SYLVIA TAMIE ANAN
CCRRNNIICCAA DDAA VVIIDDAA IINNTTEEIIRRAA
MMeemmrriiaass ddaa IInnffnncciiaa nnaass CCrrnniiccaass ddee MMaannuueell BBaannddeeiirraa
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-graduao em Teoria
Literria e Literatura Comparada da Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, sob orientao do
Prof. Dr. Joaquim Alves de Aguiar.
So Paulo, maio de 2006.
Para minha me
Contar muito, muito dificultoso. No pelos anos que se j passaram. Mas pela
astcia que tm certas coisas passadas de fazer balanc, de se remexerem dos
lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem no.
So tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo mido
recruzado.
Voc tem saudade do seu tempo de menino, Riobaldo? ele me perguntou,
quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem no. Tinha saudade
nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu
pudesse possvel. Por certo que eu j estava crespo da confuso de todos.
( Grande Serto: Veredas )
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Joaquim, pelos anos de orientao atenta e
paciente, desde a Iniciao Cientfica, apesar de todos os meus atrasos e limitaes.
Aos professores Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pelas argies
em meu Exame de Qualificao, repletas de preciosas sugestes.
Aos professores Alcides Villaa, Marcus Vinicius Mazzari, Jorge Coli,
Antonio Dimas de Morais e, novamente, a Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pela
oportunidade de aprendizado em cursos de graduao e ps-graduao.
FAPESP, pelo indispensvel apoio pesquisa desde a Iniciao
Cientfica, tanto financeiro quanto acadmico, atravs da atenta leitura dos relatrios.
A Ana Paula, Bruno, Fernando, Ulisses e Valria, amigos sem cujo apoio
o caminho teria sido muito mais longo.
minha famlia: meus pais, Monika e Edson, e a Renato e Lieselotte.
RESUMO / BREF
Embora tradicionalmente vistas como textos menores da obra de Manuel
Bandeira, suas crnicas para jornal apresentam uma riqueza particular, relacionada e ao
mesmo tempo distinta de sua poesia: enquanto transportam para a prosa alguns dos
principais temas de sua lrica, entre eles a memria de infncia, conferem-lhes um outro
tratamento que evidencia a sua presena no cotidiano do poeta, transcendendo o vnculo
primrio do gnero com o tempo presente. Seja nas crnicas sobre a vida cotidiana, seja
naquelas em que o poeta faz crtica literria ou de artes plsticas, uma viso vinculada a
um passado muito particular pode ser depreendida e iluminar facetas pouco exploradas
de sua obra.
Bien quelles soient vues par tradition comme textes moindres de luvre
de Manuel Bandeira, seus chroniques crites pour journaux prsentent une richesse
particulire, qui se rapporte et en mme temps se distingue de sa posie: pendant
quelles transportent la prose quelques thmes importants de sa lyrique, parmi lesquels
la mmoire de linfance, elles leur donnent un autre traitement qui met en relief leur
prsence au quotidien du pote, de manire transcender la vinculation primaire du
genre avec le temps prsent. Soit aux chroniques sur la vie quotidienne, soit auxquelles
o le pote fait de la critique litraire ou de lart, un point de vue li un pass trs
particulier peut tre dcouvert et claircir facettes peu explores de son uvre.
NDICE
Introduo ................................................................................................. 07
Captulo I: Infncia Prxima....................................................................211. Quadros da Infncia .................................................................... 23
Pintura Anglica ................................................................. 25Eu vi o mundo... ................................................................. 33
2. A trinca do Curvelo .....................................................................42
Captulo II: Infncia Distante.................................................................. 551. Crnicas da Provncia ................................................................. 56
Menino de Engenho ............................................................ 61O Mestre de Apipucos .........................................................67
2. Cidades de Interior ...................................................................... 73Quixeramobim e Campanha ................................................74Pernambuco e Bahia ........................................................... 79
3. Rua da Unio ...............................................................................81
Captulo III: Infncia e Paisagem Urbana ............................................. 911. Das Laranjeiras ao Castelo ..........................................................922. Ai, rvores! .................................................................................103
O Largo do Boticrio ...........................................................103Um P de Milho .................................................................. 106
3. Carnavais .....................................................................................109Carnaval Distante ................................................................ 110Carnaval Prximo ................................................................116
4. O Retorno ao Lar .........................................................................124Cachoeiro do Itapemirim .....................................................125De Volta ao Recife .............................................................. 128
Consideraes Finais ................................................................................ 132
Bibliografia ................................................................................................ 134
7IntroduoConhecido como um dos maiores poetas brasileiros do sculo XX, Manuel
Bandeira foi tambm um cronista contumaz. Desde 1917, mesma data de publicao de A
Cinza das Horas, at pouco antes de sua morte, em 1968, conta-se mais de meio sculo de
contribuies em diversos jornais de vrios Estados, principalmente do Rio de Janeiro. Mas,
embora constituam a parte mais significativa da obra em prosa de Bandeira, as crnicas foram
relegadas a um segundo plano pelo prprio autor, de forma que apenas um nmero limitado
de textos encontra-se disponvel justamente aqueles publicados em suas coletneas em livro:
Crnicas da Provncia do Brasil (1937), Flauta de Papel (1957), que recebeu uma reedio
bastante ampliada no segundo volume de Poesia e Prosa (1958), da editora Jos Aguilar, e
Andorinha, Andorinha (1966).
Dessas crnicas, possvel apreender os temas pelos quais interessava-se o
poeta em seu cotidiano. Trata-se de textos em que a ambincia artstica da poca, atravs de
comentrios crticos a respeito de novos livros, concertos, peas de teatro, filmes e
exposies, alm das inmeras amizades de Bandeira, convive com pequenos fatos da
vizinhana em que vivia, em seus vrios endereos, e da vida mundana da ento capital da
Repblica. Entretanto, mesmo que abrilhantado pela perspectiva de um observador muito
particular, o valor dessas crnicas no reside apenas no registro histrico ou na simples
curiosidade. Captados por um olhar nico, acontecimentos importantes ou insignificantes
ganham uma nova dimenso na prosa bandeiriana, que, atravs de um estilo claro e conciso,
transpe o limite do relato de miudezas para alcanar uma forma rara de lirismo, muito cara
ao prprio Bandeira.
Dessa maneira, o cronista acaba transportando para a prosa alguns dos
principais temas de sua lrica, entre eles a vivncia do cotidiano e a memria de infncia.
em suas crnicas mais ricas que estes dois temas se mesclam, transformando-as em
8testemunhais de como o resgate das primeiras vivncias estava presente no dia-a-dia do poeta.
preciso, no entanto, que a leitura das crnicas no se oriente apenas como apoio
interpretao dos poemas: os textos que encontramos nas coletneas em livro, mesmo que
preservados revelia do autor, que aceitava publicar em jornais para garantir a sua
subsistncia e enviava os originais s redaes sem guardar sequer uma cpia consigo, so
textos literrios de primeira linha, no raramente altura de seus melhores poemas.
Em todo caso, mesmo que produzida para uma publicao efmera, a crnica
no depende de que se recuperem todas as suas informaes contingentes para a sua
compreenso. Embora, algumas vezes, seja relevante recuperar alguns fatos de poca, o
essencial interpretao de uma crnica reside, como em qualquer outra obra literria, no
prprio texto. Nas crnicas de Manuel Bandeira, os fatos adjacentes mais fundamentais so de
conhecimento de todos que se interessam por sua obra; de resto, permanece apenas a fruio
da leitura, que flagra o poeta em seu cotidiano, datilografando a crnica com a mquina no
colo enquanto observa a vizinhana pela janela. A centralizao da obra bandeiriana nas
miudezas do cotidiano transforma portanto as suas crnicas em uma pea fundamental.
Entre as caractersticas mais marcantes da crnica, os conceitos que
corriqueiramente se associam ao gnero, encontra-se certamente a idia de leveza, tanto na
escolha dos temas quanto no seu tratamento, e at mesmo na sua forma original de
publicao, em que o recorte de jornal se contrape ao peso de um livro, por exemplo. Em
geral escrita em linguagem simples e breve, a crnica mantm relao com a sua origem
modesta, o folhetim ou nota de rodap comuns nos jornais cariocas do sculo XIX, e que
resulta em um estilo despretensioso e na preferncia por temas midos e cotidianos. Como
demonstra Antonio Candido, a crnica segue na contramo do gosto brasileiro pela
grandiloqncia, abandonando aos poucos sua funo inicial de informar e comentar os
principais fatos do dia para dedicar-se poesia e fico, atravs da vivncia pessoal do
cotidiano do cronista e de uma escrita preocupada sobretudo em divertir: leveza que constitui
principalmente uma viso muito peculiar da literatura, da vida e dos homens.
Na sua despretenso, humaniza; e esta humanizao lhe permite, comocompensao sorrateira, recuperar com a outra mo uma certa profundidade designificado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer delauma inesperada embora discreta candidata perfeio. (...) H estilos roncantesmas eficientes, e muita grandiloqncia consegue no s arrepiar, mas nosdeixar honestamente admirados. O problema que a magnitude do assunto e a
9pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo daverdade. A literatura corre com freqncia esse risco, cujo resultado quebrarno leitor a possibilidade de ver as coisas com retido e pensar em conseqnciadisto. Ora, a crnica est sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer adimenso das coisas e das pessoas.1
O jornal uma instituio moderna, diretamente ligada mecanizao da
imprensa, que tem como uma de suas conseqncias mais profundas a acelerao do tempo,
atravs de notcias que envelhecem rapidamente, e da informao que se espalha e desatualiza
simultaneamente sem que o leitor tenha o tempo de reflexo para assimil-la. Se quisermos
definir a crnica, portanto, podemos afirmar que se trata de um gnero
essencialmente moderno, porque nascido em um meio de comunicao em massa. Nenhuma
crnica escrita com a inteno de ser publicada em livro, pelo menos num primeiro
momento, e isso determina sua particularidade: ao contrrio do escritor em outros gneros, o
cronista no pretende, a princpio, eternizar-se. Tambm no se trata de uma obra que exige o
mesmo esforo e concentrao de um romance; aparentemente, ela pode ser rabiscada s
pressas, minutos antes de ser enviada tipografia e grfica. Em contrapartida, o que
caracteriza a crnica o fato de surgir em funo da publicao, que praticamente anterior
obra, ao lado de sua capacidade de permanecer, de sobreviver a um meio de publicao que se
torna obsoleto no dia seguinte, e de aparecer muitas vezes como objeto estranho em meio a
uma multido de informaes heterogneas e mesmo superficiais que o jornal traz todos os
dias.
