PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Bruno Peixoto Carvalho
A Escola de So Paulo de Psicologia Social: uma anlise histrica do seu
desenvolvimento desde o materialismo histrico-dialtico
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SO PAULO
2014
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Bruno Peixoto Carvalho
A Escola de So Paulo de Psicologia Social: uma anlise histrica do seu
desenvolvimento desde o materialismo histrico-dialtico
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Social sob a orientao da Professora Doutora Maria do Carmo Guedes.
SO PAULO
2014
Banca Examinadora
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A todos aqueles para quem a cincia deve ser contribuio transformao radical do capitalismo.
AGRADECIMENTOS
minha me, Clia, pelo suporte afetivo e material de todos os momentos e pela aposta feita num futuro incerto.
minha me, Cremilda, por me acolher como filho, por me amar como filho.
Ao meu pai Z, por me mostrar, em sua vida, que mesmo nos limites do capitalismo, existem homens e mulheres to inteiros quanto os homens e mulheres da sociedade do futuro.
Ao meu pai Joo, pelo amor.
A Carmelita, por me dispensar todo o amor do mundo.
Aos meus irmos, Danilo e Daniela e minha V Carm, que, durante esses cinco anos, permaneceram perto, mesmo estando longe.
minha orientadora, Maria do Carmo Guedes, por ter me aceitado como orientando, pelas crticas feitas a esta pesquisa e pelo enorme tempo dedicado a melhorar os problemas presentes neste trabalho.
A Terezinha Martins dos Santos Souza, por afiar minha espada, pela amizade e franqueza de todas as horas, pela leitura paciente e dedicada deste trabalho.
A Nilson Berenchtein Netto, pela contribuio a esta tese, pela leitura paciente, pelas discusses terico-polticas quase dirias, pela amizade e generosidade sem tamanho que nunca faltaram comigo.
A Iray Carone, por ter me recebido em sua disciplina Teoria do Valor e Subjetividade, na USP, pelas trocas intelectuais, por ter lido parte deste texto quando da primeira qualificao.
A Mitsuko Antunes, pelas contribuies dadas nas qualificaes e tambm em sala de aula.
Maria da Graa Marchina Gonalves, pelas contribuies da qualificao.
Aos camaradas da Comuna de Paranaba, Netto, Celinha, Henrique e Samara, pela vida compartilhada, por lutarem contra o absurdo.
Aos camaradas Iruat e Ivan Ducatti, pela amizade, pela hospitalidade de sempre, pelas discusses e piadas.
Aos meus queridos amigos, Samara, Sabrina, Willians, Patrick, Kimie, Daniel e Edileuza, por tornar So Paulo uma cidade mais acolhedora.
A Amanda Callegari, pela importante ajuda com as correes e com a leitura do texto, por suportar meus desesperos, pelos dengos, palavras de conforto, abraos e beijinhos e carinhos sem ter fim.
A Elisa, por tudo o que representou.
A Camila, pelo companheirismo, pelo apoio quando da passagem ao doutorado direto.
A Adriana Eiko, Renata Leatriz, Miriam Ferrari (Turca), Livinha (que no da PUC, mas da PUC), Graa Lima, Aline Travaglia, Lo, Patrcia Lemos, Carol (Chuchu), Yuri, Rodrigo.
A Marlene, do Programa de Psicologia Social, pela solicitude e presteza com que sempre fez os problemas parecerem menores do que eu achava que eram, pelos cigarros divididos e conversas na prainha.
A Lygia Viegas e Samir Mortada, pela amizade, pelas trocas e pelo apoio minha vinda para So Paulo.
Aos colegas do NEHPSI, pelas trocas, pelo aprendizado.
Aos camaradas do Ncleo de Educao Popular 13 de maio, pelo espao de formao que proporcionam classe trabalhadora.
Aos camaradas da INTERSINDICAL Instrumento de Luta e Organizao da Classe Trabalhadora, por dirimir, na vida prtica das lutas, os meus problemas tericos.
Ao CNPq, pela bolsa.
Nossos inimigos dizem: A luta terminou.
Mas ns dizemos: Ela comeou.
Nossos inimigos dizem: A verdade est liquidada. Mas ns dizemos: Ns a sabemos ainda.
Nossos inimigos dizem: Mesmo que ainda se conhea a verdade
Ela no pode mais ser divulgada. Mas ns a divulgamos.
a vspera da batalha.
a preparao de nossos quadros. o estudo do plano de luta.
o dia antes da queda De nossos inimigos.
(Brecht, Poemas [1913-1916])
RESUMO Este trabalho defende a tese de que, em seu desenvolvimento, a Escola de So Paulo de Psicologia Social operou um importante giro ideopoltico em relao queles seus trabalhos que datam at fins da dcada de 1980. Tal giro, gestado no perodo posterior ao fim do socialismo no leste europeu (1989) e na derrocada da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (1991), concretizou-se no abandono ou transformismo de importantes fundamentos e categorias do materialismo histrico-dialtico, tais como a estrutura e a dinmica das classes (e da luta de classes), a centralidade do trabalho e a perspectiva de superao do capitalismo. A tese anunciada sustenta-se em pesquisa cujo objetivo foi o de historiar a Escola de So Paulo de Psicologia Social. O primeiro captulo da exposio dos resultados alcanados por esta pesquisa inicia com uma discusso dos fundamentos metdicos que orientaram a sua realizao, em que esto condensados: a) as discusses historiogrficas (relativas escrita da histria) a partir de trabalhos de importantes historiadores da psicologia; b) os fundamentos do materialismo histrico-dialtico que, sob a forma de uma filosofia da histria, orientaram esta produo. No segundo captulo, so analisados os primeiros desenvolvimentos da Escola de So Paulo de Psicologia Social, desde os primeiros trabalhos realizados por Silvia Lane e Alberto Abib Andery em comunidades nos anos 1960, passando pelas primeiras formulaes crticas em relao Psicologia Social estadunidense que ganham expresso nos escritos de Lane nos anos 1980, at sua sntese mais elaborada em Psicologia Social: o homem em movimento, obra organizada por Silvia Lane e Wanderley Codo e publicada em 1984 e cuja inspirao marxista, tanto em termos das categorias que constituem a compreenso do ser humano singular quanto em termos do sentido do projeto de transformao social, notria. Este momento do desenvolvimento da Escola de So Paulo cede lugar a uma srie de reformulaes (ps 1989-1991), cuja principal expresso reside na apropriao dos autores neomarxistas Heller e Habermas. O livro Novas veredas da Psicologia Social, de 1994, organizado por Silvia Lane e Bader Sawaia, representa uma obra-sntese das novas formulaes da Escola de So Paulo. Junto a outros escritos, a partir da dcada de 1990, este livro objeto de anlise do terceiro captulo, que identifica, em termos dos fundamentos e das categorias da psicologia social, as reformulaes operadas. Por fim, dimensionado o sentido do projeto de transformao social que se deriva das reformulaes das categorias e fundamentos da psicologia social, realizadas pela Escola de So Paulo ps 1989-1991. PALAVRAS-CHAVE: Histria da Psicologia, Psicologia Social, Escola de So Paulo, Neomarxismo.
RESUMEN
Este trabajo defiende la tesis de que, en su desarrollo, la Escuela de So Paulo de Psicologa Social oper una importante inflexin ideopoltica hacia aquellas sus obras que datan hasta finales de 1980. Esta inflexin, gestada en el perodo posterior al fin del socialismo en Europa del Este (1989) y el derrumbe de la Unin de las Repblicas Socialistas Soviticas (1991), se concret en el abandono o transformismo de importantes fundamentos y categoras del materialismo histrico-dialctico, como la estructura y dinmica de las clases (y la lucha de clases), la centralidad del trabajo y la posibilidad de superacin del capitalismo. La tesis anunciada se sustenta en investigacin cuyo objetivo fue el de historiar la Escuela de So Paulo de Psicologa Social. El primer captulo de la exposicin de los resultados obtenidos por esta investigacin comienza con una discusin de los fundamentos metdicos que guiaron su ejecucin, en que estn condensados: a) las discusiones historiogrficas (relativas a la escritura de la historia) desde las obras de importantes historiadores de la psicologia; b) los fundamentos del materialismo histrico-dialctico que, bajo la forma de una filosofa de la historia, guiaron esta produccin. En el segundo captulo, son analizados los primeros desarrollos de la Escuela de So Paulo de Psicologa Social, a partir de los primeros trabajos realizados por Silvia Lane y Alberto Abib Andery en comunidades en los aos 1960, pasando por las primeras formulaciones crticas de la Psicologa Social estadunidense que ganan expresin en los escritos de Lane em los aos 1980, hasta su sntesis ms elaborada en Psicologia Social: o homem em movimento, obra organizada por Silvia Lane y Wanderley Codo, publicada en 1984, y cuya inspiracin marxista, tanto en trminos de las categoras que constituyen la comprensin del ser humano singular cuanto en trminos del sentido del proyecto de cambio social, es notoria. Este momento del desarrollo de la Escuela de So Paulo da paso a una serie de reformulaciones (despus de 1989-1991), cuya expresin principal se encuentra en la apropiacin de los autores "neomarxistas" Heller y Habermas. El libro Novas veredas da Psicologia Social, de1994, organizado por Silvia Lane y Bader Sawaia, representa una obra-sntesis de las nuevas formulaciones de la Escuela de So Paulo. Junto con otros escritos, desde la dcada de 1990, este libro es el objeto de anlisis del tercer captulo, que identifica, en trminos de los fundamentos y de las categoras de la psicologa social, las reformulaciones operadas. Por ltimo, hemos dimensionado el sentido del proyecto de cambio social que deriva de las reformulaciones de las categoras y fundamentos de la psicologa social llevadas a cabo por la Escuela de So Paulo despus de 1989-1991. PALABRAS-CLAVE: Historia de la Psicologa, Psicologa Social, Escuela de So Paulo, Neomarxismo.
