UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – DOUTORADO
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
CURITIBA
2010
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
Tese apresentada como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor em Direito no
Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de
Doutorado em Direito do Estado, Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho
CURITIBA
2010
i
TERMO DE APROVAÇÃO
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito no
Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado,
Universidade Federal do Paraná.
Banca examinadora:
Orientador:
__________________________________
Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho
Universidade Federal do Paraná
Membros:
___________________________________
Prof. Dr. Celso Antônio Bandeira de Mello
Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo
__________________________________
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Universidade Federal de Santa Catarina
__________________________________
Prof. Dr. Alcides Munhoz da Cunha
Universidade Federal do Paraná
__________________________________
Prof. Dr. Clèmerson Merlin Clève
Universidade Federal do Paraná
Curitiba, 26 de fevereiro de 2010.
iii
AGRADECIMENTOS
A elaboração de um trabalho acadêmico se dá em um processo intrincado, com idas e
vindas, restruturações do projeto, abandono de certezas, intuições e inspirações, frustrações e
recompensas e muito cansaço. Ao menos essa tese foi assim. E neste caminho – que se faz ao
caminhar – o pesquisador tem que contar com um conjunto de pessoas, sem as quais a solidão
da pesquisa e da redação torna-se insuportável.
Devo, em primeiro lugar, fazer menção àquele que me fez descobrir minha vocação,
que me encorajou a tomar algumas das decisões mais importantes da minha vida acadêmica e
que, por generosidade e por uma confiança quase temerária, me recebeu entre seus discípulos.
Ao mestre e mentor Romeu Felipe Bacellar Filho, minha gratidão será sempre insuficiente.
Alguns professores, durante minha formação acadêmica, foram decisivos. Celso Luiz
Ludwig mostrou-me como é possível alcançar o justo equilíbrio entre o saber muito e o
ensinar bem e espero passar ainda muitos anos entre os seus alunos para, a cada aula,
descobrir o que ainda me falta. Clèmerson Merlin Clève me trouxe a paixão pelo Direito
Constitucional, me guiou nas primeiras leituras e me fez conhecer o valor do estudo e da
defesa da Constituição. Ricardo Marcelo Fonseca me ensinou, pacientemente, a pesquisar e a
pensar além, a questionar o que já se tem como certo e a revisar, sempre, as perguntas. Vera
Karam de Chueiri, com a sua hábil descontrução de cada um dos meus argumentos em todo o
debate que travamos, me fez ler muito e boa parte da tese foi construída a partir de suas
provocações.
A tese apresentada foi parcialmente moldada pelas observações da banca de
qualificação. A Alcides Munhoz da Cunha devo a indicação do primeiro princípio eleitoral
apresentado, sem o qual, certamente, a tese restaria frágil. Orides Mezzaroba, com suas
observações, me levou ao estudo da representação política e dos partidos políticos. E a Vera
Karam de Chueiri devo o cuidado com a terminologia e com o senso comum, além de toda a
leitura dos constitucionalistas estadunidenses.
Na fronteira entre as “dívidas” acadêmicas e as pessoais está Emerson Gabardo. Não é
exatamente meu professor, embora às vezes efetivamente o seja e outras vezes pense ser.
Mais que um amigo, é, intelectualmente, meu “outro”. Sua disponibilidade, sua paciência e
sua teimosia colaboraram grandemente na construção da tese. A ele meus agradecimentos
serão sempre parciais, pois sempre haverá mais um motivo.
iv
Aos amigos professores que questionaram as minhas certezas, agradeço a Amélia
Rossi, Anderson Marcos dos Santos, Estefânia Maria de Queiroz Barbosa, Fabrício Tomio,
Lígia Maria de Mello Casimiro, Luciane Moessa de Souza, Rafael Garcia Rodrigues, Ozias
Paese Neves e Tarso Cabral Violin. Aos jovens constitucionalistas José Arthur Castillo de
Macedo e Miguel Godoy e aos ex-alunos Ana Claudia Santano e Cassio Leite, a ajuda com a
pesquisa, as discussões e as referências. A Andrea Roloff, pela revisão atenciosa da tese e
pelo auxílio com as normas técnicas.
Sem as Mulheres de Frases e sua compreensão, sem o Min. Flávio Bierrenbach e sua
disponibilidade, sem a ajuda das bibliotecárias Roseli Bill e Maria Teresa Ferlini Machado e
de Marden Machado, Francisco Carlos Duarte, Horley Clève Costa e Josnir Jesus da Silva, a
tese não seria a mesma.
Às famílias Salgado e Costa Lopes, por entenderem os momentos de concentração e
de tensão e as minhas ausências e pelo incentivo; aos meus pais, Enio e Neuza, por me
deixarem escolher meus caminhos e me possibilitarem as ferramentas para fazer o que escolhi
e, in memorian, ao meu avô Agenor Salgado, de quem herdei a paixão pelo Direito, apresento
meus agradecimentos.
E, finalmente, a João Luiz, companheiro combativo às minhas abstrações, que teve
que assumir obrigações familiares extras em tempos de pesquisa e redação, e a Ana Clara, que
nasceu e cresceu com a tese, cantando ao pé da mesa e sublinhando seus livros de estórias
com lápis de cor, muito obrigada.
vi
SUMÁRIO
RESUMO viii
ABSTRACT ix
APRESENTAÇÃO 1
PARTE I – PREMISSAS LEGITIMATÓRIAS DOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
BRASILEIRO 8
1 – A CONSTITUIÇÃO DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO
FUNDADO NO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E NO IDEAL REPUBLICANO 15
1.1 UMA NOÇÃO DE DEMOCRACIA ADEQUADA À CONSTITUIÇÃO
DE 1988 20
1.2 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E SUA MITOLOGIA 29
1.3 O IDEAL REPUBLICANO E SEUS PARADOXOS 46
2 – A CONSTITUIÇÃO DE 1988 INSTITUI O ESTADO BRASILEIRO A
PARTIR DE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES INTANGÍVEIS 55
2.1 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO BRASILEIRO 58
2.2 A CONTROVERSA QUESTÃO ENTRE DEMOCRACIA E
CONSTITUCIONALISMO 67
2.3 OS LIMITES EXPLÍCITOS E IMPLÍCITOS AOS PROCESSOS
FORMAIS E INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO 88
PARTE II – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO
DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO 101
1 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTENTICIDADE ELEITORAL 108
1.1 A “AUTENTICIDADE” DO VOTO 116
1.2 A VERACIDADE DO ESCRUTÍNIO 122
1.3 A FIDEDIGNIDADE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA 128
vii
2 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE PARA O
EXERCÍCIO DO MANDATO 143
2.1 A VEDAÇÃO AO MANDATO IMPERATIVO 150
2.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO “MANDATO PARTIDÁRIO” 160
2.3 A IMPOSSIBILIDADE DE PERDA DO MANDATO POR
DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA 176
3 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NECESSÁRIA PARTICIPAÇÃO
DAS MINORIAS NO DEBATE PÚBLICO E NAS INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS 217
3.1 O SISTEMA ELEITORAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 219
3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DISTRITAL 234
3.3 A PROIBIÇÃO DE UMA CLÁUSULA DE DESEMPENHO 242
4 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MÁXIMA IGUALDADE NA
DISPUTA ELEITORAL 247
4.1 A REGULAÇÃO DA PROPAGANDA ELEITORAL E O USO
INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL 259
4.2 A ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS E O USO DO PODER
POLÍTICO 272
4.3 O CONTROLE DO FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS
ELEITORAIS E O ABUSO DO PODER ECONÔMICO 278
5 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE ESPECÍFICA EM
MATÉRIA ELEITORAL 285
5.1 A ANTERIORIDADE CONSTITUCIONAL EM MATÉRIA
ELEITORAL 289
5.2 A “RESERVA DE LEI” DO PARLAMENTO 297
5.3 O “PODER REGULAMENTAR” DO TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL 301
CONCLUSÃO 315
REFERÊNCIAS 317
viii
RESUMO
O trabalho analisa as principais temáticas que envolvem o Direito Eleitoral na atualidade,
utilizando-se, para tanto, de uma perspectiva de valorização dos ditames constitucionais a
respeito do assunto. Foca as questões polêmicas que vêm sendo debatidas não somente na
doutrina nacional e internacional, mas também na jurisprudência brasileira. Trata de temas
como a democracia, o processo eleitoral, a opinião pública e os partidos políticos. Divide-se
em duas partes fundamentais: a primeira procura identificar as premissas legitimatórias dos
princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, partindo de uma
metodologia descritivo-comparativa, com o objetivo de construção de um substrato para o
melhor entendimento da tese; a segunda procura retratar e fundamentar a identificação dos
princípios em si, quais sejam: 1. o princípio constitucional da autenticidade eleitoral; 2. o
princípio constitucional da liberdade para o exercício do mandato; 3. o princípio
constitucional da necessária participação das minorias no debate público e nas instituições
políticas; 4. o princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral; e 5. o
princípio constitucional da legalidade específica em matéria eleitoral. Seu foco é na questão
jurídica; todavia, utiliza-se de conhecimentos interdisciplinares, notadamente da ciência
política e da história. A conclusão final extraída da pesquisa realizada pode ser resumida na
assertiva de que os fundamentos principiológicos do Direito eleitoral brasileiro somente
podem ser reconhecidos a partir do sistema constitucional positivo, nos termos e limites
extraíveis do processo constituinte e da realidade democrática nacional. Por consequência,
elabora uma crítica às recentes decisões judiciais e administrativas a respeito da temática,
notadamente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.
Palavras-chave: Direito Eleitoral. Princípios constitucionais. Autenticidade eleitoral. Mandato
representativo. Sistema eleitoral. Igualdade eleitoral. Legalidade eleitoral.
ix
ABSTRACT
This thesis analyses the main themes regarding Electoral Law nowadays, using, for this
purpose, a perspective of emphasis on the constitutional guidelines in this area. It focuses the
controversial matters that are being discussed both in the national and international doctrines
and in Brazilian courts. It discusses matters such as democracy, electoral process, public
opinion and political parties. It is divided into two elementary parts: the first part aims to
identify the premises which legitimate the structuring principles of Brazilian Electoral Law,
using a descriptive-comparative methodology, with the purpose of building a substract to
better comprehension of the thesis; the second one aims to describe and give the grounds to
the identification of the principles themselves: 1. the principle of electoral authenticity; 2. the
constitutional principle of freedom for the exercise of the mandate; 3. the principle of the
necessary participation of the minorities in the public debate and in the political institutions;
4. the constitutional principle of the maximum equality in the election; 5. the constitutional
principle of strict legality in electoral matter. Its focus is on the legal aspect, but it also uses
interdisciplinary knowledge, mainly from political science and history. The final conclusion
that can be inferred can be synthesized in the statement that the grounds and principles of
Brazilian Electoral Law only can be recognized when they are based on positive
constitucional law, in the terms and limits that can be inferred from the process of elaboration
of the Constitution and considering the national democratic reality. As a consequence, it
builds a critical point of view concerning the recent judicial and administrative decisions on
this area, especially from the Supreme Court and from the Superior Electoral Court.
Keywords: Electoral Law. Constitutional principles. Electoral authenticity. Representative
mandate. Electoral system. Electoral equality. Electoral legality.
1
APRESENTAÇÃO
A tese aqui desenvolvida deriva de um conjunto de inquietações, decorrentes de uma
atividade cotidiana no Direito Eleitoral e de uma proximidade com a sua aplicação há quase
quinze anos, bem como de uma série de perplexidades em relação à ausência marcante de um
tratamento jurídico adequado sobre os fundamentos constitucionais do Direito Eleitoral.
Somada a isso, está uma preocupação basilar com a questão da representação política e de seu
(inexistente) controle, com a consequente crise (fundante) da categoria e com a insatisfação
social quanto ao seu funcionamento.
A pesquisa parte também de uma percepção de que a atuação do Tribunal Superior
Eleitoral no alegado exercício de sua competência de expedir instruções para a “fiel
execução” da legislação eleitoral, sem sede constitucional específica, retira a segurança
jurídica e a previsibilidade das regras de disputa eleitoral, fundamental para a configuração
democrática de um regime político. No Direito Eleitoral, braço estrutural do Direito
Constitucional, pela atuação da corte sustentada pelo tribunal máximo, parece persistir uma
prática jurisdicional de construção da regra pelo Poder Judiciário, sem respeito aos
precedentes, sem coerência, sem consistência e sem unidade.1 Uma mistura pragmática
(talvez esquizofrênica) entre commom law e civil law.
Esse comportamento, de absoluto desrespeito às regras jurídicas e aos princípios
constitucionais, se revela, paradigmaticamente, na questão da fidelidade partidária. Talvez
porque as decisões tenham sido proferidas quando a pesquisa estava sendo realizada, a criação
jurisprudencial da hipótese de perda de mandato eletivo por desfiliação partidária sem justa
causa ocupa um espaço privilegiado neste trabalho.
Simbolicamente, o tema representa o motivo e a importância desta pesquisa. Ele
evidencia um protagonismo judiciário sem limites, envolto por argumentos morais subjetivos
1 A construção do Direito a partir da jurisprudência é característica do common law. Esse sistema se
diferencia do sistema romano-germânico, ou civil law, por ser, de regra, um direito não codificado e que assim
confere um maior campo de discricionariedade aos juízes (embora vinculados aos precedentes), por não levar em
conta a distinção entre direito público e direito privado nem contar com tribunais distintos para a apreciação de causas envolvendo a Administração Pública, pelo papel e pelo prestígio dos juízes como fundamentadores das
teses jurídicas (ou “oráculos do Direito”), pelo desenvolvimento do direito substantivo a partir dos writs e pela
ênfase no princípio acusatório como orientador da postura do juiz (CAENEGEM, Raoul C. van. I sistemi
giuridici europei. Tradução: Emmanuela Bertucci. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 49-64). Para Pietro Costa, o
common law se vincula a uma tradição em que o sistema normativo é visto como relacionado à ordem objetiva
das coisas, a uma ordem normativa contínua e imemorável (COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato
costituzionale. Napoli: Editoriale Scientifica, 2006, p. 12 e 21). Gianluigi Palombella acentua que no “âmbito
anglo-saxão o direito mantém maior autonomia em relação ao poder e à dimensão política”, marca do commom
law (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2005 [1996], p. 42).
2
e por uma visão perfeccionista da Constituição e do cidadão, um descaso com o texto
constitucional e com a sua construção democrática, um desprezo em relação ao Poder
Legislativo. O Poder Judiciário, neste ponto como em outros, resolve “tomar as rédeas” da
mudança da sociedade, iniciando uma eterna reforma política em face do legislador indolente,
sem enfrentar o debate público na arena parlamentar, formada por representantes de distintas
correntes ideológicas, e sem observar o processo constitucional de alteração de seu texto.
Para tentar justificar seus argumentos, apresenta um conjunto de conceitos ocos,
leituras falhas, visões distorcidas. Escapa da discussão jurídica central – a Constituição não
prevê, embora tenha sido longamente discutido na Assembleia Nacional Constituinte, a perda
de mandato nesta hipótese – e, criativamente, traz figuras como perda de mandato sem caráter
de sanção, a renúncia tácita, o sacrifício de direito, a titularidade partidária do mandato, todas
inadequadas. Dedica-se com mais afinco aos argumentos fáticos, a partir de premissas
completamente equivocadas: aduz que o eleitor vota em partido e não no candidato, que
decide seu voto pela corrente partidária, que estabelece uma relação com o partido. Nada
disso se sustenta na realidade brasileira.
Como o eleitor brasileiro não se ajusta à sua leitura específica do texto constitucional e
da mentalidade política nacional, o Poder Judiciário constrói um eleitor padrão. Como os
filósofos, segundo a leitura de Spinoza, “concebem os homens, efetivamente, não tais como
são, mas como eles próprios gostariam que fossem”.2 E como os filósofos, agora com Platão,
devem ser os monarcas soberanos, feitos de ouro, capazes de governar com a razão e fazer a
humanidade melhor: os filósofos devem governar, estabelecer as leis e aplicar a justiça.3
Exatamente o papel que o Poder Judiciário se arvora.
Mas a tese não é sobre a leitura jurisprudencial sobre a fidelidade partidária. Ou não é
apenas sobre isso. O Poder Judiciário, em matéria eleitoral, decide sobre outros temas de
maneira igualmente descompromissada e inconsistente. Deixou de ser uma anedota a
existência, em um mesmo tribunal eleitoral e na mesma sessão, de julgamentos sobre questões
assemelhadas, sempre por unanimidade, mas em sentidos opostos, a partir da distinção entre
os relatores. É cotidiano.
A visão da Justiça Eleitoral sobre a autenticidade eleitoral é desconcertante. Há uma
preocupação quase obsessiva com o escrutínio e, atualmente, com a identificação do eleitor,
buscando acabar com as fraudes no momento da votação e na contagem dos votos, custe o que
2 SPINOZA, Baruch. Tratado político. Tradução: Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone, 1994
[1677], p. 23. 3 PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006. Os “amantes do espetáculo da verdade” são os
únicos capazes de alcançar a essência das coisas, a sabedoria, que está além do entendimento e muito além da
opinião...
3
custar. Esse desassossego não se repete, no entanto, quanto à formação do voto. Não obstante
sua preocupação com o “voto consciente”, objeto de campanhas institucionais, os abusos não
são coibidos de maneira efetiva. Ora a “potencialidade”, ora a “proporcionalidade” – não a do
legislador, que enfim “pondera” princípios e direitos ao estabelecer a regra jurídica, mas a
“correta” do juiz filósofo – enfraquece o já frouxo ordenamento jurídico eleitoral. Contudo,
basta prova testemunhal em relação à compra de apenas um voto (ainda que por interposta
pessoa, apesar do comando normativo) ou a alteração de partido (ainda que dentro da
coligação que disputou a eleição) para a desconsideração completa da vontade manifestada
nas urnas.
Não há, tampouco, uma visão adequada sobre a liberdade para o exercício do mandato,
marca das democracias representativas. A partir do senso comum, é contestada a defesa de tal
princípio. A alegação é que isso implicaria um cheque em branco ao representante. Pois bem,
para além das possíveis refutações práticas que se poderia apresentar, trata-se de um princípio
constitucional. Deriva dos contornos dados ao mandato e à relação entre representante,
partido político e eleitorado pelos dispositivos constitucionais estabelecidos. E a liberdade
deve ser adequadamente compreendida. Não há vínculo jurídico entre eleitor e deputado, nem
obrigações jurídicas entre eles e entre eles e os partidos; mas há o necessário respeito às
regras constitucionais e ao interesse público, objetivado no ordenamento jurídico. Nesse
espaço, nem tão amplo, nem tão livre, é que o representante pode atuar sem amarras.
O sistema eleitoral brasileiro é origem de desconfortos e reclamações. Em nome da
“governabilidade”, do “absurdo” do multipartidarismo, afirma-se ser imperioso afastar a
representação proporcional e adotar o modelo alemão.4 Ora, em outros tempos, bastaria dizer
que a adoção do princípio majoritário para todos os cargos é inconstitucional. Em épocas de
desconsideração da Constituição, no entanto, outros argumentos são exigidos. E são expostos
nesta pesquisa. A “governabilidade” não é princípio constitucional, enquanto a necessária
participação das minorias do debate público e nas instituições políticas o é. O número de
partidos não caracteriza a democracia, o direito de oposição o faz. Isso deve ser considerado
na divisão do fundo partidário, no acesso ao rádio e na televisão e na avaliação de uma
cláusula de desempenho.
Tanto a legislação eleitoral como as decisões judiciais devem ter como fundamento
também o princípio da máxima igualdade na disputa eleitoral, decorrência do princípio
4 O sistema distrital misto, que funciona na Alemanha, é visto como a grande salvação para o “problema”
do sistema eleitoral brasileiro. Pretende-se importar uma solução tedesca para uma realidade completamente
distinta, como um turbante na corte brasileira, na leitura de Celso Antônio Bandeira de Mello (BANDEIRA DE
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 1051-1052).
4
republicano e que impõe o afastamento dos fatores irrelevantes na disputa eleitoral. Não é, ou
não pode ser, pelo ordenamento constitucional, o poder econômico o fator determinante para
o sucesso eleitoral. De igual forma o acesso aos meios de comunicação ou a ocupação de
cargos públicos. Nesse ponto, vale ressaltar, o texto constitucional presente macula-se de
inconstitucionalidade: o parágrafo quinto do artigo 14, com a redação dada pela Emenda
Constitucional 16/97, é inconstitucional. Inconstitucionalidade potencializada pela leitura
respeitosa e tímida do Poder Judiciário em face de sua incoerência com o parágrafo sexto, que
impõe o afastamento definitivo dos chefes do Poder Executivo para concorrer a outros
cargos.5 Embora o Supremo Tribunal Federal tenha definido que é constitucional, a reeleição
para os cargos do Poder Executivo ofende a um princípio constitucional – a igualdade – em
sua derivação estruturante no âmbito eleitoral: a igualdade na disputa eleitoral.
Outro ponto que impõe uma análise acurada é o relativo à produção das regras
eleitorais. Pode-se medir a qualidade da Constituição, como afirma Konrad Hesse, por sua
capacidade de possibilitar e garantir um processo político livre – o que se relaciona
fortemente com a normatização da disputa eleitoral –, além de “constituir, de estabilizar, de
racionalizar, de limitar el poder” e de assegurar a liberdade individual.6 Pois a Constituição o
faz, ao determinar uma anterioridade específica para a legislação eleitoral e uma reserva de
deliberação parlamentar sobre as regras do jogo. Todavia, o Poder Judiciário assim não tem
compreendido e atua, largamente, a partir de consultas e resoluções, na alteração das normas e
na construção de restrições a direitos.
A partir dessa problemática, esta pesquisa propõe-se apontar princípios constitucionais
estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro7 a serem utilizados como critérios para a
verificação da legislação eleitoral e das decisões judiciais neste âmbito. São cinco os
princípios constitucionais: o princípio constitucional da autenticidade eleitoral, o princípio
constitucional da liberdade para o exercício do mandato eletivo, o princípio constitucional da
necessária participação das minorias no debate público e nas instituições políticas, o princípio
constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral e o princípio constitucional da
5 Veja-se a decisão do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar da ação direta de
inconstitucionalidade 1805, julgada em 26 de março de 1998 e de relatoria do Ministro José Néri da Silveira. O item 10 da ementa é particularmente interessante: “Somente a Constituição poderia, de expresso, estabelecer o
afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condição para concorrer à reeleição prevista no § 5º do
art. 14 da Lei Magna, na redação atual”. Houvesse consistência e jamais o Poder Judiciário poderia ter afirmado
a perda de mandato por infidelidade partidária sem comando constitucional expresso. 6 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleção, tradução e introdução: Pedro Cruz
Villalon. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 21. 7 Compartilha-se da concepção de Alcides Munhoz da Cunha: “São as constituições dos Estados
verdadeiramente democráticos que fixam os fundamentos do Direito Eleitoral. Isto também se dá no Brasil”
(CUNHA, Alcides Munhoz da. Justiça Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Paraná Eleitoral,
Curitiba, n. 33, p. 23-33, jul. 1999).
5
legalidade específica em matéria eleitoral. A tese aqui apresentada é a afirmação destes
princípios a partir do “pano de fundo” que lhes dá substrato.
Serão analisados os conteúdos dos princípios e suas derivações, em um panorama
jurídico que pretende dar conta das principais regras eleitorais, relacionando-as com essas
decisões políticas fundamentais e apontando sua adequação ou sua desconformidade. A
aspiração, talvez bastante exagerada, é tentar estabelecer uma costura coerente entre as
disposições que normatizam a disputa eleitoral, a partir, sempre, das disposições
constitucionais.
São, portanto, duas preocupações que atravessam este texto: trazer elementos para
evitar a “maior das inconstitucionalidades”, com o “quebrantamento do espírito da
Constituição”8 e buscar elementos para estabelecer uma coerência das regras jurídicas do jogo
eleitoral.
Há uma ressalva que precisa preceder o texto: a pesquisa tem como base as escolhas
realizadas na Assembleia Nacional Constituinte e que passaram a compor o texto
constitucional brasileiro. Assim, a análise sobre os princípios constitucionais estruturantes do
Direito Eleitoral é realizada a partir do texto constitucional. Não é uma construção teórica
com pretensões perfeccionistas. Como Bruce Ackerman ressalta ao tratar da Constituição
estadunidense,9 esta pesquisa não parte de uma tábula rasa, nem se propõe a “describir lo
mejor de todos los mundos posibles”, mas do respeito pelas decisões tomadas nas
deliberações da Assembleia Nacional Constituinte, mesmo que seja possível pensar em
escolhas diferentes.
A pesquisa se coloca, em um momento em que isso pode parecer reacionário, em uma
posição de defesa da Constituição de 1988. De resistência às alterações formais e informais de
seu conteúdo, ao quebrantamento dos seus princípios, ao desprezo pelas decisões
fundamentais e pelo momento constituinte que dá origem ao texto, ao pragmatismo dos
8 Conforme expressão de Paulo Bonavides (BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia
participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 28). 9 “Estas respuestas neofederalistas no son las mismas que yo daría si estuviera escribiendo sobre una tabla rasa. En realidad, si solo me interesara por describir el mejor de todos los mundos posibles, no perderia
mi tiempo con el federalismo, „neo‟ o no. En cambio, dedicaría todas mis energías a elaborar las implicaciones
prácticas de mis propios ideales políticos (...). Sin embargo, el hecho es que no estoy escribiendo sobre una
tabla rasa. Como estadunidense que vive durante el bicentenario de la Constitución, me encuentro rodeado por
un complejo histórico de símbolos constitucionales y de estructuras institucionales que se originaron en el
período federalista. Nos guste o no, son estos símbolos y estructuras (ninguno de los cuales inventé yo) los que
fijan los términos de mis propios esfuerzos de comunicación política com mis ciudadanos”. ACKERMAN,
Bruce ¿Um neofederalismo? In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia.
Tradução: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1999 [1988], p. 176-216,
p. 178-179.
6
Poderes Executivo e Judiciário que desprestigia a Constituição e o Direito, que em geral
também propugna pela redução do papel do Estado na promoção dos direitos.
Para que não se compreenda equivocadamente as críticas à atuação do Poder
Judiciário, faz-se necessário explicitar aqui que não se deseja um juiz “boca da lei”, que se
atenha a uma falsa singela subsunção do fato à regra e não considere os valores e princípios
constitucionais. Ao contrário, deseja-se um magistrado comprometido com as promessas da
Constituição, com o projeto de sociedade ali proposto. Juízes que atuem, efetivamente, na
concretização dos direitos sociais. Um Poder Judiciário que respeite a Constituição, que a
defenda e a realize, nos termos por ela estabelecidos. O que se recusa, veementemente, é um
ativismo que escolhe onde inovar – ainda que diretamente ofensivo ao texto constitucional –
pela repercussão social que as decisões possam ter.
Como ressalva metodológica, saliente-se que o trabalho é de uma pesquisadora, e não
de quem toma a decisão de estabelecer a regra nem quem decide quando da sua aplicação.10
Trabalha-se sobre uma construção de princípios que estão, implícita ou explicitamente, no
texto constitucional. E sobre eles se descreve e se argumenta. Trata-se de um trabalho de
fundamentação e não de aplicação. Não se discutem métodos de aplicação dos princípios, não
se debruça longamente sobre a teoria dos princípios, não se trata da compatibilização entre
eles.
Não há um marco teórico, um autor determinado ou uma escola de pensamento
específica que fundamente esta pesquisa. Parte-se do texto constitucional brasileiro e utiliza-
se, para a construção dos argumentos, uma diversidade de autores, afastados no tempo e no
espaço, que se debruçaram sobre ideias de Direito, textos constitucionais, demandas sociais e
configurações jurídicas distintas.11
Ao lado disso, são utilizados autores que por vezes partem de outra realidade e que
fazem a defesa de instituições a partir de diferentes premissas. Suas categorias e conceitos
são, portanto, instrumentalizados, apropriados e costurados entre si com liberdade e com certa
10 “Me parece que no es menester aclarar y repetir que escribo como investigador y no como quien
decide, aunque es muy difícil para muchos distinguir entre comprobar lo que es y aprobar, o desaprobar, lo que puede llegar a ser. Es cierto que quien enseña política tiene que prepararse ante protestas u oposiciones. Ahora
bien, quien me contradiga, que intente criticar mis conocimientos y competencia, antes que mis convicciones”.
JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 4. 11 Assim como fez Clèmerson Merlin Clève em seu escrito sobre “O jurídico como espaço de luta”,
assumindo a “utilização de conceitos oriundos não apenas de uma mesma teoria ou corrente teórica. Não nos
preocupamos, nesse sentido, com a coerência limitadora; ao contrário, faremos uso da contribuição de autores
que, considerados sob uma ótica orgânica e totalizadora, são inconciliáveis. É que arriscamos o uso de parte do
universo conceitual deste autor, parte daquele, e parte daquele outro”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de
Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 185.
7
transcendência. Essa postura harmoniza com a invenção paulatina do tema, com suas
descobertas diárias e suas refundações episódicas.
Vale ressaltar, ainda, que a tese consiste, de fato, na segunda parte do trabalho, com o
elenco e o desenvolvimento dos princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral
brasileiro. A primeira parte, que trata das premissas legitimatórias, é formada por um conjunto
de quase resenhas, sobre temas fundamentais do Direito Constitucional e da teoria política,
pressupostos do desenvolvimento dos princípios constitucionais estruturantes do Direito
Eleitoral. Embora sejam questões de absoluta importância, não compõem o objeto central da
tese. Por conta disso, há uma seleção bastante arbitrária do enfoque e dos autores trabalhados,
permitindo apenas a instrumentalização de conceitos e categorias utilizados na segunda parte.
Assim, a insuficiência do tratamento dos assuntos é evidente – apenas indicam a base teórica
da qual se parte para a análise do texto constitucional brasileiro.
8
PARTE I
PREMISSAS LEGITIMATÓRIAS DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO
A construção da análise dos princípios estabelecidos pela Constituição, implícita ou
explicitamente, como estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, exige colocar em evidência
suas premissas. Para permitir a avaliação da conformidade da descrição e do desenvolvimento
desses princípios, faz-se necessário expor alguns entendimentos pressupostos à linha de
pensamento percorrida.
O elenco dos princípios apresentados na segunda parte do trabalho fundamenta-se em
determinadas concepções e só a partir delas pode ser compreendido. Nessa primeira parte,
pretende-se inicialmente evidenciar a noção de democracia que se acredita ter sido
incorporada na Constituição, o tratamento constitucional dado à representação política e o
significado sempre complexo do ideal republicano trazido pelo texto de 1988. Em seguida,
serão analisados com brevidade os princípios estruturantes do Estado brasileiro, a tensão entre
constitucionalismo e democracia e, ainda, o alcance de decisões tomadas por intangíveis
quando da elaboração da Constituição.
Conforme sublinhado na apresentação desse trabalho, as análises desenvolvidas nesta
primeira parte têm a extensão de pequenas resenhas, ainda que tratem de temas vastos da
teoria política e da teoria constitucional. Não se busca construir uma nova teoria sobre essas
questões nem se pretende apresentar uma leitura original de sua problemática. Trata-se,
singelamente, de expor os conceitos implicados na elaboração dos argumentos expostos na
segunda parte do trabalho. Assim, não serão esgotados os assuntos e nem serão trazidos todos
os autores relevantes. Em um recorte pessoal e arbitrário, serão apresentadas algumas ideias
que, para a pesquisa, se apresentam adequadas à Constituição brasileira.
Antes, no entanto, impõe-se evidenciar o que se comprende por princípios.
As decisões constituintes que estruturam o Estado se revelam como valores, como
princípios ou como regras constitucionais. Faz-se necessária uma compreensão de
Constituição como um conjunto de valores, princípios e regras, que conformam o
ordenamento jurídico e a vida em sociedade, com força normativa e concepção democrática.
Os valores constitucionais se evidenciam no preâmbulo e nos primeiros artigos da
Constituição: a justiça, a liberdade, a igualdade, a dignidade, a segurança, o bem comum, o
desenvolvimento, a solidariedade, o pluralismo e a garantia do exercício dos direitos sociais e
9
individuais. Esses fins formam o escopo da atuação dos poderes públicos e devem informar
também as relações privadas.
Embora os valores se manifestem em termos bastante abertos, fluidos, isso não leva à
sua superfluidade. Ainda que, de início, não se possa afirmar exatamente o que signifiquem,
nem se possa retirar deles uma conduta determinada, o significado dos termos limita, ao
menos negativamente, o agir dos órgãos de soberania. Além disso, esses fins últimos são
traduzidos em princípios constitucionais, que definem a ação ou o juízo.
Gustavo Zagrebelsky afirma que o princípio orienta normativamente a ação ou o juízo,
sendo seu critério de validade, exigindo um cálculo de adequação que torna a ação ou o juízo
previsíveis, ao menos em sua direção.12
São enunciados normativos, e embora apresentem
uma textura aberta, não permitem o arbítrio do intérprete, que está vinculado a vontades – da
Constituição, do constituinte – preexistentes reveladas pelos valores constitucionais.13
A eleição de valores pelo constituinte, e sua eventual concretização por princípios
densificadores e regras, não deve ser ignorada sob pena de a atuação do leitor e aplicador da
Constituição esvair-se de legitimidade.14
Os valores constitucionais se condensam em princípios constitucionais,15
dando aos
fins um sentido específico, apresentando um feixe de possibilidades e excluindo determinados
meios. Valores e princípios atuam de maneira distinta na efetivação do Direito.
Enquanto os valores servem como baliza para a interpretação de uma norma e para o
desenvolvimento legislativo, os princípios estão ao alcance do legislador e do juiz, se inexiste
regra específica. Ao legislador cabe a conversão do valor em uma norma, a “projeção
normativa”, com ampla margem de liberdade; ao juiz, resta apenas a eficácia interpretativa
dos valores positivados. No entanto, em relação aos princípios, o leque de opções do
12 “La massima del principio è: agisci in ogni situazione concreta che ti si presenta in modo che nella tua
azione si trovi all‟opera um riflesso del principio stesso” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori,
principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, Firenze, t. 1, n. 31, p. 865-897, 2002, p. 873). 13 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad,
2003, p. 143. 14 Não se ignoram as opções valorativas inerentes ao processo de aplicação do direito, ainda que
determinado por regras, em virtude da textura aberta da linguagem (NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y
Política: Una revisión de la teoría general del Derecho. Barcelona: Ariel, 1994, p. 87-100). O que não pode ser admitido é a substituição dos valores plasmados na Constituição por valores subjetivos, mascarados de
argumentos técnicos ou de uma concepção pessoal de justiça. Não se nega, tampouco, o caráter constitutivo da
interpretação do Direito (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 163), embora se reconheça a necessidade de respeitar as opções do constituinte e do
legislador democrático. 15 Ressalta Roque Antonio Carrazza que “o princípio constitucional deve ser continuamente „construído‟
(ou, se preferirmos, „descoberto‟) pelo aplicador e pelo intérprete, a partir dos valores consagrados no
ordenamento jurídico como um todo considerado. Do contrário, com o tempo, fragiliza-se a própria vontade da
Constituição” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25. ed. rev., ampl. e
atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 54).
10
legislador é reduzido, pois as regras que podem ser abarcadas pela projeção normativa estão
delineadas (mas não pré-determinadas) pelo significado do enunciado principiológico. O juiz
pode acessar diretamente o princípio, projetando-o normativamente, quando não há
desenvolvimento legislativo que apresente uma regra para o caso em apreciação.16
Os princípios são concretizados pelo legislador ou pelo juiz, não pela criação de um
direito novo, mas pela derivação de comandos normativos específicos a partir do leque de
possibilidades estabelecido pelos próprios princípios. A preferência para a concretização, no
entanto, é do legislador, e sempre há um conteúdo mínimo a ser respeitado.
Essa distinção entre valores e princípios precisa ser mais esclarecida. Para Manuel
Aragon, os valores não estabelecem, não predizem o conteúdo da sua projeção normativa. Já
os princípios são “fórmulas de derecho fuertemente condensadas que albergan en su seno
indicios o gérmenes de reglas”. “Las reglas derivadas de un principio están indeterminadas
en él, pero son „predictibles‟ en términos jurídicos”. O Poder Judiciário atua no controle da
discricionariedade do legislador, mas não pode inventar uma regra jurídica, embora possa
“descobri-la” a partir da formulação do princípio.17
As regras também orientam ações e decisões, mas indicam uma consequência jurídica
determinada. Derivam dos princípios como esses dos valores, em uma relação de inferência.18
A regra deve remeter-se a um princípio para sua justificação; caso seja contrária a um
princípio, antes de inconstitucional, a regra é “intrinsecamente irracional, arbitrária, ou
manifestamente injusta”.19
A compreensão exposada pela pesquisa não se coaduna com a visão de Robert Alexy e
de Ronald Dworkin em relação à teoria dos princípios. A visão de que o princípio se
diferencia da regra porque essa se aplica segundo uma lógica do tudo ou nada20
ou porque o
16 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Revista Española de Derecho
Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985, p. 26. 17 Ibid., p. 28. 18 Assim exemplifica Gustavo Zagrebelsky: “La regola che vieta la tortura presuppone il principio
dell‟intangibilità della dignità della persona e quest‟ultimo rinvia alla persona umana come valore”. E adiante:
“In astratto, si può dire che non c‟è regola che non risponda a un principio che non si colleghi a un valore. Il
principio è il medium nel quale troviamo un‟apertura „morale‟ al valore e un‟apertura „pratica‟ alla regola”. E,
mais enfaticamente, afirma que a congruência entre valores-princípios-regras é constitutiva da validade do
direito, algo que vem “prima dello stesso potere di fare una costituzione” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877).
Acentua Ruy Samuel Espíndola que “as regras são concreções dos princípios; são especificações regulatórias
desses; são desdobramentos normativos dos mesmos” (ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios
constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75). 19 ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei
principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877. 20 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2007 [1978]. Para o autor, princípio é “uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra
dimensão da moralidade”, e se diferencia logicamente da regra. “As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-
nada” e dos princípios não decorrem automaticamente consequências jurídicas (p. 36 e 39-40). Na leitura de
11
princípio configura um mandado de otimização21
não corresponde à visão aqui compartilhada
da função dos princípios. Pela leitura de Alexy e Dworkin, o comando constitucional
constante no artigo 5º, XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal – configuraria regra: não há possibilidade de sua aplicação ser
“ponderada” com outras normas, e sua lógica é de obediência ou desrespeito ao comando. Na
leitura aqui desenvolvida, o dispositivo normativo corresponde a um princípio, que deriva de
um valor (a liberdade) e estrutura todo o desenvolvimento das regras jurídicas que a ele se
vinculam (o Direito Penal, no exemplo apresentado).
Há, portanto, uma noção distinta de princípio que perspassa esta pesquisa.22
Nesta
perspectiva não há conflito entre os princípios, pois seu significado e seu alcance são
determinados concomitantemente, a partir do significado e do alcance dos demais. E os
princípios são o fundamento do sistema jurídico.
Com Geraldo Ataliba, “[o]s princípios são a chave e essência de todo o direito. Não há
direito sem princípios. As simples regras jurídicas de nada valem se não estiverem apoiadas
em princípios sólidos”. E os princípios constitucionais são intangíveis, são inalcançáveis até
pelo poder de reforma da Constituição.23
Para Ataliba, os princípios qualificam a ordenação
jurídica, dando à comunidade estatal uma determinada fisionomia político-social.24
Assim
também em Celso Antônio Bandeira de Mello, os princípios, sobre serem normas, conferem a
Gianluigi Palombella, princípios em Dworkin são tanto os direitos morais dos indivíduos como os marcos “da
normatividade expressa na totalidade do sistema interpretado à luz da tradição constitucional”, que servem de
limites ao poder (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 329 e 336-337). Herbert L. A.
Hart critica a visão de Dworkin, afirmando que a regra nunca traz todos os elementos para a decisão do caso: “a
função da regra é determinar apenas as condições gerais que as decisões jurídicas correctas devem satisfazer”.
As regras não funcionam na lógica do tudo ou nada, pois podem ser afastadas apenas em um caso concreto, sem perder sua validade (HART, Herbert L. A. Pós-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Tradução: A.
Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 320 e ss). 21 Para o autor, “principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible,
given the factual and legal possibilities” (ALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and representation.
International Journal of Constitutional Law, New York, n. 3, p. 572-581, 2005, p. 573; ALEXY, Robert. Teoría
de los Derechos Fundamentales. Tradução: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997 [1986]). A efetivação dos princípios, conforme sua compreensão esposada neste trabalho,
não pode depender das “possibilidades jurídicas e fáticas”. 22 A noção de princípio, neste trabalho, é aquela apontada tradicionalmente pela literatura jurídica
brasileira, como afirma Luís Virgílio Afonso da Silva (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e
equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1, p. 607-630, jan./jun. 2003, p. 612). O autor assinala as diferenças entre as concepções de Alexy e Dworkin e a
compreensão aqui compartilhada e utiliza o mesmo exemplo da legalidade em matéria penal. 23 ATALIBA, Geraldo. Mudança da Constituição. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 86, p. 181-
186, abr./jun. 1988. Com Sebastião Alves dos Reis, os princípios do Estado Democrático de Direito “iluminam”
a Constituição (REIS, Sebastião Alves dos. Comentários sobre princípios constitucionais fundamentais. In:
VELLOSO, Carlos Mários da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do (Coords.).
Princípios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins.
São Paulo: Lex, 2005, p. 929-936, p. 936). 24 ATALIBA, Geraldo. A lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p.
23.
12
direção do sistema jurídico e quem o ofende ou desconsidera na interpretação de uma norma
pratica “um ato de subversão”.25
Todos os princípios constitucionais estruturantes, gerais e setoriais, estão para além da
possibilidade de sua alteração pelos poderes constituídos. Em seu conjunto, tais princípios dão
identidade à Constituição e alterá-los implica modificar a essência da Constituição.
Afastando-os ou reduzindo-os, a Constituição passa a ser outra.
Entre as funções dos princípios, destaca Romeu Felipe Bacellar Filho, está a
“orientação ao legislador na elaboração de leis adequadas, e necessário indicativo para a
correta interpretação do ordenamento jurídico”.26
Não há mais questionamento sobre a normatividade dos princípios jurídicos no
chamado pós-positivismo.27
São normas jurídicas, que identificam valores ou fins, revelando
um conteúdo axiológico ou uma decisão política, como afirmam Luís Roberto Barroso e Ana
Paula de Barcellos.28
O sistema jurídico é um sistema aberto de regras e princípios, todos dotados de
normatividade.29
Os princípios informam a leitura adequada das normas jurídicas.30
São eles
que “dão identidade ideológica e ética ao sistema jurídico, apontando objetivos e caminhos”.31
Também dão o sentido do texto constitucional: “a interpretação da Constituição é dominada
pela força dos princípios”.32
Os princípios têm eficácia direta (incidência imediata sobre o
caso), eficácia interpretativa (dão o sentido e o alcance do significado possível das normas
25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Considerações em torno dos princípios hermenêuticos.
Revista de Direito Público, São Paulo, n. 21, p. 141-147, jul./set. 1972, p. 144. Assim também a posição de
Wagner Balera, para quem os princípios formam “como que uma frente comum apta a nortear o intérprete em
todas as direções para as quais pretenda se dirigir” (BALERA, Wagner. O princípio fundamental da promoção
do bem de todos. In: VELLOSO, Carlos Mários da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos
Rodrigues do (Coords.). Princípios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Lex, 2005, p. 989-998, p. 994). 26 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum,
2009, p. 23. André Ramos Tavares também acentua a função dos princípios como vetores da interpretação
(TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed, rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
100). 27 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. Op. cit., p. 75 28 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova
interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 327-378, p. 340. 29 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1085. 30 Gustavo Zagrebelsky afasta a compreensão do positivismo tradicional que atribui aos princípios apenas
uma função secundária, para corrigir ou integrar as regras jurídicas, afirmando que constitui uma “intrínseca
contradição de destinar às normas de maior densidade de conteúdo – os princípios – uma função puramente
acessória da que desempenham as normas cuja densidade é menor – as regras –.” (ZAGREBELSKY, Gustavo.
El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. 7. ed. Tradução: Marina Gascón. Madrid: Trotta Editorial, 2007
[1992], p. 117). 31 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 209. 32 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Op. cit., p. 167.
13
jurídicas) e eficácia negativa (afastam a aplicação de normas em desconformidade com seu
comando.33
A questão sobre a concretização dos princípios, pela determinação do seu significado e
de seu alcance, encontra-se no centro da tensão entre democracia e jurisdição constitucional.34
Ainda que não se possa negar a necessidade de reservar ao Poder Judiciário a capacidade de
dar um conteúdo concreto aos princípios para sua aplicação a um caso concreto (sob pena de
enfraquecer a normatividade dos princípios), deve-se reconhecer a primazia do consenso
democrático na concretização dos princípios, quando do seu adequado e consistente
desdobramento em outros princípios e em regras constitucionais e infraconstitucionais.
Os princípios podem se configurar como princípios jurídicos fundamentais, princípios
políticos constitucionalmente conformadores, princípios constitucionais impositivos e
princípios-garantia. Os princípios políticos constitucionalmente conformadores “explicitam as
valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”, revelando as opções políticas
nucleares. Neles estão incluídos os princípios definidores da forma de Estado, os princípios
estruturantes do regime político e os princípios caracterizadores da forma de governo e da
organização política, e, entre esses, os princípios eleitorais. Os princípios são densificados por
princípios constitucionais gerais e estes por princípios constitucionais especiais, que são, por
sua vez, densificados por regras. Assim, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, o princípio
democrático é condensado pelos princípios da soberania popular, da separação e
interdependência dos órgãos de soberania, da participação democrática dos cidadãos e do
sufrágio universal. Este último princípio constitucional geral é “concretizado pelos princípios
da liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades e imparcialidade nas campanhas
eleitorais”, princípios constitucionais especiais.35
O princípio democrático se relaciona com o direito de sufrágio, e este se conforma
pelos princípios da universalidade (em relação ao voto e à elegibilidade), da imediaticidade36
(o cidadão dá a primeira e a última palavra), da liberdade de voto (que também se revela no
33 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 318-320. 34 Tensão invencível (definitivamente, mas que exige respostas provisórias) de uma oposição inconciliável, segundo Vera Karam de Chueiri (CHUEIRI, Vera Karam de. O discurso do constitucionalismo:
governo das leis versus governo do povo. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). Direito e discurso: discursos
do direito. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 161-171, p. 169-170). 35 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p.
1090-1100. 36 Canotilho analisa o abandono do partido pelo representante sob o princípio da imediaticidade,
apresentando argumentos nos dois sentidos, sem defender nenhum deles: a favor da manutenção do mandato, o
princípio da representação (o deputado é representante do povo e não os partidos – e pode ser, no sistema
português, um candidato independente) e a favor da perda de mandato, a renúncia fática ao mandato por parte do
representante que abandona o partido (Ibid., p. 295).
14
princípio do voto secreto), da igualdade de voto (mesmo peso e mesmo valor de resultado37
),
da periodicidade e da unicidade.38
Manuel Aragon ressalta que todo o Direito é principialista, mas o Direito
Constitucional o é mais fortemente, por conta de seu caráter genérico e seu lugar central, que
faz com que seus princípios fundamentais sustentem os demais ramos do Direito.39
Tal compreensão dos princípios e do caráter principiológico da Constituição e do
ordenamento jurídico não combina com uma concepção puramente procedimental da
Constituição: impõe-se o reconhecimento de uma dimensão fortemente material aos
princípios constitucionais.40
Cabe ressaltar ainda que a Constituição contém espaços para a conformação do
legislador. Em algumas matérias, o texto constitucional traz apenas grandes linhas, deixando
propositalmente questões para serem debatidas e decididas posteriormente na esfera
democrática. Além disso, a utilização de conceitos abertos permite a adaptação da
Constituição às mudanças sociais.41
No entanto, conforme Konrad Hesse, a Constituição “establece, con carácter
vinculante, lo que no debe quedar abierto”, como os fundamentos da ordem jurídica, os
princípios reitores, a estrutura estatal, as competências de seus órgãos e o procedimento para a
tomada de decisões. Isso se considera decidido, fora do alcance do debate político.42
Esse desenho do que a Constituição insere no debate democrático e o que ela estabiliza
a partir da definição constituinte estabelece os contornos da questão entre o
constitucionalismo e a democracia.
37 Nesse ponto, Canotilho proclama a tendencial desigualdade do sistema majoritário quanto ao valor de
resultado dos votos, além de afirmar que o princípio da igualdade de voto afasta a possibilidade de adoção de
“condicionamento da possibilidade de representação à obtenção de percentagens globais mínimas” (Ibid., p.
297). 38 Ibid., p. 294-298. 39 ARAGON, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 14. 40 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. [Anais de teleconferência]. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de
Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 24-25. 41 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 18. 42 Ibid., p. 19.
15
1 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO
FUNDADO NO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E NO IDEAL REPUBLICANO
Para sustentar a afirmação de que a Constituição de 1988 estabelece um Estado de
Direito de cunho democrático e republicano, vale trazer algumas noções sobre a ideia de
Constituição, tomada aqui, simultaneamente, como decisão política fundamental43
e como
norma jurídica de hierarquia suprema.44
Segundo a teoria do poder constituinte e suas ficções, a Constituição funda o Estado,
estabelecendo desde o início, ab ovo, uma configuração política a partir da organização do
poder e de sua limitação, por meio da garantia de direitos, da estrutura dos órgãos de
soberania e da determinação de fins a serem perseguidos tanto pelas autoridades estatais como
pela sociedade.45
A noção de Constituição se vincula indissociavelmente à noção de liberdade e de
liberdades. Sua formulação por um documento solene, escrito e protegido contra alterações
cotidianas, revela a intenção de proteção de um conjunto de direitos e garantias, bem como o
estabelecimento da organização e do funcionamento do Estado.
Maurizio Fioravanti aponta os distintos modelos teóricos adequados às Constituições
que derivaram das Revoluções Francesa e dos Estados Unidos e, posteriormente, do
desenvolvimento da noção de Estado de Direito na Europa. Enquanto na primeira pensava-se
a liberdade por uma doutrina individualista, estatalista e anti-historicista, na segunda a
doutrina combinava elementos individualistas, historicistas e antiestatalistas. O Estado de
Direito, pensado a partir do século XIX, afasta o elemento individualista, com a combinação
de estatalismo e historicismo.46
O historicismo pressupõe um pensamento sobre as liberdades que parte da força
imperativa dos direitos, confirmados pelo tempo, pela história, que ficam para além da
vontade política contingente. A finalidade da associação política está na proteção das posições
43 SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Tradução: Jeffrey Seitzer. Chicago: Duke University Press,
2008 [1928], § 3. 44 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000 [1945], primeira parte, capítulo X. 45 Para Maurice Hauriou, a formação da Constituição vem da virtude jurídica do poder constituinte,
combinada com a liberdade dos súditos e com uma ideia objetiva: “hay una fundación del poder, que realiza una
idea objetiva y del cual se han apoderado los ciudadanos en condiciones tales que la fundación no es revocable
y que el poder no está ligado por su propia voluntad, sino por la de los súbditos y por el ascendiente de la idea
objetiva” (HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. ed. Tradução: Carlos Ruiz
del Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 19). 46 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Le libertà fondamentali. 2. ed.
Torino: G. Giappichelli, 1995, p. 17.
16
adquiridas historicamente, sem que haja a possibilidade de estabelecer – ignorando os direitos
históricos – posições jurídicas iniciais, a partir de um acordo de vontades. Essa concepção não
se coaduna com uma noção plena de poder constituinte. Segundo o autor, o modelo
individualístico coloca o indivíduo como o titular dos direitos, e tem as constituições como
instrumentos para garantir esses direitos e as liberdades individuais. A lei do Estado é a única
autoridade reconhecida, pensada a partir do contratualismo. A limitação dos direitos
individuais se coloca a partir dos demais direitos individuais e não de uma demanda social. O
poder constituinte aparece como originário e fundamental. Finalmente, o estatalismo vê o
Estado como condição de nascimento dos direitos e das liberdades. O pacto substitui o
contrato e o Estado, que se origina desse pacto, é tomado como absolutamente necessário para
a existência do corpo político. O poder e a liberdade nascem juntos, não se contrapõem.47
As combinações entre os elementos refletem a concepção de liberdade e de direitos, a
noção de Estado e de Constituição. O conteúdo das constituições dá pistas desses modelos e
de sua incorporação. O constitucionalismo contemporâneo, compreendido a partir da
Revolução dos Estados Unidos, com o estabelecimento de um texto normativo de hierarquia
superior em forma de um documento solene, tem como conteúdos necessários aspectos
relacionados à limitação e organização do poder e dos órgãos de soberania, com a construção
de um Estado cuja ação está vinculada ao Direito.
Eduardo García de Enterría acentua que a noção de Constituição se origina, na
Revolução Francesa e na Revolução dos Estados Unidos, com um conteúdo definido e a partir
de determinados pressupostos. Sua existência, segundo o artigo 16 da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão,48
está vinculada à garantia dos direitos individuais e à separação
dos poderes, e sua origem deve ser popular ou comunitária.49
Esse sentido perde-se durante quase todo o século XIX. A origem e o conteúdo não
mais caracterizam a Constituição, que passa a ser “como una mera exigencia lógica de la
unidad del ordenamiento”, em qualquer Estado, em qualquer época e em qualquer regime. O
conceito se formaliza e se torna abstrato.50
A indispensabilidade de determinados conteúdos,
no entanto, parece ressurgir na segunda década do século XX, com a compreensão de um
Estado vinculado a determinadas tarefas, impostas pelo texto constitucional.
47 Ibid., p. 18-28, 28-41 e 41-49. 48 Art. 16.º “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a
separação dos poderes não tem Constituição”. 49 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional.
Madrid: Civitas, 1983, p. 41. 50 Ibid., p. 42-43.
17
Maurice Hauriou aponta três elementos da ordem constitucional – as ideias morais,
políticas e sociais; o Direito da Constituição; e a organização constitucional dos poderes – e
três crenças constitucionais, crenças político-morais que são a força do sistema constitucional:
a ordem individualista (que limita inclusive a soberania do Estado e tem como princípio que
“cada cual viva su vida, con sus riesgos y peligros”); a doutrina do poder (que o divide em
poder minoritário, relacionado com a elite política e com as instituições, e poder majoritário,
que extrai sua legitimidade da eleição popular); e a liberdade política (concebida como
participação dos cidadãos no poder e não emanação de todos os poderes da nação).51
A Constituição, para Karl Loewenstein, deve conter a divisão das tarefas estatais em
diferentes órgãos, um mecanismo de cooperação entre os detentores de poder e um para
resolver os impasses entre estes (relacionado à soberania popular no constitucionalismo
democrático), um método de adaptação às mudanças sociais; e o reconhecimento expresso de
uma esfera de autodeterminação individual, com garantias para sua proteção.52
Georges
Burdeau acentua as regras de designação dos governantes previstas no texto constitucional,
que conformam a legitimidade dos governantes, instituem sua autoridade e determinam sua
competência.53
Com a configuração de um modelo de Estado que traz como finalidade a redução das
desigualdades sociais, a Constituição passa a incorporar outros elementos, relacionados à
garantia de direitos de igualdade. A partir dessa compreensão, não cabe dissociação entre os
termos “Estado social”, “democrático” e “de Direito”, assinala Manuel Aragon,54
pois os
elementos dessa fórmula definidora são inter-relacionados e se definem mutuamente.
A Constituição brasileira de 1988 traz, em seu conjunto de decisões políticas
fundamentais, os contornos do Estado e da democracia. Estabelece a divisão das tarefas do
Estado, os direitos e as garantias individuais, a previsão de sua modificação dentro de
determinados limites e as regras para a legitimação do exercício do poder político. Além
disso, o texto constitucional apresenta as posições políticas constitutivas,55
que configuram os
51 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 12-15, 49, 113, 187 e
203. Para o autor, o poder minoritário limita o poder majoritário, exceto na atuação revolucionária deste,
vinculada à legítima defesa, direitos de resistência à opressão e de insurreição e direitos de resistência ativa (p. 204-209). 52 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 153-154. Para o autor, o constitucionalismo representa a exigência de
responsabilidade do governo (p. 71). 53 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Tradução de Ramón Falcón
Tello. Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 79 e 91. 54 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 9-45. 55 Ronald Dworkin refere-se à noção de teoria política compreensiva como um conjunto sistemático de
posições políticas concretas e abstratas, formada por posições políticas constitutivas (valoradas em si mesmo,
que podem ser matizadas em face de outra posição política constitutiva) e posições políticas derivadas (que são
18
contornos do Estado e da concepção de democracia e de república, no preâmbulo56
e no artigo
1º.57
Assim, estabelece o Estado de Direito como fundamento da cidadania contemporânea,
uma noção de democracia, uma concepção de representação política, indicando os contornos
dessa relação, e um ideal republicano, a partir de uma forte noção de liberdade e de igualdade,
com a assunção de direitos e deveres de cidadania.58
Para Paulo Bonavides, a Constituição é
“a morada da justiça, da liberdade, dos poderes legítimos, o paço dos direitos fundamentais,
portanto, a casa dos princípios, a sede da soberania”.59
Trata-se de um Estado de Direito qualificado, que não se harmoniza com qualquer
conteúdo legal. Os poderes públicos e os particulares se submetem à lei regularmente
elaborada, mas desde que observados os valores e princípios constitucionais,
substancialmente considerados. Como afirma Luigi Ferrajoli, essa dimensão qualificada do
Estado de Direito importa, também, em uma alteração da natureza da democracia, que passa a
ser limitada e completada pelos direitos fundamentais.60
Com Jürgen Habermas, o Estado constitucional democrático configura-se como uma
ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua livre formação de opinião e de vontade, que
permite aos destinatários da ordem jurídica se verem como seus autores. A atuação estatal no
cumprimento de suas tarefas constitucionais, buscando pelo direito dar conta da desigualdade
fática, permite a efetivação igualitária dos direitos. E a amplitude dessa atuação elastece a
meios para atingir as posições políticas constitutivas, e que podem ser protegidas e absolutas). DWORKIN,
Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Tradução: Julio Montero y Alfredo Stolarz. Buenos Aires: La
isla de la luna, 2003 [1980/1990], p. 12-15, nr 1. 56 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir
um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. 57 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -
a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 58 Renato Janine Ribeiro estabelece uma distinção entre república e democracia: “enquanto a democracia
tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto é um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição ao sacrifício, proclamando
a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular”. Afirma, no entanto, que só pode haver
democracia quando o povo se responsabiliza por suas decisões, o que exige um forte componente republicano.
RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO,
Newton (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 13-25, p. 18 e 21-22. 59 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade (algumas observações sobre o Brasil). In:
FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso
Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 520-549, p. 520. 60 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Tradução: Pilar Allegue. In:
CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 19.
19
possibilidade de autolegislação democrática, intensificando a capacidade de autocondução da
sociedade.61
A Constituição passa a incorporar um projeto de ordem política, social e jurídica, que
não se mostra neutra e não requer obediência em face de sua forma, mas “diretamente em
virtude da afirmação de um quadro de valores que interpreta o tecido íntimo da sociedade”.62
Não se trata, no entanto, de plasmar no texto constitucional um ideal de vida boa e impor aos
cidadãos. Há, republicanamente, a escolha de valores objetivos, que permite que o indivíduo
possa realizar seus projetos e levar a sua vida, desde que não impeça os demais sujeitos de
igualmente o fazerem.63
A Constituição deve assegurar a garantia dos direitos fundamentais de qualquer
pessoa, indo além da representação de uma pretensa vontade geral ou de um segmento dela.64
Como aponta Luigi Ferrajoli, a Constituição serve para garantir o direito de todos, até mesmo
diante da vontade popular, para assegurar a convivência entre interesses diversos em uma
sociedade heterogênea.65
61 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional e o futuro da democracia. In:_____. A Constelação
pós-nacional. Ensaios políticos. Tradução: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 75-142.
Para o autor, em uma democracia informada pela ética discursiva, “só podem requerer validação normas que
possam contar com a concordância de todos os envolvidos como partícipes de um discurso prático”. E impõem-
se condições para o discurso: o acordo deve ser motivado por razões epistêmicas, não pode haver coação na
aceitação das consequências presumíveis e dos efeitos secundários, todos devem poder apresentar seus argumentos e a argumentação deve ser dar de maneira honesta (HABERMAS, Jürgen. Uma visão genealógica do
teor cognitivo da moral. In:_____. A Inclusão do outro: Estudos de teoria política. Tradução: Paulo Astor Soethe
e George Sperber. São Paulo: Loyola, 2004 [1996], p. 13-62, p. 49 e 58-60). Explica Celso Luiz Ludwig: “O
fundamento da ética discursiva habermasiana tem em conta que somente interesses universalizáveis podem
servir de base para a justificação de normas. A ética discursiva parte do suposto de que as normas são
racionalmente validáveis. São válidas as normas sobre as quais há consenso, obtido por meio do discurso prático.
Não se trata, no entanto, de qualquer forma de consenso. Será fundado o consenso obtido nos termos do critério
de universalização” (LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia
da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006, p. 110-111). 62 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 181. 63 Para Emerson Gabardo, a Constituição de 1988 traz um ideal de vida boa, relacionado à felicidade dos indivíduos e garantido por uma série de dispositivos constitucionais, como o que prevê o salário mínimo e a
prestação de serviços pelo Estado. Esse ideal, no entanto, não ofende a liberdade do indivíduo, pois se baseia em
conceitos e valores objetivos (GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a
Sociedade Civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 325-372). 64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Princípios constitucionais fundamentais – uma digressão
prospectiva. In: VELLOSO, Carlos Mários da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do
(Coords.). Princípios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva
Martins. São Paulo: Lex, 2005, p. 327-342, p. 333. 65 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Tradução: Pilar Allegue. In:
CARBONELL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 28.
20
1.1 UMA NOÇÃO DE DEMOCRACIA ADEQUADA À CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição brasileira de 1988 traz uma concepção de democracia, com contornos
singulares, que se marca profundamente pelas noções de liberdade e igualdade, pela soberania
popular e pelo pluralismo político. Não descura do ideal republicano, da noção de interesse
público e da responsabilidade dos cidadãos pelas decisões políticas, tomadas diretamente ou
pela atuação dos representantes.
A democracia na Constituição, ressalta Carlos Ayres Britto, é princípio, meio e fim.
Como princípio, está revelada no artigo 1º.66
Sua instrumentalização reside no artigo 2º.67
Seu
fim, seu escopo, resta no artigo 3º da Carta.68
É valor continente, que repassa seu conteúdo
para as demais normas constitucionais. 69
A partir do desenho constitucional, pode-se combinar na apreciação da democracia
brasileira as noções de Ronald Dworkin e de Carlos Santiago Nino. Para Dworkin,70
a
democracia exige, em primeiro lugar, tratamento dos cidadãos com igual respeito e
consideração e a possibilidade de que cada um tenha seus juízos próprios de moralidade
pessoal. A democracia implica uma ação coletiva que não se confunde com ações individuais,
mas que exige a consciência individual de pertencimento ao grupo, a quem a ação é
imputada.71
As decisões do grupo não são formadas a partir da leitura individual de cada
cidadão, dos seus desejos e preferências.
Tal leitura é bastante adequada à democracia constitucional brasileira. O valor da
igualdade e da liberdade, com os princípios normativos deles derivados e as inúmeras regras
constitucionais que os concretizam demonstram essa noção. Não há um projeto de vida boa
adotado pelo Estado que exclua os projetos pessoais de vida, impondo uma visão
66 Art. 1º “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -
a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 67 Art. 2º “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”. 68 Art. 3º “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 69 BRITTO, Carlos Ayres. Democracia como princípio, meio e fim. Palestra proferida na Jornada jurídica
em homenagem ao professor Jorge Miranda: os 20 anos da Constituição Brasileira de 1988, Brasília, 03 out.
2008. 70 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Op. cit. Mais precisamente no artigo
Igualdad, Democracia y Constitución: nosotros, el pueblo, en los estrados. 71 Essa noção ajusta-se com a noção de cidadão de Clèmerson Merlin Clève, não como aquele que pode
votar e ser votado, mas “o sujeito, aquele ser responsável pela história que o envolve”, que é ativo, reivindicante
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). Op. cit., p. 16).
21
perfeccionista. Ao mesmo tempo, de maneira complementar, a Constituição evidencia um
conteúdo republicano, que parte de uma comunidade de pessoas que partilham o mesmo
passado e o mesmo destino e que, portanto, impõe solidariedade e responsabilidade pelas
decisões coletivas. Ou seja, a Constituição não possui uma concepção axiológica totalizante,
mas contempla um projeto de alteração da realidade.72
A essa noção pode ser agregada a concepção deliberativa da democracia epistêmica de
Carlos Santiago Nino,73
também consistente com o texto constitucional. A justificação moral
da democracia reside em seu poder de transformar os interesses das pessoas de um modo
moralmente aceitável, entendendo a deliberação coletiva como capaz de alterar os interesses
individuais.74
Tal configuração democrática exige que todas as partes interessadas participem
na discussão e na decisão, de maneira razoavelmente igual e sem coerção, em que possam
expressar seus interesses e justificá-los com argumentos genuínos; que o grupo tenha uma
dimensão apropriada para permitir a maximização da probabilidade de um resultado correto;
que as maiorias e minorias se formem a cada matéria discutida e nenhuma minoria reste
isolada; e que os indivíduos não se encontrem sujeitos a emoções extraordinárias.75
Nino aposta no caráter moral da democracia, a partir de conteúdos morais e de
procedimentos deliberativos também configurados como morais.76
E ambos os autores retiram
parte do conjunto normativo superior do alcance das maiorias democráticas.
A Constituição brasileira de 1988 apresenta os contornos dessas condições da
democracia: a configuração dos direitos políticos e das liberdades políticas, com o sufrágio
universal e com os instrumentos de participação direta, a adoção de princípios que impõem a
igualdade na disputa eleitoral, a liberdade para a criação de partidos políticos e a garantia do
72 Para Emerson Gabardo, esse projeto contém uma proposta de felicidade para todos os seres humanos. A
felicidade, fundamento político do Estado e fim característico do Estado social contemporâneo, deve ser
objetivamente considerada (GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a Sociedade
Civil para além do bem e do mal. Op. cit.). 73 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996. 74 Daí sua ênfase no caráter epistêmico da democracia. Em Nino, “[l]a democracia tendría un valor
intrínseco no por lo que es, sino por lo que permite conocer” (GREPPI, Andrea. Consenso e imparcialidad.
Sobre la justificación moral de la democracia en el pensamiento de C. S. Nino. In: ROSENKRANTZ, Carlos; VIGO, Rodolfo L. (Comp.). Razonamiento jurídico, ciencia del derecho y democracia en Carlos S. Nino.
Ciudad de Mexico: Fontamara, 2008, p. 229-259, p. 242). Essa compreensão de democracia afasta a afirmação
de Herbert L. A. Hart de que as regras ou princípios jurídicos cujo conteúdo seja moralmente iníquo possam ser
válidos (HART, Herbert L. A. Pós-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Tradução: A. Ribeiro Mendes.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 331). 75 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 180. 76 Roberto Gargarella defende a democracia deliberativa, afirmando que ela impõe o tratamento de todos
como igual consideração e assim favorece a tomada de decisões imparciais, valorando o processo que antecede a
decisão (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder
judicial. Barcelona: Ariel, 1996, p. 157-158).
22
acesso direito de antena e ao fundo partidário, o sistema eleitoral proporcional e a divisão
federativa das atribuições.77
A democracia deve ser entendida como um método – o melhor – para, mediante o
diálogo, transformar os interesses particulares em preferências imparciais78
e, a partir da sua
adoção pelo constituinte, como um princípio normativo que condiciona a legitimidade do
poder político à busca de fins e à realização de valores determinados pela Constituição e a sua
legitimação à observância de regras e procedimentos.79
Para a concepção de democracia aqui compartilhada, a participação direta dos
indivíduos na tomada de decisões políticas é obrigatória sempre que possível, para minimizar
as distorções da representação e o hiato no processo de deliberação.80
Mas não se ignora que
os dois componentes principais da democracia contemporânea são os partidos políticos e as
eleições periódicas.81
A democracia, apontam Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos,
“supõe um poder responsivo ao interesse público (dimensão da responsiveness) e um poder
que é exercido em público e, por consequência, passível de controle público (dimensão da
accountability)”. Para os autores, três são os atributos da ordem democrática: estabilidade,
accountability e representatividade.82
O Direito e a política são intimamente relacionados com a moral, não apenas na
aplicação das normas a partir da construção das proposições para um raciocínio
77 Carlos Santiago Nino apresenta os obstáculos à implementação da democracia deliberativa – a estrutura
exclusivamente representativa, a apatia política, a baixa qualidade do debate público, a dispersão da soberania
causada pela descentralização, a intermediação imperfeita dos sistemas eleitorais, o sistema presidencialista e o
exagero no controle judicial da constitucionalidade. Apresenta como solução a adoção de instrumentos de democracia direta não reduzidos a respostas monossilábicas, com a redução das unidades políticas, a exigência
de participação política (sem ser excessiva para não implicar uma visão perfeccionista de virtude cívica),
proibição absoluta do financiamento privado e garantia de acesso aos meios de comunicação), tomada de decisão
em âmbito local e implementação em nível federal, a mudança para o parlamentarismo e a redução do controle
judicial de constitucionalidade à proteção das condições do procedimento democrático, da autonomia pessoal e
da constituição histórica, ou prática social constitucional (NINO, Carlos Santiago. La constitución de la
democracia deliberativa. Op., cit., p. 202-293). Não se defendem aqui alterações na configuração constitucional
da democracia brasileira, pois parte-se do desenho constituinte para se evidenciar os princípios constitucionais
estruturantes do Direito eleitoral. 78 Ibid., p. 202. Por assumir o caráter deliberativo da democracia brasileira, com todas as suas condições e
exigências, afastam-se as leituras elitistas da democracia, que veem a democracia como uma competição entre elites, embora não necessariamente a propugne, bem como aquelas que defendem o papel fundamental dos
partidos políticos na deliberação democrática. 79 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 281. 80 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 204-205. 81 ABAL MEDINA, Juan. La muerte y la resurrección de la representación política. Buenos Aires: Fondo
de Cultura Económica, 2004, p. 14. 82 ANASTASIA, Fátima; MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representação
política na América do Sul. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 11 e 15. As noções de responsiveness e
accountability não possuem uma tradução em português. Responsiveness se relaciona à capacidade de responder
a demandas e accountability se refere à possibilidade de controle e fiscalização.
23
justificatório,83
mas também na determinação do conteúdo do Direito do Estado, pois a
justificação da Constituição depende de seu conteúdo refletir princípios morais.84
A enumeração dos objetivos da República Federativa do Brasil, no artigo 3º do texto
constitucional, aponta para a adoção de princípios morais, relacionados à liberdade, à justiça,
à solidariedade,85
à igualdade e à dignidade. De igual forma o fazem o preâmbulo, o artigo 1º,
o artigo 5º e seus incisos e outras disposições constitucionais que justificam o reconhecimento
da Constituição como norma jurídica máxima. Há compartilhamento de uma moralidade, mas
de uma moralidade objetiva, relacionada aos valores públicos, sem que isso derive da
imposição estatal de um conteúdo específico.
A democracia não aniquila o espaço de autonomia individual. Antes o garante, ao
permitir que, democraticamente, o cidadão possa se expressar no debate político e expor – ou
não – suas convicções pessoais a respeito do que deve ser o conteúdo da ordem jurídica e da
atuação do Estado. A exigência da responsabilidade pelas decisões tomadas pela sociedade
não é uma ofensa à autonomia – faz parte do ideal republicano, da ação coletiva comum.
A concepção democrática tampouco abarca todas as opções e possibilidades
individuais. O debate político e a definição por decisões coletivas limitam-se às instituições e
prescrições de condutas necessárias para a convivência social que assegure tratamento com
igual consideração e respeito a todos os cidadãos.86
Há, portanto, questões que não são – e não
podem ser – colocadas no debate democrático. Há temas que a deliberação democrática não
alcança, pois estão para além do espaço de determinação coletiva.
As práticas democráticas não asseguram por si a legitimidade das decisões políticas. A
decisão não se legitima apenas pelo seu procedimento, embora a atenção ao método
democrático de tomada de decisões políticas exigido pela Constituição seja elemento
essencial. Os indivíduos mantêm liberdades e garantias, um espaço de escolha, cujo conteúdo
e alcance não são passíveis de deliberação, cuja proteção e intangibilidade são alheias às
maiorias democráticas.
83 NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Política: Una revisión de la teoría general del Derecho. Op.
cit., p. 87-100. 84 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 44-45. 85 Compreende-se aqui a solidariedade de maneira objetiva, com o cumprimento de deveres jurídicos,
exigindo-se do cidadão menos do que a incorporação de um sentimento solidário pessoal. Não se compartilha a
visão de Sérgio Luiz Souza Araújo, assim exposta: “Para a construção da sociedade fraterna, mister se faz, em
primeiro lugar, que o indivíduo crie uma espécie de justiça interior, institucionalizada, obrigatória, que torne
efetiva a solidariedade, isto é, que procure vencer em si mesmo o egoísmo e a avareza” (ARAÚJO, Sérgio Luiz
Souza. O Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 e sua ideologia. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 36, n. 143, jul./set., p.5-14, 1999, p. 11). 86 Dicção de Ronald Dworkin. DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Op. cit., p.
21.
24
Assim também se configuram as decisões políticas estruturantes na instituição de um
Estado democrático. Essas disposições constitucionais estruturais, que estabelecem de forma
democrática e com conteúdo democrático a organização do Estado e dos órgãos de soberania,
as tarefas estatais, o estatuto de direitos e garantias e os princípios da disputa democrática,
garantem e fortalecem a democracia. Devem ser protegidas das maiorias eventuais, por serem
compartilhadas pelos membros da sociedade e refletirem ideais comuns e por permitirem a
produção e manutenção do povo – como agente comunitário integrado – formado por
cidadãos iguais.87
Essa noção permite combinar os três elementos do constitucionalismo em um sistema
de apoios recíprocos. O processo democrático, o respeito aos direitos individuais e a
preservação da prática jurídica não se encontram em tensão, mas se complementam e
fortalecem: a discussão moral, base do processo democrático, tem como pressupostos a
autonomia, a inviolabilidade e a dignidade e gera uma constituição ideal de direitos densa que
permite maximizar o valor epistêmico da democracia; assim também a proteção à prática
constitucional assegura a eficácia das decisões democráticas e garante os direitos
reconhecidos por essa prática e pelas decisões, bem como a discussão coletiva e o respeito aos
direitos geram um consenso que promove a prática constitucional.88
A Constituição traz em si esses elementos, permitindo, e até certo ponto promovendo,
o constitucionalismo assim concebido. As condições normativas estão postas. A realidade,
possivelmente por uma falta de identificação do autor com a sua obra, do povo com a
Constituição, e pela fraca percepção do papel normativo do texto constitucional, ainda não se
mostra assim.
A democracia constitucional brasileira não se caracteriza simplesmente pela
identificação com a vontade da maioria.89
Ainda que adote, nas hipóteses de decisões políticas
submetidas ao debate público, a regra da maioria – e algumas vezes exija uma maioria
qualificada para determinadas matérias – a Constituição não se contenta com esse mecanismo.
Parte de uma democracia inclusiva, evidenciada pelo princípio do pluralismo político (e pelo
87 Ibid., p. 45, 51 e 64. 88 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 296-303. Assim
também para Ronald Dworkin, que vê em sua concepção communal de democracia a harmonia entre a exclusão
de determinadas matérias da arena política e a democracia (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y
Democracia. Op. cit., p. 78). 89 Stephen Holmes afirma que a democracia não se identifica com a imposição da vontade majoritária,
mas revela-se como o governo por discussão pública, constituída pelo dissenso público. A vontade democrática –
e, portanto, soberana – é a que deriva de um debate robusto e aberto, no qual a oposição tenha participação
efetiva na defesa de seus pontos de vista (HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia.
In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia. Tradução: Monica Utrilla de
Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1999 [1988], p. 217-262, p. 254-255).
25
consequente pluralismo partidário) e pela adoção do sistema eleitoral proporcional, que impõe
a convivência institucional de distintos modos de pensar e garante um espaço político efetivo
para as concepções de vida não hegemônicas.
A democracia brasileira demonstra-se capaz de realizar suas promessas deliberativas.
Para Fávila Ribeiro, a noção de democracia vinculada à participação exige “um direito de se
fazer ouvir e com uma possibilidade real de acolhimento da opinião exposta”, sob pena de se
tratar de “um compromisso falacioso e de uma ignóbil fraude nos enunciados políticos”.90
A
Constituição brasileira assim configura o regime democrático, permitindo a participação das
minorias no debate político e nas instituições e promovendo a convivência de discursos
dissonantes sobre o que está para além dos princípios estruturantes do Estado brasileiro.
Além desse aspecto fundante da forma de convivência da sociedade brasileira e da
determinação dos limites do poder público e da própria ordem jurídica, a democracia também
se reflete em um princípio jurídico.
Para Manuel Aragon, o princípio democrático atua como princípio material e como
princípio estruturante: a democracia material é complementada pela democracia
procedimental. É o princípio mais fundamental de todos,91
e é, ao mesmo tempo, um princípio
sobre a Constituição (que “juridifica” a democracia e exige procedimentos democráticos para
sua alteração), um princípio jurídico da Constituição (que “juridifica” o poder constituinte e a
soberania popular, com conotação procedimental) e um princípio jurídico na Constituição
(onde atua como princípio de legitimidade, de caráter material – em relação aos direitos
fundamentais – e estrutural – quando se refere à divisão dos poderes, à composição e eleição
dos órgãos representativos –, revelando-se suporte de validade da Constituição e núcleo de
compreensão do texto constitucional e diretriz do ordenamento jurídico).92
90 RIBEIRO, Fávila. Pressupostos constitucionais do direito eleitoral brasileiro no caminho da sociedade
participativa. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do
Rio Grande do Sul, 1990, p. 14-58, p. 16. Essa a noção de bom governo de John Suart Mill: em que a soberania
está na comunidade, em que cada cidadão é chamado a participar das decisões políticas e da gestão da coisa
pública. A atuação ativa dos cidadãos é incentivada no governo de muitos, a liberdade é fortalecida quando
ninguém é tratado com privilégio e o espírito republicano é alimentado pelas oportunidades de exercício de
função social/pública, pela atribuição de obrigações públicas (MILL, John Stuart. Governo Representativo. Tradução: E. Jacy Monteiro. São Paulo: Ibrasa, 1964 [1861], p. 39 e 46-49). 91 Segundo Carlos Ayres Britto, o princípio da democracia é um megaprincípio, o valor-dos-valores, o
valor-síntese da Constituição (BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
181-186). 92 ARAGON, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 29-31. O autor ressalta a
imbricação entre forma e conteúdo democráticos, a dimensão instrumental e a dimensão substantiva da
democracia: “La dimensión material de la democracia incluye, inexorablemente, a los dos valores materiales
que la Constitución proclama (libertad e igualdad), sin cuya realización (siempre inacabada y siempre en
tensión, pero que siempre también ha de ser „pretendida‟) no alcanzan efectividade las garantías
procedimentales u organizativas, o, si se quiere, la dimensión estrutural de la democracia” (p. 32).
