THEODOR ADORNO E HANNAH ARENDT: INDIFERENÇA E IRRESPONSABILIDADE COM O MUNDO
Giovane Rodrigues Jardim1
Resumo:O presente artigo aborda dois fenômenos da sociedade hodierna a partir da perspectiva de Theodor Adorno e Hannah Arendt. Assim, procura-se compreender a “indiferença com o outro”, e a “não responsabilidade com o mundo”, como duas características de uma sociedade onde tudo pode acontecer. Adorno e Arendt, embora sejam pensadores de tradições distintas, possuem elementos comuns em suas elaborações teóricas e em seu comprometimento de analisar e compreender os acontecimentos que envolvem o ser humano e suas condições e potencialidades no séc.XX, um tempo sóbrio no mundo humano.
Abstract: This paper addresses two phenomena of modern society from the development of Theodor Adorno and Hannah Arendt. Thus, we seek to understand the "indifference to each other" and "no responsibility to the world," as two characteristics of a society where anything can happen.
Palavras-Chave: Sociedade de Massa; Mundo Humano; Totalitarismo; Apatia; Frieza.
Key Words: Mass Society; Human World; Totalitarianism; Apathy; Coldness.
1. Introdução
O séc. XX representou um momento histórico de grandes transformações no
mundo humano, não só de progressos e desenvolvimentos como fora antevisto, mas
também de um processo nunca antes existente de desumanização e de retrocesso a
uma forma de vida menos civilizada. Há um rompimento com o passado, com os
valores, com a tradição que orientava o pensar e o agir dos homens no mundo;
assim, efetivou-se uma ruptura, e nela o surgimento de uma sociedade onde tudo
pode acontecer.
1 Bacharel e Licenciado em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Pelotas; mestrando do programa de Pós-graduação em Ética e Filosofia Política do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, orientado pela Prof.ª Dr. Sônia Maria Schio. Professor da Escola Municipal Maria Pereira Teixeira – Vila Nova do Sul, RS. [email protected]
Alguns pensadores buscaram compreender estes acontecimentos que
envolveram o surgimento desta sociedade de massas, e a conseqüente barbárie2 no
mundo3 humano. Eles procuraram entender o porquê dos campos de concentração,
das mortes em massa, do uso da ciência contra a vida, do avanço tecnológico e seu
uso na administração física e psíquica dos homens, enfim, de como é possível
acontecer algo como o Nazismo, que representa o ponto nevrálgico desta
sociedade. Dentre estes pensadores, destaca-se Theodor Adorno (1903-1969) e
Hannah Arendt (1906-1975) que possuem em suas elaborações teóricas elementos
comuns na busca de compreender este fenômeno de ofuscamento do âmbito
público4 e suas consequências para o mundo humano, embora não tenham
trabalhado em conjunto e pertençam a tradições filosóficas distintas. Neste sentido,
busca-se dar as linhas gerais da análise de Adorno e Arendt em torno da indiferença
com o outro, e o descompromisso com o mundo, duas características dos tempos
sóbrios em que a humanidade se encontra, sobretudo, as novas gerações recém-
chegadas a este mundo velho de adultos inconsequentes.
2. Adorno sobre a indiferença com o outro.
O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto: A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. (ADORNO, 2010, p. 134)
A temática da indiferença5 é recorrente nas obras de Adorno, sobreveste, em
torno da crítica ao aplainamento do pensamento e da linguagem, enfim da razão
unidimensional. Para Adorno a sociedade burguesa produziu tanto um ideário de
liberdade contraditório, pois está ligada a manutenção das necessidades de
subsistência, como também uma noção de razão totalizante, ou seja, que tente a
excluir o que não consegue determinar. O que não se consegue dominar ou
2 O tema da barbárie é de significativa importância para Adorno, e assemelha-se à concepção de Arendt: a barbárie é a falta de civilidade, de viver de forma ordenada e humana. Assim, Adorno concebe a barbárie como uma situação que é contrária a um estado verdadeiramente humano, uma regressão, um retorno a uma situação menos humana, menos “civilizada”.3 Para Adorno o mundo é o “lugar comum de convivência humana”; esta concepção é compartilhada por Arendt e expressa na obra A condição humana (2007).4 Para Arendt o termo “público” tem dois significados: “em primeiro lugar, significa tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível”; em segundo lugar, “significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que cabe dentro dele”. (ARENDT, 2007, pp.59-62)5 Bruno Pucci (2012, p.10) em Theodor Adorno e a frieza burguesa em tempos de tecnologias digitais, afirma que “a indiferença na perspectiva de Adorno é a própria frieza da subjetividade burguesa”.