ABSTRACT
It is defended in this paper the thesis in which the So Paulo School of Social Psychology has operated an important ideological and political turn, along its making, in relation to its works dated to the late 1980s. Such turn, conceived both in the period after the Socialism in Eastern Europe (1989) and the end of the Union of Socialist Soviet Republics (1991), materialized either at the abandonment or the transforming of leading grounds and categories of Historical-Dialectical Materialism, such as structure and class dynamics (and class struggle too), the centrality of work and the perspective of Capitalism overcoming. Our thesis, thus, is based upon a research whose goal is to historicize the So Paulo School of Social Psychology. Chapter One, by exposing this research achievements, starts with a discussion of methodical foundations that guide its fulfillment, summerized as follows: a) historiographical discussions (related to the writing of history) from important psychology historian's works; b) the grounds of Historical-Dialectical Materialism which, in the form of a philosophy of history, have leaded that production. In Chapter Two, earliest developments of the So Paulo School of Social Psychology, by Silvia Lane's and Alberto Abib Andery's works made in communities during the 1960s, are hereby analyzed, going through early critical formulations to the USA's Social Psychology, which gain expression in Lane's writings in the 1980s, even her most elaborate synthesis in Psicologia Social: o homem em movimento (Social Psychology: humankind in motion [free translation]), organized work by Silvia Lane and Wanderley Codo and published in 1984, notoriously Marxist in terms of categories to the comprehension of singular human being and torwards a social transforming project, as well. Late development times of the So Paulo School of Social Psychology gives way to a series of reformulations (post 1989-1991), whose fundamental outcome lies on appropriations of Neo-Marxist authors, Heller and Habermas. The book Novas veredas da Psicologia Social (New paths of Social Psychology [free translation]), organized by Silvia Lane and Bader Sawaia, represents a synthesis work of the latest formulations of the So Paulo School of Social Psychology. From the 1990's on, among other writings, Novas veredas is analyzed in Chapter Three, which identifies operate refomulations, in accordance to Social Psychology's fundamentals and categories. Finally, we have measured the direction of the project of social changes derived from the categories and the fundamentals of Social Psychology made by the So Paulo School after the 1989-1991 years. KEYWORDS: History of Psychology, Social Psychology, So Paulo School of Social Psychology, Neo-Marxism.
SUMRIO
APRESENTAO .............................................................................................................................. 11
1 CAPTULO UM DE COMO A HISTRIA DA PSICOLOGIA PASSOU AO LARGO
DA FILOSOFIA DA HISTRIA ...................................................................................................... 19
1.1 As questes historiogrficas: a escrita da histria .......................................................................... 20
1.2 A historiografia e a filosofia da histria na histria da psicologia ................................................. 28
1.3 O materialismo histrico-dialtico como filosofia da histria ........................................................ 34
2 CAPTULO DOIS DOS PRIMEIROS DESENVOLVIMENTOS DA ESCOLA DE
SO PAULO DE PSICOLOGIA SOCIAL ...................................................................................... 55
2.1 Antecedentes histricos ................................................................................................................... 55
2.2 Tempos difceis: a ditadura militar, a PUC-SP e a psicologia social .............................................. 64
2.3 A Crise da Psicologia Social ........................................................................................................ 92
2.4 A reconceitualizao: a psicologia social sob novas bases ............................................................. 102
2.4.1 A arquitetura terica da Escola de So Paulo: O que Psicologia Social e Psicologia
Social: o homem em movimento como obras-sntese........................... ................................................. 117
2.4.1.1 As bases fundacionais de uma concepo de ser humano, de mundo e de psicologia
social ..................................................................................................................................................... 118
2.4.1.2 As categorias da psicologia social ............................................................................................. 128
2.4.1.3 A transformao social como definidora do saber-fazer da psicologia social .......................... 138
3 CAPTULO TRS A PSICOLOGIA SOCIAL DEPOIS DO FIM DA HISTRIA .............. 146
3.1 Um pouco da histria do fim da histria ......................................................................................... 146
3.2 A psicologia social depois do fim da histria: Novas veredas da Psicologia Social como
obra-sntese ........................................................................................................................................... 165
3.2.1 Os fundamentos neomarxistas da Escola de So Paulo de Psicologia Social .............................. 167
3.2.2 As categorias da psicologia social aps 1989-1991 ..................................................................... 210
4 CONCLUSO A TRANSFORMAO SOCIAL: NEM SOCIALISMO, NEM
CAPITALISMO .................................................................................................................................. 229
REFERNCIAS .................................................................................................................................. 261
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APRESENTAO
Esta espcie de Avis au lecteur no passa de um modo de burlar o formalismo
caracterstico dos trabalhos acadmicos. Mas sendo tambm este trabalho parte do rol dos
trabalhos produzidos na academia, suprimir uma introduo em detrimento de uma
apresentao apenas burlar em parte a impessoalidade prpria da escrita acadmica.
De qualquer modo, j fico metade contente. Este , alis, o nico momento da exposio
dos resultados da pesquisa em que me permito escrever em primeira pessoa.
O trabalho em tela situa-se na interseo daquilo que se costuma chamar pesquisa
histrica e daqueles trabalhos que tm na pesquisa histrica o fundamento de sua crtica.
Seja como pesquisa histrica crtica, seja como crtica fundada em pesquisa histrica,
historiar qualquer objeto desde os aportes do materialismo histrico-dialtico tem como
necessidade analtica fazer a crtica. Entendo a crtica na hegeliana e em desuso
acepo da categoria suprassuno, que significa: erguer/sustentar/levantar,
abolir/destruir/negar, conservar/preservar. A crtica deve ser capaz de afirmar o seu
objeto, encontrando nele aqueles elementos que revelam ainda que de modo parcial
elementos da realidade objetiva (e neste sentido, so portadores da verdade), ao mesmo
tempo que nega, em totalidade, o seu objeto, elevando/soerguendo o conhecimento a um
patamar superior. Marx apropriou-se da Economia Poltica de Adam Smith, viu em sua
acepo de trabalho em geral (despojado de suas caractersticas particulares) um ponto
chave que lhe permitia analisar a natureza totalizante dos processos de trabalho na
sociedade capitalista; de David Ricardo, Marx recupera sua teoria do valor-trabalho, mas
levando-a s suas consequncias necessrias: se o trabalho o criador de valor, ento
resulta que produz mais valor do que possui a fora de trabalho, sendo, pois, sob o
capitalismo, fonte de explorao. Mas recusa-se a admitir que como creem Smith e
Ricardo o capitalismo seja um fator de desenvolvimento que, apesar dos seus
solavancos e da misria produzida em seus momentos primevos, fosse capaz de garantir
abundncia e riqueza para toda a humanidade. A apropriao da Economia Poltica
clssica por parte de Marx se fez na interseco de sua apropriao do pensamento
dialtico hegeliano, o que lhe permitiu aventar que o capitalismo um fenmeno que teve
incio num dado momento da histria (ao contrrio do que eternizam as categorias da
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Economia clssica) e que pode ter o seu fim; tambm a sua apropriao da teoria poltica
dos socialistas franceses e a anlise das mobilizaes operrias e da histria de seu tempo
lhe permitiram reformular a Economia Poltica em outros termos, bem como vislumbrar a
possibilidade concreta de suprassuno do modo de produo capitalista. neste sentido
(conservar, negar e soerguer a um novo patamar) que compreendo a crtica.
Em conversas e discusses com colegas e professores ouvi, muitas vezes, que
minhas crticas Escola de So Paulo1 eram, talvez, demasiado severas e que era
provvel que fossem mais apropriadas segunda gerao da Escola de So Paulo de
Psicologia Social do que Silvia Lane e seus primeiros colaboradores. Procurei, na
medida do possvel, jamais me justificar, mas devo lembrar que , precisamente, pelo
profundo respeito que nutro por esta primeira gerao de intelectuais da psicologia social,
que me valho do dever de critic-los, para que seus escritos no sejam apenas letra
morta, eternamente reproduzidos, mas cincia em movimento, que avance, sem cnones,
sem dolos.
A professora Bader Sawaia cuja obra tambm objeto de anlise desta pesquisa
escreveu algumas anotaes em um trabalho que escrevi para sua disciplina Vigotski e
Espinosa (segundo semestre de 2009), que acho importante mencionar: Deixo claro
minha avaliao do enviesamento da anlise de Lane (...) trabalho de pesquisa terica
srio na obra de Marx e Lenin, mas tendencioso na obra de Lane. Penso valer a pena
uma breve reflexo orientada pelo portador mais formal (e por isso impreciso) dos
significados: o dicionrio. No Dicionrio Unesp do Portugus Contemporneo (2004),
no verbete enviesado consta: Adj 1 tortuoso; oblquo: O rio segue um percurso
enviesado. 2 em posio diagonal; atravessado: uma encharpe com faixas azuis
enviesadas. 3 distorcido: acusaram-no de fornecer informaes enviesadas. Adv 4 de
esguelha: No confio em quem olha enviesado. 5 de modo tortuoso ou ambguo:
Machado escrevia enviesado. (p. 511). Quanto ao verbete tendencioso se l: Adj que
envolve ou age com alguma inteno secreta: jornais do notcias tendenciosas antes da
eleio. (p. 1347). No verbete tendncia: Sf 1 inteno; teno: um grupo com
1 At onde sabemos, a primeira vez que a expresso Escola de So Paulo de Psicologia Social apareceu
em texto escrito foi no livro de Mara Auxiliadora Banchs (1997), Corrientes tericas em Psicologa
Social, para referir-se construo de uma Psicologia Social marxista em termos de teoria e mtodo e
orientada para a transformao social da realidade, cujas principais produes se deram no Programa de
Estudos Ps-graduados em Psicologia Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
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tendncias revolucionrias (+ para) 2 fora pela qual um corpo levado a mover-se: a
tendncia dos corpos para a terra 3 disposio natural; pendor, propenso: Ele tem
tendncia para as artes. (p. 1346). Os exemplos de uso dos significados aqui interessam
tanto quanto os significados tomados em si. Como um rio que no corre pelo curso
normal, mas perfaz seu caminho de modo sinuoso, este trabalho tampouco segue o curso
normal daqueles trabalhos que levantaram alguns elementos histricos acerca da Escola
de So Paulo, em geral, como histrias celebrativas e dos quais o trabalho biogrfico e
sistemtico de Bader Sawaia (2002) sobre Silvia Lane exemplar. Esta tese torta,
sinuosa, enviesada! No segue o curso normal. tambm tendenciosa, no no sentido de
que portadora de alguma inteno secreta (significado ideologizado pelo dicionrio)
do contrrio, espero tornar suficientemente claras as motivaes deste trabalho , mas
sim naquele sentido de que tendencioso a qualidade daquilo que porta uma tendncia,
propenso, disposio; este trabalho tende para uma certa concepo do marxismo, uma
certa concepo da sociedade, uma certa concepo de ser humano e de cincia e para
uma certa concepo de transformao revolucionria da sociedade. Que portar um vis
seja interpretado como um vcio (por oposio a virtude), como algo de caracterizao
puramente negativa, na produo acadmica, isso se deve a uma produo de ideologia e
no a um fato simplesmente semntico. Entortando e enviesando at mesmo o dicionrio,
este um trabalho tendencioso e de vis (afastamento da direo ou da posio normal,
p. 1431). E h mesmo que se entortar o dicionrio, afinal, como portador dos significados
tal qual apreendidos na sociedade vigente, ele tender a apresentar aquilo que no segue o
curso dominante como negativo. A este respeito, ironiza Mszros (1989/2012):
O que poderia ser mais objetivo do que um dicionrio? Na verdade, o que
poderia ser mais objetivo e isento de ideologia do que um dicionrio, mesmo sendo um dicionrio de sinnimos? Assim como os quadros com o horrio dos
trens, supe-se que os dicionrios forneam uma informao factual no
adulterada para cumprir a funo que lhes geralmente atribuda, em vez de
encaminhar o passageiro desavisado para uma viagem em direo oposta que
ele deseja. (p. 57).