Ainda que alguns estudiosos considerem inadequada a publicao de crnicas
em livro, julgando que ela s pode ser compreendida no contexto do jornal2, na verdade a
crnica recolhida em livro pode ser vista como resultado de uma decantao, de um processo
em que se torna a nica remanescente de sua publicao original, como as crnicas da
coletnea Andorinha, Andorinha, de Manuel Bandeira, cujos textos foram selecionados,
recortados e guardados pelos leitores dos jornais para os quais o poeta escrevia, e reunidos
anos mais tarde por Carlos Drummond de Andrade. De certa forma, a dimenso literria
atingida pela crnica brasileira est relacionada ao programa modernista: embora o final do
sculo XIX e o incio do sculo XX seja um perodo repleto de cronistas interessantes, o gne-
1 Antonio Candido. A vida ao rs-do-cho, em A Crnica, pp.13-14.2 V. Temstocles Linhares. O maior inimigo da crnica e Situao da crnica, em O Estado de S. Paulo,Suplemento Literrio.
10ro abandonou o tom jornalstico para se tornar francamente literrio nos anos 20, quando os
escritores ligados ao Modernismo passaram a escrever em jornais a maioria do Rio de
Janeiro , em parte como meio de divulgao das idias modernistas3, em parte como meio de
vida. assim que escritores j reconhecidos em outros gneros enveredaram pela crnica,
como Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Alcntara Machado, Carlos Drummond de
Andrade, e posteriormente Rachel de Queiroz, Joo Guimares Rosa, Vinicius de Moraes e
Ceclia Meireles, entre muitos outros. As crnicas de escritores brasileiros a partir desse
perodo constituem portanto um amplo campo de estudos, interessante para a compreenso do
movimento modernista e ainda pouco estudado.
O primeiro trao que une as contribuies de Manuel Bandeira para a imprensa
atividade jornalstica de outros escritores contemporneos justamente que a maior parte
deles escreve e, na maioria das vezes, publica no Rio de Janeiro, palco dos principais
acontecimentos polticos e sociais da poca, sendo tambm a metrpole em que a imprensa
florescia desde meados do sculo XIX. Mas o cronista no era nascido na capital, condio
em que se igualava a tantos outros escritores a partir das dcadas de vinte e trinta, como
Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga e Clarice Lispector. Ou seja, embora fosse o
cenrio e ao mesmo tempo o grande assunto da atividade jornalstica, a vida carioca no era a
base da experincia pessoal de alguns daqueles que a comentavam nas crnicas.
A condio de migrante, mesmo privilegiada em relao a tantos outros
migrantes que assomam s metrpoles em busca de melhores condies, traz uma outra
perspectiva da vida na cidade, que se faz sentir nas crnicas. As razes, principalmente de
ordem econmica, do deslocamento no espao geogrfico parecem fora de questo para estes
cronistas, que no raramente demonstram encarar a vida urbana como uma espcie de exlio,
talvez voluntrio, mas sempre temporrio. A questo da sobrevivncia legada a um segundo
plano, e o afastamento das razes compreendidas tanto como passado individual quanto
como lao familiar ou de grupo torna-se a principal conseqncia da migrao. O mundo
infantil, em relao vida de subsistncia e de responsabilidades do adulto, e o cotidiano das
cidades no interior do pas, em contraste com a agitao da capital, abrem, no espao e no
tempo, um outro leque de referncias para a observao do que acontece no Rio de Janeiro. A
memria da infncia, sentida direta ou indiretamente na prosa despretensiosa na crnica,
acrescenta novas possibilidades ao texto jornalstico, incluindo o lirismo.
3 Tome-se como exemplo a seo Ms modernista, mantida pelo jornal A Noite, em 1925.
11A crnica, entretanto, um gnero voltado para o presente e a vida pblica,
apesar do tom pessoal utilizado geralmente pelo cronista, e da estrutura em que os assuntos
surgem por associao, sem a preocupao aparente de formar um sentido muito definido. A
coeso do texto garantida por um vnculo preestabelecido entre o cronista e o leitor de
jornal, pela vivncia de um mesmo cotidiano e um mnimo conhecimento comum dos
assuntos, por mais variados que sejam. De forma potica ou humorstica, o cronista
dificilmente se ocupa de alguma situao que o leitor tambm no tenha vivenciado,
principalmente na rotina comum dos centros urbanos, em que predomina a leitura rpida do
peridico.
Provavelmente por esta razo, a memria de infncia um tema que demora a
surgir na crnica brasileira. Quando surge, em Lima Barreto ou Mrio de Andrade, por
exemplo, sempre em crnicas em que a recordao no o tema principal, mas uma espcie
de tema subjacente que introduz ou conclui outro, este mais afinado com o gnero4. A
nostalgia da infncia presente nas crnicas de Manuel Bandeira parece restrita literatura de
memrias propriamente dita, e mesmo em sua obra o tema aparece aos poucos, levando
alguns anos at ocupar crnicas inteiras. Mesmo tendo se tornado comum em cronistas
posteriores, como veremos, possvel afirmar que a recordao de infncia foi introduzida na
crnica por Manuel Bandeira.
Ao adoecer, aos dezoito anos de idade, Manuel Bandeira morava em So
Paulo. Como recorda em algumas crnicas e em Itinerrio de Pasrgada, o futuro poeta
estudava arquitetura na Escola Politcnica e desenho no Liceu de Artes e Ofcios, porque
desejava ser um arquiteto como hoje so Lcio Costa, Carlos Leo e Alcides Rocha Miranda.
Tinha aspiraes excessivas construir casas, remodelar cidades, encher o Rio ou o Recife de
edifcios bonitos como Ramos de Azevedo fizera em So Paulo (...). Desforrei-me das minhas
arquiteturas malogradas reconstruindo uma cidade da Prsia Antiga Pasrgada.5. Embora
nunca realizada, a vocao para a arquitetura acompanhou Bandeira vida afora, em desenhos,
poemas e crnicas. Pasrgada, porm, no foi a nica cidade a ser reconstruda atravs da
literatura: nos textos de Bandeira, encontramos inmeras cidades que o poeta conheceu
como a prpria So Paulo ou Petrpolis , entre as quais algumas do interior do pas, como
vimos, visitadas na procura de um clima mais adequado sua sade Quixeramobim,
4 V. crnicas Feiras e Mafus, em Feiras e Mafus, de Lima Barreto, e Macobba, em Txi e crnicas noDirio Nacional, de Mrio de Andrade.5 Confidncias a Edmundo Lys,, de Andorinha Andorinha, p.43.
12Campanha , e mesmo grandes cidades europias, visitadas na maturidade Paris, Londres,
Amsterd. Mas encontramos, principalmente, as duas cidades centrais na formao de
Bandeira, presentes na citao acima Rio de Janeiro e Recife.
O Recife e o Rio de Janeiro so, como se sabe, as duas cidades da infncia do
poeta. O Recife, cidade natal, a conhecida fonte da mitologia pessoal presente em poemas
como Evocao do Recife e Profundamente:
Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residncia no Recife, compequenos veraneios nos arredores Monteiro, Sertozinho do Caxang, BoaViagem, Usina do Cabo , construiu-se a minha mitologia, e dito mitologiaporque os seus tipos, um Totnio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a pretaTomsia, velha cozinheira do meu av Costa Ribeiro, tm para mim a mesmaconsistncia herica das personagens dos poemas homricos. A Rua da Unio,com seus quatro quarteires adjacentes limitados pela rua da Aurora, daSaudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Trada; a casa do meu av, acapital desse pas fabuloso. Quando comparo estes quatro anos da minhameninice a quaisquer outros quatro anos da minha vida de adulto, ficoespantado do vazio destes ltimos em cotejo com a densidade daquela quadradistante.6
Graas profisso do pai, engenheiro civil, durante sua infncia Bandeira
morou em diversas cidades: depois da natal Recife, Petrpolis, So Paulo, Santos, novamente
Petrpolis, Recife e Rio de Janeiro, onde a famlia se estabeleceu aps a morte do av
materno. A ento capital federal tornou-se a segunda cidade no imaginrio da infncia do
poeta, que permaneceu ali at os dezoito anos, passando portanto no Rio a maior parte de sua
vida escolar. Anos mais tarde, j marcado pela tuberculose, sozinho e empobrecido, Bandeira
retornou ao Rio de Janeiro, onde morou at o final de sua vida, em diversos endereos e em
diferentes bairros: ao longo dos anos, o poeta veio a conhecer a cidade profundamente, no
tempo e no espao. Esta circunstncia marca uma diferena fundamental entre as duas cidades
no imaginrio de Bandeira, e, portanto, daquilo que representam em sua obra. Ao contrrio do
Recife, que na maturidade do poeta s voltaria a ser visto de passagem, o Rio de Janeiro a
cidade que cresceu, modernizou-se, deixou de ser Capital Federal e continuou crescendo sob o
olhar atento e bastante crtico do poeta-arquiteto. De outro lado, o Recife tambm no
permaneceu parado no tempo, contrariando o desejo de Bandeira, que em mais de uma
ocasio criticou as deformaes em sua cidade natal, mas que sempre retornava distncia
6 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p. 35.
13necessria para continuar a idealiz-la. Impedido em seu sonho de remodelar, sua maneira,
as duas capitais da sua infncia, Bandeira acaba construindo uma terceira cidade, intacta,
suspensa no ar, diferente daquela que encontrou em sua vida adulta, mas que talvez tambm
no corresponda exatamente que conheceu na infncia, e sim mais provavelmente a uma
cidade que podia ter sido e no foi.
A primeira contribuio de Manuel Bandeira para jornal data de 1917, mesmo
ano de publicao de A Cinza das Horas: trata-se da crnica intitulada Le Bateau Ivre,
publicada no Rio-Jornal do Rio de Janeiro; depois disso, o Correio de Minas de Juiz de Fora
seria o primeiro jornal em que o poeta contribuiria com regularidade7. A partir dos anos trinta,
Bandeira viria a contribuir com regularidade para inmeros jornais de diversos Estados,
principalmente do Rio de Janeiro, at o fim de sua vida. Por isso, as crnicas formam a parte
mais substanciosa da obra em prosa do poeta. Nelas, Bandeira trata de uma gama variada de
assuntos, desde temas relacionados a cultura at aqueles estritamente ligados ao cotidiano.
Partindo sempre da prpria vivncia, o cronista fala de literatura, arquitetura e artes plsticas,
msica, teatro e cinema; ao mesmo tempo faz retratos de amigos e conhecidos, a maioria
ligada ao mundo da cultura e das artes, e acaba tambm retratando a vida e a cidade do Rio de
Janeiro de sua poca.