2
determinar pode ser, por exemplo, o sofrimento do outro. Analogamente ao que
ocorre no conceito que deve em sua “compulsão à identidade” excluir tudo o que é
contraditório, também tem acontecido no mundo humano que, não sendo possível
determinar sua pluralidade, tem-se excluído o próprio ser humano a partir de uma
realidade voltada para o progresso das forças materiais de produção, uma situação
de desumanização.
Para Adorno, o que causaria a estranheza, o espanto ou até mesmo o medo,
é na sociedade de massa apaticamente recebido pelos indivíduos como algo normal,
ou ainda, como atributo da responsabilidade de outrem. Respostas como: “não são
da minha responsabilidade!”, a “culpa não é minha”, “eu não sabia que era assim”,
“eu pensava que era para o bem”, ou ainda “vê lá como era má”, dentre outras,
exemplificam esta apatia enquanto no sentido de uma frieza frente ao ser humano. A
indiferença mais do que uma característica da sociedade massificada é,
concomitantemente, uma necessidade desta ordem social repressiva, pois, sem o
marasmo do sempre o mesmo frente ao outro não há condições para a sua
continuidade: sem a frieza não haveria a naturalização do ideário repressivo da
sociedade burguesa.
Os homens precisam dos outros para o exercício de sua liberdade na política.
Estes outros homens são os diferentes, os que não concordam ou discordam nas
questões políticas, assim, o outro é a possibilidade do confronto de ideias e também
do surgimento de ações comuns. Entretanto, a indiferença irrompe esta interação,
corroendo os objetivos comuns, e dando início a um processo onde não há espaço
para o diálogo, para a troca, para compartilhar compromissos duradouros, pois, no
mundo da indiferença tudo está previamente determinado. Assim, tudo pode
acontecer com os outros desde que nada nos afete, tudo pode justificar-se contando
que continuemos a lucrar privilégios e elogios, por isso não há ‘problemas’ com o
desaparecimento, a prisão ou morte do vizinho, daquele estranho que
costumávamos brincar na infância, afinal, ele deve ser mesmo o culpado.
Há inúmeras passagens nas obras de Adorno que destacam sua crítica à
indiferença com o outro como uma característica marcante da sociedade na era
tecnológica, dentre as quais no presente estudo se dá maior atenção ao texto
intitulado O que significa elaborar o passado? (2010), assim como ao aforismo 116
da obra Mínima Moralia (1970). Deste primeiro texto foi retirada a epigrafe deste
tópico, trabalho pelo qual Adorno procura desmascarar o processo de
3
desencantamento com o mundo e elaboração do passado6 que se desenvolveu após
o final da segunda guerra mundial. O passado não encerrado baseia uma
reconstrução cuja memória e o esquecimento não significam a autêntica superação
do que passou, mas pelo contrário, sua perpetuação. Afirma Adorno (2010, p. 30):
É muito grande o número daqueles que pretendem, na ocasião, não ter tido conhecimento dos acontecimentos que sucediam, embora por toda parte os judeus tenham desaparecido, e embora seja pouco provável que aqueles que viram o que acontecia no Leste tenham silenciado acerca do que deve ter sido um fardo insuportável. É razoável supor que existe uma proporção entre o gesto de nao-ter-sabido-de-nada e uma indiferença ao menos embrutecida e amedrontada.
Adorno aborda a questão da elaboração do passado enquanto crítica à
tentativa de encerrar o passado por entremeio de um processo de perdão e
esquecimento, não por parte das vítimas, mas pelos que praticaram a injustiça.