O vis em questo pode ser identificado com aquilo que Lukcs (1919/2012)
corajosamente reivindicou como marxismo ortodoxo. O marxismo ortodoxo nada tem
que ver com aquela leitura da obra marxiana que toma a letra de Marx como se fora uma
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prescrio do que fazer independentemente das condies histrico-objetivas dadas ou a
adoo das anlises marxianas como se foram impermeveis ao erro, tentando ajust-las
ad hoc. A este tipo de relao com a obra marxiana (e com qualquer outra), podemos
chamar dogmatismo. O marxismo ortodoxo tem sua ortodoxia na fidelidade ao mtodo
histrico-dialtico e deve, portanto, faz-lo avanar em todas as direes de anlise da
vida social.
Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a investigao contempornea
tenha provado a inexatido prtica de cada afirmao de Marx. Um marxista
ortodoxo srio poderia reconhecer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses particulares de Marx, sem, no entanto, ser
obrigado, por um nico instante, a renunciar sua ortodoxia marxista. O
marxismo ortodoxo no significa, portanto, um reconhecimento sem crtica dos
resultados da investigao de Marx, no significa uma f numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro sagrado. Em matria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao mtodo. (LUKCS, 1919/2012).
Verdade, tambm, que muito do que aqui foi escrito poderia ser escrito de modo
outro, de forma menos cida, talvez. Mea maxima culpa. Mas penso que a forma (neste
caso, a forma de exposio) deve guardar profunda correspondncia com seu contedo; a
unidade forma e contedo me parece, ainda, uma questo de mtodo. Uma crtica
marxista deve, para alm de subverter seus contedos, subverter tambm as formas, as
palavras, os dicionrios. Acho que era isso que dizia o historiador catalo Josep Fontana
(1998), quando em uma breve, e necessria explicao inicial de uma de suas obras
escreveu:
[...] num mundo de convenes em que todo novo livro vem a preencher um vazio, e em que se pratica habitualmente o bonito jogo que meu amigo Moreno Fraginals denomina te-escrevo-a-nota-do-teu-livro para que logo tu-me-escrevas-a-nota-do-meu-livro, talvez convenha voltar s e esquecida prtica de se chamar de tontos aos tontos e de enganadores aos enganadores.
(p. 12).
Se, como disse Josep Fontana (1998) e no s ele , as questes de interesse do
historiador so aquelas do seu prprio tempo e, deste modo, aludem ao projeto de futuro
com o qual est comprometido o historiador, o que me orienta neste trabalho no poderia
deixar de estar relacionado com o projeto do qual comungo o de uma sociedade sem
classes e, por conseguinte, de uma psicologia social que, mais que orientada para a
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transformao social, tenha claro quais so os termos dessa transformao.
Este trabalho defende a tese de que o desenvolvimento da Escola de So Paulo de
Psicologia Social que vai de meados dos anos 70 at os anos correntes no foi um
desenvolvimento homogneo, contnuo, ao qual apenas ter-se-iam acrescentado temas e
autores de referncia novos. Esta a minha tese pela sua negao. O momento afirmativo
desta tese se refere ao fato de que a Escola de So Paulo operou um importante giro
ideopoltico em suas formulaes e concepes no perodo ps 1989-1991,
correspondente dissoluo do socialismo no leste europeu e a derrocada da Unio das
Repblicas Socialistas Soviticas. De uma perspectiva de psicologia social orientada pelo
marxismo e cujas pretenses de transformao social guiavam-se pelo mesmo marxismo,
passou-se a uma psicologia social muito mais aproximada a um projeto socialdemocrata
(desde o ponto de vista poltico) e que precisou nutrir-se daqueles autores que
expressavam um movimento de negao de importantes fundamentos do marxismo,
dentre os quais importante notar a influncia da filsofa hngara Agnes Heller e do
alemo Jrgen Habermas. Historiar a Escola de So Paulo de Psicologia Social ,
precisamente, o objetivo geral que me leva formulao da tese ora apresentada.
O primeiro captulo, tambm o mais abstrato desta tese, aquele que condensa os
seus pressupostos filosficos. um captulo de mtodo. Parto de uma discusso da
historiografia ou seja, da escrita da histria e de alguns de seus problemas levantados
pelos historiadores (mais especificamente, trato destes problemas tal qual foram
levantados pelos historiadores da psicologia): a) a questo da continuidade ou da
descontinuidade do desenvolvimento cientfico; b) a questo do presentismo e do
historicismo na anlise histrica das cincias; c) a modalidade da histria crtica e aquela
celebrativa prpria da legitimao cerimonial; d) a narrativa internalista, centrada no
desenvolvimento interno dos seus conceitos, teorias e mtodos, sem relacion-los com os
fundamentos socioeconmicos que a condicionam, e a narrativa externalista que prioriza
a determinao da externalidade sobre o desenvolvimento cientfico; e) a historiografia
que concebe que a histria aquela feita pelos grandes homens em oposio quela que
concebe que o desenvolvimento da cincia o resultado do esprito do tempo, a histria
do Zeitgeist. Estes modos de narrar o desenvolvimento histrico da cincia, em que pese
remetam a uma discusso importante a respeito das concepes sobre histria, so apenas
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expresso de uma outra coisa, qual seja, de uma ou outra filosofia da histria. Por fim,
apresento o materialismo histrico-dialtico (na contraposio filosofia da histria
hegeliana) e seus principais pressupostos como fundamentos de uma filosofia da histria
capaz de analisar o desenvolvimento cientfico em totalidade. a partir da cincia destes
elementos expostos no captulo primeiro que espero seja avaliada a coerncia ou
incoerncia, acerto ou erro de minha narrativa pelos crticos.
No captulo dois, principio a historiar a Escola de So Paulo propriamente dita.
Parto de uma breve caracterizao da constituio histrica da psicologia social
estadunidense (seo 2.1) e, aps discutir o ciclo da histria do Brasil e seus
rebatimentos na PUC-SP e, particularmente, na psicologia social ali desenvolvida que
se inicia com a ditadura empresarial-militar, em 1964, e se conclui em 1989 (seo 2.2),
apresento as principais caractersticas da chamada Crise da Psicologia Social (seo
2.3). Estas seriam determinaes importantes que possibilitariam a crtica psicologia
social dominante nos termos da formulao de uma psicologia social com bases no
materialismo histrico-dialtico. Considero importante sinalizar ao leitor que a discusso
feita do surgimento e dos primeiros desenvolvimentos da Escola de So Paulo est
sustentada, principalmente, no uso de fontes secundrias, ou seja, parto de algumas
interpretaes j formuladas sobre as fontes primrias referentes ao objeto em questo.
Na caracterizao da tradio estadunidense de psicologia social, me valho do trabalho de
Farr (1996/2008), mas, principalmente, da anlise de alguns autores representantes desta
tradio, como Edward Jones (1976/2008), Stanley Milgram (1963/2001) e Muzafer
Sherif (SHERIF e col., 1961/2001). Sobre a difuso e circulao da psicologia social de
matiz estadunidense no Brasil, utilizo, principalmente, os trabalhos de Silvia Lane (1981,
1984a, 1990, 1992, 1994a, 1996). A narrativa sobre o perodo da histria do Brasil (1964-
1989) que compreende os primeiros desenvolvimentos da Escola de So Paulo est
fundamentada nos trabalhos de Nelson Werneck Sodr (1973/1987), Moniz Bandeira
(1978), Marcelo Badar Matos (2009) e do brasilianista Thomas Skidmore (1998/2003).
Para tratar da PUC-SP no perodo, utilizo-me, principalmente, dos trabalhos de Maria do
Carmo Guedes (2002), Iray Carone (2007), Helenice Ciampi (2000) e Maria da Graa
Marchina Gonalves (s/d). Para a discusso da Crise da Psicologia Social, utilizei os
trabalhos de Fathali Moghaddam (1987), Serge Moscovici (1972) e Irving Silverman
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(1971), mas, principalmente os trabalhos de Lane (1981, 1984a, 1990, 1992, 1994a,
1996a, 1999), que caracterizam tanto a crise quanto as respostas oferecidas pela
psicologia social feita desde a PUC-SP. Sobre a psicologia social que se desenvolvia na
PUC-SP, destaco os trabalhos de Lane (1990, 1992) e Alberto Abib Andery (1984). Por
fim (sees 2.4, 2.4.1, 2.4.1.1, 2.4.1.2, 2.4.1.3), trato do conjunto categorial desenvolvido
pela Escola de So Paulo a partir de sua apropriao dos fundamentos do marxismo, que
implicou o uso dos conceitos de conscincia, atividade e identidade e suas mediaes
constitutivas, assim como a adeso a uma determinada concepo de transformao
social. Nestas sees (e tambm nas sees 3.2, 3.2.1, 3.2.2 e 4), as teses e dissertaes
defendidas, livros, captulos de livro, artigos publicados, textos no publicados e textos
escritos para conferncias e comunicaes so tomados como as fontes primrias
prioritrias deste trabalho. A reconceitualizao operada pela Escola de So Paulo de
Psicologia Social e analisada no captulo dois tem como hilo da exposio, embora no se
limite a elas, as obras-sntese O que Psicologia Social, escrita por Silvia Lane e
publicada em 1981, e Psicologia Social: o homem em movimento, livro organizado por
Silvia e Wanderley Codo, e publicado em 1984.