26
Segue Aragon afirmando três âmbitos de eficácia jurídica do princípio democrático:
ele atua como vetor no desenvolvimento da Constituição e na interpretação do ordenamento
jurídico como princípio geral-global; como princípio geral-setorial, como corolário do
princípio geral-global, também baliza a interpretação e serve como razão para afastar normas
contrárias;93
e, na sua aplicação a organizações não públicas, como partidos e sindicatos, o
princípio se manifesta em sua dimensão estrutural, mas não impõe aos particulares a sua
dimensão material.94
Essa última noção não se coaduna com uma leitura mais ampliada dos princípios
estruturantes e dos fundamentos da ordem constitucional. Não parece ter razão o autor em
relação ao tratamento dado à última hipótese. Nem os partidos políticos, nem sindicatos, nem
outras organizações privadas que cumprem função pública podem se furtar à plena
observância do conteúdo do princípio democrático – a elas também se estendem a realização
dos valores da liberdade e da igualdade. Trata-se da eficácia horizontal do princípio
democrático em sua inteireza.
A leitura do princípio democrático, considerado juridicamente, se identifica, para
Jorge Reis Novais, com a premissa majoritária (“legitimação do título e exercício do poder
político a partir da livre escolha maioritária do eleitorado”) e a de parceria (“a todos os
cidadãos é dada a oportunidade de se constituírem em parceiros activos e iguais de um
autogoverno colectivo”). As premissas devem ser combinadas, de maneira que nem sempre
prevaleça a decisão da maioria e que as posições mais frágeis não sejam simplesmente
opostas à maioria, mas tenham garantida sua escolha pessoal de modo de vida.95
Essa concepção se coaduna perfeitamente com o contorno constitucional da
democracia brasileira, e com as concepções de Ronald Dworkin e Carlos Santiago Nino. Uma
democracia que parta da liberdade e da igualdade, que compartilhe valores públicos, mas não
imponha concepções particulares de vida, que incorpore uma noção de solidariedade, sem
aniquilar a autonomia individual dos cidadãos.
Ainda que a democracia brasileira, conforme o texto constitucional, pressuponha um
cidadão republicano e solidário, que se responsabilize pelo destino político da coletividade,
93 Nesse ponto Manuel Aragon se refere à Sentença 32/85 do Tribunal Constitucional Espanhol, que, em
seu fundamento jurídico 2, extrai do princípio do pluralismo democrático a necessária composição proporcional
das comissões informativas municipais para o resguardo dos direitos das minorias, acentuando a possibilidade de
projeção normativa dessa dimensão do princípio democrático pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário
(Ibidem, p. 35). 94 Ibid., p. 33-36. 95 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 32-
35.
27
que se comprometa com a política e participe ativamente, que tenha interesse e espírito
público,96
não lhe exige mais que uma virtude pública, decorrência do princípio republicano.
A democracia brasileira não é puramente representativa, embora seja esta a sua tônica.
A Constituição prevê formas institucionais de representação direta, algumas um tanto
retóricas, mas permite a criação de outras formas de intervenção cidadã na tomada de decisões
políticas.
As previsões de participação direta pela Constituição, nos incisos do artigo 14, são,
pela configuração constitucional e pela prática política, pouco mais que veleidades. O
plebiscito e o referendo, consultas populares, dependem da vontade da representação política.
A iniciativa popular de leis exige um consenso popular bastante superior ao necessário para a
eleição de um representante. A efetivação prática desses chamados institutos de democracia
direta bem demonstra a sua inocuidade.97
A Constituição prevê outras formas de participação popular na vontade política,
relacionadas à Administração Pública,98
bem como permite a criação de outros
instrumentos.99
A efetividade desses instrumentos, no entanto, dependem de maneira
acentuada da incorporação do ideal republicano pelos cidadãos.
Pode-se afirmar, com Reinhold Zippelius, que a extensão e a complexidade da
organização estatal levam à exigência da democracia representativa. A adoção da
representação política apresenta vantagens teóricas, com ganhos em capacidade de ação,
racionalidade100
e controlabilidade (ainda que condicionada à publicidade dos debates
parlamentares e limitada à confirmação da confiança em futura eleição),101
que convivem com
fortes elementos oligárquico-elitistas.102
96 Do que dependem as instituições políticas, para John Stuart Mill (MILL, John Stuart. Governo
Representativo. Op. cit., p. 7-9). 97 Sobre o assunto ver SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e democracia - Tijolo por tijolo em um
desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum,
2007. 98 Conferir SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o
direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 99 Dedicou-se ao tema, em pesquisa de mestrado e doutorado, Marcelo Minghelli. (MINGHELLI,
Marcelo. O Orçamento Participativo na Construção da Cidadania. Curitiba, 2004. 131f. Dissertação (Mestrado
em Direito do Estado), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná; MINGHELLI, Marcelo.
Estado e Orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático.Curitiba, 2009. 216f. Tese (Doutorado em Direito do Estado), Setor de Ciências Jurídicas,
Universidade Federal do Paraná). 100 O autor, no entanto, afirma que a prática parlamentar desmente essa vantagem: não se verifica no debate
parlamentar a busca por uma solução racional e racionalmente construída, observando-se uma postura de defesa
ou ataque ao governo, não importa a matéria em debate, ou a preservação de carreiras políticas e de ambições
eleitorais (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução: Karin Praefke-Aires Coutinho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994].p. 234-235). 101 Há, no entanto, uma “retroação” democrática da ação representativa quando o povo decide de tempos
em tempos, em intervalos curtos, sobre a continuidade de atuação dos representantes (em nova nomeação) ou
sobre assuntos específicos. Essa retroação não é eficaz quando determinados temas são excluídos dos debates
28
Essa leitura favorável à democracia representativa também é feita por Norberto
Bobbio. A democracia representativa seria uma maneira de institucionalizar o conflito,
permitindo que as diferentes concepções de vida possam participar em condições adequadas
da formação da vontade política, sem o apelo plebiscitário às escolhas entre o sim e o não, que
não importam em responsabilidade dos cidadãos, limitados em sua escolha que sequer
necessita justificação, nem em responsabilidade dos governantes, que se apoiam na “voz do
povo”.103
Em sentido oposto, apresentando uma forte crítica à democracia representiva e a
identificando como um despotismo eletivo, Paul Hirst afirma que a participação do povo se
limita a escolher aqueles que ele supõe que irão decidir em determinado sentido.104
Antonio D‟Atena contrapõe à visão de que a democracia representativa é uma
democracia incompleta ou um sucedâneo da democracia em face de imposições técnicas, a
realidade da democracia direta contemporânea, forçosamente monossilábica e os elementos de
responsabilidade dos representantes e de “resfriamento” e de “racionalização” das decisões
populares. A democracia representativa, assim, não é um minus, mas um aliud.105
A democracia representativa, de fato, não permite uma intervenção real do povo na
tomada de decisões políticas. A eleição, componente de uma visão democrática formal,
permite que se decida quem irá decidir, não mais que isso.
A Constituição de 1988 combina – embora de maneira fraca – a democracia
representativa com instrumentos de participação direta. Se não o faz de uma maneira mais
radical, tampouco o veda. A cidadania, ao tomar as rédeas republicanas de seu destino,
assumindo-se como sujeito da vontade política e não como seu objeto, pode acentuar o caráter
democrático da democracia brasileira, sem necessitar substituir ou ignorar o texto
constitucional.
parlamentares por configurarem um consenso entre os partidos – nesses casos, os partidos, em cartel, ignoram a opinião pública contrária. Alguns exemplos apresentados pelo autor são as questões referentes ao financiamento
dos partidos e o vencimento dos deputados (Ibid., p. 242-243). 102 Ibid., p. 230-249. 103 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: A filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro:
Campus, 2000. Capítulo: Democracia representativa e democracia direta. 104 HIRST, Paul. A democracia representativa e seus limites. Tradução: Maria Luiz X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 34. 105 D‟ATENA, Antonio. Il principio democratico nel sistema dei principi costituzionali. In: MIRANDA,
Jorge (Org.). Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v. 1,
p. 437-456, p. 441-444.
29
1.2 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E SUA MITOLOGIA
A instrumentalização da cidadania e da soberania popular, em uma democracia
contemporânea, faz-se pelo instituto da representação política. E a “transformação” da
soberania popular em representação se dá em grande por meio da eleição. Esse tema é cercado
de ficções e mitos, o que leva tanto a uma insatisfação social como ao seu funcionamento
quanto a críticas em relação à sua disciplina jurídica.
O povo da soberania “popular” é considerado uma unidade. Não é identificado como a
soma de indivíduos. Jurídica e constitucionalmente a representação “representa” o povo (e
não todos os indivíduos). Além disso, não há propriamente “mandato”, pois a função do
representante se dá nos limites constitucionais e não se determina por instruções ou clásulas
estabelecidas entre ele (ou o conjunto de representantes) e o eleitorado. As condições para o
exercício do mandato e, no limite, seu conteúdo, estão pré-determinadas na Constituição e
apenas nela. Estritamente sequer é possível se falar em “representação”, pois não há uma
vontade pré-formada. Não se “representa” algo ou alguém definido perante outrem. Há a
construção de uma vontade, limitada apenas aos contornos constitucionais.
Na passagem da soberania do monarca para a soberania popular ou nacional o
soberano deixa de ser reconhecido por uma ordem pré-existente para passar a ser aquele que
estabelece a ordem, que encarna o poder constituinte, “capaz de cancelar o passado e inventar
o futuro”.106
Apesar disso, ressalta Maurizio Fioravanti, a compreensão de soberania no
sentido moderno não se coaduna com uma noção de poder absoluto, seja de quem for.107
Nesse sentido, a expressão “soberania popular” reveste-se de caráter mais simbólico
que real, pois pressupõe um sujeito coletivo capaz de exprimir uma vontade unívoca. Um
“povo”, uma coletividade, que seja capaz de se manifestar sobre as decisões políticas de
maneira inequívoca.
A soberania popular como vontade coletiva mostra-se assim cercada de noções
hipotéticas ou ficções jurídicas e políticas. É uma “mitologia jurídica”,108
e uma das difíceis
de morrer.109
Mas vale como afastamento de outras imposições, ao menos as evidentes,
106 COSTA, Pietro. Elezioni, partecipazione, cittadinanza: un‟introduzione storica”. La cittadinanza
elettorale. IX Convegno internazionale della S.I.S.E., Firenze, 2006. Disponível em: http://ius.regione.toscana.it/
elezioni/Documenti/IXConvegnoSISE/Costa.pdf. Acesso em: 18 out. 2009. 107 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Op. cit., p. 121. Para o autor a
soberania passa a ser compreendida como soberania estatal. 108 GROSSI, Paolo. Mitologie Giuridiche della Modernità. Milano: Giuffrè, 2001; GROSSI, Paolo. Il
costituzionalismo moderno fra mito e storia. Giornale di Storia costituzionale [storia, giustizia, costituzione –
per i cinquant‟anni della costituzionale], Macerata, n. 11, p. 25-52, 1 sem. 2006. 109 A representação política, a autonomia do sujeito, a soberania popular, a autodeterminação democrática,
a igualdade jurídica são mitos jurídicos, cristalizados pelo constitucionalismo, naturalizados pela ciência jurídica
30
quando se considera o soberano como aquele “que decide cuál es la idea de Derecho válida
en la colectividad”110
e se impede a imposição sem o consentimento popular.
A exigência de consentimento para a sujeição a normas jurídicas marca a noção de
liberdade política.111
Hans Kelsen aponta a reação contra a heteronomia como postulado da
democracia.112
Para Bernard Manin, o “principio de que toda autoridad legítima procede del
consentimiento general de aquellos sobre los que va ejercerse” é o mote das três revoluções
modernas. Os sistemas eletivos permitem a reiteração constante desse consentimento, a partir
da aceitação do método de seleção e a cada eleição, além de criar “en los votantes una
sensación de obligación y compromiso hacia quienes han designado”.113
O princípio da representação popular deriva da noção moderna de igualdade. Para
Maurice Duverger, apenas uma escolha pode permitir que um homem possa dirigir os outros,
e essa escolha deve ser periodicamente renovada, “a fim de que os governantes não se sintam
demasiado independentes dos governados e que a representação dos segundos pelos primeiros
seja sempre mantida”.114
A soberania popular, os procedimentos eleitorais legitimadores,115
o princípio da
representação popular e da participação e os instrumentos de democracia direta116
concretizam
o princípio democrático e dão o contorno de seu conteúdo.117
e endeusados pelo positivismo historiográfico. Pela combinação da concepção do progresso histórico e científico
com a dignidade científica do Direito (e sua consequente e natural “neutralidade”), os institutos jurídicos do
presente são apresentados como ápice de um desenvolvimento histórico de aperfeiçoamento constante. Como
acentua Ricardo Marcelo Fonseca, a historiografia jurídica positivista cumpre o papel de legitimadora do Direito
presente. Usa-se esse discurso para naturalizar determinados institutos jurídicos e legitimá-los pela tradição,
sacralizando-os (FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2009, p.
62-63). 110 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Op. cit., p. 46. 111 Assim a compreensão de Georges Burdeau: “La libertè politique est la situation de l‟individu qui n‟est
socialement assujetti qu‟à sa volonté, c‟est-à-dire, pratiquement, qui participe au gouvernement. Elle ne se
définit plus, comme la libertè naturelle, par l‟autonomie de la personne humaine, mais par la place et le rôle de
l‟individu dans le régime politique. Elle trouve son climat favorable dans la démocratie qui est le régime où la
part des volontés individuelles est la plus grande dans la formation des décisions étatiques” (Ibid., p. 18). 112 KELSEN, Hans. A democracia. Tradução: Ivone Castilho Benedetti et alii. São Paulo: Martins Fontes,
2000 [1955], p. 27. Trata-se do ensaio “Essência e valor da democracia”, publicado em 1920 e revisto em 1929. 113 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Tradução: Fernando Vallespín. Madrid:
Alianza Editorial, 1998 [1995], p. 108 e 110. Para Pierre Bourdieu, no entanto, as condições da democracia
representativa colocam o cidadão entre a “demissão pela abstenção” e o “desapossamento pela delegação”
(BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In:_____. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 163-207, p. 163). 114 DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos. Instituições Políticas e Direito Constitucional –
I. Tradução: Fernando Ruivo e Fernando Augusto Ferreira Pinto. Coimbra: Almedina, 1985 [1980], p. 58.
Acentua Max Weber que uma relação social se marca pela representação quando “la acción de un partícipe
determinado se impute a los demás” (WEBER, Max. Economía y sociedad. 2. ed. Tradução: José Medina
Echavarría, Juan Roura Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. Ciudad de
México: Fondo de Cultura Económica, 1964 [1922], p. 37). 115 Para J. J. Gomes Canotilho o sistema eleitoral é constitutivo do princípio democrático e está vinculado à
reserva de Constituição (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Op. cit., p. 300-301).
31
A promessa de soberania popular exige direção e controle do povo em relação ao
exercício do poder político. Isso impõe a publicidade dos programas e da atuação dos partidos
e dos representantes,118
também para que o eleitorado faça a sua escolha a partir do
conhecimento dos “motivos, fins e consequências presumíveis das actividades e dos planos
políticos”.119
Apenas dessa forma é possível, para Norberto Bobbio, afirmar que um regime é
democrático: o poder precisa ser exercido em público.120
Mas não é apenas a noção de vontade coletiva que deve ser problematizada na
concepção de soberania popular. A segunda parte da expressão, o “povo”,121
também
demanda atenção. Mas e quem é esse povo do radical do termo democracia e do adjetivo do
substantivo soberania?
Essa questão foi enfrentada por Friedrich Müller. O autor apresenta quatro conceitos
de povo – povo ativo, como instância global de atribuição de legitimidade, povo ícone e como
destinatário de prestações civilizatórias do Estado – e defende a utilização do termo como
“conceito de combate”. A primeira compreensão se relaciona com a autodeterminação; a
segunda é a que legitima o exercício do poder político por representantes e por agentes
públicos; a noção icônica se refere ao povo como uma unidade homogênea que, como um
carimbo, avaliza o exercício do poder; a quarta indica aqueles que são alcançados pela ação
estatal. O povo como conceito de combate impõe uma tarefa para legimitar as constituições
chamadas democráticas: aproximar o termo “povo” dos textos constitucionais do povo ativo,
do povo como instância global de atribuição de legitimidade e do povo destinatário de
prestações civilizatórias do Estado. E a política constitucional deve dirigir-se a aproximar o
povo ativo do povo como instância de atribuição.122
116 Para Joaquin Herrera Flores, a impossibilidade da democracia direta em uma sociedade de massas não
deve afastar a sociedade da democracia, sendo possível pensar e efetivar formas concretas de participação direta,
como a descentralização das decisões, criação de espaços sociais de discussão de temas gerais e aceitação de um
pluralismo jurídico na interpretação das normas (HERRERA FLORES, Joaquin. Democracia, Estado y Derecho.
Hacia un marco alternativo de estudios jurídicos. Teia Jurídica 2000. Disponível em: www.teiajuridica.com.
Acesso em: 25 ago. 2000). 117 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 286-
293. 118 Para Zippelius, “o imperativo democrático de publicidade impele também no sentido de
aperfeiçoamento ético da acção política – que frequentemente não passa, porém, de uma aparência de
moralidade” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Tradução: Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994], p. 248). 119 Ibid., p. 247. 120 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. Op. cit., p. 386 e ss. 121 “(...) palavra semanticamente excessiva, „gorda‟ o suficiente para sofrer manipulações de toda ordem”,
afirma Menelick de Carvalho Netto (CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico
e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 88, p. 81-108, dez. 2003, p. 84). 122 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 2. ed. Tradução: Peter
Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000. Carlos Frederico Marés denuncia a apropriação da soberania popular
pelo Estado, e “[a]o povo restaria o direito de ser indivíduo, cidadão e não coletividade organizada, com
sentimento próprio e cultura conjunta” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Soberania do povo, poder
32
Ressalta Georges Burdeau que o povo dos regimes políticos não é o povo como
realidade sociológica. Critica a utilização da figura povo-nação, pois permite apenas uma
democracia governada, em que a nação, formada por cidadãos, que não são homens reais, mas
“la encarnación estereotipada de la inmutable natureza humana”, governa o povo. Para uma
democracia governante deve se refletir o povo real, sem o desdobramento entre cidadão e
sujeito.123
A noção de povo deve ser uma noção concreta, pois apenas cidadãos reais formam a
vontade exigida pelo princípio democrático. Assim também a soberania popular que
“pertence, pois, aos cidadãos existentes”. No entanto, a vontade do colégio eleitoral
(manifestada por parte dos cidadãos, que são parte do povo) corresponde juridicamente a uma
decisão soberana da soberania popular.124
Giuseppe Duso afirma que o povo que faz a lei não é o povo que obedece: não são um
sujeito único. O primeiro se manifesta como uma unidade; o segundo como um conjunto de
cidadãos.125
Tampouco o povo que elege seus representantes se confunde com o povo que é
representado: naquele há uma pluralidade de sujeitos individualizados, pois o exercício da
cidadania se dá individualmente; neste, a relação com o órgão representativo se dá
coletivamente. Dessa maneira, o povo como unidade se revela no ideal de autogoverno e no
desenho representativo; o povo como conjunto de cidadãos se mostra na eleição do corpo
representativo e na submissão à lei.
António Manuel Hespanha aponta que as eleições no início do século XIX em
Portugal são indiretas e o direito de voto está relacionado à disposição de determinada renda
ou propriedade (voto censitário). Esse recorte deriva de uma compreensão que relaciona
riqueza e virtude – há parcimônia e prudência naquele que sabe acumular bens. Disso resulta
credibilidade e sensibilidade aos interesses públicos. São esses que escolhem, entre eles, os
do Estado. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
p. 229-256, p. 239). 123 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Op. cit., p. 239 e 243. Para o autor, o cidadão não é um indivíduo real, com seus defeitos: “Es el hombre iluminado por la razón, hablando
según los imperativos de esta razón común a todos y, por tanto, desembarazado de los prejuicios de clase y de
las preocupaciones inherentes a su condición económica, capaz de opinar sobre la cosa pública sin estar
dominado por su interés personal. En resumen, es una especie de santo laico que debe su calidad de miembro
del soberano – la nación – a su desinterés” (p. 254). 124 BAPTISTA, Eduardo Correia. A soberania popular em Direito Constitucional. In: MIRANDA, Jorge
(Org). Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996.v. 1, p. 481-
513, p. 482, 492 e 502. 125 DUSO, Giuseppe. La rappresentanza politica. Genesi e crisi del concetto. 2. ed. Milano: FrancoAngeli,
2003, p. 62.
33
melhores para o exercício do governo. Não há “representação” propriamente dita: as decisões
políticas devem ser guiadas pela razão, e não pela vontade.126
O governo representativo, ressalta Bernard Manin, é concebido baseado no princípio
de distinção: os representantes são considerados superiores àqueles que os elegem, pois sua
eleição deve-se à reunião de qualidades não compartilhadas igualmente, como a riqueza, o
talento e a virtude.127
Embora essa concepção se relacione às origens da representação, a
eleição e suas exigências financeiras permite afirmar a existência, nos governos democráticos
atuais, de uma aristocracia eletiva.
A palavra representação, com os seus vários significados, é objeto de uma análise
conceitual por Hanna Pitkin. A autora ressalta que seu conceito como “seres humanos
representando outros seres humanos” tem sua origem na modernidade, e aponta as
possibilidades de sua compreensão formal, descritiva, simbólica e como “atuação por”.128
Essas distinções são trabalhadas também por David Ryden. Para o autor, a
representação formalística se relaciona com o conjunto de estruturas e mecanismos que
permitem um governo representativo e o estabelecimento de uma relação de autoridade,
formada pela autorização, e de accountability, uma relação de responsabilidade. A eleição é o
mecanismo que garante formalmente a representação. Na “representação reflectiva”, como a
denomina o autor, o representado se vê no representante; é a visão do órgão representativo
como miniatura da sociedade, o que exige um caráter deliberativo do corpo legislativo. Essa
representação, fortemente simbólica, não tem origem racional, mas se marca por uma relação
emocional e afetiva. A representação pode ser vista ainda como uma relação, entre o
legislador e o seu constituinte, que permite que este expresse suas opiniões e preferências na
126 HESPANHA, António Manuel. O liberalismo do Estado liberal: o exemplo português do
constitucionalismo monárquico (1800-1910 – confrontos com o Brasil). Curso da Escola de Altos Estudos –
CAPES, realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 16 mar. a 05 maio 2009. 127 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 119. Nas páginas seguintes o
autor evidencia esse entendimento na concepção de representação na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.
Roberto Gargarella aponta duas concepções que representam a filosofia dominante nas origens do sistema
representativo: a existência de “princípios políticos verdadeiros” para além da “cidadania comum e a convicção
da atuação irracional das maiorias” (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Op. cit., p. 27-28). 128 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkeley: University of California Press,
1967. Para a autora, Thomas Hobbes e os autores alemães adeptos da teoria orgânica têm um conceito
formalístico de representação; o conceito descritivo é adotado por Edmund Burke e pelos proporcionalistas; a
noção simbólica em sua visão extremada forma a teoria fascista de representação; e a representação como
“atuação por” não é assumida expressamente por nenhum autor. Para uma análise do uso do termo
“representação” no Antigo Regime, como “dando a ver uma coisa ausente” ou como “exibição de uma
presença”, que faz com que “a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação”, ver
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 20 e ss.
34
formação da vontade do Estado. Finalmente, a representação em seu caráter substantivo se
revela como uma atividade de identificação e realização de preferências.129
Bruce Ackerman aponta que a representação política foi pensada pelos federalistas
estadunidenses como alternativa a uma república idealizada sob a base da virtude pública.
Instituições representativas, aponta o autor, permitem a coexistência de distintos interesses
econômicos e religiosos em um regime de liberdade política.130
Bernard Manin indica,
expressamente, a concepção de um sistema representativo como oposição à democracia.131
Gilberto Amado acentua uma definição de democracia cuja essência é a escolha, pela massa,
dos homens mais capazes para dirigir o país. E, para o autor, a democracia falha quando não
leva à representação pelo melhores.132
Os autores, aqui, parecem compartilhar uma visão
formalista da representação, relacionando-a com um conjunto de instituições que autorizam
determinados cidadãos a exercerem o poder político em nome da coletividade e permitem, em
maior ou menor grau, um controle popular sobre a atuação do representante.
Roberto Gargarella aponta o contexto histórico e social das discussões dos “pais
fundadores” quando da construção do sistema representativo. O sentido do debate fixa-se na
elaboração de um sistema capaz de filtrar a voz da maioria, permitindo sua sobreposição por
outros órgãos, como o Senado (eleito indiretamente, para impor um freio à “fúria
democrática”), o Presidente (com seu direito de veto legislativo) e o Poder Judiciário
(formado por indicação, de membros vitalícios – para ficarem longe do povo – e munido com
o controle de constitucionalidade que depois vem a se tornar a última palavra). A ideia é
separar “la ciudadanía del ejercicio directo del poder”, em face da incapacidade das maiorias
de governar e sua submissão a paixões, com a exclusão consciente e deliberada de
mecanismos de controle. A proposta do autor é pensar outra forma de exercício da democracia
ou rever as opções abandonadas na formação do sistema.133
Na contemporaneidade, a vontade do povo – com todas as ressalvas que essa
expressão traz – revela-se preponderantemente por meio da representação. A representação a
que se refere o Estado de Direito, embora carregue o mesmo nome e com ele tenha menor
129 RYDEN, David K. Representation in crisis. The Constitution, Interest Groups and Political Parties.
Albany: State University of New York Press, 1996, p. 15-19. 130 ACKERMAN, Bruce. Um neofederalismo? Op. cit., p. 189. 131 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 11. 132 “Examine-se bem, e veja-se que se alguma coisa é responsável pelo desprestígio do sistema de
representação, é essa traição das massas por inópia em alguns casos, países e momentos, por corrupção em
outros, à sua missão. Não é no votar o povo livremente que consiste a democracia; a democracia consiste em
votar inteligentemente. Por ter traído a inteligência, é que tem a democracia sido injustamente punida. Levanta
ela às vezes na embriaguez do circo ídolos cascudos que a deitam por terra, humilhada e batida, sangrando no
chão da arena” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p. 20). 133 GARGARELLA, Roberto. Crisis de la representación política. Ciudad de México: Fontamara, 1997, p.
43, 47, 71, 73, 86 e 93-95.
35
aderência, não se confunde com a representação experimentada durante o período medieval.
Então o vínculo representativo empresta as características do instituto de direito privado, em
que a relação é delegatória e os sujeitos, a extensão e o conteúdo nela envolvidos estão
claramente estabelecidos.134
Maurizio Fioravanti aduz que as assembleias representativas que surgem a partir do
século XIII e que colaboram na gestão do poder não “representam” sujeitos coletivos e não
elaboram a lei, que é dada pela natureza das coisas.135
Afirma Pietro Costa que na Idade
Média o soberano, mais do que criar o Direito, o declara e o conserva, e deve obedecer à
ordem natural das coisas. A majestas imperial e o poder absoluto são, na realidade, limitados
à natureza e a um sistema de poder dado.136
Além disso, ressalta Javier Perez Royo, a
representação preconstitucional (como denomina o autor) não é um instrumento de
legitimação do poder: a legitimidade do monarca é anterior e independente do mecanismo
representativo.137
A representação do rei ou do príncipe se revela como a necessidade de
tornar pública a autoridade, constituindo-a; o soberano, como a assembleia de então, não
representa o povo mas perante o povo, conforme Jürgen Habermas.138
Trata-se de uma
representação simbólica.
Faz necessário marcar essa distinção, de maneira indelével. A representação política
moderna não é uma decorrência das experiências anteriores de representação e nem a sua
“evolução”.139
A existência de uma figura (pretensamente) jurídica de representação política e
134 Pedro de Vega ressalta essa característica, afirmando que o “representante se obligaba personalmente
con sus propios benes a reparar los prejuicios causados si sobrepasaba los límites del mandato, además de
producirse, en ese caso, la revocación del mismo” (VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la
representación política. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Madrid, n. 44, p. 24-44, mar./abr. 1985, p.
26). 135 “Quando i rappresentanti dei ceti siedono insieme, accanto al signore, essi non rappresentano infatti
alcun „popolo‟, o alcuna „nazione‟, per la buona ragione che in questi secoli non esiste affato um soggetto
collettivo di questo genere che in quanto tale possa volere, e chiedere, ed ottenere, di essere rappresentato. I
rappresentanti dei ceti, inoltre, non pretendono di dire, insieme al signore, quale sia la legge del territorio;
finché si rimane nella esperienza medievale, nessuno, né i primi, né il secondo, ha questo potere di definizione,
poiché il diritto – come già abbiamo visto – è in sostanza jus involuntarium, che se impone nelle cose, e non è
dunque voluto da alcun potere costituito” (FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni
moderne. Le libertà fondamentali. Op. cit., p. 21). 136 COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato costituzionale. Op. cit., p. 10. 137 PÉREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 390. Bruno
Accarini ressalta ainda uma outra “representação” existente na Idade Média, relacionada com a fé católica: o corpus mysticum deixa de se referir à hóstia para significar toda a Igreja, com o significado de personificação, no
papa e nos cardeais, da coletividade (ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Bologna: Il Mulino, 1999, p. 19 e
26-36). 138 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 [1961], p. 19-20. 139 Antonio Manuel Hespanha aduz que a história assim feita faz com que o passado, ao ser lido e
apreendido pelas categorias do presente, torne-se prova convincente do caráter intertemporal – e, portanto,
racional – das categorias como Estado, representação política e pessoa jurídica, que passam a ser aceitas como
formas contínuas e necessárias da razão jurídica e política. E “institui-se uma visão progressista da história do
poder e do direito, que transforma a organização institucional atual num ómega da civilização política e jurídica.
36
de um mandato representativo de cunho (pretensamente) jurídico deve ser analisado a partir
da modernidade e de suas categorias.140
Pietro Costa ressalta que na representação moderna não existe uma vontade pré-
existente e que há uma distinção absoluta e qualitativa entre os representantes e os
representados. A proibição do mandato imperativo surge como uma consequência dessa nova
visão, que parte da independência do representante em relação ao representado. A relação é
fundamentada na designação do representante, mediante eleição, que faz com que,
simbolicamente, a decisão independente dos representantes seja reconduzível ao consenso dos
representados.141
Essa é a leitura de Carré de Malberg, ao afirmar que quem tem a vontade é a
Assembleia, o órgão da Nação. O órgão, unidade jurídica que tem vontade e capacidade de
ação, origina a vontade. O autor nega a existência de uma verdadeira representação, que
“implica siempre cierta subordinación del representante al representado”.142
Para Maurice
Hauriou, a representação não deriva de um contrato de mandato, “porque el de los
gobernados, mientras carece de representantes, no tiene calidad jurídica para contratar”. O
autor afirma que os representantes gerem a empresa do Estado em nome dos governados, que
consentem com a nomeação dos representantes e os investem com o propósito de garantia e
controle.143
Bruno Accarino traz a distinção entre Vertretung e Repräsentation. Enquanto a
primeira se refere a uma representação de caráter privado, em que há um substituto ou
O Estado liberal-representativo e o Direito legislado (ou, melhor ainda, codificado), constituiriam o fim da
história, o termo último de todos os processos de „modernização‟” (HESPANHA, António Manuel. Cultura
jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 54-55). 140 Como aponta Giuseppe Duso, há uma alteração no modo de compreender o homem, a ciência e a
política na modernidade (DUSO, Giuseppe. La rappresentanza politica. Genesi e crisi del concetto. Op. cit., p.
9). Ver, ainda, o livro de Hasso Hoffman sobre a histótia antiga e medieval do termo “representação” e sobre sua
utlização na terminologia jurídica, eclesiástica e política até o século XVIII (HOFMANN, Hasso.
Rappresentanza – rappresentazione. Parola e concetto dall‟antichità all‟Ottocento. Tradução: Claudio Tommasi.
Milano: Giuffrè, 2007 [2003]). 141 COSTA, Pietro. Elezioni, partecipazione, cittadinanza: un‟introduzione storica. Op. cit. 142 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. Tradução: José Lión Depetre. Ciudad de Mexico:
Fondo de Cultura Económica, 2001 [1922], p. 939-940. Gilberto Amado afirma que não há no povo ou no
eleitorado, “nenhuma idéia ou ponto de vista a ser representado” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação.
Op. cit., p. 41). Igualmente, a visão de Fernando Gustavo Knoerr, ao afirmar que na representação política não há representação de vontade: “O representante impõe ao representado sua opção” (KNOERR, Fernando Gustavo.
Fidelidade partidária: o controle ético no exercício do mandato. Curitiba, 2002. 305f. Tese (Doutorado em
Direito do Estado). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 76). 143 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 233-234. O autor
ressalta que a eleição é simplesmente um procedimento empírico de designação. Não há delegação de poder. Os
poderes da Assembleia derivam da Constituição ou dela mesma. E afirma: “las competencias de gobierno no
residen en el pueblo, y éste, que carece de ellas, no puede transmitirlas. El único efecto de la elección es
conferir al electo la investidura en nombre de la soberanía nacional y colocar la competencia de gobierno que
le es propia – y que debe al hecho de formar parte de una „élite‟ política – bajo el control del poder mayoritario
de los electores” (p. 237).
37
luogotenente que traz uma vontade pré-existente e determinada, a segunda “funda ou cria uma
vontade unitária que antes não existia”. Para o autor, a representação política, Repräsentation,
é caracterizadamente juspublicística, não se relacionando aos conceitos de encargo, mandato,
gestão de negócios e administração fiduciária. A representação política se relaciona com o
futuro.144
Hasso Hofmann afirma que a diferença entre Vertretung, a representação por mandato,
e Repräsentation é marcada pela doutrina alemã contemporânea, que recusa a tradição
francesa e estadunidense de ver a representação como um conceito intrinsecamente
relacionado à democracia, à eleição e evidencia a inexistência de uma relação jurídica entre o
povo e o Parlamento, seja como um liame orgânico, seja como uma dissociação entre
titularidade e exercício de direito. A partir dessa configuração, decorre a independência
jurídica dos representantes.145
Na representação política deve haver, ao menos, uma “representação virtual”, na qual,
como acentua Edmund Burke, há uma comunhão de interesses e compartilhamento de
sentimentos e desejos entre representante e povo, ainda que o povo não o escolha realmente,
embora alguma relação deva existir.146
Para Brian Seitz, a “representação virtual” é
metafísica, assim como a “representação real”. Aquela absorve as diferenças, racionalizando
os interesses e legitimando o sistema de representação.147
Essa representação simbólica,
acentua Olavo Brasil de Lima Junior, não se relaciona diretamente com a escolha pelo voto,
mas permite a justificação do exercício do poder pelo chefe do Poder Executivo, que
representa a totalidade, não apenas os seus eleitores.148
Ressalta Hans Kelsen que a adoção da forma parlamentar pelos governos
democráticos exige uma forma de liberdade democrática que cria a ficção da representação. O
aspecto ficcional, para o autor, está na ideia de que o Parlamento serve para o povo exprimir
144 ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Op. cit., p. 21 e 40. 145 HOFMANN, Hasso. Rappresentanza – rappresentazione. Parola e concetto dall‟antichità
all‟Ottocento.Op. cit., p. 3, 6-7 e 10. 146 “Virtual representation is that in which there is a communion of interests and a sympathy in feelings
and desires between those who act in the name of any description of people and the people in whose name they
act, though the trustees are not actually chosen by them. This is virtual representation. Such a representation I
think to be in many cases even better than the actual. It possesses most of its advantages, and is free from many
of its inconveniences; it corrects the irregularities in the literal representation, when the shifting current of human affairs or the acting of public interests in different ways carry it obliquely from its first line of direction.
The people may err in their choice; but common interest and common sentiment are rarely mistaken. But this
sort of virtual representation cannot have a long or sure existence, if it has not a substratum in the actual. The
member must have some relation to the constituent” (BURKE, Edmund. A Letter to Sir Hercules Langrishe on
the subject of the roman catholics of Ireland (extract). Disponível em: http://www.ourcivilisation.com/
smartboard/shop/burkee/extracts/chap18.htm. Acesso em: 16 dez. 2009.). 147 SEITZ, Brian. The trace of political representation. Albany: State University of New York Press, 1995,
p. 96, 100 e 104. 148 LIMA JUNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar., 1997, p. 41.
38
sua vontade, apesar de ser juridicamente independente do povo. A vinculação do
representante deve se estabelecer com o partido político que o elegeu, por uma lista em que o
eleitor pode apenas aderir ao partido. Nesse caso, deve haver perda de mandato quando o
representante abandona as fileiras da agremiação partidária.149
A representação política aqui considerada se relaciona com os aspectos do Estado
Moderno, sua organização e racionalidade. A representação política, nesse sentido, nasce
relacionada com a exigência de distribuição dos poderes e sua natureza jurídica se configura
pela atribuição do encargo e da autorização para atuação conjunta do representante em nome
dos seus representados, adverte Karl Loewenstein. É a representação que permite a instituição
do Parlamento como órgão de soberania contraposto ao governo, mas se molda segundo uma
sociedade homogênea e não dá conta de uma concepção de vontade política para além da
ideia de vontade geral de Rousseau, fundamentada na noção de liderança política, concentrada
no governo.150
Ressalta Maurizio Cotta que a representação é pensada a partir da necessidade de
controlar o poder, por aquele que não pode exercê-lo pessoalmente. Para o autor, a
representação política combina confiança, elementos de delegação e de representação-
espelho, para dar conta das exigências de legitimidade e credibilidade.151
Essa visão, aponta
Maurice Duverger, é adequada a um significado de representação política, em termos
jurídicos, e que se relaciona com a figura privatista do mandato. Com a adoção do sistema
proporcional, a representação política passa a ser compreendida como o reflexo da sociedade,
um retrato que molda seu modelo, em uma acepção sociológica. Enquanto em sua origem
representa-se a vontade, neste novo aspecto as opiniões são representadas. Deixa de haver um
liame entre mandante e mandatário para haver uma relação entre a unidade “povo” e a
unidade da assembleia representativa.152
Há uma nítida oposição entre o princípio democrático – que impõe a identidade entre
governante e governado – e o princípio representativo – que supõe a sua distinção. Menelick
149 KELSEN, Hans. A democracia. Op. cit., p. 48 e 56-57. Trata-se do ensaio “Essência e valor da
democracia”, publicado em 1920 e revisto em 1929. 150 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 57-62. A partir dessa constatação, Karl Loewenstein afirma a superação da doutrina da separação de poderes e apresenta uma nova divisão adequada às
sociedades pluralistas de massa: a tomada de decisões fundamentais, concentrada em um número reduzido de
pessoas, e que toma a forma legal; a execução das decisões políticas fundamentais (que compete aos três órgãos
de soberania); e o controle político, onde se incluem o controle judicial de constitucionalidade e a
responsabilidade dos agentes públicos (p. 63-72). 151 COTTA, Maurizio. Representação política. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de política. 12. ed. Tradução: Carmen C. Varriale et al. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2002 [1983], p. 1101-1107, p. 1102-1104. 152 DUVERGER, Maurice. Esquisse d‟une théorie de la représentation politique. In: L‟EVOLUTION du
Droit Public. Études offertes à Achille Mestre. Paris: Sirey, 1956, p. 211-220.
39
de Carvalho Netto ressalta o caráter positivo dessa permanente tensão, que “importa uma
revisão permanente dessa identidade do povo em relação aos próprios representantes,
tornando essa representação sempre precária, requerente de revisões”.153
Bernard Manin aponta quatro princípios que acompanham os regimes representativos
desde a sua “invenção”: (1) nomeação dos governantes por eleições em intervalos regulares;
(2) certo grau de independência entre as decisões dos governantes e os desejos dos eleitores;
(3) livre expressão de opiniões e de desejos políticos pelos governados; (4) submissão das
decisões políticas a um processo de debate.154
Auro Augusto Caliman ressalta o “peculiar
procedimento deliberativo” e a pluralidade de membros, sem hierarquia, como características
do Parlamento,155
órgão representativo por excelência.
Jorge Miranda sublinha que a representação política é exigida pela Constituição, que
não há transferência de poderes e que se configura por um mandato de direito público. Aponta
que a representação importa na responsabilidade política, com a exigência de um canal
recíproco de informações, e que se impõe pelo exercício das liberdades públicas, do direito de
oposição e das eleições, raramente pela possibilidade de destituição ou revogação do
mandato. Aduz que a representação e a responsabilidade se estabelecem entre a Assembleia e
o povo, sendo decorrência disso a proibição do mandato imperativo.156
Além da ideia da
soberania nacional, que passa a exigir uma representação geral, sem relação entre segmentos
do povo e seus representantes específicos, a lei produzida pela representação é o instrumento
mais hábil para expressar os valores da razão e da justiça.157
Para Georges Burdeau, o governo representativo permite uma correção da democracia,
como um instrumento de contenção do poder do povo, que possibilita simultaneamente a
liberdade política (relacionada à eleição) e a ordem e a estabilidade.158
No entanto, somente
parcela do povo tem direitos políticos, somente parcela desses são representados e somente
153 CARVALHO NETTO, Menelick. Controle de constitucionalidade e democracia. In: MAUÉS, Antônio
G. Moreira (Org.). Constituição e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 215-232, p. 220. Ver também
MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt. Tradução: Menelick de Carvalho Neto.
Cadernos da Escola do Legislativo da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 1,
n. 2, p. 91-107, jul./dez. 1994. 154 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 17. 155 CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. São Paulo: Atlas,
2005, p. 17. 156 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito, 2003, p. 92-93. 157 Conforme VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit., p. 32-33. 158 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Op. cit., p. 166. O autor ressalta
a assimilação da vontade da nação à vontade do repressentante, o que “impide al pueblo tener una voluntad
diferente de la que formula la Assemblea” e sublinha que a Assembleia, “compuesta de representantes
experimentados y ponderados, podrá imputar a la nación una voluntad razonable que la librará de los
arrebatos de la demagogia”.
40
parcela dos representantes tomam as decisões, por conta da regra da maioria.159
A democracia
pressupõe uma confrontação de uma maioria e de uma minoria e sua autenticidade está ligada
ao lugar que ela dá à minoria: “A minoria é a opinião dissidente, a liberdade é o direito à
dissidência”. A questão está na necessidade de conciliação entre a autoridade da maioria e a
liberdade da minoria.160
Roberto Gargarella acentua que o sistema representativo foi pensado para grupos
sociais, ainda que contrapostos, internamente homogêneos, cujos interesses poderiam ser
defendidos por qualquer membro. Esses pressupostos do pensamento fundador estadunidense,
no entanto, não encontram espaço na configuração política atual em face da multiplicidade e
diversidade dos grupos sociais, com interesses internamente divergentes. Torna-se mais difícil
garantir a representação dos diferentes interesses sociais no Parlamento e, ressalta o autor,
isso se repete no Poder Judiciário, que se mostra incapaz de defender a minoria contra a
maioria quando esses grupos são variáveis segundo coalizões ou mesmo em face de distintas
questões.161
A representação política apresenta propósitos paradoxais: deve, ao mesmo tempo, dar
conta da unidade e da identidade. Como aponta David Ryde, deve ser capaz de gerar um
compartilhamento de interesses e valores e dar resposta a demandas específicas,
individualizadas.162
A representação surge como um meio indispensável para dar voz a um
159 Análise realizada anteriormente por León Duguit, que sublinha que mesmo nos países de sufrágio
universal e regime representativo, as leis em geral são votadas por um número de deputados que não representa mais do que a minoria do corpo eleitoral (DUGUIT, León. La transformación del Estado. 2. ed. Tradução:
Adolfo Posada. Madrid: Franscisco Beltrán, [1909], p. 84). 160 BURDEAU, Georges. Manuel de Droit Public. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence,
1948, p. 28-29. “Toute démocratie repose sur cette confrontation d‟une majorité et d‟une minorité. Son
authenticité se vérifie par la place qu‟elle fait à la minorité, c‟est-à-dire à cette fraction du peuple qui ne
partage pas les idées de ceux qui sont au pouvoir. Or une minoritè n‟existe que par le jeu des libertés dont elle
dispose. La minorité c‟est l‟opinion dissidente, la liberté c‟est le droit à la dissidence”. “Le problème demeure
donc posé de savoir comment la démocratie concilie l‟autorité de la majorité avec la liberté de la minorité”. 161 GARGARELLA, Roberto. Introdución. In:_____. (Comp.). Derecho y grupos desaventajados.
Barcelona: Gedisa, 1999, p. 11-30, p. 13-16. Para Brian Seitz, a representação e a democracia representativa se
caracterizam por um conflito continuado, por combates, ganhos de terreno, deserções, tréguas, rendições, compromissos, vitórias transitórias e derrotas totais – é uma guerra (SEITZ, Brian. The trace of political
representation. Op. cit., p. 153). 162 Para David Ryden, os objetivos de unidade são relacionados ao controle popular e se identificam pela
regra majoritária, pela obtenção do consenso dos governados, pela institucionalização de valores, pela
construção do senso de valores comuns, pela canalização de opiniões e preferências em políticas, pela
responsividade coletiva do governo e por sua accountability. Os relacionados à diversidade se coadunam com os
valores liberais e se mostram na proteção de direitos individuais, na igualdade política, na tolerância e garantia
de valores especiais e na responsividade individual. Os partidos políticos devem ser os canais que permitem a
realização dos dois conjuntos de objetivos, como subsistemas de representação que permitem a conexão entre
cidadão e governo (RYDEN, David K. Representation in crisis. Op. cit., p. 25-30).
41
sujeito coletivo e, ao mesmo tempo, permitir que os cidadãos, como suas diferenças e
particularidades, expressem sua vontade e participem da formação da vontade comum.163
A teoria da representação que mais parece se aproximar de uma leitura jurídica é a
formalista.164
A existência de um conjunto de instituições destinadas a construir um lugar de
autoridade, a permitir que um exerça o poder político em nome de outros e ao menos
possilitar um fraco controle consistente na não renovação da relação representativa, é
garantida por normas jurídicas de sede constitucional.165
Não parece haver um aspecto
jurídico na representação simbólica, na representação descritiva (embora determinados
arranjos institucionais derivados de normas jurídicas possam revelar a opção por fazer com
que o Parlamento “reflita a sociedade”, como pela adoção de um sistema proporcional) e na
representação como atividade.
Caberia, juridicamente, definir a representação política como o faz Hanna Pitkin: um
arranjo institucional de caráter público destinado a permitir a participação do povo no
governo, que envolve pessoas e grupos e opera complexamente, sem que se possa configurar
a representação a partir de uma relação singular, seja pelo lado do indivíduo, seja pelo
representante isoladamente considerado.166
163 DUSO, Giuseppe. La rappresentanza politica. Genesi e crisi del concetto. Op. cit., p. 10. Para o autor, a
representação não pode ser reduzida a uma relação entre representante e representado, mas deve incluir o
representante, a unidade política ideal que deve ser representada, o representado como produto da representação,
e os que se sentem representados (p. 32). 164 Afirma Georg Jellinek: “La representación es un concepto jurídico y no político. En virtud de un
estatuto legal la voluntad de la minoría se considera como voluntad del conjunto. Pero en la realidad política
únicamente prevalece la voluntad mayoritaria de los parlamentarios que votaron una resolución” (JELLINEK,
Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 73). 165 Afirma José Alfredo de Oliveira Baracho que a eleição é um procedimento que visa à designação dos
governantes pelos governados e que “[o] corpo eleitoral, através da eleição, manifesta seu assentimento a certa
candidatura” (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A teoria geral do Direito Eleitoral e seus reflexos no
Direito Eleitoral brasileiro. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da
Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1997. v. 2, p. 477-530.). Para Regina Maria Macedo Nery Ferrari, “[a]
democracia representativa sempre se acha consubstanciada em um processo técnico de escolha de pessoas para
que exerçam o poder em nome do povo, quanto, então, esse participa da formação da vontade do governo e no
processo político” (FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. O desenvolvimento da democracia como resultado
da efetiva participação do cidadão. In: GARCIA, Maria (Org). Democracia, hoje. São Paulo: Instituto Brasileiro
de Direito Constitucional, 1997, p. 209-256, p. 217). 166 “Political representation is primarily a public, institucionalized arrangement involving many people
and groups, and operating in the complex ways of large-scale social arrangements. What makes it
representation is not any single section by any one participant, but the over-all structure and functioning of the
system, the patterns emerging from the multiple activities of many people. It is representation if the people (or a
constituency) are present in governmental action, even though they do not literally act for themselves” (PITKIN,
Hanna Fenichel. The concept of representation. Op. cit., p. 221-222). Brian Seitz conceitua representação como
uma ferramenta de tradução: “Representation is the tool by which the political subject communicates its needs,
interests, and wishes and offers it consent. That is, representation is the apparatus by means of which consensus
is communicated and expressed, formally inscribed and authorized” (SEITZ, Brian. The trace of political
representation. Op. cit., p. 114).
42
A atuação do representante informada pelo interesse público167
é um pressuposto da
relação de representação e se reveste de caráter jurídico na medida de sua configuração
constitucional. Em virtude da liberdade para o exercício do mandato, tônica dos regimes
representativos contemporâneos, e de uma concepção coletiva dos representados, não há
mecanismos jurídicos para garantir o conteúdo da relação subjetiva de representação. Há
limites objetivos, estabelecidos pela Constituição e garantidos por sanções aos mandatários
que deles escapam.
A confiança, tida como o fundamento subjetivo da relação do mandato representativo,
não se reveste de caráter jurídico: não há sanção jurídica para a quebra da confiança nem
remédio jurídico para a sua restauração.
Pierre Bourdieu analisa a confiança – ou fides implicita, como denomina o autor – por
seu viés sociológico e afirma que configura uma delegação total e global, uma espécie de
crédito ilimitado que retira qualquer tipo de controle do povo (“os mais desfavorecidos”)
sobre a representação.168
O rompimento da relação subjetiva de confiança acaba por provocar
efeitos apenas na esfera política, pela sua não renovação, quando da busca dos representantes
por nova escolha eleitoral.
Não se pode afirmar, ao menos juridicamente, que seja a confiança o fundamento da
representação política. Não há qualquer critério para a sua verificação, seja no momento da
formação da relação, seja no decorrer do exercício do mandato. Tampouco há instrumentos
jurídicos para a ruptura da relação quando a confiança for quebrada.
A relação de representação, juridicamente, se forma por uma autorização do corpo
eleitoral para o corpo representativo, ambos tomados como sujeitos coletivos. Autorização por
prazo certo e cuja motivação pode ter qualquer conteúdo não vedado pelo Direito. Sua
invalidade somente pode ser declarada se a autorização for viciada: por fraude, corrupção,
captação ilícita de sufrágio, qualquer forma de abuso. Mas não é dado seu afastamento se o
que a constitui é um critério subjetivo qualquer: a beleza, a amizade, uma forma de protesto,
uma manifestação de pilhéria.
167 Apenas o interesse público, para Sieyès, deve ser representado. Afirma o autor que “o direito de fazer-se
representar só pertence aos cidadãos por causa das qualidades que lhes são comuns e não devido àquelas que os
diferenciam”. “A legislação de um povo só está encarregada de um interesse geral” (SIEYÈS, Emmanuel Joseph.
A constituinte burguesa. Que é o terceiro estado? Tradução: Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986
[1789], p. 144 e 146). 168 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. Op. cit.,
p. 167.
43
A autorização que forma a relação de representação não leva consigo qualquer
conteúdo jurídico para o exercício do mandato.169
O representante tem como limitação o
ordenamento jurídico, sem qualquer determinação por parte do corpo eleitoral. Não há, pela
representação política, uma influência do cidadão nas manifestações do representante, ainda
que ele interfira fortemente na composição do corpo representativo e disso possa resultar
expectativas para o eleitorado.
Novamente com Pierre Bourdieu, pode-se reconhecer que essa autorização outorga ao
representante, além do poder político, um poder simbólico, que lhe dá um crédito, relacionado
à confiança do grupo.170
Apenas nesse sentido, fortemente sociológico, é que cabe falar em
confiança. Ela não se reflete, no entanto, no campo jurídico. Juridicamente há liberdade para o
exercício do mandato, que apenas por força da tradição pode ser chamado de mandato: trata-
se mais de um “encargo confiado a alguém de exprimir a vontade unitária da nação”.171
A maneira que tem o cidadão de intervir na formação da vontade política de forma
mais concreta é por meio de mecanismos de democracia direta. A democracia brasileira
apresenta, constitucionalmente, um desenho participativo. A prática democrática, no entanto,
é essencialmente representativa.
A representação, embora necessária, não deve ser a única forma de participação do
povo na vontade do Estado, em vista das distorções que apresenta pela mediação, o que afasta
o valor epistêmico da democracia.172
Para Clèmerson Merlin Clève, “[n]os países do terceiro
mundo, a democracia representativa, e pois o direito de voto, assume uma proporção
paradoxal: - é muito, mas, também, pouco”.173
A crítica à representação política, principalmente à representação parlamentar, nasce
com os Parlamentos e se acentua fortemente com a extensão do direito de sufrágio. Seu
núcleo está na incompatibilidade de uma visão individualista da sociedade e uma atuação
necessariamente coletiva da representação, somada à ausência de mecanismos de controle e
169 Embora, como ressalta Auro Augusto Caliman, os senadores jurem “desempenhar fiel e lealmente o
mandato”, segundo o artigo 4º, §2º do Regimento Interno do Senado (CALIMAN, Auro Augusto. Mandato
parlamentar. Op. cit., p. 56). 170 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. Op. cit.,
p. 188. 171 Segundo a leitura que faz Giuseppe Duso da representação pensada pela Revolução Francesa: “Perció
se parla di mandato libero: un mandato che non consiste tanto nell‟espressione di una volontà determinata che
deve essere rispettata e riportata in una sede superiore, quanto piuttosto in un incarico affidato a qualcuno di
esprimere la volontà unitaria della nazione” (DUSO, Giuseppe. La rappresentanza politica. Op. cit., p. 61). 172 Conforme posição de Carlos Santiago Nino (NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia
deliberativa. Op. cit., p. 204-205). 173 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). Op. cit., p. 17.
Para Francisco Weffort o desafio é encontrar meios de participação sem prescindir da representação política,
buscando o aprimoramento da democracia pela complementação dos dois princípios (WEFFORT, Francisco. Por
que democracia? São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 121 e 128-129).
44
prestação de contas do mandatário.174
E em uma compreensão indevida da relação de
representação.
Bruno Accarino afirma que, no senso comum, representação é sinônimo de
apropriação indébita, confiança roubada, traição das aspirações dos eleitores e falta de espírito
público.175
Georg Jellinek, nos primeiros anos do século XX, afirma, em relação à Inglaterra,
a absoluta submissão da Câmara baixa ao governo.176
Para o autor, a censura não se direciona
a acabar com o parlamentarismo, mas a aperfeiçoá-lo, a partir de suas instituições, como a
ampliação do sufrágio e a adoção da representação proporcional. O excesso de partidos
enfraquece o Parlamento, torna-o incapaz de manifestar a vontade unitária da nação e deixa as
maiorias aos conchavos ou ao azar.177
A crítica em relação à representação política dirige-se à impossibilidade de
determinação do seu conteúdo. Vale ressaltar, no entanto, que “nenhum sistema institucional
pode garantir a essência, a substância da representação”.178
Exige-se, para tanto, um controle
efetivo e a tomada da responsabilidade pelo cidadão, que precisa compreender o seu papel na
democracia representativa e se dar conta das demais formas de interferência na formação da
vontade política.
Paulo Bonavides faz uma defesa intensa da democracia participativa, caracterizando-a
como um direito fundamental de quarta geração. Afirma a necessidade de afastar a “perversão
174 Para Nelson Jobim, essa crítica se deve também à incapacidade de o corpo parlamentar cumprir suas
funções, em parte causado pelo vazio de poder do Parlamento durante o modelo constitucional anterior (JOBIM,
Nelson. Partidos políticos e organização partidária. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto
Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 138-147; 169-172, p. 142). 175 “Nel sentire comune, rappresentanza è sinonimo di appropriazione indébita, fiducia carpita e non
ripagata, tradimento delle aspettative degli elettori e mancanza di spiritto pubblico”. E continua: “L‟astrazione
giuridico-formale della cittadinanza, che sola rende possibile la rappresentanza moderna, produce effetti contro-intenzionali che la svuotano e la vanificano” (ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Op. cit., p. 10-11).
Em sentido mais enfático, Raul Zibechi afirma que a representação é sempre alienação e configura um princípio
contrário à democracia (ZIBECHI, Raul. Poder y representación: ese estado que llevamos dentro. Chiapas,
Ciudad de México, n. 13, 2002. Acesso eletrônico: http://www.revistachiapas.org/No13/ch13zibechi.html.
Acesso em: 19 nov. 2009.). 176 “Por eso, ahora se ha observado, amargamente, que la Cámara baja se parece menos a una asemblea
legislativa y mucho más a un cuerpo que registra los decretos gubernamentales”. JELLINEK, Georg. Reforma y
mutación de la Constitución. Op. cit., p. 61. 177 Ibid., p. 68-69. 178 “No institucional system can garantee the essence, the substance of representation” (PITKIN, Hanna
Fenichel. The concept of representation. Op. cit., p. 239). Para Olavo Brasil de Lima Junior, a crise associada ao sistema de representação deriva da insuficiência da reflexão da teoria política sobre as atribuições do Poder
Legislativo (LIMA JUNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade.
Op. cit., p. 14). De outro ponto de vista, Walter Benjamin também critica o Parlamento: “Si vien meno la
consapevolezza della presenza latente della violenza in un istituto giuridico, esso decade. Un esempio di questo
processo è fornito, in questo periodo, dai parlamenti. Essi presentano il noto, triste spettacolo, perché non sono
rimasti consapevoli delle forze revoluzionarie a cui devono la loro esistenza. (...) Manca loro il senso della
violenza creatrice di diritto che è rappresentata in essi; non c‟è quindi da stupirsi che non pervengano a
decisioni degne di questo potere, ma curino, nel compromesso, una condotta degli affari politici che vi vorrebbe
senza violenza” (BENJAMIN, Walter. Per la critica della violenza. In: SOLMI, Renato (a cura di) Angelus
Novus. Saggi e frammenti. Torino: Einaudi, 1995 [1920], p. 5-30, p. 17).
45
representativa”, o “falseamento da vontade”, as “imperfeições conducentes às infidelidades do
mandato” e os “abusos da representação”, em busca de uma “repolitização da legitimidade
criadora de uma neocidadania governante”. Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a
manipulação da consciência pública e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de
informação a serviço da classe dominante desvirtuam a democracia, fazendo com que o
mandato perca suas características republicanas e torne-se usurpatório, “confisco da vontade
popular e transmutação da chamada democracia representativa em um simulacro de governo
popular”.179
Para Lúcia Avelar, a participação política, instrumento de legitimação e fortalecimento
das instituições democráticas, tomada como a “ação de indivíduos e grupos com o objetivo de
influenciar o processo político”, pode dar-se pelo canal eleitoral, pelo canal corporativo (que
busca a representação de interesses privados no sistema estatal e realiza-se por lobbies e por
organizações profissionais) e pelo canal organizacional (relacionado a um espaço não
institucionalizado da política, formado por grupos identificados a partir de um déficit de
reconhecimento).180
Para a “salvação” da representação política, alguns autores apresentam o mandato
partidário. Hans Kelsen aponta, em escrito da década de 1920, os partidos políticos como “um
dos elementos mais importantes da democracia real”, única forma de influência do indivíduo
na vontade do Estado. E é enfático: “Só a ilusão ou a hipocrisia pode acreditar que a
democracia seja possível sem partidos políticos”.181
Contra a representação, coloca-se, para alguns autores, a “multidão”. A multidão, que
rejeita a homogeneização dos conceitos de nação e povo, é multicolorida e atua politicamente
da busca da democracia,182
resistindo ao “Império” e criando novos espaços a partir de
demandas por cidadania global, condições de vida e controle sobre a produção.183
E a
179 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. Op. cit., capítulo 1. 180 AVELAR, Lúcia. Participação política. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.) Sistema
político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 223-235. 181 KELSEN, Hans. A democracia. Op. cit., p. 39-40. Trata-se do ensaio Essência e valor da democracia, publicado em 1920 e revisto em 1929. 182 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record,
2005, p. 13 e seguintes. A noção de multidão parte da ideia de biopoder (em que o poder toma conta da vida,
fazendo viver e deixando morrer, concentrando-se não mais sobre o indivíduo, mas sobre a população, com uma
estratégia política nova), desenvolvida por Michel Foucault na última aula do seu curso Em defesa da sociedade
e retomada no curso Segurança, território, população (FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade.
Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002; FOUCAULT, Michel. Seguridad,
Territorio, Población. Tradução: Horacio Pons. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006). 183 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução: Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Capítulo 4.3.
46
multidão não se deixa representar: é “autoconvocable”, estrutura-se em redes de participação
e de tomada de decisões.184
Com uma visão menos romântica, adverte Brian Seitz que a democracia, para além da
representação, não se mostrará como uma democracia direta, como “a voz pura da soberania
popular” ou “a vontade orgânica do povo”, mas como uma hegemonia organizada
tecnologicamente que marcaria o fim do conflito ontológico da representação.185
Com a superação do conflito, no entanto, pouco restaria de democracia.
1.3 O IDEAL REPUBLICANO E SEUS PARADOXOS
A falta de participação popular na proclamação da República brasileira é evidenciada
por historiadores, como José Murilo de Carvalho. O autor aponta as discussões sobre o
modelo republicano a ser adotado, as “tradições” republicanas em disputa e a luta pela
construção do “mito de origem”, com a elaboração de estórias, heróis e símbolos. O autor
utiliza a expressão de Aristides Lobo e afirma que o povo assiste ao nascimento da República
“bestificado”, surpreendido.186
Maria Garcia aponta que nos movimentos e insurreições no final do século XVIII e na
primeira metade do século XIX no Brasil – Inconfidência Mineira, Inconfidência Baiana
(Revolta dos Alfaiates), Revolução Pernambucana, Confederação do Equador, Cabanada,
Revolução dos Farrapos e Sabinada – encontram-se demandas republicanas.187
A autora
afirma, no entanto, que após a proclamação, as “diversas repúblicas” brasileiras evidenciam
“a descontinuidade do processo democrático, seus hiatos e lacunas e, ao mesmo tempo, a
desvinculação entre as instituições firmadas em nome do regime republicano, nas suas bases
populares e as raízes populares”.188
Não obstante, é possível afirmar que o momento constituinte democrático que culmina
na Constituição de 1988 promove a fundação de uma República. A partir do novo
184 ZIBECHI, Raul. Poder y representación: ese estado que llevamos dentro. Op. cit. 185 SEITZ, Brian. The trace of political representation. Op. cit., p. 157. Quem sabe seja o “pensamento único” da globalização capitalista, denunciado por Milton Santos (SANTOS, Milton. Por uma outra
globalização: do pensamento único à consciência universal. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001). 186 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. Vale conferir também a análise do jornalista Hélio Silva (SILVA, Hélio. 1889: a
República não esperou o amanhecer. Porto Alegre: L&PM, 2005). 187 Raymundo Faoro exterioriza essa impressão na sua análise sobre a formação da política brasileira
(FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed, rev. São Paulo:
Globo, 2001 [1957], p. 303 e ss). 188 GARCIA, Maria. A República no Brasil. Brasília: Programa Nacional de Desburocratização / Instituto
dos Advogados de São Paulo, 1985, p. 21 e 44.
47
ordenamento constitucional, a sociedade brasileira, republicana por acaso e no susto, tem um
substrato normativo que autoriza afirmar que o Estado brasileiro está fundado em um ideal
republicano e que permite a construção de um idem sentire de republica.189
A noção de república não se contrapõe à monarquia. Em escrito do século XVIII,
Edmund Burke defende que a monarquia inglesa não se garante apenas pela não violação da
lei pelo príncipe, mas exige que os poderes discricionários do monarca “deben ser ejercidos
todos ellos basándose en principios públicos y fundamentos nacionales y no en las
preferencias o los prejuicios, las intrigas o la política de una corte”. Ressalta que todos –
parlamentares, juízes e o rei – são “fideicomisarios del pueblo”, “porque ningún poder se
confiere para beneficio exclusivo de su poseedor”.190
A noção de princípios públicos como
critério de legitimidade da ação política está vinculada ao ideal republicano. Seus inimigos
não se confundem com o rei.
Philip Pettit aponta que o pensamento republicano a respeito da cidadania e do
governo parte de uma noção de confiança e de que o papel do governo é promover a liberdade
dos cidadãos. A confiança nos governantes deriva de convicção de sua atuação de acordo com
as regras legais e com uma disposição cooperativa, vista como uma virtude cívica, sendo
assim ao mesmo tempo impessoal e pessoal. Ainda que a confiança impessoal seja garantida
por alguns mecanismos, como mandatos limitados, separação de poderes e controle
democrático, a relação republicana entre governantes e governados sempre pressupõe a
virtude, a confiabilidade tanto nos cidadãos como naqueles que exercem o poder. Ao cidadão,
ressalta o autor, cabe a eterna vigilância: sem isso, não há esperança para a virtude pública:191
para que haja liberdade é necessária uma virtude cívica, que exige disposição para a
participação no governo e determinação para o exercício de uma eterna vigilância em relação
aos governantes.192
189 Jürgen Habermas aponta que a ideia de que a formação do Estado constitucional democrático exige um
povo que se autodetermine. “Caso o povo, porém, que se autocompreendia autoritativamente, não tivesse se
tornado uma nação de cidadãos autoconscientes, haveria faltado força propulsora a uma reformulação jurídico-
política como essa, e também força vital à república formalmente instruída”. A ideia de nação vem preencher a
lacuna, “capaz de integrar as consciências morais” (HABERMAS, Jürgen. O Estado nacional europeu – sobre o
passado e o futuro da soberania e da nacionalidade. In:_____. A Inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução: Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2004 [1996], p. 127-151, p. 135). 190 BURKE, Edmund. Pensamientos sobre las causas del actual descontento. In:_____. Textos políticos.
Tradução: Vicente Herrero. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1942 [1770], p. 259-293, p. 268 e
274. 191 PETTIT, Philip. Republican Theory and Political Trust. In: BRAITHWAITE, Valerie; LEVI, Margaret
(Ed.).Trust and Governance. New York: Russell Sage Foundation, 1998, p. 295-314. 192 PETTIT, Philip. Republican Political Theory. In: FLEURBAEY, Marc; SALLES, Maurice;
WEYMARK, John A. (Ed.). Justice, Political Liberalism, and Utilitarianism. New York: Cambridge University
Press, 2008, p. 389-410: “The price of liberty is civic virtue, then, where that includes both a willingness to
participate in government and a determination to exercise eternal vigilance in regard to the governors” (p. 389).
48
É possível aproximar o ideal republicano como compartilhamento de valores da noção
de Verfassung. Entendida como uma condição histórico-existencial e como uma comunidade
de homens que se articulam permitindo a construção de uma comunidade política e, portanto,
do Estado,193
pressupõe a assunção de um conjunto de valores que informa a ordem jurídica e
a atuação dos poderes públicos.
Esses valores, no entanto, como aponta António Manuel Hespanha, não são valores
densos ou espessos. Há um acordo entre valores finos, mínimos: todos estão de acordo com a
ideia democrática, mas não com o seu conteúdo.194
Para Antonio D‟Atena, o valor comum
fundamento de todas as regras é a igualdade dos cidadãos.195
Para Zygmunt Bauman, a ideia republicana não impõe um modelo de vida correta,
mas promove “a capacitação dos cidadãos para discutirem livremente os modelos de vida de
sua preferência e praticá-los. A república é uma ampliação, não uma redução de opções – seu
objetivo é aumentar, não limitar as liberdades individuais”.196
Em Aristóteles, o melhor
governo é “aquele no qual cada um encontre a melhor maneira de viver feliz”.197
Essa
vertente do ideal republicano encontra especial guarida em Constituições como a Carta
brasileira de 1988.198
O ideal republicano reflete o valor da igualdade.199
Esse valor, bem final a ser
perseguido, reveste-se constitucionalmente de um princípio da igualdade, com força
normativa e que se mostra como um bem inicial com conteúdo normativo que orienta as
193 Noção de Verfassung a partir do entendimento de Maurizio Fioravanti. (FIORAVANTI, Maurizio. Stato
e costituzione: Materiali per una storia delle dottrine costituzionali. Torino: G. Giappichelli, 1993, p. 191). O
autor ressalta que a Verfassung não pode ser criada nem pela vontade contratual dos indivíduos e nem pela
vontade do Estado (p. 193). 194 HESPANHA, António Manuel. O liberalismo do Estado liberal: o exemplo português do
constitucionalismo monárquico (1800-1910 – confrontos com o Brasil). Op. cit. Francisco Weffort, em escrito
de 1985, afirma que a luta política no Brasil então era uma luta em torno do significado da democracia
(WEFFORT, Francisco. Por que democracia? Op. cit., p. 59). 195 D‟ATENA, Antonio. Il principio democratico nel sistema dei principi costituzionali.Op. cit., p. 440. 196 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000, p. 190. Há, no entanto, que se atentar para uma ressalva do autor. A ideia republicana nega a necessidade
da memória histórica e se coloca como fábrica do bem comum a partir da capacidade humana de criticar,
raciocinar e julgar, pressupondo a tríplice liberdade de discurso, de expressão e de associação e colocando a
felicidade universal como propósito supremo da república. O perigo da república é o de fazer o compromisso
errado e sua proposta é garantir uma liberdade positiva aos seus cidadãos, combinando a liberdade individual contra a interferência e o direito do cidadão intervir, como argamassa que une a comunidade republicana (p. 166-
169). 197 Conforme ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 59. 198 GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a Sociedade Civil para além do
bem e do mal. Op. cit., p. 367. 199 Para Roberto Gargarella, a primeira promessa do Direito é a igualdade (GARGARELLA, Roberto. Aula
magna. Proferida na Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba: 02 mar. 2009). Para o autor, a tradição radical
republicana, inspiração na América Latina no século XIX, buscava realizar as condições materiais do
constitucionalismo (GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo, democracia e poder judiciário. Ciclo de
palestras proferidas no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 02 e 03 mar. 2009).
49
ações.200
Além disso, a exigência de igualdade é indispensável para a concepção deliberativa
de uma teoria epistêmica de democracia: igual voz e igual voto são precondições para a
caracterização de uma igualdade substantiva.201
Não se trata de uma visão liberal da igualdade, que considera os sujeitos como
igualmente proprietários de seu próprio corpo, como iguais em face do contrato social, iguais
cidadãos em Rousseau e iguais membros da Nação, como ressalta Pietro Costa. O autor
sublinha que, neste contexto, a defesa dos direitos contra o poder também significa a defesa
da liberdade contra a igualdade. A igualdade, para o liberalismo, é uma igualdade formal,
jurídica, que compõe a cidadania apenas na medida em que permite que todos se tornem
titulares de direitos. Essa é a única igualdade compatível com sua noção de liberdade.202
A liberdade, no pensamento republicano, é vista como não-dominação. A não-
dominação não exclui a interferência, mas apenas a interferência arbitrária, substancial ou
procedimental, e ainda que potencial,203
sublinha Philip Pettit. A inexistência de dominação
permite que todos sejam iguais, sem que ninguém precise fazer deferência a outro, nem temê-
lo. A lei republicana não restringe a liberdade e nem a compromete, apenas a condiciona.
Além disso, o significado do ideal republicano implica uma noção de justiça distributiva: a
máxima distribuição da liberdade, tida como não-dominação, requer um compromisso com a
redistribuição, que serve para afastar os fatores que permitem a dominação.204
Como afirma Sérgio Cardoso, a ideia republicana pressupõe “um espaço comum
equalizador, definido pela implicação de todos os cidadãos no sistema das decisões políticas”,
extrapolando a exigência de democracia política para alcançar “a democratização econômica,
social e cultural”.205
Roberto Gargarella se dedica a analisar o republicanismo contemporâneo, que surge
no final do século XX e acaba combinando críticas liberais e comunitaristas. Para o autor,
essa corrente de pensamento defende valores cívicos (como a igualdade, a integridade, a
200 Toma-se, aqui, a distinção explanada por Gustavo Zagrebelsky. Os valores autorizam a ação ou o juízo
em relação ao resultado, ao fim buscado, enquanto os princípios estabelecem o conteúdo legítimo das ações ou
juízos que perseguem valores a partir de direções, sem indicação precisa da ação ou do juízo (ZAGREBELSKY,
Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin).
Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, Firenze, t. 1, n. 31, p. 865-897, 2002). 201 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 92. 202 COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato costituzionale. Op. cit.,p. 27-28. 203 Newton Bignotto afirma que “[p]ara os novos republicanos, um cidadão não deve apenas não sofrer
interferência em sua independência (liberdade negativa), ele deve ter a garantia institucional de que tal não
ocorrerá” (BIGNOTTO, Newton. Humanismo cívico hoje. In:_____ (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2000, p. 49-69, p. 56). Vale repetir que não se trata de interferência, mas de interferência
arbitrária, que configura dominação. 204 PETTIT, Philip. Republican Political Theory. Op. cit., p. 389-410. 205 CARDOSO, Sérgio. Notas sobre a tradição do „governo misto‟. In: BIGNOTTO, Newton (Org.).
Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 27-48, p. 29.
50
solidariedade, o compromisso com os demais, entre muitos outros) e uma ideia forte de
liberdade – que exige um conjunto de condições políticas e econômicas para que possa se
realizar. O Estado, assim, precisa atuar no sentido de assegurar essas condições, mas sempre
sob o controle efetivo dos cidadãos. A preocupação de Gargarella com o republicanismo está
na possibilidade de intervenção na esfera individual, a partir da exigência de determinadas
posturais morais, com um ideal de excelência que alcance a autonomia individual. É possível,
no entanto, um compromisso sem envolver uma concepção moral vigorosa, assumindo
valores “institucionalmente circunscritos” – exige-se um compromisso com o bem público,
mas cada indivíduo pode desenvolver sua vida da maneira como melhor lhe aprouver.206
A ideia de igualdade tomada pela Constituição de 1988 indica possibilidades de
leitura, que extrapolam a noção de igualdade formal e se ajustam à noção de liberdade
republicana.207
Não é possível, em nenhum momento, esgotar a exigência em uma “igualdade
perante a lei”. A configuração social do Estado exige uma atuação estatal efetiva no sentido
de aprofundar as condições igualitárias de vida, de participação política e de realização
pessoal.
Não se trata de uma Constituição comunitarista,208
mas uma Constituição republicana,
que combina elementos liberais e elementos igualitários. O Estado e a Constituição não são
axiologicamente neutros, mas não impõem um conteúdo fechado para os valores que elege a
partir de uma deliberação democrática.209
Os objetivos da República Federativa do Brasil, expostos no artigo 3º da Constituição
– construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional;
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e
206 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia
política. Tradução: Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1999], p. 183-221. Outra importante
questão levantada pelo autor diz respeito à primazia do bem comum sobre os direitos individuais, defendida pelo
republicanismo. 207 Sérgio Cardoso aduz que as reivindicações republicanas compõem o que resta da cultura política de
esquerda, depois do abandono da exigência da socialização dos meios de produção e da riqueza social e da
democratização da vida social e política (CARDOSO, Sérgio. Notas sobre a tradição do „governo misto‟. Op.
cit., p. 27). 208 Roberto Gargarella traz a crítica aos comunitaristas e sua visão de que nem todos os ideais de vida boa
são igualmente valiosos (GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Op. cit., p. 141 e ss).
À frente, Gargarella traz a posição de Joseph Raz, para quem “o fato de o Estado agir motivado por certos ideais do bem não implica assumir que exista apenas uma concepção moral plausível (pelo contrário – acrescenta –, o
perfeccionismo é compatível com um „pluralismo de valores‟ – com a idéia de que existem múltiplas formas de
vida muito diferentes entre si, e todas elas preciosas)” (p. 167). 209 A não ser que se tenha uma visão fraca do comunitarismo, como a de Gisele Cittadino, que afirma sua
compatibilidade com múltiplas identidades sociais, com uma ideia de justiça sob valores compartilhados (desde
que fracamente) e com uma visão da Constituição que traz como conteúdo um projeto social. Sob esse prisma, a
autora defende que há um “constitucionalismo comunitário” no Brasil, a partir do estabelecimento de um
fundamento ético para a ordem jurídico e da prioridade aos valores da igualdade e da dignidade. A autora afirma,
ainda, que a Constituição de 1988 traz uma linguagem comunitária (CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e
justiça distributiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000).
51
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais outras
formas de discriminação – também podem ser compreendidos como exigência de tratamento
de todos os cidadãos com igual consideração e respeito.
O adjetivo “solidária” remete a uma relação de pertencimento à comunidade, à
responsabilidade conjunta pelos atos e pelos destinos da sociedade, e a tarefa de erradicação
da pobreza e da marginalização evidencia a necessidade de se integrar todos à categoria de
cidadãos, se justifica em relação ao aperfeiçoamento das instituições democráticas. Não
parece haver dúvidas em relação aos demais objetivos: nenhum deles valora ou desvalora
concepções de vida e de moral individuais.
O bem comum210
da sociedade brasileira, definido pelo artigo 3º e por outros
dispositivos da Constituição, critério de aferição da legitimidade e da legalidade da atuação do
Estado, não interfere na liberdade individual. Suas exigências se relacionam a uma noção de
igualdade, mas não uma igualdade total. É uma noção de bem comum que permite a
realização da comunidade política.
O modelo republicano de democracia, que não pressupõe uma verdade moral objetiva,
mas está aberto à discussão dos fins e meios da sociedade política, impõe, no entanto, a
cooperação dos cidadãos.211
Também no cerne da ideia republicana está a visibilidade da
decisão política. Para Jônatas Machado, o governo republicano se caracteriza pela instrução
pública, o direito de sufrágio e a liberdade de expressão.212
Ainda é possível vislumbrar no
ideal republicano a vinculação dos agentes estatais a funções, em uma insuperável relação
210 Sublinha Newton Bignotto que se “a noção de bem público pode nos parecer abstrata, a idéia de que o
melhor de todos é a somatória dos interesses particulares também não possui a objetividade alegada por alguns
teóricos” (BIGNOTTO, Newton. Humanismo cívico hoje. Op. cit., p. 64). Além disso se a ausência de
concretude for obstáculo para a defesa de um valor ou de um princípio, não se pode afirmar que o Estado
brasileiro defende a liberdade e a igualdade ou que o constitucionalismo garante a democracia. Deveria, então,
ser completamente descartada a expressão “Estado de Direito”. E mais, vale trazer a ressalva de Zygmunt
Bauman, sobre a descrença na existência de um bem comum e suas consequências: “Como a arte de negociar
interesses comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso, raramente é praticada, está meio
esquecida ou nunca foi propriamente aprendida; como a idéia do „bem comum‟ é vista com suspeição, como
ameaçadora, nebulosa ou confusa – a busca de segurança numa identidade comum e não em função de interesses
compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as preocupações com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a idéia de interesses comuns, e mais ainda interesses comuns
negociados, tanto mais incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improvável o surgimento da capacidade
e da vontade de sair em busca desses interesses comuns” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida.
Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 124). 211 Para Andrea Greppi, essa concepção de Carlos Santiago Nino o aproxima do perfeccionismo de John
Stuart Mill e do modelo de cidadão virtuoso de Rousseau. Ainda, afirma que Nino estabelece seu modelo valioso
de cidadania sem considerar a vontade concreta dos indivíduos (GREPPI, Andrea. Consenso e imparcialidad.
Sobre la justificación moral de la democracia en el pensamiento de C. S. Nino. Op.cit., p. 252-253). 212 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 52 e 61.
52
entre sua competência e suas tarefas, todas constitucionalmente determinadas, além da reserva
de autodeterminação individual.213
Geraldo Ataliba afirma que o princípio republicano é o mais importante do
ordenamento constitucional. A República é a síntese de todas as instituições e implica a
representação do povo do exercício das funções públicas. O princípio republicano exige
comprometimento dos governantes com as instituições e com a função que exercem. A
República exige ainda a livre expressão das minorias, a existência de canais de oposição
institucional. Aduz que três princípios são a base das instituições republicanas: a legalidade, a
isonomia e a intangibilidade das liberdades públicas.214
A igualdade de acesso aos postos eletivos de poder como elemento do princípio
republicano é a ênfase de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo
Gustavo Gonet Branco: uma república constitucional pressupõe a igualdade de condições,
sem quaisquer distinções, na investidura no poder e o acesso aos cargos públicos, desde que
preenchidas as condições constitucionais e legais.215
Celso Antônio Bandeira de Mello dedica-se ao conteúdo jurídico do princípio da
igualdade, afirmando a imposição de tratamento desigual quando há um fator de discrímen
relevante. A distinção de tratamento, no entanto, deve ser coerente com a diferença real e
coadunar-se com os valores e princípios constitucionais.216
A noção de “constituição-projeto” ou “constituzione-indirizzo” se relaciona não
apenas à atribuição de tarefas ao Estado, mas também à imposição de funções aos cidadãos. A
partir da compreensão da Constituição como um sistema de valores, não apenas o Estado tem
o seu poder limitado pela perseguição de determinados fins, mas a sociedade passa a ser vista
como uma universitas, na qual cada integrante tem um papel a cumprir para a realização de
uma empresa coletiva.217
213 Ressalta Eduardo García de Enterría que o conteúdo da Constituição, estabelecido popularmente,
determina que “los ejercentes del poder serán agentes y servidores del pueblo y no sus propietarios, y, por su
parte, esas funciones han de definirse como limitadas, especialmente por la concreción de zonas exentas al
poder, reservadas a la autonomía privada (libertades y derechos fundamentales)” (GARCÍA DE ENTERRÍA,
Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1983, p. 44-45). 214 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. O autor afirma que os princípios da República e da Federação “exercem função capitular da mais transcedental importância,
determinando inclusive como interpretar os demais”, são reiterados por inúmeras outras disposições
constitucionais e configuram um núcleo rigidíssimo da Constituição (ATALIBA, Geraldo. Eficácia dos
princípios constitucionais – República – Periodicidade e alternância – Reeleição das mesas do Legislativo.
Revista de Direito Público, São Paulo, n. 55-56, p. 166-170, jul./dez. 1980.). 215 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 147. 216 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 21. 217 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Op. cit., p. 136 e 139.
53
Uma das facetas positivadas do ideal republicano em sua relação com o cidadão está
na obrigatoriedade do voto. Sua aceitação, no entanto, não é pacífica em face do princípio
democrático e da ideia de liberdade. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “o voto
obrigatório degrada tanto a qualidade quanto a representatividade efetiva dos eleitos”, ao
desvalorizar a decisão de votar e permitir mais facilmente a manipulação.218
Maurizio Fioravanti se refere ao voto como função ao explicar o modelo estatalista das
liberdades. Nessa visão, em que o Estado surge como origem dos direitos, a escolha dos
representantes não significa o exercício de uma liberdade originária do indivíduo nem
configura uma transferência de poder. Há o exercício de uma função, “aquela de designar, no
interesse público e sobre a base exclusiva do direito positivo estatal, aqueles que terão a tarefa
de expressar a soberania do Estado em forma de lei”.219
O ideal republicano e o Estado social exigem do cidadão. Determinam-lhe uma
postura mais ativa do que a posição liberal clássica. Cobram-lhe um sentimento de
pertencimento e de compartilhamento de destino, uma preocupação crescente com a
coletividade e uma solidariedade, ao menos objetiva e econômica.
Passa-se a exigir do indivíduo não apenas a escolha de candidatos e sua mínima
vigilância. O voto periódico, que aprova ou desaprova mandatários ou adere a determinada
candidatura, não basta. Uma cidadania ativa passa a ser reivindicada, uma democracia para
além do momento eleitoral, uma opinião pública que supere o resultado das urnas e as
pesquisas de opinião.
Do cidadão passa a ser demandado um papel protagonístico, não apenas na defesa de
seus direitos, mas também “en el cumplimiento de sus obligaciones y deberes”, em uma
atuação efetiva.220
Além dos deveres cidadãos, o princípio republicano exige um sentimento
constitucional.221
Um compartilhamento de valores – ainda que finos – que permita a
configuração de uma comunidade jurídica.
218 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Representatividade e democracia. In: ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes; VELLOSO, Carlos Mário da Silva (Coords.). Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996,
p. 41-53, p. 43. 219 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Op. cit., p. 47: “... che è quella
di designare, nell‟interesse pubblico e sulla base esclusiva del diritto positivo statuale, coloro che avranno il
compito di esprimere la sovranità dello Stato in forma di legge”. 220 MONTUFAR, Cesar. Antipolítica, representación y participación ciudadana. Ecuador Debate, Quito, n.
62, ago. 2004. Disponível em: www.dlh.lahora.com.ec/paginas/debate/ paginas/debate1126.htm. Acesso em: 03
mar. 2009. O autor se refere a quatro linhas de ação: exigência e expansão de direitos e garantias; controle,
vigilância e petição de contas; colaboração com a autoridade e fortalecimento institucional; e inovação política. 221 Para Cármen Lúcia Antunes Rocha o Brasil sofre de “uma das piores pragas que pode corroer a prática
jurídica e democrática de um povo: o desconhecimento ou a não vivência do sentimento constitucional”
(ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A Constituição segundo a lei eleitoral ou a lei eleitoral segundo a
54
Contemporaneamente, a questão da cidadania encontra-se inserida em uma lógica de
mercado. Fala-se em usuário, em direitos contra o Estado, e os deveres republicanos são
excluídos do discurso. Talvez efeito do esvaziamento da política, talvez a descrença na
democracia.222
Constituição. Paraná Eleitoral, Curitiba, n. 30, out.1998. Disponível em: http://www.paranaeleitoral.gov.br/
artigo_impresso.php?cod_texto=54. Acesso em: 02 fev. 2004). 222 “... o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania”. “Se o
indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política
fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o
espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do
discurso público. O „público‟ é colonizado pelo „privado‟; o „interesse público‟ é reduzido à curiosidade sobre as
vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e
a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As „questões públicas‟ que resistem a essa
redução tornam-se quase incompreensíveis” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Op. cit., p. 46).
55
2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 INSTITUI O ESTADO BRASILEIRO A PARTIR
DE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES INTANGÍVEIS
O núcleo de uma Constituição é formado pela expressão dos valores fundantes da
ordem jurídica, como conteúdo central da decisão política fundamental. Esses valores se
juridicizam em princípios normativos, que estão para além do poder de reforma da
Constituição.223
Tais princípios se revestem de força normativa e têm seu recorte fracamente
evidenciado por sua enunciação (sempre por termos imprecisos) e fortemente estabelecido
pelos demais princípios constitucionais estruturantes, que formam o arcabouço do
ordenamento.
Maurice Hauriou, ao tratar da supremacia da ordem constitucional, não se refere à
Constituição escrita, mas à superlegalidade constitucional que, para além do texto,
“compreende también todos los principios fundamentales del régimen, es decir, los principios
individualistas – que son la base del Estado – y los principios políticos – que son la base del
gobierno”.224
Há uma primazia interpretativa absoluta desses princípios. Eduardo García de Enterría,
sustentando sua intangibilidade, afirma sua posição hierarquicamente superior e sua função de
presidir a interpretação da Constituição e de todo o ordenamento. Para o autor, esses
princípios consistem nas opções constitucionais básicas que singularizam e configuram o
sistema político, refletindo valores supremos superconstitucionais.225
Konrad Hesse acentua o conteúdo da Constituição a partir da fixação de princípios
reitores que alicerçam a unidade política e configuram as tarefas do Estado. A Constituição
funda a ordem jurídica fundamental, define os procedimentos para a resolução dos conflitos e
regula a organização e o procedimento de formação da unidade política.226
223 Pietro Costa, com base em Ferrajoli, se refere aos “principî indecidibili” como proteção da Constituição
em face da democracia, com um entendimento de um caráter metaestatal dos princípios e dos direitos
fundamentais para permitir-lhes a resistência ao “decisionismo della politica” (COSTA, Pietro. Democrazia
politica e Stato costituzionale. Napoli: Editoriale Scientifica, 2006, p. 49). 224 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. ed. Tradução: Carlos Ruiz del Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 325. Sobre a existência de princípios implícitos, o autor
afirma: “hay otros muchos principios que no necesitan texto, porque lo característico de los principios es existir
y valer sin texto” (p. 327). 225 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional.
Madrid: Civitas, 1983, p. 99 e 231. 226 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleção, tradução e introdução: Pedro Cruz
Villalon. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 16. Para José Alfredo de
Oliveira Baracho, “[o] núcleo material da Constituição é definido por suas dimensões normativo-materiais
fundamentais que, por sua vez, alimenta todo o projeto constitucional. Como estatuto jurídico do político ou
como estatuto fundamental da comunidade, objetiva, entre outros, alguns dados essenciais: dignidade da pessoa
56
Além disso, o autor ressalta que o núcleo material da Constituição está para além do
alcance da modificação constitucional, pois se compõe dos “elementos fundamentais da
ordem democrática e estatal-jurídica da Lei Fundamental”. Estão incluídos nesse núcleo
material os direitos fundamentais, o princípio da divisão de poderes (como “princípio
organizacional sustentador da Constituição”), os fundamentos da ordem democrática – “a
legitimação do domínio pela maioria do povo, a oportunidade igual e a proteção das minorias,
o processo político aberto e livre da democracia” – e ainda os princípios do Direito Eleitoral,
“a cooperação dos partidos na formação da vontade política, o princípio do pluripartidarismo,
a liberdade de fundação e a igualdade de oportunidades dos partidos políticos, o controle
parlamentar e o direito à oposição parlamentar”, as bases da ordem estatal-federal e os
dispositivos sobre a reforma da Lei Fundamental.227
Para Manuel Aragon, a característica de uma Constituição principialista é poder se
adaptar às mudanças sociais e suas novas demandas, mas a constitucionalização dos seus
princípios impõe limites às mutações desvirtuadoras da normatividade constitucional. Deve-se
evitar, assim, a busca de valores implícitos, como princípios não positivados, em uma tarefa
que o juiz substitui o legislador.228
Para Luis Sanchez Agesta, aproximando-se de Maurice Hauriou, três elementos
formam um regime constitucional: um núcleo central de ideias, externado por princípios que
se vinculam à legitimidade do poder, a organização do Estado e de seus órgãos e uma ordem
econômica e social.229
Sem esses componentes, não há o que se pensar em um Estado
constitucional. E as escolhas centrais não podem ser objeto de alterações pelos poderes
humana, a regulação da vida comunitária pelo direito e o processo democrático” (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O abuso do poder econômico nas constituições brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Políticos,
Belo Horizonte, n. 71, p. 57-81, jul. 1990, p. 58). 227 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. 20. ed.
Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 512-516. 228 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Revista Española de Derecho
Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985, p. 17. O autor faz uma longa citação do voto do
magistrado Rubio Llorente na sentença 53/85 do Tribunal Constitucional Espanhol, que vale trazer aqui: “El
intérprete de la Constitución no puede abstraer de los preceptos de la Constitución el valor o los valores que, a
su juicio, tales preceptos „encarnan‟, para deducir después de ellos, considerados ya como puras abstracciones,
obligaciones del legislador que no tienen apoyo en ningún texto constitucional concreto. Esto no es ni siquiera
hacer jurisprudencia de valores, sino lisa y llanamente suplantar al legislador, o quizá más aún, al próprio poder constituyente”. E adiante: “La proyección normativa de los valores constitucionalmente consagrados
corresponde al legislador, no al juez” (p. 23). 229 SANCHEZ AGESTA, Luis. Curso de Derecho Constitucional Comparado. 7. ed. Madrid:
Universidade de Madrid, 1980, p. 51. Na página 56 desta obra, o autor traz um quadro intitulado “A autoridade e
as formas de governo” em que distingue as formas puras democracia e constitucionalismo. A primeira tem como
princípio do poder a soberania da nação, como fundamento de autoridade a vontade atual do povo, como função
o interesse nacional e a liberdade e como título da autoridade eleição ou representação. No constitucionalismo, a
segurança e os fins institucionais configuram o princípio do poder, o poder como competência jurídica é o
fundamento de autoridade, sua função se relaciona ao respeito ao Direito e à liberdade e o título da autoridade se
vincula ao acesso ao poder regulado pelo Direito.
57
constituídos, sob pena de inexistir um conteúdo realmente com força constitucional – tudo
fica à mercê da autoridade constituída, sem o respeito à autoridade constituinte.
Nem mesmo o povo soberano, por manifestações de vontade que não se configurem
constituintes, poderá alcançar esse conjunto de valores externados em princípios e que
evidenciam o esqueleto constitucional. O constitucionalismo importa o estabelecimento de
limites ao próprio poder soberano, ao menos em sua atuação cotidiana, em que ele se
manifesta por meio de seus representantes ou diretamente, mas sem uma ruptura
constitucional.
O isolamento em face da política majoritária das disposições constitucionais
estruturais é democrático, afirma Cass Sunstein, enquanto assegure a atuação estatal no
interesse do povo.230
Com Gustavo Zagrebelsky, a Constituição “es aquello sobre lo que no se
vota; o mejor, en referencia a las constituciones democráticas, es aquello sobre lo que ya no
se vota, porque ya ha sido votado de uma vez por todas, en su origen”.231
Assim se configuram os princípios constitucionais estruturantes, inclusive os relativos
ao Direito Eleitoral. São decisões inatingíveis, que formam o núcleo duro da Constituição: são
os pilares do Estado brasileiro. Apenas um novo momento constituinte, que venha a substituir
a estruturação estatal e as determinações políticas fundamentais, ao fazer tábula rasa do
ordenamento jurídico vigente, pode afastar esses princípios.
Essa compreensão do constitucionalismo e da existência de um núcleo duro e
inatingível da Constituição é que possibilita o desenvolvimento de uma “vontade de
Constituição”, que leva à realização de seus conteúdos e à sua vigência real.232
Sem ele, e sem
230 SUNSTEIN, Cass R. Constituciones y democracias: epílogo. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune
(Orgs.). Constitucionalismo y democracia. Tradução: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de
Cultura Económica, 1999 [1988], p. 344-371, p. 344-345. Para o autor, as disposições estruturais se destinam a
minimizar as patologias das concepções de democracia – assim, a separação de poderes tende a limitar o poder
das facções e o exercício do poder em benefício próprio. E afirma: “Los temores por partida doble a la tiranía
faccional y a la representación egoísta a menudo han sido importantes fuerzas motivadoras tras las
disposiciones estructurales”. 231 ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Tradução:
Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2008 [2005], p. 27. O autor é enfático: a Constituição fixa os
pressupostos da vida em comum e as regras de exercício do poder público e os coloca para além da batalha política (p. 29). 232 Para Konrad Hesse, “[l]a voluntad del constituyente histórico no puede fundamentar la vigencia real de
la Constitución y, desde luego, no puede mantenerla”. A força normativa da Constituição está condicionada pela
possibilidade de realização dos seus conteúdos. “Cuanto más intensa sea la „voluntad de Constitución‟ (Wille
zur Verfassung) tanto más lejos cabrá situar los límites de las posibilidades de realización de la Constitución”
(HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 26-27). Segundo Carlos Ayres Britto, a
vontade da Constituição de 1988 é ótima, mas a vontade de Constituição da sociedade brasileira está aquém da
Constituição (BRITTO, Carlos Ayres. Democracia como princípio, meio e fim. Palestra proferida na Jornada
jurídica em homenagem ao professor Jorge Miranda: os 20 anos da Constituição Brasileira de 1988, Brasília, 03
out. 2008).
58
a vontade, não há Constituição, pois suas normas centrais sempre poderão ser alteradas,
formal ou informalmente, confundindo-se com a legislação ordinária.
2.1 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO BRASILEIRO
Os princípios estruturantes configuram decisões políticas formadoras do núcleo
estabilizado da Constituição, que está fora do debate político democrático, para além do
alcance da discussão política ordinária. São “as traves-mestras jurídico-constitucionais do
estatuto jurídico do político”, que formam o núcleo essencial da Constituição e lhe garante
identidade e estrutura.233
A identificação dos princípios estruturantes depende das escolhas constituintes
efetivamente realizadas na construção da Constituição e, portanto, não são as mesmas em
todos os ordenamentos jurídicos.
Lendo a Constituição espanhola, Eduardo García de Enterría aponta como princípios
estruturantes a democracia, o Estado de Direito, o Estado Social de Direito, a liberdade e a
igualdade, as autonomias territoriais das nacionalidades e regiões, a indissociabilidade do
território espanhol, o sistema formal de liberdades, a monarquia parlamentar e a decisão pelo
princípio da legalidade.234
Jorge Reis Novais indica como princípios constitucionais estruturantes da República
Portuguesa o princípio do Estado de Direito, o princípio da sociabilidade e o princípio
democrático. O princípio do Estado de Direito tem como subprincípios densificadores a
dignidade, a igualdade, a proibição do excesso, a segurança jurídica e a proteção de confiança.
O princípio da sociabilidade impõe o reconhecimento da fundamentalidade dos direitos
sociais.235
José Joaquim Gomes Canotilho traz um elemento a mais: o princípio da unidade do
Estado.236
233 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1999, p. 1099 e 1110. O autor afirma que os princípios estruturantes são “constitutivos e indicativos das ideias directivas básicas de toda a ordem constitucional” (p. 1099). José Roberto Vieira inclui nesses
princípios a República, afirmando sua configuração como cláusula imutável e intocável (VIEIRA, José Roberto.
República e Democracia: óbvios ululantes e não ululantes. Revista Brasileira de Direito Constitucional,
Curitiba, n. 4, p. 77-100, 2003, p. 86). 234 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Op.
cit., p. 98-99. 235 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:
Coimbra, 2004. 236 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 235-
347. Na parte referente à teoria da Constituição, o autor inclui ainda o princípio republicano (p. 1099).
59
José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam a significação específica de
cada princípio, com a existência de um conteúdo próprio, mas acentuam sua atuação
conjugada, sua articulação complementar e seu condicionamento recíproco. Além disso,
ressaltam as “deslocações compreensivas” dos princípios: “modificações relativas à
compreensão do conteúdo de um princípio são suscetíveis de produzir reflexos no correcto
entendimento do outro”. Da aplicação dos princípios exige-se concordância prática e
harmonização, para que se possa extrair de todos sua máxima efetividade.237
Os princípios estruturantes apresentam, para José Joaquim Gomes Canotilho, uma
dimensão constitutiva (pois “exprimem, indiciam, denotam ou constituem uma compreensão
global da ordem constitucional”) e uma dimensão declarativa, ao assumirem a natureza de
“superconceitos” ou “vocábulos designantes” em relação aos seus subprincípios e às
concretizações normativas constitucionais. Além disso, esses princípios são “dimensões
paradigmáticas de uma ordem constitucional „justa‟” e servem para avaliar a “legitimidade e
legitimação de uma ordem constitucional positiva”.238
Pode-se verificar, na Constituição brasileira, o Estado de Direito, Democrático e
Social, de cunho fortemente constitucional, a República e o pluralismo como princípios
estruturantes. O Estado brasileiro se configura um Estado de Direito. O Estado de Direito
exige uma separação das funções estatais típicas em diferentes órgãos de soberania para
controle recíproco de atuação e para a limitação do poder, nos limites impostos pela
Constituição.
Pietro Costa debruça-se sobre o tema, indicando o horizonte de sentido do termo e
demonstrando os distintos conteúdos da noção em diferentes momentos e lugares. O autor
indica três pontos cardeais do conceito – o poder político, o Direito e os indivíduos – e afirma
que o Estado de Direito se apresenta “como um meio para atingir um fim: espera-se que ele
indique como intervir (através do „direito‟) no „poder‟ com a finalidade de fortalecer a
posição dos sujeitos”. A principal ideia é limitar juridicamente (ou seja, pelo Direito) o poder
político em favor dos sujeitos, mas sem que isso indique necessariamente a previsão e
garantia de direitos individuais.239
O autor ressalta que se no século XIX a noção de
submissão ao Direito não extrapolava a atuação administrativa do Estado, a construção
237 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra:
Coimbra, 1991, p. 73-75. 238 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p.
1110-1111. 239 COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução histórica. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo
(Orgs). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 95-198.
60
kelseniana que identifica Estado e Direito e que hierarquiza as normas jurídicas permite que
toda a atividade estatal – marcadamente a legislação – seja limitada pelo Direito.240
Para Maurizio Fioravanti, assim como a Constituição pode ser entendida em dois
sentidos – como suprema norma jurídica de garantia ou como princípio primeiro de unidade,
ainda que em ambos se configure como um remédio contra o arbítrio – a noção de Estado de
Direito pode ser compreendida por duas tradições, correspondentes aos sentidos de
Constituição: um Estado limitado e dominado pelo Direito e um Estado que trabalha pelo
Direito. Em sua primeira acepção, “o Estado de direito é primeiro „de direito‟ e depois
„Estado‟”; na segunda, “o Estado de direito é primeiro „Estado‟, e depois „de direito‟, uma vez
que se pensa que não pode existir nenhum direito a não ser sobre a base do princípio de
unidade política expresso na constituição e representado pela autoridade do Estado”.241
Na elaboração teórica em torno do Estado liberal de Direito, pretende-se contrapor ao
modelo democrático radical revolucionário, que tudo permite à soberania popular, uma
exigência histórica de poder limitado. Busca, assim, estabelecer uma constituição como
princípio de ordem de uma comunidade (Verfassung) e, a partir disso, como limite ao
exercício do poder, e superar, ao mesmo tempo, o poder absoluto do soberano e os direitos
individuais absolutos, de matriz jusnaturalista.242
António Manuel Hespanha vê o “Estado de Direito” como uma petição de princípio,
percebido, em seu surgimento, como algo bom entre duas coisas más: o absolutismo e o
assembleísmo. O “Direito” é filtrado pelos juristas, que racionalizam o Direito espontâneo
elaborado pelas cortes, dando-lhe um caráter de continuidade. Não há nem o arbítrio do rei,
nem o arbítrio do povo.243
Conforme Jorge Reis Novais, o princípio do Estado de Direito garante uma “dimensão
de defesa ou reserva de autonomia e liberdade individuais face ao Poder político”.244
Os
fundamentos do Estado democrático de Direito são, para Clèmerson Merlin Clève,
“legitimidade legalizada e lei legitimada”. A lei legítima é aquela na qual o cidadão se
identifica como sujeito e objeto, como quem elabora seu conteúdo e reconhece o seu
240 COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato costituzionale. Op. cit., p. 35-40. 241 FIORAVANTI, Maurizio. Stato e costituzione: Materiali per una storia delle dottrine costituzionali. Torino: G. Giappichelli, 1993, p. 189: “Nel primo caso, lo Stato di diritto è prima „di diritto‟, e poi „Stato‟, ed
anzi, a rigore, è „Stato‟ solo attraverso il diritto; nel secondo caso, all‟oposto, lo Stato di diritto è prima „Stato‟,
e poi „di diritto‟, poiché si pensa che non possa esistere alcun diritto se non sulla base del principio di unità
politica espresso nella costituzione e rappresentato dalla autorità dello Stato”. 242 Ibid., p. 199-201. 243 HESPANHA, António Manuel. O liberalismo do Estado liberal: o exemplo português do
constitucionalismo monárquico (1800-1910 – confrontos com o Brasil). Curso da Escola de Altos Estudos –
CAPES, realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 16 mar. a 05 maio 2009. 244 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 32-
33.
61
comando.245
Victor Nunes Leal coloca o regime da legalidade no núcleo do Estado de direito,
afirmando seu avigoramento com as constituições rígidas, que leva à distinção entre poder
constituinte e poder legislativo.246
O Estado de Direito não pode ter como fundamento uma “verdade”, sob pena de se
revelar intolerante e violento. Ronald Dworkin apresenta duas concepções de “Estado de
Direito”. A primeira delas se identifica com a existência de texto legal que explicitamente
permita, nas medidas dadas, o exercício do poder do Estado, sem referência ao conteúdo das
regras. A segunda concepção é “centrada nos direitos” e parte da existência de que “os
cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado como um
todo”: parte de uma noção de direitos individuais publicamente assumida pelo Estado para
que esse se configure como um Estado de Direito. Essas diferentes concepções recomendam
diferentes teorias da prestação jurisdicional, pois a concepção centrada nos direitos nega que o
texto jurídico seja a fonte exclusiva dos direitos morais. Não aceita, no entanto, que os
princípios rejeitados na tentativa de captação dos direitos morais pela comunidade sejam
levados em consideração na tomada de decisões pelos juízes.247
Ressalta Clèmerson Merlin Clève que o Estado de Direito democraticamente
configurado se revela um Estado de Justiça, justiça historicamente determinada,
“juridicamente conformada pela própria Constituição”, com um determinado sentido
axiológico.248
Com Paulo Bonavides, “[o] Estado de Direito não se define apenas pela legalidade,
mas pelos princípios constitucionais, por considerações superiores de mérito, que governam e
fundamentam”. O autor ressalta que o Estado social de Direito incorpora “um evangelho de
valores e crenças extraídas do coração da consciência do homem”.249
Ainda que o Estado Constitucional, ou o Estado Democrático de Direito, pressuponha
uma Constituição rígida, formada por um núcleo intangível, o que demanda um lugar de
proteção de sua supremacia – e que esse lugar seja em regra o Poder Judiciário – isso não leva
245 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo:
Acadêmica, 1993, p. 85. 246 LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento. In:_____. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960 [1945], p. 57-91, p. 61-62. 247 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 6-7 e 15-16. Afirma expressamente o autor: “Assim, um juiz que segue a concepção centrada
nos direitos não deve decidir um caso controverso recorrendo a qualquer princípio que seja incompatível com o
repertório legal de sua jurisdição” (p. 16). O texto utilizado aqui – Os juízes políticos e o Estado de Direito – foi
publicado originalmente em 1978. 248 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 142-143. 249 BONAVIDES, Paulo. A salvaguarda da democracia constitucional. In: MAUÉS, Antônio G. Moreira
(Org.). Constituição e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 245-260, p. 257.
62
ao desprestígio ou ao deslocamento do Poder Legislativo de sua função de deliberar e formar
a vontade política. Apesar das críticas (cabíveis) à atuação do corpo representativo, é ali, pelo
desenho constitucional, o canal de manifestação da vontade da cidadania.
Para Romeu Felipe Bacellar Filho, o Estado de Direito de cunho democrático exige
legalidade e legitimidade, impõe a harmonização entre a vontade da maioria democrática e os
princípios que configuram o próprio Estado de Direito e a democracia.250
Um dos princípios relacionados ao Estado Constitucional de Direito, derivado do
princípio da supremacia da Constituição, é o da reserva da Constituição – que estabelece a
regulação das decisões políticas fundamentais pelo diploma constitucional. Os subprincípios
concretizadores do Estado de Direito, apontados por José Joaquim Gomes Canotilho, e que se
revelam de extrema importância para a análise aqui desenvolvida, são o princípio da
legalidade da administração, que se reflete no princípio da supremacia ou prevalência da lei e
no princípio da reserva de lei, os princípios da segurança jurídica e da proteção de confiança
dos cidadãos, o princípio da proibição do excesso e o princípio da proteção jurídica e das
garantias processuais. O princípio da reserva de lei reconhece na lei parlamentar “a expressão
privilegiada do princípio democrático” e o instrumento apropriado para definir o regime “da
vertebração democrática do Estado”.251
As matérias relativas ao Direito Eleitoral, por
configurarem o estatuto das regras do jogo democrático, estão portanto necessariamente
vinculadas à reserva de lei parlamentar.
As normas eleitorais (e sua aplicação), pelo mesmo motivo, devem respeitar os
princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança,252
assegurando ao cidadão a
fiabilidade e racionalidade dos atos legislativos e judiciais pertinentes ao processo eleitoral.
Em relação a atos jurisdicionais, o princípio da segurança jurídica exige estabilidade (as
decisões não podem ser arbitrariamente modificadas, “sendo apenas razoável a alteração das
mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”) e previsibilidade
(“exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos
jurídicos dos actos normativos”).253
250 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 138. 251 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 243 e
251. 252 “A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e
transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas
suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da
segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder –
legislativo, executivo e judicial” (Ibid., p. 252). 253 Ibid., p. 259. Conforme Lígia Maria Silva de Melo, o homem exige “a certeza de que o Estado de
Direito lhe possibilita certezas, que a ordem jurídica estabelecida possui credibilidade, já que o Direito se
63
O constitucionalismo informado pelas novas tarefas do Estado, de promoção de
determinados direitos que se relacionam com um ideal de igualdade substancial, impõe uma
leitura específica dos princípios da liberdade e da igualdade.254
Essa igualdade, para além de
seu aspecto puramente formal, é exigência compartilhada com outro princípio estruturante: o
princípio da República.
Para Enrique Ricardo Lewandowski, o princípio republicano forma o núcleo essencial
da Constituição, ao lado dos princípios federativo e democrático. É um princípio estruturante,
que impõe a eletividade, a temporariedade e a responsabilidade em relação aos mandatos
políticos, voto igual e imediato, representação das minorias e pluripartidarismo, igualdade de
acesso aos cargos públicos, ampla liberdade de opinião e os deveres de tolerância e
solidariedade. E “representa a viga mestra do „sentimento constitucional‟”.255
A República, como a democracia, pressupõe que os projetos individuais de vida
possam ser levados adiante sem interferência arbitrária do Estado. O princípio do pluralismo,
também estruturante do Estado brasileiro, afasta a imposição de um consenso substancial de
valores para além daqueles que se mostram essenciais para a própria existência da
comunidade. Um desses valores, parece ser possível defender, é a democracia.
O pluralismo repele a homogeneidade, rejeita a compreensão do bem comum
vinculada a um conteúdo pré-determinado, acentua Chantal Mouffe. Para a autora, o
pluralismo não se vincula à caracterização de uma sociedade como democrática, mas como
liberal. A coexistência de visões plurais, no entanto, se impõe o abandono da visão de
democracia vinculada a uma vontade geral de uma entidade unificada. Para que haja um
pluralismo democrático, afirma Chantal Mouffe, faz-se necessária uma adesão por parte das
visões plurais aos princípios políticos da liberdade e da igualdade.256
Jürgen Habermas vê as sociedades contemporâneas como fortemente pluralistas,
incapazes de se adequarem ao velho conceito de Estado nacional. Para o autor, a
impossibilidade de se configurar um povo homogêneo impõe ao republicanismo remeter ao
justifica para dar segurança ao homem” (MELO, Lígia Maria Silva de. Segurança jurídica: fundamentos do
Estado de Direito. Raízes jurídicas, Curitiba,v.1, n.1, p. 149-158, jul./dez. 2005, p. 152). 254 Inclusive em matéria eleitoral, o que provoca um novo olhar sobre a exigência da máxima igualdade entre os candidatos na disputa eleitoral (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las
competiciones electorales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 2. O autor acentua
a inadequação de uma visão puramente individualista em relação às previsões normativas eleitorais). 255 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. In: VELLOSO,
Carlos Mários da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do(Coords.). Princípios
constitucionais fundamentais: Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo:
Lex, 2005, p. 375-384. 256 MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt. Tradução: Menelick de
Carvalho Neto. Cadernos da Escola do Legislativo da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Belo
Horizonte, v. 1, n. 2, p. 91-107, jul./dez. 1994.
64
processo democrático o papel de integração social. Em sociedades multiculturais, com
diferentes imagens de mundo, a democracia deve incorporar além dos direitos de liberdade e
de participação “o gozo profano de direitos sociais e culturais ao compartilhamento”.257
Para Ignacio de Otto Pardo, deve-se entender o pluralismo como a “garantía jurídica
de la posibilidad de lo otro”.258
Marcelo Galuppo aponta o pluralismo como a coluna das
democracias contemporâneas, caracterizado pela disputa pelas decisões políticas, pela
abertura para a discussão e pela inexistência de uma definição do que seja vida boa. A
Constituição é ao mesmo tempo um consenso de fundo e a “manifestação indireta de um
dissenso”, que organiza e conforma juridicamente a possibilidade do exercício do
pluralismo.259
Cesareo R. Aguilera de Prat acentua que “el pluralismo no por definición es
democrático” – o medievo europeu era pluralista sem ser democrático e as democracias
antigas não eram pluralistas. O Estado Social, no entanto, exige a união entre democracia e
pluralismo, permitindo inclusive distintas concepções de democracia. Para o autor, os partidos
políticos e o Parlamento são instrumentos de redução do pluralismo e as eleições buscam
integrar o consenso.260
Para Cármen Lúcia Antunes Rocha, “[l]iberdade rima com pluralidade”.261
Gilmar
Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco afirmam que o
princípio do pluralismo, assegurado constitucionalmente, não se refere apenas a preferências
políticas e ideológicas, mas também religiosas, econômicas, sociais e culturais.262
Além dos princípios constitucionais estruturantes apresentados,263
a Constituição
estabelece outros marcos fundamentais setoriais. Embora não se apliquem a todo o
ordenamento jurídico, estruturam seus ramos e configuram um núcleo inalcançável de
257 HABERMAS, Jürgen. O Estado nacional europeu – sobre o passado e o futuro da soberania e da
nacionalidade. In:_____. A Inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução: Paulo Astor Soethe. São
Paulo: Loyola, 2004 [1996], p. 127-151, p. 140-142. 258 OTTO PARDO, Ignácio de. Defensa de la Constitución y Partidos Políticos. Madrid: Centro. de
Estudios Constitucionales, 1985, p. 30. 259 GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional e pluralismo. In: José SAMPAIO, Adércio
Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coords.). Hermenêutica e jurisdição constitucional: Estudos em
homenagem a José Alfredo de Oliveira Baracho. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 47-65. 260 AGUILERA DE PRAT, Cesareo R. Problemas de la democracia y de los partidos en el Estado social. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Madrid, n. 67, p. 93-123, ene./mar. 1990, p. 98 e 107. 261 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A Constituição segundo a lei eleitoral ou a lei eleitoral segundo a
Constituição. Paraná Eleitoral, Curitiba, n. 30, out.1998. Disponível em: http://www.paranaeleitoral.gov.br/
artigo_impresso.php?cod_texto=54. Acesso em: 02 fev. 2004. 262 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 156. 263 Raul Machado Horta defende a Federação como constitutiva das normas centrais da Constituição
(HORTA. Raul Machado. Normas centrais da Constituição Federal. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
n. 135, p. 175-178, jul./set. 1997, p. 175-178). Ainda que se possa afirmar seu papel definitivo na determinação
de competências e na distribuição do poder, não tem muitos reflexos sobre o tema da pesquisa.
65
decisões políticas.264
Talvez os três principais campos setoriais sejam o Direito Penal, o
Direito Tributário e o Direito Administrativo.
A Constituição traz ao longo do artigo 5º os princípios constitucionais estruturais do
Direito Penal. Os dispositivos referentes à exigência de lei para a tipificação do crime e para a
imposição de sanção (XXXIX), à proibição da retroatividade da lei mais severa (XL), da
pessoalidade da pena (XLV) e da sua individualização (XLVI), a proibição de penas cruéis
(XLVII, e), entre outros, revelam essas decisões constituintes que não podem ser afastadas,
sob pena de se quebrar a própria existência da Constituição.
Juarez Cirino dos Santos apresenta um rol de princípios constitucionais que regem o
Direito Penal, iniciando pela legalidade, que compreende a proibição da retroatividade, a
configuração de crime e a imposição de pena derivada de costume, a aplicação da analogia
para a tipificação penal e a indeterminação do tipo e da sanção. Indica ainda a culpabilidade, a
lesividade, a proporcionalidade, a humanidade (que afasta penas cruéis e indignas e o
cumprimento de pena em condições indignas) e a responsabilidade penal pessoal.265
Embora sem qualificá-los de constitucionais, René Ariel Dotti indica os princípios
fundamentais de Direito Penal: humanidade das sanções, anterioridade, taxatividade da norma
incriminadora, aplicação da lei mais favorável, proporcionalidade da pena, individualização
da pena, intervenção mínima, necessidades das reações penais e utilidade social.266
Todos
esses fundamentos revelam valores que foram alçados à categoria de princípios
constitucionais. E, ainda que estejam implícitos no texto constitucional, não estão ao alcance
do debate democrático. Uma decisão política, mesmo tomada diretamente pelo povo em uma
consulta plebiscitária, não pode afastar esses princípios. Eles são intangíveis.
Há um núcleo de princípios constitucionais estruturantes também no âmbito do Direito
Tributário. A partir do artigo 145 da Constituição, encontra-se uma série de dispositivos que
revelam escolhas que estão além da arena política.
Roque Antonio Carrazza propõe uma leitura dos princípios constitucionais tributários
a partir de sua derivação dos princípios constitucionais gerais. Para o autor, do princípio
republicano deriva o princípio da igualdade tributária e da capacidade tributária e do princípio
264 “As limitações materiais ao poder de reforma não estão exaustivamente enumeradas no art. 60, §4 º, da
Carta da República. O que se puder afirmar como ínsito à identidade básica da Constituição ideada pelo poder
constituinte originário deve ser tido como limitação ao poder de emenda, mesmo que não haja sido explicitado
no dispositivo. Recorde-se sempre que o poder de reformar a Constituição não equivale ao poder de dar ao País
uma Constituição diferente, na sua essência, daquela que se deveria revigorar por meio da reforma”. MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. Op. cit., p. 228. 265 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007, p. 19-
32. 266 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 54-70.
66
federativo decorre o princípio da igualdade entre as pessoas políticas. Geram efeitos
específicos no campo tributário os princípios da anterioridade, da legalidade e da segurança
jurídica e também dá sentido à ordem constitucional tributária o princípio da autonomia
municipal.267
Não parece possível negar a impossibilidade de afastamento dos princípios
estruturantes do Direito Tributário pelo poder de reforma. O Estado de Direito e sua
configuração constitucional não dão acolhida ao desaparecimento do princípio, por exemplo,
da legalidade tributária ou da igualdade tributária. Reflexos diretos dos princípios
estruturantes da legalidade e da igualdade, são, como esses, inatingíveis.
Da mesma maneira acontece com os princípios constitucionais estruturantes do Direito
Administrativo. A Constituição, explícita ou implicitamente, apresenta os princípios que
devem orientar o cumprimento das tarefas estatais.
No caput do artigo 37 estão indicados os princípios da legalidade, da impessoalidade,
da publicidade, da moralidade e da eficiência, este inserido pela Emenda Constitucional
19/98. Ressalta Romeu Felipe Bacellar Filho que a legalidade identifica o Estado de Direito e
faz com que a Administração se submeta à lei e atue em consonância com as suas prescrições.
A impessoalidade, com importantes reflexos na seara eleitoral, importa a atuação isenta e
igualitária da Administração. A publicidade impõe-se pela exigência de transparência do agir
do poder público. A moralidade no campo administrativo garante a certeza e a segurança
jurídicas, assegurando a lealdade e a boa-fé da Administração e do particular. A eficiência
exige “realizar mais e melhor com menos, ou seja, prover os serviços públicos necessário para
toda a população, de maneira satisfatória e com qualidade, utilizando o mínimo necessário de
suporte financeiro”.268
A supremacia do interesse público (devidamente considerado) sobre o interesse
privado,269
a indisponibilidade pela Administração dos interesses públicos, a legalidade (e
suas implicações, como a finalidade, a motivação, a responsabilidade do Estado), a
obrigatoriedade do desempenho de atividade pública e a continuidade do serviço público, o
267 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25. ed. rev., ampl. e atual.
São Paulo: Malheiros, 2009. 268 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48-55.
O autor inclui o princípio da motivação, que permite o controle do cidadão sobre a atuação da Administração
Pública. 269 Há uma forte polêmica contra esse princípio, a partir de uma análise da fundamentalidade de
determinados direitos e que não poderiam ser subordinados ao interesse público. Tal posicionamento, no entanto,
parece se equivocar na apreciação do que seja interesse público, confundindo-o talvez com o que os agentes
políticos afirmam ser o interesse público. Devidamente considerado não se pode conceber um interesse público
que contrarie um direito fundamental devidamente considerado (e não o que o indivíduo afirma ser direito
fundamental, não levando em conta o recorte constitucional dado ao direito e sua relação com outros direitos
fundamentais).
67
controle administrativo, a isonomia, a publicidade, a inalienabilidade dos direitos relativos a
interesses públicos, o controle jurisdicional dos atos administrativos e a segurança jurídica são
os princípios que conformam o regime jurídico administrativo, nos termos da doutrina de
Celso Antônio Bandeira de Mello.270
Juarez Freitas indica um catálogo de princípios fundamentais que, a partir do princípio
democrático, devem reger o Direito Administrativo: princípio do interesse público e
subordinação das ações estatais ao princípio da dignidade humana; princípio da
proporcionalidade e seus correlatos; princípio da legalidade; princípio da imparcialidade ou da
impessoalidade; princípio da moralidade e subprincípio da probidade administrativa; princípio
da publicidade; princípio da confiança ou da boa-fé recíproca; princípio da segurança jurídica;
princípios da ampla sindicabilidade associado ao princípio da participação; princípio da
unidade da jurisdição e do acesso ao Poder Judiciário; princípio da eficiência; princípio da
legitimidade; princípio da responsabilidade objetiva da Administração Pública; e princípio da
intervenção essencial, como dever do Estado de promoção imediata da tutela dos direitos
fundamentais.271
No campo das regras relacionadas à legitimação do exercício do poder político, os
princípios constitucionais estruturantes são o princípio da autenticidade eleitoral, o princípio
da liberdade para o exercício do mandato, o princípio da necessária participação das minorias
do debate público e nas instituições políticas, o princípio da máxima igualdade na disputa
eleitoral e o princípio da legalidade específica em matéria eleitoral.
Todos esses princípios setorais estruturantes estão para além do debate político.
Nenhuma vontade majoritária pode afastá-los, nenhuma decisão judicial pode desviar-se
deles. São princípios inatingíveis, que conformam o Estado brasileiro.
2.2 A CONTROVERSA QUESTÃO ENTRE DEMOCRACIA E
CONSTITUCIONALISMO
A partir das noções constitucionais de democracia e de Estado de Direito, faz-se
necessário enfrentar a questão central da teoria constitucional: os limites constitucionais às
270 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 60-77. 271 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed, rev. e ampl.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 32-33. O autor inclui o direito fundamental à boa administração entre os
princípios constitucionais (FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa
administração pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009).
68
decisões democráticas e, consequentemente, o papel da jurisdição constitucional na garantia
da observância desses termos. Como afirma Gustavo Zagrebelsky, “[l]a función del Tribunal
[Constitucional] es política, pero al mismo tiempo no pertenece a la política; resulta esencial
en nuestro modo de entender la democracia, pero al mismo tiempo no deriva de la
democracia”.272
Em primeiro lugar, ressalta-se o recorte feito pelo pensamento liberal na esfera
pública. Benjamin Constant faz a ressalva de que a existência dos indivíduos não pode estar
submetida à disposição dos cidadãos: uma parte da vida deve ficar à margem da disputa
social: “Onde começa a independência e a existência individual termina a jurisdição da
sociedade”. Entre as matérias alheias ao legislador estão os direitos individuais anteriores e
independentes da autoridade política, como a liberdade individual, religiosa, de opinião e de
expressão, o gozo da propriedade e a garantia contra todo ato arbitrário.273
Há uma divisão
entre o que é puramente individual – mas que exige a proteção estatal contra sua violação,
pelo Estado ou por outros indivíduos – e o que diz respeito à comunidade, ao conjunto de
cidadãos, e que deve ser decidido por todos.274
No entanto, a escolha entre os princípios que devem orientar a vida em comum e os
direitos reconhecidos e protegidos pelo Estado, com a definição do que é da autonomia
individual e o que constitui a esfera pública, passa, a partir da adoção do constitucionalismo,
por uma decisão constituinte. A decisão constituinte pressupõe uma intenção fundadora e
permanente, ou, ao menos, a constituição de um núcleo que tende a permanecer ao longo do
tempo. O que, de alguma forma, ofende a autonomia individual dos indivíduos do futuro –
sem problematizar a falta de consentimento ou o consentimento falho dos indivíduos
contemporâneos ao ato constituinte.
272 ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Tradução:
Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2008 [2005], p. 11. 273 CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: Princípios políticos aplicáveis a todos os
governos representativos e particularmente à Constituição atual da França. Tradução: Maria do Céu Carvalho.
Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989 [1815], p. 63-70. Escrevendo após a Revolução Francesa e o terror, o autor
afirma: “O reconhecimento abstrato da soberania do povo não acrescenta nada na liberdade dos indivíduos e
caso se lhes atribua uma dimensão ilimitada pode perder-se a liberdade” (p. 62). Roberto Gargarella afirma que
decisões sobre privacidade não devem ser tomadas nem pelo legislador nem pelos tribunais, e sim pelo indivíduo
(GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo, democracia e poder judiciário. Ciclo de palestras proferidas no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 02 e 03 mar. 2009). 274 Essa visão, no entanto, retomada de maneira distinta por Stephen Holmes, pode levar a uma negação da
garantia de liberdade. Stephen Holmes discorre sobre gag rules, regras-mordaça, afirmando que para que a
democracia seja possível, alguns temas são afastados do debate público – como, exemplifica, a questão da
escravidão no início da existência dos Estados Unidos, as punições para os ditadores em época de transição para
a democracia, as questões religiosas, o aborto, temas que provocariam uma cisão talvez insuperável na
sociedade. O próprio autor reconhece, no entanto, que evitar o conflito pode tornar o regime refém do conflito
(HOLMES, Stephen. Las reglas mordaza o la política de omisión. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.).
Constitucionalismo y democracia. Tradução: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura
Económica, 1999 [1988], p. 49-88).
69
Assim, impõe-se a questão do embate entre o constitucionalismo e a democracia. Essa
discussão aparece dos debates entre os pais fundadores dos Estados Unidos. O alcance das
decisões constituintes, o espaço da configuração legislativa e o papel do controle judicial de
constitucionalidade dividem os idealizadores de uma Constituição que não mais se traduz
como um pacto entre o rei e a sociedade, mas que é um pacto da sociedade consigo mesma.275
Para Pietro Costa, a relação entre democracia e constituição na segunda metade do
século XX tenta apresentar uma solução para a tensão entre poder e Direito, entre volutas e
ratio, procurando dar resposta à ideia de um poder supremo e irresistível e à exigência de
limitar esses poder, “de vincular a volutas soberana a uma medida indiscutível, a um direito
inderrogável, a uma ratio superior”. A relação entre soberania e direitos estabelece-se, no
entanto, a partir de termos quase opostos: enquanto a soberania está ligada a um povo senhor
de seu destino, os direitos têm uma base individualista. 276
O que a Constituição institui, para Stephen Holmes, é um pré-compromisso. Uma
decisão, com a qual se comprometem os cidadãos, e que ata as mãos dessa e de futuras
gerações em relação a determinados temas – o que, sob esse prisma, mostra que o
constitucionalismo é, essencialmente, antidemocrático. Para o autor, no entanto, a alegada
tensão irreconciliável entre constitucionalismo e democracia é uma dos mitos do pensamento
político moderno. A autolimitação do povo por si mesmo evidencia mais uma incoerência do
que uma tensão. No entanto, mais do que um obstáculo, a existência de amarras garante a
liberdade – a liberdade dessa geração e das gerações futuras, que contam com uma estrutura
democrática consolidada e a quem se dificulta decisões como a que implica a renúncia da
liberdade. Para evitar que os dispositivos constitucionais sejam ataduras demasiado estreitas
para as gerações futuras, o texto é pleno de disposições ambíguas e termos abertos.277
Bruce Ackerman analisa essa questão a partir de sua distinção entre momentos
constituintes e períodos de política normal. Nesses, não se pode considerar que o povo se
275 Conforme HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: ELSTER, Jon;
SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia. Tradução: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de
Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1999 [1988], p. 217-262, p. 231. 276 “... di vincolare la voluntas sovrana a una misura indiscutibile, a un diritto inderogabile, a una ratio
superiore” (COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato costituzionale. Op. cit., p. 8-9 e 14). A solução, dada pelos Estados Unidos, é conferir a tutela dos direitos fundamentais a um órgão jurisdicional (p. 31). 277 HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. Op. cit., p. 217-262. O autor
traz como resposta ao paradoxo a necessidade de restrição da voluntariedade para conservar a voluntariedade:
“El compromiso previo es moralmente permisible, siempre que refuerce la prohibición de la autoesclavización.
Entre sus otras funciones, la obligación constitucional es un intento de impedir la posibilidad de que la nación
(o cualquier generación) se venda a sí misma (o a su posteridad) como esclava” (p. 260). Questão negada pela
tradição revolucionária francesa: Sieyès afirma que “uma nação não pode nem alienar, nem se proibir o direito
de mudar; e qualquer que seja sua vontade, ela não pode cercear o direito de mudança assim que o interesse geral
o exigir” (SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. Que é o terceiro estado? Tradução: Norma
Azeredo. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986 [1789], p. 119).
70
manifesta pelo Congresso ou pela Suprema Corte: na Constituição é que reside a vontade do
povo. E para que os representantes políticos, na defesa de interesses particulares, não afastem
a vontade do povo, o controle judicial de constitucionalidade se impõe.278
A impossibilidade de uma relação totalmente adequada entre Constituição e a
realidade é acentuada por Karl Loewenstein. O autor afirma que as Constituições dos Estados
liberais democráticos pluralistas revelam o compromisso possível entre as forças sociais que
estão representadas no processo constituinte, na busca de um equilíbrio. Como esse equilíbrio
é temporário, a Constituição deve ter “válvulas” que permitam a sua adaptação a necessidades
futuras.279
A necessidade do controle de constitucionalidade, ao menos nos Estados que adotam
uma Constituição como fundamento do ordenamento jurídico, não parece encontrar muitos
adversários. A questão é estabelecer o lugar deste controle.280
Na década de 30 do século XX, estabelece-se um debate entre Carl Schmitt e Hans
Kelsen sobre quem deveria ser o “guardião da Constituição”. Partindo de diferentes
concepções de Constituição – enquanto Schmitt a considera uma decisão política fundamental
sobre a forma e o tipo da unidade política,281
Kelsen a toma como uma norma jurídica282
–, os
autores defendem diferentes formas de controle de constitucionalidade.
Para Carl Schmitt, uma decisão política não deve ser objeto de controle por um
tribunal. Além disso, uma norma não pode ser garantia de outra norma. Discorda de Kelsen e
afirma que há uma distinção essencial entre a função política – que elabora normas jurídicas –
e a função jurisdicional, que decide a partir da aplicação de uma lei. Aceitável é apenas o
afastamento pelo juiz da aplicação de uma lei ordinária para aplicar diretamente uma norma
constitucional.283
O guardião da Constituição, da decisão política fundamental, deve ser
278 ACKERMAN, Bruce ¿Um neofederalismo? In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.).
Constitucionalismo y democracia. Tradução: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura
Económica, 1999 [1988], p. 176-216, p. 191-192 e 194. Seu conceito de “democracia dualista” é trabalhado no
primeiro capítulo de “Nós, o povo soberano” (ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano. Fundamentos do
Direito Constitucional. Tradução: Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006 [1991], p. 3-45). 279 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 163-164. Para o autor, o controle judicial de constitucionalidade sempre tem
caráter político, configurando uma decisão política (p. 309). 280 Para Paulo Bonavides, há entendimento pacífico em relação à necessidade de afastar do ordenamento jurídico leis contrárias à Constituição. “As dificuldades principiam porém quando se trata de alcançar os meios
com que expungir do sistema normativo as leis constitucionais” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 297). 281 SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Tradução: Jeffrey Seitzer. Chicago: Duke University Press,
2008 [1928], § 3. 282 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000 [1945], primeira parte, capítulo X. 283 “Apenas a subsunção ao fato típico do regulamento da norma constitucional possibilita o juiz (não
privar a lei ordinária de validade, mas, sim, como se expressa o tribunal do Reich) negar aplicação à lei ordinária
ou, mais precisamente, subsumir, em vez de a seus fatos típicos, a aqueles da lei que tem primazia e, assim,
71
aquele que representa a unidade do Estado: o Presidente do Reich, como poder neutro e
verdadeiramente independente e com legitimidade democrática direta.284
Hans Kelsen, idealizador do Tribunal Constitucional austríaco, coerentemente com sua
concepção de Constituição como norma jurídica, defende um controle judicial concentrado e
exclusivo. Os atos do Governo e do Parlamento devem ser submetidos a um controle de
constitucionalidade por um órgão independente, para que a função constitucional de limitar
juridicamente o poder político se cumpra. Embora defenda que a sentença judicial é um ato de
criação do Direito e que o tribunal constitucional agiria como um legislador negador, afirma
que isso é irrelevante para determinar quem deve ser o guardião da Constituição: o importante
é permitir o debate de argumentos, o que é garantido pelo processo judicial.285
Embora Kelsen aponte como falha do pensamento de Schmitt não admitir a
possibilidade de violação da Constituição pelo Presidente do Reich,286
sua construção
tampouco parece, em um primeiro momento, admitir a possibilidade de violação da
Constituição pelo tribunal constitucional. Em debates realizados no Instituto Internacional de
Direito Público, em 1928, porém, Kelsen reconhece que em face de princípios incorporados à
Constituição que se manifestam por termos como “equidade”, “moralidade”, “justiça”,
“liberdade” e “igualdade”, tanto os órgãos legislativos quanto os órgãos de aplicação do
Direito podem dar-lhes significado – no entanto, em sede de jurisdição constitucional, o
eventual desrespeito a um pretenso conteúdo desses princípios não pode levar ao afastamento
da norma jurídica pelo tribunal constitucional, exceto se a Constituição indicar critérios
objetivos para a sua compreensão.287
decidir o caso presente. Na verdade, isso não é uma abjudicação da validade, mas uma não aplicação da lei ordinária ao caso concreto ocorrida devido à aplicação da norma constitucional” (SCHMITT, Carl. O guardião
da Constituição. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007 [1931], p. 24). 284 Ponto central da sua crítica ao Tribunal Constitucional criado por Kelsen e tema de sua obra específica:
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007
[1931], principalmente sua terceira parte. Para o autor, a adoção do controle concentrado de constitucionalidade
realizado por um Tribunal levaria à criação de uma nova câmara legislativa, formada por funcionários de
carreira, “uma instância de alta política dotada de poderes legislativos constitucionais”, uma “aristocracia da
toga”, o que não encontraria nenhum respaldo do ponto de vista democrático (p. 228). 285 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução: Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes,
2003 [1928], p. 237-298. 286 Ibid., p. 292. 287 Ibid., p. 169: “As disposições constitucionais que convidam o legislador a se conformar à justiça, à
eqüidade, à igualdade, à liberdade, à moralidade, etc. poderiam ser interpretadas como diretivas concernentes ao
conteúdo das leis. Equivocadamente, é claro, porque só seria assim se a Constituição estabelecesse uma direção
precisa, se ela própria indicasse um critério objetivo qualquer. No entanto, o limite entre essas disposições e as
disposições tradicionais sobre o conteúdo das leis, que encontramos nas Declarações de direitos individuais, se
apagará facilmente, e portanto não é impossível que um tribunal constitucional chamado a se pronunciar sobre a
constitucionalidade de uma lei anule-a por ser injusta, sendo a justiça um princípio constitucional que ele deve
por conseguinte aplicar. Mas nesse caso a força do tribunal seria tal, que deveria ser considerada simplesmente
insuportável. A concepção que a maioria dos juízes desse tribunal tivesse da justiça poderia estar em total
oposição com a da maioria da população, e o estaria evidentemente com a concepção da maioria do Parlamento
72
Acentua Karl Loewenstein a inconveniência da substituição de decisões políticas dos
órgãos politicamente responsáveis – governo e legisladores – por juízos políticos “camuflados
en forma de sentencia judicial”, com a transformação de um tribunal como árbitro supremo
do processo de poder, levando a uma “judicialización de la política” e a uma
“judiciocracia”.288
Otto Bachof analisa a extensão do controle pelo Poder Judiciário estabelecido pela Lei
Fundamental de 1949 e a relaciona a uma mudança na história do espírito, com a perda da
crença na onipotência do legislador e com uma desconfiança em relação à lei derivada da
experiência nazista. Há a necessidade de se proteger uma ordem de valores anteriores ao
Direito e esse papel deve caber ao juiz, que conta com caráter representativo e suficiente
autoridade, órgão do povo como os demais e em constante diálogo com a opinião pública.
Para o autor, o Tribunal Constitucional não é soberano porque só atua repressivamente e não
tem iniciativa. E afirma: “Precisamente la jurisprudencia constitucional y el auge que ella
imprime a la discusión pública sobre los valores decisivos puede contribuir decisivamente al
nacimiento y consolidación de una conciencia general valorativa”.289
Como Otto Bachof, Gustavo Zagrebelsky foi membro do Tribunal Constitucional de
seu país. Zagrebelsky afirma que o Tribunal Constitucional não decide sobre a Constituição,
mas segundo a Constituição, e opera em um campo onde não se admitem maiorias e minorias
políticas. A jurisdição constitucional se legitima democraticamente e limita “la cantidad de
democracia para preservar su calidad”, atuando em uma função republicana – protege a
República, limitando a democracia.290
que votou a lei. É claro que a Constituição não entendeu, empregando uma palavra tão imprecisa e equívoca
quanto a de justiça, ou qualquer outra semelhante, fazer que a sorte de qualquer lei votada pelo Parlamento
dependesse da boa vontade de um colégio composto de uma maneira mais ou menos arbitrária do ponto de vista
político, como o tribunal constitucional”. 288 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 325. Para Pietro Costa, a defesa de um
controle judicial de constitucionalidade – e, portanto, de defesa dos direitos fundamentais e dos princípios
constitucionais contra a democracia majoritária – se baseia em uma convicção tradicional do “carattere
meramente logico-razionale (sillogistico) dell‟interpretazione giudiziale del diritto: il giudice è l‟organo della
ragione imparziale ed oggetiva e come tale difende il diritto dai contraccolpi della volontà del principe”, o que
não mais se sustenta (COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato costituzionale. Op. cit., p. 65-66). 289 BACHOF, Otto. Jueces y Constitución. Tradução: Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano. Madrid: Editorial Civitas, 1985 [1959]. 290 ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Op. cit., p. 22,
41 e 101-102. Nessa obra, o autor descreve o funcionamento do Tribunal Constitucional italiano: após a
apresentação do caso e dos debates públicos, os juízes se reúnem para uma deliberação separada da audiência e
sua manifestação é sempre a decisão do Tribunal, sem que se faça referência a votos dissidentes ou se identifique
a posição pessoal de cada julgador. A discussão sobre o tema se faz apenas na sala de deliberações e o Tribunal
se mostra com um caráter colegial e unitário. O Tribunal Constitucional pode ainda, em face da impossibilidade
de um acordo entre os juízes ou do perigo de interferências com a atividade legislativa em curso ou ainda em
face de obstáculos técnicos ou de riscos de consequências não controláveis, qualificar uma questão como
“inadmissível”, que desloca a outro momento ou a outro lugar a decisão sobre o tema.
73
A França contemporânea apresenta um controle político da constitucionalidade das
leis, realizado pelo Conselho Constitucional.291
Esse órgão é formado por nove membros
livremente292
escolhidos por três autoridades – três pelo Presidente da República, três pelo
Presidente da Assembleia Nacional e três pelo Presidente do Senado – que atuam por um
mandato, não renovável, de nove anos. A indicação se dá por um terço a cada três anos, com a
nomeação de um membro por autoridade. Além disso, são membros de direito os ex-
Presidentes da República. O Presidente da República escolhe livremente o presidente do
Conselho entre seus membros.
O controle de constitucionalidade se dá entre a aprovação da lei pelo Poder Legislativo
e sua promulgação pelo Presidente da República e pode ser suscitado pelas “quatro
autoridades” – Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente da Assembleia
Nacional e Presidente do Senado – e, a partir de 1974, também por 60 deputados ou 60
senadores.293
A apreciação pelo Conselho Constitucional antes da promulgação é obrigatória
no caso das “lois organiques”294
e dos regulamentos das casas legislativas.
O controle prévio pelo Conselho Constitucional impede que uma lei contrária à
Constituição entre em vigor. Pierre Pactet acentua que o controle é jurisdicional – não se trata
de apreciação sobre a equidade ou sobre a oportunidade, mas apenas sobre o Direito295
–, não
291 Criado pela Constituição de 1958, trata-se de “un organe sans précédent dans la tradition républicaine
de la France” (PACTET, Pierre. Institutions politiques: Droit constitutionnel. 11. ed. Paris: Masson, 1992, p.
463). Além do controle de constitucionalidade, o Conselho Constitucional atua na definição do que é matéria
legal e do que está no campo do poder regulamentar (como um juiz regulador das competências) e também como
juiz eleitoral, na recepção das apresentações de candidaturas, na fiscalização dos procedimentos eleitorais e da
apuração, na proclamação dos resultados (no caso das eleições presidenciais) e na apreciação dos feitos eleitorais
relacionados à apresentação das candidaturas, da regularidade das operações eleitorais, da arguição de
inelegibilidades e incompatibilidades nas eleições legislativas. Ressalte-se que “tout électeur inscrit” pode propor ações eleitorais a serem apreciadas pelo Conselho Constitucional Sobre o papel do Conselho
Constitucional veja-se a tabela trazida por Pierre Pactet às páginas 485 a 487. 292 “Le Conseil est constitué de neuf membres nommés pour neuf ans. Trois sont nommés par le Président
de la République; il s‟agit là pour lui d‟un pouvoir que‟il exerce sans contreseing. Trois sont nommés par le
Président du Sénat et trois par le Président de l‟Assemblée Nationale; dans ces cas également, il s‟agit d‟un
pouvoir propre exercé personnellement par les Présidents des Assemblées et qui n‟est pas soumis à une
quelconque aprobation des organes qu‟ils président” (LASCOMBE, Michel. Droit constitutionnel de la Veme
Republique. Paris: L‟Harmattan, 1992, p. 255-256). 293 Em 1990 foi apresentado um projeto de revisão constitucional que pretendia permitir a qualquer cidadão
alegar em face de qualquer juiz ou tribunal a inconstitucionalidade das disposições de uma lei em relação aos
direitos fundamentais. Não houve, no entanto, aprovação das medidas. Em 2008, no entanto, agrega-se à Constituição francesa o artigo 61-1, com a seguinte redação: “Lorsque, à l‟occasion d‟une instance en cours
devant une juridiction, il est soutenu qu‟une disposition législative porte atteinte aux droits et libertés que la
Constitution garantit, le Conseil constitutionnel peut être saisi de cette question sur renvoi du Conseil d‟État ou
de la Cour de cassation qui se prononce dans un délai déterminé. Une loi organique détermine les conditions
d‟application du présent article”. 294 Assemelhadas às leis complementares do ordenamento jurídico brasileiro, pois são expressamente
previstas na Constituição e contam com um processo legislativo específico que exige aprovação por maioria
absoluta das casas legislativas. 295 E isso, para Michel Lascombe, é o que afasta a crítica que compara o Conselho Constitucional a uma
terceira Câmara (LASCOMBE, Michel. Droit constitutionnel de la Veme Republique. Op. cit., p. 275).
74
é sistemático e não cabe nas “lois référendaires” e nas leis de revisão constitucional. O
Conselho, na apreciação da constitucionalidade, não está adstrito aos argumentos e aos artigos
apontados na petição, pois a conformidade com o texto constitucional, e, portanto, a validade
da lei, é matéria de ordem pública. Suas decisões são irrecorríveis e se impõem aos poderes
públicos e às autoridades jurisdicionais e administrativas.296
O controle da adequação da lei se faz pelo “bloc de constitutionnalité”, formado pelas
disposições constitucionais, pelo preâmbulo da Constituição de 1958 (que faz referência ao
preâmbulo da Constituição de 1946 e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789) e por fontes não escritas: os “princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da
República” (que, segundo a jurisprudência do Conselho Constitucional, incluem a liberdade
de associação, a liberdade de ensino, o respeito aos direitos de defesa e a independência da
justiça administrativa), os “princípios particularmente necessários ao nosso tempo” (como o
direito de greve, o princípio da igualdade dos sexos, a liberdade sindical e o princípio do não-
recurso à força contra a liberdade de um povo) e os “objetivos de valor constitucional” (como
a continuidade do serviço público, a salvaguarda da ordem pública, a limitação à concentração
dos meios de comunicação social e a liberdade pessoal do assalariado).297
A instituição do Conselho Constitucional na França coloca em xeque dois princípios
fundamentais daquele Direito Constitucional: a primazia da lei298
e a soberania do
Parlamento.299
Sua composição específica, com indicação direta dos mandatários com
legitimidade eleitoral, e a temporariedade dos mandatos, no entanto, parecem minimizar as
críticas que se colocam contra essa modalidade de controle de constitucionalidade. Além
disso, respeitando a tradição francesa, impede o juiz de afastar a aplicação de uma lei por
considerá-la inconstitucional.
Algumas constituições colocam sob o Poder Legislativo a responsabilidade de
verificação da conformidade da lei com a Constituição. A Constituição da Holanda prevê um
processo legislativo que exige a aprovação das duas câmaras, ambas eleitas pelo sistema
296 PACTET, Pierre. Institutions politiques – Droit constitutionnel. Op. cit., p. 469-473. Michel Lascombe
fala em “autoridade da coisa julgada” nas decisões do Conselho Constitucional (LASCOMBE, Michel. Droit
constitutionnel de la Veme Republique. Op. cit., p. 278). 297 Ibid., p. 268-272. 298 Somada à enumeração das matérias reservadas à lei, com o reconhecimento da competência
regulamentar para os demais temas, feita pelo artigo 34 da Constituição francesa de 1958. 299 Para Maurice Hauriou, defensor de um controle jurisdicional difuso de constitucionalidade para a
França, “hay una última Bastilla que demoler, que es la creencia en la soberanía del Parlamento” (HAURIOU,
Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 156).
75
proporcional, e a ratificação do Rei. O artigo 120 expressamente proíbe a análise da
constitucionalidade da lei pelo Poder Judiciário.300
Ainda que a democracia moderna se identifique com a soberania do Parlamento, ela é
também constituída pela imposição de limites ao legislador, por meio da Constituição.
Permitir que o Poder Legislativo seja o guardião de seus próprios limites parece pressupor um
legislador absolutamente virtuoso.301
Teórico da democracia deliberativa, Carlos Santiago Nino propõe que o Poder
Judiciário tenha uma espécie de veto, que devolveria a apreciação para o Poder Legislativo.302
Nesse ponto, aproxima-se de John Stuart Mill, cuja teoria democrática é vista por Nino como
apresentando um viés perfeccionista, em que a democracia desempenha o papel de promover
determinados valores nos indivíduos. Para Mill, dos “três membros coordenados da
soberania”, quem deve ter a supremacia do Estado são os representantes do povo. O governo
representativo exige que se assegure “ao corpo representativo o controle de tudo em última
instância”.303
Roberto Gargarella defende “un mayor protagonismo cuidadano en la resolución de
los asuntos públicos”, mas questiona, em face das falhas do sistema representativo e da
prática parlamentar, que o Poder Legislativo tenha o controle último sobre sua própria
atividade (o que seria presumir sua infalibidade). Como critica acidamente a atuação do Poder
Judiciário no controle de constitucionalidade, apresenta soluções intermediárias, como a
atuação de grupos de pressão dos setores com menos expressão política, a introdução de
300 Article 120. “The constitutionality of Acts of Parliament and treaties shall not be reviewed by the
courts”. 301 Assim Hans Kelsen analisa a hipótese: “O órgão legislativo se considera na realidade um livre criador do direito, e não um órgão de aplicação do direito, vinculado pela Constituição, quando ele teoricamente o é sim,
embora numa medida relativamente restrita. Portanto não é com o próprio Parlamento que podemos contar para
efetuar sua subordinação à Constituição. É um órgão diferente dele, independente dele e, por conseguinte,
também de qualquer outra autoridade estatal, que deve ser encarregado da anulação de seus atos
inconstitucionais – isto é, uma jurisdição ou um tribunal constitucional” (KELSEN, Hans. Jurisdição
constitucional. Op. cit., p. 150). Carl Schmitt dedica um capítulo do seu livro para analisar “a justiça como
guardiã da Constituição” e outro para defender “o Presidente do Reich como guardião da Constituição”: o
Parlamento é visto como um espaço pluralista que tende à desagregação da unidade estatal (SCHMITT, Carl. O
guardião da Constituição. Op. cit.). 302 NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Política: Una revisión de la teoría general del Derecho.
Barcelona: Ariel, 1994. Algo similar, mas com sentido inverso, foi previsto na Constituição outorgada (e jamais aplicada) de 1937: Art 96 – “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais
declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República. Parágrafo único - No caso de ser
declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-
estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das
Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”. 303 MILL, John Stuart. Governo Representativo. Tradução: E. Jacy Monteiro. São Paulo: Ibrasa, 1964
[1861], p. 60-62. Eduardo García de Enterría acentua a posição jacobina de ver a Assembleia Representativa
como o lugar onde pousa o Espírito Santo (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y
el Tribunal Constitucional. Op. cit., p. 164).
76
jurados e juízes leigos para a democratização da justiça, a alteração na forma de nomeação
dos magistrados e a restrição da atuação do Tribunal Constitucional como legislador negativo.
Reconhece as críticas a essas soluções, mas reafirma a necessidade de seguir pensando sobre a
tensão entre democracia e “justiça”. Afirma, finalmente, que o sistema de controle da
constitucionalidade das leis tem duas tarefas principais: assegurar as condições do debate
democrático e garantir uma esfera de inviolável autonomia individual.304
Mas, em face da compreensão dos direitos fundamentais como trunfos contra a
maioria, como na visão de Ronald Dworkin e Jorge Reis Novais, deixar ao Poder Legislativo
(e, portanto, à representação política que decidirá pelo critério majoritário) a última palavra é
um contra-senso.305
Além disso, há uma certa desconfiança em relação ao Poder Legislativo,
principalmente em face de sua atuação nos Estados totalitários do século XX. O resultado é,
no entanto, uma responsabilidade excepcional aos Tribunais Constitucionais, que acabam
exercendo na prática um verdadeiro “amending power”.306
Para Ronald Dworkin, a jurisdição constitucional é necessária para assegurar que
aquilo que a Constituição colocou para além do debate político não seja determinado por
decisões majoritárias, ainda que obedecido o procedimento democrático. Esses direitos,
liberdades e garantias que não estão submetidos às preferências são cartas de trunfo que
podem ser opostas à maioria pelo indivíduo.307
O papel dos juízes na proteção dos indivíduos
contra a maioria parte do reconhecimento de que as restrições constitucionais à deliberação
democrática são estruturais para a democracia, são exigências da integridade como expressão
de princípios políticos e morais.308
304 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Barcelona: Ariel, 1996, p. 83, 103, 112-119, 174, 262-265. Em outra obra, o autor apresenta o
“constitucionalismo popular”, defendido por Larry Kramer, Akhil Amar, Jack Balkin, Sanford Levinson,
Richard Parker, Mark Tushnet, entre outros, que deseja “tirar a Constituição das mãos dos tribunais”, afastar a
“sensibilidade anti-popular” que marca a comunidade jurídica, defender a cidadania como protagonista da
interpretação constitucional, realizar uma análise mais profunda sobre os reais efeitos do controle judicial de
constitucionalidade (afastando, por exemplo, a força que parece ter a decisão em Brown v. Board of Education) e
fomentar a participação popular não institucionalizada (GARGARELLA, Roberto. Uma disputa imaginaria sobre
el control judicial de las leyes: el „constitucionalismo popular‟ frente a la teoría de Carlos Nino. In: ALEGRE,
Marcelo; GARGARELLA, Roberto; ROSENKRANTZ, Carlos F. (Coords.). Homenaje a Carlos S. Nino.
Buenos Aires: La Ley, 2008, p. 203-218, p. 206-211). 305 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria.Op. cit., p. 48. 306 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Op.
cit., p. 133 e 157-158. 307 Novamente aproximando Carlos Santiago Nino de Ronald Dworkin, afirma-se que reconhecer os
direitos humanos como limites insuperáveis para as decisões majoritárias compatibiliza o direito e a moral
(GREPPI, Andrea. Consenso e imparcialidad. Sobre la justificación moral de la democracia en el pensamiento de
C. S. Nino. In: ROSENKRANTZ, Carlos; VIGO, Rodolfo L. (Comp.). Razonamiento jurídico, ciencia del
derecho y democracia en Carlos S. Nino. Ciudad de Mexico: Fontamara, 2008, p. 229-259, p. 245). 308 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Tradução: Julio Montero y Alfredo
Stolarz. Buenos Aires: La isla de la luna, 2003 [1980/1990], p. 32, 53, 71 e 75. O autor inclui entre as garantias
constitucionais de caráter estrutural aquelas que compõem o “princípio da independência”, que permitem ao
77
Essa posição combina com a concepção do Estado de Direito “centrada nos direitos”,
apresentada pelo autor. Ela exige que os juízes tomem decisões políticas, baseados em direitos
morais para além dos estabelecidos nas regras jurídicas, desde que não contrariem nenhum
princípio incompatível com o ordenamento jurídico. O autor afasta o argumento de que a
atuação dos juízes na decisão sobre questões de direitos ofende a democracia. Afirma que o
legislador não está em uma posição privilegiada, em relação ao juiz, para decidir esses casos.
Aduz, ainda, que em face da desigualdade real de poder político entre os cidadãos, a
transferência de determinadas questões para o Poder Judiciário, permitindo o acesso ao menos
das minorias organizadas, pode levar à promoção do ideal democrático da igualdade de poder
político.309
Para Ronald Dworkin, a democracia não se identifica com o princípio majoritário. O
autor aponta outro valor para a democracia, relacionado com o tratamento de todos os
cidadãos com igual consideração e respeito, a partir da estrutura, da composição e das práticas
das instituições políticas. Essa igual consideração e respeito é que dá legitimidade às decisões
coletivas tomadas pelo princípio majoritário, e não o apoio da maioria dos cidadãos ou dos
representantes. A isso o autor denomina democracia constitucional.310
Em relação a essa linha de pensamento, ou ao “direito pressuposto” de Georg
Jellinek,311
cabe uma crítica. Ao legitimar a atuação dos juízes do tribunal constitucional
como leitores da moralidade pública – em um processo em que “a moral que deve dirigir a
interpretação do juiz torna-se produto de sua interpretação”312
– coloca-se sua atuação para
além dos controles democráticos, característicos de um Estado de Direito.
indivíduo o julgamento político, moral e ético, com a liberdade de expressão, de associação e de religião e a
tolerância à moralidade pessoal. 309 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 15-16, 26-27 e 31-32. O autor faz uma
ressalva à adoção dos seus argumentos na Grã-Bretanha (afirmando, no entanto, a possibilidade de alteração para
uma prestação jurisdicional mais política), afirmando que os estadunidenses “são fascinados pela idéia dos
direitos individuais, que é o signo zodiacal sob o qual seu país nasceu” (p. 37). O texto utilizado aqui – Os juízes
políticos e o Estado de Direito – foi publicado originalmente em 1978. 310 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral reading of the American Constitucion. Cambridge:
Harvard University Press, 1996, p. 17. Karl Loewenstein usa o termo “democracia constitucional” para se referir
ao “sistema político bajo el que la totalidad del „pueblo‟ – organizado como electorado y movilizado para la acción política por los partidos – participa libremente en el proceso del poder. El electorado adquiere con esto
la categoría del detentador supremo del poder ejerciendo un control final sobre el gobierno y el parlamento”
(LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 326). 311 Georg Jellinek estabelece uma relação peculiar entre Estado e Direito, afirmando que o Estado é capaz
de ordenar o Direito, mas não de criá-lo, e que cabe ao Tribunal Supremo decidir os conflitos com o direito
pressuposto (JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 55 e nr 81). 312 MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. O papel da atividade jurisdicional na
„sociedade órfã‟. Tradução: Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p.
183-202, nov. 2000 [1989], p. 186.
78
John Hart Ely faz uma crítica à utilização de valores pessoais dos juízes na
fundamentação das suas decisões, sejam eles declarados ou não. Afirma a inexistência de um
conjunto de princípios morais objetivos que possam ser apreendidos e servir de base para as
decisões judiciais.313
Cabe aqui a ressalva de Gustavo Zagrebelsky: “Nunca se insistirá
bastante en esta idea: cuando se ejercen funciones jurisdiccionales, se deben dejar aparte las
propias opiniones sobre las virtudes o los vicios de una determinada ley. La única cosa que
debe tomarse en consideración es si el legislador pudo razonablemente dictar tal ley”.314
Para Ingeborg Maus, o conceito de Constituição é alterado quando o Poder Judiciário
assume o papel de realizar o interesse social e de substituir a formação da vontade política por
discursos de moralidade pretensamente pública – deixa de ser um “documento de
institucionalização de garantias fundamentais das esferas de liberdade nos processos políticos
e sociais, tornando-se um texto fundamental a partir do qual, a exemplo da Bíblia e do Corão,
os sábios deduziriam diretamente todos os valores e comportamentos corretos”.315
O desafio está em evitar um moralismo nessa leitura moral da Constituição proposta
do Dworkin. A moralidade pública316
deve ser lida como referente à discussão política – deve-
se pensar a leitura moral associada à integridade317
e à tolerância.