Aqueles que so retratados nas crnicas de Bandeira, como observou Davi
Arrigucci Jr. em relao a Jaime Ovalle, chegam a se tornar verdadeiras personagens no
universo bandeiriano, fazendo destes textos praticamente uma extenso de seu mundo
potico8. Nesse sentido, as crnicas como um todo caracterizam-se pelo mesmo estilo
humilde que trao marcante de toda sua obra. Afinal, como esclarece o prprio cronista,
(...) o poeta no um sujeito que vive no mundo da lua, perpetuamente entretido em coisas
sublimes. , ao contrrio, um homem profundamente misturado vida, no seu mais limpo ou
no sujo cotidiano9. Da mesma forma que tematiza a arte e a vida alheias, Bandeira fala
tambm de si mesmo e de sua poesia, sendo possvel reconstituir, atravs das crnicas, um
retrato do poeta e de sua obra.
O objetivo inicial do presente trabalho a leitura e anlise das crnicas, a parte
mais importante da obra em prosa de Manuel Bandeira. Dado o volume e a complexidade da
obra em questo, que no se limita aos textos publicados em livro, optou-se por fazer um
7 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p.44.8 Davi Arrigucci Jr. Humildade, Paixo e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, p. 51.9 Correio da Espada, em Andorinha Andorinha, p.18.
14recorte que permitisse rastrear a presena de elementos autobiogrficos nas crnicas, de modo
a reconstituir, atravs da obra, o perfil do poeta e do homem, flagrado nas representaes do
seu cotidiano e do contexto histrico em que se move. O projeto de pesquisa teria,
inicialmente, se dedicado ao seu texto em prosa mais conhecido, a autobiografia Itinerrio de
Pasrgada, mas considerou-se que o Itinerrio j tinha sido comentado e analisado diversas
vezes, incluindo o captulo A poesia em trnsito: Revelao de uma potica, em Humildade,
Paixo e Morte, de Davi Arrigucci Jr. No levantamento da fortuna crtica de Manuel Bandeira
foi encontrada a seguinte sugesto de Stefan Baciu, no captulo O Cronista de Manuel
Bandeira de Corpo Inteiro:
Notvel lugar nas crnicas vem ocupando a parte de memrias, tanto no quese refere ao apontamento humano, como redao de pginas que, semnenhuma dificuldade, poderiam figurar em seu Itinerrio de Pasrgada. Aocorrer dos anos, Bandeira escreveu sobre fatos, coisas e acontecimentosgrandes ou pequenos com uma ternura que se igualou ao sentido crtico comque sempre encara os acontecimentos. Essa riqueza de material, essasreferncias, essas evocaes de tipos e nomes, ora do Brasil, ora do estrangeiro,podero constituir uma espcie de apndice do Itinerrio, no qual o autor, pordiscrio ou devido ao fato de os captulos terem sido escritos e publicadosms aps ms, deixou de dizer uma srie de coisas, consignadas com riquezade cores em suas crnicas. A atividade de cronista de Manuel Bandeiraconstitui complemento do memorialista, e em seus artigos de jornal temos ricamatria-prima para aqueles que desejam penetrar no mundo do Itinerrio dePasrgada.10
Em primeiro lugar, a forma de publicao original do Itinerrio de Pasrgada,
em captulos mensais no Jornal de Letras, o aproxima dos formatos do folhetim e da crnica.
Depois, a constncia dos temas presentes na autobiografia nas crnicas, tanto anteriores
quanto posteriores ao Itinerrio, acrescenta um fator de interesse a esses textos. Pouco
estudados pela crtica bandeiriana, eles retomam temas caros sua poesia, alm de
tematizarem a prpria potica do autor, suas amizades e influncias literrias, compondo um
rico painel de sua obra. Devido qualidade da prosa em suas crnicas, Bandeira era
estimulado por seus amigos a escrever contos e romances, mas confessava ter feito algumas
tentativas e concludo que no nasci com bossa para isso11. Talvez tenha sido a crnica, em
10 Stefan Baciu, Manuel Bandeira de Corpo Inteiro, p.79 (grifo meu).11 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p.83.
15sua simplicidade e despretenso, o gnero em prosa que melhor se adequasse ao estilo de um
poeta que sempre se disse de circunstncias e desabafos.
Como dissemos, Bandeira publicou trs coletneas de crnicas ao longo da
vida; , inclusive, interessante notar que nenhum desses livros foi publicado por iniciativa do
poeta. O seu primeiro livro de prosa, Crnicas da Provncia do Brasil, rene crnicas escritas
para o Dirio Nacional de So Paulo, A Provncia do Recife e O Estado de Minas de Belo
Horizonte, escritas entre 1929 e 1933, e foi publicado em 1937 em homenagem ao
cinqentenrio do poeta pela Civilizao Brasileira, tendo sido talvez a nica coletnea em
que o poeta participou diretamente da seleo de textos. Duas dcadas mais tarde, Bandeira
publicaria Flauta de Papel, cuja primeira edio, de tiragem limitada, trazia a seguinte
Advertncia:
As minhas Crnicas da Provncia do Brasil, cuja edio, que de 1936, seachava h muito esgotada, no mereciam reimpresso: alguma coisa delas foiaproveitada em outros livros, como, por exemplo, o que se referia a Ouro Pretoe ao Aleijadinho; muita outra perdeu a oportunidade. Decidi, pois, reeditarapenas o que nelas me pareceu menos caduco, juntando-lhe numerosascrnicas escritas posteriormente, a maioria para o Jornal do Brasil. Chamei aovolume Flauta de Papel, querendo significar, com tal ttulo, que se trata deprosa para jornal, escrita em cima da hora, simples bate-papo com os amigos.No lhes dou, a estes escritos, outra importncia seno a de ver em alguns deleso registro de fatos que desapareceriam comigo, se eu no os lanasse ao papel.A idia da publicao partiu de Irineu Garcia, Lcio Rangel e Paulo MendesCampos, aos quais deixo aqui os meus agradecimentos.
A edio original de Flauta de Papel , portanto, uma reedio de Crnicas da
Provncia do Brasil, publicada por iniciativa de, entre outros, Paulo Mendes Campos, que
tambm incentivara Bandeira a escrever o Itinerrio de Pasrgada, trs anos antes. O ttulo
da coletnea, alm do sentido expresso na Advertncia, tambm remete, indiretamente,
infncia; mais exatamente, ao poema Infncia, de Belo Belo:
O urubu pousado no muro do quintal.Fabrico uma trombeta de papel.Comando...O urubu obedece.Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia.
16Atravs da escolha do ttulo, Bandeira estende, pela publicao das crnicas,
que alcanam um pblico relativamente amplo, aquele seu primeiro gesto de magia, que
no raramente suscitam uma reao inesperada do cronista: algumas crnicas de Flauta de
Papel e Andorinha Andorinha registram a resposta dos leitores a determinadas afirmaes
suas no texto de jornal, deixando o poeta muitas vezes surpreso. Na rplica a estes leitores,
vemos que Bandeira considerava os seus textos freqentemente sobrevalorizados pelo
pblico, que ampliava tanto sua importncia quanto o seu significado. Uma prova disso so as
suas duas posteriores publicaes em prosa: a segunda edio de Flauta de Papel, publicada
pela editora Jos Aguilar um ano depois da primeira e contida no segundo volume de Poesia e
Prosa, e a coletnea Andorinha Andorinha renem quase exclusivamente textos recolhidos
por leitores e amigos do poeta.
Os textos da segunda edio de Flauta de Papel, segundo a prpria editora,
ultrapassam de tal modo as enfeixadas no volume de igual nome, anteriormente dado a lume,
que se pode afirmar que s o ttulo se conserva: quase duzentos textos foram acrescentados
aos sessenta que, originalmente, participavam da coletnea. Da mesma forma,
aproximadamente trezentas crnicas, at ento inditas em livro, integram Andorinha
Andorinha, volume organizado por Drummond para publicao pela editora Jos Olympio em
comemorao ao octogsimo aniversrio do poeta, em 1966, com uma reedio pstuma no
seu centenrio, em 198612.
Mesmo pouco conhecidas, portanto, as crnicas de Manuel Bandeira no
formam um volume pequeno de textos. Sua leitura permanece limitada a especialistas e
curiosos sobre a obra bandeiriana, geralmente em busca de referncias para a interpretao de
seus poemas. De fato, o cronista recorda com freqncia a concepo de determinados
poemas e episdios recuperados mais tarde em poemas, e os temas de sua poesia surgem, de
forma quase automtica, nas crnicas, razo pela qual estas normalmente so lidas em relao
quase exclusiva com os poemas e muito dificilmente em relao entre si. Davi Arrigucci Jr.
sinaliza a importncia da crnica para o prprio programa modernista em geral e para a
mudana no conceito de literatura de Bandeira em particular, ao explorar possibilidades
12 As crnicas de Bandeira ainda receberam duas reedies recentes: a primeira, que rene os textos originais deCrnicas da Provncia do Brasil e Flauta de Papel, alm de uma seleo de Andorinha Andorinha, entre outrostextos em prosa, foi organizada por Jlio Castaon Guimares e publicada sob o ttulo Seleta de Prosa pelaeditora Nova Fronteira, em 1997; a segunda, uma pequena antologia pela coleo Melhores Crnicas, comseleo e prefcio de Eduardo Coelho, publicada pela editora Global, em 2003.
17poticas contidas em fatos do cotidiano, naquilo que at ento era considerado apenas
prosaico:
As crnicas, favorecidas pelo modo de ser do gnero, que desde o sculopassado vinha abrindo espao para a entrada do prosaico e outros aspectos davida moderna na prosa literria, demonstram como a observao do cotidianono se desgarrava necessariamente da inteno artstica e podia dar com a maisalta poesia no terra-a-terra, constituindo, por isso mesmo sem desdouros, umterreno propcio para a sondagem lrica. Da mesma forma, um escritormoderno que principalmente cronista, como Rubem Braga, formado sob ainfluncia do Modernismo, poder aprender muito com a lrica de Bandeira e omistrio da simplicidade de sua forma potica, construda em grande parte compalavras simples e imagens de todo dia.13
Como o crtico sintetiza de forma exemplar, no apenas os fatos narrados por
Bandeira revelam a sua importncia na concepo das crnicas, mas o prprio gnero
contribui para a maturao de sua potica, quando no para uma reflexo constante a respeito
dela. De forma oculta, portanto, disfarada pela aparente simplicidade, como prprio do
poeta pernambucano, as crnicas constituem textos propriamente literrios, no dificilmente
revelando um trabalho potico.
Entre as crnicas que apresentam um maior grau de lirismo, encontram-se
justamente aquelas que tratam de um tema caro poesia bandeiriana a memria de infncia.