No terceiro captulo, analiso a produo da Escola de So Paulo de Psicologia
Social no perodo posterior a 1989-1991; neste captulo que se perfila a tese
propriamente dita deste trabalho: a de que se operou um giro ideopoltico importante a
partir do qual as formulaes da Escola de So Paulo sofrero inflexo terica que
resultar, dentre outras coisas, no abandono de categorias e noes caras ao marxismo
como a luta de classes, a centralidade do trabalho, o conflito capital-trabalho e a
perspectiva da revoluo. Para esta anlise, tomo o perodo de expanso do capital que se
abre com o ps-guerra e se encerra com a crise do petrleo, de 1973, bem como a
derrocada dos pases socialistas no leste europeu e na Unio das Repblicas Socialistas
Soviticas como elemento chave para a compreenso do surgimento, no sculo XX, das
teorias que, como os neomarxistas, supuseram o fim da histria, o fim das ideologias, o
fim da centralidade do trabalho e o fim das classes (seo 3.1). A discusso em tela
orienta-se pelos trabalhos de Eric Hobsbawm (1995/2008), Tony Judt (2008) e, em menor
medida, de Josep Fontana (1998) e Istvn Mszros (1989/2012). Nas sees 3.2, 3.2.1 e
3.2.2, analiso as implicaes da apropriao da teoria social neomarxista (Habermas e
18
Heller) em termos dos fundamentos e do conjunto categorial da Escola de So Paulo de
Psicologia Social. Na concluso deste trabalho, avalia-se as implicaes desta mudana
do eixo terico-analtico da psicologia social no projeto de transformao social que se
depreende dos trabalhos analisados.
19
1 CAPTULO UM DE COMO A HISTRIA DA PSICOLOGIA PASSOU AO
LARGO DA FILOSOFIA DA HISTRIA
Quando o historiador no daqueles que se
privaram do dom de generalizar e pode abarcar
com o pensamento o passado e o presente do
gnero humano, v desenrolar-se um grande e
maravilhoso espetculo.
(PLEKHANOV, 1926/2008, p. 11).
No raro, o primeiro captulo de teses e dissertaes tem como fito apresentar o
objeto da pesquisa e o estado da arte do campo de investigaes em questo. H muitos
manuais de metodologia cientfica que orientam os candidatos a mestres e doutores nessa
direo.
O primeiro captulo deste trabalho versar sobre o material mais abstrato da
pesquisa histrica, qual seja: a sua fundamentao filosfica. E, pois que um trabalho
que se insere formalmente na disciplina histria da psicologia, sua prpria
fundamentao filosfica tem expresso em uma dada filosofia da histria.
Este trabalho inicia-se com a aposio de um problema que transcende em muito
o seu objeto de anlise, a saber, o mesmo problema que intitula o importante trabalho de
Carr (1982/2006): O que histria?. das formas encontradas ao enfrentamento deste
problema que se distinguiro uma ou outra forma de se historiar a psicologia. Esta a
razo pela qual a construo terica desta tese decorre da anlise crtica e dos elementos
neste primeiro captulo apresentados.
A pesquisa histrica em psicologia tem, no poucas vezes, caminhado sem uma
filosofia da histria, ou, melhor dizendo, sem uma explcita filosofia da histria. Nesta
pesquisa, parte-se do pressuposto de que no se escreve histria sem uma filosofia da
histria (mesmo quando esta no explicitada pelo pesquisador ou mesmo quando
permanece a este ltimo como algo desconhecido) e que expor tal filosofia uma
importante tarefa do pesquisador em histria da psicologia, na medida em que o
posiciona desde a sua concepo acerca do que histria.
A princpio, toma-se como ponto de partida aquele modo por meio do qual se
expressam as muitas filosofias da histria, qual seja, a historiografia, para chegar ao fato
de que em que pese a discusso sobre a escrita da histria seja essencial ao pesquisar
20
histrico, ela insuficiente pesquisa histrica quando a reflexo historiogrfica no se
firma em questes relativas aos fundamentos da histria. O campo da historiografia, alis,
tem sido o campo privilegiado das discusses epistemolgicas no campo da histria da
psicologia, em que raramente se avana aos fundamentos filosficos da historiografia. Na
sequncia, apresentam-se alguns elementos que possibilitam avaliar os limites da
discusso exclusivamente historiogrfica e, por fim, exposto o materialismo histrico-
dialtico como filosofia da histria que guia esta investigao.
1.1 As questes historiogrficas: a escrita da histria
Aqui, toma-se como uma importante sntese da discusso historiogrfica na
psicologia o artigo escrito por Hilgard, Leary e McGuire (1998) intitulado A Histria
da Psicologia: um panorama e avaliao crtica , pois condensa o conjunto das
discusses da histria da psicologia num nico texto. Apesar de seus especficos
ornamentos, os mais diversos textos que priorizam a reflexo sobre a histria da
psicologia tratam da mesmas questes do artigo aqui assinalado. Desde a clssica obra de
Boring (1950), passando pelo manual de Marx e Hillix (1963/1978), pela realmente
Pequena Histria da Psicologia de Michael Wertheimer (1970/1976) e pelo
universalizado livro-texto de Schultz e Schultz (1969/2005), a discusso historiogrfica
da psicologia est, por inteira, sintetizada no texto brindado por Hilgard, Leary e
McGuire (1998). No h nada nesta discusso que no esteja exposto no esquemtico
texto destes autores. Nem mesmo o trabalho crtico de Robert Farr (1996/2008) sobre as
razes da psicologia social contempornea ou, para falar de autores mais conhecidos do
pblico brasileiro, os trabalhos de Penna (1980/1991) e Massimi (2000) se dispuseram a
contribuir com uma mais abrangente discusso terico-filosfica da histria2. Convm,
pois, apresentar o balano da discusso historiogrfica na psicologia, tal como
apresentado por Hilgard, Leary e McGuire (1998) e, quando necessrio, cotej-lo, com
algumas das obras aqui citadas, seja quando estas obras discutem as questes
historiogrficas, seja como exemplares dos problemas historiogrficos discutidos pelos
2 Ainda que esses dois ltimos historiadores da psicologia possuam grandes preocupaes filosficas ao
historiar a psicologia, no tributam filosofia os fundamentos de suas pesquisas histricas.
21
autores.
Nas dcadas de 1960-90, a Histria da Psicologia como disciplina expandiu-se
consideravelmente e teria munido-se de um amplo arsenal crtico. Merece ateno o fato
de que o prprio texto de Hilgard, Leary e McGuire (1998) no algo que se enquadre
como o que eles chamam de histria crtica, uma vez que cometem aqueles mesmos erros
pelos quais condenam certas posturas metodolgicas3. este proclamado amplo arsenal
crtico que ser discutido pelos autores no referido texto.
Tal arsenal apresentado numa seo do texto intitulada questes
historiogrficas e na forma de cinco dicotomias, o que no significa que os autores
considerem estes polos como necessariamente excludentes. As questes historiogrficas
apresentadas so: a continuidade e a descontinuidade; o presentismo e o historicismo; a
legitimao cerimonial e a histria crtica; o internalismo e o externalismo; a histria dos
grandes homens e a histria do Zeitgeist.
Sobre a primeira das questes, que diz respeito questo da continuidade-
descontinuidade do desenvolvimento cientfico, os autores atribuem a Kuhn a descoberta
de que o desenvolvimento cientfico no ocorre tanto como uma evoluo cumulativa,
mas por saltos qualitativos que transformam toda a estrutura de uma disciplina. Os
historiadores continustas tenderiam a esmaecer as diferenas entre tal ou qual perodo de
uma cincia, ao passo que enfatizariam as semelhanas entre um e outro momento de seu
desenvolvimento. Por sua vez, a perspectiva da descontinuidade tende a marcar as
diferenas, polmicas e divergncias no interior de uma disciplina (e mesmo fora dela) e
tributa precisamente a estas diferenas o motivo pelo qual se desenvolvem as cincias.
Se, de um lado, comum que a perspectiva continusta no faa qualquer concesso
descontinuidade do desenvolvimento cientfico, tampouco pode a perspectiva
descontinusta negar que haja momentos de desenvolvimento da cincia em que a
3 Um exemplo. A descrio da produo intelectual de Boring na Histria da Psicologia feita pelos autores
em questo no passa de uma histria personalista, em que sequer se especula a respeito das razes pelas
quais o manual de Boring, datado de 1929, teve tanta influncia na rea, em detrimento de outras obras por
eles mesmos nomeadas. O Zeitgeist do qual falam os autores no brinda os leitores do seu artigo com qualquer pista a este respeito. Aqui, tem-se o homem Boring e suas ideias, sem que estas ltimas guardem
qualquer lastro com o contexto de sua produo. Note-se que esta a principal crtica dirigida perspectiva
da histria dos grandes homens; recorde-se que, ao tratar da obra de Robert Watson, os autores no diferem muito de sua anlise a respeito de Boring, a no ser pelo fato de que o biografaram muito mais
detalhadamente; e este o limite desta anlise que se diz histrica: uma biografia.
22
continuidade a regra, como, alis, concebia o prprio Kuhn.
Sobre a perspectiva continusta, diz Penna (1980/1991):
Uma das objees dos continustas consiste em evocar a continuidade da
histria. Desde que se faz um retrato contnuo dos acontecimentos, acredita-se
facilmente reviver os acontecimentos na continuidade do tempo e se d
insensivelmente a toda histria a unidade e a continuidade de um livro. Um
segundo argumento tira sua fora da lentido com que se consumam os
progressos cientficos. Na verdade, quanto mais lentos nos parecem esses
progressos, mais contnuos somos levados a conceb-los. O terceiro argumento
resulta de uma forma sutil de se encobrir as descontinuidades. Tal forma
exprime-se pela referncia massa annima dos que trabalham numa certa rea
do saber. Como argumenta Bachelard, prefere-se dizer que os progressos
estavam no ar quando o gnio os descobriu. nesse ponto que entram em cena
os conceitos tais como os de atmosfera, influncias etc. (p. 24).
