próprias, é
claro. Mas o que quero salientar aqui é que a rede densa de relacionamentos de que
Cesar, Guimarães e Oliveira faziam parte propiciava acesso aos recursos necessários
para o financiamento da economia das tropas de animais. E tais recursos tinham origem
nos mesmos negócios feitos, na atividade criatória e na agricultura praticada naquelas
paragens, que garantiam a manutenção daqueles sujeitos e seu enriquecimento, o que
era, por seu turno, garantido pelo braço escravo. Era a estabilidade desta força de
trabalho que permitia a circulação de gente como o Capitão César e de Manuel
Gonçalves Guimarães, no giro de seus negócios. Deste modo, a economia doméstica de
cada tropeiro, com o financiamento de outras similares, era o sistema que fazia
funcionar a economia das tropas.
Em 1779, na Capela do Tamanduá, Estevão José Ferreira emprestava
1:262$150 à José Gonçalves Nogueira para assistir à tropa de João Rodrigues de
Macedo. 1/3 do total correria juros desde o início e 2/3 após o prazo de 4 meses, tempo
necessário para ir e volta de Sorocaba. É provável que Estevão tivesse uma loja de
fazendas, pois pouco mais de um ano depois registrava uma outorga de fazenda seca e
dinheiro no valor de 177$390 para Antonio Portes del Rei. O mesmo credor estaria,
anos mais tarde, atuando como tropeiro, por volta de 1792, tendo como fiador o Padre
Manuel Caetano de Oliveira. E nesta ocasião ele já era qualificado como Tenente. Era o
crédito de Manuel Caetano, associado aos negócios e relações de confiança de Estevão
ao longo do tempo que garantiram aquela tropa e as outras anteriores, assim como a sua
ascensão social.
Em 1800, Manuel Gonçalves Guimarães respondia a uma dívida de Joaquim
Gonçalves, como fiador do filho junto à Casa Doada, assim como outras tantas vezes 625 BN-II-35,25,03-003; BN-II-35,25,03-004 626 BN-II-35,25,25-27-023
335
que ocupou esta posição nas escrituras, especialmente em empréstimos tomados junto
ao Cofre dos Órfãos.627 O caso de Francisco Luis de Oliveira e seu filho, o Padre
Manuel Caetano de Oliveira também é exemplar deste cenário. Já vimos esta história
antes: as relações construídas entre Francisco de Antonio Francisco de Aguiar ao longo
de anos, tempo em que Francisco sempre pagou as dívidas de quem fiava, foram
herdadas e reforçadas pelo filho, o Padre Manuel. Pai e filho eram considerados de
forma unívoca, ao menos em termos de identidade. Tal identidade podia atingir o
extremo de confundir genitor e gênito, como se fossem a mesma pessoa. Mas esta
identidade se estendia de modo desigual ao grupo familiar como um todo, podendo
atingir até mesmo aos escravos. 628
Fianças e cobranças: o peso da equidade
Uma forma relevante de se avaliar como funcionavam as relações de crédito
neste mercado de animais é observar como se dava o sistema de fiança das tropas. Os
animais passavam por Curitiba e eram identificados para poderem passar por Sorocaba e
ser cobrados. Contudo, a maior parte dos tropeiros não tinha dinheiro antes da venda e
necessitava fiador para poder “pendurar” a tributação e entrar na Vila, à espera de um
bom negócio que fecharia todo o circuito. Em novembro de 1795, Antonio Francisco de
Aguiar falava que era preciso instruir o novo inspetor de Curitiba da necessidade de só
ser aceito o tropeiro com fiador idôneo, e não com os de costume. Na mesma carta
observava ao seu tesoureiro que estava de acordo com ele sobre a idéia de
entrarmos em uma administração que por todos os títulos deve ser sagrada, figurando os nossos deveres, assim diante o tenho cumprido e por mim não tem sido obrada antes pela liberdade que então tinha, de aceitar fianças, fazer vendas fiadas dos animais cavalares que ameaçam prejuízo de tudo629
Na virada de 1795 para 1796 as coisas estavam mudando na administração
da Casa Doada e não apenas o novo inspetor deveria aprender algumas coisinhas como
o antigo, Antonio Francisco, deveria mudar algumas práticas. Ele perdia a liberdade de
aceitar fianças, o que ficaria a cargo do tesoureiro em São Paulo. As conseqüências
desta mudança duraram mais de dez anos e são matéria excelente para análise. No
627 BN-II-35,25,17-004 628 Aqui coincido com os argumentos de HAMEISTER, "Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)". nos quais estou me baseando, além das fontes primárias. 629 BN-II-35,25,25-27-001
336
começo, parece que os dois funcionários da Casa Doada não tiveram maiores
problemas. Aguiar seguiu fazendo algo semelhante ao que fazia antes e parece que esta
iniciativa foi esbarrando, com o passar dos anos, na tentativa do tesoureiro, Fernandes
da Silva, de reafirmar que aquilo era sua missão. E parece que este último era realmente
rígido na aceitação dos fiadores, o que desagradava um pouco a Aguiar. Em 1806, ele
questionou diretamente o comportamento do tesoureiro:
O capitão Eleutério da Silva Prado hoje seguiu desta vila a essa cidade onde vossa mercê o terá pronto para arrecadação de 1:210$540 réis que menos difícil que se faz estar em mãos de homens da qualidade deste e de outros de sua iguala que seguem sem tempo. Certo que há mais espera até a equidade de sua benevolência do que ver os animais empalhados por estar invernados de um ano para outro sem pastos, sem assistências, e sem fiadores630
De algum modo, Aguiar questionava a necessidade de um sujeito como o
Capitão Eleutério da Silva Prado e outros de sua igualha em apresentarem fiador ou em
esperar pela decisão vinda de São Paulo. Aguiar reclamava da demora e a falta de
autoridade que tinha para fazer passar alguns tropeiros. É claro que não todos. Na
mesma carta ele falava que tropeiros há de 800 bestas que não apuram à vista para os
direitos e todos aqueles que sujeito os seus nomes a executoria é por não terem outro
remédio e demoradas fianças.631 Em fevereiro de 1807, Aguiar voltava ao problema,
com outro caso complicado em mãos:
O Guarda-mor Rodrigo Pedroso de Barros portador desta se acha no termo desta Vila com sua tropa de bestas e cavalos magros pela falta de pastos compradores e o inverno aporta e sendo o prejuízo do mesmo e de nosso constituinte infalível deve vossa mercê acautelar do modo que vou ponderar. Dando o mesmo Rodrigo fiador abonado, concede-lhe vossa mercê tempo suficiente de ele passar os animais engordar, vender, cobrar, a pagar pois destes milagres já não posso por mim obrar, sim vossa mercê a benefício de nosso constituinte
Um Capitão e um Guarda-mor eram motivo para a ira de Aguiar, que já há
tempos vinha ironizando o tesoureiro. Mas não posso afirmar que ele não tinha uma
preocupação maior, para além dos principais agentes daquela economia que chamei de
capitalizada, cheia de capitães. Em outras cartas ele expressa aflição pelos tropeiros em
geral e pela perda que a Casa Doada teria com a quebra destes negociantes havendo
prejuízo em vários tropeiros que tem morrido e perdido os animais destinados a este
pagamento por não terem poderes de afiançar e nem liberdade de venderem fiado que é
630 BN-II-35,25,25-27-091 631 BN-II-35,25,25-27-091
337
a moeda que sobre este gênero apareceu no meu contrato.632 Era mais um capítulo de
sua leve disputa de poder com o tesoureiro. Em 1811 ele aperfeiçoava seus argumentos.
O problema agora era com as tropas do Capitão José de Andrade e do Capitão João
Lopes França que se constituíam devedores para afiançarem com prazo de que dos
mesmos animais paguem e por isso devem ser admitidos pois que do contrário se
perderiam estes direitos em prejuízo do Estado e do comércio.633
A preocupação de Aguiar variava entre vários pólos. Ele se preocupava com
o comércio e com o Estado. Ele se preocupava com a disputa de poder com o tesoureiro,
até porque ele era Tenente-Coronel e o tesoureiro era Capitão. Ele se preocupava com a
qualidade do Capitão Eleutério da Silva Prado e outros da igualha precisarem apresentar
fiador e clamava por equidade. E não apenas pelo poder econômico dos “capitães”. Ao
pedir equidade, ele exigia o respeito à ordem social, e não a indiferença geral do
tesoureiro em relação aos tropeiros. É que Aguiar, nascido e criado ali, sabia que havia
tropeiros e tropeiros e que alguns não podiam esperar. E isso tinha todo o sentido
naquele mundo. Ele exigia o cumprimento da norma social que indicava a cada um o
seu lugar. E não só pela força econômica dos “capitães”, mas porque Aguiar sabia que
eles eram o Estado e o comércio.