Neste sentido, Adorno questiona a “recusa da culpa”, o “complexo de culpa da
coletividade alemã”, a tendência a negar ou minimizar o ocorrido, e ainda a tentativa
de uma “contabilização desta culpa”. Estes fenômenos não estão associados aos
termos psicológicos de um trauma ainda não superado, embora tenham traços
característicos neles, mas é um projeto de uma humanidade sem memória. Segundo
Adorno (2010, p. 34), “apagar a memória seria muito mais um resultado da
consciência vigilante do que resultado da fraqueza da consciência frente à
superioridade de processos inconscientes”. As atitudes de negar ou afirmar que
nada sabia, ou de atribuir a culpa a todos, ou seja, a sociedade em geral, assim
como argumentar minimizando o ocorrido a partir de comparações, contabilizações,
etc. desmascaram um passado não encerrado, uma sociedade voltada para o
passado ao passo que, para Adorno, o sadio e preferível são homens voltados para
o presente. Ao tornar o passado um horror imemorável, ou minimiza-lo como algo
banal, volta-se as atenções para um momento histórico em que não há mais
possibilidade para a ação: o passado; e produz-se a indiferença com o tempo no
qual se pode efetivamente evitar que tais eventos voltem a acontecer: o presente.
Continua Adorno (2010, p.49): “o passado só estará plenamente elaborado no
instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do
6 Adorno aborda esta questão em O que significa elaborar o passado (?) a partir de um inicial esclarecimento: “ela foi formulada a partir de um chavão que ultimamente se tornou bastante suspeito. Nesta formulação, a elaboração do passado não significa elaborá-lo a serio, rompendo seu encanto por meio de uma consciência clara. Mas o que se pretende, ao contrario, é encerrar a questão do passado, se possível inclusive riscando-o da memória”. (ADORNO, 2010, p. 29)
4
passado pode manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas
causas”.
Esta análise de conjuntura da situação alemã após o termino da segunda
guerra mundial, que reúne tanto os estudos teóricos como empíricos do Instituto de
Pesquisas Sociais de Frankfurt, aponta para uma frieza frente ao sofrimento do
outro, uma situação de apatia frente ao presente. Adorno já problematizava esta
indiferença na assistemática obra Mínima Moralia. Assim, ao tratar do não sentir
angustia frente ao terror imprevisto, Adorno afirma que o não impressionar-se
produz a apatia, um trauma da liberdade. Nesta caracterização está algo
emblemático, ou seja, a historicidade da culpa: a relação entre normas reconhecidas
quando separadas da retidão, e a culpabilidade. Neste sentido, na moral7 separada
da política, segundo Adorno (1970, § 116), há uma “indiferença perante a culpa
moral que surge matizada pela consciência de que a impotência da própria decisão
cresce com a dimensão do seu objeto”. Para Adorno, não se pode tolerar a
separação entre a norma e a retidão nem mesmo nas pequenas questões, pois,
precisa-se evitá-la desde as situações cotidianas de menor importância, pois, assim
não se corre o risco da surpresa expressa pela frase título deste aforismo: “E vê lá
como era mau”. Segundo Adorno (1970, Ib.),
Aprendemos nelas [com as situações corriqueiras de contato pessoal] a lidar com o moral, a senti-lo - como rubor - na nossa pele, a atribuí-lo ao sujeito, que olha a gigantesca lei moral dentro de si com o mesmo desamparo com que contempla o céu estrelado, que aquela imita mal.
Adorno na tentativa de compreender os acontecimentos totalitários do séc.
XX, afirma que há uma tendência oriunda da sociedade burguesa em produzir uma
identidade social coesa, uma “identidade total”, ou seja, uma coletividade que
necessita eliminar o diferente; analogamente, o Nazismo foi seu momento
nevrálgico, pois, aponta para a idealização de um agrupamento que exclui os
diferentes, sejam eles judeus, ciganos, negros, deficientes físicos ou mentais, enfim,
a própria pluralidade humana. Entretanto, embora o Nazismo tenha data de início e
de termino, enquanto regime, Adorno aponta que ele só se tornou possível porque
havia condições favoráveis, e neste sentido, ele aconteceu em uma realidade de
indivíduos atomizados, indiferentes, apáticos. Assim, afirma Adorno (1970, § 148):
7 Adorno chama a atenção, na Mínima Moralia, “para a relação interna entre moral e repressão e defendeu a tese de que as normas e os princípios morais, da Antiguidade até hoje, foram duplicações teóricas da dominação social e que, na totalidade falsa, que é um desdobramento da sociedade capitalista, não pode haver uma vida reta”. (SCHWEPPENHÄUSER, 2003, p. 392)
5
“só uma humanidade, à qual a morte se revela tão indiferente como os seus
membros, uma humanidade que morreu, pode condenar à morte por via
administrativa seres incontáveis”. Segundo Pucci (2012, p.10),
Auschwitz, o protótipo do genocídio, do holocausto, do Progom, uma das barbáries paradigmáticas da luta histórica do homem contra o homem, só foi possível pela indiferença de um povo em relação a outro, de uma pessoa em relação à outra.