Uma curiosa obra continusta o trabalho de Marx e Hillix (1963/1978). Quando
o leitor finda o livro, aps ser apresentado a vrias escolas de psicologia, depara-se com
uma seo de apndices (escritos por outros autores) reservada quelas perspectivas que
desarranjariam a linear narrativa dos autores. Figuram nesta seo e nesta sequncia: a
psicologia na Europa, Austrlia e Canad; a psicologia sovitica; a psicologia oriental; e,
por fim, a psicologia nos pases em desenvolvimento; Amrica Latina, frica e Oriente
Mdio.
Outro exemplo de continusmo e tambm de muitos equvocos historiogrficos
o clssico A history of Experimental Psychology, de Boring (1929/1950). Boring
apresenta a psicologia experimental como uma extenso direta e necessria do legado de
Wundt. Para tanto, oculta do seu leitor quarenta anos da produo terica do psiclogo
alemo ou, o que seja, o seu projeto filosfico (sua metafsica) e sua Volkerpsychologye4.
Reivindicando escrever histria tendo em conta o Zeitgeist, o esprito da poca, Boring
tributa o empirismo e o positivismo ingleses a Wundt. Mas se na obra de Wundt h
positivismo, tambm h, bom lembrar, Kant e a tradio filosfica do idealismo alemo
(ARAJO, 2010). Boring analisa o legado de Wundt sua imagem e semelhana (ou
seja, mirando no espelho a si mesmo como psiclogo experimental) e no como o legado
de um homem situado no espao-tempo. Os historiadores continustas fazem da histria
4 Cumpre lembrar que a existncia dos escritos referentes Volkerpsychologye e metafsica de Wundt no
eram desconhecidos por Boring, embora se deva ressaltar que o acesso de Boring obra de Wundt se deu
pela via das interpretaes de Titchener, ex-aluno de Wundt e professor de Boring.
23
continuidade, fazem da psicologia experimental o necessrio desdobramento do edifcio
terico wundtiano, afastando deste mesmo edifcio aqueles pilares que no sustentam a
edificao da psicologia experimental, pelo menos em sua verso estadunidense. Wundt
seria, pois, aquele gnio que unira a um projeto de psicologia cientfica a atmosfera
positivista da poca, o que acrescenta discusso historiogrfica outra questo: a do
presentismo-historicismo.
O presentista analisa o passado pelo bem do presente, enquanto que o historicista
o faz pelo bem do prprio passado. O passado deve ser concebido nos seus prprios
termos e tendo em conta que at mesmo uma categoria ou conceito com a mesma
nominao representam, num certo passado, um referente que no guarda,
necessariamente, relaes com seu referente no presente. O historicismo, desnecessrio
dizer, o exato oposto da posio presentista (HILGARD; LEARY; MCGUIRE, 1998).
, alis, um divertido presentismo o que faz com que Marx e Hillix (1963/1978) chamem
Titchener de alemo:
Edward Bradford Titchener (1867-1927) foi exposto concepo wundtiana da
psicologia enquanto estudava em Leipzig. Embora fosse ingls de nascimento,
era um alemo em virtude de dois anos de estudos com Wundt e continuou
alemo durante os 35 anos que viveu nos Estados Unidos, onde chegou em
1892 para dirigir o laboratrio da Universidade Cornell. A personalidade
obstinadamente germnica de Titchener tornou-se lendria: a sua personalidade
autocrtica, o formalismo de suas aulas em solenes trajes acadmicos e at a
sua barbuda aparncia alem. Cada aula era uma encenao teatral, com uma
montagem cuidadosamente preparada pelos seus assistentes. Depois, era
gravemente debatida com os membros do corpo docente e com os assistentes,
cuja assistncia aula era para Titchener um ponto assente. (p. 160).
Estranho que, apesar de ingls de nascimento e de viver trinta e cinco anos nos
EUA, Titchener, em virtude de dois anos de formao na Alemanha, verteu-se em
alemo, adquirindo at mesmo uma barbuda aparncia alem; Titchener estava mais
para um ingls sisudo e no um formalista alemo, deveria ser um Sir e no um Herr
Professor. Seria engraado, no fosse um bizarro exemplo do presentismo que participou
da formao de geraes de psiclogos e psiclogas. O presentista transforma o passado
no presente (procedimento similar ao que fazem os continustas e, por isso, estas posturas
hitoriogrficas costumam acompanhar-se), faz de Titchener, ingls de nascimento, e cuja
formao intelectual deu-se em solo norte-americano, um alemo!
24
Mas nem s destes autores vive o presentismo. Wertheimer (1970/1976) oferece
sua contribuio a esta forma de escrever histria quando, apesar de mencionar a
Vlkerpsychologie de Wundt e de caracteriz-la como a pedra angular do arco da
psicologia (p. 84) uma vez que a experimentao e observao (auto-observao),
embora fossem o mtodo adequado de acesso aos processos bsicos da mente, os
processos superiores (elevados) deveriam ser investigados por outros meios , apenas
caracteriza no sistema wundtiano aqueles elementos de uma psicologia experimental,
deixando intocados os temas, objeto e mtodo da Vlkerpsycjologie.
O presentismo costuma vir acompanhado de outra forma de se escrever histria: a
legitimao cerimonial, ou seja, uma histria que cria mitos fundadores de uma cincia
em acordo com a concepo dominante de cincia, uma histria celebrativa do presente;
criar um mito fundador, destacando nele aqueles aspectos que legitimam a tradio de
psicologia que se quer exaltar, um modo de criar uma continuidade entre o presente e o
passado. Um clssico exemplo a aqui citada obra de Boring, na qual Wundt aparece
como tributrio do empirismo ingls e no da filosofia alem de Kant e Leibniz.
Para Boring (1929/1950),
Wundt o psiclogo pioneiro na histria da psicologia. Ele o primeiro
homem que, sem reservas, foi um psiclogo propriamente dito. Antes dele,
havia muita psicologia, mas no psiclogos.[...] Wundt ocupou uma cadeira de
filosofia, como os psiclogos alemes, e escreveu volumosamente sobre
filosofia; mas, aos seus prprios olhos, como aos olhos do mundo, ele foi,
primeiro e antes de tudo, um psiclogo. Quando o chamamos de fundador da psicologia experimental, queremos dizer que ele, ao mesmo tempo, promoveu
a ideia da psicologia como cincia independente e que ele o pioneiro entre os
psiclogos5. (p.316).
Se, de um lado, prprio legitimao cerimonial a criao de mitos fundadores,
o oposto da legitimao cerimonial seria a chamada histria crtica, mas de duvidar que
o mero fato de no se recorrer a mitos com funo legitimadora represente,
necessariamente, uma postura crtica. A histria crtica seria aquela que procura chamar
5 No original: Wundt is the senior psychologist in the history of psychology, he is the first man who
without reservation is properly called a psychologist. Before him there had been psychology enough, but no
psychologists. [] Wundt held a chair of philosophy, as the German psychologists did, and wrote voluminously on philosophy; but in his own eyes as in the eyes of the world he was, first and foremost, a
psychologist. When we call him the founder of experimental psychology, we mean both that he promoted the idea of psychology as an independent science and that he is the senior among psychologists.
25
as iluses e os mitos, de maneira a revelar os fatores prticos envolvidos na histria da
psicologia. (HILGARD; LEARY; MCGUIRE, 1998, p. 415).
H, ainda, a forma internalista de se escrever histria, que concebe o
desenvolvimento da cincia em abstrao ao desenvolvimento da sociedade, e esta tem
sido a forma privilegiada por meio da qual se tem historiado a psicologia. O
externalismo, por sua vez, aquela postura que analisa a cincia por meio do estudo de
seus condicionantes externos (a cultura, a sociedade, ou ainda, segundo a pobre expresso
de Schultz e Schultz (1969/2005): as foras contextuais), o que no implica que esta
anlise negue as especificidades do desenvolvimento cientfico nem que se escuse de uma
anlise sistmica das cincias.
Segundo Schultz e Schultz (1969/2005):
Uma cincia como a psicologia no se desenvolve no vazio, sujeita apenas s
influncias internas. Por fazer parte de uma cultura mais ampla, a psicologia
tambm sofre influncia das foras externas que do forma sua natureza e
direo. (p. 10).
Dentre o que os autores acima citados chamam de foras externas encontram-
se: a economia, as guerras, o preconceito e discriminao tnico-racial e contra as
mulheres. Embora tais autores concebam a importncia de se ter em conta as foras
externas, isto no algo que se materializa nesta conhecida obra. Quando muito, l-se
algumas linhas sobre as foras externas sem que seja feita qualquer relao destas
foras com o desenvolvimento terico-cientfico. As foras externas aqui patenteiam-se
apenas como acessrio no como categoria analtica de fato.
Para o internalismo, sobram exemplos. Se analisados os sumrios das citadas
obras, ver-se- que os ttulos de seus captulos fazem referncia a um autor ou escola,
mas jamais aparecem em relao com um perodo histrico (e isto para falar do mais
aparente, pois que inegvel tambm em relao ao contedo dos captulos o seu carter
internalista).
Penna (1980/1991) engrossa o rol dos historiadores da psicologia que possuem a
capacidade de defender brilhantemente o externalismo e, ao mesmo tempo, ignor-lo ao
historiar a psicologia. Penna apresenta as ideias psicolgicas na Grcia Antiga, sua
emergncia na Modernidade, seus desenvolvimentos na Inglaterra e Alemanha sem
26
qualquer referncia ao que era a Grcia Antiga, s condies de emergncia da
modernidade ou tampouco a qualquer outra coisa a respeito da Alemanha de Leibniz,
Kant e Hegel ou da Inglaterra de Berkeley e Hume.
A obra de Farr (1996/2008) um exemplo de uma histria da psicologia escrita
desde uma postura externalista. Farr relaciona a emergncia da psicologia social
Segunda Guerra Mundial e seus efeitos sobre a intelectualidade europeia, assim como a
profuso dos testes psicolgicos a partir da Primeira Guerra. Aqui um breve exemplo da
narrativa realmente externalista de Farr:
A segunda guerra mundial propiciou um tipo de impulso ao desenvolvimento
da psicologia social semelhante ao que a primeira guerra mundial tinha
propiciado para os testes psicomtricos. Os cientistas sociais colaboraram para
realizar levantamentos sociais sobre a adequao de soldados vida no
exrcito [...], e sua participao em combate e sobre as conseqncias que da
advieram [...]; na avaliao da eficcia das diferentes maneiras de instruir o
pessoal militar [...]; e na soluo de problemas tcnicos relacionados
mensurao das atitudes e predio do comportamento [...]. Esses foram os
assuntos da srie de volumes do The American Soldier publicado, depois da
guerra, sob a editorao geral do socilogo Stouffer. (FARR, 1996/2008, p.