So textos que chamam a ateno do leitor de forma particular, por resgatarem o passado
individual do cronista na massa catica do momento presente, principalmente no meio
urbano. Em funo de sua natureza jornalstica, entretanto, as crnicas, com algumas
excees, recuperam o passado em uma relao muito ntima com o presente. Se, no dizer de
Emil Staiger, o passado como objeto de narrao pertence memria; o passado como tema
do lrico um tesouro de recordao14, possvel afirmar que a crnica se localiza em uma
linha intermediria entre a narrativa e o gnero lrico e, em especial no caso das crnicas que
analisaremos, a recordao surge como resposta a uma srie de contradies entre o sujeito e
o meio em que ele se encontra.
No apenas dois tempos, o presente e o passado, como dois espaos, o da
infncia e o da idade adulta, dividem o cronista, que por sua vez tambm exerce uma funo
intermediria entre narrador e eu-lrico. A presena destes dois espaos de fundamental
13 Davi Arrrigucci Jr., Humildade, Paixo e Morte a poesia de Manuel Bandeira, p.53.14 Emil Staiger, Estilo Lrico: a Recordao, em Conceitos fundamentais da potica, p.55.
18importncia ao refletirmos sobre o processo de urbanizao e modernizao sofrido, na
primeira metade do sculo XX, pelas duas principais cidades do imaginrio bandeiriano Rio
de Janeiro e Recife , com a funo de eliminar os traos do passado pr-republicano da
paisagem urbana e, em conseqncia, muito da paisagem da prpria infncia do cronista.
Por isso, escolheu-se analisar as crnicas de Manuel Bandeira, uma vez
focalizadas na memria de infncia, atravs de sua movimentao no espao urbano. O
presente trabalho concentrou o seu foco nas crnicas publicadas em livro, apesar da
possibilidade de recuperar textos publicados somente nos jornais em arquivos, por se
considerar que as coletneas Crnicas da Provncia do Brasil, Flauta de Papel e Andorinha
Andorinha j formavam um corpus de trabalho bastante amplo e, ao mesmo tempo,
selecionado, seja pelo prprio autor ou por pessoas ligadas a ele. Ademais, a heterogeneidade
dos temas nas crnicas em livro, e mesmo no prprio gnero, no permitiria, mesmo com a
escolha do tema da memria de infncia, a formao de um corpus de anlise muito estrito.
Desta forma, o primeiro captulo procura destacar, nas crnicas, as situaes do
momento presente que suscitam a memria de infncia, notadamente o contato com crianas e
com a obra de determinados artistas. Primeiramente, analisaremos como a nostalgia da
infncia manifesta-se nos seus textos de crtica de arte, atividade que o poeta exerceu por
longos anos, de forma a tambm analisar o elemento de plasticidade em suas memrias, com
destaque para a pintura de seu conterrneo Ccero Dias. Em seguida, nos voltaremos para uma
das sries de crnicas mais conhecidas de Bandeira, que narra a convivncia com as crianas
da rua do Curvelo, em Santa Teresa, primeiro endereo em que o cronista morou sozinho no
Rio de Janeiro, de forma a tentar compreender como a influncia daquelas crianas, vivendo
uma infncia em quase tudo oposta quela passada por Manuel em Pernambuco, o leva a
recuperar o passado.
O segundo captulo volta-se para as crnicas que tratam de dois momentos
especficos na biografia do poeta: sua infncia no Recife e os anos de peregrinao pelo
interior do pas, em busca de um clima adequado sua sade. Da mesma forma que a crtica
de arte, a crtica literria presente nos textos de Bandeira tambm revela uma certa maneira de
recordar a infncia, em especial nos seus textos sobre Jos Lins do Rgo, que mostram uma
identificao com a decadncia da economia canavieira; por isso, preciso tambm relembrar
a amizade de Bandeira com Gilberto Freyre e o seu posicionamento ante as medidas
urbanistas e higienistas tomadas no Recife, quando o poeta j vivia distante da cidade natal.
19Da mesma forma que defende a preservao do seu Recife, Bandeira tambm
revela toda uma viso do passado e do patrimnio histrico do pas em crnicas em que
recorda perodos passados em cidades do interior do Nordeste, e que de certa forma tambm
constituem crnicas sobre uma infncia prolongada sob os cuidados familiares. Finalmente,
ao final do segundo captulo chegamos ao ncleo da presente pesquisa, nos textos em que
Bandeira recorda a sua infncia na rua da Unio, no Recife.
No ltimo captulo, a anlise amplia-se para as crnicas em que a memria de
infncia e a vida adulta contradizem-se na vida cotidiana do poeta, no Rio de Janeiro. A
trajetria de Bandeira na ento capital da Repblica, onde viveu mais de setenta anos, pode
ser reconstituda atravs das crnicas, que mostram um movimento gradativo de
distanciamento da infncia. Apesar disso, uma busca pelos pilares em que se apoiava o
passado permanece atravs da constncia de certos temas, em especial a da preservao das
rvores na cidade do Rio, no que os textos de Bandeira dialogam com crnicas de Rubem
Braga e Carlos Drummond de Andrade, escritores que passavam pela mesma experincia de
migrantes na metrpole.
Entre as crnicas que contrapem presente e passado, toda uma srie de textos
sobre o carnaval destaca-se das coletneas de Bandeira, em que no se recordam apenas
episdios da infncia, mas tambm determinadas percepes do perodo da infncia que o
cronista recupera. As lembranas carnavalescas, que pelo seu destaque na cultura brasileira
transformam-se num marco anual da passagem no tempo, levam o cronista a evidenciar certas
mudanas, no apenas na paisagem, mas nos costumes populares. Finalmente, a ltima parte
tenta analisar como a recordao do passado determina uma viso do presente, nos momentos
em que o cronista retorna terra natal: para efeito de anlise, aos textos em que Manuel
Bandeira retorna ao Recife contrapomos aqueles em que Rubem Braga, escritor considerado
essencialmente cronista e cuja obra traz muitos pontos em comum com a bandeiriana, rev a
cidade natal de Cachoeiro do Itapemirim, no Esprito Santo.
Como j dito, a pesquisa considerou que as crnicas publicadas em livro
formavam um corpus de anlise suficiente e bastante volumoso. Por isso, escolheu-se, para
cada tema a ser abordado, fazer referncia s crnicas mencionadas e cit-las
convenientemente, uma vez que uma seleo fixa de textos limitaria a anlise. Quando
resgatada em crnica, a memria da infncia parece menos tensa e mesmo menos
comprometedora do que na escrita autobiogrfica; de outro lado, a crnica assume, em sua
20forma, o carter fragmentrio e instantneo da reminiscncia. Em funo da brevidade que
caracteriza o gnero, as crnicas freqentemente focalizam pequenos detalhes e eventos que
nos permitem recompor o enredo desta infncia como num mosaico. No caso de Bandeira, as
peas desse mosaico encontram-se em parte nas crnicas, em parte na sua poesia, alm de seu
livro de memrias, que aqui tentamos reconstituir.
21
Captulo I: Infncia PrximaEm suas crnicas, freqentemente encontramos Bandeira rodeado de crianas.
Filhos de amigos, como Eduarda, filha do escultor Edgard Duvivier, e o pequeno Alexandre15,
filho de Tiago de Melo e Pomona Poltis, ou simples crianas quase annimas, que ele
encontra ou com quem convive por acaso, como o grupo de meninos que enchia de alegria e
balbrdia o seu cotidiano na rua do Curvelo, em Santa Teresa. A cada uma delas, o poeta, que
no teve filhos, dedica a mesma ateno e carinho que transparecem em vrios de seus
poemas.
Na coletnea Flauta de Papel, a crnica que se segue a Antiga trinca do
Curvelo, a ltima escrita por Bandeira em homenagem queles meninos, intitula-se Joo.
Nela, o cronista posa para um poeta que virou escultor e que , possivelmente, Celso
Antnio de Meneses, que esculpiu a cabea de Bandeira para ser erigida em uma praa do
Recife, e cujo trabalho ainda descrito em Depoimento do Modelo, tambm de Flauta de
Papel. Em ambas crnicas, o poeta queixa-se do desgastante papel de modelo vivo, durante os
cinco meses em que precisou posar, tendo como nica forma de distrao que, enquanto o
meu amigo vai modelando os meus traos cansados, conversamos sobre uma coisa ou outra
poesia, pintura, bichos, mulheres, crianas.
Ora, estes so os temas das prprias crnicas de Bandeira, que, segundo ele
mesmo, escrevia-as em tom de conversa com os amigos. E para alguns desses temas que a
conversa com o escultor e com um amigo de visita, e por conseguinte a prpria crnica, acaba
escorregando: bichos, com a histria de um gato de Santa Teresa; mulheres, sobre uma das
amantes de Joo; e ainda crianas, com a chegada, logo no primeiro pargrafo, de Ratinho:
15 Apesar do menino chamar-se Alexandre Manuel, Bandeira trata-o de Manuelzinho, o que trai tanto a suaternura, atravs do diminutivo, quanto a sua identificao com a criana. V. Manuelzinho, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, pp.419-420.
22
Uma vez apareceu Ratinho. Ratinho uma menininha de onze anos, filha deum empregado da Light que tem sete filhos e ganha 350 cruzeiros por ms.Perguntei a Ratinho se achava a cabea do escultor parecida com o modelo.Achou mas sem mostrar grande interesse pela arte. Estava evidentementefascinada pelo meu suspensrio de vidro (sub-repticiamente comeou logo aarranh-lo com a unha). Ratinho ganha 20 cruzeiros mensais para pajear umpequenino-burgus laganho, e entrega todo o dinheiro ao pai. Quando soubedisso, propus-lhe jogarmos cara-ou-coroa: perdi para ela seis cruzeiros. Pedi-lhe um beijo de indenizao: no v que me deu!
No h como saber o verdadeiro nome da menina, e muito menos de onde
provm o seu apelido, se no foi inventado pelo prprio Bandeira. Em Ratinho,
encontramos um elemento de degradao, de associao a um animal pouco nobre,
contrabalanado pela afetuosidade ligada ao uso do diminutivo, especialmente na poesia
bandeiriana16, e que se prolonga no substantivo menininha. Tampouco o leitor sabe por que
a menina se encontra na casa do escultor, onde modelada a cabea, se vizinha sua casa
ou de seu patro; em compensao, toda a situao social da famlia comentada sem
prembulos.