Jorge Reis Novais trabalha a noção de Dworkin de direitos fundamentais como
trunfos, afirmando a existência de uma oposição insuperável entre os direitos fundamentais e
o poder democrático, negada pela democracia deliberativa. Não há ampla liberdade do
legislador: ele é restringido em sua conformação pela inafastável preservação dos direitos
fundamentais, que reservam aos indivíduos posições jurídicas que asseguram sua liberdade de
adotar uma concepção de vida boa. Essa ideia de direitos fundamentais como trunfos garante
a força normativa da Constituição e é garantida pela jurisdição constitucional, que toma uma
decisão jurídica sobre a contradição entre a decisão política majoritária e os limites jurídico-
313 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard
University Press, 1980. capítulo 3. 314 ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Op. cit., p. 82 315 MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. O papel da atividade jurisdicional na
“sociedade órfã”. Op. cit., p. 192. Para a autora, a atuação do Poder Judiciário com fundamento em pontos de
vista morais desqualifica a base sociais e pode transformar qualquer fato em juridicamente relevante (p. 201). No
Brasil, isso vem acontecendo de maneira preocupante. Vejam-se, apenas como exemplo, as decisões do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre a contratação de parentes para cargos de
confiança e as manifestações do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal sobre a fidelidade
partidária – a fundamentação moral subjuga a fundamentação jurídica (ainda que se mantenha na retórica
argumentativa a tentativa de juridicizar os argumentos). 316 Para Dworkin, a moralidade desempenha seu papel na teoria do Direito em dois momentos: no estágio
teórico (jurisprudencial stage), ao atribuir valor às práticas jurídicas, e no estágio adjudicativo, ao realizar a
justiça (DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press,
2006, p. 20-21). 317 Ronald Dworkin trata da integridade política como a imposição ao Estado de governar por meio de um
conjunto coerente de princípios políticos que beneficiem todos os cidadãos (Ibid., p. 13).
79
constitucionais, necessariamente baseada nos valores constitucionais e conforme parâmetros
objetivos, “sob pena de violação dos seus limites funcionais”. 318
John Hart Ely parte do controle judicial de constitucionalidade, defendendo a
possibilidade de conciliação entre esse controle e a democracia a partir de restrições à
atividade do juiz, vinculadas ao seu objetivo: vigiar o processo de representação como um
árbitro, manter abertos os canais de alternância política e facilitar a representação das
minorias. Apenas com esses fundamentos é que o Poder Judiciário é autorizado a afastar
decisões democráticas, tomadas por representantes eleitos democraticamente e politicamente
responsáveis. Assim, a Suprema Corte não deveria atuar como um conselho de revisão
legislativa, mas garantir a igualdade no processo político e o acesso das minorias.319
Ronald Dworkin critica John Hart Ely, afirmando que sua concepção estatística da
democracia320
implica o reconhecimento de apenas algumas restrições constitucionais como
estruturais e que, portanto, autorizariam a atuação da jurisdição constitucional para restringir
as decisões democráticas.321
Afirmar a possibilidade de controle de constitucionalidade
apenas em relação à adequação do procedimento, para Dworkin, é fugir da decisão
substancial, como o faz a doutrina originalista.322
Cass Sunstein, também partindo da premissa de que a decisão cabe a uma jurisdição
constitucional, propõe a adoção de uma postura minimalista pela Suprema Corte, consistente
na resolução de casos concretos sem estabelecer uma decisão geral, uma regra a partir da
decisão. Sua argumentação busca afastar as posturas perfeccionistas (que pretendem fazer do
texto constitucional o melhor possível, a partir de seus critérios pessoais), majoritaristas (que
318 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Op.cit, p. 17-28, 40 e 60. O
autor afirma que o problema está em estabelecer uma resposta jurídico-dogmática à tensão entre Estado de Direito e democracia, entre liberdade pessoal e liberdade política; a adjetivação da democracia dá conta apenas
da questão filosófica (p. 24). 319 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Op. cit. O autor é enfático: “In
a representative democracy value determinations are to be made by our elected representatives, and if in fact
most of us disapprove we can vote them out of office. Malfunction occurs when the process is undeserving of
trust, when (1) the ins are choking off the channels of political change to ensure that they will stay in and the
outs will stay out, or (2) though no one is actually denied a voice or a vote, representatives beholden to an
effective majority are sistematically disadvantaging some minority out of simple hostility or a prejudiced refusal
to recognize commonalities of interest, and thereby denying that minority the protection afforded other groups
by a representative system” (p. 103). Na correção desse mal-funcionamento reside o papel da jurisdição
constitucional. 320 Essa concepção também entende a democracia como ação coletiva, mas na qual as decisões do grupo
refletem simplesmente o que os membros individuais decidem por si, sem que haja consciência da ação como
grupo (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Op. cit., p. 49). Roberto Gargarella afirma
que Ely parte de uma concepção implausível de democracia (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al
gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Op. cit., p. 148). 321 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Op. cit., p. 72. 322 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 43. Para o autor, o Tribunal Constitucional
deve tomar decisões políticas de princípio e não de política: “decisões sobre que direitos as pessoas têm sob
nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral”, a partir de uma
visão substantiva (p. 101). O texto utilizado aqui – O fórum do princípio – foi publicado originalmente em 1981.
80
se curvam às decisões majoritárias, exceto nos casos de clara violação da Constituição) e
fundamentalistas (que defendem a Constituição segundo seu texto original, com o significado
que carregava no momento de sua promulgação).323
A posição minimalista, talvez adequada
em um sistema exclusivamente difuso de controle de constitucionalidade, não traz respostas
ao modelo brasileiro, que permite um questionamento sobre a lei em tese, impondo ao Poder
Judiciário uma resposta inafastavelmente geral e política.
Ronald Dworkin, John Hart Ely e Cass Sunstein fazem suas análises a partir da
realidade estadunidense, uma Constituição fortemente rígida e sucinta, com dispositivos
abertos e de vigência superior a duzentos anos.324
Lá, há construtivismo judiciário e a
Suprema Corte é marcadamente protagonista, para dar conta das mudanças sociais e das
novas demandas de justiça.325
Dificilmente se poderia negar o importante papel do controle de
constitucionalidade na construção e afirmação de direitos fundamentais, com o alargamento
de seus destinatários.
Eduardo García de Enterría sublinha a experiência distinta do constitucionalismo
estadunidense, a partir da supremacia normativa da Constituição relacionada à ideia de Direito
natural, que se impõe aos juízes e que coloca a vontade permanente do povo acima da vontade
do legislador.326
Na Europa, isso não se repete: a Constituição surge para limitar o princípio
monárquico, algo posterior a ele, e “nunca una fuente originaria de competencias y de
Derecho”.327
Parece que essa segunda trajetória é que se aproxima da realidade brasileira.328
Vale ainda trazer a análise de Roberto Gargarella. Para o autor, a defesa intransigente
do Poder Judicário como lugar da palavra final sobre a constitucionalidade das normas
pressupõe premissas conservadoras, como a que não vê na cidadania a origem de decisões
corretas, e elitistas, que vê nos juízes virtudes superiores e a capacidade de ser imparcial.
323 SUNSTEIN, Cass R. Radicals in robes: why extreme right-wing courts are wrong for America. New
York: Basic Books, 2005. 324 Georges Burdeau faz a ressalva sobre a especificidade do exemplo estadunidense e da ilusão em
importá-lo. Critica os “oráculos” judiciais e indaga: “Mais alors qui contrôlera l‟activité de l‟oligarchie
judiciaire?” (BURDEAU, Georges. Manuel de Droit Public. Paris: Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence, 1948, p. 87-90). 325 Talvez a aceitação de uma construção constitucional cotidiana a partir de uma Constituição de
princípios, plena de termos abertos, seja o preço a se pagar por um texto conciso. 326 O autor ressalta a reverência dirigida à Suprema Corte nos Estados Unidos e sua identificação com a nação. Aponta a mitologia religiosa de A. S. Miller que vê a “Constitución como texto inspirado por Dios, los
fundadores como los santos, los jueces del Tribunal Supremo como los sumos sacerdotes que cuidan del culto al
texto sagrado en el „Marbol Palace‟, en el palacio de Mármol donde tiene su sede y que extraen de ese texto
poco menos que la infalibilidad” (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el
Tribunal Constitucional. Op. cit., p. 127). 327 Ibid., p. 52-55. 328 No entanto, Ramón Narváez assinala que a América Latina, por influência dos Estados Unidos, já
assimila a noção de Constituição como lei no século XIX (NARVÁEZ, Ramón. Codificação: do desenho
europeu à sua assimilação no Novo Mundo. Palestra proferida no Programa de Pós-Graduação em Direito da
UFPR, Curitiba, 14.set. 2009).
81
Essas noções, aliadas à “brecha interpretativa”, acabam por permitir que o juiz tome o lugar
da vontade popular.329
Gargarella, partidário da leitura democrática de Carlos Santiago Nino e refratário a
uma legitimação absoluta do controle judicial de constitucionalidade, propõe a realização de
quatro “testes” para a verificação do trabalho da jurisdição constitucional. O primeiro deles é
a consistência – as decisões constitucionais devem ser consistentes em tributo ao princípio da
igualdade, em obediência ao comando de tratamento com igual consideração e respeito (na
linha de Dworkin).330
O segundo teste se vincula à democracia. Para o autor, a jurisdição
constitucional, à maneira de Ely, deve deixar as decisões substantivas nas mãos do povo e
proteger os procedimentos democráticos a partir de dois valores a serem preservados: a regra
majoritária e o caráter republicano do governo. O terceiro enfoque se refere aos direitos
humanos, ao respeito às decisões individuais e ao âmbito de autonomia. As decisões judiciais
devem se fundamentar em razões públicas (conforme a leitura de Rawls), garantindo o devido
processo, afastando uma posição perfeccionista e recusando uma concepção de bem como
válida para todos os indivíduos. Finalmente, o último teste está centrado na proteção das
minorias e dos grupos desavantajados.331
Horacio Spector afirma a necessidade de mecanismos de controle das decisões
legislativas para assegurar a imparcialidade das decisões coletivas, em face da necessária
adoção da regra da maioria, das falhas da democracia representativa (que não implica a
igualdade política: “no implementa la igualdad de influencia o la igualdad de chances para
tomar decisiones políticas”) e da impositiva proteção dos direitos das minorias. Para o autor,
329 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder
judicial. Op. cit., p. 12, 51 e 59. 330 “En efecto, dado que ellos son los últimos intérpretes de la Constitución, no pueden dejar a la
ciudadanía en ignorancia del derecho, es decir, temerosa por no saber a qué atenerse en materia jurídica. Es
inaceptable que la ciudadanía no sepa si, digamos, va a ser protegida o encarcelada como resultado de algunas
opciones de vida que tome, si va a contar con el respaldo del Estado o si va a ser perseguida por él, a resultas
de algunas de sus acciones” (GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007,
p. 90). A crítica de Gargarella ao tribunal argentino se adequa perfeitamente à corte brasileira: os juízes são
capazes de se contradizer radicalmente em relação às suas decisões mais importantes em questão de quase horas,
mas ao mesmo tempo se mantêm firmes em áreas que poderiam realizar uma mudança importante. Ora exigem que as normas constitucionais se adaptem à realidade viva, ora assumem interpretações originalistas, sem
explicar por que optam por uma ou por outra, sendo que essas opções levam a resultados opostos (p. 92). 331 GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta. Op. cit., capítulo 5. O autor afirma que a tarefa do
tribunal constitucional não está claramente justificada e que a obediência a suas decisões deriva mais de razões
de prudência do que de razões morais ou constitucionais (p. 123-124). O autor nega o argumento que aduz ser o
Poder Judiciário uma abertura democrática para os grupos sem acesso ao Poder Legislativo. O acesso, para
Gargarella, não é democracia: democracia é participação e controle. E a decisão judicial não está aberta nem à
participação e nem ao controle. O Poder Judiciário, enfatiza, tem credenciais democráticas débeis
(GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo, democracia e poder judiciário. Ciclo de palestras proferidas no
Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 02 e 03 mar. 2009).
82
o processo judicial permite a condução de um “proceso reflexivo de deliberación pública” e
há apenas uma tensão aparente entre democracia e controle de constitucionalidade.332
Os princípios constitucionais positivados cristalizam os valores que dão os contornos
do trabalho doutrinário e jurisprudencial, reduzindo – sem anular – o trabalho integrador e
recriador dos juízes e dos juristas. E, aponta Manuel Aragon, há um papel decisivo dos
tribunais constitucionais no direcionamento da jurisdição ordinária.333
Em obediência ao princípio da correção funcional, a jurisdição constitucional não
pode, sob o pretexto do exercício da função de controle da produção legislativa que lhe atribui
a Constituição, restringir a liberdade conformadora do legislador para além dos limites
constitucionais ou substituí-lo. Há que se reconhecer a primazia do legislador na
concretização da Constituição: a vontade do legislador democrático goza de presunção de
constitucionalidade.334
Para Eduardo García de Enterría, o Tribunal Constitucional é como um poder neutro
que sustenta a efetividade do sistema constitucional, garantindo a Constituição e
corporificando-a: “un verdadero comisionado del poder constituyente para el sostenimiento
de su obra, la Constitución, y para que mantenga a todos los poderes constitucionales en su
calidad estricta de poderes constituidos”.335
Manuel Aragon se opõe frontalmente a Eduardo García de Enterría, afirmando que o
princípio democrático impede considerar o Tribunal Constitucional um comissionado do
poder constituinte. A existência de um comissionado do poder constituinte, que a Constituição
democrática inadmite, seria um deslocamento do princípio monárquico. Sustenta que o
332 SPECTOR, Horacio. Democracia y control de constitucionalidad: una tensión aparente. In: ALEGRE,
Marcelo; GARGARELLA, Roberto; ROSENKRANTZ, Carlos F.(Coords.). Homenaje a Carlos S. Nino. Buenos Aires: La Ley, 2008, p. 231-246, p. 233, 235, 243 e 246. Estefânia Maria de Queiroz Barbosa também defende
que a tensão entre jurisdição constitucional e democracia é apenas aparente e que ao Poder Judiciário cabe
proteger as minorias e garantir seus direitos fundamentais. A autora ainda afirma que “é o Judiciário quem está
mais próximo dos cidadãos, que podem, diretamente, lá reivindicar a satisfação de seus direitos constitucionais”
(BARBOSA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição constitucional: entre constitucionalismo e democracia.
Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 22, 210 e 207). 333 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Revista Española de Derecho
Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985, p. 9-45, p. 15-16. 334 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleção, tradução e introdução: Pedro Cruz
Villalon. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 47 e 52. 335 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Op. cit., p. 197-198. Apesar desse conceito do papel do Tribunal Constitucional, o autor sublinha a interpretação
conforme a Constituição e o princípio de presunção de constitucionalidade das leis que a ela se relaciona,
afirmando que além de fixar que uma lei é válida até ser declarada inconstitucional isso significa “primero, una
confianza otorgada al legislador en la observancia y en la interpretación correcta de los principios de la
Constitución; en segundo término, que una Ley no puede ser declarada inconstitucional más que cuando no
exista „duda razonable‟ sobre su contradicción con la Constitución; tercero, que cuando una Ley esté redactada
en términos tan amplios que puede permitir una interpretación inconstitucional habrá que presumir que, sempre
que sea „razonablemente posible‟, el legislador ha sobreentendido que la interpretación con la que habrá de
aplicarse dicha Ley es precisamente la que la permita manternerse dentro de los límites constitucionales” (p.
96).
83
princípio democrático impõe o reconhecimento da capacidade de realização normativa da
Constituição apenas ao órgão representativo do povo, o legislador, que possui, assim,
legitimidade constitucional para preencher a abertura das normas constitucionais, exigida pelo
pluralismo.336
Eduardo García de Enterría responde às objeções feitas à jurisdição constitucional,
referindo-se ao “tribunal da história” que confirmaria o papel do Poder Judiciário na proteção
da Constituição,337
e afirmando que como a Constituição é uma norma jurídica, sua eficácia
deve ser assegurada judicialmente, por critérios e métodos jurídicos.338
Robert Alexy afirma que para o controle jurisdicional de constitucionalidade ser
considerado democrático é necessário vinculá-lo com a representação popular. Para isso,
sugere a necessidade de superação de uma democracia “decisional”, em que as decisões são
tomadas a partir de um sistema baseado em eleições e na regra da maioria, para uma
democracia “deliberativa”, em que o argumento componha a tomada de decisão. Segundo o
autor, a jurisdição constitucional desempenha um papel de “representação argumentativa”, em
que há a representação do pensamento do povo, refletida pela aceitação dos argumentos como
corretos por indivíduos racionais. Sendo assim, é legítima sua prevalência em relação à
representação baseada na eleição.339
O estabelecimento de “canais comunicativo-discursivos” entre o Direito e a política,
“evitando a sobrecarga jurisdicional da política e, ao mesmo tempo, a instrumentalização
política do Direito”, pode justificar a jurisdição constitucional, afirma José Joaquim Gomes
Canotilho. Há que se atentar, no entanto, para a retórica argumentativa de suas decisões, sob
pena de um “discurso moral realizador-concretizador de valores” capaz de “transformar os
tribunais em instâncias autoritário-decisórias transportadoras de uma compreensão
paternalista e moralizante da jurisdição constitucional”.340
336 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 9-45, p. 37-38. 337 A experiência dos Estados Unidos e dos países europeus, para Eduardo García de Enterría, mostra o
funcionamento correto do sistema com vantagens políticas apesar das objeções teóricas. A jurisdição
constitucional atua, para o autor, como um instrumento de integração política e social, colocando a Constituição
acima de interesses políticos ocasionais, além de acentuar o sentido da política, contribuindo para a paz jurídica e
a renovação dos consensos fundamentais. Adiante afirma, no entanto, que o êxito do Tribunal Constitucional
está na autenticidade e no rigor dos seus juízes (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Op. cit., p. 116, 192-195 e 205). 338 Ibid., p. 1175-178. A utilização do método jurídico é que assegura a legitimidade do Tribunal
Constitucional, que, embora não possa ser cego às consequências políticas de sua decisão, não pode escapar da
Constituição ou do Direito nem afastar uma lei por discordar de suas consequências jurídicas (p. 183-184). 339 Robert Alexy defende que a argumentação constitucional é (ou pode ser, em um grau considerável)
racional e é acompanhada de objetividade (ALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and
representation. International Journal of Constitutional Law, New York, n. 3, p.572-581, 2005. 3(4)). 340 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva. In:
MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra:
Coimbra, 1996. v. 1, p. 871-887, p. 877e 879.
84
Para Cristina Queiroz, essa realidade de uma concepção de direitos, que vai além do
conceito de código e que traz o Poder Judiciário para o centro do constitucionalismo, implica
um conceito de Direito que engloba, “além das normas, os princípios, os valores e as formas
de argumentação, que servem de referência às decisões jurídicas”. Passa-se da dogmática à
pragmática.341
Clèmerson Merlin Clève afirma que “[a] legitimidade da ação jurisdicional repousa
basicamente sobre a racionalidade e a justiça da decisão” e a justiça se baliza pelos valores
consagrados na Constituição, nos princípios fundamentais e nas normas que se deduzem do
Preâmbulo.342
O autor ressalta que a Constituição não deve ser neutra em face das possíveis
decisões da maioria eventual e que deve impor limites a essa maioria, para proteger sua
identidade. Essa concepção de Constituição exige um “tipo de operador jurídico que
compreenda a Constituição como um espaço de luta, como compondo uma identidade que não
pode ser absolutamente quebrada, que compreenda a Constituição como tarefa, mas também
como limite”.343
Para Luiz Edson Fachin, há uma “ligação umbilical” entre a jurisdição constitucional e
o princípio democrático, revelada pelo papel da Suprema Corte em relação à Constituição dos
Estados Unidos. Para o autor, as cortes constitucionais não apenas guardam a Constituição,
mas são “veículo de justificação e fundamentação material dos direitos que devem ser
protegidos pelo Judiciário”.344
Com Cláudio Pereira de Souza Neto, a jurisdição
constitucional, longe de ser um óbice à democracia, aprimora o processo democrático, pois se
dá por um processo de racionalização dialógica.345
Apesar de democracia e constitucionalismo mostrarem-se conceitos que operam
princípios opostos, supõem-se mutuamente, são “eqüiprimordiais e co-originários” e
341 QUEIROZ, Cristina. Constituição, constitucionalismo e democracia. In: MIRANDA, Jorge (Org.).
Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v. 1, p. 457-480, p.
477. 342 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). Op. cit., p. 44.
Também nesse sentido o pensamento de Angela Cristina Pelicoli, que afirma que a atuação do juiz constitucional como legislador positivo exige uma justificação racional e uma relação direta com a concretização dos direitos
fundamentais (PELICOLI, Angela Cristina. O Supremo Tribunal Federal como legislador positivo: o caso da
fidelidade partidária. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, n. 11, a. 24, p. 1259-1275, nov. 2008, p.
1260). 343 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Controle de constitucionalidade e democracia. In: MAUÉS, Antônio G.
Moreira. (Org.). Constituição e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 49-60, p. 51 e 58. 344 FACHIN, Luiz Edson. Defesa da Constituição, cortes supremas e Estado social democrático. Revista da
Escola Nacional da Magistratura, Brasília, a.2, n. 3, p. 102-107, abr. 2007. 345 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002.
85
constituem um ao outro, afirma Menelick de Carvalho Netto: “a democracia só é democrática
se for constitucional” e “o constitucionalismo só é constitucional se for democrático”.346
Luiz Guilherme Marinoni afirma a evidência da necessidade de um controle da
produção legislativa, “resultado da coalisão das forças dos vários grupos sociais, e que por
isso freqüentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos”, a partir
dos “princípios da justiça”. Para o autor, ainda que se afaste o pluralismo, a lei deve ser
limitada e conformada aos “princípios da justiça”. Esses princípios estão no texto
constitucional, têm caráter substancial e requerem conformação da lei com os direitos
fundamentais. Na sua tarefa de analisar a conformidade da lei à Constituição e de afastar as
normas inconstitucionais, o juiz deve demonstrar, com forte argumentação, porque não pode
subsistir a decisão da representação política.347
Em forte crítica contra o papel de legislador da jurisdição constitucional, Marcelo
Andrade Cattoni de Oliveira afirma que “a cidadania não precisa de tutores”. Aponta que a
jurisdição constitucional passa a assumir “o lugar de um poder constituinte permanente de
desenvolvimento de valores pressupostos à Constituição, limitando, dirigindo e antecipando-
se ao Legislativo”. Para o autor, a justificação da atuação do juiz constitucional relaciona-se à
teoria discursiva que pressupõe um pluralismo axiológico e cultural, uma política deliberativa
e a influência da opinião pública livre. Sua posição parece se aproximar a de John Hart Ely,
ao afirmar a necessidade de reconstrução da jurisdição constitucional brasileira a partir da
tarefa de examinar e garantir a “realização das condições procedimentais, das formas
comunicativas e negociais, para um exercício discursivo da autonomia política”.348
A jurisdição constitucional é submetida pela cidadania, pela sociedade e sua forma de
pensar a justiça e o Direito: “o povo conduz a interpretação das normas constitucionais”,
fazendo-se presente neste momento também político, assevera Cármen Lúcia Antunes
Rocha.349
Para Paulo Bonavides, o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis é o que
mais se harmoniza com a “inspiração primordial” das Constituições: “a garantia da liberdade
humana, a guarda e proteção de alguns valores liberais que as sociedades livres reputam
346 CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 88, p. 81-108, dez. 2003, p. 82-83. 347 MARINONI, Luiz Guilherme. A Jurisdição no Estado Constitucional. Revista da Academia Brasileira
de Direito Constitucional, Curitiba, v. 7, p. 423-514, 2009. 348 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição constitucional: um poder constituinte
permanente?. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). Hermenêutica e
jurisdição constitucional. Estudos em homenagem a José Alfredo de Oliveira Baracho. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p. 67-91. 349 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A Constituição segundo a lei eleitoral ou a lei eleitoral segundo a
Constituição. Op. cit.
86
inabdicáveis”. Para o autor, a jurisdição constitucional é “coluna de sustentação do Estado de
direito, onde ele se alicerça sobre o formalismo hierárquico das leis”.350
Em outro texto, Bonavides afirma que “a justiça constituiconal se tornou uma
premissa da democracia: a democracia jurídica, a democracia com legitimidade”. Segundo sua
visão, ainda que a legitimidade da jurisdição constitucional seja pacífica, há que se atentar
para a legitimidade no exercício dessa jurisdição, a fim de se evitar uma ditadura
constitucional. Levanta-se contra a ação direta de constitucionalidade e contra a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, que emprestam “um caráter autocrático ao sistema
brasileiro de controle abstrato de constitucionalidade”. Para o autor, o controle difuso é o mais
democrático e o mais independente. Ao contrário, o controle concentrado, influenciado por
razões políticas, acaba por ter a autoridade última sobre a ordem constitucional, podendo
“resvalar no abuso de reescrever e positivar em seus acórdãos, por meios hermenêuticos, uma
Constituição diferente daquela que se acha na letra e no espírito da Lei Maior”. Assim, “a
Constituição, desfalecida, sai da letra do constituinte para a sentença de tais juízes” e o
tribunal passa a ser o “fiador do Estado de Direito”.351
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, sob a Constituição de 1946, afirmou seu papel
de “um constituinte permanente”, em face dos seus deveres políticos, além de suas tarefas
jurídicas. Do voto do Ministro Edgard Costa, no pedido de intervenção federal no estado do
Mato Grosso, julgado em 1951, motivado pela existência de dois presidentes, dois vice-
presidentes e dois corregedores do Tribunal de Justiça, hipótese não prevista na Constituição
como causa de intervenção, extrai-se a compreensão de que a natureza das funções do
Supremo Tribunal Federal permite sua “função construtora” e sua atuação, ainda que no
silêncio da lei, como “órgão regulador do regimen na manutenção de sua ordem jurídica”.352
Ementa de decisão de 1952 aponta de maneira mais sutil, a visão que o Supremo Tribunal tem
de si mesmo e de sua supremacia em face dos demais poderes, afirmando a inadmissibilidade
de uma interpretação contrária à sua pelo legislador.353
350 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit., p. 301. 351 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade (algumas observações sobre o Brasil). In: FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso
Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 520-549, p. 521-523, 525, 533-534, 544-545. 352 Pedido de intervenção 14/51, relator Min. Edmundo Macedo Ludolf, voto do Ministro Edgard Costa,
obtido junto ao Supremo Tribunal Federal. A expressão “competência construtiva” do Supremo Tribunal Federal
também é utilizada no aditamento ao relatório na Reclamação 315, relator Min. Ribeiro da Costa, julgada em 31
de maio de 1957 (inteiro teor da decisão disponível na página do STF na internet: www.stf.jus.br - Acesso em 19
de outubro de 2009). 353 “Admitir o Sup. Tribunal que, após interpretar a constituição de um modo, possa a lei ordinária adotar
interpretação oposta, equivaleria a renunciar ele a sua atribuição máxima, de mais alto intérprete da constituição,
para transferi-la ao legislador ordinário, que assim se transmudaria em poder constituinte permanente, não
87
Tal autocompreensão parece refletir a atuação do Poder Judiciário brasileiro
contemporaneamente. Com uma prática que sugere uma tendência à centralização do controle
de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal soa hoje como o novo soberano, capaz de
substituir a vontade democrática pela única leitura “adequada” do texto constitucional –
aquela promovida por seus ministros.354
Essa visão não se coaduna com o Estado de Direito e com a visão da lei como Direito
de emanação democrática, e não apenas como desenvolvimento da Constituição, conforme
afirma Manuel Aragón. Embora seja uma instituição crucial do Estado de Direito, ao garantir
a Constituição como norma, o Supremo Tribunal Federal não pode se arvorar, no entanto, de
“representante na terra” do poder constituinte.355
Em relação à impossibilidade de que o legislador ordinário se oponha à interpretação
do Supremo Tribunal Federal, não cabe aos ministros do tribunal máximo associar um
conteúdo definido e inafastável às decisões legislativas, sob pena de desconsiderar sua
configuração como órgão de soberania, e com primazia na tomada de decisões políticas.356
Não se nega, no entanto, a função do Poder Judiciário de controlar a
constitucionalidade das normas jurídicas elaboradas pelo Parlamento e, em determinados
casos, sancionadas pelo Poder Executivo. A questão é que a invalidação por um tribunal de
uma decisão tomada no âmbito político com fundamento constitucional não é passível de
afastamento por outro órgão estatal, ainda que representativo e responsável – o que pode levar
a uma avaliação dessa função do Poder Judiciário a partir dos princípios adotados para afastar
a decisão357
ou seus resultados.
Tampouco se nega o papel do Poder Judiciário na proteção das regras democráticas.
Reconhece-se que o controle judicial de constitucionalidade deve atuar para vigiar o processo
apenas pela forma que a carta magna prevê, mas também através da elaboração das leis comuns”. Recurso
Extraordinário 19520/DF, relator Min. Luiz Galotti, julgamento em 05 de junho de 1952. 354 António Manuel Hespanha ressalta a influência da ideia de que a legitimidade do saber (dos juristas, por
certo) é mais forte do que a legitimidade democrática na justificação de um controle judicial de
constitucionalidade. Aponta ainda que a legitimidade democrática como base das normas jurídicas perde espaço também para a lei do mercado internacional (HESPANHA, António Manuel. Será que a Democracia e a
Constituição ainda são o que eram? Como se realizam os consensos básicos nas sociedades de hoje. Palestra
proferida no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 05 set. 2008). 355 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 40-41. 356 Georg Jellinek questiona, ao tratar da mutação da Constituição pela prática constitucional, a
possibilidade de se aniquilar um poder quando se atribui à sua ação um conteúdo vinculante. Aduz: “Cuando a
una competencia política se le adjudica un contenido determinado e inquebrantable, entonces el poder se
transforma en un deber” (JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Op. cit., p. 37). 357 Como acentua John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.
Op. cit., p. 4-5).
88
de representação política como um árbitro – ou controlar o processo democrático358
–, clarear
os canais de mudança política e facilitar a representação das minorias.359
Sua atuação, no entanto, não é ilimitada.360
A ausência de limites no exercício das
funções dos agentes públicos não encontra guarida em um Estado de Direito, em uma
Constituição democrática. Quando a norma constitucional não oferece apenas uma
possibilidade para a sua concretização, ou quando o poder constituinte posterga a decisão, a
decisão política cabe ao legislador. Além disso, há uma presunção de constitucionalidade do
legislador: a jurisdição constitucional, em obediência ao princípio democrático, somente deve
declarar a inconstitucionalidade de uma lei quando for clara sua contradição com a
Constituição.
E não são poucas as leis e medidas provisórias claramente inconstitucionais.
Paradoxalmente, várias delas encontram o beneplácito do Poder Judiciário, que acaba sendo
complacente com várias deliberações políticas incompatíveis com a Constituição e fortemente
reativo com outras, às vezes sem qualquer respaldo constitucional para tanto.
2.3 OS LIMITES EXPLÍCITOS E IMPLÍCITOS AOS PROCESSOS FORMAIS E
INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO
A noção de constitucionalismo impõe a distinção entre poder constituinte e poderes
constituídos, entre decisões que estão ao alcance das deliberações democráticas e questões
que estão para além delas. Pressupõe a rigidez constitucional e sua pretensão de
358 Conforme Carlos Santiago Nino. NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Política: Una revisión de la
teoría general del Derecho. Op. cit., p. 317-321. 359 Como indica John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.
Op. cit.). Roberto Gargarella também inclui a garantia das condições do debate democrático, ao lado da proteção
a uma esfera de inviolável autonomia individual, entre as tarefas principais do sistema de controle de leis
(GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Op. cit., p. 262-265). 360 Ressalta António Manuel Hespanha que atualmente a lei é a última razão de decidir levada em conta
pelos juízes, depois da doutrina e da jurisprudência. Para o professor, é necessário limitar o arbítrio judicial,
voltando ao velho ensino jurídico: tópica, retórica, valor, limites dos argumentos (HESPANHA, António
Manuel. Justiça e Democracia: que perigos vemos hoje para a Justiça democrática. Palestra proferida no
Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR, Curitiba, 05 maio 2009). Em contrapartida, Herbert L. A. Hart
afirma que o sistema de controle de constitucionalidade que dá ao Poder Judiciário a última palavra, “é o preço
que tem de pagar-se pela consagração de limites jurídicos ao poder político” (HART, Herbert L. A. Pós-escrito.
In: _____. O conceito de Direito. 4. ed. Tradução: A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2005 [1994], p. 299-339, p. 339).
89
estabilidade.361
A Constituição se caracteriza por sua intenção fundacional,362
que implica um
peso jurídico e político superior à atividade legislativa cotidiana.
A Constituição tem como necessário conteúdo a ideia de Direito, fruto da
manifestação do poder constituinte, conforme afirma Georges Burdeau.363
A renúncia do povo
a essa ideia tem que ser expressa, o que implica a exclusão da ideia de direito do debate
democrático ordinário. Apenas o poder constituinte pode alterar, substituindo-a, a ideia de
Direito de um Estado.
Além disso, a própria ideia de Constituição escrita impõe a presunção de seu caráter
duradouro e da existência de regras estabelecidas para a sua alteração. Daí deriva o efeito
estabilizador, racionalizador e de garantia que emana do texto constitucional – o que fracassa
quando se lhe deixa de considerar vinculante.364
A Constituição não pretende, no entanto, cristalizar-se. Conforme Karl Loewenstein, a
Constituição é um organismo vivo, dinâmico, sempre em movimento, jamais sendo idêntica a
si mesma, o que exige mecanismos de adaptação do texto constitucional.365
Disso não
decorre, contudo, sua prescindibilidade. A Constituição, documento escrito, solene, formal,
deve carregar consigo um conteúdo determinado, ainda que mínimo, sob pena de não
significar coisa alguma. O constitucionalismo resolve essa dinâmica entre alteração e
permanência a partir da previsão de mudança do texto constitucional, geralmente com a
reserva de determinadas matérias: a ideia de Direito.
A mudança do texto constitucional é levada a cabo mediante um processo previsto
pela própria Constituição, que determina o sujeito, o procedimento e os limites da alteração.
361 Georg Jellinek aponta que as Constituições escritas revelam a fé na razão humana e que “se invoca al legislador para curar los males de la sociedad”. A intenção de estabelecer normas fundamentais para além do
alcance do legislador mostra-se frustrada, pela perda da fé no constituinte e no legislador e instabilidade das
normas constitucionais. No início do século XX, o autor já aponta a oposição de poderes ao legislador, que se
atrevem a substituí-lo (JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Op. cit., p. 5-6). 362 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Op.
cit., p. 50. 363 A ideia de Direito é a representação dominante da ordem social desejável, juridicamente garantida
(BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Tradução de Ramón Falcón Tello.
Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 39; BURDEAU, Georges. Manuel de Droit Public. Op. cit., 1948, p.
35). 364 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 21. Para o autor, quando se adota uma solução que é aquela que deriva da interpretação literal da Constituição, ainda que seja de alguma maneira ou em
algum caso mais adequada, “queda abierto el camino por el que la Constitución pueda ser dejada de lado con
sólo invocar cualquier interés aparentemente más alto pero cuya superioridad será, con toda seguridad, puesta
en cuestión. La idea básica de la Constitución escrita se ve entonces sustituida por una situación de inseguridad
producida por una lucha constante de fuerzas y opiniones que en su argumentación no disponen de una base
común de referencia” (p. 22). 365 “Cada constitución es un organismo vivo, siempre en movimiento como la vida misma, y está sometido
a la dinámica de la realidad que jamás puede ser captada a través de fórmulas fijas. Una constitución no es
jamás idéntica consigo misma, y está sometida constantemente al panta rhei heraclitiano de todo lo vivente”
(LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 164).
90
Assim, o ordenamento traz em si os limites materiais, formais, circunstanciais e temporais
para a alteração do texto.
Se a titularidade do poder constituinte é objeto de discussão na doutrina, que ora
considera o poder constituinte como um poder de Direito, cujo titular é necessariamente o
povo e que encontra limites no Direito natural, ora como um poder de fato, cuja titularidade
não pode ser pré-determinada e que é naturalmente ilimitado,366
o titular do poder de reforma
da Constituição é claramente estabelecido pela própria Constituição. E para que se caracterize
seu papel de fundadora e fundamentadora do ordenamento jurídico, sua reforma deve ser
confiada a um “superlegislador”.367
A Constituição brasileira em vigor assenta que o titular do poder de reforma do seu
texto é o Poder Legislativo, seja pelo processo de emenda (artigo 60), seja pelo processo de
revisão (artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).368
A revisão mostra-
se como um processo excepcional de reforma, único, realizado após cinco anos da
promulgação da Constituição, pelo Congresso Nacional reunido e cuja aprovação de suas
reformas exige maioria absoluta. Pelo texto constitucional – apesar de leituras distintas
principalmente na esfera política – a revisão já se deu em 1993, com seis emendas alterando o
texto constitucional. Não pode ser repetida: o dispositivo constitucional esgotou-se com a sua
concretização.369
O artigo 60 da Constituição370
traz toda a disciplina de reforma da Constituição.
Estabelece como titulares de proposta de reforma os membros do Congresso Nacional (um
366 Consideram o poder constituinte de titularidade do povo José Afonso da Silva, Dalmo de Abreu Dallari,
Josaphat Marinho, Afonso Arinos de Melo Franco, Goffredo Telles Junior e Paulo Bonavides; e apontam o
caráter não jurídico do poder constituinte e afirmam a impossibilidade de determinar sua titularidade Celso Bastos, Cotrim Neto, Aricê Moacyr Amaral Santos, José Adércio Leite Sampaio e Carlos Ari Sundfeld. A
análise do pensamento dos autores foi realizada durante a pesquisa de mestrado, que tratava da Assembleia
Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988 (SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e
democracia - Tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático
brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 41-61). 367 SANCHEZ AGESTA, Luis. Curso de Derecho Constitucional Comparado. 7. ed. Madrid:
Universidade de Madrid, 1980, p. 47. 368 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 3º. “A revisão constitucional será realizada após
cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso
Nacional, em sessão unicameral”. 369 Assim a posição de José Afonso da Silva (SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 243). 370 Art. 60. “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos
membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da
metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria
relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de
estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos
membros. § 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a
91
terço de uma das casas), o Presidente da República e mais da metade das Assembleias
Legislativas.371
Não reconhece a legitimidade do povo, soberano por forma do parágrafo
único do artigo 1º, para propor a alteração da Constituição, o que, segundo Karl Loewenstein,
contraria a ideologia do Estado constitucional democrático, que exige que a competência para
a reforma constitucional esteja o mais distribuída possível, pois “soberano es aquel entre los
detentadores del poder que decide sobre la reforma constitucional”.372
A Constituição impõe o procedimento de mudança, a partir da votação nas duas casas
legislativas, em dois turnos, com a exigência de aprovação de três quintos dos membros de
cada uma. Exige-se, assim, uma prévia reflexão para a mudança,373
e um amplo consenso.
Não há previsão de sanção pelo Presidente da República, de aprovação pelas assembleias
legislativas e nem de referendo popular. Pela previsão constitucional, a reforma da
Constituição não é nem fácil demais nem muito difícil, o que permite a adaptação do texto
sem fragilidade em face das maiorias eventuais e um relativo poder de veto a minorias
discordantes.
As limitações circunstanciais estão postas, proibindo a alteração da Constituição em
momentos de crise institucional (intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio). E,
assegurando a estabilidade das decisões fundamentais, retira expressamente determinadas
questões do alcance do poder de reforma: a federação; o voto direto, secreto, universal e
periódico; a separação dos poderes e os direitos e as garantias individuais. Não há no texto
constitucional limitações temporais à reforma do texto.
Os incisos do parágrafo 4º do artigo 60, no entanto, não são os únicos limites materiais
à mudança da Constituição. Alguns derivam da lógica da disciplina constitucional: são limites
ao poder de reforma a sua titularidade, o seu procedimento e o próprio dispositivo que prevê
os limites materiais.374
Outros limites derivam da ideia de Constituição, do seu papel e de seu
separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º - A matéria constante de proposta de emenda
rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.” 371 Em uma fraca acepção federalista, pois reconhece a legitimidade dos estados membros para propor a
reforma da Constituição, mas não exige a sua concordância para a entrada em vigor das modificações. Conforme
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 182. 372 Ibid., p. 172. Para Fábio Konder Comparato e Dalton José Borba, a não vedação expressa de iniciativa
popular para a apresentação de propostas de emendas à Constituição implica a possibilidade da participação do povo, em nome do princípio da soberania popular, no processo de alteração da Constituição (COMPARATO,
Fábio Konder. Emenda e revisão na Constituição de 1988. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 93, p. 125-
128, jan./mar. 1990; BORBA, Dalton José. Iniciativa popular de emenda constitucional no Brasil. Curitiba,
2002. 186f. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do
Paraná). 373 A prévia reflexão para a mudança da Constituição é exigência da configuração de um Estado
constitucional, conforme Georges Burdeau (BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones
políticas. Op. cit., p. 115). Isso não ocorre, ou não ocorre necessariamente, quando da mutação constitucional. 374 Não se admite a hipótese de “dupla revisão”, com o afastamento das cláusulas protetoras e
posteriormente das matérias originalmente protegidas. Parece adequada à noção de Constituição e de poder
92
conteúdo necessário. Dessa maneira, sob pena de esvaziar-se a noção de constitucionalismo,
os princípios constitucionais estruturantes, gerais e setoriais, estão para além do alcance do
poder de reforma da Constituição, pois constituem o núcleo constitutivo de identidade,375
a
essência da ideia de Direito.376
A competência reconhecida constitucionalmente para a
alteração da Constituição pressupõe a preservação da identidade e continuidade da
Constituição, entendida aqui como decisão política fundamental.377
Acentua Jorge Miranda que o sentido da existência de limites às alterações da
Constituição é a “intangibilidade de certos princípios”, em face da função do poder de
reforma: defender a Constituição e garantir sua identidade e continuidade.378
A incorporação no texto constitucional de determinados princípios que dão a estrutura
do Estado e a legitimidade do poder político obriga que seus termos sejam dotados de
significado jurídico379
e colocados para além do alcance das possibilidades de alteração
constitucional.
No núcleo constitucional intangível estão incluídos, exemplificativamente, o princípio
republicano,380
o princípio do Estado de Direito, o princípio democrático (para além da
garantia do voto direto, secreto, universal e periódico), o princípio da anualidade tributária, o
princípio da legalidade penal, os princípios da Administração Pública e os cinco princípios
eleitorais aqui explicitados: a autenticidade eleitoral, a liberdade para o exercício do mandato,
a necessária participação das minorias no debate público e nas instituições políticas,381
a
constituinte a visão de José Joaquim Gomes Canotilho, que vê na dupla revisão uma fraude à Constituição
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.Op. cit., p. 997-998). 375 Ibid., p. 1001. 376 Conforme Karl Loewenstein, os limites da reforma da Constituição são “por una parte, medidas para
proteger concretas instituciones constitucionales – intangibilidad articulada –, y, por otra parte, aquellas que sirven para garantizar determinados valores fundamentales de la constitución que no deben estar
necesariamente expresados en disposiciones o en instituciones concretas, sino que rigen como „implícitos‟,
„inmanentes‟ o „inherentes‟ a la constitución. En el primer caso, determinadas normas constitucionales se
sustraen a cualquier enmienda por medio de una prohibición jurídico-constitucional, y, en el segundo caso, la
prohibición de reforma se produce a partir del „espíritu‟ o telos de la constitución, sin una proclamación
expresa en una proposición jurídico-constitucional” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit.,
p. 189). 377 SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Op. cit., p. 150. 378 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 411 e 414. O
autor, sublinhando a natureza declarativa das cláusulas pétreas, afirma que elas são afastáveis, podendo ser
revogadas pelo poder de reforma, desde que não se atinjam os princípios nucleares da Constituição (p. 418-419). 379 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 27. 380 Paulo Peretti Torelly demonstra a inconstitucionalidade da Emenda 16/97, que insere a reeleição no
ordenamento jurídico brasileiro, em face do princípio republicano, ofendendo a “moldura republicana desenhada
pelo Poder Constituinte originário na definição do estatuto do poder, o que acaba por afrontar a própria essência
do Estado Democrático de Direito, concebido precipuamente como limitação do poder e garantia substantiva de
participação e legitimidade populares” (TORELLY, Paulo Peretti. A substancial inconstitucionalidade da regra
da reeleição. Isonomia e República no Direito Constitucional e na Teoria da Constituição. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2008, p. 197). 381 Vale ressaltar que o sistema de representação proporcional é limite material expresso ao poder de
reforma na Constituição portuguesa (artigo 288º, h), não sendo admissível sua relativização ou “qualquer
93
máxima igualdade na disputa eleitoral e a legalidade específica em matéria eleitoral. Esses
princípios fazem parte dos conteúdos essenciais da Constituição, são decisões constituintes
fundamentais,382
compõem seu núcleo imodificável.383
As competências constitucionais também são inalcançáveis ao poder de reforma.384
Além disso, os preceitos que as prevêem se caracterizam como regras, de aplicação direta e
cogente, sem possibilidade de ponderação ou oposição a outros princípios. Assim não cabe ao
Poder Judiciário, ao considerar a ineficácia do Poder Legislativo em estabelecer normas
jurídicas, assumir a competência legislativa.
Uadi Lammêgo Bulos apresenta quatro teses a respeito dos limites materiais ao poder
reformador: (a) insuperabilidade dos limites materiais; (b) ilegitimidade dos limites materiais
em face da igual dignidade do poder constituinte inicial e posterior; (c) imprestabilidade dos
limites materiais expressos; e (d) possibilidade de dupla revisão, como limites que podem ser
alterados pelo legislador reformador. Aponta que essa última tese configura uma fraude à
Constituição, uma ruptura constitucional.385
Afirma, ainda, a existência de limitações
implícitas, inerentes, tácitas ou imanentes ao poder de reforma, relacionadas aos direitos
fundamentais, à titularidade do poder constituinte e do poder reformador e às disposições que
regulam o processo de emenda ou da revisão constitucional.386
O desrespeito aos limites constitucionais à sua reforma leva ao afastamento da
modificação, mediante controle de constitucionalidade. Vale ressaltar que a reforma do texto
não é a única maneira pela qual a Constituição pode ser modificada. A realidade
constitucional revela a alteração da Constituição por meio de mutação constitucional,
fenômeno que, mantendo incólume o texto constitucional, altera seu significado. Se a reforma
da Constituição encontra disciplina expressa no próprio texto constitucional, a mutação não é
prevista, o que dificulta o estabelecimento de seus limites e o reconhecimento da legitimidade
dos seus agentes.
„engenharia de círculos‟ que perverta, na prática, a regra da proporcionalidade” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 301). 382 Terminologia adotada por Ingo Sarlet (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais.
9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 414). O autor reconhece a existência de limites materias
imanentes e implícitos à reforma constitucional, incluindo aí os princípios fundamentais do Título I da Constituição, as normas sobre a reforma da Constituição, a República e o presidencialismo (a partir da decisão
popular em 1993) (p. 417 e seguintes). 383 Conforme a expressão de José Afonso da Silva (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 66). O autor, revendo posicionamento anterior,
defende a intangibilidade da República. 384 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 83. 385 Ruptura constitucional é entendida por Karl Loewenstein como uma exceção em um caso concreto da
aplicação de uma norma que tem sua validade geral preservada (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la
Constitución. Op. cit., p. 187). 386 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. Op. cit., p. 40-51.
94
Os autores distinguem a reforma da mutação a partir de diferentes elementos. Georg
Jellinek considera reforma da Constituição a modificação voluntária e intencional das suas
normas e entende por mutação a alteração que deixa incólume o seu texto e que se produz por
fatos que não precisam ser acompanhados de intenção ou consciência. Configura mutação
constitucional a alteração do significado do dispositivo da Constituição sem um processo de
revisão ou reforma. Têm natureza fática. O autor aponta a força constituinte do fato
consumado, que revela a necessidade política como um poder criador do Direito,
transformador da Constituição, não apenas em momentos críticos. 387
Entender a mutação constitucional como um poder de fato – caracterização do poder
constituinte – faz tábula rasa do princípio da constitucionalidade, da noção de Constituição, de
sua supremacia e rigidez. Para José Afonso da Silva, essa compreensão leva a “uma
verdadeira flexibilização das Constituições rígidas”.388
Para Karl Loewenstein, reforma constitucional é a modificação do texto, sua técnica
(aspecto formal) e seu resultado (aspecto material). A mutação constitucional, mais frequente,
é a transformação na realidade da configuração do poder político, da estrutura social o do
equilíbrio de interesses sem alteração do texto constitucional.389
Konrad Hesse afirma que revisão constitucional é apenas aquela que modifica o texto
da Constituição. A mutação constitucional afeta não o texto, mas a concretização do conteúdo
das normas constitucionais, a partir da abertura de seus termos. O conteúdo é modificado, “de
la manera que sea”, mudando o conteúdo da norma ou a “situação constitucional”390
de modo
que a norma passa a ter uma significação diferente. O autor aponta ainda a ruptura
constitucional, que é a não observância do texto constitucional em um caso concreto.391
Anna Cândida da Cunha Ferraz aponta que ocorre mutação constitucional quando é
atribuído um sentido novo à Constituição, quando se dá à norma um caráter mais abrangente
387 “Por reforma de la Constitución entiendo la modificación de los textos constitucionales producida por
acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja
indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por
la intención, o consciencia, de tal mutación” (JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Op.
cit., p. 7 e 29). Pablo Lucas Verdú, em estudo preliminar a essa obra, afirma que essa compreensão revela a
influência de Lassale sobre o pensamento de Jellinek (p. LXIII). Para Konrad Hesse o tratamento dado por Georg Jellinek à mutação constitucional leva à conclusão de que é impossível traçar limites à mutação
constitucional, que se mostra como o resultado da atuação de forças elementares irresistíveis, com a capitulação
da Constituição em face dos fatos (HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 88 e 99). 388 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. Op. cit., p. 284. 389 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 165. 390 Com o afastamento da vigência efetiva de uma norma constitucional. Para o autor, não é possível
vislumbrar-se uma mutação constitucional quando se opõem a situação constitucional e a norma constitucional,
porque se está argumentando em diferentes níveis (HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op.
cit., p. 87). 391 Ibid., p. 24 e 85-86.
95
ou um novo conteúdo e quando se preenchem lacunas do texto constitucional.392
Gilmar
Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco afirmam que a
mutação constitucional decorre “da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional,
polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural,
que a Constituição – pluralista por antonomásia – intenta regular e que, dialeticamente,
interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo
constituinte”.393
A mutação, para Georg Jellinek, pode dar-se pela prática parlamentar, da
administração e da jurisdição, pela necessidade política, por desuso das faculdades estatais
(negada pelo autor, ao afirmar a imprescritibilidade do Direito do Estado) e pela integração
das lacunas da Constituição.394
A partir das lições de Hsü Dau-Lin, Pablo Lucas Verdú e Manuel García-Pelayo, Uadi
Lammêgo Bulos aponta quatro modalidades de mutação constitucional: por meio de prática
que não vulnera a Constituição; por impossibilidade do exercício de determinada atribuição
constitucional; em decorrência de prática que viola preceitos constitucionais; e pela
interpretação. Em face da espontaneidade dos métodos de mutação, que podem ser pela
interpretação, pela construção judicial, pelos usos e costumes, pela complementação
legislativa, por práticas governamentais, legislativas e judiciárias e pela influência dos grupos
de pressão, o autor afirma sua ilimitação.395
O ponto nodal da mutação constitucional está na interpretação das normas
constitucionais, quando de sua aplicação pelo juiz.396
As alterações informais do conteúdo do
preceito constitucional pelo legislador, mediante a elaboração de uma lei que contrarie o
entendimento de determinado comando, sempre pode ser objeto de controle de
392 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo: Max
Limonad, 1986, p. 56-58. 393 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Op. cit., p. 130. 394 JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Op. cit. Afirma o autor que cabe ao
legislador o preenchimento das lacunas como regra geral, “porque la reforma de la Constitución es el camino
más seguro para colmar completamente tales lagunas” (p. 56). 395 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. Op. cit., p. 63-66. De maneira bastante singela,
Paulo José Leite Farias aduz que “a Constituição de um país deve ser o bastante plástica e flexível para acolher e pemitir mutações decididas pela sociedade por intermédio de mecanismos democráticos estabelecidos pela
própria Constituição”, afirmando a impossibilidade de que a mutação ofenda a letra ou o espírito da Constituição
(FARIAS, Paulo José Leite. Mutação constitucional judicial como mecanismo de adequação da Constituição
Econômica à realidade econômica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 34, n. 133, p. 213-231,
jan./mar. 1997, p. 214-215). 396 Konrad Hesse afirma que a função da interpretação é “hallar el resultado constitucionalmente
„correcto‟ a través de un procedimiento racional y controlable, el fundamentar este resultado, de modo
igualmente racional y controlable, creando, de este modo, certeza y previsibilidad jurídicas, y no, acaso, el de la
simple decisión por la decisión”. Aduz, ainda, que o recurso acrítico a valores provoca crescente insegurança
(HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 35).
96
constitucionalidade. Práticas que trazem novos significados ao texto constitucional podem ser
afastadas ou afirmadas pelo Poder Legislativo. A aplicação da Constituição pelo julgador, no
entanto, pode assumir uma feição definitiva.
Ao aplicar a norma jurídica, o intérprete pode atribuir novos sentidos aos seus termos,
alargando ou restringindo seu significado. A textura aberta da linguagem e a plasticidade das
normas constitucionais permitem essa atualização, como se verifica facilmente nos termos
“bem comum”, “interesse público”, “reputação ilibada”, “honra”, “justiça social”,
“igualdade”, “liberdade”.
O Supremo Tribunal Federal reconhece a possibilidade de uma mudança informal do
texto constitucional por meio dos seus julgados. O Ministro Celso de Mello acentua que a
interpretação constitucional é instrumento juridicamente idôneo para realizar a mutação,
afirmando sua legitimidade “se e quando imperioso” for compatibilizar a Constituição “com
as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais,
econômicos e políticos”. O Ministro Gilmar Mendes ressalta a influência do tempo no Direito
Constitucional, evidenciando a importância da evolução jurisprudencial e da mutação
constitucional. Referindo-se às lições de Karl Larenz, Inocêncio Mártires Coelho e Peter
Häberle, acentua que a norma é o resultado do processo de interpretação, sempre integrado à
realidade e ao tempo.397
O Direito é linguagem e sua aplicação exige uma atribuição de sentido ao seu
enunciado. Essa atribuição de sentido não pode, no entanto, ser ilimitada. A configuração de
um Estado democrático constitucional exige o afastamento do gerrymandering
interpretativo,398
a partir do estabelecimento de critérios, a fim de não permitir o esvaziamento
da ideia de Constituição pela mutação constitucional promovida pelos juízes e tribunais. Não
é suficiente a existência de um “lastro democrático”, “uma demanda social efetiva por parte
397 Manifestações nos julgados: Habeas corpus 96.772-8 São Paulo, Relator Min. Celso de Mello. Julgado
em 09 de junho de 2009, publicado em 21 de agosto de 2009. Embargos de divergência no Recurso
Extraordinário 166.791-5 Distrito Federal, Relator Min. Gilmar Mendes. Julgado em 20 de setembro de 2007,
publicado em 19 de outubro de 2007. O primeiro caso se refere à não subsistência da prisão civil do depositário
infiel, prevista no artigo 5º, LXVII, em face da adesão do Brasil à Convenção Americana dos Direitos Humanos,
que veda tal prisão. O segundo diz respeito ao artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que prevê a anistia aos servidores públicos que foram atingidos por atos da ditadura militar e assegura o direito a
promoções. O Supremo Tribunal Federal entendia que o dispositivo alcançava apenas as promoções por
antiguidade, mas passa a compreender que estão incluídas também as promoções por merecimento. O Supremo
Tribunal Federal se manifesta sobre as mudanças de entendimento dos dispositivos constitucionais também nos
mandados de segurança sobre a fidelidade partidária, mas essas decisões serão analisadas pormenorizadamente
na segunda parte desse trabalho. 398 Expressão utilizada por Jônatas Machado, a partir da preocupação com a proteção do conteúdo da
liberdade de expressão (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da
esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 740 e 1129). Gerrymandering é uma fraude
eleitoral relacionada à divisão do território em distritos, que leva à distorção da representação.
97
da coletividade”:399
adotar uma Constituição significa expressamente impor limites à vontade
democrática. Tampouco parece adequado ao princípio da constitucionalidade conceber a
mutação constitucional como a expressão de um “poder constituinte difuso”.400
Konrad Hesse estabelece limites à mutação constitucional, afirmando que a ideia de
Constituição e sua garantia exigem controle e bloqueios aos ataques ao seu texto: “Cuando
tales parámetros faltan, entonces no cabe distinguir ya entre actos constitucionales e
inconstitucionales porque la afirmación siempre posible de una mutación constitucional no
puede probarse ni refutarse”.401
Certamente a aceitação da mutação constitucional como fato,
como força constituinte, e o não reconhecimento de limites a ela levam à quebra da própria
ideia de Constituição.
A concretização de uma norma constitucional (sua interpretação)402
exige a
incorporação das circunstâncias da realidade regulada pela norma. Há uma atividade criativa,
mas limitada por sua vinculação à norma. Assim, como em Friedrich Müller, há na teoria
constitucional de Konrad Hesse,403
uma distinção entre norma e texto normativo. O programa
normativo – texto da norma – acolhe o âmbito normativo, as circunstâncias do mundo social,
e, assim, se atualiza e se mostra aberto às modificações sociais, permitindo uma mutação
constitucional constante na concretização da norma.404
Mas as hipóteses de interpretação são vinculadas às possibilidades da norma – a
Constituição escrita “se convierte en límite infranqueable de la interpretación
constitucional”, há a primazia do texto constitucional.405
É o programa normativo – o texto da
399 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 126. 400 Conforme a dicção de Georges Burdeau, com a adesão de Luís Roberto Barroso (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 127) e Anna Cândida da Cunha Ferraz
(FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. Op. cit., p. 10). 401 Hesse ressalta a aceitação majoritária do fenômeno da mutação, a partir de argumentos históricos ou de
dinâmica constitucional, sem uma explicação concreta sobre o funcionamento e os limites a essas alterações das
normas constitucionais (HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 81-84). 402 Os princípios da interpretação constitucional, segundo Konrad Hesse, são o da unidade da Constituição
(que impõe a interpretação de suas normas de maneira que não se contradigam, buscando-se as decisões
constitucionais básicas), o da concordância prática (que estabelece que os bens jurídicos constitucionalmente
protegidos devem ser considerados e garantidos nas decisões constitucionais, sem apelo a bens superiores da
comunidade não garantidos constitucionalmente), o da correção funcional (que determina que as competências e
funções determinadas pela Constituição não podem ser alteradas ou mitigadas pela interpretação), o da eficácia integradora (que obriga a uma leitura que favoreça a unidade política) e o da força normativa da Constituição
(Ibid., p. 45-48). 403 Konrad Hesse assume o método tópico, mas não em toda a sua extensão. A noção de concretização
implica a interpretação da norma a partir de um problema concreto. A atuação tópica, no entanto, é orientada e
limitada pela norma, o que restringe os argumentos que podem ser colacionados pelo intérprete, sendo-lhe
vedado ignorar o programa normativo e as diretrizes constitucionais (Ibid., p. 42-43). 404 Ibid., p. 41 e 28. 405 Ou, como apontam Clèmerson Merlin Clève e Alexandre Reis Siqueira Freire, analisando o método
hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse como adequado para a decisão em colisão de direitos
fundamentais, estão ao alcance do intérprete “os elementos concretizantes ofertados pela normativa
98
norma – que permite ou não que sejam consideradas circunstâncias da realidade que ao se
modificarem alteram o conteúdo da norma constitucional. Essa possibilidade de alteração do
conteúdo deve ser demonstrada com argumentos extraídos da própria norma jurídica e não a
partir de razões vinculadas à força dos fatos ou à necessidade. Permite-se a mutação
constitucional, mas se exclui a ruptura constitucional, o seu “quebrantamiento”, que leva à
reforma do texto, pois estipula um conteúdo incompatível com o texto da norma.406
As modificações admitidas pelo âmbito normativo na concretização da norma não
podem admitir conteúdos que contrariem as normas, não podem ser aceitas como “realidade
constitucional”, ou Constituição realizada. Os limites da mutação constitucional estão na
Constituição: na norma escrita e nas funções da Constituição, relacionadas à estabilização,
racionalização e estabilização do poder. 407
Anna Cândida Cunha Ferraz denomina a mudança informal que ofende à Constituição
de “mutação inconstitucional”, embora desenvolva o tema a partir da noção de “mutações
manifestamente inconstitucionais”, cuja ofensa à Constituição é facilmente perceptível. A
autora ressalta que “para que o espírito da Constituição seja limite para o intérprete é
importante que ele deflua claramente do texto constitucional” e que não se pode congelar a
Constituição “a pretexto de respeitar [seu] espírito”.408
Há dificuldade, no entanto, de marcar
o que seja “manifestamente inconstitucional”.409
Há falseamento da Constituição quando seu texto é afastado sem mudanças regulares
no direito constitucional, afirma Maurice Hauriou, que, no entanto, aduz que tais falseamentos
“sólo crean estados de hecho y no estados de derecho; que no modifican el Derecho y que,
por lo tanto, es lícito – desde que sea posible – la vuelta a las prescriciones y prerrogativas
de la Constitución”.410
Cabem em relação à mutação as considerações feitas em relação aos limites materiais
implícitos ao poder de reforma: a mudança da Constituição, ainda que informal, não pode
atingir o núcleo da Constituição, seus princípios fundamentais, os princípios constitucionais
constitucional” (CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colisão de
direitos fundamentais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Orgs.). Estudos de Direito
Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 231-243, p. 236). 406 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 48-49 e 100-102. O texto pode trazer elementos firmes, em relação aos quais não resta espaço para preenchimento com dados da realidade (p. 95). 407 Ibid., p. 29 e 102. 408 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. Op. cit., p. 9-10,
58 e 243-251. 409 Anna Cândida da Cunha Ferraz afirma que as alterações informais manifestamente inconstitucionais
produzem deformação constitucional, (a) afetando a aplicação da Constituição em um caso concreto, (b) ab-
rogando ou derrogando uma norma constitucional, (c) suspendendo temporariamente a eficácia das normas
constitucionais, (d) produzindo rupturas no ordenamento constitucional ou (e) provocando mudança total da
Constituição (Ibid., p. 245). 410 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 331-332.
99
estruturantes. Assim não fosse e o Poder Judiciário estaria para além da submissão à
Constituição.
Ressalta Luís Roberto Barroso que há dois limites para a mutação constitucional: as
possibilidades semânticas da norma e a “preservação dos princípios fundamentais que dão
identidade àquela específica Constituição”.411
Não se pode concordar com Uadi Lammêgo
Bulos, para quem somente há uma limitação subjetiva, a consciência do intérprete, às
mutações constitucionais, sendo impossível determinar-lhe outros limites.412
Assim o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo
Gustavo Gonet Branco: a mudança de interpretação “há, porém, de encontrar apoio no teor
das palavras empregadas pelo constituinte e não deve violentar os princípios estruturantes da
Lei Maior; do contrário, haverá apenas uma interpretação inconstitucional”.413
Ainda que seja lógico argumentar nesse sentido, e que essa afirmação decorra do
sistema constitucional, não há remédio jurídico para a correção de uma mudança informal da
Constituição que não tenha respeitado esses limites quando seu agente é o Poder Judiciário
pelo seu órgão de cúpula.414
A atuação nesse sentido, porém, leva ao desprestígio do papel da
Constituição, provocado por quem tem o dever de protegê-la.415
Ao modificar a Constituição
o Poder Judiciário extrapola os poderes que lhe foram confiados pela própria Constituição,
apropriando-se da soberania e do poder constituinte.416
O desrespeito às normas constitucionais, demonstrado seja pela desconsideração de
seu comando normativo seja por alterações constantes de seu texto ou de seu significado, leva
ao enfraquecimento da percepção do cidadão em relação à força normativa da Constituição e
à debilitação do sentimento constitucional.
A observância das normas jurídicas depende em grande medida da relação de
percepções e expectativas dos cidadãos. Para que ela se imponha de maneira usual e faça
411 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 127. 412 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. Op. cit., p. 91 e 197. 413 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Op. cit., p. 230. Os autores, às páginas 1022-1025, tratam do “processo de
inconstitucionalização”, pela alteração da interpretação de uma norma constitucional: com a mudança de
entendimento, uma regra que era considerada constitucional para a ser vista como contrária à Constituição.
Impõe-se, nesses casos, a adoção de uma técnica de decisão que traduza a mudança de valoração. 414 Há a possibilidade de o poder de reforma da Constituição, mediante a modificação expressa do texto constitucional, reestabelecer o sentido originário da norma. No entanto, além do alto custo político da alteração –
com exigência do processo de emenda e de alto grau de consenso – ainda poderia o Supremo Tribunal Federal,
provocado, afastar a emenda por inconstitucionalidade. 415 Para Karl Loewenstein, “toda constitución debe, por lo menos, tener para su pueblo una validez
superior a la del producto diario de sus ruedas legislativas” e as reformas constitucionais levam a uma
depreciação do sentimento constitucional do povo (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit.,
p. 199-200). 416 Ressalta Sieyès que “a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte.
Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação. É neste sentido que as
leis constitucionais são fundamentais” (SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. Op. cit., p. 117).
100
parte da prática cotidiana daqueles formalmente submetidos ao ordenamento jurídico, é
necessário que o cidadão perceba que a aplicação da norma é efetiva e que os agentes
públicos, bem como os demais cidadãos, respeitam suas determinações.
O sentimento constitucional é formado por esse respeito às determinações
constitucionais, e, segundo Karl Loewenstein, é a consciência de que a Constituição
estabelece uma ordem a que todos estão submetidos, que transcende os antagonismos e
tensões e que exige tanto uma educação constitucional como um contato direto do povo com a
Constituição.417
Para Pablo Lucas Verdú, o sentimento constitucional se refere à adesão afetiva à
ordem constitucional, por uma valoração ética a partir de uma implicação com o texto
constitucional. Para que esse sentimento exista e se mantenha, não é necessário um
conhecimento técnico e profundo do texto constitucional, mas uma relação de crença e de
justiça nas determinações constitucionais.418
O que leva um povo a sentir-se albergado na Constituição é sua participação, ainda
que mediatizada, na elaboração de seu texto. A Constituição de 1988, por sua gênese, mostra-
se capaz de produzir esse sentimento, pela situação constituinte que se estabelece no final da
década de 1970 e que se fortalece com a derrota do movimento pela eleição direta para
presidente em 1984. Há intensa discussão sobre o que deve estar na Constituição, sobre seus
princípios e normas, com organização de espaços de debate e envio de formulários com
sugestões aos constituintes, e interferência direta na elaboração do texto, com a apresentação
de emendas populares.419
Essa Constituição não pode ser afastada por discussões em espaços restritos de sedes
partidárias nem reeditada por expertos. Suas escolhas fundamentais devem ser respeitadas
pela cidadania e pelos poderes institucionalizados, sob pena de entornar o constitucionalismo
e a democracia.
417 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 200-202. 418 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional
como modo de integração política. Tradução: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
principalmente páginas 53 e seguintes. O autor traz um conceito de sentimento constitucional: “adesão interna às
normas e instituições fundamentais de um país, experimentada com intensidade mais ou menos consciente
porque estima-se (sem que seja necessário um conhecimento exato de suas peculiaridades e funcionamento) que
são boas e convenientes para a integração, manutenção e desenvolvimento de uma justa convivência” (p. 75). 419 Sobre o processo constituinte e a participação popular, ver SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e
democracia - Tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático
brasileiro. Op. cit.
101
PARTE II
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO
DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO
As regras do jogo eleitoral são essenciais para a configuração de um Estado
democrático. Em uma democracia fundamentalmente representativa, a legitimidade do
processo de escolha dos representantes condiciona a qualidade da democracia e da
representação, embora não a determine. É condição necessária, porém não suficiente.
No Brasil, desde sempre, as regras eleitorais se sucedem rapidamente,420
sendo
alteradas em larga ou pequena escala, em mudanças constantes, sem sistematização, sem
coerência.421
Há muito se discute sobre uma consolidação das leis eleitorais, sem sucesso. A
previsão constitucional de lei complementar sobre a organização e competência da Justiça
Eleitoral foi precariamente suprida pela recepção do Código Eleitoral, Lei 4.737/65. Esse
diploma normativo, que passou pela promulgação de três textos constitucionais, está ainda em
vigor, parcialmente como lei complementar, parcialmente como lei ordinária, com alguns
dispositivos expressamente revogados e outros cuja aplicação está afastada em face de
dispositivo legal posterior em sentido contrário.
As “leis do ano”, elaboradas para regulamentar uma eleição específica – como as Leis
7.773/89, 8.214/91, 8.713/93, 9.100/95 –, deram lugar à Lei 9.504/97, Lei das Eleições, que
pretendia dar uma sustentação normativa estável às disputas eleitorais. Essa lei, no entanto,
foi alterada pelas Leis 9.840/99, 10.408/02, 10.740/03, 11.300/06 e 12.034/09. E mais,
interpretada e estendida pelas “resoluções” do Tribunal Superior Eleitoral que, com o pretexto
420 Aduz Miguel Reale: “no Brasil o Direito Eleitoral revela alto índice de experiências malogradas,
renovando-se medidas ontem consideradas obsoletas, e envelhecendo em poucos meses as mais alvissareiras
novidades”. REALE, Miguel. O sistema de representação proporcional e o regime presidencial brasileiro.
Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 7, p. 9-44, nov. 1959, p. 24. 421 Ou, quem sabe, com uma coerência bastante peculiar: manter no poder as elites pela manipulação das
normas constitucionais e eleitorais. Orides Mezzaroba faz uma profunda análise das alterações das normas
referentes aos partidos políticos, ressaltando seus efeitos danosos à imagem dos partidos políticos junto à
sociedade: “As sucessivas manipulações das normas eleitorais geraram cicatrizes profundas no sistema partidário
nacional, provocando o seu descrédito. As elites na busca pela manutenção no poder acabaram reproduzindo uma verdadeira cultura antipartidária” (MEZZAROBA, Orides. O Partido Político no Brasil: teoria, história,
legislação. Joaçaba: UNOESC, 1995, p. 41 e 118). Para David Fleischer e Leonardo Barreto deu-se “un conjunto
de reformas graduales, puntuales, discontinuas y no coordenadas, lo que acabó creando un escenario de gran
complejidad institucional y desfavorable al buen funcionamento y la legitimidad de las instituciones
democráticas” (FLEISCHER, David; BARRETO, Leonardo. Reformas políticas y democracia en Brasil. In:
ZOVATTO, Daniel; HENRÍQUEZ, J. Jesús Orozco (Coord.).Reforma política y electoral en América Latina
(1978-2007). Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México e Idea Internacional, 2008, p. 315-
352, p. 316). Os autores cometem alguns equívocos em sua análise, como afirmar a inscrição automática de
eleitores como reforma política e a verticalização das coligações partidárias como derivada de um consenso
político (p. 318-319).
102
de adaptar a lei à eleição em disputa, acabam por inovar na ordem jurídica, impondo
obrigações e restringindo direitos.
Não há lógica na legislação eleitoral.422
Seus dispositivos mostram-se contraditórios e
sua aplicação leva a “situações objetivamente paradoxais”, o que dificulta estabelecer a
unidade do Direito Eleitoral.423
Fala-se, há 187 anos, em reforma política no Brasil. Há, desde sempre, uma
inquietação em relação às regras eleitorais. Sempre se pede uma reforma das instituições e dos
sistemas. Em 1872 já se bradava: “Não é possível adiar a reforma eleitoral (...) é uma
exigência nacional que há de ser atendida, custe o que custar. (...) A reforma eleitoral é um
pregão patriótico e enérgico contra o nosso desmoralizado regime eleitoral”.424
Tramitam propostas para alteração das regras eleitorais, propõe-se o voto distrital, a
lista fechada, o financiamento público exclusivo das campanhas, a vedação às coligações, a
ampliação das causas de inelegibilidade, uma cláusula de desempenho.425
Enquanto isso, o
Tribunal Superior Eleitoral impõe seu entendimento, construindo o Direito Eleitoral a partir
das resoluções, criando a verticalização das coligações, a perda de mandato por infidelidade
partidária, a inelegibilidade por rejeição de contas de campanha.426
E com essa atuação, inserem-se na dinâmica do processo eleitoral institutos e
categorias que não se coadunam com os princípios constitucionais eleitorais, com os
princípios constitucionais estruturantes e com os valores plasmados na Constituição.427
422 Análise presente também em BITENCOURT, Antônio Carlos dos Santos. Três aspectos polêmicos da
legislação eleitoral. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 89, p. 157-164, jan./mar. 1989. 423 SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais:
condutas vedadas aos agentes públicos. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 56. 424 Essa citação é da introdução ao livro sobre o sistema eleitoral no Império de Francisco Belisário Soares de Souza, composta pelo editorial do jornal O Diário, quando da veiculação dos capítulos do livro (SOUZA,
Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979 [1872]). 425 Existe quase um consenso em relação à indispensabilidade da reforma política no Brasil. Em uníssono,
vozes de direita e de esquerda, da mídia e da academia, clamam por uma nova estrutura constitucional e eleitoral
que permita a estabilidade e a governabilidade, com a certeza de que parte dos problemas brasileiros decorre das
instituições políticas (SANTOS, Wanderley Guilherme. Governabilidade e democracia natural. Rio de Janeiro:
FGV, 2007, p. 65 e ss). Geraldo Brindeiro afirma que “[o] futuro da nossa democracia, todavia, depende ainda
de reformas políticas”, defendendo o voto distrital misto, a cláusula de barreira e a diminuição do número de
partidos (BRINDEIRO, Geraldo. A democracia e as reformas políticas. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 nov.
2000, A3). 426 Não parece haver um discernimento entre o institucional como contexto e o institucional como objeto, como aponta Fábio Wanderley Reis (REIS, Fábio Wanderley. Dilemas da democracia no Brasil. In: AVELAR,
Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da
Unesp, 2004, p. 391-409). Por decisão democrática da maioria ou, ainda pior, por decisão dos membros do
Tribunal Superior Eleitoral determina-se a mudança das coisas, da mentalidade política do cidadão, da maneira
da formação do voto, da medida da independência do mandatário. O dever-ser não encontra limites naquilo que
não é e nem virá a ser, pelo simples fato de que deve ser. 427 Vale trazer o espanto de Alberto Rollo, ao tratar da verticalização das coligações (que o autor relaciona
com o voto vinculado imposto pelo regime militar em 1982, quando o eleitor passou a ter que votar em
candidatos do mesmo partido, “em nome do purismo eleitoral da solidificação das ideologias partidárias”) e da
fidelidade partidária, criações do Poder Judiciário em matéria eleitoral: “É interessante notar que as situações
103
O Direito Eleitoral é, no entanto, o que determina o processo de legitimação do poder
político, sendo responsável, assim, pela qualidade (formal) da democracia.428
Sua tarefa
primordial é assegurar a presença de todas as ideias políticas na discussão democrática, a
partir do acesso livre à disputa eleitoral e da sua igual visibilidade.429
Impõe-se evidenciar alguns critérios para a elaboração da legislação eleitoral e para a
verificação das decisões judiciais neste âmbito. Esses critérios, certamente, não podem ser
construídos livremente, sob pena de apenas se trasladar o lugar do arbítrio. Devem ser
extraídos das escolhas constituintes fundamentais, dos princípios constitucionais explícitos e
implícitos.
A Constituição é formada por valores, princípios e regras. Alguns de seus princípios se
espraiam por todo o ordenamento jurídico. Outros, atuam especificamente em algum setor do
Direito. O Direito Eleitoral, como outros ramos do Direito, encontra na Constituição seus
princípios estruturantes.
Constituição analítica, o texto de 1988 alberga, além dos princípios fundamentais e
gerais, princípios específicos de campos jurídicos. O Direito Eleitoral, como instrumento de
realização dos princípios republicano e democrático, também tem princípios próprios
consagrados no texto constitucional. Não de maneira explícita, como os princípios da
Administração Pública, reunidos pelo constituinte no caput do artigo 37, ou os da ordem
econômica, dispostos no artigo 170. Mas as escolhas políticas fundamentais implicam um
conjunto de preceitos constitucionais no âmbito eleitoral que condicionam a criação e a
aplicação do Direito Eleitoral, trazendo critérios para a sua justificação e racionalização.
Esses princípios se complementam, se condicionam, se modificam e se harmonizam, atuando
conjugadamente na costura do ordenamento jurídico.430
eleitorais que no passado eram consideradas medidas ditatoriais, fruto do regime militar acabaram sendo
consideradas, em tempos mais recentes como atos de moralização da política”. ROLLO, Alberto. Convenções
partidárias e registro de candidatos. In:_____. (Org.) Elegibilidade e inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum,
2008, p. 15-39, p. 24 e 25. 428 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo:
Acadêmica, 1993, p. 85. Ressalta o autor: “Falhando o direito eleitoral, falha o procedimento legitimador,
esmorecem os canais de comunicação entre a ação do Estado e a vontade popular, aparecem as „crises políticas‟. Bem elaborada o direito eleitoral e suas instituições, serão mais estreitas as distancias que separam o poder da
massa dos cidadãos”, p. 87. 429 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 4. 430 Inspiração de Romeu Felipe Bacellar Filho, que afirma que “[a]través dos princípios, as normas
constitucionais são costuradas umas às outras para formar o ordenamento constitucional”. E segue: “Embora
possuam marca distintiva, os princípios atuam conjugadamente, complementando-se, condicionando-se,
modificando-se, harmonizando-se em termos recíprocos. Tudo porque assentam-se numa base antropológica
comum: a dignidade da pessoa humana” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre Direito
Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 129).
104
Aliás, os princípios de Direito Eleitoral configuram um conteúdo essencial da
Constituição.431
Afirma Karl Loewenstein que a qualificação de Estado de Direito impõe que
as regras do processo político – entendido como as técnicas de obtenção, exercício e perda do
poder – estejam submetidas à Constituição e, assim, vinculem igualmente os detentores do
poder e os cidadãos.432
Esse conjunto de regras que estabelece a legitimidade dos governantes no sistema
constitucional brasileiro se mostra, inicialmente, por cinco princípios constitucionais
estruturantes – o princípio da autenticidade eleitoral, o princípio da liberdade para o exercício
do mandato, o princípio da necessária participação das minorias, o princípio da máxima
igualdade na disputa eleitoral e o princípio da legalidade específica em matéria eleitoral.