Para Adorno, antes de uma catástrofe acontecer no mundo humano, tal como
o Nazismo, é preciso uma frieza frente ao outro, uma indiferença que passa
constituir o humano em determinada realidade. Neste sentido, ele afirma que “se as
pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com
todas as outras, [...] então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o
teriam aceitado” (ADORNO, 2010, p.134). Esta assertiva é importante para a Teoria
Crítica da Sociedade; ao atribuir aos homens à responsabilidade por todas as
formas de vida e de organização social, Adorno adverte que esta imputação não é
atribuída a grupos que pela violência se imporão sobre os demais, mas também a
aqueles homens e grupos que nada fizeram. O não fazer nada, o não reagir ou
opor-se, é uma postura de co-responsabilidade, em outras palavras, ambos
compactuam com uma situação de regresso do humano por meio de uma frieza
irrefreável até mesmo frente à dor do outro, ao sofrer do semelhante perante seu
olhar que nada enxerga. Esta frieza para Adorno tem sido a regra geral de uma
sociedade baseada na luta por subsistência, por meio de uma “indiferença da vida
de todo o indivíduo, uma indiferença para a qual se dirige toda a história: já em sua
liberdade formal, o indivíduo é tão cambiável e substituível quanto sob os pontapés
dos exterminadores”. (ADORNO, 2009, p.300)
3. Arendt sobre a irresponsabilidade com o mundo
É antes um sintoma dessa indiferença moderna relativamente ao mundo que se pode observar diariamente em toda a parte, mas que, de forma especialmente radical e desesperada, se manifesta nas atuais condições da nossa sociedade de massa. (ARENDT, 2009, p. 46)
Arendt também foi uma pensadora comprometida com a compreensão dos
acontecimentos que ofuscaram o mundo humano na primeira metade do século
passado, sobretudo, o que ela nomeou de Totalitarismo. A assertiva de Arendt
aponta que o Totalitarismo aconteceu em uma realidade, à sociedade de massa,
cuja característica é uma crescente irresponsabilidade com o mundo, ou seja, uma
6
indiferença não só com o outro, mas também com a preservação do mundo humano
que, diferentemente da natureza, carece de compromissos e comprometimentos
para o exercício da liberdade na política. Assim, o Totalitarismo só foi possível por
haver condições indispensáveis, ou seja, uma ruptura com a tradição, em outras
palavras, com os valores e as normas que norteavam a vida humana e a
coexistência em um mundo humano, uma responsabilidade alargada. A citação com
que se inicia este tópico, passagem do texto A crise na educação (2009), chama a
atenção para a indiferença manifestada nas atuais condições da sociedade de
massa, sobremaneira, na recusa em educar os novos seres humanos trazidos pela
natividade ao mundo, e ainda, pela continuidade do mundo. Na perspectiva de
Arendt (2009, p.45), “quem se recusa a assumir a responsabilidade do mundo não
deveria ter filhos nem lhe deveria ser permitido participar na sua educação”.
Na obra Origens do Totalitarismo (2003), Arendt investiga as origens do
ofuscamento do âmbito público, e seu consequente resultado para o humano, ou
seja, a perda de uma “comunidade disposta e capaz de garantir quaisquer direitos”.
Neste sentido, a não responsabilidade dos homens com o mundo tem como
consequência, o que o Totalitarismo representa o ponto crucial, a perda da própria
comunidade humana. Para Arendt, a sociedade de massa teve origem na boa
sociedade em uma ruptura com a tradição, com os princípios e os valores do
passado, dando lugar a uma realidade onde tudo pode acontecer. Neste ‘tudo pode
acontecer’ coloca-se em risco a comunidade enquanto qualidade essencial dos
homens. Assim, para Arendt (2003. p. 331), “o homem pode perder todos os
chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua
dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da
humanidade”.