O pargrafo escrito em frases curtas e simples, como se transcrevessem as
falas do poeta e de Ratinho, com exceo do advrbio sub-repticiamente da frase entre
parnteses, que exerce a funo de frase narrativa em meio a um dilogo. Tambm no tema da
conversa Bandeira compactua com a criana: depois da dbil tentativa de faz-la interessar-se
pela escultura, a ateno dele volta-se para o suspensrio de nilon, material sinttico que
ainda era novidade no incio dos anos 50, e que a menina provavelmente no conhecia de
perto. Ele a deixa aproximar-se do caro objeto de fascnio e diverte-se com a sua curiosidade,
e continua a divertir-se com a menina ao disfarar um pequeno gesto de caridade em uma
brincadeira: como veremos, no relacionamento de Bandeira com as crianas, percebe-se
sempre uma certa confuso entre trabalho e jogo infantil, como uma forma de mascarar a luta
precoce pela sobrevivncia.
Ratinho deixa de aparecer, seja nesta crnica, seja em outras, o que j se previa
de incio, na frase com um vago tom de conto de fadas: Uma vez.... Antes disso, porm, o
poeta ganha um beijo seu, como indenizao pelo dinheiro perdido nas moedas: assim que
16 Notou Mrio de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo. V. Minhame, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, p.337.
23essa criana, sem nenhuma descrio mais cuidadosa que a inclua no rol dos personagens
bandeirianos, despede-se da crnica, como uma figura hbrida de criana, bichinho e mulher,
para dar lugar conversa dos homens. Mas no deixa de ser mais uma entre as vrias crianas
que, em crnicas e poemas, prendem a ateno do poeta.
Algumas aparecem em grupos, como a trinca do Curvelo, mas outras so
assunto de crnicas inteiras, como Lenine e Eduarda Duvivier. Naturalmente, h uma relao
entre o interesse do cronista por elas e a forma com que recorda a prpria infncia. As
crnicas sobre crianas antecedem em alguns anos as crnicas memorialsticas, adiantando
temas e imagens, alm de se inclurem entre os textos mais lricos encontrados nas crnicas
em livro de Manuel Bandeira. Observar crianas , enfim, uma forma de recordar a prpria
infncia, como possvel depreender de algumas de suas melhores crnicas.
1. Quadros da Infncia
Entre as atividades que Manuel Bandeira exerceu atravs de suas crnicas de
jornal, uma que parece incluir-se entre as suas favoritas a crtica de arte. Nas suas trs
coletneas em livro, destacam-se textos sobre pintura e escultura, teatro e cinema, msica e
dana, alm de, naturalmente, literatura. No volume Andorinha Andorinha, organizado por
Carlos Drummond de Andrade, cada uma destas manifestaes chega a merecer uma seo
prpria, em que se concentram as apreciaes sobre exposies, concertos, apresentaes e
novos livros. Mas as suas duas outras coletneas, Crnicas da Provncia do Brasil e Flauta de
Papel, tambm contm numerosos textos significativos a esse respeito.
Sua importncia no se limita ao testemunho de uma percepo
contempornea, do registro de uma obra no seu surgimento, mas constitui tambm o
julgamento crtico de um profundo conhecedor e apreciador de arte. Em Crnicas da
Provncia do Brasil, por exemplo, encontram-se vrias crnicas sobre os livros de Drummond
e Mrio de Andrade publicados no incio da dcada de trinta, e tanto neste perodo quanto nos
seguintes Bandeira manteve uma admirvel disposio em utilizar o seu espao no jornal para
esclarecer a arte moderna a leigos. Alm disso, no se deve esquecer que nestes textos pesa a
proximidade do contato entre o cronista e a maioria dos pintores, escritores e msicos da
poca, cujo aparecimento acompanhou de perto e com os quais travou longas relaes de
amizade.
24
Tempo houve em que, parte por necessidade, parte por presuno, aindaescrevendo sobre msica e sobre artes plsticas. Na Idia Ilustrada, colaboreicom resenhas crticas de concertos, e certa revista musical (...) em certa pocaera redigida por mim de cabo a rabo, com o meu nome ou com pseudnimos.NA Manh, convidado por Cassiano Ricardo, mantive uma seo diria sobreartes plsticas. Fiz parte da tropa de choque que defendeu, apregoou e procurouexplicar a arte nova de msicos, pintores, escultores e arquitetos modernos.Pouco a pouco, porm, fui perdendo no s a presuno como tambm oentusiasmo. que os artistas s nos reconhecem, a ns poetas, autoridade parafalar sobre eles quando os lisonjeamos. Caso contrrio, no passamos depoetas.17
Apesar da erudio e do gosto, que afinal so os requisitos da boa crtica, ao
que tudo indica Bandeira sofreu ataques por no ser um crtico especializado, principalmente
no campo das artes plsticas: No me esquecerei nunca de certo sorriso de superioridade
com que um pintor, enciumado com os elogios dados a outro pintor por um poeta de fina
intuio para as artes plsticas, disse desenfadadamente: Crtica de poeta....18 Contudo,
apesar dos textos de Bandeira serem de fato interessantssimos, principalmente pela dimenso
histrica que adquirem agora, no se deve negar a dimenso pessoal sempre presente nestas
crnicas, o que alis constitui uma de suas estratgias de aproximao das artes plsticas com
o pblico.
Ora, tanto a empatia pessoal de Bandeira com determinados artistas e obras,
quanto o seu espao de divulgao da arte moderna e o seu julgamento crtico, mais acurado
mesmo diante das obras mais recentes e inovadoras, so justamente os elementos que mantm
o frescor de textos de um gnero a princpio datado como a crnica. Mais do que retratos de
artistas, resenhas de exposies ou testemunho da concepo de determinadas obras, a leitura
destas crnicas ajuda a recuperar um elemento de dilogo entre as artes plsticas e a literatura
no Brasil, dilogo que foi fundamental durante as dcadas da atividade de cronista de
Bandeira. Elas tratam de uma poca de desenvolvimento mpar na histria das artes plsticas
brasileiras, com a viso privilegiada de algum que pde conviver com alguns de seus
melhores representantes.
17 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, pp.85-86.18 O poeta provavelmente Murilo Mendes, que tambm fazia crtica de arte, ou mesmo o prprio Bandeira. V.Velho Lus Soares, em Andorinha Andorinha, p.70.
25No somente artistas consagrados so privilegiados pelas crnicas de Bandeira
publicadas em livro. Assim como encontramos, em suas crnicas de crtica literria, um
nmero de escritores hoje cados no esquecimento, tambm alguns dos artistas plsticos
presentes nestes textos tornaram-se menos clebres do que outros. Naturalmente, para o
interesse especfico do presente trabalho, no se analisar o conjunto da crtica de arte de
Manuel Bandeira, mas aqueles que representam, de alguma forma, sua relao com crianas e,
em conseqncia, com a infncia. Apesar de haver uma relao entre as artes plsticas, em
particular a pintura, e a infncia na obra em prosa de Bandeira, esta relao torna-se mais
ntida em textos sobre dois pintores em especial, que destacaremos mais adiante: Cndido
Portinari e Ccero Dias.
Pintura Anglica
Na organizao do volume Andorinha Andorinha, Carlos Drummond de
Andrade reuniu sob o mesmo ttulo, Pintura Anglica, crnicas de pocas distintas e
relativamente distantes Crianas Inglesas, de 1941, e Crianas francesas, escrita
dezessete anos mais tarde, em 1958. Ambas crnicas tratam de exposies de desenhos
infantis vindas do exterior: a primeira, organizada pelo British Council de Londres e
apresentada aqui pelo Museu de Belas-Artes, sob os auspcios do nosso Ministrio da
Educao e de vrias sociedades de Educao e Cultura; e a segunda, exposta num rs-do-
cho da Avenida Marechal Cmara, com a qual estava a Escolinha de Arte [uma escola de
belas-artes destinada s crianas] comemorando o dcimo aniversrio de sua Fundao.
Bandeira no hesita em coment-las no mesmo tom em que comenta as exposies de arte
adulta, chegando mesmo a fazer algumas comparaes em tom de ironia: Nunca, em toda
a minha vida, recebi numa exposio de artes plsticas mais deliciosa, mais completa e mais
alta revelao de poesia. (Crianas Inglesas). s vezes se misturava ao sorriso algum
sentimento de admirao diante de certas manifestaes que j traem um artistazinho.
(Crianas francesas).
Em Crianas Inglesas, Bandeira comea avisando que se trata de trabalho
guiado e selecionado pelos professores das crianas. Mas, apesar da tentativa inicial de fazer
uma anlise mais objetiva, chegando a tomar notas para assinalar o que agradava mais, os
quadros mais ricos de sugestes estticas, aos poucos o cronista parece ceder ao encanto
puro de deparar-se com obras que, numa idade refratria a qualquer especulao de influncia
26artstica, nada ficam a dever s escolas de vanguarda, como o surrealismo de um boneco cuja
mo tem dezesseis dedos, ou a possvel sugesto impressionista de um quadro intitulado
Noite Vitoriana: as crianas desenhavam sob orientao dos professores, cujo cuidado
principal residia em subtrair aos seus alunos s influncias deformadoras, para que com toda a
espontaneidade se expandisse a faculdade criadora. Isto foi quase sempre conseguido.
Naturalmente impossvel suprimir o pendor imitativo das crianas. Assim, Wendy Coram,
que pintou aquela Noite Vitoriana, no ter visto quadros de Matisse? Ou ser Matisse que
se ter deixado impressionar por alguma Wendy Coram do seu tempo? (Crianas
Inglesas).
As duas crnicas, escritas no incio da dcada de quarenta, quando entrava em
voga o abstracionismo, e no final da dcada de cinqenta, quando surgia a arte concreta,
contm ironias sem reserva para a pintura de vanguarda: Um modernista, sem se lembrar de
que hoje sou um medalho, um acadmico19, tanto que j comecei a engordar, como convm,
aproximou-se de mim e disse, ferino: Que lio para os passadistas!. Eu sorri, com
duplicidade: para fora o sorriso concordava; mas para dentro acrescentava: Que lio para os
modernistas!. Notei que nenhuma daquelas crianas deu bola ao concretismo.
Positivamente, a infncia figurativista. Abstracionista uma vez por outra, mas nunca fugindo
inteiramente palpvel e gostosa realidade. So comentrios muito semelhantes a vrios
outros encontrados em sua crtica de arte, como em Cores da Misria, sobre Portinari:
Toda essa misria esplende, porm, em tonalidades ricas, em jogos de volumes capazes de
fazer inveja aos mais ousados concretistas20.