Há, contudo, um fator especial nos argumentos de Aguiar. Ao longo de sua
correspondência, percebe-se uma preocupação geral com os problemas enfrentados
pelos tropeiros e isso não pode ser ignorado. Mas esta preocupação atinge o ápice em
relação ao quatro tropeiros que apresentamos acima: os capitães Eleutério da Silva
Prado, José de Andrade e João Lopes França e o Guarda-mor Rodrigo Pedroso de
Barros. Dos quatro, três, com exceção de Eleutério, faziam parte do seleto grupo de
amigos de confiança que Aguiar em algum momento pediu para levar malotes de
valores ou cartas. Ou seja, para além do seleto grupo da nobreza local, do qual
participava, Aguiar avistava um grupo ainda mais seleto e não tinha nenhum receio de
dedicar-lhes os obséquios que lhe pareciam adequados. E não era apenas por amizade,
ainda que esta houvesse, em algum sentido. Entendo que eles todos faziam parte de uma
não explícita “corporação da nobreza”, com foro próprio, cooperação e reconhecimento
mútuo, como uma corporação deve ser, o que incluía monitoramento dos atos, uma
632 BN-II-35,25,25-27-122 633 BN-II-35,25,25-27-128
338
política benevolente e recíproca. E por fazer parte desta irmandade não oficial é que o
Capitão César foi tão monitorado na correspondência da Casa Doada. E pela mesma
razão ele pôde receber rapidamente as quantias para costeio de sua tropa. Não era uma
sociedade secreta. Era a própria sociedade, ungida com ar de família.
Tal noção era muito bem compreendida pelo inspetor de Curitiba, Manuel
José Correia da Cunha. Em 15 de janeiro de 1800, ele contava que fora instado a
entregar 400$000 em dinheiro para o Capitão José Joaquim Xavier de Toledo, de uma
importante família paulista ligada ao Tenente Coronel Antonio Francisco de Aguiar, por
ordem do primo Joaquim Xavier de Toledo, segundo o próprio Cunha narrou. Tal
procedimento contrariava as ordens que tinha de não repassar dinheiro. Cunha
justificou-se afirmando, “sabiamente”, que há casos que podem mais que leis.634 Dois
dias depois, ele surge com outra preciosa avaliação daquele mundo. Ele pediu para o
Coronel Vaz um favor, a gentileza de comprar uma banda (uma faixa ou cinta) para um
oficial do próprio regimento daquele Coronel. Como Vaz não respondia nem enviava a
banda, Manuel José tomou liberdade de escrever ao tesoureiro da Casa Doada e
queixar-se:
pois quando o senhor coronel José Vaz me não serve em semelhante ridicularia quanto mais em coisa de maior suposição quando eu me persuado que de alguma forma me devia servir ainda que é sub-coronel e eu não sou nada espero de vossa mercê resposta para me poder desculpar em que ma encomendou635
Era novamente a questão da equidade. E este destaque do Coronel Vaz é
visível também nas diversas fianças que fez para muitos tropeiros. Vaz foi “convidado”
para atuar como fiador diversas vezes, e muitas delas diretamente pelos próprios
administradores da Casa Doada. Especialmente a partir de 1800, ele freqüentemente era
consultado sobre novas guias, para verificar seu interesse na fiança. Era uma forma de
agilizar a liberação das tropas, uma vez que teriam um fiador conhecido e da total
confiança dos funcionários da Casa Doada. Por outro lado, reafirma a penetração que
Vaz tinha no interior paulista (o que incluía Curitiba), conhecendo e assumindo as
dívidas de diversos tropeiros, reforçando ou criando, a partir daí, laços mais estreitos
com um grupo de pessoas bastante grande.
634 BN-II-35,25,17-004 635 BN-II-35,25,17-005
339
Em 1799, Antonio Francisco de Aguiar escrevia ao tesoureiro em São
Paulo:
...poderá vossa mercê fazer toda a equidade ao nosso amigo coronel Luis Antonio na letra da remessa passada visto não ter vossa mercê precisão de dinheiro para o nosso doado ficando eu desonerado no ajuste de vossa mercê e dele por concorrer na pessoa do dito nosso amigo todo o conceito e merecimento para a equidade por vossa mercê praticada636
Anos depois, em 1803, Aguiar voltava ao tema da equidade, ao confirma
que cobraria um sujeito a pedido de um amigo do tesoureiro. Ao solicitar a cobrança, o
credor avisava que não cobraria os juros, como forma de facilitar o pagamento. Aguiar
queria confirmação: penso vossa mercê fará toda a equidade sobre os juros na forma
do seu aviso quando esta cobrança me encarregou.637 Aqui equidade tinha sentido
diverso do comum. Não era exatamente “a cada um que lhe cabe”, mas adquiria um
sinônimo de obséquio. Em 1806, no já citado caso do Capitão Eleutério Prado, o sentido
era o mesmo, pois aquele oficial deveria esperar até a equidade de sua benevolência.638
Esta confusão de expressões não era fruto da ignorância de um tosco capitão. Era fruto
de uma noção disseminada de graça, de benevolência entre irmãos. A equidade óbvia
para um Capitão era o obséquio.
E assim voltamos novamente ao paradigma católico, no qual a graça
deveria presidir a comunicação de bens, a prática econômica.639 Nenhuma norma
jurídica obrigava o tesoureiro a agir rapidamente para amparar o Capitão Prado.
Nenhum estatuto da nobreza local dava este privilégio àquele capitão, até mesmo
porque tampouco havia estatutos de nobreza local para prever isso. Era uma hierarquia
costumeira, como no costume estava baseada a expectativa de Aguiar. Não havia direito
para regular este comportamento, era, nos dizeres de Clavero, obligación no obligatoria
[...] libertad nada libre. O Tesoureiro em São Paulo não precisava permitir o rápido
obséquio ao Capitão. Ele deveria fazê-lo. O conflito entre Aguiar e o tesoureiro, ao
final, era um conflito de visões de mundo, ou talvez de etiqueta mercantil, dentro da
lógica econômica que presidia a economia moderna. 640
636 BN-II-35,25,25-27-053 637 BN-II-35,25,25-27-082 638 BN-II-35,25,25-27-091 639 CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna. 640 Ibid., p. 100.
340
Passemos a avaliar como se dava a cobrança. Já vimos como funcionava o
sistema de controle de devedores da Casa Doada. A coleta de informações se dava
através de diálogos com antigos inspetores, tropeiros que passavam e outros conhecidos.
As informações que interessavam eram aquelas que associavam o devedor a algo ou
alguém, uma família, um senhor, uma comunidade. Vejamos mais de perto como se
fazia este trabalho. Quando Manuel José Correia da Cunha assumiu a Inspeção do
Registro de Curitiba, ele recebeu uma grande lista de devedores, chamada rol de
dívidas, das mãos de seu antecessor, Francisco de Paula Teixeira, que pretendia
abandoná-las sem cobrar, deixando isso para o futuro inspetor. Em maio de 1797,
indignado, Manuel José escreveu ao seu chefe em São Paulo dizendo que
o dito Paula nas contas que vai dar leva muitas dívidas de pessoas que não tem com que pagar, outras foram camaradas ou peões dele que andam dispersos e nada tem de seu. Vossa mercê não as aceite que as cobre ele que há devedor que deve duzentos e tantos mil réis que é Alexandre Luis Ferreira e possui oito ou dez vacas e outras tantas éguas assim os demais por que as seguras tem ele já cobrado 641
Poucos meses depois, em setembro, sua ira aumentava, ao saber que seu
chefe havia aceito aquelas contas:
agora se me resta dizer que me admiro vossa mercê aprovar as contas do Capitão Paula quando me parece deveria dizer que visto não ter cobrado as dívidas em mais de quatro anos que acabou o contrato as devia fazer boas, mostrando a legalidade delas e dos devedores: principalmente tendo eu apontado a vossa mercê a qualidade dos devedores642
Em maio de 1798 ele voltava ao problema, ratificando que Francisco de
Paula deveria cobrar aquelas contas, ainda que ele próprio houvesse cobrado e recebido
17 pessoas. Ele insistia em cobrar. E na mesma carta, avisava que os devedores deviam
ser conhecidos de Francisco de Paula, pois lhes fiou.643 Vou adotar aqui o mesmo
critério utilizado por Manuel José, atribuindo a estes devedores algum vínculo com
Francisco de Paula ou, na pior das hipóteses, algum vínculo indireto que permitisse
minimamente a formação da dívida.