Esta experiência de não pertencer a uma comunidade, a um mundo humano
com responsabilidades comuns de longa duração, é uma situação de indiferença
entre os povos e as pessoas, e caracteriza sobremaneira a hodierna sociedade que
torna possível inclusive a própria submissão das capacidades humanas a uma
“camisa de força”. Ao isolar o indivíduo, esta sociedade tornou sua ação impotente,
pois, o homem está isolado do âmbito público, e assim, limitado à defesa e à
manutenção de sua vida, ao passo que nesta esfera pública não deveria estar em
jogo sua preservação biológica, mas sim a política, estando em questão à
continuidade do mundo humano. Conforme Schio (2006, p. 184), “a esfera pública
7
fornece a potencialidade para a ação, por estar estreitamente ligada à liberdade”, em
outras palavras, “no espaço público ocorre à ação em sua acepção de capacidade
humana para engendrar, individual ou coletivamente, algo novo e absolutamente
inédito”. (Idem, 2006. p. 185) Neste sentido, o Totalitarismo só tornou-se possível
porque os indivíduos na sociedade de massa irromperam com este
comprometimento imprescindível para política enquanto projeto de longo prazo,
dando lugar ao momentâneo, ao imediato, ao confronto de preservação e
conservação biológica onde o outro não é o diferente, mas um inimigo. Assim, antes
de levar homens a campos de concentração, e submetê-los a trabalhos forçados, a
tortura, a experimentos científicos, e à câmara de gás, foi necessário levá-los, assim
como aos que compactuaram de forma ativa ou passiva com esta barbárie, a uma
experiência de não humanidade na perda do sentido do mundo humano como vida
em comunidade. No texto Sobre la violencia, Arendt (2006, p.111) afirma que:
Lo que hace de un hombre un ser político es su facultad de acción; le permite unirse a sus iguales, actuar concertadamente y alcanzar objetivos y empresas en los que jamás habría pensado, y aun menos deseado, si no hubiese obtenido este don para embarcarse en algo nuevo. Filosóficamente hablando, actuar es la respuesta humana a la condición de la natalidad.8
Este sentido de agir como resposta humana a condição de natalidade, ao fato
que todos os dias são inseridos novos seres no mundo, está profundamente
interligado a abordagem de Arendt sobre a educação, já mencionado anteriormente.
Educar significa neste horizonte um processo de preparar e inserir estes recém
chegados a um mundo antigo, assim tanto conservar o novo que estes portam como
preservar o mundo em vista de sua continuidade frente a este novo que necessita da
responsabilidade para acontecer. Assim, no âmbito privado9 do lar e da família estes
novos seres são protegidos do mundo, sendo preparados para assumir um
comprometimento com ele. Para Arendt, a educação neste sentido perpassa tanto
este âmbito privado, como a esfera “pré-pública”, das instituições de ensino, por
exemplo, enquanto tempo de conservação e preservação, um resguardo necessário
8 O que torna o homem um ser político é sua faculdade de agir; esta lhe possibilita reunir-se aos seus pares, agir de comum acordo e buscar objetivos e empresas que jamais teria em mente; e que muito menos desejaria, se não lhe houvesse sido outorgada essa faculdade: a de dedicar-se a alguma coisa nova. Falando do ponto de vista filosófico, agir é a resposta humana à condição de natalidade.9 A esfera privada é o âmbito do lar, da família, um sentido atribuído pelos romanos que, diversamente dos gregos, segundo Arendt, não sacrificaram o privado pelo público. (Cf. ARENDT, 2007, p. 68) Assim, a esfera privada significa uma intimidade, um proteção, um âmbito de preservação da vida.
8
frente a sua imaturidade para compromissos duradouros, para agir em conjunto com
os outros no mundo por entremeio do exercício de sua liberdade.
Na sociedade de massa há uma recusa generalizada tanto dos pais em
assumirem esta tutela dos filhos, assim como dos educadores, sejam eles pais ou
professores, em assumir esta responsabilidade com as crianças, o que implica em
uma irresponsabilidade com o mundo. Esta irresponsabilidade pode ser
compreendida não como um fenômeno específico, mas como algo mais geral,
sintoma da indiferença moderna em relação do mundo, resultado de um
ofuscamento do âmbito público por meio da perda da capacidade de sua essência
fundamental por entremeio da desumanizando do mundo humano. Para Arendt, este
é o sintoma de uma sociedade que fracionou seu passado, rompendo com a
tradição dos costumes, das regras morais, dos valores que norteavam a vida em
sociedade, deixando uma lacuna, um ofuscamento no âmago das organizações
sociais, essencialmente, enquanto comunidade.