Nas crnicas de Pintura Anglica assinalam-se vrios fatos importantes para
as artes plsticas brasileiras das dcadas de 40 e 60. Em primeiro lugar, a presena de grandes
exposies vindas do exterior com apoio e organizao de departamentos governamentais de
cultura, todos fundados recentemente e dirigidos por profissionais da arte ligados ao
Modernismo, como Lcio Costa, o que contribuiria, em conjunto com a profissionalizao e a
ampliao do ensino da arte, para a sua divulgao junto ao grande pblico e sua expanso
para fora do eixo Rio So Paulo. Tambm faz parte desse processo a formao de uma 19 1941, ano de publicao de Crianas Inglesas, tambm o ano de ingresso de Manuel Bandeira naAcademia Brasileira de Letras.20 Tambm dos anos 50 lemos uma crnica sobre uma exposio de Alfredo Volpi: Decretaram mesmo outrosgolpistas ou volpistas que ele era o primeiro pintor brasileiro e a sua pintura a primeira manifestao de umaarte autenticamente brasileira. Ora, isso fazer do excelente Volpi gato morto para bater na cara de Portinari, Die outros pintamonos estrangeiros. Na mesma crnica, Bandeira explica que a arte concreta o deixavaintelectualmente interessado, mas frio. V. Volpi, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, p.554.
27crtica de arte, atravs de publicaes especializadas, como a revista Forma (1930), na qual
Manuel Bandeira publicou um artigo sobre Ccero Dias, e das colunas de arte nos jornais de
grande circulao, onde Bandeira exerceu um dos papis centrais, divulgando e esclarecendo
o pblico a respeito das vanguardas e dos sales e exposies21. Antes de todo o contexto
histrico, porm, nessas crnicas encontramos o que Bandeira procura na obra de um artista
plstico: a capacidade de reelaborar o mundo, que nas crianas aparece de forma
espontnea22.
Nas duas crnicas, o movimento do narrador e crtico de arte muito
semelhante mudana de atitude que se percebe nas crnicas sobre arte de Bandeira em geral:
se durante a dcada de vinte e no incio dos anos trinta a disposio do cronista didtica e
tem como objetivo ampliar a recepo da arte moderna entre o pblico leitor de jornais, com o
passar dos anos ele deixa de defender determinadas escolas artsticas e abandona suas
denominaes, a no ser para mencion-las como rtulos ou de forma irnica, para concentrar
suas observaes apenas em artistas e obras que o agradassem em particular. Assim, se em
Crnicas da Provncia do Brasil, seu primeiro livro publicado em prosa, encontram-se textos
pontuais sobre escritores e artistas plsticos que se destacaram depois da Semana de Arte
Moderna, em Flauta de Papel e Andorinha Andorinha j possvel destacar sries de crnicas
sobre alguns artistas preferidos, cujo trabalho esses textos acompanham ao longo dos anos.
Alguns deles so de tal maneira constantes nas crnicas de Bandeira que
chegam a formar sries completas de textos que se destacam em suas coletneas em livro,
como a que Drummond intitulou O numeroso Portinari, em Andorinha Andorinha. A srie
de oito crnicas comea com Um rapaz de 23 anos, de 1928, quando Portinari ganhou uma
viagem de dois anos como prmio do Salo da Escola Nacional de Belas-Artes, e se encerra
com Cmara Ardente, de 1962, ano de seu falecimento, com apenas 57 anos. Como o pintor
era filho de imigrantes italianos, nascido em uma pequena cidade do Noroeste paulista, com o
extico nome de um engenheiro polons, Portinari sempre referido como o menino de
Brodvsqui, mesmo depois de muitos anos de carreira, assim como Ccero Dias sempre o
menino de engenho da pintura, como veremos a seguir.
21 Cf. Walter Zanini. Histria Geral da Arte no Brasil, volume II: Arte Contempornea, pp.572-578.22 No poema Na rua do Sabo, de O Ritmo Dissoluto, a mo da criana concentra a possibilidade de criaoartstica: O que custou arranjar aquele balozinho de papel! / Quem fez foi o filho da lavadeira. / Um quetrabalha na composio do jornal e tosse muito. / Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, comps osgomos oblongos....
28Noite bonita foi a exposio de Portinari na Galeria Bonino. A grande salaestava cunha, havia muita alegria, quanta bonita mocidade se acotovelava ali!Fiquei eufrico. De repente, Mrio Barata me abraa e evoca o Salo de 31:toda a minha alegria murchou. que naquele zunzum de vozes comecei asentir a ausncia de muitas vozes de antigamente (...). Em vez de viver ominuto presente, passei a tentar reviver o extinto passado.
A crnica Exposio em Bonino, de 1960, integra a srie sobre Portinari e
comenta uma de suas exposies da fase madura; mas, a partir de certo momento, Bandeira
passa a procurar, entre as pinturas ali presentes, os retratos dos amigos mortos, de autoria do
prprio Portinari. Na voragem do ubi sunt?, misturam-se na memria as imagens dos
amigos e de seus retratos, as lembranas dos dias tempestuosos do Salo de 31 e dos
ocorridos de ento; misturam-se, enfim, a trajetria da pintura de Portinari e a prpria histria
da pintura brasileira, ambas inseridas na histria pessoal de Bandeira, por envolverem o seu
crculo de amigos, incluindo o pintor.
O Salo de Arte Moderna realizado em 1931, no Rio de Janeiro, foi um marco
na histria das artes plsticas no Brasil. Sem o escndalo que cercou a Semana de Arte
Moderna, mas despertando a ateno pela afluncia de artistas modernos e o confronto destes
com os acadmicos, a XXXVIII Exposio Geral de Belas-Artes contribuiu para trazer mais
fora de persuaso s novas tendncias. Reestruturada por Lcio Costa, e organizada por uma
comisso composta por ele mesmo, Anita Malfatti, Celso Antnio, Portinari e Manuel
Bandeira, a capital federal dava finalmente importante passo ao encontro da cultura plstica
em seu curso criador23. Destinado a permanecer como um evento nico, o Salo de 31, como
ficou conhecido, ou salo revolucionrio, como a imprensa o chamou, exerceu um papel
fundamental ao formar uma viso abrangente do que se produzia de vanguarda nas artes
plsticas do Brasil daquele incio da dcada de trinta, alm de abrir as portas para a
receptividade do pblico e da imprensa.
exceo de Oswaldo Goeldi, todos os artistas que haviam se destacado
durante a dcada de vinte, como Lcio Costa, Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti, Lasar
Segall, Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Ccero Dias e Celso Antnio compareceram com a
maior parte de suas obras, alm de novos talentos como Cndido Portinari, que acabava de
retornar da Europa. Portinari viveu em Paris durante dois anos, graas ao prmio do Salo de
1928, e, quando retornou, esperava-se que o bolsista, como era costume entre os ganhadores
23 Walter Zanini. Op. cit., pp.578-579.
29do concurso, tivesse feito inmeros cursos com os professores clebres que lecionavam arte
em Paris na poca, e que trouxesse um punhado de obras prontas que, por assim dizer,
justificassem o seu prmio. Mas Portinari passara a maior parte do tempo visitando os museus
europeus e retornou ao Brasil decidido a pintar sua cidade natal24. Para o espanto dos crticos
e dos professores da Escola que o premiara, no voltou com um nico quadro pronto. Na
opinio de muitos, tal atitude poderia desabonar o seu trabalho, mas no para Bandeira, que
chega a destacar o fato para ressaltar o que considera autntico em sua obra. Para o Salo de
31, Portinari realizou uma srie de retratos, a maioria de amigos e intelectuais que
participavam do Salo, obras que inclusive deixavam transparecer as influncias de pintores
que conhecera na Europa Picasso e Modigliani, por exemplo. Bandeira, que considerava
Portinari um excelente retratista, aprovou os quadros apresentados no Salo, incluindo o seu
prprio retrato.
Apesar do prazer que revela nas lembranas desta poca, Bandeira procura
reintegrar-se ao presente, prosseguindo a crnica sobre a exposio de 1960: Portinari
continua o grande pintor o melhor que j tivemos, digam o que disserem os novos talentos e
seus entusisticos pregoeiros. Dou graas ao cu de possuir ainda a mesma sensibilidade que
me fazia tremer de emoo diante dos meninos de Brodvsqui com os seus papagaios de
papel e as suas arapucas. Embora insista no esforo de voltar ao momento presente, a
lembrana do Salo contribui na verdade para a reflexo do cronista sobre a obra de Portinari,
mesclando os planos temporais para melhor avaliar a sua trajetria artstica.
Poucos artistas detm o privilgio de incluir, em sua fortuna crtica, uma srie
de textos de Manuel Bandeira que acompanhe assim de perto a sua produo ao longo dos
anos. Em comum com as demais crnicas sobre arte, encontramos o trabalho de aproximao
s artes plsticas do grande pblico, atravs do uso de um tom muito pessoal que mescla as
impresses subjetivas do cronista diante de cada obra com comentrios a respeito da vida e da
personalidade do artista. Nas crnicas de Portinari, h sempre uma referncia sua origem
italiana e sua infncia em Brodvsqui, mas sempre procurando a justa medida da influncia
dessas vivncia na obra do pintor, sem deixar de anotar os progressos trazidos pela
maturidade: a fora de Portinari veio cada vez mais acrescendo com as experincias murais,
com a confiana em si prprio dilatada pelo sucesso, primeiro nacional, depois continental, e
24 Sobre as conseqncias do perodo em Paris sobre a obra de Portinari, v. Annateresa Fabris. CndidoPortinari. So Paulo, Edusp, 1996.
30agora, nestes painis [da sede da rdio Tupi] se expande com uma liberdade para alm da qual
no se pode distinguir onde ir ter. (A fora do povo).
Entretanto, apesar da relativa ponderao da apresentao esttica de Bandeira,
o que interessa ao cronista e ao presente trabalho so os detalhes que remetem infncia
no interior: Portinari sempre o homem de Brodvsqui, filho do menino que passava os dias
armando arapucas nos capes e destronco a coxa jogando futebol no Largo da Matriz, o
amigo de Balaim, a figura mais notvel de Brodvsqui, homem da rua. (grifo meu). Na
crnica Florentino quase caipira ttulo que sintetiza as origens do pintor , Bandeira
reafirma, quase de passagem, a assero freudiana de que o menino o pai do homem, e
alm: somente torna-se pai do homem de um grande artista o menino que viveu em
Pasrgada, com a liberdade absoluta das crianas e seu universo de diverses sem
conseqncias: E o homem de Brodvsqui no se esqueceu de Brodvsqui. H nesta galeria
admirvel do Palace Hotel um grande quadro a leo e vrias aquarelas inspirados em aspectos
e cenas da pequena cidade paulista. So as melhores cousas que j comps Portinari, dir-se-ia
que o pintor esperava a maturao de todos os seus recursos para encetar a transposio
grfica de suas reminiscncias de infncia.