19).
Por fim, tem-se aquela histria escrita como se a histria da cincia fosse feita por
grandes homens sem os quais tal ou qual conceito, tal ou qual descoberta, no teriam
sido produzidos. Por sua vez, a histria do Zeitgeist (esprito do tempo) concebe que estes
feitos so produtos do esprito de uma poca e que, de um modo ou de outro, este
desenvolvimento ocorreria. Verdade seja dita, no mais se concebe o Zeitgeist de modo
to inescapvel, mas tem-se buscado matizar tais posturas com alguma nfase no estudo
da vida e obra dos tericos.
Os grandes homens no so mais considerados sozinhos na histria da cincia, nem como grandes nem como homens. Para os historiadores agora alertados para os perigos de supor a continuidade da influncia de cada
pensador isolada de fatores externos, a eminncia um conceito que deve ser
visto e compreendido com cuidado. (HILGARD; LEARY; MCGUIRE, 1998,
p. 413).
Um exemplo de como possvel fazer a defesa de uma histria do Zeitgeist e, ao
mesmo tempo, contrariar este enunciado historiogrfico ao historiar a psicologia o
trabalho de Schultz e Schultz (1969/2005). Dizem os autores:
27
Uma cincia como a psicologia no se desenvolve no vazio, sujeita apenas s
influncias internas. Por fazer parte de uma cultura ampla, a psicologia tambm
sofre influncias das foras externas que do forma sua natureza e direo.
Para entender a histria da psicologia, necessrio analisar o contexto em que
a disciplina evoluiu, as idias predominantes na cincia e na cultura da poca,
ou seja, o Zeitgeist ou ambiente cultural do perodo, alm de examinar as
foras sociais, econmicas e polticas existentes. (p. 10).
Em que pese advoguem pelo externalismo e pelo estudo do Zeitgeist em que se
desenvolve a psicologia, Schultz e Schultz (1969/2005) historiam a psicologia de modo
internalista e personalista. Quando estes autores inserem em sua anlise o esprito do
tempo, acabam por incorrer naquilo que aqui foi apresentado como legitimao
cerimonial. Sobre o esprito da poca alemo quando da produo wundtiana, dizem
Schultz e Schultz (1969/2005):
O esprito intelectual positivista do perodo, o Zeitgeist, incentivava a
convergncia dessas duas linhas de pensamento [o funcionalismo e o
empirismo]. No entanto, ainda faltava algum que pudesse uni-las e 'fundar' a
nova cincia. Wilhelm Wundt foi quem deu esse toque final. (p. 75). O esprito do mecanicismo era predominante na fisiologia do sculo XIX,
assim como dominava a filosofia da poca. No havia outro lugar em que esse
esprito se destacasse tanto como na Alemanha. (p. 63).
Se verdade que o positivismo fosse o Zeitgeist da cincia na Inglaterra, no
verdade que este mesmo positivismo tivesse qualquer dominncia na Alemanha de
Wundt. Os autores aqui citados, ao capturar o esprito de sua prpria poca, atribuem este
mesmo esprito ao alemo Wundt. de se duvidar que este esprito mecanicista se
destacasse na Alemanha tanto quanto na Inglaterra. Para uma mostra do absurdo de tal
afirmao, importante mencionar o trabalho de Saulo Arajo (2010), que se baseou nos
arquivos de Wundt na Alemanha e situou os escritos do psiclogo alemo pari passu ao
desenvolvimento do Zeitgeist alemo de sua poca, que no era, alis, positivista, mas
kantiano. Vale recordar, ainda, que a fundao do laboratrio de Psicologia em Leipzig,
no ano de 1879, deu-se num tempo em que ainda eram vivos Marx e Engels. Vale dizer
que, assim como esses dois tericos, o debate em torno da obra hegeliana era a
caracterstica mais marcante do Zeitgeist do sculo XIX alemo; alm de Marx e Engels,
ainda valeria citar Bruno Bauer, Max Stirner, Friedrich Schelling, Ludwig Feuerbach
28
como intelectuais cujas produes marcantes do esprito da poca alemo se deram na
apropriao e/ou no embate com o texto hegeliano.
Expostas as cinco dicotomias apresentadas por Hilgard, Leary e McGuire (1998) e
as tendo cotejado e ilustrado com expressivos trabalhos em histria da psicologia, pode-
se dizer que se est diante do conjunto das preocupaes dos historiadores da psicologia
em relao quilo que prprio da pesquisa histrica6, ou melhor dizendo, este o limite
da apropriao dos desenvolvimentos da cincia histrica pela psicologia.
A histria da psicologia foi escrita, em geral, por psiclogos, no por
historiadores. Estes psiclogos trouxeram o desenvolvimento das teorias psicolgicas
abandonando um dos elementos importantes desta disciplina: a histria. Joseph Broek,
que ser citado na seo ulterior, uma exceo a esta afirmao. Trata-se de um
historiador da psicologia que se colocou a tarefa de realizar uma srie de importantes
discusses metodolgicas, bem como de realizar as leituras originais dos textos clssicos
a que se dedicou. Mas mesmo Broek no se meteu neste sendeiro que a filosofia da
histria. Deve-se acrescentar que a maioria das produes em histria da psicologia que
chegaram ao Brasil foram aquelas produzidas pelos norte-americanos, cuja filosofia
pragmatista, herdeira, em ltima instncia, da concepo evolucionista de histria de
August Comte, concebe a histria das cincias como um acmulo de conhecimentos que
ruma para o progresso. O ingls Robert Farr outra destas excees, cuja obra, embora
crtica, carece, igualmente, de uma discusso da filosofia da histria.
As questes aqui expostas sob a forma daquelas dicotomias apresentadas por
Hilgard, Leary e McGuire (1998) pertencem quele campo da cincia da histria
conhecido por historiografia. Cumpre, pois, esboar algumas linhas a respeito do objeto
de que trata a historiografia.
1.2 A historiografia e a filosofia da histria na histria da psicologia
A historiografia aquela disciplina que mesmo um historiador francs como
Carbonell (1981/1992) concebe como tendo por objeto a escrita da histria. A respeito
6 exceo daquelas discusses metodolgicas referentes s fontes documentais. Contudo, neste caso,
trata-se muito mais de uma questo de tcnica e procedimento e no propriamente dos fundamentos da
pesquisa histrica.
29
de sua obra que tem como ttulo Historiografia, diz Carbonell:
O objectivo desta curta sntese expor de um ponto de vista histrico isto , situando-a constantemente no seu contexto a diversidade dos modos de representao do passado no espao e no tempo. O que historiografia? Nada mais que a histria do discurso um discurso escrito e que se afirma verdadeiro que os homens tm sustentado sobre o seu passado. (p. 6)
No sentido que emprega Carbonell, a historiografia lida com as formas pelas quais
o passado representado e que apesar de no ser um ponto assente entre os
historiadores, pois que impreciso tambm fora chamado de histria da escrita da
histria ou histria da histria. Outrossim, a curta sntese de Carbonell confere ao
termo historiografia a qualidade de referir-se grafia, escrita da histria.
A historiadora francesa Marie-Paule Caire-Jabinet acrescenta a este uso comum
do vocbulo historiografia o fato de que
Este vocbulo possui diversas acepes. Tendo surgido no sculo 19, em
imitao aos historiadores poloneses e alemes, ele significa, conforme os
casos: a arte de escrever a histria, a literatura histrica ou, ainda, a histria literria dos livros de histria (LITTR, 1877). Ele pode, conforme o contexto, referir-se s obras histricas de uma poca, s obras dos sculos
posteriores sobre essa poca ou ainda reflexo dos historiadores sobre essa
escrita da histria. (CAIRE-JABINET, 2003, p. 16).
Seja como arte de escrever, como literatura histrica ou como histria
literria dos livros de histria, o que est em jogo quando se fala de historiografia a
escrita da histria (SILVA, 2005).
O termo historiografia, convm ressalvar, um termo ainda em disputa pelos
historiadores. O historiador catalo Jlio Arstegui apresenta, a este respeito, um
panorama deste problema terminolgico-conceitual dos historiadores.
Arstegui (1995/2006) vale-se do termo historiografia no sentido de resolver uma
questo posta aos historiadores, a saber: o carter anfibolgico do termo histria. Histria
designa tanto o passado, o que foi, a experincia humana pretrita, quanto aquela cincia
que investiga esta mesma experincia humana passada. Trata-se de um termo que
referente de duas distintas matrias (o histrico e a cincia do que histrico), da seu
30
carter anfibolgico7.
O problema terminolgico na cincia se manifesta primeiramente a respeito do
nome que uma disciplina constituda deve adotar. No que concerne nossa [a
histria], esse o primeiro problema que vamos abordar. Tem-se dito com
freqncia que o emprego de uma mesma palavra para designar tanto uma
realidade especfica como o conhecimento de que se tem dela constituiria uma
importante dificuldade para o estabelecimento de conceituaes claras, sem as
quais no so possveis avanos fundamentais no mtodo e nas descobertas da
cincia. Dessa forma, sempre que um certo tipo de estudo da realidade define
com a devida clareza seu campo, seu mbito, seu objeto, quer dizer, o tipo de
fenmenos a que se dedica, e se vai desenhando a forma de neles penetrar, ou
seja, seu mtodo, surge a necessidade de estabelecer uma distino, pelo menos
relativa, entre esse campo que se pretende conhecer a sociedade, a composio da matria, a vida, os nmeros, a mente humana, etc. e o conjunto acumulado de conhecimentos e de doutrinas sobre tal campo.
(ARSTEGUI, 1995/2006, p. 27).
Para resolver esta dubiedade do termo histria, que designa tanto uma cincia
quanto o objeto desta, o historiador catalo recorre ao termo historiografia para designar a
cincia da histria, conquanto reserva ao termo histria aquilo que o passado. , no
entanto, problemtica a soluo encontrada por Arstegui ao problema, tendo em vista
que em sua raiz etimolgica o que reconhecido pelo prprio autor , historiografia
tem o restrito significado de escrita da histria8. Este , alis, o uso que confere ao
termo outro historiador, tambm catalo, Josep Fontana (1998).