No prefácio à obra Homens em Tempos Sombrios (2008a), a partir de um
poema de Brech, Arendt nomeou de “tempos sombrios” este momento histórico de
ofuscação da esfera pública, da capacidade do agir em conjunto, do fazer
compromissos duradouros, do assumir objetivos e empresas que jamais teria em
mente por si próprio. Ao ofuscar a esfera pública da decisão humana e da ação, a
sociedade de massa colocou em risco a própria comunidade humana, submetendo
os homens a uma solidão no mundo, ou seja, a uma liberdade que se baseia na
“experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e
desesperadas experiências que o homem pode ter”. (ARENDT, 2003, p. 527)
Neste sentido, se para Arendt a liberdade humana acontece no exercício da
ação política a partir do pertencimento a um mundo humano, então a experiência10
de não pertencimento ao mundo ou a comunidade humana é uma impossibilidade
para a ação e para o pensamento, um obstáculo para a própria liberdade dos
homens. A liberdade está, segundo ela, interligada com a “capacidade humana de
pensar” (ARENDT, 2003, p.522), em outras palavras, ao “pensar que é também a
capacidade de mudar de ideia”, (Idem, p. 481). Para Arendt, esta capacidade tanto
de pensar e mudar de ideia é o próprio colocar-se no lugar do outro, e também de
dialogar consigo mesmo. Assim, sendo o pensar uma capacidade humana de se
10 Para Arendt, neste sentido, “todo o indivíduo precisa se sentir conciliado com um mundo onde nasceu estranho e onde sempre permanece como estranho, na medida de sua singularidade única”. (ARENDT, 2008, p. 331)
9
colocar no lugar do outro, de procurar sentir e escutar o mundo não a partir somente
de si mesmo, mas ser capaz de se pôr na perspectiva de outrem, é um
comprometimento que sem sua corrosão, fragmentação ou ofuscamento, Auschwitz
não teria sido possível em lugar nenhum do mundo humano.
Auschwitz foi possível porque aconteceu em uma sociedade em que há uma
“ausência de pensamento”, ou seja, uma situação histórica em que o público não
mais ilumina os assuntos humanos. A suspeita desta ausência de pensamento é
significativa; o “não pensar” implica uma simples dedução, e não em uma reflexão.
Esta diferenciação entre dedução e pensamento é caracterizada por Arendt na obra
Eichmann em Jerusalém (2008b), na qual ela aponta para o problema do simples
cumprir ordens sem “colocar-se no ponto de vista da outra pessoa” (ARENDT,
2008b. p. 62). O julgamento de Adolf Eichmann11 é emblemático para Arendt, a partir
do qual ela procurou aprofundar a questão do “mal banal”, pois, Eichmann se
apresenta como alguém que não se atribui a culpa, e nem aceita a imputabilidade
porque simplesmente teria cumprido ordens. Esta indiferença de Eichmann, ou de
qualquer outro que contribuiu para o regime e suas atrocidades, é o emblema de
uma irresponsabilidade com o mundo, da indiferença frente à morte do outro, ou
com a sua própria morte. Assim, afirma Arendt (2008b, p. 122) que
Eichmann insistiu muitas vezes na “atitude pessoal diferente” diante da morte quando “se via mortos por toda a parte”, e quando todo o mundo olhava a própria morte com indiferença: “não nos importava se morreríamos hoje ou só amanhã, e havia momentos em que amaldiçoávamos que nos encontrava ainda vivos”.
Entre homens que refletissem sobre as ordens recebidas, julgando-as, não
sendo assim indiferente perante o sofrimento, os sentimentos e a vida dos outros
homens, e da própria comunidade humana, o totalitarismo não teria sido possível.
Entretanto, houve um momento oportuno para ocorrer o que nunca poderia ter
ocorrido na face da terra, uma ausência de coerência do homem com si próprio e
com os outros, não mais uma sociedade formada por sujeitos com diversas
características e particularidades, mas formada pela aglutinação de uma massa12 de
pessoas. Nesta realidade, não só a indiferença e neutralidade dos homens em
11 Adolf Eichmann foi julgado em 1961 em Jerusalém por crimes contra a Humanidade.12 Em Origens do Totalitarismo Arendt (2007, p. 361) afirma: “O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não de podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto”.