Antes de verificar como se deu a cobrança, vejamos como foi a outorga.
Isso faz diferença no momento de reaver o capital, já que como o próprio Manuel José
nos indicou, as dívidas eram pessoais, mesmo que Francisco de Paula agisse em nome
641 BN-II-35,25,03-016. Grifo meu. 642 BN-II-35,25,03-019. Grifo meu. 643 BN-II-35,25,03-002; BN-II-35,25,03-016; BN-II-35,25,03-019; BN-II-35,25,03-024
341
de outrem. E como tal, estavam baseadas em acertos pessoais e condições específicas de
produção. O interessante do rol de dívidas produzido por Francisco de Paula Teixeira, é
que a maior parte dos créditos contém detalhes sobre a vida do devedor, especialmente
quanto à sua localização espacial. 2/3 do total estavam espacialmente referenciados,
mas boa parte também continha informações sobre atividades desenvolvidas pelos
sujeitos, assim como sua condição social, tal como o Pardo José forro capataz morador
na Freguesia da Lapa ou o Tenente Manuel Soares do Vale morador na Vila.644
Com os dados produzidos por Francisco de Paula, pude construir uma tabela
que distribui os devedores no espaço:
Tabela 6 ‐ Localização geográfica dos devedores do Rol de Dívidas de Francisco de Paula Teixeira
Local Total de dívidas % Distância em Léguas do Registro População em 1795645
Registro 10 22,7 0 50
Lapa 10 22,7 3 1200
Curitiba 7 15,9 10 10000
Campos Gerais 6 13,6
Papagaios 2 4,5 4 50
Tamanduá 2 4,5 1,3 200
Ponta Grossa 1 2,3 13 500
Faxina 1 2,3 45 2000
Rio Verde, Campo Largo 1 2,3 5 337
Intinguequeira 1 2,3
Itambé 1 2,3
Itaqui 1 2,3
Lages 1 2,3 45 500 Fonte: BN‐II‐35,25,13
A maior parte dos devedores (quase a metade) estava localizada nas
proximidades do Registro, com distância inferior a 3 léguas ou na vizinhança imediata
do mesmo. O segundo maior contingente de devedores vinha de Curitiba, e isso parece
ter relação direta com a forma como a demografia interfere no que chamei de “mercado
relacional”. Mas mesmo com o peso da demografia neste mercado de crédito e de
confiança, tal processo estava também baseado na ação de Francisco de Paula, nas suas
relações preferenciais. Tal se percebe, por exemplo, no fato que os moradores da
Fazenda dos Papagaios, inclusive os escravos, dispõem de maior crédito que os
habitantes da Capela do Tamanduá, mais próxima e mais populosa, ainda que ambas 644 BN-II-35,25,13 (Transcrição de Martha Daisson Hameister). 645 Dados aproximados (e arredondados), baseados em fontes diversas. LISTAS FONTES.
342
fossem muito pequenas, mesmo para os padrões coloniais. Mas ao mapear isso,
interessa ressaltar como a densidade comunitária, no caso aquela produzida pelas
relações diárias de Francisco, criou condições para a existência destas dívidas.
Manuel José percebeu como estas dívidas tinham um caráter peculiar,
forjadas na relação entre Francisco e seus conhecidos, reiteradas pela repetição
cotidiana do contato. Mas Manuel levou algum tempo para isso, ao menos um ano. De
qualquer maneira, recebeu instruções para cobrar as dívidas. Depois de algumas
semanas, Manuel José começa a informar-se dos devedores e procurá-los, iniciando
quase que uma cruzada para a cobrança e assim ia gastando papel e tinta com aquelas
[dívidas] de que me dão notícia.646 Esta política de cobranças teve seu preço e Manuel
José teve alguns problemas. Em meados de 1800 ele se queixava pelo fato de adquirir
inimigos assim como vai sucedendo por causa das do Paula.647 Um ano depois ele
voltava ao mesmo problema, falando de dois inimigos encobertos que tenho por causa
da cobrança.648
Ao mesmo tempo, sua atitude diante daqueles que não tinham como pagar
se transformou. A viúva de um tropeiro devedor teria seus bens embargados por ação
dele, em meados de 1797, quando Manuel não tem nenhum receio de sua eficácia,
quando, no máximo, comenta que os parentes da viúva queriam obrigar-se por ela.649
Em 1802, sua posição mudava profundamente, após anos de interação na comunidade e
com seu próprio chefe: espero que ela pague este verão para então livrá-la da conta
que é por crédito e com fiador e por conhecer a pobreza e pagar o que não comeu lhe
não tenho posto em juízo.650
Manuel José passava por um aprendizado importante para sua sobrevivência
naquela região. Vindo de fora, ele tardou algum tempo, poucos anos, para compreender
como se davam as relações de poder e as práticas costumeiras na região, dentre as quais
estava esta certa dose de caridade que havia para com as viúvas, além do fato que as
dívidas deveriam ser pessoais, e sua transferência poderia ser mal interpretada.
Aprendera também que alguns eram capitães, e ele nada era. Talvez os problemas que
646 BN-II-35,25,03-026 647 BN-II-35,25,17-007 648 BN-II-35,25,17-014 649 BN-II-35,25,03-016 e 017. 650 BN-II-35,25,03-030
343
teve com seus inimigos tenham sido particularmente “didáticos” neste aprendizado, mas
acho que suas relações, lentamente construídas, foram mais eloqüentes.651
Tais elementos nos fazem lembrar de certas posturas assumidas por uma
carta de 1778, escrita por alguns tropeiros. Eles faziam queixa de Antonio Fernandes do
Vale, o qual, segundo os autores da missiva, esgotava os tropeiros com suas cobranças
tomando e comprando crédito para cobrar dos ditos negociantes a frieza do contrato,
cobrando juros ilicitamente homem tão terrível que não consente vender animais sem
que primeiro se lhe pague quanto se lhe dever.652 Não era da prática costumeira do
sertão de Curitiba a transmissão de créditos a desconhecidos (e por isso o estranhamento
com a compra de créditos), muito menos para a cobrança fria do contrato, ou seja, a
alienação das condições estabelecidas entre as pessoas, que muitas vezes não era toda
apresentada nos documentos formais.
E tais práticas não parecem arcaísmos fadados ao desaparecimento, ao
menos até o final do XVIII, como prova o próprio aprendizado de Manuel José. Não era
ele o forasteiro que trazia novidades sobre como interagir com os outros agentes
econômicos, mas era ele o forasteiro que lentamente se integrava e aprendia a dançar
conforme a música local, naquele enorme baile de família que era o caminho das tropas.
Outra evidência é particularmente boa: ao longo do período entre 1780 e 1810,
encontrei apenas uma letra de câmbio nas escrituras de Curitiba653, em 1792, contra 27
em Porto Alegre. As letras eram promessas de pagamento que circulavam como moeda,
mas apenas entre as praças onde quem prometia atuava. De algum modo, isso poderia
significar a alienação da pessoalidade nos negócios, já que alguém poderia comprar a
“promessa” de um desconhecido. Os funcionários da Casa Doada utilizavam letras em
seu trabalho, mas seu uso é voltado todo para o transporte de recursos entre Curitiba e
Sorocaba (entre Sorocaba e São Paulo, o que circula é o consistente metal). E estas
letras são passadas dentro do grupo que fazia parte das redes mais densas daqueles
funcionários, especialmente dos conhecidos de Antonio Francisco de Aguiar.
651 Neste sentido é muito relevante o que nos aponta BOTH, Família e rede social. Papéis, normas e relacionamentos externos em famílias urbanas comuns 652 AHU. São Paulo (avulsos) Cx. 9. Doc. 475. 653 1TABCUR-024-042
344
Se Manuel José teve um lento aprendizado, o mesmo não pode ser dito de
Antonio Francisco de Aguiar. Nascido e criado em Sorocaba, aparentado de um dos
sujeitos mais ricos da localidade, que possuía igualmente boas relações, Aguiar fazia
suas cobranças e inspeções de uma forma muito “confortável”, digamos. Enquanto
Manuel José dependia de viagens à vila e do estabelecimento de contatos e pedidos de
informações, ao menos no início de sua atividade, quando relata isso com maior
cuidado, Aguiar, nas poucas pistas de suas ações (que eram óbvias para ele) nos fala de
alguns poucos tropeiros que desconhecia para os quais faria indagações ou enviaria um
cobrador, como o fez para um sujeito de Minas, em 1807.654 Mas a grande maioria dos
devedores pendentes que lhe cabia cobrar era de conhecidos seus ou haviam tido como
fiador amigos pessoais seus, muitas vezes o Coronel Vaz, Francisco Luis de Oliveira e
seu compadre e amigo Padre Manuel Caetano de Oliveira. E ao que parece, Aguiar
conseguia tudo isso praticamente sem sair de seu “posto” no Registro de Sorocaba,
quanto mais da vila. Conhecendo gentes de outras localidades, cujos conhecidos
passavam pelo Registro, Aguiar promovia suas cobranças com grande eficiência.655
O aprendizado de Manuel José e as relações de Aguiar garantiram um
fenômeno interessante ao longo do período que atuaram. Herdando muitíssimas dívidas
dos inspetores antigos, não só puderam garantir o pagamento de vários daqueles débitos
como garantiram, ao longo do tempo, que os tropeiros fossem pagando dentro de um
prazo relativamente curto. Segundo a prática estabelecida pela Casa Doada, acordo
tácito com os tropeiros, uma fiança era exigida para a “pendura” do tributo, o ingresso
na vila e a comercialização dos animais. Com isso os tropeiros teriam condições de
tornar-se solventes e honrar aqueles tributos.