Fundamentos do regime político-eleitoral, esses princípios consubstanciam as decisões
constitucionais estruturantes, condicionam a interpretação das demais normas constitucionais
e são critérios de validade das leis eleitorais e de justificação das decisões judiciais.
Dos princípios estruturantes do Direito Eleitoral extraem-se regras. Algumas foram
expressamente acolhidas pela Constituição. Estão, portanto, fora do alcance do legislador e da
“ponderação”433
do Poder Judiciário. E, se refletem o âmago dos princípios, estão para além
do poder de reforma da Constituição.
431 Para Jorge Miranda, o Direito Eleitoral é parte do Direito Constitucional. Assim, “os princípios
fundamentais de Direito eleitoral político são princípios constitucionais. Não há princípios de Direito eleitoral
político que não sejam também princípios político-constitucionais, que não reflictam, directa ou indirectamente,
princípios axiológicos fundamentais e que não se projectem ainda em princípios constitucionais instrumentais”
(MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Lisboa: Associação
Académica da Faculdade de Direito, 2003, p. 18). Em sentido similar, Cármen Lúcia Antunes Rocha: “A forma
de exercício da soberania popular e a organização dos poderes públicos, mormente o preenchimento dos cargos
políticos por meio de eleição popular, guarda, nitidamente, natureza essencial que a adjetiva fundamental no
sistema do Direito” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A Constituição segundo a lei eleitoral ou a lei eleitoral segundo a Constituição. Paraná Eleitoral, Curitiba, n. 30, out.1998. Disponível em: http://www.paranaeleitoral.
gov.br/artigo_impresso.php?cod_texto=54. Acesso em: 02 fev. 2004). 432 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 163. 433 Gilberto Amado critica os que afirmam que para governar bem basta ponderação e faz uma crítica, que
parece caber também aos juízes ponderadores e seus juristas entusiastas: “O que se chama povo no Brasil, o
comerciante, o funcionário, o capitalista, o cidadão que pára na Avenida para conversar e o que fica trabalhando
no escritório – todos sinceramente adotam esse ponto de vista: „Para governar não precisa talento ou saber. O
que é preciso é ponderação‟, palavra mágica em que se concentram todas as virtudes da mediocridade e que
excita no povo brasileiro um entusiasmo tocante, admirável...” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação.
Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p. 148). Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos defendem a ponderação, mas reconhecem a possibilidade de seu mau uso afirmam que “não é remédio para todas as
situações”. O controle da sua legitimidade deve dar-se pelo exame da argumentação desenvolvida, que precisa se
mostrar consistente por meio de fundamentos normativos, da possibilidade de universalização de seus critérios e
de compatibilidade com os princípios instrumentais e materiais que conformam a ordem constitucional
(BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova
interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 327-378, p. 349-354). José Joaquim Gomes Canotilho também alerta para a “acentuada opacidade na
distinção dos momentos de interpretação e de ponderação na jurisprudência constitucional. Entre a atribuição
de um significado a uma norma e a tomada de decisão razoável, os tribunais constitucionais movem-se num
105
O escopo da regulamentação do processo eleitoral brasileiro é permitir a efetivação
dos princípios estruturantes do Estado brasileiro. As normas de Direito Eleitoral vêm, assim,
para realizar os princípios democrático, republicano, do Estado de Direito, assegurando
legitimidade ao sistema e permitindo o desenvolvimento da autonomia pessoal e política.434
Alguns autores apresentam princípios eleitorais em sede constitucional e em âmbito
legal. Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira elenca princípios de Direito Eleitoral,
mas o faz sem especializá-los.435
Jair Eduardo Santana e Fábio Guimarães apresentam
princípios relacionados às eleições, apontando princípios constitucionais gerais, como a
República, o Estado Democrático de Direito, a cidadania e o pluralismo político e princípios
específicos. Estes se dividem em princípios atinentes às eleições (princípio da
representatividade mais eficiente, relacionado com a adequação do número de representantes,
as prerrogativas inerentes à função e ao controle externo da função legislativa e o princípio da
periodicidade), princípios atinentes ao ordenamento jurídico eleitoral (princípio da hierarquia
das normas eleitorais e princípios hermenêuticos em matéria eleitoral), princípios atinentes
aos partidos políticos (da liberdade de organização partidária e da fidelidade partidária),
princípios atinentes à propaganda eleitoral (da legalidade, da liberdade, da responsabilidade,
da igualdade e do controle jurisdicional) e finalmente princípios atinentes ao Direito
Processual Eleitoral (do devido processo legal e da preclusão).436
Em relação ao procedimento das eleições, Sivanildo de Araújo Dantas apresenta
princípios informativos (lógico, político, jurídico e econômico) e princípios fundamentais.
Esses podem ser gerais (da igualdade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da
círculo hermenêutico contínuo sem que se distinga entre interpretação ou procedimento interpretativo que visa
conferir um significado ao enunciado ou disposição da norma e ponderação ou balanço de direitos e interesses em que se visa elaborar critérios para, em face das condições normativas e factuais, obter uma regra de decisão.
Se a interpretação, para utilizarmos uma imagem só tendencialmente correcta, obedece a um paradigma de
geometria fixa, o balanceamento procura ser tópico em vez de geométrico” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas
constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v. 1, p. 871-887, p. 885-886), 434 Ainda que seja possível vislumbrar desvios no processo de obtenção do voto, isso, no entanto, não deve
levar à tutela do eleitor, tomando-o como um cidadão incapaz. 435 Assim, após tratar do princípio da anualidade eleitoral (que será analisado neste trabalho), traz o
princípio da vedação da restrição de direitos políticos ou da tipicidade eleitoral ou da estrita legalidade eleitoral
(que também será objeto de estudo), mas também o do devido processo legal, o da proporcionalidade ou
razoabilidade ou proibição de retrocesso, do contraditório, da imparcialidade do juiz, da isonomia, dispositivo, do impulso oficial, da oralidade, da publicidade, da lealdade processual, da economia processual ou da
instrumentalidade das formas, da preclusão, da celeridade processual e da identidade física do juiz. Além disso,
indica outros princípios da seara eleitoral-penal, como o princípio da individualização das penas, da judicialidade
das provas, da fungibilidade recursal, do duplo grau de jurisdição, da publicidade, da oficialidade, da
obrigatoriedade da ação penal pública, da indisponibilidade da ação penal pública, da verdade real ou da verdade
processual, da presunção da inocência, da ampla defesa e do juiz natural (CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes
Luz de Pádua. Preleções de Direito Eleitoral: Direito Material. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. v. 2). 436 SANTANA, Jair Eduardo; GUIMARÃES, Fábio. Direito Eleitoral Resumido. Belo Horizonte: Inédita,
2000, p. 49-52. Ver também SANTANA, Jair Eduardo, GUIMARÃES, Fábio. Direito eleitoral: para
compreender a dinâmica do poder político. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 48.
106
transparência, da eficiência, da razoabilidade, da fundamentação, do interesse público, da
supremacia do interesse público, da continuidade do procedimento das eleições, da
indisponibilidade das atribuições e da oficialidade) e princípios específico do procedimento
das eleições (da especialidade, da anterioridade anual de lei modificadora do procedimento
das eleições, da legalidade estrita437
, da celeridade, da escritura e da gratuidade).438
Para
Francisco de Assis Vieira Sanseverino, os princípios constitucionais autônomos do Direito
Eleitoral são o sufrágio universal, o voto direto e secreto, a igualdade do voto, legitimidade e
normalidade das eleições, a anterioridade da lei eleitoral e a liberdade de criação e
funcionamento dos partidos políticos.439
Segundo Carlos Eduardo de Oliveira Lula, os
princípios constitucionais setoriais atinentes ao Direito Eleitoral são: anualidade, lisura das
eleições, aproveitamento do voto, vedação de restrição de direitos políticos, liberdade de
propaganda política, liberdade partidária, periodicidade da investidura das funções eleitorais e
celeridade.440
Guilherme de Salles Gonçalves aponta a proteção à fidedignidade e
legitimidade do voto, a temporalidade certa, a dupla função típica da Justiça Eleitoral, a
igualde de oportunidades, a ampla liberdade de expressão das ideias políticas, a neutralidade
estatal e a unicidade eleitoral.441
Não são esses os princípios que se pretendem desenvolver nesse trabalho. Tampouco
aqueles que Enrique Alvarez Conde apresenta, ao tratar da legislação eleitoral espanhola: a
vedação ao falseamento da vontade popular, a conservação do ato eleitoral e a unidade do ato
eleitoral. Para o autor, há uma preeminência do primeiro princípio em relação aos demais pela
vigência do princípio democrático, ou seja, “o respeito à vontade do corpo eleitoral, clara e
validamente manifestada, deve manter-se em todos os trâmites e momentos do processo
eleitoral”, ainda que presentes algumas leves irregularidades que não interfiram no resultado
da eleição.442
Não se confundem, ainda, com os princípios constitucionais de Direito Eleitoral
apontados por Jorge Miranda, divididos em princípios substanciais ou relativos aos eleitores –
universalidade, igualdade, individualidade, pessoalidade, liberdade e imediaticidade – e
437 A contribuição do autor em relação a esses dois últimos princípios será trazida quando do tratamento
dos temas respectivos. 438 DANTAS, Sivanildo de Araújo. Direito eleitoral: teoria e prática do procedimento das eleições brasileiras. Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 210-220. 439 SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais:
condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 3. 440 LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. Leme: Imperium, 2008, p. 78-103. 441 GONÇALVES, Guilherme de Salles. A liberdade de exercício da propaganda eleitoral e o „dever‟ de
respeito às posturas municipais. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande;
STRAPAZZON, Carlos Luis (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 205-
241. 442 CONDE, Enrique Alvarez. Los principios del derecho electoral. Revista del Centro de Estudios
Constitucionales, Madrid, n. 9, p. 9-37, may./ago. 1991.
107
princípios objetivos ou relacionados com a organização do poder político e aos procedimentos
– periodicidade, liberdade, igualdade, imparcialidade de entidades públicas, participação na
administração eleitoral, relevância específica dos partidos políticos, proporcionalidade,
estabilidade da lei eleitoral e jurisdicionalidade.443
Os princípios aqui analisados derivam das decisões fundamentais plasmadas na
Constituição brasileira de 1988 e estão para além do poder de reforma. São princípios
estruturantes, que se referem à concepção de um Estado Democrático de Direito e que se
traduzem nos vínculos decorrentes do princípio de legitimação do exercício do poder político:
o consentimento do povo, mediante eleições.
Ressalte-se que a disputa eleitoral, objeto dos princípios que serão desenvolvidos, dá-
se na esfera pública e tem como escopo concretizar os princípios democrático e republicano.
O regime jurídico aplicado a ela, por essas características, escapa da configuração privatista,
relacionada à autonomia da vontade e à liberdade ampla. O interesse público444
na lisura do
processo eleitoral é corolário dos princípios fundamentais referidos e se evidencia pelo
tratamento constitucional dado ao tema e por propriedades da legislação eleitoral, como a que
determina ação penal pública para todos os crimes eleitorais, revelando a coletividade como
sujeito passivo das condutas ofensivas à lhanura do pleito.
Esses princípios devem ser observados quando da avaliação e modificação da
legislação eleitoral, bem como quando da tomada de decisões judiciais em questões eleitorais.
Por força do modelo brasileiro de verificação de poderes, a Justiça Eleitoral tem um papel
primordial na garantia da qualidade da democracia brasileira, atuando como efetivadora dos
princípios constitucionais.
Isso não quer dizer, no entanto, que se defende o esvaziamento da esfera política, a
judicialização da política. Para Boaventura de Sousa Santos “[h]á judicialização da política
sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afectam de modo
significativo as condições da acção política”.445
E os constantes recursos à Justiça Eleitoral
pelos vencidos nas urnas podem refletir o que Gilberto Amado chama de “pouco respeito que
se tem pelo voto”.446
443 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III – Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Op. cit., p. 29-
30. 444 Para uma visão do conceito de interesse público ver GABARDO, Emerson. Interesse Público e
Subsidiariedade: o Estado e a Sociedade Civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009,
capítulo VI. 445 SANTOS, Boaventura de Sousa. A judicialização da Política. Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/078en.php. Acesso em: 10 dez. 2009. 446 “Nada esclarece mais ainda esse ponto do que o pouco respeito que se tem pelo voto; o vencido nas
urnas não se considera vencido e trata por todos os meios de disputar ao vencedor as vantagens da vitória. Daí a
luta do reconhecimento de poderes” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Op. cit., p. 44).
108
1 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTENTICIDADE ELEITORAL
O Estado brasileiro pauta-se pelos princípios republicano e democrático. A efetivação
de parte desses princípios se dá pela formação da vontade política do Estado, a partir da
decisão direta do povo ou pela formação de um corpo representativo para a construção dessa
vontade.
A genuinidade, a sinceridade da democracia447
exige um conjunto de direitos,
liberdades e garantias que permita a formação da vontade política sem vícios e sem
distorções. A liberdade de expressão, o acesso dos cidadãos aos poderes públicos, os
princípios da Administração Pública, ao lado dos demais princípios fundamentais, fazem parte
desse arcabouço que forma a estrutura do Estado de Direito.
A autenticidade eleitoral também é um componente dessa exigência. Na formação dos
Parlamentos e na indicação democrática do chefe do Poder Executivo, os procedimentos
devem ser amparados em garantias de igualdade e de liberdade, sob pena de ilegitimidade do
sistema representativo.448
Eleições livres, essenciais para uma democracia, são “aquellas en
que a cada elector se le ofrece la oportunidad – una oportunidad igual – de expresar su
parecer a la luz de la opinión y sentir propios” – e somente são possíveis em sociedades
livres, ressalta W. J. M. Mackenzie.449
Lauro Barreto aponta como condições para a lisura das eleições a livre formação da
vontade do eleitor e a igualdade de oportunidades entre os candidatos.450
Ainda que se saiba
que não é apenas garantindo a livre formação do voto, a correta apuração dos votos e a
fidedignidade da representação que se assevera a verdade eleitoral, não se concorda com
Gilberto Amado, para quem “[à]s vezes, quanto mais verdadeira a eleição, mais corrupta ela
447 É o standard do free and fair election, como afirma Monica Herman Salem Caggiano (CAGGIANO,
Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004, p. 80). 448 “Genuine democratic elections are an expression of sovereignty, which belongs to the people of a
country, the free expression of whose will provides the basis for the authority and legitimacy of government”
(UNITED NATIONS. Declaration of principles for international election observation and code of conduct for international election observers. New York: United Nations, 2005). 449 MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Madrid: Editorial Tecnos, 1962 [1958], p. 175 e 158. Para o
autor, há quatro tipos de “patología electoral”: eleições confusas (sem partidos coerentes), eleições compradas
(determinadas por benefícios particulares ou parciais), eleições preparadas (pela influência da administração
eleitoral ou pela delimitação tendenciosa dos distritos eleitorais) e eleições por aclamação (p. 185-191). Já em
Sieyès a validade da formação do corpo representativo está relacionada à eleição livre e geral (SIEYÈS,
Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. Que é o terceiro estado? Tradução: Norma Azeredo. Rio de Janeiro:
Liber Juris, 1986 [1789], p. 109). 450 BARRETO, Lauro. Escrúpulo e poder: o abuso de poder nas eleições brasileiras. Bauru: Edipro, 1995,
p. 11.
109
é, mais contrária ao espírito de representação, à finalidade da democracia”.451
Para o autor, a
noção de democracia está ligada à escolha dos melhores e seus vícios se revelam quando o
povo falha nessa seleção.
Como já demonstrado, a ideia de democracia assumida pela Constituição de 1988 é
mais ambiciosa e inclui a autenticidade eleitoral entre os seus elementos. Dessa forma, impõe-
se a coibição dos desvios no processo democrático.
Os fatores que devem ser considerados relevantes na disputa eleitoral são os
programas políticos e as qualidades dos líderes, conforme aponta Óscar Sánchez Muñoz. Os
fatores irrelevantes – recursos econômicos dos competidores, seu acesso aos meios de
comunicação de massa e o exercício de cargo ou função pública por algum deles452
– não
podem fazer diferença, devendo sua influência ser controlada para garantir a autenticidade
eleitoral. Assim, impõe-se a coibição dos abusos na disputa.453
Não se pode, no entanto, afirmar a existência de uma autenticidade eleitoral em
sentido amplo, denso. Não há como mensurar os interesses do cidadão no momento de
formação e manifestação do voto, não há como relacionar a escolha a um conjunto de
propostas mais ou menos apresentadas por um partido ou por um candidato, não há como
garantir que as escolhas, se conscientes, mantêm-se durante todo o período do mandato do
representante.454
Não se trata de investigar o significado do voto, se é opção política de assentimento a
determinado programa partidário ou se é a expressão do “sentimiento de confianza y de
adhesión de hombre a hombre”.455
No entanto, a legitimidade da disputa eleitoral deve ser
garantida com a proteção (inclusive na esfera penal) contra determinadas condutas em defesa
dos direitos subjetivos do eleitor e por meio de princípios objetivos constitucionais que
451 AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Op. cit., p. 29. 452 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 349-350. 453 Afirma Vera Maria Nunes Michels que “para garantir a genuína representação política em sua
autenticidade substancial, há necessidade de contenção contra qualquer tipo de poder, quer seja ele político,
econômico, cultural ou social (...)” (MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito eleitoral: análise panorâmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 143). 454 Conforme George Jellinek: “El problema de un sistema electoral justo y adecuado no tiene solución. Además, nunca se puede decir con certeza del acto de votar lo que el votante piensa y quiere políticamente. La
elección de una persona determinada puede darse por motivos más diversos y de ninguna manera significa la
aceptación de un programa determinado en cuanto tal. Además, las elecciones se producen en períodos largos y
aunque se dieran en períodos cortos no hay garantía de que en el intervalo entre las votaciones el voto del
elector sea el mismo de modo que coincida su expresión con los actos de los representantes. Por lo tanto,
examinando las cosas a fondo, encontramos que ninguna institución política se basa tanto en ficciones e ideales
que no corresponden a la realidade como la representación nacional”. JELLINEK, Georg. Reforma y mutación
de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991 [1906].p. 74. 455 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. ed. Tradução: Carlos Ruiz del
Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 496-497.
110
reflitam os valores democráticos do sistema, relacionando-se com a dupla concepção de
sufrágio: direito e função pública.456
Os dois pontos cruciais na autenticidade eleitoral partem da configuração democrática
constitucional: a liberdade do voto e a igualdade do voto.
As nódoas na liberdade do voto se revelam por vícios na sua formação, seja de
maneira direta – por coação, fraude, corrupção, compra de votos –, seja de maneira indireta,
por restrições ou favorecimentos a determinados discursos políticos ou por tratamento
diferenciado a partidos e candidatos. A liberdade do voto se reflete na regra do voto secreto,
que constitui cláusula pétrea, núcleo duro do sistema constitucional. O segredo do voto
constitui direito fundamental, que se espraia para além da esfera subjetiva, informando o
princípio democrático.457
A igualdade do voto reflete o ideal republicano e o tratamento com igual respeito e
consideração exigido pela concepção dworkiana de democracia. A imposição de igualdade
não se contenta com a previsão do voto singular – uma pessoa, um voto –, mas requer outras
garantias de igual possibilidade de participação nas decisões políticas.
Ronald Dworkin trabalha com duas dimensões da igualdade de poder político: a
vertical, que coteja o poder dos cidadãos e o dos titulares de cargos públicos, e a horizontal,
na qual a comparação se dá entre os cidadãos particulares ou grupos entre si. Além disso, fala
em igualdade de impacto (participação efetiva na decisão por si só) e de influência
(capacidade de guiar ou induzir a participação alheia).
Para que a igualdade seja real, é necessária, além da previsão do mesmo peso para o
voto dos cidadãos, a garantia de liberdade de expressão e de associação. A igualdade de
influência, no entanto, não pode atingir diferenças relacionadas ao carisma, à reputação e ao
preparo, sob pena de sacrifício do ideal republicano em nome da instrumentalização do poder
político.458
Os excessos relacionados a outras formas de desigualdade – econômica,
principalmente – parecem, no entanto, inconcebíveis em uma democracia autêntica.
Gilmar Mendes ressalta a necessidade de alternativas para que a escolha do eleitor seja
livre e opções que se mostrem com as mesmas oportunidades na disputa eleitoral. Além disso,
456 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 44-45. 457 Para Jorge Reis Novais, o direito ao segredo do voto “tem uma função de protecção da esfera de
privacidade e liberdade do indivíduo, mas desempenha também um papel decisivo no processo da escolha e
decisão democráticas, enquanto exigência da genuinidade da vontade livremente expressa do voto”. Ressalta
ainda que a renúncia coletiva ao sigilo do voto leva à distorção das regras democráticas, perturbando o sistema e
configurando um potencial fator de coação naquele pleito e nos seguintes (NOVAIS, Jorge Reis. Direitos
fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 241-242). 458 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Tradução: Julio Montero y Alfredo
Stolarz. Buenos Aires: La isla de la luna, 2003 [1980/1990], p. 54-59.
111
afirma que a igualdade de voto não se esgota na igualdade de valor: deve se refletir também
na igualdade quanto ao resultado, o que é abrigado em um sistema proporcional.459
A autenticidade eleitoral está relacionada à definição do corpo eleitoral – quem é
admitido a votar. A Constituição traz o recorte dos direitos políticos. Estão excluídos os
menores de 16 anos, os estrangeiros, os que estão com os direitos políticos suspensos ou não
os têm.460
Os conscritos não podem se alistar como eleitores; se alistados anteriormente, não
podem votar. Para Maurice Duverger, isso representa uma negação da cidadania completa a
uma parcela da população e que, em face da obrigatoriedade do serviço militar, esse “sistema
tem como conseqüência atrasar a maioridade eleitoral e adquire, de facto, um significado
conservador”.461
O princípio constitucional da autenticidade eleitoral impõe ainda um sistema de
verificação de poderes,462
para averiguar da lisura e da legalidade das eleições, as condições
de elegibilidade dos candidatos e da suficiência dos votos recebidos.
A verificação de poderes pode dar-se pelo Parlamento, por um órgão de composição
mista e pelo Poder Judiciário. O Brasil não experimentou o segundo sistema, vigente na
França; adotou o primeiro modelo desde o Império até 1932 e durante o Estado Novo e tem a
Justiça Eleitoral como órgão competente para a verificação de poderes desde então.
No Brasil, as Constituições de 1824463
e 1891464
prevêem a verificação do poderes
pelo Parlamento. Nesse modelo, cada casa parlamentar é o juiz dos poderes dos seus
membros, marcando uma autonomia do Poder Legislativo. No Império e nas primeiras
décadas republicanas, no entanto, a verificação de poderes pelas casas legislativas permite um
desvirtuamento da representação, com o não reconhecimento de eleitos.
459 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 734. 460 Art. 15. “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I -
cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III -
condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a
todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos
do art. 37, § 4º.” 461 DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos: Instituições Políticas e Direito Constitucional –
I. Tradução: Fernando Ruivo e Fernando Augusto Ferreira Pinto. Coimbra: Almedina, 1985 [1980], p. 88. 462 Nelson de Sousa Sampaio aponta que a denominação “verificação de poderes” deriva da necessidade na
representação medieval de verificar as instruções dadas ao mandatário. Apesar do afastamento do mandato imperativo, “as expressões „verificação de poderes‟ e „mandato‟ sobreviveram até hoje no dicionário político”
(SAMPAIO, Nelson de Sousa. A justiça eleitoral. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34,
p. 111-153, jul. 1972, p. 121). 463 Título 4º – Do Poder Legislativo, Capítulo I – Dos ramos do Poder Legislativo, e suas atribuições. Art.
21. “A nomeação dos respectivos Presidentes, Vice Presidentes, e Secretarios das Camaras, verificação dos
poderes dos seus Membros, Juramento, e sua policia interior, se executará na fórma dos seus Regimentos”. 464 Seção I – Do Poder Legislativo, Capítulo I – Disposições gerais. “Art. 18. Parágrafo único - A cada uma
das Câmaras compete: - verificar e reconhecer os poderes de seus membros”. O Congresso Nacional, por força
do artigo 47, faz a apuração dos votos para Presidente e Vice-Presidente da República e, em caso de nenhum
candidato alcançar a maioria absoluta dos votos, elege entre os dois mais votados.
112
Esse sistema é adotado atualmente na Argentina, na Itália, na Noruega e no México.465
A Constituição da Nação Argentina determina que cada câmara é competente para verificar a
validade das eleições, direitos e títulos dos seus membros.466
Há previsão de atuação de juízes
federais como juízes eleitorais que recebem o pedido de registro de candidatos e analisam o
preenchimento das condições de elegibilidade.467
A Constituição Italiana, de igual forma, atribui a cada Câmara a verificação dos
poderes de seus membros.468
O Presidente da República é eleito pelo Parlamento, em sessão
conjunta do Senado e da Câmara de Deputados (art. 83). Monarquia parlamentar, a Noruega
adota a verificação dos poderes pelos órgãos legislativos.469
Na Alemanha, sob a vigência da Constituição de Weimar, há a previsão de um
Tribunal de Verificação Eleitoral, que atua junto à Assembleia Nacional e é composto por
membros da Assembleia e membros do Tribunal Administrativo da República, com a
atribuição de verificar os poderes e decidir questões sobre a perda de mandato.470
Na Lei
Fundamental a questão é remetida à lei e hoje se manifesta por procedimentos judiciários,
com previsão de recurso para o Tribunal Constitucional.
A França adota, sob a Constituição de 1958, a verificação de poderes pelo Conselho
Constitucional, formado por nove membros – três indicados pelo Presidente da República,
três pelo Presidente da Assembleia Nacional e três pelo Presidente do Senado – com mandato
465 Sua adoção se relaciona com a soberania do Parlamento, que não aceita o controle da eleição dos seus membros por um juiz. Maurice Duverger afirma: “O processo garante os eleitos contra qualquer ingerência
governamental; mas de modo nenhum os protege dos seus adversários políticos. Em geral, as assembleias
preocupam-se menos com a justiça do que com as suas preferências políticas, em matéria de contencioso
eleitoral; elas „validam‟ sem dificuldades os deputados da maioria, e esforçam-se, pelo contrário, por invalidar os
outros” (DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos. Op. cit., p. 96-97). 466 “Artículo 64 - Cada Cámara es juez de las elecciones, derechos y títulos de sus miembros en cuanto a
su validez. Ninguna de ellas entrará en sesión sin la mayoría absoluta de sus miembros; pero un número menor
podrá compeler a los miembros ausentes a que concurran a las sesiones, en los términos y bajo las penas que
cada Cámara establecerá.” 467 Código Electoral Nacional, art. 42 a 47 e 60 e 61. 468 “Art. 66. Ciascuna camera giudica dei titoli di ammisione dei suoi componenti e delle cause sopraggiunte di ineleggibiltà e di incompatibilità.” 469 “Article 64. The representatives elected shall be furnished with credentials, the validity of which shall
be adjudged by the Storting.” 470 “Article 31. At Reichstag an Election Investigation Court will be established. It will decide if a
representative has lost his mandate. The Election Investigation Court will be composed of members of the
Reichstag, elected for the actual term, and by members of the Reich Administration Court, appointed by the
Reich President at the suggestion of the Reich Administration Court board. The Election Investigation Court will
decide based on a public, oral session held by three members of the Reichstag and two noble members. Outside
of the procedures in the Election Investigation Court, the matter will be handled by a Reich Commissioner,
appointed by the Reich President. Further, the procedure will be regulated by the Election Investigation Court.”
113
de nove anos, renováveis por um terço a cada três anos, e mais os ex-Presidentes da
República, que têm assento vitalício.471
No Brasil em 1932 há a criação da Justiça Eleitoral para desempenhar a tarefa de
verificação de poderes,472
assumindo também a atribuição da organização do eleitorado e das
eleições.473
Para Carlos Mário da Silva Velloso, a Justiça Eleitoral vem para afastar a
“mentira eleitoral” que reinava no Império e na República Velha.474
Mais do que a adoção de
um método jurisdicional e o envolvimento de magistrados na organização do eleitorado e das
eleições, impõem-se regras processuais, garantias aos julgadores dos feitos eleitorais e uma
estrutura de caráter permanente. Seu quadro de juízes, no entanto, é formado por magistrados
de outros ramos do Poder Judiciário que exercem temporariamente suas funções.
Criada pelo Decreto 21.076 de 24 de fevereiro de 1932, primeiro Código Eleitoral
brasileiro, à Justiça Eleitoral são atribuídas “funções contenciosas e administrativas”. A
Constituição de 1934 traz como órgãos do Poder Judiciário os juízes e tribunais eleitorais,
com competência para organizar as eleições, julgar as lides eleitorais, resolver sobre arguições
de inelegibilidade e incompatibilidade e apurar os votos e proclamar os eleitos. Sua estrutura e
competência se mantêm nas cartas seguintes (com exceção da Constituição de 1937, em que
não é prevista), sempre sem juízes próprios.
Para Nelson de Sousa Sampaio, a renovação frequente do corpo de magistrados
eleitorais se justifica pela natureza política de sua matéria, impedindo “a deformação
partidária” e libertando os juízes de pressões políticas. Para o autor, essas vantagens superam
a falta de especialização dos julgadores.475
O protagonismo da Justiça Eleitoral na defesa da autenticidade eleitoral deve ser visto
com reservas. O afastamento imediato de candidatos ao pleito ou de mandatários, que ainda
471 “Article 58. Le Conseil constitutionnel veille à la régularité de l‟élection du Président de la République.
Il examine les réclamations et proclame les résultats du scrutin. Article 59. Le Conseil constitutionnel statue, en
cas de contestation, sur la régularité de l‟élection des députés et des sénateurs.
Article 60. Le Conseil constitutionnel veille à la régularité des opérations de référendum prévues aux articles 11
et 89 et au titre XV. Il en proclame les résultats.” 472 Victor Nunes Leal traz o depoimento de João Cabral, relator da subcomissão legislativa que trabalhou
no anteprojeto do Código Eleitoral de 1932: “Aspiração geral tornou-se no Brasil o arrancar-se o processo
eleitoral, ao mesmo tempo, do arbítrio dos governos e da influência conspurcadora do caciquismo local. Olhando
o exemplo da evolução de tal processo entre outros povos civilizados e nós mesmos, a opinião geral manifestava-se pela entrega do mesmo ao Judiciário Federal, como fêz a Argentina, ou a uma especial
magistratura, como é o caso do Uruguai” (LEAL, Victor Nunes. Funções normativas de órgãos judiciários.
In:_____. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960 [1946], p. 179-222, p. 179-222, p. 218). 473 Essa função administrativa parece ser a mais capaz de garantir eleições livres. No dizer de W. J. M.
Mackenzie, “la organización eficiente de las elecciones libres presupone uma tradición de funcionarios públicos
independientes en su esfera profesional” (MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Op. cit., p. 165). 474 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A reforma eleitoral e os rumos da democracia no Brasil. In:
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes; VELLOSO Carlos Mário da Silva (Coords.). Direito Eleitoral. Belo
Horizonte: Del Rey, 1996, p. 11-30, p. 14. 475 SAMPAIO, Nelson de Sousa. A justiça eleitoral. Op. cit., p. 131.
114
passarão pelo crivo popular ou que obtiveram o apoio da população, deve ser feito com muita
cautela, sob pena de esvaziar a disputa eleitoral. Corre-se o risco, ainda, de afastar o cidadão
do debate eleitoral, a partir de uma excessiva tutela ou de uma desconsideração total de suas
escolhas.476
Não deriva do texto constitucional uma alegada “missão” da Justiça Eleitoral na
orientação do povo, “para obter votos com qualidade, com responsabilidade” e
desconsiderando os “votos que formem rejeitos à pureza do regime representativo”. Os juízes
e tribunais eleitorais não são talhados para dar conta da deficiência do processo político da
escolha e da fragilidade dos partidos.477
Nem à Justiça Eleitoral deveria ser atribuída mais
uma função: a organização de cursos de formação cívica em todo o território nacional.478
Conforme Arthur Rollo, os valores que a Justiça Eleitoral deve garantir são a pars conditio (a
igualdade entre os candidatos) e o respeito à vontade do eleitor.479
Isso e nada mais.
O papel da Justiça Eleitoral, como o das regras eleitorais, é garantir ao povo, titular da
soberania, que o processo institucional eleitoral ocorra legítima e validamente.480
Para Olivar
Coneglian, a Justiça Eleitoral tem sido “a ponta de lança da democracia, o organismo em que
o político, o eleitor, a Nação toda têm colocado sua confiança, para que as eleições sejam
limpas, e os seus resultados sejam aqueles que o povo escolheu”.481
Talvez em sua função
administrativa, mas certamente não em relação ao cumprimento de seu mister jurisdicional.
Vale, finalmente, ressaltar o acesso à Justiça Eleitoral como elemento da autenticidade
eleitoral. Ainda que não haja obstáculos de natureza econômica, tendo em vista a gratuidade
de todos os atos processuais relacionados à defesa do regime democrático e dos direitos
políticos, a leitura sobre os legitimados ativos para a propositura das ações eleitorais
estabelece limites marcantes.
476 Óscar Sánchez Muñoz afirma que “la legislación electoral no puede tomar como punto de referencia el
ideal de hombre libre y autodeterminado, sino que debe basarse en la cruda realidad del elector manipulable”
(SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 58). 477 José Tarcízio de Almeida Melo defende essa missão, afirmando ainda que os juízes eleitorais não
devem “reconhecer o valor do voto quando este tiver beneficiário que seja conhecido publicamente como de
passado indecente” (MELO, José Tarcízio de Almeida. Questões polêmicas na Justiça Eleitoral: fidelidade
partidária, direitos das coligações, duplicidade de filiação, propaganda extemporânea e vida pregressa
desabonadora. Revista de doutrina e jurisprudência do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 17, p. 11-34, 2008, p. 30 e 34). 478 Como sugere Celso Antônio Bandeira de Mello. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Representatividade e democracia. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes; VELLOSO, Carlos Mário da Silva
(Coords.).Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 41-53, p. 48. 479 ROLLO, Arthur. A jurisdição eleitoral. Semestre eleitoral [Tribunal Regional Eleitoral da Bahia],
Salvador, v. 9, n. 1/2, p. 33-40, jan./dez. 2005, p. 35. 480 JARDIM, Torquato. Processo e Justiça Eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, n. 119, p. 25-46, jul./set. 1993, p. 46. Para o autor, “[a] ausência dessa certeza
fere de morte a República”. 481 CONEGLIAN, Olivar. Propaganda eleitoral. 3. ed. Curitiba: Juruá, 1998, p. 55.
115
Em relação a determinadas ações – como a impugnação de registro de candidatos, as
representações, a ação de investigação judicial eleitoral e o recurso contra a diplomação –, a
legislação faz um recorte e restringe a apresentação da demanda apenas aos partidos políticos
ou coligações e aos candidatos. Ao Ministério Público eleitoral reconhece-se a legitimidade
ativa por força de suas funções constitucionais. No caso da ação de impugnação de mandato
eletivo, prevista apenas no texto constitucional, a restrição é feita pelo Tribunal Superior
Eleitoral, ao estabelecer em resolução a aplicação do rito previsto na Lei Complementar
64/90, que não inclui o eleitor entre os legitimados. Também o faz em uma ação
completamente criada por resolução, sem qualquer fundamento constitucional ou legal: a ação
de decretação por perda de mandato eletivo por desfiliação partidária sem justa causa.482
A legislação e com mais ênfase a jurisprudência eleitoral brasileira determina uma
“introversão”483
da legitimidade processual eleitoral, negando ao cidadão a propositura de
demandas na esfera eleitoral. Essa “invisibilização” do eleitor em relação às ações eleitorais
se apresenta através de uma constatação: o “mero eleitor” não tem interesse jurídico na
propositura de demandas que buscam garantir a autenticidade eleitoral.484
E esse efeito de um
discurso jurídico, pretensamente neutro e imparcial, é sutil e eficaz no desaparecimento de
uma pretensão legítima, afastando o eleitor do acesso à justiça.
482 A representação está prevista na Lei 9.504/97, artigo 96. As ações de impugnação de registro de
candidato e de investigação judicial eleitoral constam da Lei Complementar 64/90, respectivamente nos artigos
3º e 20. A ação de impugnação de mandato eletivo tem sede constitucional junto ao parágrafo 10 do artigo 14 e
seu rito – o mesmo da ação de impugnação de registro de candidato – é estabelecido pela Resolução 21.634 de 19 de fevereiro de 2004. A ação de decretação de perda de mandato eletivo por desfiliação partidária sem justa
causa nasce, ao arrepio da lei, com a Resolução 22.610 de 25 de outubro de 2007. 483 José Joaquim Gomes Canotilho se refere à “introversão” da legitimidade processual constitutional,
afirmando que a previsão de que apenas “órgãos constitucionais” para propor ações de controle de
constitucionalidade revela uma visão de mundo em que ainda vige a separação Estado-sociedade e se
compreende o direito objetivo apenas sob o aspecto estatal. A isso se relaciona ainda uma “mentalidade
„justicialista‟”, que vê a interpretação da Constituição aberta apenas aos juízes (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva. Op. cit., p. 880). 484 Assim a decisão no acórdão 1251, julgado em 30 de novembro de 2006, de relatoria do Ministro Cesar
Rocha. A ementa está assim redigida: “REPRESENTAÇÃO. INVESTIGAÇÃO JUDICIAL. ELEITOR.
ILEGITIMIDADE DE PARTE. INDEFERIMENTO DA INICIAL. AGRAVO REGIMENTAL. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À CONSTITUIÇÃO. DESPROVIMENTO. Possuem legitimidade para o
ajuizamento de representação visando a abertura de investigação judicial eleitoral apenas os entes arrolados no
art. 22 da Lei Complementar no 64/90, entre os quais não figura o mero eleitor, conforme a reiterada
jurisprudência do TSE. O direito de petição consagrado no art. 5o, XXXIV, a, da Constituição, embora sendo
matriz do direito de ação, com ele não se confunde, encontrando este último regulação específica na legislação
infraconstitucional, daí decorrendo não poder ser exercido de forma incondicionada. Não infirmados os
fundamentos da decisão, impõe-se o desprovimento do agravo regimental”. Vera Maria Nunes Michels é crítica
em relação à exclusão do eleitor como legimitado para propor investigação judicial, afirmando que essa postura
“não se coaduna com as idéias de democracia participativa” (MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito eleitoral:
análise panorâmica. Op. cit., p. 155).
116
1.1 A “AUTENTICIDADE” DO VOTO
A “autenticidade” do voto deve ser entendida de maneira fraca, não atingindo sua
significação de pureza, de genuinidade, em face do desenho constitucional da democracia
brasileira.
A partir da concepção de democracia já explicitada, a autenticidade do voto não pode
estar vinculada a um modelo de cidadão padrão que forme a sua vontade eleitoral tendo por
exclusivo fundamento o interesse público. Não que isso não seja desejável: ao contrário, o é,
além de ser uma decorrência do ideal republicano. Isso não pode chegar a determinar, no
entanto, a invalidade ou a ilegitimidade do voto baseado em preferências pessoais, sob pena
de imposição de uma concepção perfeccionista ao indivíduo. Não se pode exigir do eleitor,
uma decisão “racional em relação a fins”.485
Essa possibilidade de formação do voto – e,
portanto, indiretamente de formação da vontade política a partir de concepções individuais –
não elide, contudo, a responsabilidade do membro da comunidade política pela decisão
coletiva formada, ou, mediatamente, pela formação dos órgãos representativos.
Ao apontar o tratamento desigual dos candidatos pelos eleitores, Bernard Manin
afirma que a democracia não exige que os eleitores adotem “estándares imparciales” para a
escolha de seus candidatos. Podem decidir pelo mais competente ou honesto, mas também
podem dirigir sua decisão a partir de características individuais, cuja valoração não precisa ser
necessariamente compartilhada pelos demais eleitores. O eleitor não é chamado a justificar
suas preferências e atua como um governante absoluto – “sic volo, sic jubeo, stat pro ratione
voluntas”.486
Hanna Pitikin aponta a impossibilidade de tradução adequada das motivações do
eleitorado. Para a autora, a manifestação eleitoral acaba sempre por incorporar elementos de
reflexão sobre problemas e políticas, ainda que os indivíduos (parte deles) possam determinar
485 “Actúa racionalmente con arreglo a fines quien oriente su acción por el fin, medio y consecuencias
implicadas en ella y para lo cual sopese racionalmente los medios con los fines, los fines con las consecuencias
implicadas y los diferentes fines posibles entre si” (WEBER, Max. Economía y sociedad. 2. ed. Tradução: José
Medina Echavarría, Juan Roura Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1964 [1922], p. 31). Esssa atuação racional exigiria um alto grau de
evidência e uma racionalização causal. E, ainda: “Quanto mais „livre‟, isto é, quanto mais a „decisão‟ do agente
for tomada com base apenas em „ponderações‟ próprias, não pressionadas por „coação externa‟, nem por
„paixões‟ irresistíveis, tanto mais a adapta, cetaris paribus, às categorias „fim‟ e „meios‟” (WEBER, Max.
Metodologia das ciências sociais. Tradução: Augustin Wernet. São Paulo: Cortez, 1992 [1924]. v. 1, p. 94 e 97).
Ainda que a legislação eleitoral possa se ocupar do afastamento da “coação externa”, jamais dará conta das
“paixões”. 486 Manin assim traduz a expressão latina: “así quiero, así ordeno, mi voluntad ocupa el lugar de la razón”
(MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Tradução: Fernando Vallespín. Madrid: Alianza
Editorial, 1998 [1995], p. 170).
117
seu voto sem uma referência direta a eles. O sistema implica um grau de racionalidade na
escolha.487
Pierre Bourdieu aponta que a consistência da decisão eleitoral exige que “as pessoas
tenham os meios de produção das opiniões; será preciso, então, dar-lhes o meio de apropriar-
se deles. Isto quer dizer que desde a escola primária será preciso dar uma verdadeira educação
política”.488
Isso, certamente, traria mais autenticidade eleitoral.
Mas os argumentos racionais e as inclinações afetivas sem dúvida combinam-se para a
escolha do representante.489
Ainda que o peso do carisma seja mais evidente na eleição do
chefe do Poder Executivo, também exerce um importante papel na definição dos membros do
Parlamento. Essa combinação – ou ainda a predominância de critérios não-racionais – não
invalida a manifestação do eleitor. O que macula a formação de vontade é a existência de
vícios.
Uma concepção perfeccionista, que admite a autenticidade do voto a partir da
consciência política e de um espírito coletivo, abre espaço para discursos elitistas, que
normalmente vinculam a “consistência ideológica do voto” à posição social do eleitor.490
A
liberdade na escolha de representantes deve ser preservada, pois é “a concretização mais
vigorosa da liberdade de manifestação do pensamento”.491
Garante-se a liberdade pela
ausência de coações, pela inexistência de intimidações, subornos, castigos ou recompensas.492
Para Óscar Sánchez Muñoz, a imposição de condições materiais à decisão do eleitor seria uma
487 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkeley: University of California Press,
1967, p. 224. Sobre a teoria da escolha racional, ver DOWNS, Anthony. Uma teoria econômica da democracia.
Tradução: Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999
[1957]. 488 BOURDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. In: THIOLLENT, Michel. Crítica Metodológica,
investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1981, p. 137-151, p. 137-151. No entanto, aponta W. J. M. Mackenzie que “sigue siendo una utopía el que el individuo ilustrado decida racionalmente ante las urnas,
tras haber considerado toda la información disponible, entre personas o cuestiones que se hayan puesto en su
conocimiento” (MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Op. cit., p. 159). 489 Maurice Duverger aponta que “os eleitores nem sempre têm comportamentos racionais. A representação
assenta muitas vezes numa identificação mais ou menos mítica e inconsciente. Ao lado dos comportamentos de
identificação existem, aliás, comportamentos eleitorais de rejeição. Por outro lado, a eleição não consiste apenas
na designação de representantes (ou na distribuição de “papéis” sociais): é também um ritual, uma cerimónia,
uma festa” (DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos: Instituições Políticas e Direito
Constitucional. Op. cit., p. 66). 490 Em estudo sobre o eleitorado brasileiro, Mônica Mata Machado de Castro aponta a baixa estruturação
ideológica do voto, a ausência de informações substantivas sobre as questões políticas e a ignorância a respeito das propostas dos candidatos e dos partidos, afirmando, no entanto que “[o] voto orientado por propostas
políticas dos partidos e candidatos é raro mesmo em países em que o sistema partidário tem se mantido sem
grandes modificações há muitas décadas”. Ao final, no entanto, aduz que a posição social do eleitor (tanto em
relação à sua situação econômica e geográfica como a respeito de seu interesse político e maior acesso à
informação) incrementa sua participação eleitoral e a “consistência ideológica do seu voto” (CASTRO, Mônica
Mata Machado de. Eleitorado brasileiro: composição e grau de participação. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA,
Antônio Octávio (Org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 285-
294, p. 285-294). 491 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 268. 492 MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Op. cit., p. 159.
118
vulneração da liberdade de sufrágio. Segundo ele, a venda do voto não deveria levar nem à
anulação do sufrágio nem ao castigo do eleitor, conforme determina a legislação espanhola
desde 1890.493
O ordenamento jurídico brasileiro, a partir do desenho constitucional, tem uma leitura
da liberdade do voto não vinculada exclusivamente a uma visão individualista. A punição à
venda do voto, corrupção passiva prevista do artigo 299 do Código Eleitoral,494
decorre do
princípio republicano, da responsabilidade que tem, que deve ter, o cidadão na construção da
vontade política do Estado. Não se coaduna com essa configuração a aplicação do princípio
da insignificância ao delito de corrupção passiva.495
Crime de ação pública, como todos os
crimes eleitorais, deve ser, obrigatoriamente, objeto de persecução penal. O bem jurídico
protegido é a democracia, a lisura das eleições, a legitimidade do regime político.496
Otávio Soares Dulci ressalta o “mandonismo”, o exercício do poder por meio da posse
da terra, da riqueza e do uso da violência pelas elites locais. O “coronelismo” surge como uma
reação das elites políticas centrais para incorporar os “mandões”, concedendo-lhes patentes da
Guarda Nacional, estabelecendo uma relação entre o governo e o poder privado.497
W. J. M. Mackenzie relata outra forma de clientelismo, com a tradição do “convite”.
Afirma o autor que a “opinião pública” praticamente exigia do candidato que abrisse os bares
aos seus partidários. Não havia coação e nem promessa de voto, mas “en cierto sentido, la
cerveza gratuita compraba los votos”. Em face da impossibilidade de se provar suborno ou
corrupção, não havia proibição do convite, que acabou desaparecendo apenas quando os
partidos chegaram a um acordo sobre o “desarme”.498
493 Na Espanha há punição apenas para quem solicita o voto ou induz à abstenção, não havendo o tipo de
corrupção passiva, ao contrário dos ordenamentos italiano, francês, alemão [e brasileiro] (SÁNCHEZ MUÑOZ,
Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 41-42). 494 Art. 299. “Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou
qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não
seja aceita: Pena - reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.” 495 A partir da Inglaterra, W. J. M. Mackenzie faz a seguinte constatação: “El mal característico que se
atribuía a las elecciones populares hasta finales del siglo XIX era que daban lugar a la venta de votos, es decir, a transacciones entre los pobres que poseían votos y los ricos que deseaban ocupar escaños. La corrupción
electoral de esta clase en la actualidad es casi desconocida en los países occidentales” (MACKENZIE, W. J. M.
Elecciones libres. Op. cit., p. 167). Essa análise, feita em 1958, não parece ter incluído a realidade brasileira – no
século XXI, a corrupção ainda é um problema grave na disputa eleitoral. 496 Essa é a opinião de Alessandra Anginski Cotosky (COTOSKY, Alessandra Anginski. Corrupção
eleitoral passiva e o princípio da insignificância. Paraná Eleitoral, Curitiba, n. 52, abr. 2004. Disponível em:
http://www.paranaeleitoral.gov.br/artigo_impresso.php?cod_texto=185. Acesso em: 05 out. 2009). 497 DULCI, Otávio Soares. As elites políticas. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.)
Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 237-247. 498 MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Op.cit., p. 170.
119
A questão atual, no entanto, é mais complexa, pois o objeto dos desvios deixa de ser
(apenas) o eleitor individualmente considerado e passa a ser um conjunto de eleitores, ou a
opinião pública, o que torna mais difícil sua comprovação.499
Além da igualdade e da liberdade de voto, há de ser assegurada, ainda, a liberdade de
formação de opinião.500
A opinião política se forma coletivamente, a partir do debate de ideias
e da submissão da opinião pessoal à apreciação dos demais.501
Essa liberdade não prescinde
da garantia de uma igualdade entre os candidatos na disputa eleitoral. A existência de
vantagens indevidas, baseadas em critérios tidos como irrelevantes, leva ao desvirtuamento do
pleito, com ofensa à liberdade da vontade eleitoral.502
Uma questão a ser enfrentada é a relativa às pesquisas eleitorais. A realização de
pesquisas e a publicação de seus resultados geram efeitos no processo eleitoral, promovendo
uma disparidade entre aqueles que as podem contratar e os que não podem, também alterando,
ao menos potencialmente, o processo de formação do voto.
As pesquisas eleitorais não configuram propaganda, afirma Carlos Eduardo de
Oliveira Lula.503
De igual maneira a opinião de Jaime Durán Barba, que defende a
imparcialidade das pesquisas e seu papel na formação do voto.504
Fernando Tuesta Soldevilla
aduz, ao contrário, que a publicação de pesquisas configura propaganda indireta, pois tem o
objetivo de persuadir o eleitor.505
Para Fávila Ribeiro, a divulgação de resultados de pesquisas
eleitorais exerce influência sobre o eleitorado, não importando sua autenticidade.506
Alberto Carlos Almeida reconhece a influência indireta das pesquisas na formação do
voto – pelo seu impacto na arrecadação de recursos, na exposição nos meios de comunicação
499 “Podemos concluir, então, que hoje em dia os resultados das eleições não refletem a vontade / voto dos cidadãos, mas tão-somente o fruto da conjugação das forças e dos meios de pressões que cada corrente política
ou de interesses consegue agrupar em torno de seus objetivos e candidatos. Mais do que isso, o atual grau de
eficiência e impunidade das pressões oriundas do abuso de poder se faz tão presente em nossa realidade político-
eleitoral que se torna necessário repensar até mesmo a validade dos conceitos de Democracia que levamos em
conta” (BARRETO, Lauro. Escrúpulo e poder: o abuso de poder nas eleições brasileiras. Op. cit., p. 15). 500 Uma das dimensões do direito de liberdade de expressão, conforme Jônatas Machado (MACHADO,
Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra:
Coimbra, 2002, p. 427). 501 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 296. 502 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 35. 503 LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 482. 504 DURÁN BARBA, Jaime. Encuestas electorales. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 481-499, p. 481 e 495-497. O autor, que se identifica como um
profissional da área de pesquisas eleitorais, afirma que a polêmica em relação às pesquisas reflete o medo que se
tem do que possa prever o futuro, que os eleitores indecisos – que em tese se influenciariam por números
falseados – são os menos interessados por política e por isso acompanham menos as pesquisas, que a publicação
das pesquisas não deve ser proibida em nenhum momento e que o mercado dá conta de empresas não confiáveis. 505 TUESTA SOLDEVILLA, Fernando. Campaña electoral. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 121-126, p. 125. 506 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 317.
120
social e no ânimo do candidato e da sua estrutura de campanha – mas afirma inexistirem
dados empíricos que comprovam a influência direta delas sobre o eleitor. Afirma, ainda, que
embora o registro das pesquisas eleitorais seja exigido no Brasil desde a Lei 7.508/86, a
legislação brasileira, que autoriza a divulgação de resultados inclusive no dia da eleição, é a
mais liberal do mundo sobre o assunto.507
As regras sobre pesquisas eleitorais podem se caracterizar como “liberais” ou
“protecionistas”, dependendo de sua confiança ou desconfiança em relação à objetividade das
pesquisas e sua autenticidade.508
O Brasil passou de um sistema bastante protecionista, com a
proibição da divulgação de resultados de pesquisas nos quinze dias anteriores à eleição, regra
do Código Eleitoral não revogada expressamente,509
para a liberalização parcial, em relação à
proibição de divulgação, por resoluções do Tribunal Superior Eleitoral desde 1988510
e para
uma tentativa do legislador de restaurar a regra, com a inserção do artigo 35-A511
na Lei
9.504/97 pela Lei 11.300/06, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na
ação direta de inconstitucionalidade 3741 em face da “garantia da liberdade de expressão e do
direito à informação livre e plural no Estado Democrático de Direito”.512
A Lei 9.504/97 traz requisitos técnicos e de publicidade para tentar garantir a
objetividade das pesquisas (artigo 33)513
e criminaliza a divulgação de pesquisa fraudulenta
(artigo 33 §4º), o impedimento da fiscalização dos partidos em relação à realização da
pesquisa (artigo 34 §2º) e a existência de irregularidades nos dados (artigo 34 §3º).
Atualmente, por força de decisão do Supremo Tribunal Federal, não há um período no
qual é vedada a divulgação do resultado de pesquisas eleitorais. A ênfase dessa escolha – não
exatamente democrática, mas essencialmente política – está na liberdade de informação e do
acesso do eleitor ao resultado como mais um elemento para a formação do seu voto. Parte-se
507 ALMEIDA, Alberto Carlos. As sondagens de opinião. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio
(Org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 343-355. 508 Conforme SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales.
Op. cit., p. 315. 509 Art. 255. “Nos 15 (quinze) dias anteriores ao pleito é proibida a divulgação, por qualquer forma, de
resultados de prévias ou testes pré-eleitorais.” 510 Em 27 de outubro de 1988, analisando o mandado de segurança 997 impetrado pela Empresa Folha da
Manhã contra a proibição de divulgação de pesquisas nos 15 dias anteriores à eleição repetida na Resolução
14.466/88, o Tribunal Superior Eleitoral afasta a aplicação da norma por incompatibilidade com a Constituição, considerando a divulgação de pesquisas como atividade estritamente informativa e assim albergada pelo artigo
220 da Carta. Acórdão 10305, relator Francisco Rezek, publicado em 21 de novembro de 1990. A partir dessa
decisão, o Tribunal Superior Eleitoral ignora o disposto no Código Eleitoral, as leis do ano não repetem a
restrição e a divulgação das pesquisas é liberada. 511 Art. 35-A. “É vedada a divulgação de pesquisas eleitorais por qualquer meio de comunicação, a partir
do décimo quinto dia anterior até as 18 (dezoito) horas do dia do pleito”. 512 Ação Direta de Inconstitucionalidade 3741, julgada em 06 de junho de 2006. 513 Óscar Sánchez Muñoz aponta os requisitos técnicos exigidos pela legislação espanhola, francesa,
italiana e portuguesa. SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones
electorales. Op. cit., p. 316-318.
121
da premissa que o resultado da pesquisa, desde que não manipulada ou falseada, colabora
legitimamente para a decisão do eleitor, capaz de tomar suas decisões sem ser influenciado
por um “voto tático” e de analisar os dados de maneira racional.
A vedação de divulgação de resultados em um período anterior à votação, para Óscar
Sánchez Muñoz, leva em consideração o efeito da pesquisa sobre o eleitor, a partir de sua
percepção como um dado “científico”, diferente de uma propaganda. O autor defende a
proibição nos últimos dias da campanha e no dia da votação em face da necessidade de
proteger a igualdade de oportunidades entre os candidatos.514
Parece que a divulgação do resultado de pesquisas muito próximas à votação, com
margens de erro que muitas vezes pode levar à inversão dos dados, tem a possibilidade de
falsear a formação da vontade do eleitor, devendo ser considerada à luz do princípio da
autenticidade eleitoral. Talvez a proibição da divulgação de seus resultados durante o
“período de reflexão” ou mesmo por um período maior, a quinzena proposta pelo legislador,
não ofenda o princípio da liberdade de expressão (necessariamente limitado no âmbito
eleitoral) e preserve o princípio da autenticidade eleitoral.
A legislação brasileira pune a divulgação de resultados de pesquisa não registrada na
Justiça Eleitoral515
e criminaliza a divulgação de pesquisa fraudulenta, além da obstrução da
fiscalização dos dados técnicos pelos partidos. A punição criminal pode atingir os
representantes da empresa de pesquisa e do órgão divulgador.516
514 Ibid., p. 319-321. O autor se refere à proibição de divulgação de resultados de pesquisas no período de
cinco dias antes da votação na Espanha, de sete dias em Portugal, de quinze dias na Itália e de apenas um dia na
França, ficando proibida a divulgação de pesquisa na véspera da votação (p. 318). 515 O órgão competente para o registro da pesquisa depende do cargo em disputa. Se a pesquisa é para prefeito (ou para vereador), a pesquisa deve ser registrada na Zona Eleitoral (quando há mais de uma no
município, o registro se dá na zona eleitoral mais antiga ou naquela indicada por resolução do Tribunal Regional
Eleitoral); quando a pesquisa é para governador ou senador (ou para deputado federal ou estadual), o registro de
pesquisa deve dar-se no Tribunal Regional Eleitoral; e se a disputa é para a Presidência da República, o Tribunal
Superior Eleitoral procede ao registro. 516 Art. 33. § 3º “A divulgação de pesquisa sem o prévio registro das informações de que trata este artigo
sujeita os responsáveis a multa no valor de cinqüenta mil a cem mil UFIR. § 4º A divulgação de pesquisa
fraudulenta constitui crime, punível com detenção de seis meses a um ano e multa no valor de cinqüenta mil a
cem mil UFIR. Art. 34. § 1º Mediante requerimento à Justiça Eleitoral, os partidos poderão ter acesso ao sistema
interno de controle, verificação e fiscalização da coleta de dados das entidades que divulgaram pesquisas de
opinião relativas às eleições, incluídos os referentes à identificação dos entrevistadores e, por meio de escolha livre e aleatória de planilhas individuais, mapas ou equivalentes, confrontar e conferir os dados publicados,
preservada a identidade dos respondentes. § 2º O não-cumprimento do disposto neste artigo ou qualquer ato que
vise a retardar, impedir ou dificultar a ação fiscalizadora dos partidos constitui crime, punível com detenção, de
seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo prazo, e multa no
valor de dez mil a vinte mil UFIR. § 3º A comprovação de irregularidade nos dados publicados sujeita os
responsáveis às penas mencionadas no parágrafo anterior, sem prejuízo da obrigatoriedade da veiculação dos
dados corretos no mesmo espaço, local, horário, página, caracteres e outros elementos de destaque, de acordo
com o veículo usado. Art. 35. Pelos crimes definidos nos arts. 33, § 4º e 34, §§ 2º e 3º, podem ser
responsabilizados penalmente os representantes legais da empresa ou entidade de pesquisa e do órgão
veiculador.”
122
Óscar Sánchez Muñoz defende a possibilidade de nulidade da votação se houver
divulgação de pesquisa que comprovadamente infringir os dispositivos legais
regulamentadores, novamente relacionando a questão com o princípio na igualdade de
oportunidade entre os candidatos.517
Ainda que essa possibilidade dê mais margem à atuação
da Justiça Eleitoral na determinação dos eleitos, ela se coaduna com as outras hipóteses
previstas na legislação brasileira.
Ainda em relação ao momento de formação do voto, o princípio da autenticidade
eleitoral parece exigir um “período de reflexão” para a decisão do eleitor. Dessa forma, é
adequada a proibição de todo o tipo de propaganda por um período antes da votação.518
A legislação brasileira trata diferentemente os diversos tipos de propaganda eleitoral,
proibindo a partir da antevéspera da eleição a propaganda eleitoral gratuita no rádio e na
televisão, os comícios e reuniões públicas e os debates (esses por resolução); na véspera não
pode ser divulgada propaganda na imprensa escrita; e apenas no dia da eleição fica vedada a
propaganda eleitoral por alto-falantes, carretas, passeatas, carros de som e distribuição de
panfletos.
Interessante ressaltar a lógica peculiar do tratamento legal: permite-se mais
proximamente à votação a propaganda eleitoral mais vazia de conteúdo, vazia de propostas,
que leva ao eleitor somente o conhecimento da candidatura. Esse ponto merece uma análise
mais acurada por parte do legislador.
1.2 A VERACIDADE DO ESCRUTÍNIO
A certeza da autenticidade do resultado da votação é um problema eleitoral desde
sempre. Questão que extrapola o âmbito nacional,519
é objeto da legislação eleitoral brasileira
desde o Império. A incorporação dos magistrados no processo eleitoral deriva da necessidade
517 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 325. 518 Fernando Tuesta Soldevilla aponta esse período nas campanhas eleitorais, que deve ser de 24 ou 48
horas antes do início da votação (TUESTA SOLDEVILLA, Fernando. Campaña electoral. Op. cit., p. 121-126,
p. 123). Vera Maria Nunes Michels defende o prazo de 48 horas para que o eleitor, “aliviado da pressão
publicitária”, “possa refletir serenamente sobre as escolhas que lhe foram lançadas através da propaganda
eleitoral” (MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito eleitoral: análise panorâmica. Op. cit., p. 136). 519 Veja-se, por exemplo, a eleição de George W. Bush para a presidência dos Estados Unidos em 2000 e a
batalha judicial sobre o resultado das urnas.
123
da autenticidade da votação e da apuração, o que depois culmina na criação de uma justiça
especializada.520
Em primeiro lugar, a preocupação era com a qualificação dos eleitores – feita pelos
párocos e sem força perante as mesas receptoras de votos. No Brasil colônia, com a eleição
direta para as Câmaras Municipais, as fraudes no processo eleitoral são evidentes. Com o
Império, e com a inclusão da autoridade policial nas mesas, a violência passa a determinar o
resultado. Afirma-se a “mentira eleitoral” no Império e no início da República. A figura dos
“fósforos”,521
as exigências legais para ser eleitor e para concorrer a um mandato e a
verificação dos poderes pelas casas legislativas levam a um forte desvio da vontade eleitoral.
Raymundo Faoro afirma: “A inautenticidade eleitoral, inautenticidade derivada menos
do censo, que restringe o número de eleitores, do que das circunstâncias sociais, aptas a
selecionar o corpo deliberante, e de circunstâncias legais, engendradas para filtrar a vontade
primária, reduz a importância, o peso e a densidade do elo popular e representativo”.522
Discurso de José Bonifácio (“o Moço”) Andrade, em outubro de 1880, aponta “cinco
abundantíssimas fontes de vícios, fraudes e abusos da eleição indireta: infidelidade das
qualificações, soberania das mesas eleitorais, fraqueza dos votantes, dependência do Eleitor e
intervenção do governo”. Durante todo o Império vale o ditado: “feita a mesa, está feita a
eleição”, o que revela a inocuidade da participação popular.
Nelson de Sousa Sampaio afirma a inexistência de verdadeiras eleições até 1933.
Durante o Império, fabricavam-se as eleições nos gabinetes e a violência, o suborno e a
pressão asseguravam a vitória do partido que o governo desejava. A desordem não respeitava
sequer as igrejas. Substituiam-se listas, falsificavam-se atas, multiplicavam-se eleitores. No
início da República, vieram as eleições a bico de pena ou “eleições do „bicório‟”, em que
520 As referências históricas deste item são retiradas das obras NICOLAU, Jairo. História do voto no
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; PORTO, Walter Costa. Dicionário do voto. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2000; e PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 521 Francisco Belisário Soares de Souza, citado por Jairo Nicolau: “O invisível, o fósforo, representa um
papel notável nas nossas eleições, e mais ainda nas grandes cidades do que nas freguesias rurais. Um bom fósforo vota três, quatro, cinco e mais vezes em várias freguesias, quando são próximas. Os cabalistas sabem que
F. qualificado morreu, mudou de freguesia, está enfermo; em suma não vai votar: o fósforo se apresenta. É mui
vulgar que, não acudindo à chamada um cidadão qualificado, não menos de dois fósforos se apresentem para
substituí-lo, cada qual cabe melhores provas de sua identidade, cada qual tem partido e vozeria para sustentá-la
em sua pretensão” (NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Op. cit., p. 12-13). Para Rui Barbosa, em
discurso proferido em 1879, “fósforo é tanto o não qualificado que usurpa o nome, o lugar, o direito do
qualificado, como o realmente qualificado sem direito a sê-lo – em suma, tudo quanto vota ilegitimamente”
(PORTO, Walter Costa. Dicionário do voto. Op. cit., p. 211-214). 522 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed, rev. São
Paulo: Globo, 2001 [1957], p. 334.
124
sequer era necessário reunir a mesa eleitoral. Se algum candidato de oposição vencia as
fraudes, era “degolado” no sistema de verificação de poderes.523
A degola524
era o não-reconhecimento dos eleitos. Esse reconhecimento, feito pela
Comissão Verificadora dos Poderes, configurava um “terceiro escrutínio”.525
As eleições “a
bico de pena” se davam pela adulteração das atas. Vitor Nunes Leal afirma: “inventavam-se
nomes, eram ressuscitados os mortos e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena
todo-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos”.526
Essas fraudes eram a marca do cenário eleitoral brasileiro na primeira República.
Como aponta o senador José de Mello Carvalho Moniz Freire: “Com um jôgo de livros
baratos, um boião de tinta e umas duas penas de aço, faz-se funcionar a soberania nacional em
tôda sua garbosidade, com o concurso subjetivo de vivos e mortos, presentes quantos bastem
para figurar como delegados, também subjetivos, de uns e outros, na manipulação da escritura
em que a soberania faz as suas investiduras”.527
A participação popular é mínima e ainda é desvirtuada.
O Código Eleitoral de 1932 cria a Justiça Eleitoral, deslocando a verificação de
poderes e dando competência administrativa de organização das eleições para um órgão do
Poder Judiciário. O alistamento passa a ser feito perante juízes eleitorais e o título de eleitor
exibe a foto do alistado, para evitar a fraude no reconhecimento do eleitor pela mesa receptora
de votos. Ainda não há cédula oficial, mas é instituído um envelope para o acondicionamento
da cédula, além de uma cabina para assegurar o segredo do voto. O sistema eleitoral é uma
combinação do princípio proporcional com o princípio majoritário (as “sobras” do quociente
partidário ficam com os candidatos mais votados). A Constituição de 1934 prevê a Justiça
Eleitoral.
O golpe do Estado Novo suspende as eleições por 11 anos. Em dezembro de 1945, a
Lei Agamenon altera o sistema eleitoral e as sobras passam a ser preenchidas pelo partido
523 SAMPAIO, Nelson de Sousa. A justiça eleitoral. Op. cit., 114-119. 524 A expressão “degola” veio do Rio Grande do Sul, da gravata colorada, dos 100 degolados na Revolução
de 1893 entre republicanos e federalistas. 525 Assis Brasil, em Jairo Nicolau: “Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem certeza de
votar, se por ventura for alistado; ninguém tem certeza de que contem o voto, se por ventura votou; ninguém tem certeza que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro
escrutínio que é arbitrária e descaradamente exercido pelo déspota substantivo, ou pelos déspotas adjetivos,
conforme o caso for da representação nacional ou das locais” (NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Op.
cit.). Em 1915 Ubaldino do Amaral é eleito Senador pelo Paraná com 14.507 votos. É “degolado” e reconhece-se
Xavier da Silva, que conta com apenas 4.559 votos (PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. Op. cit., p. 115). 526 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4.
ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p. 230. 527 MONIZ FREIRE, José de Mello Carvalho. O voto secreto. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, 1961
[1910], p. 24. O autor foi deputado nos últimos anos do Império, constituinte em 1890, presidente do Estado do
Espírito Santo (1892-1896 e 1900-1904) e senador (1906-1915).
125
mais votado. Impõem-se multas para os que não se alistam e para os que não votam. Passa a
ser permitido a um candidato concorrer por vários estados a um mesmo cargo ou a cargos
diferentes.528
Menos de um sexto da população comparece às urnas.
O Código Eleitoral de 1950 acaba com o alistamento ex officio para os funcionários
públicos e adota a fórmula eleitoral de repartição exclusivamente proporcional das cadeiras de
deputados e vereadores, mas inclui os votos em branco para o cálculo do quociente eleitoral.
Passa-se a admitir o voto apenas em determinada seção eleitoral, com a criação da folha
individual de votação na qual consta a fotografia do eleitor.
Em 1955 adota-se a cédula oficial, confeccionada e distribuída pela Justiça Eleitoral, e
preenchida na seção eleitoral. As fraudes na apuração permanecem, como o “mapismo”, com
a alteração dos números de votos em branco e nulos pelos escrutinadores para beneficiar
determinado candidato.
Durante a ditadura militar, para além das fraudes já conhecidas, os desvios passam a
ser determinados pela legislação eleitoral. Além das eleições indiretas para a Presidência da
República, os governadores e os prefeitos das capitais (com o Ato Institucional 3 de 1966) e
depois um terço dos senadores (pela Emenda Constitucional 8/78) passam a ser nomeados
sem a eleição popular. Além disso, cria-se a sublegenda para as eleições de prefeito e senador
– um partido indica até três nomes para a disputa do mesmo cargo; os votos dados a eles são
somados e é eleito o mais votado.
O Código Eleitoral de 1965 obriga o eleitor a votar no mesmo partido para deputado
estadual e federal. Em 1982, os governadores voltam a ser eleitos diretamente, mas o voto é
vinculado – o eleitor deve votar em candidatos do mesmo partido para todos os cargos e não é
permitido votar na legenda, sob pena de anulação do voto.
Nas eleições estaduais do Rio de Janeiro em 1982 ocorre uma inconsistência tal no
escrutínio para os cargos de deputado que a eleição acaba sendo repetida. A totalização dos
votos é feita por processamento de dados, a partir dos resultados de cada urna, pela soma de
votos pelos escrutinadores e pelo preenchimento dos boletins de urna. Paira a dúvida sobre a
tentativa de fraudar a eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio de Janeiro.529
A partir de então, a Justiça Eleitoral passa a se preocupar com a informatização. Em
um primeiro momento, em 1986, faz o recadastramento eleitoral, com a reunião de todos os
528 Getúlio Vargas concorre ao Senado pelo Rio Grande do Sul e por São Paulo e à Câmara dos Deputados
por sete estados e pelo Distrito Federal. 529 Enquanto Walter Costa Porto acredita apenas em falhas técnicas, Paulo Henrique Amorim e Maria
Helena Passos afirmam a tentativa de fraude envolvendo as Organizações Globo (PORTO, Walter Costa. A
mentirosa urna. Op. cit., p. 219-224; AMORIM, Paulo Henrique; PASSOS, Maria Helena. Plim plim: a peleja
de Brizola contra a fraude eleitoral. 3. ed. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005).
126
dados eleitorais em um banco de dados único, evitando a duplicidade de títulos de eleitor e
permitindo a criação da urna eletrônica. O sistema eletrônico de votação começa a ser adotado
em 1996 e passa a ser o único em todo o país nas eleições de 2000. Não há mais cédulas: o
mesário digita o número do título do eleitor e libera a urna para receber o voto; o eleitor digita
o número de seus candidatos, sem que haja vinculação entre o título e o voto.
Com o sistema eletrônico de votação, reduzem-se as denúncias sobre as fraudes na
contagem dos votos. A apuração eletrônica – totalização – dos votos e a divulgação dos
resultados minutos após o encerramento da votação em cada urna trazem certa sensação de
segurança em relação ao escrutínio.530
Uma das questões colocadas é a impossibilidade de recontar os votos apurados
eletronicamente por conta da ausência de substrato material. Iniciativa do então senador
Roberto Requião e bastante modificada durante sua discussão, em 2002 é aprovada a Lei
10.408, que busca “ampliar a segurança e a fiscalização do voto eletrônico”. Essa lei impõe a
impressão do voto pela urna eletrônica, para visualização pelo eleitor sem que ele possa pegá-
lo, através de um visor lacrado, além de estabelecer procedimentos para a fiscalização dos
programas da urna pelos partidos políticos.
Depois da experiência do voto impresso em algumas urnas nas eleições de 2002, a Lei
10.740/03 afasta a exigência de substrato material do voto. Com a Lei 12.034/09, a impressão
do voto torna-se obrigatória a partir das eleições de 2014, apesar de manifestação expressa do
presidente do Tribunal Superior Eleitoral solicitando o veto presidencial.
José Antonio Dias Toffoli dedica-se ao tema da fraude, evidenciando que no âmbito
eleitoral, em face do interesse público, não se exige prova do elemento subjetivo. Ressalta,
ainda, que a Constituição prevê como hipótese de ação de impugnação de mandato eleitivo,
ao lado da corrupção e do abuso de poder econômico, a fraude, sem definir seu conceito no
texto constitucional nem na legislação eleitoral. Para o autor, cabe ao Poder Judiciário decidir
“de acordo com os princípios da soberania popular, da liberdade do voto do eleitor e da
igualdade entre os candidatos”.531
Há uma discussão sobre os votos dados a candidatos que têm o seu registro de
candidatura indeferido em momento da campanha que não se possa mais retirá-lo da urna
eletrônica ou cujo indeferimento seja posterior à eleição.
530 Amílcar Brunazo Filho, engenheiro, questiona a segurança da urna eletrônica e denuncia a possibilidade
de violação do sigilo de voto e a impossibilidade de verificação do voto dado e de fiscalizar a apuração. Ver
www.brunazo.eng.br/voto-e. 531 TOFOLLI, José Antonio Dias. Breves considerações sobre a fraude ao direito eleitoral. Revista
Brasileira de Direito Eleitoral, Belo Horizonte, a. 1, n. 1, p. 45-61, jul./dez. 2009, p. 47. O autor sublinha que a
substituição de candidatos às vésperas do pleito deve ser analisada sob o enfoque da fraude, assim como o
aproveitamento dos votos anulados para o cálculo do quociente eleitoral.
127
Pelo Código Eleitoral, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados
(possível na eleição por cédulas) são considerados nulos, exceto “quando a decisão de
inelegibilidade ou de cancelamento de registro for proferida após a realização da eleição a que
concorreu o candidato alcançado pela sentença, caso em que os votos serão contados para o
partido pelo qual tiver sido feito o seu registro” (parágrafo 4º do artigo 175).
Em 2006, o Tribunal Superior Eleitoral passa a considerar sem valor os votos dados a
candidatos sem registro deferido no momento da eleição. Essa leitura é inconsistente com a
normativa eleitoral que prevê, no parágrafo 2º do artigo 59 da Lei das Eleições que “[n]a
votação para as eleições proporcionais, serão computados para a legenda partidária os votos
em que não seja possível a identificação do candidato, desde que o número identificador do
partido seja digitado de forma correta”. Ou seja, se o eleitor digita um número inexistente, o
voto conta para o partido. Ademais, a visão é absolutamente incoerente com o sentido da
manifestação da vontade do eleitor exteriorizada pelo Tribunal Superior Eleitoral quando da
decisão sobre a possibilidade de perda de mandato eletivo por desfiliação partidária sem justa
causa: ali se estabelece que o eleitor vota no partido e não no candidato.532
Pela lógica do Tribunal Superior Eleitoral, não deveria importar em que momento se
deu o deferimento ou o indeferimento do registro de candidatura. Se o eleitor escolheu
determinado candidato que apresentou seu pedido de registro por um partido político, após ter
sido por ele escolhido em convenção, sua vontade se vincula ao partido, que poderá,
eventualmente, substituir aquele candidato ou até o mandatário. Dessa forma, impõe-se a
validade dos votos atribuídos, com seu cômputo para a agremiação partidária.
Para Alberto Rollo, o voto em candidato é também voto na legenda e assim os votos
devem ser contados para os partidos, desde que o trânsito em julgado da decisão que decreta a
inelegibilidade ou que indefere o pedido se dê após a votação.533
Cabe ao Tribunal Superior Eleitoral “decidir” se o eleitor vota no partido ou no
candidato e pautar suas decisões a partir dessa premissa. Não se pode concordar com essa
leitura pontual do comportamento do eleitor e do significado do seu voto.
Além disso, para que haja um reflexo mais adequado da manifestação da vontade do
eleitor, impõe-se que o voto nulo deixe de ser considerado um “erro involuntário” do eleitor.
Anular o voto também é uma escolha legítima e tem um significado sociológico profundo: a
recusa de todos os nomes apresentados. Ainda que esse comportamento não caiba na imagem
de eleitor padrão do Tribunal Superior Eleitoral, ele ocorre e é saudável para a democracia.
532 Essas decisões serão analisadas sob o princípio constitucional da liberdade para o exercício do mandato. 533 ROLLO, Alberto. Convenções partidárias e registro de candidatos. Op. cit., p. 38.
128
Cabe à Justiça Eleitoral, sob pena de restringir indevidamente a decisão do eleitor, incorporar
uma tecla de voto nulo na urna eletrônica.
1.3 A FIDEDIGNIDADE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
A qualidade da democracia representativa está relacionada com a “normalidade e
lisura das eleições” e com a maior identificação possível entre a vontade do eleitorado e a
formação das casas legislativas.
O princípio da autenticidade eleitoral exige, assim, além da liberdade do voto e da
igualdade em sentido estrito, um outro sentido de igualdade, relacionada agora à
fidedignidade da representação política: o direito de votar deve se exprimir também como o
direito de eleger mandatários, de influenciar de fato na composição das casas legislativas.
Essa influência, mais acentuada nos sistemas eleitorais informados pelo princípio
proporcional, não afasta o distanciamento entre povo e representação política, principalmente
em sociedades de fraco sentimento republicano.
O sistema brasileiro de votação é exemplar. Com raras exceções, não há
questionamento sobre os resultados da escolha, ao menos em relação à veracidade do
escrutínio. No entanto, para Otávio Soares Dulci, há uma ambiguidade na visão dos políticos
pelo povo: ao lado da legitimidade derivada da escolha, desvela-se um estranhamento com a
lógica do sistema político, um hiato entre as instituições e os anseios das pessoas, alimentados
pelas promessas de campanha. Essa “imagem de elite” leva a um juízo generalizado a respeito
dos políticos e desemboca em absenteísmo e desinteresse.534
Em cumprimento à exigência da fidedignidade da representação política, o
ordenamento jurídico brasileiro traz regras sobre quem pode participar da disputa eleitoral.
As condições de elegibilidade são impostas pela Constituição, no artigo 14:535
nacionalidade brasileira, exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio
eleitoral na circunscrição, filiação partidária (e escolha em convenção, segundo a Lei
9.504/97), idade mínima conforme o cargo em disputa e alfabetização. Tais requisitos são
534 DULCI, Otávio Soares. As elites políticas. Op. cit., p. 237-247. 535 Art. 14. § 3º - “São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o
pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V -
a filiação partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da
República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte
e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d)
dezoito anos para Vereador. § 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”.