10
relação às questões públicas permitiram o surgimento de movimentos totalitários,
mas também foi preciso que a sociedade de consumo criasse a apatia e a
hostilidade em relação à vida pública. A sociedade de massa para Arendt possui
estes ingredientes: indiferença, neutralidade, apatia e hostilidade. Neste sentido, “os
padrões do homem de massa são determinados [...] acima de tudo por influencias e
convicções gerais que são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as
classes da sociedade” (ARENDT, 2003, p.363)
O Totalitarismo, em seus movimentos ou no seu ponto nevrálgico, para
Arendt teve suas origens já no século XIX, coincidindo com a própria sociedade de
massas, a partir de um duplo movimento: aproximar cada vez mais as pessoas, ao
mesmo tempo em que as isolava. Sobre isso afirma Arendt (2007, p.368) que: “os
movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de
massa do que das condições específicas de uma massa atomizada e
individualizada”. A sociedade que se organiza a partir de uma promessa de
civilidade, conforto e segurança, enquanto “convicções gerais que são tácita e
silenciosamente compartilhadas”, interliga os indivíduos pela subsistência em que a
conservação da vida é sua tarefa primordial, uma hostilidade com a perspectiva
política de comprometimento com o público, com a existência do cidadão13 no
mundo.
Nesta realidade, os homens não conversam sobre assuntos importantes, não
compartilham ideias, etc. só um contato superficial é permitido, ou seja, atitudes de
comentar sobre o tempo, sobre a temperatura, dentre outras conhecidas formas de
fuga do enfrentamento que pressupõe a diferença, pluralidade da coexistência, e o
antídoto à desumanização do mundo. A sociedade de massa é esta atomização e
individuação, uma naturalização da indiferença, da apatia e da hostilidade,
justificadas e fundamentadas pela autopreservação e sua conseqüente
irresponsabilidade com o mundo humano. Foi esta não responsabilidade que tornou
Auschwitz possível, mas que não pode garantir que esta fábrica de morte
acontecesse, pois, ela “poderia acontecer na maioria dos lugares, mas não
aconteceu em todos os lugares”. (ARENDT, 2003, p. 254)
13 “O cidadão é o ser humano atento e em contato com o mundo, interessado por ele e pelos seus assuntos. É alguém que vive na realidade, na pluralidade. Ser cidadão é estar no mundo entre homens, e em igualdade política, pensando de forma autônoma, não se retirando do mundo e do tempo, e não fazendo do mundo uma fachada atrás da qual se esconder”. (SCHIO, 2006, p. 194)
11
4. Considerações Finais
As reflexões de Adorno e Arendt e suas assertivas sobre a indiferença com o
outro e a irresponsabilidade como o mundo são atuais, assim como seus
pensamentos ainda são profícuos para a compreensão dos fenômenos que
hodiernamente o humano está envolvido. Trata-se de duas análises das condições e
possibilidades do humano, e suas perspectivas para além dos condicionamentos ou
das determinações sociais. Contudo, embora sejam duas abordagens importantes
para a compreensão do séc. XX, e do próprio movimento totalitário, possivelmente a
atualidade destas, tanto nas particularidades contraditórias, como no que é possível
afirmar ser comum entre Adorno e Arendt, esteja relacionada mais a possibilidade
de análise das condições do humano no atual estágio da civilização, do que
propriamente na contextualização do Nazismo. Assim, tanto Adorno como Arendt
anteviram em suas abordagens não só as causas e as origens do que marcou
século passado, como souberam em suas críticas apontar para o que deveria ser no
presente evitado para que, por exemplo, Auschwitz não voltasse a acontecer em
nenhum lugar do mundo humano.