Várias coisas podiam atrasar este pagamento: demora na venda, prejuízo por
pestes, mercado saturado de animais, falta de sal e pastos, dentre outros. Isso tudo
ocorria com freqüência e prejudicava a ordem de pagamentos. Mesmo assim, dos
tropeiros que pude identificar e calcular o tempo para acerto de contas com a Casa
Doada, metade pagou no prazo de um ano. 1/3 levou até dois anos para o pagamento,
10% pagou em três anos e cerca de 5% necessitou mais de anos ou simplesmente não
pagou. Me parecem dados relevantes, considerando que seria fácil vender os animais e
654 BN-II-35,25,25-27-106 655 BN-II-35,25,25-27
345
sumir, ainda mais que boa parte dos tropeiros fez apenas uma viagem em sua vida. Mas
“sumir” não seria fácil, considerando-se que Aguiar, sentado em Sorocaba, podia fazer-
se presente em uma área bastante grande. E tudo isso mesmo com a iniciativa de Aguiar
de facilitar condições na segunda metade da década de 1800, período difícil para
aqueles negociantes.
Um comércio hierarquizado
E como um sujeito como o Coronel Vaz era conhecido em tantos lugares? E
como ele e os capitães conseguiam estender seus títulos locais em uma área tão vasta
como aquela do caminho das tropas? Vaz tinha o título de Coronel em Curitiba, mas era
reconhecido daquela vila à de Sorocaba, desta à de Guaratinguetá, em Santos e
especialmente em São Paulo. Certamente devo destacar o movimento que ele podia
fazer, circulando continuamente por tantos territórios, como ele mesmo dizia,
transitando [inclusive] matarias bravas, só povoadas de onças e venenosas
serpentes.656 E como ele, tantos outros capitães circulavam em diversos espaços fazendo
negócios, tropeando e estabelecendo contatos que poderiam transformar-se em bons
negócios futuros. E certamente para isso contavam com uma forte estrutura doméstica
que garantia sua retaguarda, filhos, cunhados, genros, esposas e escravos.
Há também o resultado desta circulação, assim como o motor dela: as redes
de relacionamentos que um sujeito destes poderia construir ao longo de sua vida.
Certamente o Coronel Vaz beneficiava-se delas e encontrava nisso reconhecimento, não
apenas daqueles seus novos ou antigos aliados, mas igualmente daqueles com quem
estes faziam suas transações. Já apresentei o caso de José Manuel Tavares da Cunha,
que ficou devendo em Curitiba com título de afilhado do Coronel José Vaz.657 É
relevante a palavra título para referir ao parentesco ritual do compadrio. De algum
modo, é como se Tavares da Cunha tivesse um cartão de crédito do “Banco da
Reputação do Coronel Vaz”, para jogar com algumas práticas econômicas atuais. Ao
usar seu cartão, Cunha estava legitimando a reputação de seu padrinho e utilizando-se
dela. E ele certamente não era o único. A forma como credores e devedores se
entrelaçavam múltiplas vezes, principalmente nas comunidades, mas também fora
destas, reforça este argumento.
656 AHU. SP. (avulsos) 1223. 657 BN-II-35,25,03-023
346
Antonio Francisco de Aguiar era muito bem relacionado em Sorocaba e com
pessoas de outros lugares e isso lhe rendeu a atuação como fiador em diversas
oportunidades, das quais tanto comentava na sua correspondência com o tesoureiro em
São Paulo. De Manuel José Correia da Cunha não sei de nenhuma fiança e há duas
razões especiais para isso: ele havia chegado há pouco tempo em Curitiba e residia
longe da vila, o que não lhe permitia uma construção mais rápida de contatos, talvez
mais fácil em um contexto de densidade populacional maior que o entorno do Registro
de Curitiba, onde habitava. O segundo motivo é mais concreto: ele recebia um ordenado
anual e tal quantia não significava tanto. Em 1806 ele recebeu um aumento, passando de
100$000 para 200$000. O valor médio pago em tributos pelos tropeiros era superior ao
seu rendimento anual (calculei 201$000, triste ironia para Cunha). Cunha não era,
assim, um sujeito bom para fianças. Mas com o passar do tempo, ele foi construindo
suas relações e adquiriu muitos amigos, assim como inimigos:
Enquanto aos meus inimigos é somente Joaquim Barbosa Leite sujeito com quem a minha fala nunca se embaraçou só sim andar de vigilância por ser passador de animais por alto e por eu ser amigo do capitão Inácio Serino irmão do mesmo Barbosa de quem é inimigo, e dar-se comigo João Vieira Gonçalves de quem é inimigo e se o dito Barbosa tivesse a quem fazer queixa do Tenente Coronel Peixoto a teria feito como fez de mim por este ter feito uns requerimentos a dito Vieira contra o mesmo Barbosa eu mandei para Sorocaba ao Tenente Coronel Antonio Francisco um papel para ele assinar pelos tropeiros que lá se acham e pelos de cá hei de assinar outro para que eu com tropeiro tenho tido coisa alguma antes a muitos tenho emprestado dinheiro de forma ao presente me estão oito devendo duzentos e tantos mil réis
Nunca encontrei nenhum registro de empréstimo onde Cunha aparecesse
como credor ou devedor, o que reforça a idéia de que tal mercado era baseado em
acertos orais e na densidade das relações entre credores e devedores. Após anos de
problemas por cobrar contas atrasadas deixadas de lado por antigos administradores,
Cunha começava a ganhar a confiança local, fazer amigos e, corolário, emprestar. O
caso narrado por ele, de amizades e inimizades também reforça o argumento de que
circuitos muito fechados não produzem somente confiança. Os conflitos entre irmãos e
oposições locais, como as que Cunha pode penetrar, faziam parte dos jogos cotidianos e
alteravam os resultados econômicos, propiciando recursos para uns e problemas para
outros.