129
averiguados no registro da candidatura, sendo a idade considerada a do momento da posse. E
são taxativos.536
Essas condições, como decorre do texto constitucional, são para participar da disputa
eleitoral. A sua exigência para o exercício do mandato não é imediata e não atinge todos os
incisos.537
A mudança de domicílio eleitoral, por exemplo, não leva à perda do cargo, assim
como a desfiliação partidária (ainda que o afirme de maneira distinta o Supremo Tribunal
Federal, a leitura da Constituição não o impõe). A perda do mandato pela perda da
nacionalidade brasileira, bem como outros casos de suspensão ou perda dos direitos políticos
é decorrência de previsão expressa do inciso IV do artigo 55 da Constituição. Não se presume,
não se deduz. A Constituição estabelece quando a perda de mandato deve dar-se.
Discorda-se de Adriano Soares da Costa, que afirma que se tratam de condições de
registrabilidade, defendendo por consequência a inconstitucionalidade da averiguação da
idade mínima na data da posse538
e de José Tarcízio de Almeida Melo, que defende que as
condições de elegibilidade se mantêm durante o mandato.539
Joel José Cândido diferencia as
condições de elegibilidade das condições para a diplomação e ambas das condições para a
posse.540
Acrescente-se também, nessa linha de diferenciação, as condições para o exercício
do mandato.
A previsão constitucional e infraconstitucional de um recorte na esfera jurídico-
política de pessoas que se encontram em determinada posição justifica-se, a um tempo, pelo
princípio da autenticidade eleitoral, principalmente em seu enfoque relacionado à
representação, e pelo princípio da igualdade entre os candidatos, corolário dos princípios
republicano e da isonomia.541
536 É o que expressamente afirmam Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra (VELLOSO,
Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
51). 537 Afirma Arthur Luis Mendonça Rollo: “Quem tem suspensos os direitos políticos no curso do mandato
poderá perdê-lo. De outra parte, o desaparecimento de qualquer das condições de elegibilidade ou a incidência
nas situações de inelegibilidade não tem potencial de afetar o mandato em curso, muito embora implique em
restrições a futuras candidaturas” (ROLLO, Arthur Luis Mendonça. Condições de elegibilidade. In: ROLLO,
Alberto (Org.). Elegibilidade e inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum, 2008, p. 41-79, p. 42-43). 538 COSTA, Adriano Soares da. Inelegibilidade cominada por rejeição de contas: a criatividade judicial por
meio da edição de Resoluções do TSE. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; STRAPAZZON, Carlos Luis (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum,
2008, p. 61-82, p. 64. 539 MELO, José Tarcízio de Almeida. Questões polêmicas na Justiça Eleitoral: fidelidade partidária,
direitos das coligações, duplicidade de filiação, propaganda extemporânea e vida pregressa desabonadora.
Revista de doutrina e jurisprudência do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 17, p.
11-34, 2008, p. 13. 540 CÂNDIDO, Joel José. Inelegibilidades no Direito Brasileiro. 2. ed. Bauru: Edipro, 2003, p. 87. 541 Para José Antônio Fichter, “[t]oda a teoria das inelegibilidades está moldada com o declarado propósito
de propiciar, no certame, um sistema de tratamento igualitário aos postulantes a cargos eletivos” (FICHTNER,
José Antonio. Impugnação de mandato eletivo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 116).
130
A inelegibilidade constitucional referente à condição de analfabeto e de conscrito e as
inelegibilidades legais decorrentes de sanção se relacionam com o princípio da autenticidade
eleitoral e com a fidedignidade da representação. A irrelegibilidade (no texto original da
Carta), a inelegibilidade por parentesco e as incompatibilidades se coadunam com o princípio
da máxima igualdade entre os candidatos.
O texto constitucional, tradição brasileira desde a Carta Imperial, traz dispositivos
referentes a inelegibilidades e a incompatibilidades. Para Adriano Soares da Costa,
inelegibilidade pode ser vista como um conceito negativo – ausência ou perda de
inelegibilidade – como a impossibilidade jurídica de se concorrer às eleições, não
necessariamente decorrente de sanção. O autor divide as inelegibilidades em inatas (que
ocorre antes da elegibilidade) e cominadas (decorrentes de sanção), e essas em simples (que
gera efeitos na eleição em que se disputa) e potenciada (que produz efeitos também em
relação a eleições futuras).542
Pela dicção do texto constitucional, são inelegíveis os conscritos (aqueles que estão
prestando o serviço militar inicial, durante o período obrigatório),543
os analfabetos544
e o
cônjuge e os parentes até segundo grau, consanguíneos, afins ou por adoção, dos chefes do
Poder Executivo no âmbito da competência administrativa destes. Neste último caso há
inelegibilidade para o mesmo cargo se o titular já estiver em seu segundo mandato e
incompatibilidade nos demais casos, pois não subsiste o impedimento se o titular do Poder
Executivo se afasta definitivamente do cargo seis meses antes da eleição.
Havia, no texto constitucional original, a inelegibilidade dos chefes do Poder
Executivo para concorrer ao mesmo cargo no período subsequente. A proibição era
absolutamente coerente com o repúdio à utilização de determinados cargos para desequilibrar
a disputa, bem como com o desenho constitucional da autenticidade eleitoral.545
Ela foi, no
entanto, afastada por reforma, restando um sistema incoerente e iníquo.546
542 COSTA, Adriano Soares da. Inabilitação para mandato eletivo: aspectos eleitorais. Belo Horizonte:
Ciência Jurídica, 1998, p. 217-234. O autor aponta sua discordância com a “teoria clássica das inelegibilidades”,
que confunde ausência de condições de elegibilidade com inelegibilidade e essa com incompatibilidade. 543 Sobre o assunto ver BORN, Rogério Carlos. O Direito Eleitoral Militar. Paraná Eleitoral, Curitiba, n.
57, jul/2005. Disponível em: http://www.paranaeleitoral.gov.br/artigo_impresso.php?cod_texto =211. Acesso em: 03 out. 2009. 544 Como restrição a um direito fundamental, o conceito de analfabetismo deve ser compreendido como a
“incapacidade absoluta de ler e escrever, que não se confunde com o semi-analfabetismo”, conforme aponta João
Fernando Lopes de Carvalho (CARVALHO, João Fernando Lopes de. Inelegibilidades constitucionais. In:
ROLLO, Alberto (Org.). Elegibilidade e inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum, 2008, p. 81-144, p. 86). 545 Para João Fernando Lopes de Carvalho, a Emenda 16/97 introduziu “uma medida permissiva em
ambientes de muitas restrições, sem que estas últimas fossem alteradas. O resultado foi o surgimento de gritantes
incoerências no sistema normativo” (Ibid., p. 91). 546 A possibilidade de reeleição dos chefes do Poder Executivo será analisada quando se tratar do princípio
constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral.
131
Para Óscar Sánchez Muñoz, a previsão de inelegibilidades se relaciona com o
princípio da igualdade entre os candidatos, quando busca afastar da disputa aquele que conta
com vantagens que lhe permitem exercer pressões ou influências abusivas no pleito. Ressalta
as inelegibilidades previstas no sistema espanhol e que alcançam os membros da
administração eleitoral e os diretores dos meios de comunicação públicos, bem como a os
membros da Família Real e seus cônjuges.547
A relação das inelegibilidades constitucionais com o princípio da isonomia também é
feita por Celso Antônio Bandeira de Mello.548
Não há dúvidas, no entanto, que o tema
também se relaciona com o princípio da autenticidade eleitoral e da fidedignidade da
representação política.
A Constituição de 1988, repetindo a regra constitucional anterior inserida pela Emenda
Constitucional 25/85, reconhece o direito de voto ao analfabeto. Não admite, no entanto, sua
capacidade eleitoral passiva, sua elegibilidade.549
André Luiz Nogueira da Cunha defende a
elegibilidade do analfabeto, sua capacidade política plena. Se lhe é reconhecida a capacidade
de escolher, também deveria poder ser escolhido, a partir de uma decisão do eleitor.550
Essa
não é, no entanto, a previsão constitucional.
A Constituição e a Lei Complementar 64/90 não impõem como condição de
elegibilidade a “reputação ilibada”, nem repetem a exigência da Constituição de 1824, que
requeria dos candidatos a senador que fossem “pessoa de saber, capacidade, e virtudes”
(artigo 45, III) ou, como o fez um decreto do mesmo ano, prescrevendo que o Eleitor (aquele
que escolhia os deputados e senadores na eleição em dois graus) fosse “homem probo, e
honrado, de bom entendimento, sem nenhuma sobra de suspeita ou inimizade à causa do
Brasil”.
547 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 93-96. 548 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Desincompatibilização e inelegibilidade de chefes de
Executivo. Revista Trimestral de Direito Público , São Paulo, n. 18, p. 5-14, 1997, p. 5-6. 549 A Lei das Eleições prevê como documentos necessários para o pedido de registro a autorização do
candidato, por escrito e a declaração de bens assinada pelo candidato. As resoluções do Tribunal Superior
Eleitoral elencam como documentos a serem apresentados com o requerimento de registro de candidatura comprovante de escolaridade. Na sua ausência, os juízes e tribunais eleitorais têm aplicado provas para a aferir a
alfabetização que, conforme o Tribunal Superior Eleitoral, deve ser apenas a necessária para ler e escrever, ainda
que com dificuldade. Não há como concordar com Adriano Soares da Costa, que afirma que “as gradações de
analfabetismo devem ser analisadas perante a importância do cargo em disputa” (COSTA, Adriano Soares.
Instituições de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 163). A Constituição não fez essa
exigência e não estabeleceu distinção. Ademais, buscar essa relação de proporcionalidade direta entre o grau de
analfabetismo e a “importância” do cargo é um total despropóstio, cujo resultado nada mais seria do que uma
decisão puramente arbitrária sem qualquer legitimidade. 550 CUNHA, André Luiz Nogueira da. Direitos políticos: representatividade, capacidade eleitoral e
inelegibilidades. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 79.
132
A questão da “moralidade” eleitoral volta à tona em 2008. Os Tribunais Regionais
Eleitorais indeferem pedidos de registro de candidatos com condenações criminais ainda sem
trânsito em julgado ou que respondem a ações de improbidade administrativa. Provocado, em
resposta à consulta 1621, o Tribunal Superior Eleitoral, por maioria estrita de votos,
estabelece que “sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nenhum pré-
candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral”.
O relator da consulta, Ministro Ari Pargendler, aduz que as inelegibilidades são
matérias reservadas à lei complementar, segundo expresso comando constitucional. O
Ministro Eros Grau, em voto-vista, afirma expressamente que “[a] suposição de que o Poder
Judiciário possa, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida
pregressa de candidato para o fim de definir situações de inelegibilidade importaria a
substituição da presunção de não culpabilidade consagrada no art. 5º, LVII da Constituição
(...) por uma presunção de culpabilidade contemplada em lugar nenhum da Constituição”.
Ressalta, ainda, que “o Poder Judiciário não está autorizado a substituir a ética da legalidade
por qualquer outra”.
O Ministro Carlos Ayres Britto defende a aplicação do método sistemático de
interpretação do Direito, afirmando a distinção em relação ao indivíduo entre os direitos
individuais e sociais e os direitos políticos, pois estes últimos servem aos princípios da
soberania popular e da democracia representativa e são vinculados a valores e não a pessoas.
Afirma expressamente “a exigência de uma honrada vida pessoal pregressa como inafastável
condição de elegibilidade” implícita na Constituição (como a escolha do candidato em
convenção partidária), e não como hipótese de inelegibilidade, o que estaria reservado à lei
complementar. Em debate com o Ministro Eros Grau, o Ministro Carlos Ayres Britto aduz
que a presunção de não culpabilidade não se aplica plenamente aos direitos políticos.
Os Ministros Joaquim Barbosa e Félix Fischer acompanham o voto do Ministro Carlos
Ayres Britto, estabelecendo como critério a condenação nas instâncias ordinárias. Em intenso
debate, o Ministro Carlos Ayres Britto afirma que em relação aos direitos políticos se inverte
a prioridade em direção ao princípio da precaução.
O Ministro Caputo Bastos vota com o relator, afirmando o risco de superposição de
competências entre os poderes e a impossibilidade de o Poder Judiciário substituir o
legislador. Para o Ministro Marcelo Ribeiro, o entendimento de uma nova condição de
elegibilidade levaria à criação, por construção jurisprudencial, de restrição a direito. Assim, o
133
Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela impossibilidade de afastamento pela Justiça Eleitoral
de candidato sem condenação transitada em julgado.551
Assinala, no mesmo sentido da minoria do Tribunal Superior Eleitoral, José Tarcízio
de Almeida Melo, que é uma “decorrência lógica” a não aceitação do registro de candidatos
de conduta indecorosa ou de mandatário ímprobo.552
Lauro Barreto chega a defender a
relativização do princípio da presunção de inocência, afirmando ainda que o indeferimento do
pedido de registro de candidatura ou a cominação de inelegibilidade “é algo bem mais brando
e suportável do que a prisão provisória”.553
Lourival Serejo é outro defensor do alargamento
das hipóteses de inelegibilidade por mutação constitucional, na busca de “mais efetividade à
Constituição”, de sua concretização “em proveito dos fins a que se propõe a ética das
eleições”.554
Para Arthur Luis Mendonça Rollo, no entanto, é a submissão dos candidatos às
urnas, a vontade popular que deve determinar quem merece exercer um mandato eletivo.555
O Supremo Tribunal Federal foi provocado sobre a questão na ação de
descumprimento de preceito fundamental proposta pela Associação dos Magistrados
Brasileiros. Os proponentes afirmam a desconformidade da exigência de trânsito em julgado
para as inelegibilidades previstas na Lei Complementar 64/90, bem como da possibilidade de
suspensão da inelegibilidade por rejeição de contas quando a decisão estiver sob a apreciação
do Poder Judiciário, a partir da redação dada ao parágrafo 9º do artigo 14 pela Emenda
Constitucional 4/94. Em decisão de 06 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal
decidiu, por maioria de votos (vencidos os Ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa),
pelo afastamento da pretensão em face da compreensão de que a garantia da presunção da
inocência extrapola o âmbito penal e pela impossibilidade de construção jurisprudencial em
matéria de inelegibilidade, reservada à lei complementar.556
Para Jorge Miranda, as inelegibilidades – restrições a um direito fundamental – devem
observar a exigência do caráter restritivo das restrições: garantia do conteúdo essencial,
reserva de lei, generalidade e abstração, não retroatividade e princípio da proporcionalidade.
Aponta ainda o autor que as restrições devem se fundamentar na proteção de outros direitos e
interesses protegidos pela Constituição: liberdade de escolha pelos eleitores, isenção e
551 Consulta 1621, Resolução 22.842, Relator Min. Ari Pargendler. Julgamento em 10 de junho de 2008,
publicação no Diário da Justiça de 04 de julho de 2008. Destaques no original. 552 MELO, José Tarcízio de Almeida. Questões polêmicas na Justiça Eleitoral: fidelidade partidária,
direitos das coligações, duplicidade de filiação, propaganda extemporânea e vida pregressa desabonadora. Op.
cit., p. 31. 553 BARRETO, Lauro. Ficha suja e impugnação de candidatura. Bauru: Edipro, 2008, p. 90-91. 554 SEREJO, Lourival. Programa de Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 46. O argumento
do autor é para atingir os candidatos que se apresentam com “mácula” e o parentesco socioafetivo. 555 ROLLO, Arthur Luis Mendonça. Condições de elegibilidade. Op. cit., p. 63. 556 Informativo STF nº 514, 1º a 8 de agosto de 2008, acórdão ainda não publicado (ADPF 144).
134
independência no exercício do cargo, princípio da renovação dos titulares e preservação das
instituições essenciais da soberania.557
As restrições ao direito político de elegibilidade, como restrições de direito
fundamental ou de liberdade pública fundamental,558
somente são justificadas a partir de
previsão constitucional. A Constituição não inclui a “reputação ilibada” ou a vida pregressa
cândida como condição de elegibilidade, no elenco taxativo do artigo 14, parágrafo 3º, nem a
vida pregressa maculada ou a reputação manchada como hipótese de inelegibilidade.
Tampouco a Lei das Inelegibilidades o faz.
Outra questão que se coloca é relativa à sanção de inabilitação para o exercício de
cargo público. Joel José Cândido diferencia a inabilitação para o exercício dos cargos
públicos das inelegibilidades, em face da distinção que a Constituição faz entre função ou
cargo público e mandato eletivo. Para o autor, a inabilitação não gera suspensão de direitos
políticos, pois não está incluída nas hipóteses do artigo 15 da Constituição.559
Não é essa a posição de Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra, que
incluem a inabilitação para o exercício de função pública entre as inelegibilidades.560
Adriano
Soares da Costa firma que a função pública referida inclui cargo público e mandato eletivo e
que a inabilitação é uma espécie de inelegibilidade.561
Para o autor, a inabilitação impede o
registro de candidatura, o que parece equivocado. Não obstante, essa também é a posição de
Tito Costa562
e de Alexandre Luis de Mendonça Rollo.563
Em obra anterior, Adriano Soares
da Costa afirma que na suspensão dos direitos políticos há restrição total ao exercício de tais
direitos, na inabilitação o cidadão pode votar e propor ação pública, mas não ocupar cargo,
função ou emprego público nem mandato eletivo, e na inelegibilidade pode votar, propor ação
pública e ocupar cargo, função ou emprego público. Os institutos mostram-se como círculos
concêntricos, sendo a suspensão dos direitos políticos o mais amplo e a inelegibilidade a mais
restrita.564
557 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Op. cit., p. 63. 558 Como afirma Mônica Herman Salem Caggiano (CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito
parlamentar e direito eleitoral. Op. cit., p. 86). 559 CÂNDIDO, Joel José. Inelegibilidades no Direito Brasileiro. Op. cit., p. 122 e 126. Esclarece o autor: “A inabilitação consiste num impedimento ou numa restrição especial, de natureza administrativa, que
impossibilita só o exercício de qualquer cargo, emprego ou função pública, não eletiva, aplicada, como sanção,
por tempo limitado, a quem incidir nos preceitos legais que a disciplinam” (p. 135). 560 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. Op. cit.,
p. 67. 561 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. Op. cit., p. 283 e 292. 562 COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 220. 563 ROLLO, Alexandre Luis Mendonça. Inelegibilidades infraconstitucionais. In: ROLLO, Alberto (Org.).
Elegibilidade e inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum, 2008, p. 145-218, p. 157. 564 COSTA, Adriano Soares da. Inabilitação para mandato eletivo: aspectos eleitorais. Op. cit.
135
O Supremo Tribunal Federal afirma que a inabilitação alcança cargos por nomeação e
por eleição. Expressamente: “Compreende-se o desempenho de mandato eletivo na pena de
inabilitação temporária para o exercício de função pública, cominada no parágrafo único do
art. 52 da Constituição”.565
Cumprindo a reserva constitucional do parágrafo 9º do artigo 14, a Lei Complementar
64/90 estabelece hipóteses de inelegibilidades decorrentes de sanção e seus prazos, no artigo
1º, inciso I. A perda de mandato leva à impossibilidade de concorrer a eleições no período
remanescente do mandato e mais oito anos no caso dos parlamentares e três anos no caso de
Governador, Vice-Governador, Prefeito e Vice-Prefeito.566
Não há previsão de inelegibilidade
cominada para o Presidente e o Vice-Presidente que perde o mandato, o que pode ser
compreendido a partir da previsão constitucional da inabilitação para o exercício de função
pública por oito anos, no parágrafo único do artigo 52.
A condenação, pela Justiça Eleitoral, por abuso de poder econômico ou político,
transitada em julgado, importa na inelegibilidade para a eleição em que o abuso ocorre e para
as que se realizam nos três anos seguintes.
A condenação criminal transitada em julgado leva à suspensão dos direitos políticos
durante o cumprimento da pena e, portanto, à impossibilidade de concorrer a mandato eletivo.
A alguns crimes, no entanto, adiciona-se uma inelegibilidade de três anos, contados a partir do
cumprimento da pena: crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração
565 Habeas corpus 79791, Relator Néri da Silveira, julgamento em 18 de abril de 2000. Recurso
extraordinário 234223, Relator Octávio Galotti, julgamento em 01º de setembro de 1998 pela Primeira Turma.
Esse último acórdão se refere ao indeferimento do pedido de registro de candidatura à Presidência da República
de Fernando Collor de Mello, que sofreu um processo de impeachment e, em novembro de 1992, recebeu a pena
de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, nas eleições de 1998. O relator, Ministro
Octávio Galotti, aduz: “Mandato eletivo é, sem dúvida, espécie do gênero „função pública‟. Nem toda função
pública é mandato eletivo, mas todo ele a será: privada é que não pode ser a função desempenhada por agente
político”. O Tribunal Superior Eleitoral se manifesta sobre pedido de registro de candidatura de Fernando Collor
de Mello à prefeitura de São Paulo em 2000. O juiz eleitoral indefere o pedido, o Tribunal Regional Eleitoral de
São Paulo reforma a decisão sob o fundamento de que a inabilitação não mais subsistiria na data da posse e o
recurso especial (sob o número 16.684) é apreciado em 26 de setembro de 2000. A ementa traz que a inabilitação restringe os direitos políticos e sem o pleno gozo deles não há possibilidade de deferimento do pedido de registro
de candidatura. O relator, Ministro Waldemar Zveiter, acompanhado expressamente pelo Ministro Néri da
Silveira, aduz que o pleno exercício dos direitos políticos é condição de elegibilidade que deve ser auferida no
momento do registro. Os Ministros Octávio Gallotti e Sepúlveda Pertence apontam, no entanto, que a
condenação por crime de responsabilidade não consta das hipóteses de perda ou suspensão dos direitos políticos
previstas no artigo 15 da Constituição e, portanto, não constitui suspensão dos direitos políticos. Votam com o
relator os ministros Garcia Vieira e Costa Porto e o recurso é provido. 566 Segundo a redação dada pela Lei Complementar 81/94. A redação original da Lei Complementar 64/90
previa a inelegibilidade de três anos, o que levava ao impedimento de concorrer a apenas uma eleição. No caso
dos titulares do Poder Executivo estadual, distrital e municipal, no entanto, não houve alteração.
136
pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, tráfico de entorpecentes e crimes
eleitorais.567
A indignidade e a incompatibilidade com o oficialato geram inelegibilidade por quatro
anos.
A rejeição de contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas por
irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente implica a
inelegibilidade por cinco anos a contar da data da decisão, salvo se a questão houver sido ou
estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário. A última parte do dispositivo leva a
um esvaziamento da previsão de inelegibilidade, atenuada pelo afastamento da Súmula 1 do
Tribunal Superior Eleitoral. O entendimento sumular, estabelecido em setembro de 1992, era
no sentido de que a propositura da ação antes da impugnação do pedido de registro afastava a
inelegibilidade.568
A partir de agosto de 2006, no entanto, firma-se o entendimento de que “a
mera propositura da ação anulatória, sem a obtenção de provimento liminar ou tutela
antecipada, não suspende a inelegibilidade”.569
Exige-se, ainda, que os erros insanáveis que
levam à rejeição das contas sejam derivados de ações de má-fé, com motivos contrários ao
interesse público, em busca de vantagens pessoais, ou que causa prejuízo irreparável ao erário
ou ao administrado, conforme aponta Alexandre Luis Mendonça Rollo.570
A condenação transitada em julgado, não necessariamente pela Justiça Eleitoral, de
detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem
a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político gera inelegibilidade para as
eleições que se realizarem nos três anos seguintes ao término do mandato ou do período de
sua permanência no cargo. Para o Tribunal Superior Eleitoral, no entanto, a configuração
567 O Tribunal Superior Eleitoral tempera essa norma, levando em consideração a gravidade do delito e sua
relação com as finalidades previstas do art. 14 § 9º da Constituição: probidade administrativa, a moralidade para
exercício de mandato e a normalidade e legitimidade das eleições. Assim, não considerou aplicável a
inelegibilidade por três anos a uma candidata condenada a quatro meses de detenção por crime de desobediência
(RO 171, relator designado Néri da Silveira: INELEGIBILIDADE. 2. LEI COMPLEMENTAR N. 64/90, ART.
1, I, LETRA "E". 3. CANDIDATA CONDENADA A QUATRO MESES DE DETENÇÃO, SENDO O
ACORDÃO DE 8 DE JUNHO DE 1995, POR CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. 4. A COMPREENSÃO A SER
DADA AO ART. 1, I, LETRA "E", DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/90, QUANTO A CRIMES CONTRA A
"ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA", HÁ DE MANTER CONFORMIDADE COM AS FINALIDADES
PREVISTAS NO PARÁGRAFO 9 DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, A SE RESGUARDAREM. 5. CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE CONFIGURA A INELEGIBILIDADE DO ART. 1, I, LETRA "E",
DA LEI COMPLEMENTAR 64/90. 6. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. Julgamento em 27 de
agosto de 1998). 568 “Proposta a ação para desconstituir a decisão que rejeitou as contas, anteriormente à impugnação, fica
suspensa a inelegibilidade (Lei Complementar nº 64/90, art. 1°, I, g)”. 569 O Tribunal assentou que a mera propositura da ação anulatória, sem a obtenção de provimento liminar
ou tutela antecipada, não suspende a inelegibilidade (Ac.-TSE, de 24.8.2006, no RO nº 912; de 13.9.2006, no
RO nº 963; de 29.9.2006, no RO nº 965 e no REspe nº 26.942; e de 16.11.2006, no AgRgRO nº 1.067, dentre
outros). http://www.tse.jus.br/internet/jurisprudencia/sumulas.htm. 570 ROLLO, Alexandre Luis Mendonça. Inelegibilidades infraconstitucionais. Op. cit., p. 181.
137
dessa inelegibilidade exige que o abuso revele uma finalidade eleitoral.571
Mais uma vez, a
Justiça Eleitoral coloca entraves à efetivação de uma legislação eleitoral já originalmente
débil.
Finalmente, o inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, traz em sua alínea i
que são inelegíveis, para qualquer cargo, “os que, em estabelecimentos de crédito,
financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação
judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos 12 (doze) meses anteriores à respectiva
decretação, cargo ou função de direção, administração ou representação, enquanto não forem
exonerados de qualquer responsabilidade”. Há muitos questionamentos em relação a essa
hipótese de inelegibilidade, pois ignora o princípio da presunção de inocência e não tem prazo
para sua cessação, se reconhecida a responsabilidade do diretor, administrador ou
representante.572
Ressalte-se que essas hipóteses de inelegibilidades previstas legalmente se referem
diretamente à fidedignidade da representação política, ao afastar da disputa indivíduos que são
considerados não merecedores de confiança. Não é permitido, por força de reserva de lei
complementar estabelecida no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição, ampliar esse rol por
lei ordinária ou por construção judicial, ainda que argumentativamente fundamentada na
realização dos princípios constitucionais.
Não obstante, a partir de 2004 o Tribunal Superior Eleitoral passa a considerar de
maneira mais ampla a noção de “quitação eleitoral”, exigida no momento do pedido de
registro de candidatura. A não apresentação no prazo da prestação de contas (inclusive de
campanhas anteriores) e a existência de débito eleitoral impedem o reconhecimento da
quitação e, portanto, obstam o registro do candidato.573
571 Respe 23.347, relator Caputo Bastos: “RECURSO ESPECIAL. REGISTRO. CANDIDATURA.
CONDENAÇÃO. AÇÃO POPULAR. RESSARCIMENTO. ERÁRIO. VIDA PREGRESSA.
INELEGIBILIDADE. AUSÊNCIA. APLICAÇÃO. SÚMULA-TSE Nº 13. SUSPENSÃO. DIREITOS
POLÍTICOS. EFEITOS AUTOMÁTICOS. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO POPULAR. AÇÃO DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INSTITUTOS DIVERSOS. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 1º, INCISO I,
ALÍNEA h, DA LC Nº 64/90. NECESSIDADE. FINALIDADE ELEITORAL. ART. 1º, INCISO I, ALÍNEA g,
DA LC Nº 64/90. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. 5. Para estar caracterizada a inelegibilidade do art. 1º, inciso I,
alínea h, é imprescindível a finalidade eleitoral.” Julgamento em 22 de setembro de 2004. 572 Sobre o assunto, ver ROLLO, Alexandre Luis Mendonça. Inelegibilidades infraconstitucionais. Op. cit, p. 145-218. Marcos Ramayana defende a previsão legal, afirmando sua indispensabilidade como mecanismo de
proteção do cidadão e dos partidos (RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 9. ed, rev. ampl. e atual. Rio de
Janeiro: Impetus, 2009, p. 226). 573 Resolução 21.823, relator Peçanha Martins: “ATENDIMENTO À CONVOCAÇÃO PARA
TRABALHOS ELEITORAIS. INEXISTÊNCIA DE MULTAS PENDENTES. PRESTAÇÃO DE CONTAS DE
CAMPANHA. REGISTRO DE SANÇÕES PECUNIÁRIAS DE NATUREZA ADMINISTRATIVA
PREVISTAS NO CÓDIGO ELEITORAL E NA LEI Nº 9.504/97. PAGAMENTO DE MULTAS EM
QUALQUER JUÍZO ELEITORAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 11 DO CÓDIGO ELEITORAL. O
conceito de quitação eleitoral reúne a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, salvo
quando facultativo, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao
138
Para os ministros, não há a criação de condição de elegibilidade, reservada à
Constituição, ou nova hipótese de inelegibilidade, matéria de lei complementar: apenas
determinação do que consiste a quitação eleitoral.574
No entanto, não obstante a argumentação
trazida, o fato é que o Tribunal Superior Eleitoral, por resolução, estabelece critérios para a
participação de um cidadão no pleito, com a consequente exclusão de alguns deles.
A quitação eleitoral, ressalta Arthur Luis Mendonça Rollo, se refere ao pleno exercício
dos direitos políticos e ao cumprimento das obrigações eleitorais.575
Adriano Soares da Costa faz uma análise da postura do Tribunal Superior Eleitoral
afirmando a criação de uma inelegibilidade cominada sem previsão legal, decorrente da
desaprovação de contas, sem que necessariamente tenha havido abuso de poder econômico
com potencialidade para desequilibrar o pleito.576
A fidedignidade da representação política também é atingida pela possibilidade de
coligações entre partidos que defendem modelos de sociedade distintas e diversos projetos
coletivos de vida577
– tomando-se em consideração, singelamente, apenas o significado
etimológico de suas siglas,578
sem qualquer elucubração filosófica sobre a transcendência das
ideologias na contemporaneidade. A partir desta permissão legal, e com a adoção do sistema
proporcional de lista aberta, efetivamente ocorre a transferência da opção política dos
eleitores.579
Ao se tratar a coligação como um partido único, com uma única lista de
pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, excetuadas
as anistias legais, e a regular prestação de contas de campanha eleitoral, quando se tratar de candidatos.”
Julgamento em 15 de junho de 2004. 574 Respe 26.505, relator Caputo Bastos: “As Res.-TSE nos 21.823/2004 e 21.848/2004, ao tratarem do
conceito e abrangência da quitação eleitoral, não criaram nova condição de elegibilidade, apenas estabeleceram
quais obrigações deveriam ser cumpridas para a obtenção da certidão de quitação.” Julgamento em 17 de outubro
de 2006. 575 ROLLO, Arthur Luis Mendonça. Condições de elegibilidade. Op. cit., p. 47. 576 COSTA, Adriano Soares da. Inelegibilidade cominada por rejeição de contas: a criatividade judicial
por meio da edição de Resoluções do TSE. Op. cit., p. 78. 577 Isso já era mal visto por Assis Brasil: “Politicamente, é immoralidade reunirem-se individuos de credos
diversos com o fim de conquistarem o poder, repartido depois, como cousa vil, o objecto da cubiçada vitória”. E
agrega que as maiorias derivadas das coligações “são a lepra dos governos representativos” (ASSIS BRASIL, J-
F. de. Democracia representativa: do voto e do modo de votar. Paris: Guillard, 1895, p. 143 e 170). Mais de seis
décadas depois, a crítica de Miguel Reale se refere a estranhas combinações, “ao arrepio das mais elementares
exigências (...) de compostura moral”, e aos “„cock-tails‟ de opinião pública” (REALE, Miguel. O sistema de
representação proporcional e o regime presidencial brasileiro. Op. cit., p. 20). 578 Arend Lijphart alerta para a necessidade de uma leitura cética das plataformas partidárias oficiais, afirmando que “podemos observar a verdadeira política defendida por um partido quando o mesmo está no
poder” (LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 100). Nada
mais verdadeiro no Brasil. 579 Novamente utilizando como exemplo a eleição para a Assembleia Legislativa do Paraná em 2006, o
Partido Popular Socialista (que, segundo seu Estatuto, se declara humanista e socialista e que tem como objetivo
permanente a ampliação da democracia e a valorização da cidadania, no processo de construção de uma
sociedade socialista, ecologicamente equilibrada e autossustentável, humanista, libertária e multilateral) uniu-se
ao então denominado Partido da Frente Liberal – atualmente “Democratas” – que então incluía entre seus
princípios “perfilhar o respeito ao direito de propriedade” e “reconhecer a livre iniciativa como elemento
dinâmico da economia e a empresa privada nacional como agente principal da vida econômica do País” e agora
139
candidatos, chega-se a um relevante desvio na vontade do eleitor, que continua votando no
partido na medida em que não há a atribuição de um número distinto dos partidos que a
formam para a coligação,580
ainda que as regras de propaganda exijam a sua divulgação. Uma
possível solução para esse vício seria adotar a proporção de votos atribuídos a cada um dos
partidos na distribuição de cadeiras dentro da coligação, como está previsto “nas legislações
mais avançadas”.581
Outra possibilidade, menos adequada ao desenho constitucional da
democracia brasileira porque tende a reduzir artificialmente o espectro partidário, é a adoção
das federações partidárias, de duração mais prolongada e com estatuto e programa comuns, já
cogitada nas propostas de reforma política. Para David Fleischer, as federações
possibilitariam um sistema de cotas mais efetivo, eleições proporcionais mais baratas, uma
fiscalização mais efetiva do financiamento das campanhas e partidos mais fortes e coesos.582
Essa crença, no entanto, não parece encontrar respaldo da realidade político, eleitoral e
partidária, brasileira.
A Lei 12.034/09 inclui na lista de documentos exigidos para o registro da candidatura
pelo parágrafo primeiro do artigo 11 da Lei 9.504/97 as propostas apresentadas pelos
candidatos a cargos do Poder Executivo.583
Vale ressaltar que durante as discussões
constituintes, já na votação em plenário do projeto de Constituição da Comissão de
Sistematização, é apresentada a emenda 15092, que busca impor a obrigatoriedade de registro
pelos partidos da plataforma política dos seus candidatos, mas não alcança aprovação. A Lei
“defende, por princípio, a economia de mercado” (as citações foram retiradas das páginas que os partidos
mantêm na internet – www.pps.org.br/2005/include/arquivo/estatuto/cap1.asp; www.pfl.org.br/conheca_pfl/ principios.pdf e www.democratas.org.br/files/REFUNDAPFLDEMOCRATASMAR2007.pdf). A “Coligação
Voto Limpo” obteve 15,83% dos votos e 16,67% das cadeiras na Assembleia. No entanto, o PPS colaborou com
9,24% dos votos e fez 5,56% dos deputados, enquanto que o PFL contou com 6,59% dos votos, mas conquistou
11,11% das cadeiras. 580 DALMORO, Jefferson; FLEISCHER, David. Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o
problema da proporcionalidade. In: KRAUSE, Silvana; SCHMITT, Rogério (Orgs.). Partidos e coligações
eleitorais no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2005, p. 85-113, p. 90. 581 Segundo Augusto Aras (ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 101). 582 FLEISCHER, David. Os partidos políticos. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.)
Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 249-283, p. 249-283. 583 Art. 11. “Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as
dezenove horas do dia 5 de julho do ano em que se realizarem as eleições. § 1º O pedido de registro deve ser
instruído com os seguintes documentos: I - cópia da ata a que se refere o art. 8º; II - autorização do candidato,
por escrito; III - prova de filiação partidária; IV - declaração de bens, assinada pelo candidato; V - cópia do título
eleitoral ou certidão, fornecida pelo cartório eleitoral, de que o candidato é eleitor na circunscrição ou requereu
sua inscrição ou transferência de domicílio no prazo previsto no art. 9º; VI - certidão de quitação eleitoral; VII -
certidões criminais fornecidas pelos órgãos de distribuição da Justiça Eleitoral, Federal e Estadual; VIII -
fotografia do candidato, nas dimensões estabelecidas em instrução da Justiça Eleitoral, para efeito do disposto no
§ 1º do art. 59. IX - propostas defendidas pelo candidato a Prefeito, a Governador de Estado e a Presidente da
República.” (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009).
140
12.034/09 retoma a proposição, sem, no entanto, vincular o não cumprimento das propostas a
alguma consequência jurídica.584
A previsão normativa parece inócua. Como afirma Pierre Bourdieu, “expressões
políticas, programas, promessas, previsões ou prognósticos („Ganharemos as eleições‟) nunca
são verificáveis ou falsificáveis logicamente”. Dependem da força de quem as pronuncia e da
possibilidade que ele tem de “fazer com que o porvir que elas anunciam se torne
verdadeiro”.585
As propostas de campanha de um candidato a Presidente da República
dificilmente dependem apenas de sua vontade para que sejam realizadas. Em um país
democrático, é o Parlamento o lugar de elaboração das regras jurídicas que determinam a
ordem social, a ordem econômica e as relações de trabalho, por exemplo. Não se vislumbra
facilmente como se poderia punir, juridicamente, um mandatário que não realizou suas
propostas por não ter a maioria parlamentar ou por ter suas políticas afastadas pelo Poder
Judiciário.
Finalmente, há que se analisar que a mudança de partido pelo representante político
ofende a fidedignidade da representação política.
Para Ricardo da Costa Tjader, a troca de partido por mandatário eleito pelo sistema
proporcional é “das maiores fraudes que se pode operar contra a soberana manifestação da
vontade popular”.586
Assim seria se o comportamento eleitoral se mostrasse dirigido aos partidos. Mas não
o é. O eleitor vota em pessoas.
Essa é a análise feita por Jairo Nicolau, a partir de uma pesquisa realizada pelo
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). No Brasil, o voto é
personalizado: “o principal motivo da decisão eleitoral é algum atributo particular do
candidato”.587
Nelson Jobim, então deputado federal, afirma criticamente que o sistema
584 Lauro Barreto se refere à proposta de Barbosa Lima Sobrinho para agregar uma nova função à Justiça
Eleitoral: examinar os compromissos eleitorais assumidos para verificar seu teor e substância, a fim de tipificar a
“fraude eleitoral”, tomada como o descumprimento das promessas de campanha (BARRETO, Lauro. Escrúpulo
e poder: o abuso de poder nas eleições brasileiras. Op. cit., capítulo 2). 585 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In:_____.
O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 163-207, p. 186. 586 TJADER, Ricardo da Costa. Enfoques jurídico-políticos das trocas de partidos. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 155-
165; 174-175, p. 160. 587 NICOLAU, Jairo. Voto personalizado e reforma eleitoral no Brasil. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon;
RENNÓ, Lucio R. (Orgs.). Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.
23-33, p. 24 e 30. A pesquisa realizada em dezembro de 2002 entrevistou 2004 pessoas em 115 municípios e tem
margem de erro de 2,2% em um intervalo de confiança de 95%. Para a pergunta: “Na decisão do voto para
deputado federal, o que foi mais importante: a pessoa do candidato ou o partido?”, 82,7% dos entrevistados
afirmaram que o candidato é mais importante; 8,7% responderam o partido e 8,6% disseram que ambos,
candidato e partido, eram importantes (p. 29). Em sentido oposto, Reinhold Zippelius afirma que “a história das
eleições políticas teria conduzido progressivamente da selecção dos diversos deputados, diferenciados pelas suas
141
proporcional brasileiro faz dos partidos reféns dos candidatos e que o desempenho do partido
depende da performance dos seus candidatos.588
Ainda, Walter Costa Porto indica o voto em
nomes, motivado pela “fragilidade dos partidos, a desatenção a seus programas, o
individualismo que, afinal, viceja em nossa política”.589
Enfim, o voto de legenda é
francamente minoritário no Brasil, beirando à inexpressividade.590
Parte-se de alguns números para sustentar esse argumento. O montante dos votos em
legenda na eleição para a Câmara de Deputados no Estado do Paraná em 1994 foi de 185.809
(118.162 apenas para o Partido dos Trabalhadores) em um universo de 2.794.733 votos
válidos. Ou seja, 2.608.924 eleitores (93,35%) preferiram escolher nomes para representá-los.
Em 2006, dos 5.364.529 eleitores que decidiram escolher seus representantes na Câmara de
Deputados, 403.817 votaram nos partidos políticos: 7,53% do total. Os demais preferiram
escolher seu candidato.
Analise-se ainda o desempenho eleitoral de Jaime Lerner. Governador eleito para dois
mandatos consecutivos, Lerner disputou o primeiro mandato para o Governo do Estado do
Paraná pelo Partido Democrático Trabalhista em 1994 e obteve 2.070.970 votos. Em 1998, no
Partido da Frente Liberal, novamente se elege com a maioria dos votos válidos já no primeiro
turno de votação, com o apoio de 2.031.241 eleitores. Nessa segunda eleição, o PDT
compunha a coligação que apoiava Roberto Requião de Mello e Silva, filiado ao PMDB e que
alcançou 1.786.115 votos. Aqui evidencia-se a indiferença popular à mudança de partido.591
O que parece, de fato, uma traição ao eleitor ou uma fraude eleitoral é o não exercício
da representação pelo eleito. Mais grave do que a mudança de partido do Ratinho Junior, que
recebeu 205.286 votos pelo Partido Popular Socialista e foi para o Partido Social Cristão em
qualificações pessoais, para uma decisão entre os políticos de cúpula dos diversos partidos e entre os respectivos
programas” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução: Karin Praefke-Aires Coutinho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994], p. 254). Talvez na Alemanha ou no imaginário dos
Ministros da Corte suprema brasileira, não na realidade histórica e atual do Brasil. 588 JOBIM, Nelson. Câmara dos Deputados como assembléia dos estados - voto distrital misto. Revista de
Direito Público, São Paulo, n. 98, , p. 108-110, abr./jun. 1991, p. 109. 589 PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. Op. cit., p. 163. Pedro Simon chama a atenção para os
resultados da eleição presidencial de 1989: o mais votado contava com seis deputados federais; o candidato do
PMDB, partido com 22 governadores e 200 deputados, “fez meia dúzia de votos” (SIMON, Pedro. Partidos
políticos e organização partidária. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal
Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 148-154, p. 150). A culpa pelos partidos brasileiros serem “de mentirinha”, para Pedro Simon, é do sistema presidencialista e da falta do voto distrital (p. 151 e 154). 590 Em 1994 os votos de legenda para eleição de deputados federais no Paraná teve apenas 6,65% de votos
atribuídos aos partidos políticos. Em 2006 o montante chegou a 7,53%. José Filomeno Moraes Filho aponta que
a literatura afirma a volatilidade do eleitorado, que se identifica com um partido apenas conjunturalmente.
Apontam-se como possíveis causas o federalismo, o presidencialismo, a lista aberta e as coalizões ad hoc
(MORAES FILHO, José Filomeno. O processo partidário-eleitoral no Brasil: a literatura revisitada. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 86, p. 49-84, jan. 1998, p. 72-73). 591 Essa também é a visão de Augusto Aras: “No Brasil, a infidelidade partidária não é percebida pelo
eleitorado em geral como algo escandaloso, abominável, grave, vergonhoso ou repreensível” (ARAS, Augusto.
Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Op. cit., p. 168).
142
2007, ou a migração de Gustavo Fruet do Partido do Movimento Democrático Brasileiro para
o Partido da Social Democracia Brasileira após um período de cinco meses sem partido592
, foi
a postura de Cassio Taniguchi, eleito pelo Estado do Paraná, que não exerce seu mandato de
deputado federal porque assumiu cargo de Secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio
Ambiente junto ao governo do Distrito Federal, e que propôs apenas um projeto de lei e
compareceu a apenas três sessões deliberativas593
. Ou ainda, a aceitação do cargo de Ministro
do Turismo pelo então deputado federal mais votado do Brasil, com 226.686 votos, Rafael
Greca, do início da legislatura 1999-2003 até 2 de maio de 2000, e que depois se licenciou
novamente para exercer o cargo de Secretário da Comunicação Social do Estado do Paraná,
quando deixou o Partido da Frente Liberal e foi para o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro.
Não se evidencia uma “quebra” da confiança do eleitor pela mudança partidária. Ao
que parece, as propostas partidárias e sua adesão a elas não são elementos da fidedignidade da
representação política.
592 Eleito em 1998 e 2002 pelo PMDB, não teve dificuldades para alcançar 210.674 votos pelo PSDB em
2006, mais do que o dobro da votação obtida em 2002. 593 Segundo informações da página da Câmara de Deputados na internet (www.camara. gov.br).
143
2 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE PARA O EXERCÍCIO
DO MANDATO
A adoção pela Constituição brasileira de uma democracia deliberativa republicana
específica implica o princípio da liberdade para o exercício do mandato. Esse princípio
revela-se ainda pelos princípios da democracia representativa, do mandato representativo, da
fidelidade partidária (entendida devidamente de acordo com o desenho constitucional) e da
liberdade de convicção e de consciência.594
A Constituição assume a teoria da representação popular ou nacional, em que a relação
de representação se estabelece entre toda a coletividade e o representante, e não entre os
eleitores que efetivamente escolheram aquele representante e ele. O texto constitucional
revela essa escolha ao estabelecer, em seu artigo 45, que a “Câmara dos Deputados compõe-
se de representantes do povo” e, no artigo 46, que o “Senado Federal compõe-se de
representantes dos Estados e do Distrito Federal”. Além disso, durante a Assembleia Nacional
Constituinte, discute-se a respeito da compreensão da cidadania como “expressão individual
da soberania do povo”, que chega a configurar um artigo do primeiro anteprojeto de
Constituição apresentado por Bernardo Cabral.
A ausência de previsão de revogação de mandato e a obrigatoriedade do voto refletem
essa escolha. O mandato representativo tem caráter coletivo e ao cidadão é atribuída a função
(mais do que o direito) de escolher seus representantes. Além disso, nesse modelo, os
representantes são informados pela e formam a opinião pública.595
Em seu discurso para os eleitores de Bristol, Edmund Burke afasta a vinculação do
representante a instruções do eleitorado. Embora ressalte a necessidade de uma união com os
eleitores, o peso dos desejos dos representados e o respeito à sua opinião, afirma que o
governo não é uma questão de vontade, mas de razão e juízo. Sendo assim, a decisão racional
não pode ser anterior à deliberação.596
594 Essa é a leitura de Clèmerson Merlin Clève. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade partidária: estudo
de caso. Curitiba: Juruá, 1998, p. 42-45. 595 Para Maurice Hauriou, a opinião pública, que cumpre um importante papel no governo representativo, “es un inmenso receptáculo de opiniones diversas que circulan en el público, es un océano de discusión donde
se cruzan y se entrecruzan las corrientes más díspares. La opinión pública es un lugar, un medio, una esfera
psicológica que se desarolla, bajo la mirada atenta del país, la lucha de las ideas políticas” (HAURIOU,
Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. ed. Tradução: Carlos Ruiz del Castillo. Madrid:
Instituto Editorial Reus, 1927, p. 240). 596 BURKE, Edmund. Discurso a los electores de Bristol. In: _____. Textos políticos. Tradução: Vicente
Herrero. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1942 [1774], p. 309-314, p. 312. Afirma: “El
Parlamento no es un congreso de embajadores que defienden intereses distintos y hostiles, intereses que cada
uno de sus miembros debe sostener, como agente y abogado, contra otros agentes y abogados, sino una
asamblea deliberante de una nación, con un interés: el de la totalidad; donde deben guiar no los intereses y
144
Para Bernard Manin, a liberdade de opinião ocupa o lugar das instruções para o
exercício do mandato na discussão da primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos.
Assim, a voz do povo pode chegar aos governantes, amortizando a clara característica não
democrática da independência dos representantes.597
Maurice Hauriou ressalta que o representante é autônomo, como um “gerente de
negócios” e não como um mandatário, o que se consagra em duas regras: proibição de
mandato imperativo e impossibilidade de revogação de mandato. Ao tratar dos órgãos de
soberania do Estado, refere-se ao Poder Legislativo como “poder deliberante”, ressaltando
que é pela deliberação, mais do que pela legislação, que ele realiza suas funções. A
deliberação pressupõe discussão, debate, capaz de alterar a opinião dos representantes, que,
por conta disso, devem ser livres.598
A deliberação democrática, seja diretamente pelo povo, seja nas casas parlamentares,
deve, pelo desenho constitucional, produzir uma decisão que é distinta da soma das
preferências ou opções individualmente postas. O representado é o povo, e não os cidadãos
individualmente considerados: não há, portanto, uma vontade única que possa ser refletida. O
debate produzido deve, para ter algum sentido, ser capaz de alterar as concepções iniciais de
cada participante.599
Tal visão, adotada na presente pesquisa, configura para Maria Benedita Malaquias
Pires Urbano um “sentimentalismo constitucional”.600
Talvez o seja, como o apego ao bem
prejuicios locales, sino el bien general que resulta de la razón general del todo. Elegís un diputado; pero
cuando le habéis escogido, no es el diputado por Bristol, sino un miembro del Parlamento” (p. 312-313). 597 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Tradução: Fernando Vallespín. Madrid:
Alianza Editorial, 1998 [1995], p. 210. 598 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 267 e 469-472. Para
o autor, “deliberación es uma resolución colectiva sobre un asunto de gobierno o de administración, resolución
que se adopta a pluralidad de votos y después de discusión pública, por una Asamblea formando corpo y
constituída en autoridad pública” (p. 470). E afirma expressamente: “los membros de la Asamblea deben ser
libres al expresar su voto, a fin de que, terminada la discusión, puedan adherirse a la determinación que
parezca más razonable. Si se trata, pues, de una Asamblea representativa cuyos miembros sean electivos, es
necesario que no hayan recibido mandato imperativo, pues en caso de recibirlo sería inútil deliberar; la
deliberación reposa en el postulado de que puede servir para ilustrar a los votantes, haciéndoles cambiar de
opinión antes de votar, postulado que resulta incompatible con el mandato imperativo” (p. 472). 599 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996. Como
diria Benjamin Constant, “voltemos às idéias simples”: “Compreendamos que as reuniões [das assembleias representativas] se realizam com a esperança de entendimento” (CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos
constitucionais: Princípios políticos aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à
Constituição atual da França. Tradução: Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989 [1815], p.
129). Mais recentemente, Hanna Pitkin defende que a relação de representação deve deixar espaço para as
“atividades cruciais da legislação”, como a formulação de problemas, a deliberação e os compromissos para a
tomada de decisão (PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkeley: University of California
Press, 1967, p. 147). Caso contrário, não parece fazer sentido a necessidade de discussão parlamentar. 600 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Coimbra, 2004,
830f. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico-Políticas), Universidade de Coimbra, p. 128.
145
comum, ao interesse público e à distinção entre poder constituinte e poderes constituídos. Mas
configura exigência àqueles que defendem a Constituição.
Essa concepção de Parlamento como órgão de deliberação não se coaduna com um
mandato vinculado, em que os representantes políticos recebem instruções, de seu eleitorado
ou do seu partido, e manifestam-se estritamente no sentido pré-determinado, sendo
impossibilitados de refletir sobre os outros argumentos apresentados. Antes, a existência de
restrições para a decisão parlamentar revelaria uma democracia estatística,601
onde as
preferências individuais ou grupais se manifestariam sem que se pudesse apontar os
responsáveis pela decisão.
O princípio do governo representativo, segundo Bernard Manin, assim se revela:
“ninguna propuesta puede adquirir fuerza de decisión pública hasta que haya obtenido el
consentimiento de la mayoría tras haber sido sometida al juicio mediante la discusión”. O
consentimento que valida a representação política deve, necessariamente, derivar da discussão
persuasiva. Segundo o autor, “[e]l gobierno representativo no es un sistema en que la
comunidad se autogobierna, sino un sistema en el que las políticas y las decisiones públicas
son sometidas al veredicto del pueblo”. 602
A existência de um estatuto constitucional dos congressistas, com restrições e
garantias, parece revelar esse desenho.603
Mais do que um direito ou do que um privilégio do
parlamentar, a liberdade para o exercício do mandato é decorrência do direito de livre
expressão e discussão.604
Existe, reconhecida ao representante, uma liberdade individual de
expressão política e um conjunto de direitos políticos concernentes à representação, o que
leva ao livre exercício do mandato.605
Ainda sob a Constituição anterior, o Tribunal Superior Eleitoral debruçou-se sobre o
tema, ao analisar uma representação de um partido solicitando a perda de mandato de um
deputado federal que haveria votado contra as deliberações partidárias. A Constituição de
601 Novamente utilizando a terminologia de Dworkin (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y
Democracia. Tradução: Julio Montero y Alfredo Stolarz. Buenos Aires: La isla de la luna, 2003 [1980/1990], p.
49-51). 602 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 233, 235 e 236. 603 Para Miguel Reale a existência de garantias constitucionais dos parlamentares está ligada ao livre exercício do mandato: “A história do Estado de Direito assinala uma constante preocupação no sentido de
preservar-se o exercício dos mandatos políticos de tôda e qualquer espécie de pressão, a fim de que os
representantes do povo, no seio do Parlamento, possam desempenhar, com a necessária independência, a dupla
função que lhes compete: a de legislar e a de fiscalizar a ação do Estado” (REALE, Miguel. Decôro parlamentar
e cassação de mandato eletivo. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 10, p. 87-93, out./dez. 1969, p. 87). 604 Conforme VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Revista de
Estudios Políticos (Nueva Época), Madrid, n. 44, p. 24-44, mar./abr. 1985, p. 33 nr 21. 605 ROLLO, Alberto; CARVALHO, João Fernando Lopes de. Fidelidade partidária e perda de mandato.
Semestre eleitoral [Tribunal Regional Eleitoral da Bahia], Salvador, v. 9, n. 1/2, p. 9-32, jan./dez. 2005, p. 10 e
12.
146
1969 trazia expressa a sanção de perda de mandato por infidelidade partidária, configurada
quando o representante “por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente
estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja rege for eleito”,
conforme o parágrafo 4º do artigo 152, com a redação dada pela Emenda Constitucional
11/78.
Em seu parecer, o Procurador-geral Eleitoral Inocêncio Mártires Coelho ressalta que
“o instituto da fidelidade partidária constitui restrição à liberdade para o exercício do
mandato, quase diria um irmão gêmeo do proscrito mandato imperativo, que a legislação dos
povos cultos de há muito abandonou, respaldada nos modernos conceitos de representação
política”, afirmando a necessidade de uma interpretação restritiva do dever de fidelidade
partidária.
O Ministro Torreão Braz questiona a constitucionalidade da fidelidade partidária, em
face da inviolabilidade dos deputados e senadores por suas opiniões, palavras e votos. Em seu
voto, o Ministro Washington Bolívar afirma crer na efemeridade do instituto da fidelidade
partidária, ressaltando ainda a liberdade de convicção como direito fundamental e a
configuração do deputado como representante do povo e do senador como representante do
Estado. E aduz: “Não se há de querer, por conseqüência, torná-los menor na sua tarefa,
jungindo-os aos partidos, que, por mais relevantes que o sejam para o regime democrático,
são parcelas do pensamento nacional. Ambos, os deputados e os senadores, falam, não por
parcelas, mas pelo povo inteiro nos seus maiores interesses”.606
Ou seja, não representam só
os que lhes escolheram e votaram a partir de suas propostas ou de seu partido, ou ainda por
alguma característica pessoal sua, mas sim a todos os cidadãos do espectro de representação.
Essa liberdade, no entanto, não prescinde da responsabilidade do mandatário. A
necessária responsabilidade dos agentes públicos, aí incluídos os agentes políticos,607
deriva
do princípio republicano, do princípio democrático e da noção de função pública, conforme
aponta Romeu Felipe Bacellar Filho.608
Se não há uma real representação da vontade do povo,
606 Representação 6963 DF. Relator Ministro Delcio Miranda, julgamento em 15 de maio de 1984. A
representação foi julgada improcedente por unanimidade de votos, devido a defeito formal do ato de convocação
do órgão partidário, o que impedia a configuração de uma diretriz legítima. Apesar dos argumentos levantados, o Tribunal Superior Eleitoral não se manifestou sobre a inconstitucionalidade das regras de infidelidade
partidárias. 607 “Os agentes políticos são aqueles que se situam no alto da pirâmide estatal, cuja característica
fundamental é a ausência de qualquer subordinação, a quem quer que seja, no exercício de suas funções
precípuas, salvo à lei.” Incluem-se nessa categoria os chefes do Poder Executivo, os parlamentares, os
magistrados e os membros do Ministério Público, entre outros (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito
administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 153). 608 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad,
2003, p.133. Marçal Justen Filho aduz que “[e]m um Estado Democrático de Direito, o Estado somente está
legitimado a ser sujeito de interesse público. Atribuir ao Estado a titularidade do interesse privado infringe o
147
a atuação do agente público deve refletir “um estrito cumprimento do direito”.609
Maurice
Hauriou vincula a ideia de representação à realização de uma função pública.610
Assim
também o faz José Roberto Vieira, afirmando a relação do princípio da República com a
responsabilidade e que “[o]s poderes atribuídos aos mandatários do povo só descobrem
sentido na idéia de função, na idéia de meios para a realização do interesse público”.611
Ou seja: ainda que o representante seja o titular do mandato, o exercício desse encargo
e a fruição de suas prerrogativas trazem consigo um conjunto de deveres. Deveres políticos,
mais do que deveres jurídicos.
Afirma Auro Augusto Caliman que o povo, soberano, ao delegar o poder “a
representantes que compõem o Legislativo, não dispõe de garantia jurídica que os obrigue a
executar sua vontade”. Aponta, ainda, como características do mandato político-
representativo a temporariedade, a generalidade (representação de todo o povo), a
irrevogabilidade, a irresponsabilidade política, a independência, a liberdade para o exercício, a
disponibilidade, a irrenunciabilidade relativa (não se aceita quando o parlamentar estiver
submetido a processo que pode levar à perda de mandato), a instransferibilidade, a
indelegabilidade e a existência ou não de remuneração.612
Assim, o pensamento de Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, que afirma ser o
mandato parlamentar um “elemento funcional da representação política”. A autora se refere à
“responsividade” (responsiveness) – à responsabilização do representante pela concretização
dos interesses dos eleitores – e ao accountability, exigência de prestação de contas da atuação
do representante.613
A titularidade do mandato eletivo é do mandatário, jurídica e politicamente. O
representante político atua livremente, sem instruções do eleitorado ou do partido. Não há
vinculação jurídica para além da filiação partidária como condição de elegibilidade. Assim o
posicionamento de Jorge Miranda, que expressamente afasta a tese da “representação
princípio da República”. Para o autor, o que caracteriza o interesse público é ser indisponível, é não poder ser
colocado em risco, porque sua natureza exige sua realização (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 37 e 43). 609 DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 42. 610 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 225. Lembrando da
lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, “[e]xiste função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para
supri-los” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008, p. 62). 611 VIEIRA, José Roberto. República e Democracia: óbvios ululantes e não ululantes. Revista Brasileira de
Direito Constitucional, Curitiba, n. 4, p. 77-100, 2003, p. 87. 612 CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. São Paulo: Editora
Atlas, 2005, p. 14 e 39-42. 613 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 772,
113 e 135.
148
partidária” que vê o mandato conferido ao partido afirmando sua incompatibilidade com a
eleição dos representantes por todo o povo e com a representação popular. Para o autor, a
concepção da assembleia como câmara corporativa dos partidos somente seria pensável em
“regimes totalitários ou partidos totalitários, e não [n]aqueles que se reclamam da democracia
representativa e pluralista”. Ainda que a representação esteja ligada aos partidos, o mandato
não pertence às agremiações partidárias; há uma distinção de funções dos deputados e dos
partidos e, “em caso de ruptura, o Deputado prevalece sobre o partido”.614
Distinta é a posição de Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra, que
afirmam que os mandatários não detêm parcela da soberania popular e que o poder que se
origina no povo não pode ser privatisticamente apropriado. E continuam: “O candidato foi
eleito para honrar determinado programa partidário, perdendo esse múnus quando se afasta do
compromisso assumido”. Para os autores, essa obrigação pode ser construída por uma
interpretação sistêmica da Constituição.615
Não é essa, no entanto, a disciplina constitucional. Ainda que a mediação dos partidos
seja exigência para o exercício da soberania popular no Estado democrático atual, a
submissão dos mandatários às agremiações partidárias anula o mandato livre e releva uma
partidocracia.616
Assim como o faz o funcionamento das estruturas de lideranças na Câmara de
Deputados.617
Sem previsão constitucional e muitas vezes em flagrante ofensa ao processo
legislativo constitucionalmente previsto, as decisões dos líderes afastam a publicidade das
votações. Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos acentuam sua atuação,
assim como a das comissões, como uma delegação de responsabilidades cercada de segredo,
614 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito, 2003, p. 267-270. Em face do desenho constitucional português,
essas considerações não afastam a disciplina de voto e a perda de mandato por mudança de partido. 615 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 90. Em artigo anterior, Carlos Mário da Silva Velloso aduz que um mínimo de
fidelidade partidária é indispensável, inclusive com a perda de mandato, mas com submissão ao programa
partidário e às diretrizes legitimamente adequadas (VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A reforma eleitoral e os
rumos da democracia no Brasil. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes; VELLOSO Carlos Mário da Silva
(Coords.). Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 11-30, p. 17 e 20). 616 ZAMORA, Rubén I. Partidocracia. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 965-973, p. 966-967. O autor aponta que a Constituição do Sri Lanka permite que
os partidos substituam os membros do Parlamento eleitos pela lista do partido que não acatam a disciplina do
voto e afirma que a partidocracia “expresa la debilidad de las instituciones políticas de nuestros procesos de
democratización ya sea en su versión restauradora o de incipiente construcción” (p. 970 e 973). 617 Ressalta Cesareo R. Aguilera de Prat que os partidos, ao lado do governo, dos tribunais constitucionais
e dos entes territoriais com autonomia política competem com o Parlamento, evidenciando a inadequação da
estrutura parlamentar com suas funções no Estado social. Mais do que o impulsor das elaborações legislativas e
da definição da vontade política, o Parlamento funciona como uma caixa de ressonância (AGUILERA DE
PRAT, Cesareo R. Problemas de la democracia y de los partidos en el Estado social. Revista de Estudios
Políticos (Nueva Época), Madrid, n. 67, p. 93-123, ene./mar. 1990, p. 100).
149
pois nada se sabe das reuniões e das votações. Ainda, segundo os autores, serve para encobrir
a atuação dos parlamentares em decisões de alto custo político.618
Nelson Jobim afirma que
esse mecanismo de lideranças exclui o parlamentar do processo decisório, permitindo às
lideranças dos partidos atuarem livremente mediante acordos não publicizados.619
Para Maria
Garcia, o voto de liderança deveria ser abolido, em nome da efetiva representação popular.620
O mandato representativo apresenta um duplo vínculo: um popular, pois sua aquisição
se dá a partir da vontade do povo; outro partidário, pois os partidos fazem a intermediação
entre os candidatos e os eleitores.621
A titularidade, no entanto, não é nem do povo, nem do
partido: o representante titulariza o mandato.622
Maria Benedita Malaquias Pires Urbano indaga: “até quando vamos ficar prisioneiros
do falso mito da liberdade total dos parlamentares?”.623
Essa liberdade é um patrimônio da
democracia, que deriva de uma escolha precisa do constituinte e que não pode ser vista como
um “resíduo histórico”, afirma Roberto Scarciglia. É “um elemento ineludível da democracia
representativa”, ainda mais em um momento em que os partidos não estão mais dominando a
relação entre Estado e sociedade.624
Não se está, aqui, amarrado a uma liberdade plena, em face do princípio republicano,
da responsabilidade no exercício do mandato e de uma leitura da realidade política que revela
interferências externas na representação. Mas os “grilhões” do mandato livre, para além das
instruções do eleitorado e dos partidos, assim desenhado no texto constitucional, seguirão
atando os intérpretes e aplicadores da Constituição – ou, ao menos, assim deveriam.
618 ANASTASIA, Fátima; MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representação
política na América do Sul. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 102-112. 619 JOBIM, Nelson. Partidos políticos e organização partidária. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito
Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 138-147; 169-172, p. 140-
141. 620 GARCIA, Maria. Democracia e o modelo representativo. In: GARCIA, Maria (Org.). Democracia,
hoje. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997, p. 41-82, p. 65. 621 CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. Op. cit., p. 44. 622 Assim dispõe, ainda que indiretamente, a Constituição, ao estabelecer a inelegibilidade por parentesco
exceto quando o parente do chefe do Poder Executivo for “titular de mandato eletivo” buscando sua reeleição –
art. 14, §7º: “São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou
afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do
Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já
titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”. 623 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 771. 624 SCARCIGLIA, Roberto. Il divieto di mandato imperativo. Contributo a uno studio di diritto comparato.
Padova: CEDAM, 2005, p. 159 e 179.
150
2.1 A VEDAÇÃO AO MANDATO IMPERATIVO
A escolha constitucional pelo princípio da liberdade para o exercício do mandato
implica primeiramente a vedação ao mandato imperativo.625
O sistema brasileiro impõe que
os deputados são representantes do povo, e ainda que não repita a vedação expressa das
constituições estrangeiras,626
nem afirme expressamente a liberdade para o exercício do
mandato,627
não aceita a vinculação do mandatário a instruções.
O mandato imperativo implica uma relação de representação caracterizada pelos
princípios do direito privado. Há, como ressalta Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, uma
delimitação prévia do objeto representado (o conteúdo e a extensão do mandato), a
determinação da responsabilidade do representante e a remuneração do representante por seus
comitentes, indicando uma representação particular. Esse modelo de mandato, aduz a autora,
corresponde a uma sociedade fechada e estática.628
A configuração do mandato imperativo pressupõe a adoção da teoria fracionada da
soberania e da representação, acentua Maurice Duverger, havendo identificação entre o
representante e parcela do eleitorado que apresenta instruções para o cumprimento do
625 Ao tratar da soberania popular, Orides Mezzaroba traz suas origens em Marsílio de Pádua, que pensava
um “legislador humano” a partir da universalidade (restrita segundo os critérios contemporâneos, pois excluía
mulheres, escravos e estrangeiros) dos cidadãos. Acentua que havia uma vinculação entre o governante,
delegado do legislador humano, e o mandante, com possibilidade de revogação em caso de abuso ou desvio
(MEZZAROBA, Orides. O humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa brasileira
contemporânea. In:_____. Humanismo latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 59-
101, p. 66-67). 626 Como a Constituição da Espanha (“Artículo 67 2.Los miembros de las Cortes Generales no estarán
ligados por mandato imperativo”), da Itália (“Art. 67. Ogni membro del Parlamento rappresenta la Nazione ed esercita le sue funzioni senza vincolo di mandato”), de Luxemburgo (“Article 50 [Representation]. The Chamber
of Deputies represents the country. Deputies vote without referring to their constituents and may have in view
only the general interests of the Grand Duchy”), da Eslovênia (“Article 82 (Deputies) (1) Deputies of the
National Assembly are representatives of all the people and shall not be bound by any instructions”) e da
República Bolivariana da Venezuela (“Artículo 201. Los diputados o diputadas son representantes del pueblo y
de los Estados en su conjunto, no sujetos o sujetas a mandatos ni instrucciones, sino sólo a su conciencia. Su
voto en la Asamblea Nacional es personal”), embora esta se refira à necessidade de prestação de contas e
contenha a previsão de revocatória de mandato (“Artículo 197. Los diputados o diputadas a la Asamblea
Nacional están obligados u obligadas a cumplir sus labores a dedicación exclusiva, en beneficio de los intereses
del pueblo y a mantener una vinculación permanente con sus electores y electoras, atendiendo sus opiniones y
sugerencias y manteniéndolos informados e informadas acerca de su gestión y la de la Asamblea. Deben dar cuenta anualmente de su gestión a los electores y electoras de la circunscripción por la cual fueron elegidos o
elegidas y estarán sometidos o sometidas al referendo revocatorio del mandato en los términos previstos en esta
Constitución y en la ley sobre la matéria”). 627 Como o faz a Constituição Portuguesa: “Artigo 155.º Exercício da função de Deputado. 1. Os
Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício
das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação
regular”. 628 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 85-86
e 99.
151
mandato. No caso de não-cumprimento, está ao alcance dos eleitores a revogação do
mandato.629
As experiências de mandato imperativo percorrem distintas trajetórias na Inglaterra e
na Europa Continental. Não há na Inglaterra uma teoria do mandato que tenha feito surgir o
modelo imperativo nem sua passagem para o modelo representativo: ele decorre da prática da
representação, das disfuncionalidades e inconvenientes do primeiro instituto630
e cujos
primeiros lineamentos já se encontram nos últimos anos do século XIII.631
A elaboração
teórica e justificadora do mandato representativo inglês vem com Edmund Burke, a partir do
argumento de que a vontade não pode preceder à discussão.632
Na França, por sua vez, há uma
discussão teórica a respeito do modelo de mandato a ser adotado pela Revolução. A ausência
de instruções precisas e de vinculação a determinada parcela da população, no entanto, eram
características inafastáveis de uma concepção de soberania nacional, em que a vontade da
Nação era única, concretizada na assembleia de representantes.633
Além disso, permite a
criação de um direito de cidadania unitário, em que todos os indivíduos têm os mesmos
direitos e estão sob o mesmo estatuto jurídico.634
Ao distinguir o mandato de direito privado do mandato eleitoral,635
Ricardo Pavão
Tuma aponta quatro características da representação no direito público: impossibilidade de
definição precisa do vínculo entre mandante e mandatário, impossibilidade de revogação do
629 DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos: Instituições Políticas e Direito Constitucional –
I. Tradução: Fernando Ruivo e Fernando Augusto Ferreira Pinto. Coimbra: Almedina, 1985 [1980], p. 62-62. 630 Para Karl Loewenstein, a técnica representativa se estabelece a partir de um processo, notadamente na
Inglaterra em que “al final del período feudal, cuando la corona estaba necesitada de dinero, los delegados de las capas sociales poderosas financieramente que estaban convocados por el Rey, se emanciparon –
probablemente en virtud de los primitivos medios de comunicación – de las instrucciones y mandatos
imperativos que habían recibido, y tomaron allí mismo sus decisiones bajo su propia responsabilidad. De esta
manera obligaron y „representaron‟ a los grupos o asociaciones de personas, de los que eran portavoces y
mandatarios” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Editoral Ariel, 1976 [1961], p. 59). 631 ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Bologna: Il Mulino, 1999, p. 96. 632 BURKE, Edmund. Discurso a los electores de Bristol. Op. cit., p. 309-314. Em escrito anterior, o autor
ressalta a exigência de um controle do povo sobre o Parlamento para que o Parlamento possa controlar os demais
órgãos de governo (BURKE, Edmund. Pensamientos sobre las causas del actual descontento. In:_____. Textos
políticos. Tradução: Vicente Herrero. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1942 [1770], p. 259-293, p. 259-293, p. 280). Bruno Accarino acentua que Edmund Burke pressupõe uma atuação moral impecável
dos representantes, estabelecendo como um “decálogo comportamental” (ACCARINO, Bruno. Rappresentanza.
Op. cit., p. 65). 633 Sobre o assunto ver VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit.,
p. 24-44. 634 ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Op. cit., p. 89-90. 635 Jorge Reinaldo Vanossi e Daniel Alberto Sabsay afirmam que o mandato representativo não se
confunde com figuras do direito privado sem, no entanto, apresentarem uma noção de mandato. VANOSSI,
Jorge Reinaldo; SABSAY, Daniel Alberto. Mandato. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 827-834, p. 833.
152
mandato, inexigibilidade individual de prestação de contas ao mandatário e ilimitabilidade da
extensão dos poderes do mandatário.636
O instituto do mandato construído pelo pensamento liberal traz como características
ser nacional, geral ou universal, livre ou não sujeito a restrições e não responsável637
e a
Constituição brasileira não se afastou desse desenho; antes, sublinhou-o com a exigência do
caráter nacional dos partidos, a não-regulamentação dos lobbies, a inexistência de
possibilidade de revogação ou perda de mandato por infidelidade partidária e a ausência de
previsão de instrumentos jurídicos específicos de controle do representante pelo representado.
Georges Burdeau afirma que o mandato representativo faz parte da estrutura jurídica
do governo representativo e se caracteriza por ter como objeto a delegação do exercício da
soberania (pois a nação permanece com a titularidade da soberania) e por ser um mandato
coletivo (os mandatários são representantes de todo o povo e não apenas do colégio eleitoral
que o elegeu). Assim, não comporta a noção de transferência de poderes precisos, mas
pressupõe a liberdade do eleito.638
A impossibilidade de prever os problemas que serão discutidos no Legislativo e a
modificação das circunstâncias, a necessidade de espaços para concessões mútuas e a postura
do deputado marcada pela defesa do bem comum639
evidenciam o que Reinhold Zippelius
denomina princípio da representação livre.640
O autor se refere à teoria do “mandato geral”
como atribuição dos eleitores-representados que não vincula juridicamente a atuação do
representante e cuja sanção se resume à não-reeleição do mandatário. Há, no entanto, um
dever de lealdade do representante com o seu partido, justificado pela opção de seus eleitores
636 TUMA, Ricardo Pavão. Democracia representativa e partidos políticos. Curitiba, 1997, 280f.
Dissertação (Mestrado em Direito do Estado), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p.
89-94. Para Petrônio Braz, “[o] mandato eleitoral não tem uma natureza contratual, no sentido civil do termo,
possui natureza personalíssima, que se estabelece em presença da aprovação da proposta e do estabelecimento de
uma relação de confiança tácita” (BRAZ, Petrônio. Eleições municipais 2008. Leme: J. H. Mizuno, 2008, p. 57). 637 Características enfatizadas por Angel Garrorena Morales (GARRORENA MORALES, Angel.
Representación política y Constitución democrática. Madrid: Editorial Civitas, 1991, p. 37-40). 638 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Tradução de Ramón Falcón
Tello. Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 167-168 e 170. O autor menciona ainda como característica a irresponsabilidade. Todavia, essa irresponsabilidade é mitigada pelo papel do povo no governo representativo
contemporâneo, que faz suas demandas chegarem ao Parlamento por intermédio dos partidos políticos e da
opinião pública. Além disso, os representantes passam a prestar contas ao eleitorado (p. 174-175). 639 Orides Mezzaroba ressalta que “a introdução do instituto do mandato representativo, nas suas origens,
visava, acima de tudo, aperfeiçoar e justificar a dinâmica do sufrágio censitário” (MEZZAROBA, Orides. O
humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa brasileira contemporânea. Op. cit., p. 90).
De fato apenas uma parcela da população escolhia os representantes, mas estes, por força do novo modelo
adotado, representavam todos. 640 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução: Karin Praefke-Aires Coutinho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994], p. 265-266.
153
por aquela agremiação. Esse dever não alcança, porém, as deliberações internas dos partidos
ou as alterações no seu programa.641
Para Carré de Malberg não há mandato no governo representativo, porque o
“mandatário” não representa642
apenas os eleitores que o nomearam, mas a unidade da Nação.
Ademais, a relação é irrevogável, não existe responsabilidade perante os eleitores ou
obrigação jurídica de prestar contas e ainda não segue a vontade ou as instruções do
eleitorado. O deputado é livre, independente, decide por si, forma sua opinião e a partir dela
emite seu voto.643
Nicolò Zanon aponta que a teoria constitucional que surgiu da ideia e da prática
revolucionária jacobina é diametralmente oposta à teoria do governo representativo, baseada
na independência e na irresponsabilidade da Assembleia e de seus membros. O mandato
imperativo impõe uma presença direta do povo, tomado como povo concreto, na tomada de
decisão política.644
A ideia de representação, no entanto, pressupõe um mínimo de liberdade na atuação. A
utilização do mandatário como um instrumento aniquila a relação de representação, ao menos
em seu sentido substancial, de representação como atividade. Ressalta Hanna Pitkin que a
promoção do interesse do representado na atividade de representação pressupõe que esse seja
capaz de ação e julgamento e que não se oponha ao que está sendo feito. O conteúdo da
representação deve levar em conta os interesses do mandatário, ainda que a atuação do
641 Reinhold Zippelius chega a fazer uma contraposição entre a exigência de votação aberta no Parlamento,
derivada dos vínculos de lealdade dos representantes e da publicidade de sua atuação e o núcleo da representação
livre: o voto secreto evitaria “a tutela através dos vínculos partidários e de interesses” (Ibid., p. 271-272). 642 Carré de Malberg igualmente questiona a ideia de representação, pois quando o corpo legislativo emite a vontade da nação na realidade a constrói e não a representa. Assim a Assembleia é o órgão da vontade
legislativa da Nação, que a origina com independência, sem subordinação a uma vontade anteriormente formada.
A vontade emitida pelo corpo legislativo é inatacável pelos cidadãos, é uma vontade autônoma. O autor opõe o
governo representativo à democracia (MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. Tradução: José Lión
Depetre. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2001 [1922], p. 938-942 e 916). Também Sieyés
distingue o concurso direto para a formação da lei (democracia) e o concurso mediato (governo representativo).
Em VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit., p. 31. Não obstante, em
respeito à terminologia adotada pelo constituinte, os termos “representação” e “mandato” serão utilizados nesse
trabalho com o conteúdo que lhes empresta a Constituição de 1988. 643 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. Op. cit., p. 925-928. Afirma ainda Carré de
Malberg que a relação se inverte: não é a vontade do povo que determina a vontade do representante, mas a vontade do representante é assumida previamente pelo povo como sua vontade (p. 1034). O desenvolvimento do
regime representativo francês posterior à Revolução, no entanto, implicou a incorporação de elementos que
desviaram um tanto essa independência – o sufrágio universal (masculino), a publicidade das deliberações e a
possibilidade de reeleição dos deputados levam a uma maior influência do corpo eleitoral sobre o corpo
legislativo (p. 1054 e seguintes). Para Angel Garrorena Morales, no entanto, as transformações na representação
levaram à intensificação e ao aprofundamento dos pressupostos burgueses do instituto: dificuldade de converter
a Nação em sujeito, a concepção de Benjamin Constant da liberdade dos modernos, a concepção de Sieyès de
divisão especializada do trabalho (GARRORENA MORALES, Angel. Representación política y Constitución
democrática. Op. cit., p. 20 e ss). 644 ZANON, Nicolò. Il libero mandato parlamentare. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1991, p. 10-12.
154
representante eventualmente pareça contradizê-los. O representante deve ser responsivo e
justificar sua atuação.645
Esse dever de justificação, no entanto, como apontado anteriormente, não é um dever
jurídico. A atuação do representante em sua atividade é apenas parcialmente regulada pelo
Direito, sem que se atinja, no entanto, o seu conteúdo para além dos limites constitucionais.
Por isso não pode haver, no sistema brasileiro, qualquer tipo de determinação sobre o
conteúdo da relação de representação.