Tais observaes no significam que Bandeira seja insensvel aos demais temas
da pintura de Portinari ou mesmo de outro artista. Em diferentes crnicas da mesma srie,
como Fora do Povo ou Cores da Misria, a comear pelos seus ttulos, observa-se a
sensibilidade do poeta para temas sociais e populares, pelos quais a obra de Portinari ficaria
clebre. Mas, em Bandeira, a sensibilidade artstica despertada pela identificao com
vivncias ou temas que tambm sejam importantes para quem v a obra e, por isso, mesmo
em Cores da Misria no falta uma ligeira observao sobre meninos brincando (h entre
eles um de bodoque, que uma de suas obras-primas). Naturalmente, s se encontra mrito
artstico na infncia recuperada, em poesia ou pintura artes que Bandeira considera irms
gmeas , atravs do prisma da maturidade artstica, como demonstra a seguinte verso da
trajetria do pintor:
Portinari, estudante de pintura na Escola Nacional de Belas-Artes, viviasonhando com a Europa. Um dia ganhou, no Salo, o prmio de viagem aoestrangeiro e o sonho realizou-se. Mas, na Europa, um caso extraordinrio sepassou: Portinari descobriu Brodvsqui, o seu torro natal, no fundo de SoPaulo. Na verdade, no fundo de sua subconscincia, e a princpio sob a formado mais pobrinho e mais humilde de seus conterrneos. Escreveu ento o pintoruma pgina, que pode ser considerada como o prefcio de toda a sua obra de
31artista plstico a histria de Balaim, um beira-crrego de Brodvsqui (...).Descoberta Brodvsqui, estava definitivamente traado o itinerrio artstico dePortinari: quando regressasse ao Brasil, iria pintar Brodvsqui. A paisagemonde a gente brincou pela primeira vez e a gente com quem a gente conversoupela primeira vez no sai mais da gente e eu, quando voltar, vou ver se consigofazer a minha terra. Pondo de para a sua prodigiosa tcnica, a sua estupendagaleria de retratos, a melhor poro da obra de Portinari isto: Brodvsqui esua infncia em Brodvsqui, o menino e o povoado, o menino no seu povoado.Por esse fundo vivencial que Portinari se afirma profundamente brasileiro eprofundamente ele mesmo, mesmo quando influenciado por Picasso ou pelossurralistes.25 (Poemas de pintor)
O trecho acima faz parte de uma crnica que anuncia a publicao de um livro
de poemas de Cndido Portinari, intitulado O menino e o povoado. Tanto nas consideraes
sobre a pintura quanto sobre a poesia de Portinari, que se mesclam e se confundem, o cronista
aborda questes fundamentais sua prpria obra: a ligao com a terra natal que emerge de
forma subconsciente em meio vida adulta, a identificao com a gente simples daquela terra,
fazendo a figura portinariana de Balaim evocar o personagem Totnio Rodrigues, de tantos
poemas fundamentais de Bandeira, e finalmente a possibilidade de mesclar criativamente a
experincia pessoal da infncia com as mais altas influncias artsticas do sculo: a viagem e
o contato com as vanguardas europias no so momentos dispensveis da experincia, mas,
pelo contrrio, provam-se essenciais para o processo em que a memria plasmada em
matria artstica.
Ao mesmo tempo, o comentrio de Bandeira a respeito da pintura e da poesia
de Portinari refora a aproximao entre as duas artes mencionada h pouco, uma
aproximao que tem uma longa histria, marcada principalmente pelo livro Lacoonte ou
sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, de G. E. Lessing, e retomada por Joseph Frank.
Baseado na distino entre as artes do espao e as artes do tempo preestabelecida por Lessing,
Frank analisa o processo pelo qual a literatura moderna, a partir do romance do sculo XIX e
da poesia de Ezra Pound, tende espacializao: Atravs dessa justaposio entre passado e
presente (...) a histria se torna anti-histrica: j no mais vista como uma progresso
objetiva e causal no tempo, com diferenas distintamente marcadas entre cada perodo, mas
sentida como um continuum em que as distines entre passado e presente esto obliteradas.
25 Note-se tambm o deleite esttico, de pura iluminao verbal, de Bandeira com o extico nome polons dacidadezinha, que lembra o seu fascnio pelo nome de Pasrgada, e que ele repete nada menos que 22 vezes aolongo de oito crnicas que ocupam nove pginas.
32Assim como a dimenso da profundidade foi se esvanecendo das artes plsticas, ela tambm
foi se esvaecendo da histria medida que formava o contedo dessas obras 26.
Esse processo de espacializao, que o autor nota nos romances de Marcel
Proust e James Joyce, repete-se em menores propores na crnica de Bandeira sobre a
exposio de Portinari, atravs do procedimento marcadamente proustiano de notar, no meio
da agitao do salo repleto, as conseqncias da passagem do tempo27: entre a linda
mocidade que ocupa a galeria presente surgem, atravs dos retratos de Portinari, os amigos j
mortos ao lado dos quais Bandeira enfrentara as rivalidades do passado. Da mesma forma, em
Crianas Inglesas, ao reproduzir ironicamente o comentrio do amigo modernista sobre a
proximidade das pinturas infantis com a vanguarda, Bandeira marca a mesma passagem do
tempo que j o transformara em um acadmico, um medalho, e em obsoleta toda a verve
de seu companheiro contra os passadistas, ao contrrio do frescor mantido pelos desenhos
das crianas. Mesmo quando alterna, nas descries dos desenhos, os termos utilizados pelos
artistas de vanguarda, duas dcadas antes, o cronista repete palavras desgastadas pelo uso, e
que j no dizem muita coisa a respeito das obras propriamente ditas, tendo se transformado
em meros rtulos.
Dessa maneira, a ironia do cronista no se volta exatamente em direo
vanguarda, interpretao muito comum devido participao passiva de Manuel Bandeira na
Semana de Arte Moderna, mas sim passagem do tempo, que envelhece as escolas e os
manifestos, mas no as obras que contenham real valor artstico, e que se contrape ao
encanto atemporal da arte provinda da infncia. Um termo como pureza, por exemplo,
aparece com alguma freqncia na crtica bandeiriana de artes plsticas, usado para designar
determinadas tcnicas e snteses visuais, tendo uma importncia particular em suas crnicas
sobre arquitetura; as esculturas de barro de Vitalino, por exemplo, so descritas pela sua
plstica to ingenuamente pura, expresso que as relaciona duplamente puerilidade dos
traos infantis.
H, evidentemente, um carter plstico muito acentuado nas memrias de
infncia de Bandeira, na forma em que elas aparecem nas crnicas, razo pela qual vimos
analisando, em primeiro lugar, as crnicas sobre artes plsticas em que as crianas marcam
26 Joseph Frank, A forma espacial na literatura moderna. Revista USP, So Paulo, n.58, pp.225-241, junho-agosto de 2003.27 Nas referncias obra de Marcel Proust na prosa bandeiriana, conveniente recordar que Manuel Bandeira fezparte da equipe da Editora Globo responsvel pela primeira traduo brasileira de Em busca do Tempo Perdido,do qual traduziu o quinto volume, A Prisioneira.
33presena. Em Proust, por exemplo, as reprodues de obras de arte localizadas em museus
distantes servem para aproxim-las do narrador de Em busca do tempo perdido, diminuindo a
distncia entre elas no espao; nas crnicas de Bandeira, como veremos, fotos antigas e
pinturas de lugares vistos na infncia trabalham para que o cronista recupere-os como
conheceu da primeira vez, aproximando-os dele no tempo, de forma que a memria opera
uma restaurao imaginria, que contribui para que o indivduo negue as transformaes ou
deformaes, como prefere Bandeira do presente. Em algumas crnicas, essa atitude pode
partir de visitas aos espaos da infncia, mas a partir da observao de suas imagens que a
atitude do cronista diante do presente se nota de forma mais marcante.
Eu vi o mundo...
Em Notcias de Ccero, de Flauta de Papel, o que primeiramente chama a
ateno do leitor, como em diversas outras crnicas de Bandeira, a aparente contradio
entre o tom jornalstico do texto e a crnica em si, que se preocupa antes em fazer um
histrico da trajetria artstica do pintor Ccero Dias que, naquela poca meados dos anos 40
, j morava em Paris. O primeiro passo do cronista uma quebras de expectativas: No se
trata do Ccero de Arpino, do Ccero das Cantilinrias e das Filpicas, mas o Ccero de
Cajazeiras, do Estado de Pernambuco. Ccero Dias, Ccero dos Santos Dias, pintor e poeta. O
Ccero que pertence Histria, o orador da Antigidade Clssica, colocado em segundo
plano, atravs da explorao do nome, para dar lugar a um Ccero particular do universo de
Bandeira, do artista conterrneo, ex-vizinho e amigo do poeta, mais prximo no tempo e no
espao28.
A quase duas dcadas de distncia, Bandeira recorda a primeira exposio de
Ccero Dias no Rio de Janeiro, em 1928, no edifcio da Escola Politcnica em que funcionava
o Instituto de Psicanlise. Em carta a Mrio de Andrade, o poeta registrou o assombro
causado pela primeira impresso das aquarelas expostas naquela ocasio, que ele descreveria
como uma impresso de atropelamento: A novidade aqui um rapaz de Pernambuco que
vive no Rio Ccero Dias. Uma arte profundamente sarcstica e deformadora, por exemplo,
uma entrada da Barra com o fio do carrinho eltrico do Po de Acar preso na outra
28 Nas crnicas de Bandeira, esse procedimento comum a todos os textos sobre amigos cujos nomes remetam apersonagens da Antigidade. V. Orestes, sobre o compositor Orestes Barbosa, e Tasso e Gomide, sobre opoeta Tasso da Silveira, ambos em Flauta de Papel.
34extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glria, e a igrejinha toda torta. Acho muita
imaginao e verve nele. Entre os entendem e pintam est cotado. No meio modernista, claro.
Assim o [Oswaldo] Goeldi, o Di [Cavalcanti] e o [Ismael] Nery gostaram muito29. Apesar de
escusar-se do mrito de ter descoberto Ccero, que cabia na verdade a Murilo Mendes,
Bandeira contribuiu para a divulgao do seu trabalho, inclusive acompanhando de perto a
composio do mural Eu vi o mundo, ele comeava no Recife, exposto no Salo de 31.