Para além do movimento e das relações, o amplo reconhecimento dos
capitães também se baseava em aspectos visuais. Se, como vimos anteriormente, a
347
imagem das pessoas era base para sua classificação, para sua rotulação, certamente não
seria difícil para os homens e mulheres de fins do XVIII e inícios do XIX reconhecer
um capitão quando vissem um. E não apenas porque eram famosos pela publicidade
feita por seus afilhados e amigos, mas porque apresentavam publicamente suas insígnias
políticas, visualmente inconfundíveis, além de seu reconhecimento e tratamento
público, como nos fala Rego.658 Em 1787, um Capitão de Ordenanças do Rio Grande,
Manuel José de Alencastre, acusava um Capitão de Auxiliares, Custódio Ferreira de
Oliveira Guimarães, de prendê-lo injustamente
...como se fora o suplicante um transgressor de lei, ou facinoroso, sem atenção a uma patente Régia com que Sua Majestade foi servido honrar o suplicante e o distinguir da plebe, que o suplicante ultrajado de palavras injuriantes afetivamente em sua ausência ameaçando ao suplicante continuamente com prisões e que lhe havia de mandar tirar a farda e as divisas de oficial até o pôr em prisão de simples soldado de sua companhia659
E não eram apenas os oficiais que tinham uma farda com divisas. Pardos,
forros e pretos eram reconhecidos com grande facilidade. Só utilizando a
correspondência da Casa Doada já podemos perceber como isso se dava. Em 1806,
Antonio Francisco de Aguiar comentava que a guia n.359 da quantia de 141$920
devedor Geraldo Gomes Teixeira, homem pardo, que passado no Registro de Curitiba
uma caponada velha.660 Não era a primeira vez que Aguiar classificava com os olhos,
evidentemente. Isso devia ocorrer o tempo todo, mas encontrei esta nota de 1796 onde
discutia com o tesoureiro de São Paulo sobre quem era
Manuel José Ferreira, de Minas Gerais, o não conheço mas, só sei que haverá três ou mais meses passou por esta Vila um sujeito de Minas para o continente que pelo aspecto e demonstrações sendo de bem ia bem quebrado para vender nestas besta, e alguns trastes661
Também Manuel José Correia da Cunha deixou passar uma breve nota sobre
a classificação visual que normalmente fazia, ao discutir, também com o tesoureiro de
São Paulo sobre
Manuel Francisco Lima julgo não ser o que vossa mercê julga para ser cunhado de José Lopes de Oliveira parece-me ser branco, e o capitão José Francisco de Sales
658 REGO, A limpeza de sangue e a escrita genealógica nos dois lados do Atlântico entre os séculos XVII e XVIII: Alguns aspectos. 659 AN. Códice 104. Vol. 09. p. 310. 660 BN-II-35,25,25-27-096 661 BN-II-35,25,25-27-028
348
pode dar melhor notícia para ser o dito Oliveira enviado deles. Isso mesmo participei ao capitão Antonio Francisco.662
E estes eram qualificativos compartilhados em todo o espaço que
investiguei, e acredito que estavam dentro da mesma lógica de classificação, uma régua
social que ia de Brigadeiro a Preto, passando por Capitão, Tenente, Dona, Pardo e
Forro. O exame das listas de devedores da Casa Doada mistura todos aqueles em
débito, mas os classifica conforme a posição social. Assim, aquelas listas estão
povoadas de pretos, pardos, capitães, tenentes, alferes e Tenentes-Coronéis, quando
outras classificações poderiam ser usadas, como tropeiros e condutores, informação
relevante, atribuída aos sujeitos em pequenas notas à margem, mas nunca usada para
apresentá-los, para qualificá-los.
Há algo, contudo, que de algum modo dá sentido a todos estes elementos.
Convém observar com atenção o argumento de Alencastre, o Capitão de Ordenanças
que foi preso. Ele se queixava do desrespeito à patente que sua Majestade lhe havia
dado para o distinguir da plebe. Estava claro para ele que não era plebeu e que suas
divisas eram apenas a manifestação visual de sua superioridade afirmada pela
monarquia. Ao conceder patentes, o monarca sacralizava poderes locais e contribuía
para a reafirmação de seus próprios poderes. A imagem do rei refletia em seus nobres
(mesmo nos de segunda categoria) como a imagem do pai refletia nos filhos, como a
imagem do Coronel Vaz refletia em seu afilhado e a do senhor em seus escravos. Mas
este lastro do poder local não se sustentava apenas na familiaridade entre Rei e certos
súditos, ele também encontrava materialidade nas práticas políticas de oficiais régios em
terras americanas. Em 1776, no início de seu governo, Martim Lobo de Saldanha
escrevia ao Juiz de Fora de Santos dizendo que
...nem no Reino, e muito menos na América, onde qualquer branco faz figura atendível se poria semelhante dúvida a um Capitão de Auxiliares, inquestionavelmente nobre, como outro que de posto semelhante da tropa paga. O serem os Capitães de Auxiliares negociantes, é assim forçoso em quase todo o Brasil, especialmente nesta Capitania onde uns são mercadores, outros traficantes, outros tropeiros, outros condutores, e poucos serão os isentos destes manejos, e se por isso não houverem de gozar dos privilégios da nobreza dos postos, e de tais regalias como a de que se trata, nam [sic] disputada até agora na América ... os
662 BN-II-35,25,03-013
349
menos atendíveis, poucos seriam os capitães, e nem uns com justa razão quereriam tais postos...663
Tudo isso porque o escrivão do Juiz teria colocado dúvidas sobre o
comportamento de um Capitão de Auxiliares. E Lobo de Saldanha não admitiu isso:
...repreenda vossa mercê severamente ao orgulhoso escrivão que argüiu tal dúvida que certamente não terá posto a outro simples negociante, quanto mais sendo Capitão de Auxiliares ordenando-lhe que se mais levantar semelhantes intrigas o mandaria buscar preso em ferros, e o castigarei condignamente. 664
Havia uma clareza muito grande por parte deste governador sobre o peso
que os Capitães de Auxiliares tinham naquela sociedade e o fato de atuarem no trato
mercantil não desqualificava sua posição. Antes, pela forma como Saldanha constrói
seu texto, parece que aquela nobreza (aqueles que mereciam ser nobres) precisava
negociar e optava pelo serviço militar como forma de ter o reconhecimento de sua
qualidade. Não havia dúvida sobre a superioridade de certas famílias, e os postos
militares apenas cumpriam o papel de legitimar esta situação. A própria existência de
uma Nobiliarchia Paulistana Historica e Genealogica, escrita por Paes Leme ainda no
século XVIII indica o quão consciente de seu status era a elite paulista e como era ciosa
de sua ancestral natureza.665
Esta clareza de estatuto superior, manifesta e assumida pelos capitães
paulistas, atingia seu significado maior quando percebemos que entre eles também havia
obséquios de grupo corporativo, reconhecimento mútuo e foro próprio. O
comportamento daquela nobreza local era monitorado e avaliado constantemente por
seus pares e nisso a circulação de informações cumpria seu papel, através de redes de
relacionamentos bem estruturadas entre os próprios capitães e seus pares. Não havia
necessidade de controle estatal que regulasse seu comportamento. Como vimos, o
Capitão César era monitorado, como também o era o Doutor José Joaquim de Oliveira
Cardoso o era. E Manuel Gonçalves Guimarães tratava logo de procurar o inspetor de
Curitiba para saber, afinal, que dívida tinha. E tudo isso de forma muito semelhante ao
controle que havia, por exemplo, entre os membros da Merchant Adventures inglesa, o
663 Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Arquivo do Estado de São Paulo. V. 75. P. 07-08. 664 Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Arquivo do Estado de São Paulo. V. 75. P. 07-08. 665 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana Historica e Genealogica.
350
que incluía inclusive a educação dos membros, sua assistência religiosas, dentre outras
atividades públicas.666
Esta corporação mercantil (mercantil até quando era preciso fazer negócios,
pois era uma irmandade baseada na política) é particularmente visível na forma como
Antonio Francisco de Aguiar trata seus pares, sempre como amigos (aliás, uma das
palavras que mais aparece na correspondência da Casa Doada é amigo), e lhes confia
grandes somas. Não vou julgar quão verdadeiramente amigos estes sujeitos eram entre
si. A experiência de Aguiar remove todas as dúvidas. E a amizade, mesmo em um
sentido amplo, era um dos valores que deveria presidir a corporação, especialmente a
mercantil, já que a fraternidade entre negociantes podia garantir o bem comum e afastar
o problema da “má fé”. E ainda deve-se lembrar o apelo familiar destas agrupações e a
forma como fundiam fé e negócios, ao manter, paralela à corporação, uma irmandade
religiosa, que garantia um caráter cristão à identidade do grupo. 667
Por isso que os negociantes da Merchant Adventures deveriam ir juntos à
missa e aos enterros.668 E por isso que em seus testamentos, os membros da corporação
dos capitães sempre invocavam seus “irmãos” das confrarias. A noção de irmandade
praticada por aqueles capitães não encontrava eco no direito, mas era uma prática social
de comum entendimento para quem vivia naquelas regiões. E a família era também o
espaço por excelência da caridade. Era o espaço político, se lembrarmos da forma como
se organizavam tendo em conta a hierarquia geral. Era o espaço econômico, se
lembrarmos como a produção estava organizada. E era, por fim, um espaço importante
da religiosidade, se lembrarmos os santos de casa, relevantes a ponto de ser lembrados
nos testamentos, como vimos. A família era uma agrupação realmente efetiva para
aqueles homens e mulheres, e acabava servindo de modelo para outras instituições.
E, afinal, o reconhecimento da monarquia era uma forma de sacralizar
aquela corporação e seus membros, uma agrupação que não era eterna mas que garantia
os pontos fixos necessários para que tudo mais pudesse circular. Neste sentido, estou
adotando aqui um referencial baseado na importante obra de Maurice Godelier, quando
666 BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas, p. 396. 667 CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna. 668 BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas.