Lamentavelmente, nem sempre os homens aprendem com os erros do
passado, e nem mesmo com suas conseqüências no presente. Neste sentido, tanto
para Adorno como para Arendt o Totalitarismo e seus correlatos não foram
encerrados com o final dos regimes Nazista, Fascista ou Estalinista, mas está
presente em outras instancias da sociedade de consumo, do continuum domínio e
massificação dos homens, sendo manifestada, por exemplo, tanto na falsa memória
da elaboração do passado, como também na tentativa totalitária do esquecimento. E
ainda, este continuum não se apóia mais naquela antiga tecnologia mecânica, mas
sim em novos e mais eficazes instrumentos da sociedade tecnológica na era digital,
ou seja, por meio de um ambiente midiático, instantâneo, e unidimensional – um
controle mais eficaz e imperceptível do ser humano pela administração social. Neste
sentido, destaca Bruno Pucci que a frieza que é o princípio fundamental a
subjetividade burguesa, uma “subjetividade que o senso comum - as novelas, os
noticiários, enfim, a indústria cultural –, mas também a escola, a igreja, os
sindicatos, as políticas ajudam a construir, “sem violência”, progressiva e
intensivamente, no dia a dia, em cada um de nós”. (PUCCI, 2012, p. 10) Continua
ele (Idem, p.15):
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O sofrimento do não-idêntico visto pelos meios de comunicação se transformou em um acontecimento tão banal, corriqueiro, quanto o encontro com o morador de rua que dorme maltrapilho na calçada da avenida próxima de minha casa: passo, olho e continuo minha caminhada, indiferente a tudo, quando não o maltrato, o humilho ainda mais; alguns sadomasoquistas chegam até a colocar fogo no mendigo enquanto ele dorme. Foi à frieza burguesa uma das causas de Auschwitz; continua sendo a indiferença para com o outro a causa da criação de outros Auschwitz, [...].
Adorno e Arendt em seus comprometimentos com a defesa da pluralidade
humana, e em suas críticas ao ofuscamento do âmbito público no qual se resolvem
os assuntos políticos de compromisso comum, possibilitam tanto as ferramentas
necessárias para a análise contemporânea da realidade social e política, como
também, o engendrar mecanismos de ruptura com esta desumanização. Ao
acompanhar o cenário político brasileiro, por exemplo, evidencia-se a atualidade do
pensamento e da reflexão de Adorno e Arendt, e, sobretudo, a crise que tanto a
indiferença como a irresponsabilidade submetem os homens: uma política partidária
de interesses individuais, bem como a compra de votos, a negociações de cargos
públicos, os financiamentos ilícitos das campanhas eleitorais, a falta de
conhecimento das atribuições, a corrupção e a retórica falaciosa etc. inverdades que
ofuscam o exercício da liberdade em um mundo onde a política foi transformada na
manutenção de interesses privados. E não só a política, mas o mundo que seria o
espaço para a convivência humana tem sido transformado em um lugar inumano, de
aplainamento de suas potencialidades, de repressão das qualidades subjetivas, o
que se pode desprender da sintomática relação dos homens com o que é público.
Assim, a relação do homem da sociedade de massa com os espaços públicos como
a rua, os telefones públicos, as lixeiras, ou seja, com o que não é sua propriedade
particular e que pertence assim a comunidade humana, é destruído, depredado. O
mesmo acontece com os outros homens, com aqueles que não fazem parte de seu
círculo restrito de íntimos, enfim, aqueles que eventualmente não concordarão com
seu domínio.
A aproximação destes autores potencializa o empenho filosófico de análise e
de compreensão de tais fenômenos, principalmente apontando para uma renovada
confiança no humano e em suas realizações para além de tais ofuscamentos, pois,
como afirma Arendt (2003, p.534): “a lição dessas histórias é simples e está ao
alcance de todo o mundo. Politicamente falando, a lição é que em condições de
terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, [...].” O que
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também foi expresso por Adorno em outros termos quando tratou sobre os poucos
que se mobilizaram: “o certo é que os decididos adversários do Nazismo cedo
souberam com bastante precisão o que acontecia” (ADORNO, 2010, p.30) Neste
sentido, Adorno e Arendt são indubitavelmente atuais em seus pensamentos e
reflexões em torno do humano, e sobreveste, em suas críticas a uma civilização em
que a regra geral tem sido, equivocadamente, a mera luta por subsistência.
5. Referências
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_____. Dialética Negativa.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
_____. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
_____. Sobre la violencia. Madrid: Alianza Editorial, 2006.
_____. A condição humana. São Paulo: Forense, 2007.
_____. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). São Paulo: Cia das Letras/Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2008.
_____. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008a.
_____. Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2008b.
_____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
PUCCI, Bruno. Theodor Adorno e a frieza burguesa em tempos de tecnologias digitais. Cadernos IHU ideais. Ano 10 - nº 172. São Leopoldo: UNISINOS, 2012.
SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: História e Liberdade (da ação à reflexão). Caxias do Sul: EDUCS, 2006.
SCHWEPPENHÄUSER, Gerhard. A filosofia moral negative de Theodor W. Adorno. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 24, n. 83, agosto/2003. (p.391-415)
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