Em ambas ocasies na sua primeira exposio carioca e na exposio de seu
mural no Salo Ccero Dias enfrentou vrios tipos de crtica: desde a acusao de que seria
apenas louco, em funo do seu tratamento dos temas e de sua tcnica absurda em que
entrava at tinta de escrever, apesar da propriedade em expor temas ligados ao universo
onrico em um instituto de psicanlise; passando pelo rtulo de pintor imoral, por causa do
forte erotismo das figuras femininas em Eu vi o mundo, ele comeava no Recife; e por fim
a observao que competia ao seu estilo em particular e ao surrealismo em geral, de que
qualquer criana seria capaz de desenhos e aquarelas iguais s de Ccero, e da qual Mrio
de Andrade j o defendera publicamente30. Em sua crnica, Bandeira ainda explica aos leigos
a esttica surrealista, justamente pela analogia com os desenhos de crianas: se os quadros de
Ccero se assemelham aos desenhos infantis pela libertao das tcnicas tradicionais e pela
atitude ingnua diante dos aspectos humorsticos e mal-assombrados da vida, que
caracteriza a sua sensibilidade, ele ainda se diferencia pelo dom da expresso, que
certamente no se desenvolve em tenra idade.
Apesar disso, para Bandeira como j pudemos observar em outras crnicas ,
nunca deixa de haver uma relao bastante ntima entre arte e universo infantil. A ingenuidade
da criana parece expressar-se em duas atitudes: a primeira o humor, que na infncia
identifica-se com o esprito ldico, e que se manifesta na capacidade de reorganizar o mundo
ou de criar um mundo prprio, interior, que no artista adulto enriquecida pelo dom 29 Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, p.393.30 A aquarela de Ccero Dias ingnua como expresso, bem sei. At a compararam com os desenhos dascrianas, comparao que acho falsa. No tem nada que afaste mais a sensao de infantilidade que a parecenacom criana. Aqui mesmo no hotel esto uns anezinhos incompreensveis, grande sucesso do dia no quarteirodos cinemas... E no h nada menos criana do que eles. Criana vida, da mesma forma que manga ou ticotico.Ano fenmeno no sentido popular da palavra. esse contraste insubstituvel na comparao da genteperversa entre os desenhos de criana e os desenhos de Ccero Dias. Aqueles trazem essa eqidade justiceiracom que a vida vulgariza as coisas. J falei uma feita e repito: Se uma vez por outra a criana desenha uma obra-prima caso raro. No geral os desenhos infantis sob o ponto de vista da arte so perfeitamente idiotas e nosinteressam por valores que nada tm de plsticos ou de estticos. Ora, Ccero Dias justamente o contrrio disso.Possui uma personalidade surpreendente. Possui uma fatalidade de expresso formidvel, cujos valores
35complementar de exprimir plasticamente este mundo, de modo a suscitar nos outros a
emoo artstica; e a segunda o que Bandeira gosta de chamar de assombro, a disposio
em encontrar mistrio e de surpreender-se com pequenos detalhes do cotidiano que se
encontram a todo momento, nos grandes centros e nas cidades do interior:
Possu uma pintura de Ccero que era um quadro bem pernambucano: umacasa de engenho encostada igrejinha modesta. Foi uma casa que visitei noCabo em criana e que nunca mais se apagou da minha memria. O vazio tristedaquela igreja velha onde me contaram que havia noite almas penadas, eradentro de mim uma coisa sem voz que reclamava existncia no plano da arte.Ccero adulto viu-a com os olhos e a alma da minha infncia, e realizou umaadmirvel criao. (grifo meu)
Bandeira refere-se a um lugar chamado Usina do Cabo, um dos retiros de
veraneio de sua famlia durante a infncia no Recife. Se o quadrinho de Ccero Dias bem
pernambucano, no por captar a paisagem em si ou como qualquer criana a veria, mas sim
como o menino Manuel a viu um dia: os olhos e a alma da minha infncia. A emoo
artstica do quadro que descreve vem da capacidade do pintor de captar a sua imaginao
infantil, no espanto que relaciona a tristeza e o vazio do interior da igreja com a presena de
almas penadas, que resulta em uma imagem cristalizada no passado. No lhe importa o
aspecto atual da casa de engenho e da igreja, nem mesmo o seu aspecto quando Ccero Dias a
pintou: em inmeras crnicas, ele critica as restauraes em construes de cidades do
interior como deformaes de seu aspecto autntico, o que de certa forma traduz a sua
vontade de reencontr-las sempre como as conheceu pela primeira vez Bandeira no procura
uma reelaborao da paisagem, mas uma traduo da imagem fixada em sua memria.
No so apenas imagens do interior de Pernambuco, entretanto, que agradam
Bandeira na obra de Ccero Dias, como indica o trecho j citado da carta de 1928. H tambm
as imagens do presente da vida no Rio de Janeiro, que se destacam pela mesma combinao
de mistrio e ternura: Ccero tem tirado do noticirio policial dos jornais algumas obras da
mais tocante piedade, como fez do caso banal de uma mocinha de Niteri, a qual, abandonada
pelo namorado, se matou. Ccero ofereceu-se o que sempre oferece aos infelizes e s mulheres
que ama flores e estrelas. O grupo da famlia da suicida entrada do cemitrio uma das
imagens mais ingenuamente dolorosas que j vi. Quem pensa em tcnica diante dessas
psicolgicos principais so a sexualidade, sarcasmo e misticismo. Justamente as cousas que a criana menospossui. O Turista Aprendiz, 29 de novembro de 1928, p.204.
36imensidades puras da piedade?. Sequer seria preciso explorar as relaes entre a descrio do
pequeno quadro e o clebre Poema tirado de uma notcia de jornal, de Libertinagem (1930):
a pungente tragdia suburbana e a morte banalizada pelo meio de comunicao em massa,
redimidos pela sensibilidade artstica, em particular a de vanguarda. O quadro descrito foi
composto na mesma poca de Libertinagem trata-se da tela Enterro (Cortejo) (nanquim e
aquarela sobre papel, 47x 30cm, 1930), dedicada a Mrio de Andrade e destinada,
originalmente, ao clebre Salo de 31, no qual Ccero Dias acabou expondo o escandaloso
painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife (tcnica mista sobre papel kraft com cola de
peixe, 2x 15m, 1929).
Parte da repercusso e do escndalo causados pelo Salo de 31 deveram-se
obra de Ccero Dias, apesar do pintor j ser conhecido pelas tendncias surrealistas em seu
trabalho. A princpio idealizada como homenagem ao abolicionista Joaquim Nabuco, a obra
surpreendeu tanto pelo seu tamanho e suporte incomuns quanto pelo erotismo cru de suas
figuras femininas, que causaram tamanho impacto a ponto de quase trs metros do trabalho
serem cortados. O painel acabou esquecido em uma fbrica de Bangu, no Rio de Janeiro,
durante vinte anos, at ser reencontrado e encaminhado para restauro, com retoques do
prprio autor. Atualmente, restam apenas doze metros da obra, que pertence a uma coleo
particular31.
Pela sua extenso, o painel repleto de detalhes que captam o olhar. Embora
pela fora do hbito ele seja normalmente lido da esquerda para a direita, os cantos
fornecem uma pista contrria: o canto inferior direito contm um semicrculo negro com os
dizeres Entrada -$5,00 acima e ao lado, enquanto a assinatura Rio de Janeiro/ Ccero Dias
encontra-se no canto inferior esquerdo. Essa lgica confirmada pela progresso de figuras
ao longo da obra, a comear pela representao dos ciclos de nascimento, com a imagem de
uma ama-de-leite, e morte. A extenso do painel seccionada em trs partes, onde as folhas
de papel kraft foram coladas uma outra: a primeira sesso traz direita um grupo de pessoas
que se despede estendendo lenos brancos, embora a margem direita mostre apenas um ramo
de flores e a saia branca de uma figura que foi cortada. Seguindo para a esquerda,
encontramos fileiras de casas o Recife , e uma casa de engenho, com a moenda de onde
31 Nos ltimos anos, o painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife foi exposto duas vezes ao pblico dacidade de So Paulo: na mostra Da Antropofagia a Braslia. Brasil 1920-1950, realizada em dezembro de2002, e na exposio Ccero Dias dcadas de 20 e 30, em novembro de 2004, ambas no Museu de ArteBrasileira da Fundao Armando lvares Penteado.
37nasce o rio, uma casa-grande e a senzala. Logo acima h um carro de bananas puxado por dois
bois, aoitados por um homem de bigode e montados por duas crianas, uma branca e outra
negra. Mais ao fundo, um boi de cara preta dorme sob uma rvore.
Ainda h morros floridos com crianas dando de comer s galinhas, na seo
central entre as duas emendas de papel. Mas dominam a cena trs mulheres gigantescas,
segurando vacas no ar, e um homem vestido de noivo que aparece na horizontal, arrastado por
uma vaca que usa uma guirlanda de flores brancas. A esta altura, as construes j
prevalecem, como as duas torres ligadas por um terrao quadriculado, sob cujas colunas v-se
o Po de Acar, presente na maioria de suas pinturas cariocas. O mar encontra-se ao fundo, e
sobre ele h um barco em que se deita um casal de amantes e o sol mergulha na gua. A seo
esquerda do painel tambm traz figuras femininas gigantes, como a mulher que toca
sanfona, e flores soltas em vasos e cestos que se distribuem pela tela e na imagem de um
velrio. Animais, figuras com chicotes e morro com casinhas repetem-se por todo o painel. A
lateral esquerda mostra, assim como a direita, duas fileiras de casas, mas com uma rua
definida entre elas sem dvida a rua do Curvelo, onde morava Bandeira, bem prximo de
seu conterrneo.
Uma abordagem descritiva da obra de Ccero Dias mais conhecida no Brasil
expe de forma bastante clara as suas afinidades com Manuel Bandeira, o que tambm seria
possvel constatar em vrias de suas aquarelas das dcadas de 20 e 30. O mundo comeava no
Recife, onde Bandeira nasceu e Dias passou parte da infncia, e no interior de Pernambuco
onde Dias nasceu e Bandeira passava os veres com a famlia, mas a sua outra ponta estava
no Rio de Janeiro, na casinha de Santa Teresa, cujo bonde aparece em Chegada a Muratori
(aquarela sobre papel, 1927, coleo IEB). Perto da rua do Curvelo, na rua Aprazvel,
nmero 8, morava Ccero Dias. A casa, preservada at hoje, faz esquina com a rua do
Aqueduto (...). Nas paredes que a circundam Ccero Dias pendurava as enormes tiras de papel
para secar, medida que pintava. Foi assim que o artista pernambucano pintou o fantstico
painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife32. No incio dos anos 30, portanto,
encontramos dois artistas pernambucanos, morando no Rio de Janeiro em casas prximas e
convivendo com o mesmo grupo, ligado vanguarda artstica de seu tempo. O esprito
pernambucano que marca a obra de ambos os leva a resgatar plstica e liricamente a terra
na
Top Related