351
discute os pontos fixos que permitem que os bens se movimentem.669 Podemos,
contudo, encontrar base teórica mesmo entre autores com notória inspiração neo-
clássica, ainda que críticos, como Douglass North, quando argumenta que a solidez de
los códigos morales y éticos de una sociedad es el cemento de la estabilidad social, que
hace viable un sistema económico.670
Esta dita corporação, me parece, era um processo em andamento que
começava a ser produzido por seus “membros” durante as décadas de 1760 e 1770, no
contexto das guerras com os espanhóis ao sul do continente. Talvez seja necessário
recorrer a uma temporalidade maior para compreender plenamente este fenômeno. Na
verdade, a produção desta elite de fins do XVIII no caminho das tropas é um capítulo do
longo processo de formação de elites nestas regiões, baseadas naquele princípio que
chamei de re-filiação, na qual a escolha do cabeça familiar era um processo tenso que
poderia incluir vários candidatos, filhos e genros. E esta era uma forma atrativa de
incorporar aos núcleos familiares estranhos bem apanhados, recém chegados com
recursos relevantes para os empreendimentos domésticos.671 E de algum modo, os filhos
entram no jogo em condição análoga à de aprendizes. Como vimos antes, muitos filhos
de Capitães eram Alferes. Era mais um aspecto daquela curiosa agremiação.
No período específico do contexto de guerra, isso acaba adquirindo um
caráter de ordem militar. Mas são as famílias da elite tradicional paulista (e um esboço
de elite que já se desenha no Rio Grande) que vão seguir incorporando genros ao grupo.
São estas famílias e suas parcelas, digamos, renovadas, seus recursos, sua pública fama,
suas fazendas e escravos que vão optar pela incorporação dos títulos militares aos seus
nomes. Por um lado o faziam pelo significado que a guerra tinha naquele mundo,
associada à demonstração de valentia, à violência e à hierarquia social, todos valores
relevantes para aqueles homens e mulheres. Por outro, era conhecida a política de
reciprocidade da monarquia, que toda a comenda ou contra-dádiva provinha do serviço,
e esta certeza entrava no cálculo daquelas pessoas, que sabiam, igualmente, que sua
incorporação, sendo membros da elite local, seria já com patentes expressivas.
669 GODELIER, O Enigma do Dom. 670 NORTH, Estructura y cambio en la historia económica, p. 63. 671 NAZZARI, O Desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900.
352
No início, foi esta elite local costumeira que encheu de sentido os postos
militares, pois já comandavam a sociedade em suas repúblicas. Mas só optaram por
seguir este rumo, pois reconheciam a monarquia, suas possessões na América e seu
caráter mágico de transformar mandões locais em nobreza local. A monarquia, cabeça
do império, era um valor compartilhado e mesmo necessário para que a abstração
“capitão” fizesse sentido. Era o paradigma corporativo funcionando plenamente.672 A
recriação da hierarquia social dentro de uma ordem nominalmente militar teve como
corolário a incorporação de outras categorias sociais àquela hierarquia. Assim, capitães
não comandavam apenas soldados, mas donas, pardos, forros, índios e pretos. Isso, de
algum modo, envolvia toda a sociedade.
O comércio, inclusive o de animais, também contribuiu para a existência
daquela corporação dos capitães. O movimento e as alianças que se estabeleciam entre
aqueles oficiais, que como nos conta o governador eram todos negociantes, promoveu
uma integração maior entre aqueles pares e seu reconhecimento mútuo de nobreza abriu
caminho para o desenvolvimento de uma política nobre, de obséquios e eqüidade entre
alguns daqueles negociantes oficiais. Uma curiosa criação dos vassalos americanos:
práticas de corporação mercantil promovidas por uma nobreza local aparada por
escravos e agregados que garantiam o próprio contraponto, para que a elite pudesse se
posicionar com tal, tendo em conta, principalmente, que se tratava de uma nobreza
pobre, ainda que mercantil.
É chegada a hora de reavaliar os argumentos dos tropeiros na carta de 1778,
a qual tratava dos abusos feitos por Antonio Fernandes do Vale no Registro de Curitiba,
como vimos no capítulo 4. Especialmente porque ela nos fala da forma como aquele
grupo foi gerado. Retomemos os principais pontos: os negociantes que vivem de
comprar cavalos, mulas e gados nos continentes do sul (mas não todos, apenas os de
maiores tropas e mais conhecimento) acusavam Antonio Fernandes do Vale de, dentre
outras atitudes ambiciosas, cobrar juros inapropriados, como ninguém jamais havia
cobrado naquele Registro, o que vexava aos pobres tropeiros. Entre outras coisas,
pediam acesso à justiça Régia, em nome do bem comum e do serviço de Deus, assim 672 Sobre o paradigma corporativo, ver CLAVERO, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna; HESPANHA, As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político (Portugal - século XVII); HESPANHA, Antonio Manuel, A cultura jurídica europea. Síntesis de un milenio. (Madrid: Tecnos, 2002); HESPANHA, Antonio Manuel (org), História de Portugal. O Antigo Regime (Lisboa: Estampa, 1998).
353
como dispensa de servir como soldados e lembrança na concessão de Postos e Ofícios.
Afirmavam, ao final, que nada nos havia suceder se Vossa Majestade estive se mais
perto de nós, ou se o mar nos não impedisse.673
Primeiro: este grupo parece ter uma identidade que recorda, ainda que
vagamente, a noção de corporação. Eles se apresentam como negociantes, como
tropeiros, mas não se identificam com todos. São os de maiores tropas, numa oposição
que bem lembra as arti maggiori e as arti minori florentinas modernas.674 Têm muito
claro qual é o problema de Fernandes do Vale: a avareza. Era um homem terrível,
incapaz de qualquer obséquio, de qualquer benevolência, que ainda tinha o agravante de
ir contra o costume de não cobrar juros naquele Registro, ou seja, atentava contra uma
prática que não tinha amparo judicial, mas existia no direito nativo. Com tudo isso, ele
prejudicava os pobres tropeiros e, finalmente, prejudicava a própria Rainha. Estes dois
últimos argumentos, particularmente, são bastante semelhantes àqueles utilizados por
Antonio Francisco de Aguiar em sua apreciação sobre a necessidade de se aceitar
fiadores com rapidez e respeito à equidade. Tanto ao dramatizar a cena destacando a
suposta pobreza dos tropeiros, como ao salientar a quebra do comércio e da Rainha, que
mais tarde Aguiar já chamaria de Estado.
Ao analisar o estilo do comércio feito ao tempo de Aguiar e aquele desejado
pelos tropeiros maggiori, é possível afirmar que, de algum modo, eles venceram. Seu
projeto de economia no caminho se transformou em realidade e é bastante provável que
entre aqueles de 1778 estivessem muitos dos que ainda negociavam nos anos 1800,
além de seus filhos. É possível, tendo este contexto em mente, imaginar um mundo
onde a cobrança desenfreada de juros perdeu seu ar de pecado? Me parece que, para
aqueles homens, o futuro, se pensavam nele com nós o fazemos, estaria marcado pela
equidade como princípio e pela caridade, onde a troca de obséquios estivesse presente
nas trocas entre os homens. Mas isso é outra coisa. Importa, por fim, salientar que se
aquele projeto de 1778 tendeu a se consolidar, ele já continha, naquela fórmula original,
o compromisso com a monarquia lusa, manifesto na explícita reivindicação por postos a
cambio de fidelidade, mas acima de tudo, na expectativa de que os poderes régios
673 AHU. São Paulo (avulsos) Cx. 9. Doc. 475. 674 BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII. Os jogos das trocas.
354
trouxessem justiça. E foi com estes poderes, dentre outros, que aqueles negociantes
construíram sua ordem.
355
Conclusões É chegada a hora de dar adeus a Antonio Francisco de Aguiar e seus
amigos. Sejamos breves na despedida: o crédito fluía com grande facilidade dentro
daquilo que chamei de “corporação dos capitães”, baseado em acertos pessoais,
predominantemente orais, nos negócios familiares (no sentido amplo de família) e nas
chamadas redes densas. Não se tratava, todavia, de um grupo encastelado. Sua posição
só estava dada pelos acertos com a monarquia e com as bases sociais comunitárias.
Iniciando com esta afirmação crua, vejamos detalhadamente cada aspecto que foi
mencionado.
A economia das tropas não estava em franca expansão, podendo ser
inclusive classificada como relativamente pobre, na comparação, por exemplo, com o
mercado de cabotagem da Praça do Rio de Janeiro, ou mesmo com os negócios dos
mercadores da Vila de Rio Grande. A maior parte das economias domésticas se
organizava baseadas na mão de obra familiar, ainda que bom número de unidades
acolhessem agregados e até mesmo escravos. Estes últimos estavam concentrados em
casas mais aquinhoadas, pertencendo a senhores que se encaixavam no perfil de
“capitão”. A montagem de uma tropa era razoavelmente acessível a muitos, ainda que a
continuidade neste negócio não fosse fácil. A pouca liquidez daquela sociedade
demandava grande necessidade de crédito, assim como acesso à pastagens, peões e
outros elementos necessários para o transporte dos animais.