Ressalta Maria Garcia que o mandato representativo, implantado na modernidade,
caracteriza-se pela independência do representante, que “não está sujeito a nenhuma instrução
ou determinação preexistente”. Para a autora, essa configuração enfraquece a representação
política, a noção de autodeterminação e o exercício de cidadania.646
Esse é, no entanto, o
modelo assumido pelo constitucionalismo moderno, marcado por Parlamentos liberais com
função de direção política e caracterizados como um poder deliberativo, o que exige “plena
liberdade decisional dos representantes”.647
O conceito de representação política e a concepção do papel do deputado indicam a
relação do representante com todo o povo. Sua legitimidade deriva da eleição, seus poderes
decorrem da Constituição e não há nenhuma vinculação a instruções de seus eleitores.648
Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra se referem à teoria do
mandato discricionário, em que o mandatário atua sem nenhum tipo de restrição: “O mandato
é auferido pela população, mas durante o exercício de suas prerrogativas, os representantes
são livres para tomar as decisões políticas de acordo com suas próprias consciências”.649
O órgão constitucional representativo, formado pelo povo a partir de um procedimento
democrático, age “autonomamente em nome do povo e para o povo”, afirma José Joaquim
Gomes Canotilho. O autor, entretanto, ressalta que a legitimidade do órgão representativo
645 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Op. cit., p. 155. Adiante, a autora afirma:
“representing here means acting in the interest of the represented, in a manner responsive to them. The
representative must act independently; his action must involve discretion and judgement; he must be the one who
acts. The represented must also be (conceived as) capable of independent action and judgemente, not merely
taken care of. And, despite the resulting potential for conflict between representative and represented about what
is to be done, that conflict must not normally take place. The representative must act in such a way that there is
no conflit, or if it occurs an explanation is called for” (p. 209). 646 GARCIA, Maria. Desobediência civil: Direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.
227-229. A autora sublinha a inexistência no sistema brasileiro da revogação de mandato, o que reafirma a
“completa dissociação entre a vontade do representante e do representado”, “de tal sorte que a representação
deixa de apresentar qualquer conotação que o termo faça supor” (p. 228). 647 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 87 e
89. 648 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III – Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Op. cit., p. 233. 649 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. Op. cit.,
p. 49.
155
deriva também do conteúdo de seus atos, revelando um momento normativo, composto pela
atuação do representante no interesse dos cidadãos e a capacidade de perceber os desejos e as
necessidades dos representados e decidir de acordo com isso, e que se manifesta por um
“processo dialético entre representantes e representados”.650
No mesmo sentido, o pensamento de Carlos Santiago Nino, dentro de sua concepção
deliberativa de democracia: para que faça sentido em uma teoria epistêmica, que vê a
discussão pública como elemento central da democracia, a representação política deve ser
como uma delegação para permitir a continuidade do debate iniciado na campanha eleitoral.
Os representantes devem, portanto, atuar comprometidos com as opiniões dos eleitores e
refletir coletivamente o eleitorado.651
Essa responsabilidade é, no entanto, política e não jurídica: os representantes
“respondem politicamente perante o povo que lhes delegou poderes, que lhes entregou um
mandato para ser cumprido” e que renova periodicamente esse mandato ou não, dependendo
do desempenho do representante.652
A Constituição brasileira incorpora tal concepção e embora se refira a mandato
eletivo, não há que se inferir daí uma vinculação jurídica entre o representante e o eleitor, ou
entre o deputado e o conjunto de cidadãos. Inexiste relação representante/representado depois
da designação.653
Não há transferência de poder, pois o corpo eleitoral apenas nomeia os
ocupantes dos órgãos de soberania: o poder desse órgão deriva da Constituição e se exerce,
livremente, nos limites nela instituídos.654
Isso não revela, no entanto, uma concepção de representantes políticos como parte de
uma classe de especial sabedoria, capaz de ler com maior acuidade as questões públicas e
decidir, com uma razão imaculada, em nome do povo. A atuação livre do representante deriva
de uma autorização – livre, imaculada – para tanto.
650 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1999, p. 287-288. 651 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 235-236. Embora o autor se refira aos instrumentos de democracia direta e entre eles à revogação de mandato, não faz sua defesa e
nem o insere em suas propostas para a implementação da democracia deliberativa. 652 ATALIBA, Geraldo. Mudança da Constituição. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 86, p. 181-
186, abr./jun. 1988, p. 182-183. 653 GARRORENA MORALES, Angel. Representación política y Constitución democrática. Op. cit., p. 44. 654 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. Op. cit., p. 930-933 e 982-985. Reinhold
Zippelius afirma que a formação da vontade dos representantes é “imputada ao povo, ou, melhor dito, à
comunidade organizada num Estado”. A escolha dos representantes pelo povo é ao mesmo tempo o fundamento
legitimador do seu poder e o instrumento para que as decisões não se afastem da vontade da maioria do povo
(ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 238).
156
A escolha da composição da representação política pelo corpo eleitoral apresenta uma
dupla face: tem um componente pessoal-plebiscitário e outro material-plebiscitário.655
Esse
segundo elemento pode vir a restringir o princípio da liberdade para o exercício do mandato,
ao vincular a atuação do representante a um programa partidário. A Constituição de 1988
prevê essa restrição ao indicar como conteúdo necessário dos estatutos dos partidos políticos
normas de disciplina e fidelidade partidárias. Isso não chega a configurar, no entanto, um
mandato imperativo mesmo que de vínculo partidário, visto não haver possibilidade de anular
a atuação do representante quando em desconformidade com o partido – as sanções se
limitam a admoestações internas ou à exclusão dos quadros da agremiação.
A possibilidade de revogação dos mandatos eletivos em determinados regimes
políticos é elemento essencial para a configuração democrática e genuína da representação
política.656
Sua aplicação ampla, para além de critérios objetivos, não parece se coadunar, no
entanto, com a adoção do mandato representativo livre.
Javier Pérez Royo indica a configuração do mandato político na Constituição de Cádiz
(1812) e a fixação das características da representação política, reverso da representação
jurídica: o Parlamento é um órgão independente e central da organização constitucional do
Estado, a representação política é fonte de legitimação do poder, a representação se relaciona
com os cidadãos em âmbito geral, “la elección del parlamentario es irrevocable hasta la
finalización del mandato” e o parlamentar deve, politicamente, prestar contas.657
A percepção da democracia em termos negativos – corretamente não assumida pela
Constituição brasileira – ressalta a democracia como um mecanismo de seleção, no qual os
procedimentos constitucionais deslegitimadores (como a revocatória de mandato eletivo, a
responsabilidade política e a destituição) rivalizam em importância com os procedimentos
eleitorais legitimadores.658
655 Segundo análise de Reinhold Zippelius (Ibid., p. 243). 656 Como, por exemplo, na Revolução Russa e durante a Comuna de Paris. Ver VEGA, Pedro de.
“Significado constitucional de la representación política”. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época) 44
(marzo-abril 1985), p. 24-44. Roberto Scarciglia afirma que não há incompatibilidade entre o mandato livre e a
revogação de mandato, pois essa pode configurar um instrumento de democracia direta destinado a afastar representante que abusaram de suas prerrogativas (SCARCIGLIA, Roberto. Il divieto di mandato imperativo.
Contributo a uno studio di diritto comparato. Op. cit., p. 87). 657 PÉREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 394-395. O
autor ressalta que ainda hoje “el parlamentario sigue teniendo un mandato representativo y es un representante
de la nación e no del partido”. 658 Conforme a conceituação de Canotilho (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. Op. cit., p. 285). Maria Garcia defende a adoção da “cassação de mandatos” a partir da
adoção do sistema distrital para possibilitar ao cidadão manifestar sua vontade após a eleição. Para a autora,
“[v]oto sem possibilidade de cassação é direito incompleto, inconcebível numa democracia” (GARCIA, Maria.
“Democracia e o modelo representativo”. In: GARCIA, Maria (org). Democracia, hoje. Op. cit., p. 79).
157
A revogabilidade dos mandatos eletivos, embora desejável do ponto de vista do
controle dos representados sobre os representantes – essencial para a configuração de um
regime democrático –, não poderia ser adotada no Brasil, pela eleição do princípio da
liberdade para o exercício do mandato e pela configuração jurídica da representação política.
Além disso, ao menos em relação aos mandatários eleitos pelo princípio proporcional,
há a impossibilidade de configurar o universo de eleitores capazes de retomar o mandato
conferido pela confiança.659
Isso, ainda, contraria o comando constitucional que determina
que os parlamentares representam o povo e não apenas o seu eleitorado. Não há, no sistema
constitucional brasileiro – assim como na maioria das democracias contemporâneas –, a
admissão normativa da representação de interesses individuais ou parciais.
Uma possibilidade seria a dissolução de toda a casa legislativa, de toda a
representação, a partir de uma manifestação de quebra de confiança dos representados. Em
um país de democracia pluralista, com múltiplas agremiações partidárias, a ameaça constante
de dissolução do Parlamento pode levar a uma instabilidade institucional, sem contar com a
sempre possível manipulação do instituto pelos poderes não institucionais.
Tampouco é coerente estabelecer que uma parcela do eleitorado possa revogar um
mandato que, ao menos segundo a sua configuração jurídica, representa todo o povo. Não há
representação parcial, de interesses ou de grupos. A noção jurídica da representação afasta a
possibilidade jurídica da revogação de mandatos.
Mandato, para Manuel Aragón Reyes e José Luis López, “se configura como un
instrumento institucionalizado cuya finalidade se orienta a la participación indirecta de los
ciudadanos en los asuntos públicos”, o que nada diz sobre o conteúdo da relação de
representação ou da sua possibilidade de sua revogação. Para os autores, o mandato
representativo tem como característica essencial sua irrevogabilidade.660
A ausência de instrumento jurídico para o controle da relação de representação política
e do exercício do mandato pelos representados revela uma noção jurídica de representação
que se confunde com a autorização, dada pelo processo eleitoral, para o exercício do mandato,
por tempo certo, sem qualquer conteúdo e sem qualquer previsão de responsabilidade jurídica.
A questão parece, ao mesmo tempo, árida para o Direito e antipática para a política. Faz-se
necessário talvez pensar uma forma de controle, que não exceda dos princípios
constitucionais, que não aniquile a liberdade para o exercício do mandato. Além disso, de
659 Para Burno Accarino, a remissão à confiança, componente da delegação e da deputação, mostra-se
como um mecanismo de redução de complexidade nas grandes democracias (ACCARINO, Bruno.
Rappresentanza. Op. cit., p. 42). 660 ARAGÓN REYES, Manuel; LÓPEZ, José Luis. Revocatoria del mandato. DICCIONARIO electoral.
San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 1141-1146, p. 1141-1142.
158
alguma maneira, para que esse controle exista, é necessário estabelecer mais um espaço de
intersecção entre o campo jurídico e o campo político, com os riscos aí inerentes. Não parece
democrático regulamentar intensamente a arena política, mas tampouco se mostra satisfatória
a “auto-regulação do mercado político”.
Não se mostra suficiente a alegação de que a possibilidade de não renovação da
confiança, quando na renovação do vínculo pela reeleição. O cidadão, soberano segundo o
texto constitucional, pode escolher entre os candidatos indicados pelos partidos políticos, em
número superior ao montante de cadeiras a preencher. Se isso lhe garante uma certa liberdade
para a recusa de renovação de mandatos quando não há uma ordem pré-estabelecida pelo
partido, no caso da adoção da lista bloqueada, em que o voto se dá exclusivamente no partido,
até mesmo esse controle frágil se esvai.
A noção de democracia em Norberto Bobbio como poder em público pode servir
como fundamento de controle da representação política.661
A renovação ou não da relação de
confiança, para ser um mecanismo de constrição do exercício do mandato, exige uma ampla
gama de informações sobre o comportamento do mandatário, em suas diversas atividades. O
acompanhamento das votações e da participação do representante nas comissões
parlamentares, a divulgação das ações judiciais e disciplinares a que responde, bem como de
sua evolução patrimonial, são essenciais para a formação de um juízo sobre a conveniência de
manter um mandatário no cargo por mais um período.
A divulgação desses dados não pode ficar nas mãos apenas dos meios de comunicação
social, que têm interesses nem sempre coincidentes com o interesse público.662
As instituições
públicas devem publicar de maneira clara e direta essas informações, indispensáveis para a
formação consciente do voto, permitindo o efetivo acompanhamento dos votos dos
mandatários, incrementando suas páginas no sítio das casas parlamentares na internet, com
informações a respeito de sua posição nas votações e sobre processos a que respondam. Dessa
maneira, até mesmo as previsões de tutela do eleitor, com a exclusão da disputa eleitoral de
candidatos não cândidos, tornam-se discipiendas. O próprio eleitor pode avaliar a
conformidade da atuação do mandatário com suas propostas de campanha, analisando se
ainda permanece merecedor de sua confiança.
Claro que para isso se supõe um cidadão consciente e um eleitor interessado. Mas a
Constituição permite – e até impõe – essa suposição, ao assumir o ideal republicano.
661 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro:
Campus, 2000, p. 386 e ss. 662 Para Paulo Bonavides, impõe-se democratizar a mídia, para impedir que se mantenha como força de
sustentação do status quo (BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 47).
159
A irrevogabilidade dos mandatos eletivos impõe-se ao povo, soberano representado
pelos mandatários, e aos partidos, instrumentos para a formação do corpo representativo. As
agremiações partidárias não têm à sua disposição os mandatos nem é a sua vontade que se
exterioriza nos debates parlamentares.
Essa não parece ser a opinião de Orides Mezzaroba e de Antônio Carlos Mendes. Para
o primeiro, “a vontade do Estado é edificada pelo embate político entre as vontades
partidárias, que por sua vez canalizam as vontades individuais”,663
o que sugere a exigência
de total fidelidade do representante ao programa do partido pelo qual foi eleito. Segundo
Antônio Carlos Mendes, o partido é o protagonista do processo eleitoral no Direito brasileiro
e, portanto, a representação deve ser tomada como representação partidária. Deduz isso da
exigência da filiação partidária como uma das condições de elegibilidade.664
A leitura da Constituição não permite essas conclusões. Deriva dos princípios
constitucionais estruturantes a liberdade para o exercício dos mandatos e sua irrevogabilidade.
Se a perda de mandato, pela leitura constitucional, está para além do alcance dos
partidos, a possibilidade de concorrer novamente ao cargo está totalmente vinculada à análise
da conveniência pelas agremiações partidárias. O mandatário não detém o direito de pleitear,
por si, um novo mandato. A filiação partidária e a necessária escolha em convenção são
indispensáveis para que o representante possa buscar uma renovação da relação de confiança
com o eleitor.
663 O autor constrói a sua convicção a partir da crença na democracia partidária, pois afirma o deslocamento do debate político “para o interior dos partidos, onde a vida intrapartidária permite a livre e
democrática participação direta da sociedade em ampla escala” (MEZZAROBA, Orides. O humanismo latino, a
soberania popular e a democracia representativa brasileira contemporânea. Op. cit., p. 98). Sua opinião decorre
do que parece ser sua filiação à teoria orgânica do partido político, em que a organização partidária não se
destina apenas e principalmente à conquista de mandatos, mas a formar consciências, configurando um “espaço
de luta e conscientização política” (MEZZAROBA, Orides. O Partido Político no Brasil: teoria, história,
legislação. Joaçaba: UNOESC, 1995, p. 29). 664 MENDES, Antônio Carlos. Representação proporcional (estudo de um caso). In: FIGUEIREDO,
Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio
Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 89-102, p. 100.
160
2.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO “MANDATO PARTIDÁRIO”
Aqui cabe ainda uma rápida incursão a respeito dos partidos políticos e sua
apropriação pelo texto constitucional, para fundamentar o princípio da liberdade para o
exercício do mandato.665
Partido político, para Edmund Burke, é “un grupo de hombres unidos para fomentar,
mediante acciones conjuntas, el interés nacional, sobre la base de algún principio
determinado en el que todos están de acuerdo”.666
Para Pinto Ferreira, os partidos são “grupos
sociais, geralmente regulados pelo direito público, vinculando pessoas que, tendo a mesma
concepção sobre a forma desejável da sociedade do Estado, se congregam para a conquista do
poder político, para efeito de realizar um determinado programa”.667
Javier Pérez Royo aponta três fases da relação do Estado com os partidos políticos. Na
gênese do Estado contemporâneo (final do século XVII na Inglaterra e final do século XVIII
na Europa Continental), as agremiações partidárias eram vistas como um “mal absoluto”,
incompatíveis com a intenção de concentrar e monopolizar o poder. Com o regime
parlamentar liberal, passam a ser vistos como um “bem desejável”, a partir da visão de Burke
e tendo como premissa a defesa pelos partidos do interesse nacional e a seleção dos membros
mais aptos da sociedade. E com o Estado democrático, o partido torna-se um “mal
necessário”, com a extensão do direito de sufrágio.668
Os partidos políticos tornam-se elemento essencial da representação política,
principalmente na democracia de massas. A juspublicística alemã indica esse protagonismo
dos partidos669
e sua indispensabilidade para operacionalizar a democracia de massas,
tornando-se um canal entre a vontade do povo e a vontade do Estado. Gustav Radbruch, lido
por Manuel García-Pelayo, afirma que o Estado democrático é necessariamente um Estado de
partidos e nesse contexto o povo soberano é formado por grupos e os eleitores são membros
665 Não se fará aqui uma digressão a respeito da história ou da importância dos partidos políticos no Brasil.
Sobre o tema, ver as obras de Orides Mezzaroba (MEZZAROBA, Orides. Gramsci e a hegemonia. In: _____.
(Org.). Gramsci e as relações internacionais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 7-26). MEZZAROBA,
Orides. Introdução ao Direito Partidário Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. MEZZAROBA, Orides.
O humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa brasileira contemporânea. Op. cit., p. 59-101. MEZZAROBA, Orides. O Partido Político no Brasil: teoria, história, legislação. Op. cit.). 666 BURKE, Edmund. Pensamientos sobre las causas del actual descontento. Op. cit., p. 289. Embora o
autor veja com estranheza a existência de parlamentares independentes, afirma que é indigna a servidão cega de
um homem às opiniões de seu partido (p. 290-291). 667 PINTO FERREIRA, Luiz. Manual prático de Direito Eleitoral. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 15. 668 PÉREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 397-403. 669 Georg Jellinek critica o domínio dos partidos, afirmando que os dirigentes partidários se mostram como
donos do país, falseando as decisões da massa, formando uma oligarquia que persegue interesses mesquinhos
(JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 75-76).
161
ou seguidores de um partido e não personalidades individuais e “el diputado no es una
personalidad solamente vinculada a su conciencia y no sometida al mandato imperativo, sino
que es un ejemplar del género partido”.670
Maurizio Fioravanti sublinha a mudança na concepção de partido político, ocorrida a
partir dos anos trinta do século XX, e que vai se refletir na Constituição italiana, ainda que
não plenamente. À noção de partido como uma associação, ainda que particular, sem qualquer
função política além de ajudar na escolha dos representantes, que marca o Estado liberal, se
contrapõe a uma visão do partido político como um órgão de formação da vontade política,
indispensável para permitir que uma sociedade plural e de interesses construa um regime
político e se submeta a uma Constituição. O partido político deixa de ser visto como societas,
configura antes uma universitas, uma instituição informada pela tarefa de realizar uma
determinada visão do interesse público. Tal visão combina com um olhar ético-político sobre
os partidos, vistos como capazes de se fazer Estado, de educar os cidadãos e desenvolver
neles o amor pelo Estado, que une e disciplina.671
Esse papel constitucional dos partidos, de permitir que a Constituição funcione em
uma sociedade formada por interesses organizados contrapostos, permitindo a unidade em
meio à pluralidade, a garantia e a ordem, já havia sido ressaltado por Maurizio Fioravanti. O
670 GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Madrid: Alianza Editorial, 1996 [1986], p. 33-37. 671 FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione e popolo sovrano. La Costituzione italiana nella storia del
costituzionalismo moderno. 2. ed. Bologna: Il Mulino, 2004. A história dos partidos políticos italianos após a
Constituição de 1948 é analisada em NICOLOSI, Gerardo (a cura di). I partiti politici nell‟Italia repubblicana.
Soveria Mannelli: Rubbettino Editore, 2006. No Brasil, o Código Eleitoral de 1932 (Decreto 21.076) se refere
diversas vezes a partido político e afirma, em seu artigo 99 que “Consideram-se partidos políticos para os efeitos
deste decreto: 1) os que adquirirem personalidade jurídica, mediante inscrição no registo a que se refere o art. 18
do Código Civil; 2) os que, não a tendo adquirido, se apresentarem para as mesmos fins, em carater provisório,
com um mínimo de 500 eleitores; 3) as associações de classe legalmente constituídas”. Há uma referência aos partidos políticos no parágrafo nono do artigo 170 da Constituição de 1937 (“o funcionário que se valer da sua
autoridade em favor de Partido Político, ou exercer pressão partidária sobre os seus subordinados, será punido
com a perda do cargo, quando provado o abuso, em processo judiciário”), mas a definição de partido vem no
Decreto-lei 7.586/45, que traz um título específico e dispõe, em seu artigo 109: “Tôda associação de, pelo
menos, dez mil eleitores, de cinco ou mais circunscrições eleitorais, que tiver adquirido personalidade jurídica
nos têrmos do Código Civil, será considerada partido político nacional”. Legalmente há mais duas exigências:
âmbito nacional (art.110, § 1º) e observância dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais (art. 114).
A Constituição de 1946 insere no capítulo dos direitos e garantias fundamentais o dispositivo (art. 141 §13: “É
vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa
ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos
fundamentais do homem”); prevê a imunidade tributária dos partidos (art. 31 V,b), assegura a representação proporcional dos partidos nas casas parlamentares (art. 40, parágrafo único), e dispõe em seu artigo 134 que “O
sufrágio é universal e, direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporcional dos Partidos
Políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer”. A Constituição de 1967 apresenta um capítulo dedicado aos
partidos políticos (art. 149), assim como a Constituição de 1969 (art. 152). A Constituição de 1988 os prevê em
capítulo próprio e os configura como pessoas jurídicas de direito privado, como sustentatava ser mais adequado
Tito Costa desde 1967 (COSTA, Tito. Natureza jurídica do partido político no Brasil. Revista de Direito Público,
São Paulo, n. 1, p. 81-90, jul./set. 1967). Adhemar Ferreira Maciel afirma que no Brasil “o partido político é uma
dádiva da lei”: “o partido político foi dado pela lei; pela lei é alterado; pela lei já andou até sendo tirado...”
(MACIEL, Adhemar Ferreira. Partidos políticos: propaganda eleitoral. Revista de Direito Público, São Paulo, n.
82, p. 174-178, abr./jun. 1987, p. 174-178).
162
autor afirma, no entanto, que logo os partidos se mostraram inaptos para a realização dessa
tarefa, não sustentando nem a unidade nem a diferença.672
Pedro de Vega aponta a mudança no instituto da representação quando da organização
dos partidos políticos e de sua constitucionalização, deixando de ser essencialmente
individualista e permitindo uma ponte entre o representante e o representado a partir desses
espaços de convergência de interesses. O mandato, no entanto, não perde seu caráter
representativo. O autor, contudo, aponta uma mutação constitucional revelada pelo
comportamento dos mandatários, que, além de não se desvincularem dos partidos pelos quais
foram eleitos, atuam de acordo com as determinações partidárias, não fazendo uso das suas
faculdades constitucionais que lhe garantem a liberdade para o exercício do mandato. Em
eventual conflito entre partido ou mandatário, não obstante, deve ser reconhecido o comando
constitucional e o princípio clássico da representação.673
Para Manuel García-Pelayo, as funções dos partidos na realização da democracia de
massas são: mobilizar as massas para a participação e integração no processo democrático;
transformar as orientações e atitudes políticas de setores sociais em programas de ação
política nacional; selecionar as demandas dos eleitores e integrá-las em propostas coerentes de
ação; prover informações, em linguagem acessível, sobre os problemas nacionais;
proporcionar aos eleitores a escolha de representantes para as casas legislativas; e organizar
sua pluralidade de recursos pessoais e materiais para a consecução de seus objetivos.674
O papel dos partidos na formação da vontade coletiva é tratado anteriormente por
Antonio Gramsci, que os vê como intelectuais coletivos capazes de propagar e organizar uma
reforma intelectual e moral. O partido é o protagonista do novo Príncipe, aquele que
“pretende (e está racional e historicamente destinado a este fim) fundar um novo tipo de
Estado”. Aduz, ainda, que três elementos são necessários para a existência de um partido
político: “um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação é oferecida pela
672 FIORAVANTI, Maurizio. Stato e costituzione. Materiali per una storia delle dottrine costituzionali.
Torino: G. Giappichelli, 1993, p. 211-213. Afirmando que contemporaneamente nem o Estado e nem os partidos
possibilitam o encontro de um ponto médio entre a unidade e a pluralidade, e ressaltando a necessidade de
encontrar uma outra via para permitir essa “feliz ambivalência”, o autor sugere: “Che sia per caso ancora il
tempo dei giuristi?”. 673 VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit., p. 35 e 40-41. O autor aponta a prática de assinatura de uma renúncia em branco quando o candidato é incluído na lista partidária,
na Espanha e na França (p. 42). Note-se que não se fala em renúncia tácita. Ainda, afirma que a renúncia anterior
ao mandato é válida se não houver declaração posterior do representante em sentido contrário. Não há obrigação
jurídica que leve à perda do mandato por abandono do partido ou pela expulsão, mas existe uma obrigação moral
(p. 44). 674 GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Op. cit., p. 73-84. Para Cláudio Lembo, as funções
dos partidos sao: estruturação das atividades atinentes ao voto, função integradora-mobilizadora e participativa,
recrutamento do pessoal político, agregação de interesses e demandas e formação de políticas públicas (LEMBO,
Cláudio. Participação política e assistência simples no Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1991, p. 62).
163
disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criador e altamente organizativo”; “o elemento
de coesão principal (...) uma força altamente coesiva, centralizadora e disciplinadora”; “um
elemento médio, que articule o primeiro como o segundo elemento, colocando-os em contato
não só „físico‟, mas moral e intelectual”. Um partido não pode existir por força própria.675
As agremiações partidárias atuam duplamente na representação política,
“enquadrando” eleitores e eleitos, ressalta Maurice Duverger. Os eleitores são enquadrados
ideologicamente, no desenvolvimento da consciência política dos cidadãos promovida pelos
partidos e quando são limitados à escolha entre candidatos pré-selecionados pelos partidos. Os
eleitos são enquadrados pelo contato permanente com os eleitores por intermédio dos
militantes partidários e pela disciplina partidária.676
A extensão do direito de voto faz crescer os orçamentos partidários e o custo das
eleições, e o aparato partidário ganha em importância. Jürgen Habermas ressalta a
substituição das reuniões partidárias pela propaganda sistemática que desde o princípio exibe
a “máscara de Janus de iluminismo e manipulação, informação e publicidade, didatismo e
manipulação”. O partido passa a tentar “integrar”, buscando uma conquista pontual dos
eleitores e “incita-os à aclamação, sem mexer na imaturidade política deles”. O autor ainda
ressalta que a instrumentalização dos partidos e seu domínio pelos chefes partidários levam à
substituição do processo de formação da vontade política “intermediado pela formação da
opinião de um público pensante” pela imposição da vontade da cúpula partidária,
transformando os deputados em funcionários dos partidos que levam ao Parlamento decisões
já tomadas.677
675 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Tradução: Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 [1949], p. 6-7, 22 e 26. Em uma visão contemporânea, da teoria
econômica da democracia de Anthony Downs, os partidos são vistos como “uma equipe de homens que buscam
controlar o aparato de governo, obtendo cargos numa eleição devidamente constituída”, sendo característica de
uma equipe a concordância dos membros sobre todas as suas metas, em uma “ordem única e consistente de
preferência”. A ideologia partidária é apenas uma arma na disputa do poder, que serve como um “atalho” para a
conquista do voto. Os atores políticos são os eleitores, os partidos e os grupos de interesses. Nesse modelo,
“racional no sentido econômico”, os eleitores tomam suas decisões de maneira racional e os representantes são
vinculados aos partidos políticos (DOWNS, Anthony. Uma teoria econômica da democracia. Tradução: Sandra
Guardini Teixeira Vasconcelos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999 [1957], p. 46-47 e 117). 676 DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos. Instituições Políticas e Direito Constitucional –
I. Op. cit., p. 77-83. 677 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 [1961], p. 237-240. A análise contemporânea dos partidos equatorianos por
Cesar Montufar pode ser aplicada ao panorama brasileiro: “los partidos ecuatorianos funcionan más como
maquinarias electorales, orientadas a permitir acceso a la toma de decisiones públicas por parte de grupos
particulares, que como canales efectivos de intermediación y articulación de intereses diversos. Se trata de
organizaciones capacitadas para ganar elecciones, grupos estructurados para poner en marcha campañas
electorales y desplegar actividades proselitistas, que posibilitan que quienes los patrocinan accedan a cargos,
recursos e influencia estatal. Algo así como participar en elecciones se convierte en una vía de acceso directo o
indirecto a espacios de poder por parte de grupos sin vocación para expresar proyectos o visiones colectivas”
(MONTUFAR, Cesar. Antipolítica, representación y participación ciudadana. Ecuador Debate, Quito, n. 62,
164
Max Weber descreve o funcionamento real dos partidos e apresenta o eleitor afastado
de qualquer atividade partidária. Ele só é lembrado durante as eleições. A discussão
ideológica é afastada do espaço público e ocorre apenas entre os maiores dirigentes,678
em
face da burocratização partidária. A política no interior das casas parlamentares deixa de ser
exercida por todos os seus membros e passa a ser fruto da negociação entre os líderes. Os
partidos são financiados por contribuições regulares e pelo mecenato partidário.679
Os
partidos, para o autor, lutam menos pela consecução de metas objetivas do que para controlar
a distribuição de empregos.680
Pierre Bourdieu aduz que o monopólio partidário da “produção e da imposição dos
interesses políticos instituídos lhes deixa a possibilidade de imporem os seus interesses de
mandatários como sendo os interesses dos mandantes”.681
Em uma visão mais positiva desse
cenário, Norberto Bobbio afirma que o partido é o meio termo da relação entre eleitor e o
eleito: “o eleitor é apenas autor, o eleito é apenas ator, enquanto o partido é ator em relação ao
eleitor, autor em relação ao eleito”. As características do mandato livre nessa segunda relação
se esvaem. O autor afirma que em uma democracia de massa os partidos são os soberanos,
mas limitados pela escolha dos eleitores.682
Defensor da fidelidade partidária em seu viés mais forte, Augusto Aras reconhece a
“fragilidade das estruturas partidárias, desprovidas em grande parte, de definições ideológicas
transparentes”. Apesar de defender a titularidade partidária do mandato, o autor assume que
os partidos “carecem de princípios doutrinários consistentes que possam embasar suas ações e
fidelizar os simpatizantes”.683
ago. 2004. Disponível em: www.dlh.lahora.com.ec/paginas/debate/ paginas/debate1126.htm. Acesso em: 03 mar. 2009). 678 Para Jônatas Machado, a disciplina partidária combinada com formas não-públicas de negociação e
decisão política-parlamentar reduz o componente deliberativo da democracia, o que exige um papel crucial dos
meios de comunicação, desde que controlados democraticamente (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de
expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 80). 679 WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política da burocracia e da
natureza dos partidos. Tradução: Karin Bakke de Araújo. Petrópolis: Vozes, 1993 [1918]. capítulos 2 e 5. Para o
autor, o Parlamento garante transparência na administração, o controle sobre o orçamento e o aconselhamento e
a aprovação de leis – funções insubstituíveis em qualquer democracia. A única saída para a oposição honesta aos
Parlamentos seria a decisão sobre promulgação de leis por plebiscitos, sempre limitados a respostas
monossilábicas. 680 WEBER, Max. A política como vocação. In:_____. Ciência e Política. Duas vocações. Tradução: Jean
Meville. São Paulo: Martin Claret, 2002 [1919], p. 59-124. O autor analisa criticamente a dinâmica partidária
estadunidense e denuncia a despolitização do Parlamento a partir da elaboração das listas de candidatos pelos
partidos. 681 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In:_____.
O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 163-207, p. 168. 682 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e a lição dos clássicos. Op. cit, p. 470-
471. 683 ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, p. 176. Pergunta-se: fidelidade a que deve ter o representante? Às tênues linhas programáticas?
165
Orides Mezzaroba afirma que na democracia representativa “partidária” brasileira a
vontade política é construída nos partidos políticos e que “as atividades do partido no
Parlamento devem refletir unicamente a vontade dos seus membros”, e o Parlamento, como o
Estado, deve “reproduzir fielmente a vontade dos partidos, por representarem a própria
sociedade”.684
Isso se mostra incoerente com o tratamento constitucional dos partidos
políticos, que os caracteriza como “mera associação”, como afirma Monica Herman Salem
Caggiano,685
ainda que lhes reserve o monopólio para a indicação de candidatos e lhes inclua
entre os legitimados para acionar o controle concentrado de constitucionalidade.
Eduardo Machado Carrion afirma que os partidos políticos mostram-se um
“instrumento fundamental de organização, na articulação do jogo político e na mediação
política entre o Estado e a sociedade civil”. A partir dessa função dos partidos, o autor afirma
a configuração de uma “democracia de partidos”. Aduz, ainda, que apesar da perda de
exclusividade dos partidos na participação política, as agremiações mantêm seu “papel de
primeira grandeza”. Ressalta, no entanto, como o faz Monica Herman Salem Caggiano, que a
Constituição “não consagra explicitamente, textualmente, diretamente, a função de formação
e organização da vontade popular por parte dos partidos políticos”.686
Parece, portanto, que a configuração democrática desenhada pela Constituição de 1988
é uma democracia com partidos, e não uma democracia de partidos, apesar da afirmação
contrária de Orides Mezzaroba.687
Em face do ordenamento constitucional anterior, Pinto Ferreira expressamente afirma:
“A cadeira parlamentar é do partido, e não especificamente do deputado, senador,
vereador”.688
Luiz Navarro de Britto denuncia a instauração pela Constituição de 1969, com o
684 MEZZAROBA, Orides. O humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa
brasileira contemporânea. Op. cit., p. 98-99. Essa compreensão se ajusta com a compreensão do autor a respeito
do papel do partido político em Gramsci: representação política e “desenvolvimento da consciência política de
seus integrantes e, a partir deles, do grupo como um todo” (MEZZAROBA, Orides. Gramsci e a hegemonia. Op.
cit., p. 17). 685 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004,
p. 143 e 145. 686 CARRION, Eduardo Machado. Partidos políticos e organização partidária. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 132-
137, p. 132, 133 e 136. 687 “O princípio democrático subjacente ao requisito político do pluralismo permite afirmar que a partir da
Constituição de 1988, uma Democracia representativa partidária foi formalmente instaurada no país”. Afirma,
ainda, o autor: “toda vontade estatal deve formalmente ser construída a partir da ação dos partidos políticos”
(MEZZAROBA, Orides. O partido político no Brasil: princípios constitucionais balizadores para criação e
funcionamento. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande;
STRAPAZZON, Carlos Luis (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 45-60,
p. 46 e 48). 688 PINTO FERREIRA, Luiz. Manual prático de Direito Eleitoral. Op. cit., p. 104.
166
agravamento pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei 5.682/71),689
de “uma forma „sui-
generis‟ de mandato imperativo partidário, dentro do multipartidarismo”. Não se trata de
determinar uma organização das correntes de opinião e controlar a autenticidade de sua
manifestação: as “diretrizes estabelecidas” e registradas no Tribunal Superior Eleitoral, às
vezes assinadas por seis membros da Comissão Nacional Provisória, determinavam o voto em
um sentido a ser definido pelas “lideranças”. Os mandatários sequer tinham conhecimento
prévio de suas “instruções”. Tal configuração, com “propósitos ditos „pedagógicos‟” e com
vistas ao fortalecimento dos partidos, ofendem, para o autor, o regime representativo e a
soberania popular e submetem os mandatos eletivos a oligarquias partidárias.690
Isso não
vigora mais.691
Há uma gritante alteração da normativa constitucional.
Não obstante, Gilmar Mendes defende a fidelidade partidária, com a extensão
emprestada pelas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, a
partir da filiação partidária como condição de elegibilidade e da adoção do sistema
proporcional. Aduz até à “deixa” que tinha dado no julgamento sobre a cláusula de barreira:
“Em voto proferido na ocasião, fiz questão de expor posicionamento pessoal sobre o tema,
afirmando a necessidade da imediata revisão do entendimento jurisprudencial adotado pelo
Tribunal desde o julgamento do MS 20.927”.692
Trata-se, segundo Maria Benedita Malaquias
Pires Urbano, da configuração de um mandato imperativo de partido a partir de uma fonte
jurisprudencial.693
Ao tratar da realidade constitucional espanhola, Pedro de Vega afirma que, embora a
Constituição espanhola proíba expressamente o mandato imperativo, a vinculação dos
689 Vale trazer a ressalva de Cláudio Lembo: “A Lei Orgânica dos Partidos Políticos, revogada, em parte, pela Constituição de 1988, é datada de 21 de julho de 1971. Conseqüentemente, o processo legislativo atinente a
esta norma transcorreu em pleno regime autoritário, quando vigia o Ato Institucional nº 5” (LEMBO, Claudio.
Participação política e assistência simples no Direito Eleitoral. Op. cit., p. 73 nr 19). 690 BRITTO, Luiz Navarro. O mandato imperativo partidário. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
Horizonte, n. 56, p. 147-153, jan. 1983, p. 147-153. 691 Ainda que Ricardo da Costa Tjader afirme que “os cargos de Deputado Federal são dos partidos, de
acordo com a aceitação que suas idéias tiveram e, apenas em segundo plano, dos candidatos mais votados de
cada partido, que não pode, assim, deles gozarem livremente e os perderão se não mantiverem mais vínculo com
o respectivo partido, porque uma troca de partido que seja fere o princípio proporcional posto na Constituição e
temos nós que procurar, mesmo que não expressa na lei, uma construção para fazer cumprir esta
proporcionalidade posta na Constituição” (TJADER, Ricardo da Costa. Enfoques jurídico-políticos das trocas de partidos. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio
Grande do Sul, 1990, p. 155-165; 174-175.). De igual maneira, Augusto Aras: “No quadro normativo atual –
Código Eleitoral, arts. 106 a 109, c.c. art. 17, § 1º da Carta Magna de 1988 – o mandato é antes de tudo do
partido” (ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Op. cit., p. 164). 692 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 771 e 772. Nada como o princípio da
inércia jurisdicional para garantir a limitação da jurisdição constitucional... 693 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Titularidade do mandato parlamentar. A propósito da
Resolução n.º 22.610 do Tribunal Superior Eleitoral Brasileiro. Revista de Direito Público e Regulação,
Coimbra, n. 2, p. 121-133, jul. 2009, p. 125.
167
mandatários aos programas partidários e a disciplina partidária férrea acabam por aniquilar o
modelo representativo de mandato.694
Karl Loewenstein já havia feito essa advertência no contexto alemão. O autor, mais
favorável à voz do povo do que às instruções partidárias, aduz que o mandato imperativo
proibido pelas constituições se introduz na prática pela sujeição do representante à disciplina
partidária, com inobservância da Constituição, indicando a perda de prestígio do texto
constitucional.695
O vínculo “imperativo” do representante com o partido político, ressalta Roberto
Scarciglia, pode se dar negocialmente (a partir da aceitação pelo parlamentar da disciplina do
partido e com o estabelecimento de uma obrigação de deixar o mandato à disposição da
agremiação partidária) ou convencionamente (que decorre da prática parlamentar, sem fonte
legal). As “renúncias em branco” não são aceitas pelos tribunais europeus e a existência de
um mandato imperativo convencional não tem configuração jurídica.696
Os defensores do mandato partidário, ou da concepção de uma relação jurídica
vinculativa entre partido e representante em relação à atuação do mandatário, dão à fidelidade
partidária um alcance bastante amplo, em franca dissonância com os textos constitucionais
contemporâneos, notadamente com a Constituição brasileira.
Nesse sentido apresenta-se o pensamento de Gustav Radbruch, conforme Manuel
García-Pelayo: o fato de o deputado eleger-se por conta de seu vínculo a um partido político
cria uma naturalis obligatio entre o deputado e o partido, fazendo ceder seu julgamento
pessoal em face da postura do partido. Ainda que não haja um reconhecimento jurídico dessa
relação, ela deriva da existência e das atribuições dos partidos e a atuação do representante em
oposição a ela leva à destruição de sua carreira política. A posição de Manuel García-Pelayo
também se inclina nessa direção, ao afirmar que no Estado de partidos os ocupantes de cargos
políticos devem obedecer aos critérios do partido e que assim a vontade dos partidos se
transubstancia em vontade do Estado. O autor é enfático ao afirmar que a atuação do deputado
na tomada de decisões está restrita ao âmbito da deliberação partidária: em sua atuação
parlamentar está vinculado totalmente à vontade do partido. O espaço de decisão é deslocado
para os partidos e o Parlamento se revela uma Câmara de partidos. Mas realça que
juridicamente o parlamentar não está sujeito a mandato imperativo do partido nem o grupo
694 VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit., p. 37. 695 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 204-205 e 227. Para o autor, “[l]as
constituciones, a la manera de los avestruces, tratan a las asembleas legislativas como si estuviesen compuestas
de representantes soberanos y con libre potestad de decisión, en una atmósfera desinfectada de partidos” (p.
445). 696 SCARCIGLIA, Roberto. Il divieto di mandato imperativo. Contributo a uno studio di diritto comparato.
Op. cit., p. 74.
168
pode afastar o representante de seu mandato, ainda que possa excluí-lo das futuras listas
apresentadas ao eleitorado.697
Também nesse sentido a opinião de Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, que
ressalta que é desnecessário impor juridicamente a proibição do mandato imperativo entre
partido e representante e que o partido dispõe de meios para uma punição jurídica do infiel,
com a exclusão de seus quadros ou com a não indicação como candidato. Aponta, no entanto,
que “[a] alternativa hoje existente é entre um mandato imperativo de eleitores ou de terceiros,
como grupos econômicos, grupos de pressão, etc., ou um mandato imperativo de partido”.698
Não parece razoável reduzir o deputado ou o senador a um repetidor no Parlamento de
uma vontade já formada no âmbito do partido político. Isso retiraria o caráter deliberativo das
casas parlamentares e transformaria o mandatário em um funcionário,699
voz de uma vontade
alheia, executor de uma vontade anterior,700
não do povo, mas de um “colégio de líderes”,701
diametralmente oposto ao caráter que lhe empresta o governo representativo.
Ressalte-se que, conquanto a Constituição traga em seu bojo a figura da fidelidade
partidária,702
trata-se de um instituto que, embora tenha o mesmo nome, não se confunde com
o previsto no regime constitucional anterior. Revela-se mais como uma relação interna entre o
mandatário e o partido político, que não pode chegar a desvirtuar o mandato representativo.703
O texto constitucional remete ao estatuto dos partidos políticos o tratamento da
fidelidade e da disciplina partidárias. A Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95) traz em seu
697 GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Op. cit., p. 36, 87-88 e 95-96. 698 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 194 e
777. 699 Essa parece ser a ideia de Assis Brasil, conforme sua definição de democracia: “Eu chamo Democracia
ao facto de tomar um povo parte effectiva no estabelecimento das leis a que obedece e na nomeação dos funcionários que têm de executá-las e de administrar o interesse público” (ASSIS BRASIL, J-F. de. Democracia
representativa: do voto e do modo de votar. Paris/Lisboa: Guillard, Aillaud & Cia., 1895, p. 29-30). 700 Assim conceitua funcionário, em oposição a representante, Carré de Malberg (MALBERG, R. Carré de.
Teoría General del Estado. Op. cit., p. 970 e ss). 701 Com a vinculação do deputado à fidelidade partidária, um colégio de líderes decidirá os temas mais
relevantes da Nação, conforme Alberto Rollo e João Fernando Lopes de Carvalho (ROLLO, Alberto e
CARVALHO, João Fernando Lopes de. Fidelidade partidária e perda de mandato. Op. cit., p. 21). 702 Em texto do início da década de oitenta, Nelson de Sousa Sampaio afirma: “Ainda se deve aduzir que
não é compreensível nem aconselhável a imposição de fidelidade partidária quando os Partidos quase não se
distinguem em seus programas” (SAMPAIO, Nelson de Sousa. A justiça eleitoral. Revista Brasileira de Estudos
Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 111-153, jul. 1972, p. 150). Nada demonstra que essa situação alterou-se nesses anos. Ao contrário, parece ter se acentuado. 703 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade partidária: estudo de caso. Op. cit.,, p. 27. O autor é enfático:
“Nem se pode, ademais, transformar o parlamentar em mero autômato, em boca sem vontade, destinado apenas a
expressar, sem independência e violentando a consciência e a liberdade de convicção, as deliberações tomadas
pelos órgãos partidários, nem sempre constituídos por titulares de mandatos conferidos pelo eleitorado” (p. 26).
No mesmo sentido, a argumentação de Nelson de Sousa Sampaio (SAMPAIO, Nelson de Sousa. Perda de
mandato por infidelidade partidária? Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 76, p. 135-152,out./dez.
1982, p. 135-152 e SAMPAIO, Nelson de Sousa. A justiça eleitoral. Op. cit,, p. 114-119, p. 149). Neste segundo
texto, Nelson de Sousa Sampaio afirma que a fidelidade partidária imposta pelo governo militar não é fruto de
cálculo político, “mas inspiração de um teorismo idealizante” (p. 150).
169
capítulo quinto disposições sobre a fidelidade e a disciplina partidárias,704
estabelecendo as
punições que podem ser aplicadas pelos partidos, desde que expressamente previstas em seu
estatuto. A disciplina está definida no artigo 24 da lei: subordinação da ação parlamentar aos
princípios doutrinários e programáticos e às diretrizes estabelecidas pelos órgãos de direção
partidários.
David Fleischer e Leonardo Barreto trazem um estudo da disciplina partidária no
Congresso Nacional nos seis governos posteriores ao regime militar (considerando desde o
governo Sarney até a primeira metade do primeiro governo Lula). A média da disciplina
chega a 92,8% no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, sendo que os
parlamentares do Partido dos Trabalhadores seguem as determinações do partido em 98,9%
das vezes. O menor índice se dá no governo Sarney (88%), com o menor índice sendo
observado no Partido Trabalhista Brasileiro (79,5%). Os autores ressaltam que os interesses
estaduais se sobrepõem à determinação dos partidos em matérias tributárias e
orçamentárias.705
No entanto, por esses dados, a disciplina partidária não é um problema para
a democracia brasileira.
A questão se coloca quando do abandono do partido: a infidelidade partidária. A
Constituição estabelece, ao silenciar, que não cabe perda de mandato eletivo. A Lei dos
Partidos determina a sanção em seu artigo 26: perda de cargo ou função que exerça na casa
legislativa em virtude da proporção partidária.
Mais do que isso seria inserir no texto constitucional brasileiro, uma “cláusula
tchecoslováquia”, inspirada pelo modelo soviético e inserida na Constituição da
Tchecoslováquia após a Revolução de 1917, na lei eleitoral iugoslava de 1921 e na lei
eleitoral austríaca de Tirolo de 1933, com a perda do mandato do trânsfuga, sob o pretexto de
704 Art. 23. “A responsabilidade por violação dos deveres partidários deve ser apurada e punida pelo
competente órgão, na conformidade do que disponha o estatuto de cada partido. § 1º Filiado algum pode sofrer
medida disciplinar ou punição por conduta que não esteja tipificada no estatuto do partido político. § 2º Ao
acusado é assegurado amplo direito de defesa.
Art. 24. Na Casa Legislativa, o integrante da bancada de partido deve subordinar sua ação parlamentar aos
princípios doutrinários e programáticos e às diretrizes estabelecidas pelos órgãos de direção partidários, na forma
do estatuto.
Art. 25. O estatuto do partido poderá estabelecer, além das medidas disciplinares básicas de caráter partidário, normas sobre penalidades, inclusive com desligamento temporário da bancada, suspensão do direito de voto nas
reuniões internas ou perda de todas as prerrogativas, cargos e funções que exerça em decorrência da
representação e da proporção partidária, na respectiva Casa Legislativa, ao parlamentar que se opuser, pela
atitude ou pelo voto, às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos partidários.
Art. 26. Perde automaticamente a função ou cargo que exerça, na respectiva Casa Legislativa, em virtude da
proporção partidária, o parlamentar que deixar o partido sob cuja legenda tenha sido eleito.” 705 FLEISCHER, David; BARRETO, Leonardo. Reformas políticas y democracia en Brasil. In:
ZOVATTO, Daniel; HENRÍQUEZ, J. Jesús Orozco (Coord.).Reforma política y electoral en América Latina
(1978-2007). Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México e Idea Internacional, 2008, p. 315-
352, p. 332-333.
170
reforçar a estabilidade do governo e de moralizar a vida política, com a sanção dos “traidores”
dos eleitores, a partir de um julgamento da perda de mandato por um Tribunal eleitoral.706
Para Augusto Aras, a fidelidade partidária corresponde à lealdade a um partido
político e a observância do programa partidário e das decisões tomadas pelos seus conselhos.
A disciplina, para o autor, é mais ampla.707
O instituto da fidelidade partidária, afirma o autor,
é necessário para evitar o desvirtuamento dos resultados do sistema proporcional e para
fortalecer os partidos políticos, levando a uma maior estabilidade dos governos.708
Possivelmente o seja. Mas esse não é o desenho constitucional.
A fidelidade partidária, constante no dispositivo constitucional referente aos partidos
políticos, mostra-se um instrumento de coesão das agremiações partidárias, mas tem como
limites a natureza da representação, o respeito aos direitos fundamentais dos mandatários, o
respeito à finalidade do instituto da fidelidade e a vedação à cassação dos direitos políticos.709
Novamente com Manuel García-Pelayo, a previsão constitucional de mandato livre garante
juridicamente a liberdade de juízo e de voto do representante – ainda que, politicamente, a
decisão de atuar independentemente das instruções do partido reflita altos custos, até sua
exclusão da classe política.710
Assim, ainda que se considere essencial o papel dos partidos políticos na democracia
contemporânea – não mais entendida como uma democracia de partidos, mas uma democracia
com partidos –, não se pode ignorar o princípio constitucional da liberdade para o exercício
do mandato, que veda qualquer tipo de mandato imperativo. A relação do representante
desleal ou desobediente com o partido pode ter reflexos políticos, uma vez que os partidos
mantêm o filtro de escolha dos candidatos. Mas não tem consequências jurídicas para além
das previstas na Lei dos Partidos Políticos e nos estatutos.
A partir da estrutura política espanhola, de listas fechadas e bloqueadas e com franco
protagonismo dos partidos políticos, Pedro de Vega acentua que, sob a realidade político-
706 Sobre o assunto, ver SCARCIGLIA, Roberto. Il divieto di mandato imperativo. Contributo a uno studio
di diritto comparato. Op. cit., p. 77 e seguintes. 707 ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Op. cit., p. 142. 708 Ibid., p. 113. Vale ainda acentuar a opinião de Óscar Sánchez Muñoz: “Ciertamente, la estabilidad
política es un objetivo en sí legítimo y compatible con el orden constitucional, pero no todo puede supeditarse a la estabilidad, y cuando los medios puestos al servicio de dicho objetivo amenazan con menoscabar principios
constitucionales como la igualdad de oportunidades entre los competidores electorales [e, acrescente-se, como a
liberdade para o exercício do mandato, a autenticidade da representação e a necessária participação das minorias
no debate público e nas instituições políticas], comprometiendo en suma la propia libertad de elección de los
ciudadanos. Entonces, la saludable estabilidad puede degenerar en un peligroso anquilosamiento para el
sistema democrático”. SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones
electorales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 231. 709 Essa a apreciação de Clèmerson Merlin Clève. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade partidária:
estudo de caso. Op. cit., p. 31. 710 GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Op. cit., p. 100.
171
sociológica, a relação de representação se estabelece com os partidos. Ressalta, no entanto,
que a proibição do mandato imperativo e a absoluta liberdade do mandatário revelam a
titularidade pessoal da cadeira parlamentar.711
Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, extremamente contrária à defesa de uma total
independência dos representantes, afirmando a necessidade de adequação da conduta do
mandatário à dinâmica parlamentar e partidária e ressaltando os partidos como protagonistas
na aquisição, no desempenho e na perda do mandato parlamentar, sublinha que a titularidade
do mandato é do parlamentar e que a sua aquisição e conservação são dimensões essenciais do
direito de sufrágio passivo.712
Até mesmo esse alegado protagonismo dos partidos políticos parece questionável.
Enquanto Manuel García-Pelayo apresenta três fases na sequência das formas democráticas:
democracia direta, democracia representativa e democracia de partidos,713
Juan Abal Medina
afirma que atualmente a democracia revela um modelo eleitoral, que sucede o modelo de
massas, em que as agremiações partidárias representavam grupos determinados, marcados por
características que eram o cerne da ideologia partidária.714
Para Bernard Manin, a democracia
hoje é “de audiência”, com a eleição dos representantes sendo informada por suas imagens e
com uma atuação dos políticos como criadores de preferências e não seus porta-vozes.715
Essa “representação de todos os interesses” pretendida pelos partidos catch-all716
leva
a uma hiper-representatividade, sobre-representatividade ou des-representatividade, com a
existência de alianças parlamentares e um amplo leque de posições possíveis de serem
711 VEGA, Pedro de. Significado constitucional de la representación política. Op. cit., p. 38-39. Para o
autor, no entanto, isso demonstra uma contradição: a titularidade e a liberdade do mandato do representante se
opõe à lógica da democracia de partidos e do sistema proporcional. 712 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 103,
145 e 237. A autora defende a preservação do resultado eleitoral e afirma que essas dimensões do direito de
sufrágio passivo podem ceder em face de outros direitos estabelecidos pelo constituinte (p. 238 e 241). Vale
ressaltar que a perda de mandato por transferência de partido está prevista no texto constitucional português. 713 GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de partidos. Op. cit., p. 83. 714 Juan Abal Medina afirma que no modelo de massas (que vai de 1910 a 1970) os partidos se organizam
em torno de grupos pré-políticos (trabalhadores, católicos, camponeses, entre outros) e as diferenças entre eles
tende a assinalar diferenças sociais. O autor aponta ainda que a esse modelo de protagonismo dos partidos
corresponde o sistema eleitoral proporcional. (ABAL MEDINA, Juan. La muerte y la resurrección de la
representación política. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 69-93). Jairo Nicolau afirma que o século XX foi o século de ouro dos partidos. Com a mudança da estrutura social e o esmaecimento dos conflitos
de classe, somados à revolução das comunicações, à massificação do acesso ao ensino, às novas formas de
participação política e à atuação dos movimentos sociais, os partidos perdem gradativamente seu espaço de
atuação na sociedade. Para o cientista político, o Estado atual como um imã, magnetizando os partidos e os
afastando da sociedade (NICOLAU, Jairo. Os desafios dos partidos políticos no Brasil. Palestra proferida no
curso Curto Pensar – SESC-PR, Curitiba, 06 out. 2009). 715 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 274-276. 716 Partidos onde há dissolução do perfil ideológico, com a apresentação de um programa vago, sem
enfoque especializado, pretendendo alcançar votos de todos os lugares (AGUILERA DE PRAT, Cesareo R.
Problemas de la democracia y de los partidos en el Estado social. Op. cit., p. 113).
172
tomadas, em face da impossibilidade de se definir a linha ideológica dos partidos. Por conta
disso, a dinâmica parlamentar pode levar a uma desestabilização partidária. Além disso,
mostra-se irreversível a crise da função pedagógica dos partidos, tanto em relação à
inexistência de uma compressão de mundo a oferecer aos eleitores como ao reconhecimento
da “irrepresentatividade” de muitas instâncias sociais e ideais.717
Na democracia contemporânea a perda da centralidade da política718
e a sociedade
fragmentada (de interesses fragmentados, que não mais se comunicam) não mais se
identificam com partidos de forte conotação ideológica. Os partidos passam a dissolver seu
programa e sua imagem, buscando atingir o maior número possível de adeptos.719
As siglas
pouco significam e podem ser facilmente intercambiadas.
Mas os partidos ainda existem e permanecem com um papel relevante nos sistemas
constitucionais. Juan Abal Medina aponta, no entanto, a crescente autorreferencialidade do
sistema político e do sistema partidário em face do desinteresse do cidadão, e até de sua
concepção negativa de política, e o lugar central da opinião pública.720
A opinião pública721
atua de forma a determinar ao mesmo tempo a aceitação e a justificação do poder do Estado
democrático, cumprindo o papel essencial de legitimação.722
Se os partidos são indispensáveis para a democracia – seja por questões de fundo, seja
por fatores apenas instrumentais – isso não implica, necessariamente, uma relação de
717 ACCARINO, Bruno. Rappresentanza. Op. cit., p. 159-160 e 162. Uma análise sobre a dificuldade dos
partidos políticos para a formação e manutenção de uma identidade coletiva a partir da pluralidade de interesses
dos indivíduos e o consequente surgimento de associações representativas não-partidárias pode ser encontrada
em LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações em sentido estrito no direito privado. São Paulo, 2006. 249f.
Tese (Doutorado em Direito Civil), Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. item 3.1. 718 Zygmunt Bauman sublinha que neste momento (que o autor identifica como pós-modernidade ou
“modernidade líquida”) a individualidade é privatizada e se mostra como antiliberdade e que a separação entre
poder e política se revela sob o nome de globalização (BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução:
Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000). 719 Realidade também percebida por Manuel García-Pelayo, mas que para esse autor não implica o
abandono da democracia de partidos 720 Juan Abal Medina aduz que os governos atuais estão em consonância com o novo perfil do cidadão e
que aquilo que “seguimos llamando democracias, con su pluralidad de partidos y elecciones periódicas, se
parece cada día más al ideal „posmo‟ del autoservicio o del centro comercial: lugares fríos e impersonales en
los que nadie irá a buscar el „sentido de su vida‟, pero donde todos nos sentimos más o menos cómodos”
(ABAL MEDINA, Juan. La muerte y la resurrección de la representación política. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 105-114). 721 Jürgen Habermas trata da história da opinião pública, tomando-a como cristalização do
autoentendimento da função da esfera pública e aponta o surgimento da expressão na segunda metade do século
XVIII, embora indique que anteriormente já havia na Inglaterra o termo general opinion (HABERMAS, Jürgen.
Mudança estrutural da esfera pública. Op. cit., p. 110 e 41). Jônatas Machado aponta a origem da opinião
pública algumas décadas antes da Revolução Francesa, a partir das ideias iluministas e da invenção da imprensa,
com a criação de uma esfera não teológica de discussão pública, formada pelas reuniões de poetas, cientistas e
filósofos (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 51-52). 722 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. Cit., p. 346-347.
173
representação entre eleitores e partidos. O sujeito da representação é o mandatário, ainda que
precise estar vinculado a um partido político para concorrer ao cargo eletivo.
No sistema constitucional brasileiro, os partidos políticos são figuras importantes do
sistema político,723
principalmente em face da adoção do princípio proporcional.724
Mas não
tão centrais a ponto de titularizarem a relação de representação política.725
São meios para a
construção dessa relação, mas não para a sua manutenção.
A afirmação de que os partidos são os titulares dos mandatos e que a infidelidade
partidária é uma fraude à vontade do eleitor parte de uma premissa equivocada: a de que o
eleitor escolhe o representante confiando na realização das propostas do partido político ao
qual o candidato é filiado.
O Brasil não é um Estado de partidos, a não ser que se compreenda essa expressão,
simplesmente, como o reconhecimento constitucional das agremiações partidárias que
monopolizam a apresentação de candidaturas.726
Quando se nega a configuração da
democracia brasileira como uma democracia partidária, afirma-se que os partidos políticos
não protagonizam as decisões políticas, as construções de visões de mundo ou de projetos
políticos.
Não se afirma aqui que os partidos não devem protagonizar o debate político.
Sustenta-se que não protagonizam. Além disso, deve-se ressaltar que a Constituição não os
coloca nessa posição. Assim, ao menos no âmbito do dever-ser juridicamente considerado – e
723 Não parece haver, no entanto, espaço para se afirmar que o Brasil vigora uma “partidocracia”, ainda que
Fernando Gustavo Knoerr aponte alguns institutos (voto obrigatório, financiamento público dos partidos,
distribuição de cargos na Administração Pública vinculados aos partidos, vedação às candidaturas independentes e influência partidária nos meios de comunicação social) como seus instrumentos (KNOERR, Fernando Gustavo.
Fidelidade partidária: o controle ético no exercício do mandato. . Curitiba, 2002. 305f. Tese (Doutorado em
Direito do Estado). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 132-135). 724 Para Gilberto Amado, “[s]em os partidos, a representação proporcional é um aparelho morto, uma usina
parada. Será uma construção aérea, um castelo oco erguido no ar como essas arquiteturas tecidas nas nuvens pelo
sonho” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p. 73). O autor se
dedica ao tema, afirmando que os partidos são grupos que buscam soluções para problemas, captando as
correntes da opinião pública, mas ressalva que possuem uma função essencialmente eleitoral em sistemas
presidencialistas. Enfatiza, no entanto, que sem os partidos “as massas desorientadas não saberão como votar; o
seu voto, por mais bem apurado que seja, não terá significação alguma” (p. 108-109, 111 e 122). 725 Para analisar a centralidade ou não dos partidos políticos na formação da vontade eleitoral, vale examinar o conteúdo dos programas partidários e eleitorais nos meios de comunicação de massa. Há, ao que
parece, uma primazia da imagem em relação ao conteúdo da mensagem, e essa imagem não é vinculada a uma
entidade abstrata (o partido), mas se refere a pessoas concretas, os candidatos ou potenciais candidatos (ver
MIGUEL, Luís Felipe. Mídia e opinião pública. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.) Sistema
político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 331-341, p. 331-341). 726 Essa talvez seja a única forma de compreender a afirmação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho de que
desde 1946 o Brasil vive uma democracia de partidos, característica que não se afastou nem durante a vigência
da “Revolução de março” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constiuição Brasileira. 5.
ed., rev. e atual. São Paulo: Saravia, 1984, p. 7 e 210). Certamente uma forma bastante peculiar de entender
“democracia” e “democracia de partidos”.
174
não a partir de uma visão perfeccionista – a realidade política brasileira não está tão distante
da previsão normativa.
Partindo-se dessa premissa, a fidelidade partidária e a natureza do mandato devem ser
entendidas de acordo com o ordenamento constitucional dispõe – e não em conformidade com
o que se deveria ter estipulado, sob pena de ser comprometida a força normativa da
Constituição não apenas nesta matéria, mas em outras também.727
Celso Ribeiro Bastos aponta que fidelidade partidária importa o dever do mandatário
de não deixar o partido e não se opor às diretrizes, enquanto disciplina se refere à fidelidade
ao programa e aos objetivos, o respeito às regras do estatuto e aos deveres, bem como a
observância de um comportamento probo no exercício do mandato e de funções partidárias.
Para o autor, a fidelidade que está na Constituição de 1988 é distinta da fidelidade do texto
anterior, que configurava “um reencontro com o mandato imperativo”. E aduz: “Jamais
institutos técnicos-jurídicos poderão se substituir plenamente à força sancionadora do
eleitorado que é, ainda, o mais legítimo”.728
Sublinha Fernando Gustavo Knoerr que a compreensão da infidelidade partidária
como hipótese de perda de mandato, além de indicar um certo retorno ao modelo de mandato
imperativo, beneficia os interesses das cúpulas partidárias, que podem ser influenciadas por
interesses inclusive externos. Afirma que tal visão implica o afastamento da liberdade para o
exercício do mandato, o que “elimina a possibilidade da diferença, da divergência, que de há
muito fundamenta a democracia”. Aduz, ainda, que a representação da vontade dos partidos
pelos mandatários viola a noção de representação política.729
A aceitação dessa visão de fidelidade partidária ofende o quarto princípio constitutivo
dos governos democráticos – a submissão das decisões políticas a um processo de debate.730
A titularidade do mandato eletivo é do representante e não dos partidos, pois esse é o
desenho constitucional. Trasladar essa titularidade para as agremiações partidárias, apesar do
texto constitucional, é negar o que o constituinte diz. Pensar em um direito fundamental –
como o direito de sufrágio passivo – como um direito vinculado a uma entidade supra-
individual não parece harmonizar-se com o ordenamento jurídico brasileiro. Corre-se o risco,
ainda, de trazer elementos corporativos para a sociedade.
727 Conforme a sabedoria popular, porteira onde passa um boi, passa uma boiada. 728 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São
Paulo: Saraiva, 1989. v. 2, p. 613-615. 729 KNOERR, Fernando Gustavo. Fidelidade partidária: o controle ético no exercício do mandato. Op. cit.,
p. 98-99 e 247. Para o autor, a fidelidade partidária que impõe a perda de mandato pode levar também à redução
da efetividade do controle do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo (p. 228). 730 Conforme os princípios apontados por Bernard Manin, já apresentados (MANIN, Bernard. Los
principios del gobierno representativo. Op. cit., p. 17).
175
Augusto Aras defende desde 2006 a possibilidade de perda de mandato por
infidelidade partidária sem a necessidade de alteração da Constituição, indicando a
necessidade de “dar efetividade às normas do artigo 17 §1º/CF e dos estatutos que a
prevêem”. O autor afasta os óbices de não previsão da hipótese do artigo 15731
(afirmando que
outras hipóteses aceitas tampouco o estão, como a que determina a perda de mandato por
captação ilícita de sufrágio) e do artigo 55,732
afirmando que esse dispositivo constitucional se
refere à atividade parlamentar e não à atividade partidária do mandatário, defendendo a
impossibilidade de interpretação extensiva para alcançar a relação do representante com o
partido.733
Um exercício argumentativo não enfrentado por Marcos Ramayana, que escreve
depois da decisão do Poder Judiciário. O autor expressamente afirma que “[a] Resolução
[22.610/07 do Tribunal Superior Eleitoral que “regulamenta” o processo de decretação de
perda de mandato por desfiliação partidária sem justa causa] demanda urgente alteração dos
arts. 17 e 55 da Constituição Federal para sua adequação aos novos rumos e diretrizes da
jurisprudência e preservação do sistema eleitoral, que se afigura em certo molde ao da lista
fechada”.734
735
731 Art. 15. “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I -
cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III -
condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a
todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos
do art. 37, § 4º”. 732 Art. 55. “Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições
estabelecidas no artigo anterior; II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; III
- que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que
pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V
- quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. 733 ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Op. cit., p. 251, 312, 316 e
322. Auro Augusto Caliman afirma, em sentido contrário, que embora a fidelidade esteja prevista no artigo 17,
ela não consta nos artigos 55 e 56, e afirma que essa “por ora, parece ser a certeza jurídica, até que seja,
eventualmente, incluída a fidelidade partidária no rol das hipóteses de perda de mandato”. A saída, apontada pelo
autor, seria aproveitar a abertura do dispositivo constitucional sobre o decoro parlamentar e estabelecer, no
regimento interno das casas legislativas, o abandono do partido como hipótese de quebra de decoro (CALIMAN,
Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. Op. cit., p. 123 e 141). 734 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 9. ed, rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p.
319. O autor elogia a consulta que deu origem aos mandados de segurança e à resolução: “a edição da consulta
foi altamente moralizadora e serviu para apressar a votação da Reforma Política no Brasil” (p. 304). 735 O Senado Federal aprovou em 17 de outubro de 2007 – com as duas votações acontecendo no mesmo
dia, com intevalo de minutos – a Proposta de Emenda à Constituição 23/07, que afirma a titularidade partidária
dos mandatos (inserindo o inciso V no artigo 17), adiciona parágrafos (o sexto com a seguinte redação: “Perderá
automaticamente o mandato o membro do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que se desfiliar do partido
pelo qual tenha sido eleito, salvo no caso de extinção, incorporação ou fusão do partido político”), trata do
procedimento de perda de mandato para cargos do Poder Executivo e insere um inciso no artigo 55, que trata da
perda de mandato de deputado ou senador (“VII – que se desfiliar do partido político pelo qual tenha sido eleito,
salvo no caso de extinção, incorporação ou fusão”). A proposta de emenda à Constituição recebeu o número
182/2007 na Câmara de Deputados e está parada desde 1º de abril de 2008 na Comissão de Constituição e
Justiça, com parecer pela sua admissibilidade.
176
Ou seja: impõe-se modificar a Constituição para que ela se adapte à decisão do Poder
Judiciário. Depois de anos de críticas às alterações constitucionais para que o texto maior se
conformasse às políticas de governo, agora se apresenta um novo flanco de batalha: as
alterações silenciosas – ou nem tanto – dos magistrados, que desprezam as decisões
constituintes para construírem uma Constituição “melhor e mais coerente” com o seu próprio
pensamento. E quem nos salvará dos salvadores?
2.3 A IMPOSSIBILIDADE DE PERDA DE MANDATO POR DESFILIAÇÃO
PARTIDÁRIA
Outro aspecto do desenho constitucional do princípio eleitoral da liberdade para o
exercício do mandato está na ausência de previsão de perda de mandato por desfiliação do
partido político pelo qual o representante foi eleito.736
A Constituição portuguesa prevê a hipótese de perda de mandato por “transfugismo”:
o representante que deixa o partido pelo qual foi eleito e passa a compor os quadros de outra
agremiação se sujeita à perda de mandato.737
O abandono do partido, sem inscrição posterior
em outro, não importa o afastamento do mandato, em face do “princípio da tipicidade das
causas de perda de mandato”, apontado por Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.738
Esse ponto da questão colide com o “desvelamento” pelo Poder Judiciário brasileiro
da imposição constitucional da perda de mandato para o representante que se desfilia do
partido pelo qual foi eleito, como decorrência da adoção do sistema proporcional para a
eleição de deputados e vereadores,739
em evidente contradição com o texto e com o
significado da Constituição, como será demonstrado.
736 A perda de mandato está expressamente regulada pela Constituição e somente pode dar-se nas hipóteses
taxativamente previstas (CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. Op.
cit., p. 192). 737 Constituição da República Portuguesa. Artigo 160.º Perda e renúncia do mandato. “1. Perdem o
mandato os Deputados que: a) Venham a ser feridos por alguma das incapacidades ou incompatibilidades
previstas na lei; b) Não tomem assento na Assembleia ou excedam o número de faltas estabelecido no
Regimento; c) Se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio; d) Sejam judicialmente condenados por crime de responsabilidade no exercício da sua função em tal pena ou por
participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista. 2. Os Deputados podem renunciar
ao mandato, mediante declaração escrita”. 738 A autora ressalta a necessidade de previsão expressa da perda de mandato na Constituição (URBANO,
Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma teoria político-
constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 243). 739 O Tribunal Superior Eleitoral, com o amparo do Supremo Tribunal Federal, acabou por estender a perda
de mandato por infidelidade partidária também para os eleitos pelo sistema majoritário por meio da resposta à
Consulta 1407. Ressalta Roberto Scarciglia: “La perdita del mandato elettorale, come ogni altra forma di
cessazione, è da ritenersi legittima soltanto nelle ipotesi in cui la stessa sai prevista dalla legge in modo
177
A fidelidade partidária surge no cenário constitucional brasileiro com a Constituição
de 1969,740
que traz em seu artigo 35 uma quinta hipótese de perda de mandato de deputado
ou senador, ao lado da infração aos impedimentos e proibições constitucionais, da quebra de
decoro parlamentar (somado ao procedimento “atentatório das instituições vigentes”, não
previsto no texto anterior), do não comparecimento à terça parte das sessões ordinárias da
casa legislativa (mais da metade, segundo a Constituição de 1967), e da perda ou suspensão
dos direitos políticos (apenas a perda estava prevista no texto constitucional anterior): a
prática de atos de infidelidade partidária.741
A descrição desses atos é prevista no parágrafo
único (parágrafo quinto após a Emenda Constitucional 11/78) do artigo 152 da Constituição
de 1969: oposição, por atitudes ou pelo voto, às diretrizes legitimamente estabelecidas pelo
partido ou abandono do partido pelo qual foi eleito. A perda de mandato é decretada pela
Justiça Eleitoral mediante representação do partido, assegurada a ampla defesa.
Para que se perpetue a memória das coisas, a inserção desse dispositivo no texto
constitucional coincide com um período de restrição das liberdades, de tentativa de
aniquilamento da esfera política e de empobrecimento do debate público. A ditadura impõe a
dissolução dos partidos políticos com o Ato Institucional 2, de 27 de outubro de 1965 e no
mesmo dia edita o Ato Complementar 1 que criminaliza a manifestação política de pessoas
com os direitos políticos cassados. Com o Ato Complementar 4, de 20 de novembro do
mesmo ano, permite a criação pelos membros do Congresso Nacional de agremiações (que
não podem utilizar o nome “partido”, símbolo, nome, legenda ou sigla de partidos anteriores)
e cria também a sublegenda, alterando o sistema eleitoral com vistas a enfraquecer uma
eventual oposição, tudo com previsão apenas para a eleição de 1966. Em 13 de dezembro de
tassativo” (SCARCIGLIA, Roberto. Il divieto di mandato imperativo. Contributo a uno studio di diritto
comparato. Op. cit., p. 143). Para o autor, a sanção jurídica ao trânsfuga, com exceção de Portugal, se dá apenas
nos países que adotam o modelo socialista e naqueles autoritários ou com forte caracterização religiosa, como o
Iraque e o Afeganistão (p. 156). 740 A denominada “Emenda Constitucional 1, de 1969” será tratada nesse texto como “Constituição de
1969”, pois reescreve todo o texto constitucional. Trata-se, assim, de nova Constituição, outorgada pelo regime
de exceção. Acompanha-se o argumento de Nelson de Sousa Sampaio, de que a “emenda” não foi feita segundo
a Constituição, nem pelo órgão competente, nem pelo procedimento prescrito: “Sob o nome de emenda, o que a
Junta [Militar] fez foi outorgar uma nova Constituição, não importando que o seu conteúdo coincida, na maior
parte, com o da Carta política de 1967”. SAMPAIO, Nelson de Sousa. Perda de mandato por infidelidade
partidária? Op. cit., p. 151. 741 Nelson de Sousa Sampaio afirma que a regra da fidelidade partidária era inconstitucional em face da
própria Constituição de 1969 que a previa, tendo como premissa a possibilidade de incongruências na mesma
“camada normativa” e a existência de normas de pesos ou importâncias diferentes dentro da Constituição. Dessa
maneira, a regra de fidelidade partidária cederia em face das normas que estatuíam a soberania popular, a
inviolabilidade dos parlamentares, a liberdade de convicção, a configuração dos parlamentares como
representantes do povo, o regime representativo e democrático e o princípio da legalidade (Ibid., p. 135-152).
Para Lauro Barreto, a fidelidade partidária, ao lado do voto vinculado, da prorrogação de mandatos, dos
casuísmos eleitorais e dos senadores e prefeitos biônicos, entre outros, configura um artifício jurídico do golpe
de 64 (BARRETO, Lauro. Investigação judicial eleitoral e ação de impugnação de mandato eletivo. Bauru:
Edipro, 1999, p. 17 e 18).
178
1968 vem o Ato Institucional 5, com os seus consideranda e sua suspensão da Constituição de
1967 atingindo o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e as garantias individuais.
Com o Congresso em recesso, o assim autodenominado poder revolucionário outorga
aquela Constituição que estabelece a fidelidade partidária.742
No ano seguinte, a Lei
Complementar 5 estabelece os casos de inelegibilidades, incluindo uma hipótese
“contagiosa”: são inelegíveis os cassados por atos institucionais e seus cônjuges (!). Além
disso, impõe a inelegibilidade daqueles “que tenham sido condenados ou respondam a
processo judicial,743
instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade
judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a
economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio (...) enquanto não
absolvidos ou penalmente reabilitados” (artigo 1º, I, n).
Esse o cenário da constitucionalização da fidelidade partidária.744
Esse o momento
político.745
E as manifestações judiciais a respeito do tema reforçam sua aplicação ainda
quando da abertura para o pluripartidarismo.
Em 20 de dezembro de 1979, a Lei 6.767 altera a Lei Orgânica dos Partidos Políticos,
extingue as agremiações criadas a partir do Ato Complementar 4 e permite a constituição de
partidos políticos. Traz ainda a seguinte disposição: “Perderá o mandato o senador, deputado
federal, deputado estadual ou vereador que, por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes
742 Ao tratar dos decretos-leis, indicando-os como meios para “rotinizar o regime militar”, Clèmerson
Merlin Cléve aponta a ajuda da “manipulação de uma maioria parlamentar dependente, inescrupulosa e indigna,
que só se mantém coesa em função dos interesses que representa e do instrumento autoritário chamado de
fidelidade partidária”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito em relação. Ensaios. Curitiba: Gráfica Veja, 1983,
p. 56-57. Para José Tarcizio de Almeida Melo, a fidelidade prevista constitucionalmente configurava uma “disposição antidemocrática, que impunha o poder castrador da cúpula sobre a consciência cívica do filiado
independementemente de se tratar de norma estatutária do partido”. MELO, José Tarcízio de Almeida. Questões
polêmicas na Justiça Eleitoral: fidelidade partidária, direitos das coligações, duplicidade de filiação, propaganda
extemporânea e vida pregressa desabonadora. Revista de doutrina e jurisprudência do Tribunal Regional
Eleitoral de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 17, p. 11-34, 2008, p. 11-34, p. 11. 743 Essa hipótese de inelegibilidade quase ressuscitou. O Tribunal Superior Eleitoral cogitou aplicar uma
“condição de elegibilidade implícita” para afastar da disputa eleitoral candidatos que não fossem ou nem
parecessem cândidos, que tivessem contra si ações judiciais. O debate sobre os “fichas-sujas” acabou com a
decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 144, em que os
ministros decidiram se conformar à Constituição e sua reserva de lei complementar para a definição das
inelegibilidades. 744 Ressalte-se, no entanto, que em seus comentários à Constituição de 1967, Pontes de Miranda defendia a
autorização constitucional aos partidos para impor a perda de mandato aos representantes que se manifestassem
contrariamente à sua agremiação, em face do princípio da sinceridade partidária (PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. t. 4, p. 613). 745 A previsão de perda de mandato por infidelidade partidária é defendida pelo senador Tarso Dutra: “a
perda de mandato para o deputado, senador ou vereador que renuncia ao partido é um imperativo incontrolável
de recuperação da moralidade política nacional, como sanção válida contra o carreirismo político” (Publicado no
Diário do Congresso Nacional em 26 de junho de 1971, seção II, segundo PINTO FERREIRA, Luiz. Manual
prático de Direito Eleitoral. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 102). Manifestação de um Congresso Nacional sob o
Ato Institucional 5.