Embora a questo da linguagem nas cincias seja uma questo fundamental para o
cientista, no muito plausvel supor que o carter anfibolgico do termo histria
represente qualquer dificuldade aos historiadores em sua atividade. Se verdade que
muitos historiadores divergem quanto quilo que seria o objeto de estudo do historiador,
isto no se deve, obviamente, ao termo que utilizam para designar o histrico e a histria,
como sugere Arstegui (1995/2006). Ao mesmo tempo que aponta o problema da
7 Hegel se houve com esta mesma questo. Vemos o filsofo prussiano escrever: Em nossa lngua, a
palavra histria combina o lado objetivo e o subjetivo. Significa ao mesmo tempo a Historiam rerum
gestarum e a res gestas : os acontecimentos e a narrao dos acontecimentos. (HEGEL, 1837/1990, p. 113). Para Hegel, a saga da Razo no tem incio num estado originrio paradisaco em que o homem
vivera em comunho com Deus. Esta razo que teria sido pervertida na histria no tem existncia para
Hegel. O estudo da Histria deve partir do ponto em que a razo passa a existir efetivamente no mundo (ou
seja, a histria coincide com a escrita da histria, sua autoconsciencia). Assim, este atributo no dado
desde a existncia primeva da humanidade; tudo o que precede o Estado pr-histria e no lhe pertence
como objeto de investigao histrica. 8 O vocbulo grafia tem origem no grego graphos e possui o estrito sentido de escrita, desenho,
descrio.
31
linguagem nas cincias, e mais especificamente na histria, Arstegui quer, ele mesmo,
definir os termos que se referem experincia humana temporal e cincia desta
experincia. Ao defender que a polissemia do termo histria tivesse gerado reais
problemas aos historiadores, Arstegui oferece uma soluo que antes de ser conceitual
meramente terminolgica, embora ele mesmo considere inadequada a atividade cientfica
que se oriente exclusivamente criao de um vocabulrio especfico.
Arstegui assume o termo historiografia como sinnimo de cincia da histria.
Apesar deste trabalho no acatar tal definio terminolgica de Arstegui, considera-se
que sua obra esclarecedora no sentido de evidenciar a distino entre a cincia da
histria, seus fundamentos (aqui chamado de Filosofia da Histria) e a escrita da histria.
E isto porque os pesquisadores em histria da psicologia, em seu conjunto, ainda pensam
que possvel seguir fazendo pesquisa histrica apenas incorporando da cincia histrica
as contribuies relativas grafia do passado, passando ao largo da teoria da histria e da
filosofia da histria. Assim que, aqui, a historiografia concebida em seu sentido mais
prosaico e, ao que parece, tambm mais utilizado pelos historiadores: o de escrita da
histria. Esta curta definio til a este trabalho na medida em que a apropriao da
cincia histrica pelos historiadores da psicologia est marcada, sobremaneira, pela via
das reflexes a respeito da historiografia, da escrita da histria.
E se a historiografia lida com a escrita da histria, ela no mais estuda que as
formas pelas quais so expostos os resultados da pesquisa histrica e, como forma, nada
ou muito pouco pode revelar sobre a sua substncia, sobre seu contedo. Tal contedo da
cincia histrica o que se conhece como filosofia da histria. precisamente sobre esse
ponto que nada versaram as reflexes dos historiadores da psicologia.
Broek (1996, 1998), por exemplo, que se dedicou a encampar uma srie de
reflexes metodolgicas no campo da histria da psicologia, nada escreveu sobre
filosofia da histria. H o registro de um curso de histria da psicologia (BROEK, 2001,
2002a, 2002b) ministrado por este pesquisador tcheco, em que a filosofia da histria no
tem lugar, ao passo que so dedicadas muitas linhas s questes metodolgicas (a questo
das fontes, por exemplo) e escrita da histria. Sobre os fundamentos da histria:
nenhuma palavra. Este um exemplo de como um curso de histria da psicologia pode,
ao mesmo tempo, ser profcuo na discusso da narrativa histrica e estril em sua
32
discusso da filosofia da histria. O ocultamento da filosofia da histria antes de ser
apenas um equvoco ou uma limitao de certos estudos histricos, , sobretudo, um
ocultamento da viso de mundo e de ser humano que se depreende de tal ou qual estudo.
Outro exemplo da pouca preocupao com os fundamentos da cincia histrica
pela Histria da Psicologia pode ser encontrado no famoso estudo de Michael
Wertheimer (1998), intitulado Pesquisa histrica por qu?, em que no conjunto de
suas quarenta referncias bibliogrficas no consta sequer um trabalho da disciplina
histrica, sequer um historiador stricto sensu citado. Os termos history, historical,
historiography, evolution, problems e crisis que comparecem nos ttulos de suas
referncias surgem sempre acompanhados de outros tais como psychology,
psychologists, behavioral sciences e psychology (neste caso, em alemo). Queda a
questo de saber onde, nos escritos de Wertheimer, possvel encontrar uma filosofia da
histria ou mesmo algum rudimento desta. Alm de ausentar-se deste referido texto, na
Pequena histria da psicologia do mesmo Wertheimer (1970/1976), a discusso da
filosofia da histria tambm est ausente.
ltimo exemplo: o historiador da psicologia social, Robert Farr. Farr (1996/2008)
opera uma contumaz crtica tradio historiogrfica da psicologia e, nessa crtica, vai
alm daquelas discusses aqui mencionadas que giram em torno das chamadas questes
historiogrficas. Ademais, insinua onde se encontra aquela que sua filosofia da histria:
Sua filosofia da histria (Mead, 1932) permeia alguns dos ensaios e informa toda a
minha abordagem referente filosofia da histria. (FARR, 1996/2008, p. 13).
Em que pese o prprio Farr se filiar a uma tradio da filosofia da histria, recusa,
por exemplo, a legitimidade do materialismo histrico-dialtico como filosofia da
histria. O autor afirma que, no que tange ao seu trabalho
No se trata de uma crtica poltica, de um ponto de vista marxista. Se algum
apresenta, por exemplo, uma crtica marxista do desenvolvimento da psicologia
social em outra cultura, os estudantes certamente aprendero mais sobre as
posies polticas de seu professor do que sobre como a psicologia social se
desenvolveu naquele outro contexto. (FARR, 2000/2002, p. 28).
Quando Farr afirma que sua crtica parte de uma perspectiva poltica, mas que no
se trata de algo parecido com o que ocorre crtica marxista pois que, neste caso, os
33
alunos aprenderiam mais sobre o marxismo que sobre a histria da psicologia no
menciona o fato de que o marxismo apenas uma das filosofias da histria possveis na
anlise histrica. Mas, se verdade o que afirmou Farr a este respeito, teriam, seus alunos
aprendido mais sobre a filosofia do presente de George Herbert Mead que sobre histria
da psicologia? Assumir um mtodo e exp-lo, seja o marxista, seja alguma variao do
culturalismo, seja a filosofia do presente de Mead, antes de ser uma mera afirmao de
posies polticas (como sugere Farr) um ato de honestidade com o interlocutor, o
movimento necessrio de explicar-lhe desde onde se analisa os processos histricos,
quais elementos so determinantes, quais so determinados, como estes se relacionam.
Ademais, tal exposio abre ao interlocutor a possibilidade de interpor uma outra chave
heurstica pra interpretar os fenmenos histricos e demonstrar, assim, sua validez. Se
Farr tivesse algo a dizer sobre a filosofia do presente de Mead, haveria algo de que tratar
a respeito de sua apropriao particular de uma certa filosofia da histria.
Desafortunadamente, Farr no quis expor ao leitor aquilo que considera as suas posies
politicas.
Cumpre notar que a no preocupao com os fundamentos filosficos da pesquisa
histrica no uma negligncia que apenas acomete os historiadores da psicologia. Antes
disto, os historiadores da psicologia refletem uma tendncia dos historiadores em geral.
Comentando a constatao de Henri Berr, segundo a qual um excessivo nmero de
historiadores jamais dedicou-se ao estudo dos fundamentos da cincia histrica, diz
Arstegui (1995/2006):
Os historiadores no refletem sobre os fundamentos profundos de seu
trabalho... Isso continua sendo vlido quase noventa anos depois dessas
palavras terem sido escritas? Infelizmente, no parece que haja razes para
mudar seu sentido. (p. 23).
As questes da filosofia da histria so aquelas que dizem respeito a: quais so as
determinaes da histria, por que as coisas se transformam, quem o sujeito da
transformao, se a histria da cincia algo que transcorre segundo leis prprias e
independentes quelas da histria da sociedade, quais elementos so determinantes, quais
so determinados, como isto se relaciona, a relao todo-parte, etc. So estas questes
que devem encontrar respostas numa filosofia da histria. O fato de que a histria da
34
psicologia no tenha encampado a necessria discusso da filosofia da histria, no
significa que seus historiadores no possuam uma filosofia da histria, mas sim que a
ocultam, e no explicitam, por fim, a viso que possuem da sociedade. Segundo Carr
(1982/2006), ao responder pergunta o que histria? que o historiador revela a
concepo que possui do todo social ou, o que d no mesmo, a sua filosofia da histria.
sobre estas preocupaes que versar a prxima seo. Na medida em que este
trabalho visa a historiar uma escola de psicologia social, importante apresentar, apesar
de Robert Farr, a filosofia da histria que o fundamenta: o materialismo histrico-
dialtico.
1.3 O materialismo histrico-dialtico como filosofia da histria
Pensado como filosofia da histria, o materialismo histrico-dialtico figura como
momento negativo da filosofia hegeliana da histria, a qual pretende suprassumir.
A princpio, a histria na obra de Hegel uma teodiceia9. Isso significa dizer que
o ponto de partida (e tambm de chegada) para a anlise histrica em Hegel a realizao
da vontade de Deus.
A Histria o resultado do desenrolar da Ideia Absoluta que se desdobra em sua
anttese, o mundo material (ou natureza) para, ao fim, reencontrar-se em si mesma, j na
qualidade de reino do Esprito (ou a matria que se tornou autoconscincia, a razo que se
reconcilia consigo mesma, o mundo do ser social). Diz Hegel (1837/1990):
[...] devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da Providncia, os seus
significados e as suas manifestaes na histria, e seu relacionamento com o
nosso princpio universal. (p. 57).