Diante das dificuldades que havia para a montagem de uma tropa, o acesso à
informação era fundamental. Todavia, as notícias corriam seguindo itinerários nada
“democráticos”, sendo um tanto irregulares e, sobretudo, seletivos. De forma geral, as
comunidades que estavam à margem do caminho eram razoavelmente isoladas umas das
outras por dias de viagem e, mais do que isso, marcadas por uma expressiva endogenia
nas alianças familiares e sociais, como matrimônios e compadrios. Neste sentido, a
manutenção de relações com sujeitos que tinham primazia na troca de informações
(baseada na conversa, em primeiro lugar, seguida da correspondência), aquilo que
chamei de banco de informações, acabava permitindo a uns, acesso a este precioso
recurso, fundamental para o pleno sucesso de uma tropa. Saber quem dispunha de
recursos para emprestar, quem tinha animais para vender, onde encontrar sal e obter um
bom fiador eram preocupações normais para aqueles negociantes.
356
Tal como as informações, a confiança era gerada na interação, mas também
de forma irregular, onde preconceitos, intrigas e exageros entravam no cimento daquela
substância. Noções como eqüidade e hierarquia social tinham um peso maior na sua
produção, e as relações pretéritas tendiam a ser conversar. Isso não impedia um
monitoramento dentro dos grupos mais densos (dentro da família, das corporações, das
sociedades mercantis, das senzalas). Mas isso não significava imediato ostracismo para
o padrão não compartilhado, ainda que punições estivessem previstas.
A evidência maior de que a confiança estava diretamente relacionada com a
hierarquia é a forma quase precisa como os recursos outorgados nos créditos se
distribuíam seguindo uma ordem profundamente política e nada econômica. Tinha uma
lógica oikonomica, baseada na economia doméstica, já que o crédito e a reputação de
um sujeito, um “capitão”, poderiam ser distribuídos (também seguindo a hierarquia)
dentro de seu núcleo familiar, filhos, genros, cunhados, mulheres, agregados e escravos.
Tal processo seguia a lógica de sociedades corporativas e católicas. Entendo, assim, a
confiança como uma medida social, uma medida deliberadamente imprecisa que se
produzia com base em certos indicadores, como a hierarquia, as relações e o
comportamento, nesta ordem.
Era uma economia comandada por “capitães”, que lideravam não apenas
soldados, mas mulheres, escravos, peões, agregados, vizinhos, contratos, tropas e casas.
As bases deste comando estavam na sua própria relação com seus “subordinados”, no
parentesco e nas políticas de reciprocidade. Acrescente-se aqui outros valores
importantes, como a ousadia e a prerrogativa do uso da violência como elementos de
distinção social. Há uma forte concentração das atividades econômicas na mão destes
capitães, inclusive no que se refere ao crédito. Tendo em conta a população das
localidades, poucos são os devedores e poucos são os credores e fiadores. E em número
ainda menor são aqueles que participavam com freqüência deste mercado. E estes
poucos estão de diversos modos todos conectados entre si, direta e indiretamente.
Havia, assim, uma notória densidade de relações de crédito e confiança dentro das
comunidades. Para além destas, cruzando o espaço, um número ainda menor de pessoas
mantinha seus negócios, gente como o Coronel José Vaz de Carvalho ou o Coronel
Manuel Gonçalves Guimarães, reis num mundo de capitães.
357
A chamada “corporação dos capitães” era uma camada de relacionamentos
onde os obséquios e o crédito fluíam com velocidade. De certo modo, esta camada, esta
corporação, ainda estavam se montando ao longo do período que observamos, e só se
torna mais visível nas práticas de seus “membros” para o início do século XIX. Para
este período, a densidade destas relações é quase tão densa como àquelas de ordem
familiar, e estava marcada e inspirada na lógica familiar, no reconhecimento mútuo e na
troca de graças. Era um grupo com analogia às corporações de ofícios, mas sem ser
uma, formalmente. Mantinham um controle social entre si, o que era permitido pela
forma com eles mesmos circulavam e faziam a informação circular. Em termos de
relacionamentos, eles se colocavam acima das relações comunitárias, mas também
dentro destas, participando de diferentes camadas de relacionamentos e sacavam
proveito disso. Ao fim e ao cabo, com isso podiam controlar a própria movimentação de
homens, mulheres e recursos dentro daquele vasto território.
Esta corporação confundia deliberadamente família, negócios e governo
(incluindo polícia), e de algum modo se sentiam irmanados pela amizade e a confiança
depositada e validada na experiência. Os tropeiros, sem serem tropeiros, tinham sua
corporação de capitães, sem ser corporação formalmente. E ela era que garantia os
pontos fixos para que os animais passassem: a confiança entre os negociantes, os
obséquios do crédito e da política. Mas para que tal corporação fosse feita
cotidianamente pelos capitães, era preciso que houvesse outros pontos fixos: o
catolicismo, a monarquia, as noções de equidade, sociedade corporativa e família.
358
Fontes
Arquivo da Cúria de Vacaria Livro de Batismo n. 01
Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre Livros de testamentos: 01
Livros de Batismo: Porto Alegre, 01, 02.
Livros de Batismo: Viamão, 02, 03, 04
Livros de Batismo: Anjos, 01
Testamentos: Livro T1.
Róis de Confessados: Anjos, 1780, 1782, 1784, 1789, 1790, 1791
Róis de Confessados: Viamão, 1778
Róis de Confessados: Triunfo, 1758
Arquivo General de Indias Gobierno. Buenos Aires, 333 e 065
Arquivo General de La Nación (Argentina) División Colonia. 843. Alcabalas de Soriano
Arquivo do Estado de São Paulo Listas Nominativas (Maços de População) Sorocaba: 1780; 1790; 1801; 1810; Lages: 1782, 1783, 1786, 1787, 1789, 1790, 1791, 1792, 1794, 1796, 1797, 1799, 1803, 1804, 1805,
1810; Livros diversos do Tabelião de Sorocaba (1787-1789; 1790-1792; 1792-1793; 1793-1795; 1796-1799;
1799-1800)
Testamentos de Sorocaba: Antonia Pacheco de Arruda; Antonio de Almeida; Antonio de Arruda Penteado; Antonio de Barros Lima; Barbara Maria de Jesus; Bento de Madureira Camargo; Domingos Rodrigues de Macedo; Francisco Borges da Costa; Francisco José dos Passos; Francisco Xavier de Oliveira; Germana de Camargo; Inácio de Souza Lima; Isabel Paes de Almeida; Jeronimo Cordeiro do Amaral; Jeronimo Paes de Almeida; Jeronimo da Costa Guimarães; José Joaquim da Costa Noronha; José Vieira Nunes; João Rodrigues de Medeiros; João da Silva Franco; Lucrecia de Almeida; Manuel Carvalho; Maria do Rosário; Martinho Leme da Silva; Miguel Antunes Maciel; Paulino Aires de Aguirre; Rafael Tobias de Aguiar; Salvador de Almeida Lara; Sebastiana Maria Gamarra.
Inventários de Sorocaba: Ana Barbosa; Ana Maria de Oliveira; Ana Pedroso de Anhaia; Ana de Campos Penteado; Andresa de Almeida Pacheco; Antonia Maria e Bento Leme Bicudo; Antonio Bicudo de Almeida; Antonio Garcia; Antonio Leme Anhaia; Antonio Pereira; Antonio Soaes; Antonio de Almeida Falcão; Bento Rodrigues Ferreira; Bras Domingues
359
Vidigal; Caetano Ferraz de Almeida; Cristóvão Monteiro de Carvalho; Domingos Rodrigues de Macedo; Domingos Vaz Monteiro; Escolástica Nunes; Francisco Alves Vieira; Francisco Bicudo de Proença; Francisco de Souza Maciel; Gaspar Ferreira Prestes; Gertrudes Maria de Godoi; Gertudres dos Santos; Guilherme da Silva Claro; Inácio Bicudo de Brito; Isabel Cardoso; Isabel Maria da Anunciação; Jeronimo da Costa Guimarães; Jeronimo da Rocha e Oliveira; Joana Maria do Espírito Santo; Joaquim Barbosa; Joaquim Paula Seabra; Josefa Duarte; Josefa de Oliveira; João Batista; João Machado da Silva; Lourenço Castanho Vidigal; Luis Castanho de Morais; Luis Rodrigues; Luis Rodrigues Gato; Luzia de Abreu; Maria Dias; Maria Francisca de Paula; Maria Rita de Anhaia; Paulino Aires de Aguirre; Pedro da Fonseca Ribeiro; Rita de Godoi Soares; Salvador de Almeida Lara; Teresa Maria; Teresa Maria (2); Teresa de Almeida de Jesus; Tomás Antunes de Camargo; Vicente José de Camargo.
Arquivo da Torre do Tombo Ofícios da Chancelaria.
Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate
Documentos da Capitania de São Paulo (avulsos).
Documentos da Capitania de São Paulo (Coleção Mendes Gouveia)
Documentos da Capitania de Santa Catarina
Documentos da Capitania do Rio Grande de São Pedro
Arquivo Nacional Códice 104. Vol. 09
Códice 469. Vol. 04
Códice 474. Vol. 02
Códice 448. Vol. 05
Códice 457. Vol. 01
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul Códices da Real Fazenda: F1242, F1243, F1244, F1245, F1246, F1247 e F1248.
Relação de Moradores: F1198 A e B.
Arquivo Público do Rio Grande do Sul Registros de Notas do Primeiro Tabelionato de Porto Alegre.
Registros de Notas do Segundo Tabelionato de Porto Alegre.
Assignações de Dez Dias. 1º Cartório Cível. Maço 139.
Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre.
360
Inventários do Primeiro Cartório de Órfãos e Ausentes de Rio Grande.
Biblioteca Nacional Documentação da Casa Doada:
Documento Referência Lista dos Devedores do Registro de Curitiba II-35,25,13 Registro de Animais que passaram no Registro de Curitiba II-35,25,62 Recibos passados por Luis Pereira Machado... 1790-1806 II-35,25,55 Requerimento de Manoel de Oliveira Cardoso... 1793 II-35,25,11 Requerimentos de Francisco de Paula Teixeira... 1795-1796. II-35,25,56 Carta de Francisco Paula Teixeira... sobre a entrega do Registro... II-35,25,48 Prestação de Contas de Antonio Manoel da Silva... II-35,25,53 Correspondência Oficial de Manoel José (Inspetor do Registro de Curitiba) II-35,25,03 Procurações de Manoel José Correa da Cunha, Inspetor do Registro... II-35,25,54 Contas do requerimento dos meios direitos de Curitiba 1796-1809 II-35,25,05 Prestação de Contas de Antonio Fernandes da Silva adm. casa doada II-35,25,38 Requerimentos de M. J. C. Cunha Inspetor do R. solicitando pg. II-35,25,12 Ordens do Ouvidor Geral para o tesoureiro da Casa Doada II-35,25,46 Relação dos Devedores da Casa Doada e conta das importâncias... II-35,25,47 Cartas oficiais do Inspetor do Registro para o Adm. da casa doada. II-35,25,17 Oficios II-35,26,71 (n.4) Recibos diversos passados pelo Administrador da Casa Doada II-35,25,06 Letra passada sobre uma dívida relativa ao imposto do transito... II-35,25,67 Letra promissória em favor de Paulino Aires de Aguirre II-35,25,41 Carta do inspetor do Registro de Sorocaba sobre o livro de registro II-35,25,49 Relação de Guias do Registro de Sorocaba II-35,25,58 Cartas Oficiais do inspetor do Registro de Sorocaba (251 folhas) II-35,25,25-27 Ordem de Serviço para F.daSilva entregas as metades das despesas II-35,25,33 Requerimentos do Inspetor do Registro de Sorocaba aos Ouvs.Gers.SP II-35,25,28 Carta de Ant.Franc.Aguiar para Ant.Man.F.da Silva sobre uma guia II-35,25,50 Carta do Insp.do Registro ao Adminstrador da Casa Doada II-35,25,43 Carta ao "amigo do coração" falando sobre o Registro de Sorocaba II-35,25,59 Requerimentos diversos, dirigidos ao Ouvidor da Cap. São Paulo. II-35,25,04 Ordens dadas ao tesoureiro da Casa Doada Manoel Fernandes da Silva. II-35,25,02 Letra passada por Luis Pereira Machado II-35,25,07 Ordens do Desembargador Miguel Antônio Veiga. II-35,25,08 Registro das quantias carregadas em débito ao tesoureiro Geral II-35,25,09 Requerimento de Antonio Manuel da Silva Bueno-prest.contas da Casa II-35,25,10 Listas de guias da Casa Doada II-35,25,14 Bilhete de I. Pereira ao seu tio Antonio Manuel (F.da Silva) II-35,25,65 Oficio II-35,26,71 (n.6) Requerimentos de Joaquim José Teodoro, escrivão da executoria da Real Fazenda II-35,25,29 Procurações de Antonio Francisco de Aguiar, Inspetor do Registro de Sorocaba II-35,25,30 Cartas de L.P. Machado a A.M.F. da Silva ordenando a entrega de quantias II-35,25,31 Carta de Francisco de Paula Teixeira sobre 400 bois para o Rio de Janeiro. II-35,25,32 Ordens do desembargador Joaquim Procópio Picão Salgado ao tesoureiro da Casa Doada
II-35,25,34
Ofícios do Ouvidor Geral à executoria da Real Fazenda... II-35,25,61 Carta do Capitão Manuel Gonçalves Guimarães a Antonio Manuel Fernandes da Silva em que expõe os motivos por que ainda não pagou à Casa Doada os meios direitos.
II-35,25,35
Contas correntes apresentadas por Antonio Manuel Fernandes da Silva, procurador e administrador do rendimento dos meios direitos da Casa Doada.
II-35,25,37
Requerimento de Pedro Alves da Costa Corte Real ao provedor da Real Fazenda, II-35,25,36
361
pedindo que o escrivão lhe passe por certidão o número de fazendas ou estâncias. Treslado do lançamento do pagamento de meios direitos dos animais pertencentes à Casa de Tomé J.C.C. Real
II-35,25,66
Requerimentos de Antonio Xavier da Costa, escrivão da executoria da Real Fazenda, solicitando o pagamento de seus ordenados.
II-35,25,57
Outros documentos:
Mapa do Rio Grande de São Pedro, suas freguesias e moradores de ambos os sexos, com declaração das diferentes condições, cidades em que se acham em 7 de outubro de 1780. Mss. 9, 4, 9, nº 134.
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CEDOPE
Livro de Notas do Primeiro Cartório de Curitiba. Cartório Giovanetti. Listas Nominativas (Maços de População) Curitiba:
Ano Transcrição Revisão 1976 Cecilia M. Westephalen Julia Maria Ribeiro 1777 Nelson A. Moledo Junior Nelson A. Moledo Junior e Adriane Fila 1781 Micheli Francis Rosa de Oliveira e Marlene
Lazzaron Collaço Sergio Odilon Nadalin
1782 Julia Maria Ribeiro Julia Maria Ribeiro 1783 Julia Maria Ribeiro Ana Luiza de Oliveira e Julia Maria Ribeiro 1786 Liziana Bariviera Tiago Bonato e Liziana Bariviera 1789 Ana Luiza de Oliveira Ana Luiza de Oliveira 1790 Adriane Fila Nelson A. Moledo Jr. e Adriane Fila 1791 Julia Maria Ribeiro Julia Maria Ribeiro 1792 Adriane Fila Adriane Fila, Nelson A. Moledo JR. 1793 Fabrício Forcato e Heleno Brodbeck do
Rosário Fabrício Forcato, Bruno Zorek, Júlia M. Ribeiro e Heleno B. do Rosário
1795 Marcus Vinicius Strapasson, Daniel Vinicius Ferreira e Tiago Bonato
Rosangela Maria Ferreira dos Santos
1796 Solange de Lima Rodrigo Gomes de Araujo 1797 Luiza Guérios Barbosa Luiza Guérios Barbosa e Júlia Maria Ribeiro
Lapa:
Ano Transcrição Revisão 1781 Sem referência Sem referência 1782 Julia Maria Ribeiro Julia Maria Ribeiro 1792 Sem referência Sem referência 1796 Sem referência Sem referência 1797 Sem referência Sem referência 1798 Sem referência Sem referência 1807 Sem referência Sem referência 1809 Fabrício Forcato Allan Kato e Fabrício Forcato
Castro: 1793 – Trancrição: Fabrício Forcato; Revisão: Fabrício Forcato
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Antonina: 1808 – Transcrição: Sandro Vieira Gomes; Revisão: Rosângela Maria Ferreira dos Santos Paranaguá: 1793 – Transcrição: Julia Maria Ribeiro; Revisão: Julia Maria Ribeiro
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