A concepo hegeliana da histria como uma teodicia, no entanto, no faz Hegel
9 Afirmar que a histria, para Hegel, uma teodiceia, no significa dizer que a sua filosofia possa ser
reduzida a um modo simplista de conceber a histria. Apesar de a Ideia (ou Deus) como determinidade
fundamental ser seu pressuposto, Hegel procede, no conjunto de sua obra a uma anlise rigorosssima (em
que pese invertida) da histria (pelo menos desde a Antiguidade) e de suas instituies, tais como o Estado,
a Constituio, a Religio, o Direito, a Arte, a Filosofia. Para um interessante inventrio do legado
hegeliano, vide Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofia clsica alemana (1888/1990) de Friedrich Engels,
Razo e Revoluo: Hegel e o advento da teoria social (1941/1978) de Herbert Marcuse e O jovem Hegel.
Os novos problemas da pesquisa hegeliana (1949/2009) de Gyrgy Lukcs.
35
decidir pela posio obscurantista de que aos humanos restaria aguardar os desgnios
divinos. Ao contrrio, o conhecimento da histria a condio para conhecer a verdade
divina:
Com essa possibilidade de conhecer a Deus, a obrigao de conhec-lo nos
imposta. Deus deseja estreitar as almas e esvaziar a mente de seus filhos; Ele
quer o nosso esprito, em si realmente pobre, rico no conhecimento Dele,
sustentando que este conhecimento seja de supremo valor. O desenvolvimento
do esprito pensante s comeou com esta revelao da essncia divina. Ele
agora deve progredir em direo compreenso intelectual do que
originalmente estava presente apenas para o esprito que sentia e imaginava.
(HEGEL, 1837/1990, p. 58).
Pode-se acrescentar ainda o fato de que a realizao mxima da Ideia o reino do
Esprito. O mundo do Esprito, entretanto, apenas uma possibilidade a partir do
momento em que passaram a existir seres humanos sobre a terra. Curiosa teologia essa
que afirma que a forma mais elevada de Deus o ser humano10
! Note-se, por exemplo,
que na arquitetura da obra de Hegel (1807/2002, 1830/1995), o Saber Absoluto um
momento que suprassume a Arte e a Religio como formas de representao consciente
do mundo. O Saber Absoluto o andar (nvel) da Filosofia, no o da religio. Nas
palavras de Hegel, o terceiro silogismo (e ltimo, negao da negao, portanto):
[...] a idia da filosofia, que tem a razo que se sabe, o absolutamente
universal, por seu meio termo que se cinde em esprito e natureza; que faz do
esprito a pressuposio, enquanto [] o processo de atividade subjetiva da
idia, e faz da natureza o extremo universal, enquanto [] o processo da idia
essente em si, objetivamente. (HEGEL 1830/1995, p. 364).
10
Um adendo: essa uma possvel leitura da herana hegeliana. Engels (1888/1990) j advertira que o
esplio de Hegel fora disputado por pelo menos dois importantes grupos aps a sua morte: os jovens
hegelianos de esquerda e os conservadores. A famosa afirmao de Hegel de que Todo o real racional, e todo o racional real uma importante sntese da disputa pelo esplio hegeliano. Os conservadores tomavam a primeira orao como se fosse a prova de que tudo o que existe existe porque racional e
necessrio e, ento, o Estado monrquico e absolutista era a forma poltica sob a qual os seres humanos
deveriam viver. De outro lado, os hegelianos de esquerda tomavam a segunda orao e diziam que se tudo
o que racional real, ento a crtica ao estado de coisas existente tambm era uma realidade
potencialmente existente. Marx e Engels (1845-46/2007) endeream sua crtica tambm esquerda
hegeliana, pois que esta identificava no plano do pensamento, da filosofia e da crtica o campo de luta
contra o Estado monrquico privilegiado por estes pensadores, dentre os quais destacam-se Bruno Bauer,
Max Stirner e Ludwig Feuerbach. Faziam a arma da crtica, mas no exercitavam a crtica das armas. Sobre
o fato de que a oposio alem ao Estado prussiano se tenha feito apenas no plano do pensamento e das
condies histrico-objetivas (a chamada misria alem) que a isso favoreceram, tratar-se- mais adiante no captulo 3.
36
Se a Ideia o ponto de partida da histria, ento para onde ruma a ideia? O
movimento por meio do qual a razo se reencontra consigo mesma sob a forma de
Esprito impulsionado pela liberdade. A liberdade a categoria filosfica que funciona
como fora motriz da histria. Em resumo: os seres humanos movem-se para a
liberdade11
.
A liberdade em si o seu prprio objetivo e o propsito nico do Esprito. Ela
a finalidade ltima para a qual toda a histria do mundo sempre se voltou.
Para este fim, todos os sacrifcios tm sido oferecidos no imenso altar da terra
por toda a demorada passagem das eras. (HEGEL, 1837/1990, p. 66).
Os orientais, para Hegel, no possuam conscincia da liberdade do Esprito; e
como no possuam conscincia de sua liberdade, no eram, de fato, livres. Para estes,
apenas um homem era livre, mas, na verdade, este homem livre era um dspota. Os
homens gregos foram os primeiros a expressar a conscincia de liberdade, mas para os
gregos, apenas alguns eram livres e no o gnero humano. Os povos germnicos, por
meio da cristandade que apresentaram a compreenso de que o homem livre e que
esta liberdade lhe era constitutiva. V-se que, para Hegel, a histria do mundo pode ser
periodizada segundo o grau de liberdade que cada civilizao j tenha alcanado. A
histria do mundo o avano da conscincia da liberdade um avano cuja necessidade
temos de investigar. (HEGEL, 1837/1990, p. 65).
Hegel faz coincidir a conscincia de liberdade e a liberdade mesma. A conscincia
a capacidade do esprito em tornar-se para-si o que j o em-si; a histria do mundo ,
pois, o movimento que vai da Ideia pura ao autoconhecimento do Esprito acerca de sua
natureza. O Esprito, em suas formas mais embrionrias, j contm em si todos os
elementos do desenvolvimento histrico. Isso significa dizer, ento, que em Hegel o que
existe enquanto histria necessrio?
Sim e no. Sim, porque, como exposto acima, a histria nada mais que o
11
Esta teleologia do Esprito na histria tambm est presente como filosofia que orienta o rumo de
importantes pesquisas no campo da histria da psicologia. No isso que faz Bohring ao apresentar apenas
aqueles desenvolvimentos da psicologia que resultaram no esprito da cincia experimental? Ou nos termos
de Schultz e Schultz (1969/2005), agora a psicologia finalmente se reconciliara com o esprito cientfico
positivista pois contava com um livro-texto (Grunzge der physiologischen Psychologie), um laboratrio (o
de Leipzig) e uma revista especializada (Philosophische Studien). A psicologia rumava para a cincia!
37
movimento pelo qual o Esprito vem a tornar-se (na ao) o que ele j (potencialmente).
E no, por que se o ser orgnico (pensemos numa rvore, por exemplo, a semente que se
verte em carvalho) ser inevitavelmente o que j potencialmente, o Esprito rico e
forte deve superar a si mesmo como o seu maior obstculo: O desenvolvimento, que
na natureza um tranquilo desdobramento, no Esprito uma dura luta interminvel
contra si mesmo. (HEGEL, 1837/1990, p. 106).
Ora, o desenvolvimento histrico no unvoco; no apenas progride, mas
tambm involui. A este respeito, diz Hegel, recorrendo prpria histria:
Existem na histria do mundo diversos grandes perodos que se extinguiram,
aparentemente sem maior desenvolvimento. Todo o seu enorme ganho de
cultura anterior foi aniquilado; infelizmente, devemos comear tudo desde o
incio para chegar outra vez a um dos nveis culturais que haviam sido
atingidos muito tempo atrs talvez com o auxlio de algumas runas preservadas de antigos tesouros com um novo e imenso esforo de energia e tempo, de crime e de sofrimento. (HEGEL, 1837/1990, p. 107).
Assim, o curso da histria no unvoco, ele sofre inflexes, se extingue em
dados pontos do seu desenvolvimento, mas tomando o Esprito em seu longo curso, ele
sempre recomea o seu trabalho e recupera aqueles nveis de desenvolvimento que
sucumbiram. O Esprito teimoso. E violento.
A conscincia a parteira da liberdade. Isto no quer dizer que a conscincia do
Esprito-que-j-sabe-o-que- coincida com as conscincias individuais. O Estado , ele
mesmo, uma forma de exterioridade da existncia da conscincia do Esprito; o processo
pelo qual os mais variados interesses privados harmonizam-se com os interesses do
Estado , para Hegel, um largo e doloroso parto.
A oposio EstadoIndivduo aquela por meio da qual Hegel compreende a
histria. O Estado a realizao da liberdade, do objetivo ltimo da ideia absoluta. A
verdade une a vontade particular com a universal. Diz Hegel (1837/1990): O Estado a
realizao da Liberdade, do objetivo final absoluto, e existe por si mesmo. Todo o valor
que tem o homem, toda a sua realidade espiritual, ele s a tem atravs do Estado. (p. 90).
O universal reside nas leis do Estado; esta a forma sob a qual existe a Ideia no mundo
dos homens. O Estado de natureza como liberdade (como ocorre nas doutrinas
jusnaturalistas) inexiste para Hegel. Na condio primitiva, imperam as paixes
38
irracionais e a violncia generalizada. A restrio a este estado de barbrie [...] parte do
processo atravs do qual se obtm a conscincia e o desejo de liberdade em sua forma
verdadeira, ou seja, racional e ideal. (HEGEL, 1837/1990, p. 92). Ou seja, ainda que um
indivduo possa sentir que o Estado aquele ente moral que restringe sua liberdade de
ao, os grandes homens sabero que o Estado , precisamente, a condio de efetivao
da liberdade.
O indivduo atua no mundo tendo por base certo instinto social que visa a
assegurar sua vida e a propriedade. Suas aes extrapolam seus objetivos e interesses
imediatos. Por meio do particular (aqui pensado como o indivduo), realiza-se o universal
(a liberdade). Mas, no todo e qualquer indivduo que faz histria.
Existem aqueles homens (heris) portadores de uma proposio universal mais
elevada. Estes homens so aqueles que conjugam em si as caractersticas do esprito do
mundo. Tais homens querem a grandeza (como Csar) e, ao realiz
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