179
legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária, ou deixar seu partido, salvo
para participar, como fundador, da constituição de novo partido”.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que a Constituição de 1969 adota o modelo
de “Democracia pelos partidos” e que a “exigência de fidelidade partidária traduz o
imperativo de velar pelo respeito à decisão popular”. Em análise específica do dispositivo
constitucional mencionado, aduz que “pelo texto acima [art. 152, § 5º], o representante está
preso ao partido, do qual servirá de porta-voz”.746
Em face da não repetição no texto legal da referência à eleição pelo partido, o Tribunal
Superior Eleitoral é provocado na consulta 6319 – respondida em 02 de fevereiro de 1982 –
sobre a possibilidade de mudança de partido por parlamentar não eleito pela legenda em que
se encontra, vez que os novos partidos foram criados após a eleição. Alega-se a
inconstitucionalidade do dispositivo da lei que possibilita a mudança apenas para a fundação
de nova agremiação partidária. O relator, Ministro Souza Andrade, considera que o texto
constitucional impõe a perda de mandato apenas pelo abandono do partido que propiciou a
eleição do parlamentar. A eleição do representante pelo partido é condição para a infidelidade
partidária, seja por desrespeito às diretrizes partidárias, seja por desligamento do partido. Para
o relator, o compromisso do mandatário era com a agremiação pela qual havia sido eleito –
extinta a agremiação, queda extinto o compromisso. Não declara a inconstitucionalidade do
dispositivo, mas ressalta que deve ser lido de acordo com a Constituição, que se refere ao
partido sob cuja legenda o representante foi eleito.
O Ministro Décio Miranda inaugura a divergência. Afirma que o comando
constitucional “traduz um sistema, em que a fidelidade partidária é considerada essencial à
prática das instituições republicanas” e que a aliança ideológica dos representantes se refez
com os partidos fundados. “O acidente, que foi a extinção dos partidos originais, não infirma
o essencial e o permanente, que é o princípio constitucional da fidelidade partidária”. Assim,
afirma o ministro, há perda de mandato porque o dispositivo constitucional não foi revogado.
O então presidente do TSE, Ministro Moreira Alves, vota para desempatar afirmando a
reativação do vínculo partidário com os novos partidos criados, declarando a perda de
mandato por infidelidade partidária em caso de desfiliação.
Neste caso o Tribunal Superior Eleitoral aplicou a lei no lugar da Constituição. A
Constituição – ainda que aquela Constituição – expressamente dispunha a vinculação do
representante ao partido pelo qual havia sido eleito. A Lei 6.767/79 foi além, estendendo o
746 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constiuição Brasileira. Op. cit., p. 210, 211 e
583.
180
alcance da fidelidade, e prevaleceu. O Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela lei em
detrimento da Constituição, talvez aplicando o princípio da posterioridade – lei posterior
revoga lei anterior – sem considerar a supremacia constitucional. Realizou-se a leitura da
Constituição pelas lentes da legalidade, dando uma interpretação da Constituição conforme à
lei747
.
O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal voltam a ser provocados
sobre a matéria quando da disputa no Colégio Eleitoral para o sucessor do Gen. João Batista
Figueiredo. A consulta 7135 indaga sobre a possibilidade de voto no Colégio Eleitoral em
candidato distinto daquele registrado ou indicado pelo partido político ao qual o delegado está
filiado. O Procurador-geral Eleitoral, Inocêncio Mártires Coelho, afirma que “constitui
elementar dever partidário, para os filiados a determinada agremiação, o de votarem nos
candidatos escolhidos pelas respectivas Convenções”, e com muito mais razão tal
obrigatoriedade atingiria os parlamentares eleitos sob a sua legenda. Ressalta, ainda, que, de
acordo com a sua leitura, o voto em candidato diverso não configura desrespeito à diretriz
fixada pelo partido, mas descumprimento de exigência de caráter constitucional – artigo 152,
§2º, IV. Se o partido não registra candidato, porém estabelece uma diretriz no sentido de
determinar o candidato apoiado, resta também configurado o dever de fidelidade. O Tribunal
Superior Eleitoral assim não entende e edita a Resolução 11.985/84 dispondo que “[n]ão
existe norma constitucional ou legal que restrinja o livre exercício do sufrágio dos membros
do Congresso Nacional e dos delegados das Assembleias Legislativas dos Estados no Colégio
Eleitoral, de que tratam os arts. 74 e 75 da Constituição, ou que lhe prescreva a nulidade por
violação da fidelidade partidária”, ainda que haja a previsão de voto no candidato indicado
pelo partido nos estatutos das agremiações.
O Supremo Tribunal Federal recebe um mandado de segurança preventivo impetrado
pelo deputado federal Herbert Victor Levy (do Partido Democrático Social) que, baseado na
garantia constitucional da liberdade de consciência e na “impossibilidade de se privar um
cidadão, ainda mais quando representante do povo que o elegeu, de direito, seu, por força de
convicção política”, busca afastar a anulação do seu voto no Colégio Eleitoral se fosse
atribuído ao candidato de oposição ao seu partido. O impetrante desiste do mandado de
segurança a partir da Resolução 11.985/84 do Tribunal Superior Eleitoral. E o Supremo
Tribunal Federal acaba não se manifestando.
747 Quem sabe isso era imposto pela prática jurídica cotidiana, que desprezava a Constituição, que permitia
a suspensão de seus principais dispositivos por atos institucionais. Triste é constatar que esse desapreço pela
Constituição e pela teoria jurídica – que ainda soa – não encontrava eco apenas nos quartéis e nas salas do Poder
Executivo: reverberava também junto aos edifícios dos tribunais.
181
Veio a distensão democrática, a abertura e a situação constituinte intensificada pelo
movimento pelas eleições diretas para Presidente. A ideia de Direito do povo brasileiro não
encontrava eco nas disposições constitucionais. Era hora de mudar. Inclusive em relação aos
partidos e aos representantes.
A fidelidade partidária, estabelecida de maneira explícita na Constituição de 1969, é
afastada do texto constitucional pela Emenda 25/85. Essa emenda visa varrer do ordenamento
jurídico o “entulho autoritário” e marca o início da Nova República. Junto com a fidelidade
partidária,748
é afastada a nomeação de prefeitos municipais pelo Governador do Território
(esse nomeado pelo Presidente da República), a idade mínima de elegibilidade para a Câmara
de Deputados é reduzida para 18 anos, o Distrito Federal passa a ter representação na Câmara
e no Senado, a eleição para Presidente e Vice-presidente torna-se direta, os analfabetos
recuperam o direito de voto afastado pela Lei Saraiva em 1881 (mas mantém-se sua
inelegibilidade), o sistema distrital misto instituído pela Emenda Constitucional 22/82 é
revogado, estabelece-se a liberdade para a criação dos partidos políticos e há a previsão de
cláusula de barreira.
Com a elaboração da nova Constituição, a fidelidade partidária não encontra guarida.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 afasta conscientemente a fidelidade
partidária do texto constitucional.749
A possibilidade de perda de mandato por abandono do
partido pelo qual o representante foi eleito não fica implícita nem decorre do sistema. É objeto
de uma escolha expressa, explicitada nos trabalhos das subcomissões, comissões, na
sistematização e em plenário. O silêncio aqui é eloquente.750
O processo de construção do texto constitucional, sem texto base e com oito comissões
temáticas divididas em três subcomissões cada, leva eventualmente a discussões múltiplas
sobre diversas matérias. Em relação à fidelidade partidária, debruçam-se inicialmente sobre o
748 Para Ricardo da Costa Tjader, a fidelidade partidária foi afastada para permitir que “qualquer
parlamentar pudesse livremente transferir-se para nova agremiação partidária, quer preexistente ou em processo
de fundação”, para alcançar o pluripartidarismo (TJADER, Ricardo da Costa. Enfoques jurídico-políticos das
trocas de partidos. Op. cit., 155-165 e 174-175, p. 159). 749 Ao fazer referência aos debates constituintes e ao necessário respeito à decisão lá tomada, não se
assume uma postura originalista nem fundamentalista. Primeiro, porque não há como trazer essas categorias da
prática judicial estadunidense para uma realidade em que o texto constitucional recém completou vinte anos. Em segundo lugar, muitos dos constituintes ainda estão no Parlamento, ou nas chefias do Poder Executivo, o que
impede a referência em um apoio na “mão morta da história”. Além disso, as referências às discussões
constituintes são apenas parte do argumento para afastar a perda de mandato por desfiliação partidária sem justa
causa. A outra parte é extraída da compreensão sistemática do texto constitucional. Sobre as posturas de
interpretação da Constituição dos Estados Unidos, ver a obra de Cass Sunstein (SUNSTEIN, Cass R. Radicals in
robes: why extreme right-wing courts are wrong for America. New York: Basic Books, 2005). 750 Karl Larenz diferencia as lacunas legais e o silêncio da lei, quando o legislador conhece um instituto ou
uma regra (como nesse caso, em que a regra era prevista na Constituição anterior) e intencionalmente não inclui
no ordenamento jurídico, em um “silêncio eloqüente” (LARENZ, Karl. Metodología de la Ciencia del Derecho.
Op. cit., p. 363-364).
182
tema a Subcomissão do Sistema Eleitoral e dos Partidos Políticos, da Comissão da
Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, e a Subcomissão do Poder
Legislativo, da Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo.
O relator da Subcomissão do Sistema Eleitoral e dos Partidos Políticos, Francisco
Rossi, dá parecer contrário à sugestão do constituinte Brandão Monteiro (4514) sobre a
fidelidade partidária e seu relatório não se refere às hipóteses de perda de mandato. O
constituinte apresenta então a emenda 4A150-2, reservando à lei complementar o
estabelecimento do critério de fidelidade partidária. A emenda é afastada pelo relator, que
considera que o assunto deve ser mantido no âmbito partidário. Assim segue o anteprojeto da
subcomissão, sem referência à fidelidade partidária.
Na Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, os
anteprojetos das subcomissões recebem emendas. A do constituinte Francisco Sales (400226-
1) visa incluir no dispositivo referente à filiação partidária a promessa de fidelidade ao partido
político. O relator, constituinte Prisco Viana, afirma que “[a] experiência recente demonstrou,
entretanto, que a fidelidade compulsória, imposta nos textos constitucionais e legais não
alcança seus objetivos”, devendo decorrer da consciência dos militantes e do fortalecimento
dos partidos, e coloca a obrigatoriedade de tratamento estatutário da fidelidade e da disciplina
partidárias. Rejeita, ainda, expressamente, a emenda do constituinte Horácio Ferraz, que
restaura a perda de mandato por infidelidade partidária, afirmando que a Justiça Eleitoral não
decretou a perda de mandato de ninguém no contexto da Constituição de 1969 e que a
ineficácia da previsão constitucional foi evidenciada na eleição presidencial indireta de
1984.751
O anteprojeto do relator da Subcomissão do Poder Legislativo não inclui a infidelidade
partidária como hipótese de perda de mandato de senador ou deputado federal. Novamente o
constituinte Brandão Monteiro apresenta duas emendas (3A0121-5 e 3A0382-0) para incluir a
perda de mandato de quem “deixar o partido sob cuja legenda for eleito, salvo para participar
como fundador de novo partido político”, justificando-a pelo objetivo de “fixar o mandato
popular como conseqüência da atividade partidária e compromissada com os programas
políticos, utilizados no período eleitoral”. Idêntica emenda foi apresentada pelos constituintes
Carlos Cardinal (3A0280-7) e José Richa (3A0345-5). Este afirma a necessidade da previsão
constitucional da perda de mandato por infidelidade em vista de que “[u]m dos elementos
decisórios do processo de consolidação e fortalecimento do regime democrático e das
751 Relatório preliminar e substitutivo. Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das
Instituições.
183
organizações partidárias está na estabilidade dos compromissos programáticos e nos
engajamentos pelos ideários políticos”.
O anteprojeto da Subcomissão mantém o silêncio sobre a perda de mandato em caso
de abandono do partido pelo qual o deputado ou senador foi eleito. Na Comissão da
Organização dos Poderes e Sistema de Governo, o constituinte Victor Fontana apresenta
emenda (300498-8) para incluir a hipótese de perda de mandato por desfiliação partidária
(sem ressalva alguma), justificando que “os mandatos eletivos são partidários e não pessoais”.
O constituinte José Richa reapresenta sua emenda (agora com o número 301081-3), assim
como o constituinte Brandão Monteiro (301193-3).
O substitutivo do relator da Comissão inclui o abandono de partido como hipótese de
perda de mandato de deputado e senador, salvo se para fundar novo partido (artigo 13, VI),
decretada pela casa legislativa (§2º). O constituinte Victor Fontana apresenta emenda
(3S0046-2) para suprimir a ressalva. Os constituintes Leopoldo Peres, Affonso Camargo,
Bonifácio de Andrada e José Jorge apresentam emendas (3S0057-8, 3S0492-1, 3S1060-3 e
3S0525-1) supressivas do inciso VI. O último afirma que o dispositivo é “incompatível com
as liberdades democráticas e com o espírito da Constituição que está sendo preparada”. O
constituinte Miro Teixeira propõe a aplicação do dispositivo a partir da legislatura de 1991,
pela emenda 3S0361-5.
O relator dá parecer contrário às emendas supressivas, afirmando que “[o] dispositivo
é necessário para o fortalecimento do sistema partidário”. Quanto à postergação da aplicação,
concorda em parte, “para vigorar a partir de 1º de janeiro de 1989”. O anteprojeto da
Comissão, no entanto, não contempla a hipótese. Indica, porém, a possibilidade de perda de
mandato por decretação da Justiça Eleitoral “nos casos previstos em lei” (artigo 13, V).
O anteprojeto de Constituição da Comissão de Sistematização estabelece em seu artigo
30, III, a previsão de normas de fidelidade e de disciplina partidárias nos estatutos dos
partidos políticos (que aqui ainda são pessoas jurídicas de direito público) e mantém, no
artigo 110, V, a perda de mandato pela Justiça Eleitoral nos casos legais. Não há referência à
perda de mandato por abandono do partido pelo qual o mandatário foi eleito. No projeto de
Constituição apresentado pelo relator Bernardo Cabral as redações se mantêm, mas o artigo
sobre a perda de mandato leva o número 111.
As emendas apresentadas em plenário incluem a proposta do constituinte Vilson
Souza de inserir no capítulo dos partidos políticos um dispositivo que permitiria a qualquer
membro do partido pedir ao Tribunal Superior Eleitoral a extinção da agremiação partidária
em caso de não cumprimento de qualquer um de seus dispositivos programáticos (1P03428-
184
1), e a do constituinte Afonso Arinos, que pretende adicionar às hipóteses de perda de
mandato o abandono do partido pelo qual foi eleito o representante, exceto para fundar novo
partido, visando “reintroduzir o instituto da fidelidade partidária, indispensável para a
consolidação dos partidos políticos e, em conseqüência, para o funcionamento do sistema
semiparlamentarista” (1P08020-7). Emenda no mesmo sentido apresenta o constituinte Paulo
Delgado, para a adição de um artigo em que prevê a perda de mandato do “ocupante de cargo
eletivo que abandonar ou for expulso do partido pelo qual foi eleito”, justificando a
necessidade de respeito à opção partidária do eleitor (1P15093-1).
O relator apresenta parecer desfavorável à emenda de Vilson Souza e à de Paulo
Delgado, afirmando que se trata de matéria de lei ordinária, e afasta a proposta de Afonso
Arinos, reconhecendo a falta de consenso sobre o tema e mantendo o texto para o
prosseguimento das discussões. Em seu primeiro substitutivo configuram no âmbito dos
partidos políticos normas sobre fidelidade e disciplinas partidárias (agora artigo 18, §2º) e a
decretação de perda de mandato pela Justiça Eleitoral nos casos legais, sem referência à
infidelidade (artigo 86, V).
O constituinte Roberto Freire apresenta emenda supressiva ao primeiro substitutivo
para excluir a menção à necessidade de previsão nos estatutos de normas de disciplina e
fidelidade partidárias, afirmando que a imposição constitucional contraria a liberdade dos
cidadãos e da conformação das agremiações partidárias (ES22929-0). No mesmo sentido,
emenda de Augusto Carvalho, Haroldo Sabóia e outros constituintes, que afirmam que a
fidelidade partidária em sede constitucional “impediria a reformulação partidária que se
seguirá à proclamação da nova Constituição” (ES33235-0, ES33238-4 e ES33239-2). O
constituinte Brandão Monteiro apresenta emenda aditiva para incluir no rol das hipóteses de
perda de mandato o abandono do partido pelo qual foi eleito o representante, afirmando que
“[a] tradição constitucional e jurídica brasileira e o próprio sistema eleitoral (proporcional)
comprovam que o parlamentar não é dono de seu mandato, obtido quase sempre com os votos
da legenda” (ES33149-3).
O segundo substitutivo do relator modifica a tratativa constitucional dos partidos
políticos (ainda pessoas jurídicas de direito público) e exclui a referência às normas de
fidelidade e disciplina partidárias nos estatutos (artigo 16), que retorna ao texto anterior no
substitutivo da Comissão de Sistematização às emendas apresentadas em plenário (artigo 19,
§1º). Não inclui o abandono do partido como hipótese de perda de mandato e mantém a
previsão legal dos casos passíveis de decretação da perda pela Justiça Eleitoral (artigo 64, V,
mantido no substitutivo da Comissão, mas no artigo 63, V).
185
O Projeto de Constituição A, levado a plenário, contém o dispositivo sobre os
estatutos partidários, mas, além de silenciar sobre a perda de mandato por infidelidade
partidária, restringe à previsão constitucional os casos em que a Justiça Eleitoral pode decretar
a perda de mandato (artigo 68, V). E assim segue, sem destaques ou emendas, para votação
em segundo turno, no artigo 56, V, em que é aprovado (artigo 55, V do Projeto de
Constituição C), vai à Comissão de Redação e, sem ser modificado, ingressa no texto
constitucional.
O texto final da Constituição de 1988 não incorpora a hipótese de perda de mandato
por desfiliação do partido pelo qual o representante se elegeu. E não porque tenha deixado
isso implícito. Não. O texto anterior fazia referência a essa possibilidade. Propostas para a
inclusão da hipótese em sede constitucional foram debatidas – e expressamente afastadas. O
texto constitucional, portanto, traz uma escolha consciente pela exclusão da perda de mandato
por infidelidade. E aponta no artigo 55 os motivos que levam à perda de mandato,
estabelecendo que a decretação pela Justiça Eleitoral se dá nos casos previstos na
Constituição. Ao silenciar sobre a fidelidade partidária, enviando sua normatização para os
limites dos estatutos partidários – que, por certo, não podem prever a perda de mandato752
– a
Constituição também estabelece uma norma.753
O silêncio da Constituição também é
Constituição.754
Os efeitos de uma interpretação que recuse este fato podem ser extremamente
perigosos. Se os tribunais podem contrariar expressamente o comando constitucional (ainda
que decorrente do silêncio), a Constituição perde seu sentido e sua eficácia.
Ressalte-se que o próprio Supremo Tribunal Federal, já sob a atual Constituição,
reconhece que realmente há um silêncio eloquente que exclui a fidelidade partidária em um
752 Essa a compreensão de Orides Mezzaroba: com a ausência de previsão constitucional de perda de
mandato por infidelidade partidária, “a ação mais drástica que o Partido pode praticar é a de excluir o infiel de
sua legenda”, “exclusão que terá como reflexo unicamente a perda de eventuais cargos ocupados em mesas
diretoras, por se tratar de indicações partidárias”. MEZZAROBA, Orides. Introdução ao Direito Partidário
Brasileiro. Op. cit., p. 276. O autor, no entanto, afirma estar revendo essa posição. 753 Esse o entendimento de Luís Roberto Barroso em relação à impossibilidade de criação de novos monopólios por lei. Para o autor, ao não se repetir a norma do artigo 163 da Constituição de 1969 que permitira a
criação de monopólios por lei federal em determinadas hipóteses, houve um silêncio eloquente do constituinte.
Ao se referir à decisão sobre a perda de mandato em caso de desfiliação partidária sem justa causa, o autor, no
entanto, não repete à afirmação (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.
São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 211 n 81 e 284 n 38). 754 Conforme paráfrase de Carlos Frederico Marés de Souza Filho de citação de Bartolomé Clavero.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Direito Constitucional e as lacunas da lei. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, n. 133, p. 5-16, jan./mar. 1997, p. 11. Quando há um silêncio proposital, eloquente, não
cabe desenvolvimento judicial do Direito, afirma Karl Larenz (LARENZ, Karl. Metodología de la Ciencia del
Derecho. Tradução: M. Rodríguez Molinero. Barcelona: Editora Ariel, 2001 [1979], p. 363).
186
mandado de segurança decidido em outubro de 1989.755
O terceiro suplente de uma coligação
partidária impetra mandado de segurança contra a posse pelo Presidente da Câmara de
Deputados do segundo suplente da mesma coligação, que não mais integrava os quadros da
agremiação pela qual havia concorrido por filiação a novo partido. Em voto sobre preliminar,
o relator Ministro Moreira Alves afasta a incidência do inciso V, do artigo 55 (competência da
Justiça Eleitoral para decretar a perda de mandato nos casos previstos na Constituição), pois
“esse dispositivo não tem pertinência à hipótese, tendo em vista que a Constituição não prevê
a hipótese presente como caso que caiba à Justiça Eleitoral decretar a perda de mandato”. E
no mérito, assim se manifesta: “Ora, se a própria Constituição não estabelece a perda de
mandato para o Deputado que, eleito pelo sistema de representação proporcional, muda de
partido e, com isso, diminui a representação parlamentar do Partido por que se elegeu (e se
elegeu muitas vezes graças aos votos de legenda), quer isso dizer que, apesar de a Carta
Magna dar acentuado valor à representação partidária (artigos 5º, LXX, “a”; 58, § 1º; 58, § 4º;
103, VIII), não quis preservá-la com a adoção da sanção jurídica da perda de mandato, para
impedir a redução da representação de um Partido no Parlamento. Se o quisesse, bastaria ter
colocado essa hipótese entre as causas de perda de mandato, a que alude o artigo 55”.
Em seu voto, o Ministro Celso de Mello afirma a constitucionalização do dever de
fidelidade partidária no artigo 17, §1º, mas sem a sanção da perda de mandato. Embora
reconheça o caráter “fortemente partidário” dos mandatos representativos, demonstrado pela
exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade, afirma que não cabe mais
falar em perda de mandato por infidelidade partidária: “A Constituição protege o mandato
parlamentar. A taxatividade do rol inscrito em seu artigo 55, que define as hipóteses de perda
de mandato, representa verdadeira cláusula de tutela constitucional destinada a preservar a
própria integridade jurídica do mandato legislativo”. O Ministro Sepúlveda Pertence assinala
sua convicção de que a Constituição de 1988 não dá base para a decretação da perda de
mandato por infidelidade partidária. Afirma que o rol exaustivo do artigo 55 revela a
gravidade da sanção da perda de mandato a tal ponto que insere entre suas hipóteses algo que
facilmente poderia ser extraído por “inferências lógicas”: a perda do mandato eletivo do
deputado que perde os direitos políticos.
O Ministro Paulo Brossard, no entanto, afirma que com a manutenção da
representação proporcional o sistema constitucional mantém, ainda que de maneira implícita,
a fidelidade partidária. Afirma que o mandato eletivo não compõe o patrimônio pessoal do
755 Mandado de segurança 20.297/DF, julgado em 11 de outubro de 1989. Relator Ministro Moreira Alves.
57 páginas.
187
representante. E cita acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, no âmbito da
Constituição de 1946 (na qual não havia referência à fidelidade partidária), afirmou que a
vontade pessoal do mandatário não pode se sobrepor à vontade coletiva dos mandantes, com a
alteração da vontade das urnas pela violação à representatividade proporcional e que o elenco
de hipóteses de perda de mandato (artigo 48 da Constituição de 1946, I e II, §1º e 2º) não as
esgota, havendo outras decorrentes do sistema constitucional (como a perda de mandato pela
perda dos direitos políticos, a investidura em função de outro poder político, o fim da
legislatura, a renúncia).
Indignado com a possibilidade de infidelidade do eleito ao partido e ao eleitor, o
Ministro Sydney Sanches afirma que a “extensão do direito à infidelidade” amplia o
“ilogismo constitucional”. Atendo-se ao Direito positivo, e reconhecendo que o momento e o
contexto da elaboração da Constituição de 1988 condicionaram o tratamento constitucional à
fidelidade partidária, o Ministro Francisco Rezek afirma que não há no Direito brasileiro
acolhida para a perda de mandato por desfiliação do partido pelo qual o representante foi
eleito, mas crê que “o futuro renderá homenagem à generosa inspiração cívica” daqueles que
defendem a fidelidade no sistema nacional.
O Ministro Aldir Passarinho afirma não haver “omissão na Constituição em não
estabelecer o princípio da perda de mandato por infidelidade partidária, pois o tema esteve
sempre presente”, que o rol do artigo 55 é taxativo, e que, embora “o ideal seria a prevalência
da vinculação dos partidos políticos”, não há nada na Constituição que autorize a perda de
mandato por abandono do partido pelo qual se elegeu o mandatário. No mesmo sentido a
manifestação do Ministro Néri da Silveira, afirmando que deveria haver a perda de mandato
daquele que abandona seu partido, mas que não há regra constitucional que permita essa
medida.
Por maioria de votos, nessa ocasião, o Supremo Tribunal Federal decide pela
impossibilidade de perda de mandato por desfiliação do partido pelo qual o representante foi
eleito. Os ministros, no entanto, afirmam que a fidelidade partidária decorre do sistema
proporcional e é desejável (com exceção do Ministro Célio Borja, que afirma não poder
“aceitar que a consciência dos que dirigem um partido seja mais esclarecida quanto a deveres
morais” do que a sua ou que ele deveria abdicar de sua autonomia de julgar sobre o bom ou
mal em favor dos dirigentes partidários). Mas não chegam a suplantar a não referência da
Constituição à hipótese de perda de mandato eletivo por abandono do partido pelo qual o
representante foi eleito.
188
Em 22 de março de 2004, o Supremo Tribunal Federal novamente manifesta-se sobre
o tema em mandado de segurança em que há ataque ao ato do Presidente da Câmara de
Deputados que anotou nova filiação de deputados, sem decretar a perda de mandato. A
decisão é pela prejudicialidade do pedido, em face do término da legislatura a que se referia
(1998-2002), mas há manifestação do relator, Ministro Gilmar Mendes, sobre o tema. O
ministro afirma que, embora a prática de troca de partidos seja negativa para a democracia
brasileira, “é certo que a Constituição não fornece elementos para que se provoque o resultado
pretendido pelo requerente”, isto é, a perda de mandato eletivo.756
Em 04 de outubro de 2007, no entanto, o Supremo Tribunal Federal afasta o
entendimento anterior e afirma que a fidelidade partidária deve perdurar após a posse em
cargo eletivo, definindo que “[o] instituto da fidelidade partidária, vinculando o candidato
eleito ao partido, passou a vigorar a partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à
Consulta 1398, em 27 de março de 2007”.757
Passa-se a analisar essa consulta “constituinte”, que reescreve as hipóteses de perda de
mandato, tão debatidas na elaboração da Constituição, e inclui uma causa inegavelmente
afastada pelos representantes do povo.
O então Partido da Frente Liberal indaga ao Tribunal Superior Eleitoral se, em virtude
do sistema proporcional e da forma de distribuição das vagas parlamentares no sistema
brasileiro, “[o]s partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema
proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda”.
O relator, Ministro Cesar Asfor Rocha, afirmando que a resposta à consulta exige um
recurso aos princípios constitucionais, afirma que só existe candidato vinculado a partido
político e, portanto, o mandato não poderia pertencer ao indivíduo eleito, como seu
patrimônio privado. Traz os números de troca de partidos e o dado de que apenas seis por
cento dos deputados federais não dependeram dos votos no partido ou nos outros candidatos
para se elegerem. Acentua que a permanência da vaga para o partido não deve ser confundida
com uma sanção ao representante, pois não há ato ilícito na mudança de partido. Afirma que o
entendimento anterior sobre a impossibilidade de perda de mandato por infidelidade partidária
“se plasmou antes do generalizado acatamento que hoje se dá à força normativa dos princípios
constitucionais”. Aduz, ainda, que essa leitura baseia-se na Constituição e no Código Eleitoral
756 Mandado de segurança 23.405/DF, julgado em 22 de março de 2004. Relator Ministro Gilmar Mendes.
8 páginas. 757 Mandado de segurança 26.602/DF, julgado em 04 de outubro de 2007. Relator Ministro Eros Grau. 234
páginas.
189
e indica que deve haver casos em que a mudança de partido não provoque a perda de
mandato.
O Ministro Marco Aurélio segue esse entendimento, afirmando que a Constituição se
refere aos partidos políticos e às normas de disciplina e fidelidade partidárias, que os
candidatos devem ser escolhidos em convenção e que a filiação partidária é condição de
elegibilidade, que o financiamento de campanhas passa pelos partidos, assim como a
distribuição do horário de propaganda eleitoral. Ressalta os artigos da Lei das Eleições (Lei
9.504/97) em que constam as obrigações do eleito para com o partido e as sanções a ele
impostas em caso de oposição às diretrizes, bem como a perda de função ou cargo na casa que
tenha obtido em face da representatividade do partido em caso de desfiliação. Responde
afirmativamente à questão, ressaltando que “talvez a sociedade fique de alma lavada”.
Ao proferir seu voto, o Ministro Cezar Peluso elogia o sistema proporcional e ressalta
sua ligação visceral com os partidos políticos. Acentua, ainda, que a eleição dos candidatos se
dá com o auxílio do “patrimônio partidário de votos”, mas pondera que “uma das causas da
debilidade dos partidos políticos reside, precisamente, nos estímulos oficiais e na indiferença
popular quanto à desenfreada transmigração partidária que se observa nos parlamentos, não
raro induzida por interesses menos nobres”.758
Traz o pensamento de Victor Nunes Leal que
afasta a perda de mandato ao ver o vínculo entre o representante e o povo, mas o emenda ao
ressaltar que o mandato pertence ao partido e que o vínculo do representante é com o partido e
vai além da previsão de normas de disciplina e fidelidade partidárias nos estatutos,
consistindo em verdadeira fidelidade ao eleitor. Seu entendimento é que a vaga obtida pelo
sistema proporcional é do partido em virtude do sistema mesmo e que, portanto, é irrelevante
não constar da Constituição texto a respeito. Aduz, em seguida, que “[n]inguém ignora que a
revelação ou, rectius, a reconstrução da norma jurídica nem sempre, ou quase nunca, é o
resultado do processo interpretativo de texto isolado, nem sequer de enunciados textuais com
sentido claro ou único, que reservaria ao intérprete a tarefa pobre de a descobrir como dado
objetivo e imutável oculto sob as palavras”. Ressalta que a perda do mandato não é sanção ao
representante, como as disposições do artigo 55 da Constituição, mas “reconhecimento da
inexistência de direito subjetivo autônomo ou de expectativa de direito autônomo à
manutenção pessoal do cargo”.
Em esclarecimento, o Ministro Marco Aurélio ilustra que com o sistema eletrônico de
votação o eleitor digita primeiro o número do partido para votar no candidato, como o fazia na
cédula quando escrevia o número do candidato. E ressalta, em debate com o Ministro Carlos
758 Grifo original. Eu, pessoalmente, grifaria a indiferença popular.
190
Ayres Britto, que se a perda de mandato por desfiliação do partido pelo qual foi eleito o
representante não está prevista no artigo 55 da Constituição a não-perda tampouco está
elencada no artigo 56.
O Ministro Carlos Ayres Britto, em voto bastante interrompido pelos demais
ministros, aponta que o raciocínio dos votos anteriores se baseia em quatro comandos
constitucionais: a) a filiação partidária é condição de elegibilidade; b) a soberania é do povo e
é preciso respeitar sua vontade; c) o pluralismo político (como o pluripartidarismo dele
decorrente) assegura o direito de todos de professar um credo político; d) o funcionamento
parlamentar depende da representatividade do partido, mutilada pelas desfiliações partidárias.
Aponta, porém, contrapontos constitucionais a esse raciocínio: a desfiliação não pode gerar
instantânea e imediatamente a perda de mandato como sanção, pois isso contraria
frontalmente o rol taxativo do artigo 55, que é ao mesmo tempo uma ameaça de castigo e uma
garantia de que não há perda de mandato exceto nas hipóteses constitucionalmente previstas.
Essa ressalva, no entanto, é afastada ao não se compreender a perda de mandato por
infidelidade partidária como sanção. Outra questão apontada é a possibilidade de
“desnaturação ideológica do partido” e subsistência do mandato para que o eleito continue a
representar a corrente de opinião que fundamentou sua escolha pelo povo. Manifesta-se,
assim, pela resposta afirmativa à consulta, ressaltando que a decisão “atende aos anseios da
mais deputada e autêntica cidadania”.
Do voto do Ministro José Delgado extrai-se que há um negócio jurídico eleitoral entre
o eleitor e o candidato envolvido pela ideologia partidária para valorizar a cidadania, o
princípio da representação partidária e o princípio do pluralismo político e que a migração
partidária viola tal negócio jurídico e gera a inconfiabilidade do eleitor. A filiação partidária
como condição de elegibilidade e a distribuição das vagas pelo sistema proporcional indicam
o pertencimento do mandato ao partido. Ressalta o caráter associativo do partido político,
afirmando a existência de direitos e deveres de seus associados. Apresenta uma decisão do
Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo na qual se aduz que a fidelidade partidária “tem
como mero objetivo assegurar ao eleitor a certeza de que o candidato por ele sufragado
representa a função ideológica de seu partido frente aos problemas nacionais e, portanto, não
sufraga o nome, mas as idéias e o programa que o postulante do cargo se propõe a defender”.
E com essas considerações, vota pela resposta afirmativa à consulta do Partido da Frente
Liberal.
O Ministro Caputo Bastos segue os votos anteriores.
191
A única manifestação divergente é do Ministro Marcelo Ribeiro. Embora concorde
com os efeitos nefastos da migração partidária, sublinha que “[n]ão há norma na Constituição,
nem em lei infraconstitucional, que diga que aquele que mudar de partido perderá o
mandato”. A essa observação o Ministro Marco Aurélio opõe que seria “acaciano”759
exigir
uma norma em face dos princípios consagrados na Constituição. O Ministro José Delgado faz
referência a princípios implícitos nas Constituições. O Ministro Marcelo Ribeiro reconhece a
existência de princípios implícitos, mas indica surpresa na demora em se reconhecer esse
princípio. Afasta os dispositivos da Lei das Eleições por se tratar de matéria constitucional e
chama a atenção para os precedentes do Supremo Tribunal Federal negando a possibilidade de
perda de mandato. E ainda afirma: “Não me parece haver espaço para invocar princípios
implícitos quando a matéria foi expressamente tratada na Constituição anterior e a alusão à
perda de mandato, de modo claro, foi retirada da atual Constituição”, porque o constituinte
assim não o desejou, e o seu silêncio ao estabelecer as hipóteses do artigo 55 é eloquente.
No entanto, esse entendimento, que se harmoniza com o texto e com a história
constitucional, resta isolado na Corte Eleitoral.
A partir dessa consulta, o Partido Popular Socialista, o Partido da Social Democracia e
o Democratas760
impetram mandados de segurança761
contra o Presidente da Câmara de
Deputados que negou dar posse aos suplentes dos deputados federais que deixaram os
partidos. O Supremo Tribunal Federal denega a ordem do primeiro porque o abandono da
legenda se deu antes da resposta do TSE à consulta, mas constrói a regra de fidelidade
partidária que a Constituição afasta. No segundo, embora denegada a segurança, é
estabelecida toda uma reformulação da disciplina constitucional sobre a fidelidade partidária.
No último, o Tribunal por maioria concede parcialmente a ordem para assentar a perda de
mandato por desfiliação partidária a ser decidida pela Justiça Eleitoral.
Os acórdãos, publicados muito tempo depois, trazem votos repetidos e argumentações
não minimalistas. Parece claro que o objetivo dos ministros (ao menos de sua maioria) é
759 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, acaciano é “que ou quem se mostra afetado,
ridículo pelo uso de fórmulas convencionais ao falar ou pela maneira pomposa de ser”, e é um adjetivo que se
refere ao Conselheiro Acácio, personagem de O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Vale, aqui, trazer a referência
de José Roberto Vieira: “o ser acaciano é inerente à condição humana” (VIEIRA, José Roberto. República e Democracia: óbvios ululantes e não ululantes. Op. cit., p. 77-100, p. 81). 760 Aponta Franscico Weffort que o conservadorismo brasileiro deixa uma concepção autoritária de
democracia, e que “o forte da tradição política brasileira é a ambigüidade que a muitos permite serem – ou
pretenderem ser – autoritários e democratas ao mesmo tempo” (WEFFORT, Francisco. Por que democracia?
São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 33). 761 Respectivamente: Mandado de segurança 26.602/DF, julgado em 04 de outubro de 2007. Relator
Ministro Eros Grau. 234 páginas. Publicado em 17 de outubro de 2008, DJe 197. Mandado de segurança
26.603/DF, julgado em 04 de outubro de 2007. Relator Ministro Celso de Mello. 348 páginas. Publicado em 19
de dezembro de 2008, DJe 241. Mandado de segurança 26.604/DF, julgado em 04 de outubro de 2007. Relatora
Ministra Cármen Lúcia. 335 páginas. Publicado em 03 de outubro de 2008, DJe 187.
192
refazer um trabalho constituinte que “não ficou satisfatório”. Como o julgamento foi
praticamente simultâneo e os votos fazem referências mútuas, as razões apresentadas em
todos eles serão analisadas concomitantemente.
As questões de fato, que não serão examinadas, são distintas e, por isso, as decisões
não são coincidentes. Serão analisados as compreensões jurídicas sobre os aspectos
constitucionais e os argumentos que serviram para a construção dessa “norma”
inconstitucional.
Em sua manifestação no mandado de segurança 26.602, a Procuradoria-Geral da
República afasta a titularidade partidária do mandato como decorrência lógica do sistema
proporcional, afirmando que o eleitor pode votar no partido ou no candidato e escolhe em sua
maioria um candidato. Sublinha que a filiação partidária é apenas condição de elegibilidade e
que o sistema não exige vínculo ao partido para permanência no cargo, além de ressaltar a
jurisprudência pacífica da Corte em relação à questão. Para o procurador, trata-se de tema
submetido à reserva da Constituição e que, portanto, a modificação de seu entendimento
depende de manifestação do poder competente para alterar o texto constitucional. Por fim,
destaca que eventual compreensão contrária deve gerar efeitos apenas para as próximas
legislaturas. Nos mandados de segurança 26.603 e 26.604, o representante do Ministério
Público ressalta que a Constituição “não admite, expressa ou implicitamente, a perda de
mandato parlamentar como penalidade por mudança de partido político”.
O Ministro Eros Grau, no processo 20.602, afirma ser necessário transformar o
enunciado da Constituição inserido no artigo 55 para admitir o mandado de segurança
impetrado: “apenas se operada a mutação constitucional, admitindo nova hipótese de perda de
mandato, é que o presente mandado de segurança pode ser analisado”. Ensina que a mutação
constitucional ocorre quando o texto constitucional não encontra mais respaldo na realidade
constitucional e, sem ruptura do sistema, é afastada uma parte da Constituição formal.
Ressalta que o impetrante deseja que o Supremo Tribunal Federal crie nova hipótese de perda
de mandato parlamentar não prevista na Constituição, transformando o tribunal em legislador
e que neste caso não pode se admitir a mutação. Dessa forma, não é possível à Corte, em sede
de mandado de segurança, e nem é sua função, inserir a hipótese de perda de mandato por
infidelidade partidária na Constituição, pois não é possível ir além do texto constitucional. O
Ministro Eros Grau afasta o cabimento de mandado de segurança por inexistir direito líquido
e certo, ato ilegal ou abuso de poder em face do não acolhimento pelo texto constitucional da
hipótese de perda de mandato eletivo por desfiliação partidária. Sublinha, no mandado de
segurança 26.603, que só haveria direito líquido e certo se houvesse prova de que os
193
deputados que cancelaram sua filiação ao partido pelo qual foram eleitos não estivessem
respaldados nas exceções apontadas na consulta como hipóteses que não ocasionariam a perda
de mandato. E, se não há indubitavelmente um direito sendo violado, não é possível, sem
ofensa ao princípio do devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, reconhecer a
demanda do partido requerente em sede de mandado de segurança. Os demais ministros
afastam a preliminar, afirmando que se trata de questão de mérito e conhecem dos mandados
de segurança – por todos, ressalte-se a manifestação do Ministro Celso de Mello no processo
26.603, em que indica que a liquidez está evidenciada pela eleição dos mandatários pelo
partido impetrante e da desfiliação, ambas provadas documentalmente. Em seu voto no
mandado de segurança 26.603, repetido no 26.604, o Ministro Eros Grau afirma temer pelos
direitos e pelas garantias individuais e outros contornos do regime democrático em face da
“lassidão na interpretação da Constituição”.
O Ministro Celso de Mello é o relator do mandado de segurança 26.603, acórdão que
traz a mais longa ementa e que fundamenta a perda de mandato, a decretação pela Justiça
Eleitoral mediante o devido processo legal e com ampla dilação probatória,762
a indicação de
resolução do Tribunal Superior Eleitoral para regulamentar o “procedimento de justificação” a
partir das “hipóteses excepcionais que legitimam o ato de desligamento partidário”, o
estabelecimento do marco inicial da consequência jurídica e política da perda de mandato a
partir da resposta da corte eleitoral à consulta 1398, por “obediência ao postulado da
segurança jurídica”, e a afirmação do “monopólio da „última palavra‟, pela Suprema Corte,
em matéria de interpretação constitucional”, indicando que “[n]o poder de interpretar a Lei
Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação
judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a
significar, portanto, que „A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais
incumbidos de aplicá-la‟”.763
Afirma-se que a desvinculação partidária, que surpreende o
corpo eleitoral e os partidos, ofende o sistema proporcional, a representação popular, a
762 O que acaba não ocorrendo na Resolução 22.610/07. 763 Essa compreensão se evidencia na postura do Supremo Tribunal Federal ao afastar a constitucionalidade
de Lei 10628/02, que dava uma interpretação constitucional da prerrogativa de função que não coincidia com a sua. Da ementa da ADIn 2797 se extrai: “admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal
da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador,
ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia –,
só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão
constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames”. Para uma crítica da decisão, ver
Luís Roberto Barroso (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p.
133-134). Vale aqui a ressalva de Reinhold Zippelius: “quem estiver na posse da certeza, renunciará, com
desprezo, ao jogo liberalista – ou seja, a harmonização das opiniões através da discussão e a tomada de decisão
por maioria sobre a concepção a seguir” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 338).
Postura pouco afeita ao ideal democrático.
194
soberania do povo e a estabilidade do poder e que a “repulsa jurisdicional à infidelidade
partidária, além de prestigiar um valor eminentemente constitucional”, “preserva a
legitimidade do processo eleitoral”, “faz respeitar a vontade soberana do cidadão”, “impede a
deformação do modelo de representação popular”, “assegura a finalidade do sistema de
representação proporcional”, “valoriza e fortalece as organizações partidárias” e “confere
primazia à fidelidade que o Deputado eleito deve observar em relação ao corpo eleitoral e ao
próprio partido sob cuja legenda disputou as eleições”.
O voto do relator abre espaço para a inversão do ônus da prova no procedimento de
decretação de perda de mandato a ser disciplinado pelo Tribunal Superior Eleitoral764
quando,
ao analisar a liquidez do direito do partido impetrante, afirma que não cabe à agremiação
partidária “produzir prova negativa consistente em demonstrar que não moveu perseguição
política” ou “que não se registrou mudança de conteúdo programático nos fins visados” pelo
partido; chega a afirmar que tais situações independeriam de dilação probatória se os
mandatários tivessem desde logo comprovado a imposição formal de sanções partidárias
contra eles. Em relação ao caráter jurídico e normativo da resposta do Tribunal Superior
Eleitoral a consultas, o Ministro afirma seu caráter pedagógico, sua natureza administrativa,
não vinculante, não jurisdicional, sem índole constitutiva, pois “não possui conteúdo
normativo e, por isso mesmo, não provoca qualquer modificação na esfera jurídica de direitos
a propósito da matéria objeto de apreciação”, sublinhando a seguir que contra consulta não
cabe ação direta de inconstitucionalidade.
Sobre o mérito, o Ministro Celso de Mello no mandado de segurança 26.603 ressalta o
duplo vínculo decorrente da representação política – o vínculo entre partido e representante
(vínculo partidário) e entre representante e eleitor (vínculo popular). Afirma que à exigência
de fidelidade partidária, decorrente do sistema eleitoral, deve-se dar efetividade pela
atribuição de consequências a seu desrespeito. O mandato pertence ao partido não desde a
resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta 1398, mas a partir do texto constitucional,
que o define por seus fundamentos e princípios estruturantes e da adoção do sistema
proporcional. A perda de mandato decorrente da desfiliação partidária não é sanção e,
portanto, não está elencada nas hipóteses do artigo 55.
764 Para Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira e Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de
Pádua Cerqueira, não há inversão do ônus da prova porque o partido tem que provar a desfiliação e ao requerido
cabe a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo (CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua;
CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. Fidelidade partidária & perda de
mandato no Brasil. São Paulo: Premier Máxima, 2008, p. 127). Se assim o é, a ausência de justa causa para
desfiliação resta presumida.
195
Finalmente, no que concerne ao papel do Supremo Tribunal Federal em relação à
guarda da Constituição, o Ministro relator Celso de Mello afirma caber à Corte a extração da
máxima eficácia possível do texto constitucional, em consonância com os seus princípios e
com a necessária força normativa da Constituição. O monopólio da última palavra sobre o
significado da Constituição deriva da função institucional da Suprema Corte, estabelecida
pela própria Constituição. Para o ministro, o Supremo Tribunal Federal decide sobre a própria
substância do poder. Traz a lição de Francisco Campos, que afirma a prerrogativa da
jurisdição constitucional de “formular e de revelar o próprio sentido do texto constitucional”.
Aduz ser necessário reafirmar a soberania da Constituição, configuração do Estado de Direito.
O relator, nesse processo, conhece parcialmente o mandado de segurança para determinar o
encaminhamento pelo Presidente da Câmara do pedido da agremiação partidária ao Tribunal
Superior Eleitoral para permitir a instauração do “procedimento de justificação”. Enfim,
estabelece a resposta à consulta 1398 como marco temporal dessa nova norma, pois então
“tornou-se veemente a possibilidade de revisão jurisprudencial, notadamente porque
intervieram, com votos concorrentes, naquele procedimento de consulta eleitoral, três (3)
eminentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal”. Como todos os mandatários eleitos
pelo partido impetrante desfiliaram-se antes da resposta, denega a segurança.
A Ministra Cármen Lúcia, relatora do mandado de segurança 26.604, salienta que pelo
sistema proporcional brasileiro o eleitor escolhe entre os candidatos apresentados pelos
partidos. “E o faz supondo que o eleito, vinculado, necessariamente, a determinado partido
político, terá no programa e no ideário deste o norte da sua atuação, à qual ele está
subordinado por lei”. Assim sendo, o partido é o destinatário do voto e o representante não
pode dispor de seu mandato. Ressalta que a resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta
1398 reúne os fundamentos da doutrina constitucional brasileira e das teorias democráticas e
que permitir a desvinculação do parlamentar de seu partido sem consequências políticas e
jurídicas é “fazer tábula rasa dos princípios”. Afirma, ainda, a obrigatoriedade da atuação do
partido de acordo com seu programa e estatuto, segundo estabelece a Lei dos Partidos
Políticos em seu artigo 5º, e que o eleitor é surpreendido com a mudança de partido. Assim, a
titularidade do mandato não pode ser atribuída juridicamente ao mandatário, em face da
vinculação do eleitor ao partido, diante de sua escolha entre os candidatos apresentados pelas
agremiações partidárias. Alega, adiante, que a configuração constitucional da elegibilidade
exige a vinculação do candidato a um partido e a seu programa, com um ano de antecedência
segundo a lei, como garantia de representação de parcela da opinião pública e que, portanto,
em consonância com esse desenho, não seria congruente a possibilidade de que o
196
representante eleito permanecesse com o mandato independentemente de sua desvinculação
do partido, sob pena de termos uma “democracia na letra” e uma Constituição puramente
formal.
Ao enfrentar a questão da ausência de previsão expressa da perda de mandato por
infidelidade partidária na Constituição de 1988, afirma que, ainda que a fidelidade partidária
não constasse expressamente na Constituição anterior, ela deveria ser observada: seria
aplicável a perda de mandato, pois decorrente dos princípios adotados. Ressalta que o
desligamento do partido pelo mandatário é ato lícito, mas não se pode considerar o
parlamentar como um “proprietário do espaço público”, um “proprietário do mandato
popular”, pois “[n]inguém é ou tem um mandato público”. Não sendo ato ilícito dele não
decorre sanção e por isso a inexistência de previsão constitucional ou legal determinando a
perda de mandato. Dessa forma, apontou o equívoco dos posicionamentos jurisprudenciais
anteriores (inclusive do Supremo Tribunal Federal), que não aceitaram a perda de mandato
sem previsão constitucional fundamentados na sua configuração como sanção. É sacrifício de
direito, decorrente de ato lícito, e consequência do sistema eleitoral brasileiro. Defende, ainda,
que o abandono do partido equivale à renúncia tácita ao mandato e que a manifestação de
vontade, inequívoca, pode, no âmbito do direito público, gerar efeitos distintos do desejado
pelo agente. Fala em “esquizofrenia jurídica” de um sistema que exigisse a atuação dos
partidos para a apresentação dos candidatos e para definição da distribuição de cadeiras, mas
permitisse que o eleito atuasse sem compromisso com o partido e com o eleitor. A mudança
de partido configura, para a ministra, fraude eleitoral.
Finalmente, nesse longo voto, a Ministra Cármen Lúcia ressalta que o controle de
constitucionalidade, mesmo quando busca a efetividade da Constituição pela efetivação dos
princípios, deve observar o princípio da segurança jurídica. Sublinha a inexistência de
alteração das normas constitucionais e infraconstitucionais sobre o tema desde as
manifestações do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que apontavam a
impossibilidade de perda de mandato por abandono do partido. A interpretação alterou-se, em
uma “evolução jurisprudencial”, e a perda de mandato somente é possível a partir desse novo
entendimento, marcado pela resposta positiva à consulta 1398. As desfiliações posteriores
àquele julgamento “não gozam de qualquer elemento que pudesse ser caracterizado como
informador do princípio da segurança jurídica”. Assim, concede parcialmente a segurança
para reconhecer o direito do Democratas ao mandato de Jusmari Terezinha de Souza Oliveira,
que se desfiliou do Partido da Frente Liberal em 29 de março de 2007, ainda que conste
pedido de desfiliação datado de 28 de fevereiro de 2007, mas estabelece que a declaração de
197
vacância do cargo depende do exercício da ampla defesa e da verificação da ocorrência de
situações que afastam a perda de mandato.
Após a análise dos três relatores, passa-se às manifestações dos demais ministros. Os
votos, em geral, repetem-se nos três acórdãos, pois a discussão se centra na questão
constitucional que traspassa os mandados de segurança apreciados conjuntamente.
O Ministro Menezes Direito afirma que o ponto nuclear dos casos está “na correta
interpretação dos mecanismos possíveis de interpretação constitucional”. Aduz que a
compreensão da Constituição deve levar em consideração os princípios que a inspiram “a
partir da vontade do constituinte”, os “sentimentos que orientaram os redatores da
Constituição”. O Ministro cita Ronald Dworkin e sua defesa da leitura moral da Constituição
e sua própria análise sobre a decisão judicial inserida em uma realidade humana, emanada de
um juiz que sabe que sente e crê, que decide enlaçando a lei com a realidade, sem, no entanto,
avançar contra o texto da lei. Destaca que “[n]o plano da Constituição, a Suprema Corte deve
levar em conta o cenário do próprio sistema de valores e princípios fundamentais engendrados
pela vontade constituinte, tirando deles as conseqüências que autorizem sua melhor aplicação
para resguardá-los de dano quanto aos fins a que se destina”. Assevera que, pelo desenho
constitucional do sistema eleitoral, o partido é essencial para a representação, e que, assim, o
mandato é “dependente do partido”. Para afastar o argumento do Procurador-geral da
República a respeito da não previsão constitucional da perda de mandato por infidelidade
partidária, sublinha que o intérprete máximo da Constituição não se subordina ao “direito
constitucional estrito”. A concessão da segurança, para o Ministro Menezes Direito, não
implica a colmatação de lacuna constitucional, mas “estabelecer, a partir da Constituição
Federal, os limites inerentes à representação popular como forma de exercício da soberania de
modo a assegurar a sua vitalidade e viabilizar o aperfeiçoamento de sua prática na sociedade
democrática e pluralista desejada pelo constituinte dos oitenta”. E continua: “Parece-me que
nesse sentido a interpretação constitucional não foge dos seus limites quando encampa
orientação possível e compatível com a estrutura criada pelo constituinte originário”. Além de
afirmar que o abandono do partido leva à ruptura da relação de representação, indica o
Tribunal Superior Eleitoral como competente para decretar a perda de mandato por
infidelidade partidária de Deputados Federais e os Tribunais Regionais Eleitorais como
competentes para a análise dos processos de Deputados Estaduais e Vereadores.
Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski se refere a princípios no topo
axiológico hierárquico das constituições, que são critérios de validade das demais normas
constitucionais, indicando a segurança e o princípio da segurança jurídica. Assinala, em
198
relação à fidelidade partidária, a não previsão da perda de mandato pelo constituinte, em
harmonia como o espírito redemocratizante da Emenda Constitucional 25/85. Em nome da
segurança jurídica, preocupa-se com a modificação abrupta no tratamento jurisprudencial da
fidelidade partidária, após vinte anos de prática político-partidária de mudanças de
agremiações partidárias, além da validade dos atos praticados pelos infiéis enquanto
indevidamente ainda investidos no mandato (preocupação esta afastada por aparte do Ministro
Celso de Mello e que acaba incorporada à ementa do mandado de segurança 26.603).
Sublinha a necessidade de que a exigência da fidelidade partidária esteja acompanhada de
democracia interna nos partidos políticos, ressaltando hipóteses em que a desfiliação
partidária não deva levar à perda de mandato. E, finalmente, aduz que somente seria possível
conceder a segurança para a decretação da vacância dos cargos dos mandatários que se
desfiliaram dos partidos pelos quais se elegeram após a verificação dos motivos da mudança
partidária, o que é inviável em sede de mandado de segurança.
A questão está nas noções fundamentais do Direito Constitucional, na soberania
popular e na representação política, para o Ministro Joaquim Barbosa. Denuncia que a
resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta 1398 acaba por deslocar a legitimidade
democrática para os partidos políticos, fazendo do povo uma abstração, ele que é o soberano
segundo a Constituição. Questiona a bradada preeminência dos partidos políticos na atual
democracia, de uma “sociedade de massas, conectada planetariamente, com múltiplas formas
de expressão da vontade dos mais diversos segmentos sociais”, recusando-se a ver uma
“partidocracia” no Brasil que na realidade afastaria ainda mais o povo do poder e das questões
políticas. Para o Ministro Joaquim Barbosa a resposta não deve ser buscada em “princípios
supostamente implícitos na Constituição”, pois “o constituinte de 1988 disciplinou
conscientemente a matéria, e fez a opção deliberada de abandonar o regime de fidelidade
partidária que existia no sistema constitucional anterior, que previa a perda de mandato nesses
casos”. Acentua, ainda, a necessária observância do devido processo legal e da garantia da
ampla defesa e a ausência de liquidez e certeza do direito alegado pelos partidos impetrantes.
Afirma que, apesar de desejar uma “moralização da vida político-partidária do nosso país”,
não pode aceitar o pedido de decretação de vacância do mandato dos “trânsfugas” e sublinha a
impropriedade de, caso aceite-se a possibilidade de perda de mandato por infidelidade
partidária, ter como marco inicial a resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta 1398,
pois a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que assegurava a mudança de partidos sem
consequências jurídicas e políticas ainda encontra-se válida até este julgamento.
199
O Ministro Carlos Ayres Britto acentua o caráter normativo dos princípios no pós-
positivismo e sua posição de “supernormas”. Afirma que os princípios assumem centralidade
na Constituição e são onivalentes, autorreferentes e autoaplicáveis, trazem unidade material,
congruência e adaptabilidade à Constituição. Afirma que só a Nação, “linha imaginária que
costura a unidade do povo de ontem, do povo de hoje e do de amanhã”, detém o poder
constituinte. A legitimidade dos representantes políticos deriva do povo; a do Poder
Judiciário, da Constituição, que lhe atribui sua guarda. Não é usurpação, portanto, quando o
Supremo Tribunal Federal interpreta e aplica a Constituição “inclusive na perspectiva da
demarcação dos espaços de legítima atuação dos Poderes”. Quanto à questão de fundo, o
Ministro acentua o caráter associativo dos partidos políticos e a liberdade de associação e de
desfiliação, o que afastaria a configuração do abandono do partido como ato ilícito. Esse ato
voluntário, no entanto, segundo seu raciocínio, faz com que o representante deixe de estar
apto a exercer o mandato político alcançado por meio do quociente eleitoral, como “expressão
de renúncia tácita”, “renúncia lógica”. Destaca as características do sistema proporcional em
oposição ao sistema majoritário, evidenciando que naquele a “majoritariedade deve ser
alcançada pelos partidos políticos e suas eventuais coligações”, e, por isso, importa “a
performance eleitoral do conjunto dos agremiados”. Afirma que o texto constitucional silencia
sobre a perda de mandato em caso de infidelidade, mas também cala sobre qualquer vacância
que não resulte de infringências a proibições ou de atos ilícitos e só trata de renúncia quando
afasta seus efeitos se em curso processo que possa levar à perda de mandato. E ressalta a não
inclusão do abandono do partido nas hipóteses do artigo 56, silêncio que significa o “dobre de
sinos do mandato do deputado desertor, ou, pior ainda, trânsfuga”. Para que a desfiliação não
seja compreendida como renúncia, exegese por “imperativo de elementar lógica jurídico-
societária”, o representante deve provar que tem motivo para tanto.
O Ministro Cezar Peluso repete as razões de seu voto na consulta 1398, afirmando que
está na essência do sistema proporcional a votação nos partidos políticos. Acentua, ainda, que
a fidelidade partidária (com a consequente perda de mandato) é indispensável para fazer
frente à crise de representatividade. Afasta as críticas do Ministro Joaquim Barbosa a respeito
da abstração do povo feita no julgamento no Tribunal Superior Eleitoral, aduzindo que o
representante infiel não representa o povo e que é impossível dissociar o papel do
representante e o papel do partido. Aduz que a fidelidade partidária prevista como matéria
reservada aos estatutos dos partidos políticos (artigo 17, § 1º da Constituição) não é a mesma:
aquela é sobre a relação partido-filiado; essa se coloca entre representante, partido e eleitor.
Ao exaltar-se na sua manifestação a respeito do papel dos partidos políticos na democracia
200
brasileira, afirma que o objeto dos mandados de segurança é a declaração da existência ou não
do direito subjetivo invocado – a partir da sua existência teórica, a Corte “tem o dever de
fixar-lhe a existência” e de declarar “as condições de exercício desse direito, declarando o
termo de eficácia da interpretação, sem precisar recorrer à idéia de mudança de orientação do
Supremo”, aditando que a resposta da Justiça Eleitoral a consultas tem o “papel de orientador
de condutas políticas”. Na mesma esteira, afirma que a decisão do Supremo Tribunal Federal
estabelece a necessidade de observância das garantias processuais e fixa a competência do
Tribunal Superior Eleitoral para estabelecer o procedimento de decretação de perda de
mandato.
Em longo e elaborado voto, o Ministro Gilmar Mendes aprecia a questão iniciando
pela análise dos pronunciamentos anteriores da Corte. E pergunta-se: “a inexistência de
dispositivo normativo expresso – ou, explicando melhor, a ausência de texto – pode ser razão
única para a conclusão, muitas vezes apodítica, sobre a inexistência de determinada norma no
ordenamento jurídico?”. Para ele, a realidade brasileira evidencia a inadequação da
interpretação dada à fidelidade partidária. Refere-se a seu voto nas ações diretas de
inconstitucionalidade sobre a cláusula de barreira (1351 e 1354), na qual ressaltou a
necessidade de rever as regras da fidelidade partidária a partir da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, para aplicar a perda de mandato como consequência do abandono do partido
pelo mandatário. Ressalva seu posicionamento no mandado de segurança 23405, em que
afirmava a impossibilidade da perda de mandato, pois “serviu apenas de obter dictum765
”.
Assevera que a evolução interpretativa trazida pela resposta à consulta 1398 impõe uma
revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Explica longamente o
sistema proporcional brasileiro e defende a fidelidade partidária em face da democracia
partidária – visto que “os candidatos recebem os mandatos tanto dos eleitores como dos
partidos políticos” – e do sistema eleitoral adotado. Aduz que o posicionamento da Corte logo
após a promulgação da Constituição deve-se a um específico contexto histórico, de
contraposição à ditadura e a fidelidade partidária imposta. Traz números das migrações
partidárias. Sustenta a fundamentalidade dos direitos políticos inscritos na Constituição e
entre eles os direitos dos partidos políticos, alguns expressos, alguns implícitos. Um desses
direitos é o “direito dos partidos políticos às vagas conquistadas segundo as regras do sistema
proporcional”. Traz como argumento adicional para afirmar a perda de mandato em caso de
mudança de partido o “reconhecimento da oposição como uma das garantias institucionais da
representação política e da própria democracia brasileira”. Em relação ao termo inicial da
765 Dito de passagem.
201
nova leitura da Constituição, sublinha a data das decisões e da publicação delas, depois de
discorrer sobre interpretação constitucional e apresentar a ideia de Häberle de que uma lei
interpretada é sempre temporária que prescinde da noção de mutação constitucional e afirma a
resposta à consulta 1398 como o marco temporal para o início dos efeitos da nova
interpretação da Constituição. Para o Ministro Gilmar Mendes, a reinterpretação do Supremo
Tribunal Federal à Constituição “em toda sua inteireza” faz parte de sua função de guardar a
Constituição e que a mutação constitucional não indica erro do entendimento anterior, mas “a
necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição
à realidade que a circunda”.
Em voto conciso, a Ministra Ellen Gracie aponta a inadequação da “desenfreada
transmigração partidária” e afirma o direito dos partidos aos mandatos obtidos pelo sistema
proporcional, além de indicar a data da manifestação do Tribunal Superior Eleitoral como
marco inicial da possibilidade de decretação de perda de mandato por infidelidade partidária.
O Ministro Marco Aurélio desenvolve uma análise do sistema proporcional brasileiro
e de seus efeitos para afirmar que o mandato pertence ao partido político. Afirma que “[o]
parlamentar eleito e integrante de Casa Legislativa que, na legislatura, deixa o partido que
representa desqualifica-se para o exercício do mandato”. Ressalta que é possível ver a
resposta à consulta 1398 como o início da vigência plena da Constituição de 1988, e não
como uma decisão que criou um direito, mas discorda em apontar tal julgamento como termo
inicial para as consequências jurídicas da infidelidade partidária em nome da segurança
jurídica. Em debate com os ministros Celso de Mello e Cezar Peluso, sugere a data do
julgamento dos mandados de segurança como termo inicial.
Embora nove ministros deneguem a segurança pretendida nas ações (Ministros Celso
de Mello, Eros Grau, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso,
Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Menezes Direito), ainda que por fundamentos diversos, o
Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos seus membros, decide corroborar a construção
constitucional do Tribunal Superior Eleitoral e vai além.
Essa é a manifestação dos supremos magistrados da Nação que, em sua tarefa de
guardar a Constituição, retorceram e vergaram os princípios constitucionais. Cabe aqui a
pergunta: os princípios constitucionais devem a sua existência ao seu “reconhecimento”
jurisdicional?
202
A construção jurisprudencial da perda de mandato por infidelidade partidária
configura uma mutação manifestamente inconstitucional.766
Os limites da mutação
constitucional, cuja desconsideração ofende o princípio democrático e o ideal
constitucionalista democrático, são marcados pela possibilidade semântica do texto e pela
preservação dos princípios fundamentais da Constituição.767
Trata-se de uma ruptura
constitucional, que “quebra” a norma do artigo 55 e o princípio da liberdade para o exercício
do mandato a fim de estabelecer uma regra de fidelidade partidária com a sanção da perda de
mandato.
Essa nova “interpretação” da Constituição,768
feita pelo Tribunal Superior Eleitoral e
referendada pelo Supremo Tribunal Federal, deforma a Constituição. Ofende o princípio
democrático, o princípio da liberdade para o exercício do mandato e o princípio da legalidade.
E as mudanças inconstitucionais da Constituição – por contrariarem sua construção
democrática – não podem ser admitidas, ainda que contem com apoio expresso e efusivo da
opinião pública, ou da opinião publicável publicada,769
formada por um consenso
fabricado.770
O constitucionalismo traz como objetivo exatamente proteger os valores e
princípios fundamentais de uma sociedade justamente em face de maiorias eventuais.
Para além de sua inconstitucionalidade explícita, tal decisão pode ser desconstruída
pela sua falta de solidez. A inconsistência dos argumentos trazidos para essa alteração
766 “Como pode o STF „represtinar‟ a Constituição anterior, quando a atual expressamente não elencou a
infidelidade partidária no seu artigo 55?” (CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua e CERQUEIRA,
Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. Fidelidade partidária & perda de mandato no Brasil.
Op. cit., p. 275). “Durante o ano de 2007, a Justiça brasileira „decretou‟ a fidelidade partidária da forma mais
violenta: ferindo a Constituição Brasileira”. (LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. Leme:
Imperium, 2008, p. 189). 767 Como ressaltam Konrad Hesse e Luís Roberto Barroso (HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleção, tradução e introdução: Pedro Cruz Villalon. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 101-102. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito
Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 127). 768 “Interpretação” que não leva em conta a supremacia da Constituição. Ressalta Roque Antonio Carrazza
que “as normas constitucionais devem receber a interpretação que maior efetividade lhes empreste, não sendo
dado ao aplicador usar de suas próprias idiossincrasias para „corrigir‟ o que, a seu sentir, está posto de modo
inadequado na Lei Maior” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25. ed,
rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 36). 769 “Embora numa sociedade aberta haja fortes vinculações por retroacção dos mass-media ao seu público,
estas não reflectem habitualmente na dimensão correcta as opiniões divulgadas na população. Aprendeu-se a
distinguir entre a opinião pública e a opinião publicada, sabendo-se que, p. ex., nos média, as opiniões de minorias ruidosas estão muitas vezes sob-representadas e as opiniões da „maioria silenciosa‟ estão
frequentemente sub-representadas” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 356). Para
Jônatas Machado não há problema na associação entre opinião pública e opinião que se publica desde que as
elites “mostrem as mesmas diferenças de predisposições políticas da generalidade dos cidadãos” e que analisem
a questão de diferentes pontos de vista (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões
constitucionais da esfera pública no sistema social. Op. cit., p. 278-279). 770 Jürgen Habermas trata da relação entre os meios de comunicação social e a esfera política, analisando
como a escolha de temas e a forma de exposição influenciam a compreensão dos problemas, além da
representação de “privilegiados interesses privados” (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera
pública. Op. cit., § 20).
203
constitucional explicitamente contrária às intenções expressas dos constituintes se revela,
inicialmente, pela falsidade de suas premissas fáticas.
Para defender a imperiosa necessidade da “revelação” da fidelidade partidária como
alicerce do sistema eleitoral brasileiro, a maioria dos ministros fez referência ao voto do
eleitor no partido,771
à sua crença no cumprimento do objetivo e dos princípios estabelecidos
nos estatutos, bem como as diretrizes ideológicas da bandeira partidária.772
A mudança
partidária, assim, seria uma traição ao eleitor, à sua vontade soberana manifestada nas urnas, à
sua participação mais efetiva na formação da vontade do Estado, ao seu acesso ao poder.
Nada mais equivocado. Talvez fosse melhor para a democracia brasileira que assim o fosse.
Mas não o é. O eleitor, em geral, vota em nomes, em pessoas. O personalismo não é algo
característico das classes políticas ou uma característica da mentalidade estatal que não se
manifesta na sociedade.773
Temos uma prática personalista e uma política clientelista porque
há cliente, porque há o outro lado.774
Esse outro lado, que alimenta essas relações, não escolhe
seu representante por sua vinculação partidária. Ainda que, segundo o Ministro Marco
Aurélio, o eleitor tenha que digitar primeiro o número do partido na urna eletrônica para então
escolher seu candidato, não parece que sua conclusão – que isso demonstra como o eleitor
771 Seguindo, talvez, o pensamento de Reinhold Zippelius, ao argumentar que para o alcance da
representação das opiniões políticas “é necessário um sistema eleitoral de acordo com o qual os partidos sejam
representados no Parlamento em igual proporção à dos votos obtidos dos eleitores. Num tal sistema de sufrágio
proporcional, o voto expresso pelo eleitor deve, portanto, ser atribuído a um partido político e seu programa. A
personalidade do candidato directamente eleito passa para segundo plano. Surge apenas como representante do
seu partido na lista eleitoral deste último” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 260). Ou
o pedido de Nelson Jobim, ao afirmar que o retorno da fidelidade partidária na Constituição de 1988 era
“virtual”: “precisamos encontrar o mecanismo que estabeleça que, na hipótese da eleição proporcional, o
mandato pertence ao partido” (JOBIM, Nelson. Partidos políticos e organização partidária. Op. cit., p. 138-147
e 169-172, p. 169). Ou, ainda, a “deixa” do ministro Gilmar Mendes nos julgamentos das ações diretas de inconstitucionalidade 1351 e 1354. Nada menos democrático. 772 Tradução possível do idealismo dos juristas tradicionais, que encara a realidade pelo “deve-ser”, pelo
que não é. Conforme CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito em relação. Ensaios. Curitiba: Gráfica Veja, 1983,
p. 12. 773 Ver, sobre esse assunto, GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a
Sociedade Civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 774 A análise antropológica de Beatriz Maria Alasia de Heredia confirma essa afirmação. Ao tratar das
relações entre político e eleitor fora do período eleitoral, a autora demonstra a existência de um vínculo que
busca ser pessoalizado, por esforço de ambas as partes. A leitura das cartas enviadas a um deputado estadual
revela a visão que o eleitor tem dessa relação, que começou com a eleição do representante: “O pedido é
colocado como fazendo parte de um sistema de relações de reciprocidade, isto é, um sistema no qual a relação supõe um intercâmbio de favores e objetos entre as partes envolvidas” (HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de.
Entre duas eleições. Relação político-eleitor. In: _____ et al. (Org.). Como se fazem eleições no Brasil. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 17-38.). Muito antes, Maurice Hauriou faz a seguinte leitura: “Si por la
elección y la petición del voto, el diputado se coloca bajo la dependencia de sus electores, en contrapartida, por
el poder de que dispone para conseguir favores, tiene el elector bajo su dependencia. En realidad, pues, la
situación es bilateral: hay relaciones recíprocas de poder y de dependencia, y no es difícil al representante del
pueblo, por las relaciones que se crea y por sus tratos con la Administración, inclinar de su lado la balanza del
poder. De esta manera, la clientela electoral corrige los inconvenientes del régimen representativo y de las
falsas teorías sobre la soberanía nacional, en tanto que tienden a la subordinación del representante”
(HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Op. cit., p. 498, nr 2).
204
vota em partido – seja correta. O eleitor só digita primeiramente o número do partido porque
não tem outra escolha. A urna eletrônica não aceita o voto em um nome, como a cédula
aceitava.775
Exigência do sistema de votação, que não pode ser lida como uma politização
partidária do eleitorado.
Alguns dos argumentos propriamente jurídicos apresentados tampouco parecem
consistentes. Os ministros Celso de Mello, Cármen Lúcia, Menezes Direito, Carlos Ayres
Britto, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Marco Aurélio afirmam que a perda de
mandato por infidelidade partidária decorre do sistema eleitoral proporcional, em que os
candidatos são apresentados pelos partidos e as vagas são distribuídas pelo quociente eleitoral.
De fato, a Constituição adota o sistema proporcional para a formação do corpo representativo
parlamentar, com a exceção do Senado Federal. E o sistema proporcional brasileiro leva em
consideração os votos recebidos pelos partidos (votos de legenda) e votos nominais para a
distribuição das cadeiras entre os partidos concorrentes. Dá preferência, no entanto, à votação
no candidato, quando deixa ao eleitor a ordem dos candidatos para a ocupação dessas vagas.
Assim, o sistema proporcional, determinado pela Constituição e desenhado
infraconstitucionalmente, combina o voto em partidos com votos pessoais. E,
constitucionalmente, exclui a perda de mandato por desfiliação partidária quando deixa,
conscientemente, de incluir essa hipótese na Constituição.
Mesmo que isso possa parecer incoerente, ilógico ou ainda pouco desejável aos olhos
dos magistrados máximos do Brasil, esse é o desenho constitucional do sistema eleitoral
brasileiro. E, parafraseando Pontes de Miranda, o sistema eleitoral “não é roupa que se ordene
sob medida, ou se adquira feita, para se vestirem os países”.776
O sistema eleitoral brasileiro,
proporcional para a eleição de deputados e vereadores, não adota, por decisão política
constituinte, a perda de mandato por infidelidade partidária. Ao contrário do que afirma o
Ministro Menezes Direito, a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal não é
compatível com a estrutura criada pelo constituinte originário.777
O Ministro Gilmar Mendes afirma que o partido político tem, como direito político
fundamental, o direito de manter as vagas que obteve mediante o sistema proporcional. As
775 Vale trazer a ressalva de Nelson de Sousa Sampaio: “No caso de divergência, na cédula eleitoral, entre a
sigla partidária escrita pelo eleitor e o nome dos candidatos, estes prevalecerão, não dando causa à anulação do
voto” (SAMPAIO, Nelson de Sousa. Perda de mandato por infidelidade partidária? Op. cit., p. 148). Essa
natural prevalência da escolha do eleitor pelo candidato se mantém, apesar da modificação na forma de votação. 776 Pontes de Miranda se refere à democracia (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Democracia, Liberdade e Igualdade (Os três caminhos). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1945, p. 177). 777 Do voto do Ministro Menezes Direito ainda é possível afirmar sua imprecisão ao se referir a Dworkin
para legitimar sua manifestação. Ronald Dworkin afirma que leitura moral não é apropriada quando o comando
constitucional é concreto ou não está relacionado a um princípio moral (DWORKIN, Ronald. Freedom's Law:
The moral reading of the American Constitucion. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 8).
205
associações (e entre elas os partidos políticos) podem titularizar direitos, e direitos
fundamentais.778
E, partindo de uma visão ampla de direitos políticos, é possível afirmar que
os partidos possam ser titulares de tais direitos, vinculados à representação política e
relacionados com o monopólio de apresentação de candidatos e a legitimidade para a
propositura de ações constitucionais como a ação de descumprimento de preceito fundamental
e a ação direta de inconstitucionalidade. Não parece que seja possível daí deduzir que um
desses direitos políticos fundamentais seja manter o mandato eletivo. A titularidade do
mandato, pelo desenho constitucional, não é atribuída aos partidos, “o mandato está vinculado
ao representante” conforme acentua Orides Mezzaroba.779
Clèmerson Clève ressalta a eloquência da omissão constitucional sobre a perda de
mandato e afirma: “Ainda que, doutrinariamente, o regime do mandato possa sofrer crítica, é
induvidoso que, à luz do sistema constitucional em vigor, o mandato não está à disposição do
partido”.780
Maria Benedita Malaquias Pires Urbano aponta seis argumentos favoráveis e sete
argumentos contrários à perda de mandato por transfugismo.781
Em face do sistema
constitucional brasileiro, basta um: a Constituição não o permite. E, como o Direito Eleitoral
está no âmbito do Direito Público, a ele se aplica o princípio da submissão à ordem jurídica,
sendo autorizado apenas aquilo que a lei expressamente prevê.
Quando da mudança de partido pelo mandatário, não há “desfalque em importante
parcela” do “patrimônio político” dos partidos,782
pois não são as agremiações partidárias que
titularizam o mandato.
Usando a terminologia de Karl Loewenstein, a ausência de previsão da perda de
mandato por desfiliação partidária não configura nem uma lacuna constitucional descoberta
(que ocorre quando o poder constituinte foi consciente da necessidade de uma regulação
jurídico-constitucional, mas omitiu-se de fazê-lo) nem uma lacuna constitucional oculta (que
se dá quando no momento de criação da Constituição a necessidade de regular determinada
778 Sobre o assunto, conferir o trabalho de Rodrigo Xavier Leonardo (LEONARDO, Rodrigo Xavier. As
associações em sentido estrito no direito privado. Op. cit.). Jônatas Machado acentua que a Constituição
Portuguesa admite a titularidade de direitos fundamentais no caso das pessoas coletivas, como instrumentos de afirmação e realização associativa e colaborante dos propósitos humanos. Entre os direitos fundamentais das
pessoas jurídicas, sublinha o direito à liberdade de expressão dos partidos políticos (MACHADO, Jônatas E. M.
Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Op. cit., p. 399-400). 779 MEZZAROBA, Orides. Introdução ao Direito Partidário Brasileiro. Op. cit., p. 277. 780 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade partidária: estudo de caso. Op. cit., p. 29 n 13. 781 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma
teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 222-
225. 782 Como equivocadamente afirma Augusto Aras (ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de
mandato parlamentar. Op. cit., p 174).
206
situação não existia ou não se pode prever).783
Houve uma decisão expressa: da desfiliação
partidária não decorre a perda de mandato.
A escolha eleitoral de representantes constitui uma situação jurídica para o eleito,
atribuindo-lhe a faculdade de exercer determinadas funções e poderes.784
A elegibilidade,
como direito político, é direito fundamental. O exercício do mandato também o é. As
restrições aos direitos fundamentais devem ser analisadas com bastante rigor, para avaliar sua
legitimidade. Precisam decorrer (a) do desenho constitucional do próprio direito, (b) da
autorização constitucional para restrição legislativa ou (c) do confronto entre os princípios,
mas sempre respeitando o resguardo do núcleo essencial e a proporcionalidade no caso de
colisão entre os princípios.
(a) A Constituição exige filiação partidária para concorrer a cargo eletivo.785
Para o
exercício do mandato, essa exigência não se repete. A Constituição leva em consideração a
agremiação partidária do representante parlamentar apenas para a formação das mesas das
casas legislativas e das comissões parlamentares (art. 58, § 1º). Em relação aos cargos do
Poder Executivo inexiste ressalva. Embora haja a previsão no artigo 17, § 1º, de normas de
fidelidade e disciplina partidárias nos estatutos dos partidos, não consta no elenco das
hipóteses de perda de mandato a desfiliação ou a infidelidade partidária. O desenho
constitucional do direito fundamental do exercício do mandato, assim, não aceita a perda de
mandato seja em decorrência de desobediência às diretrizes estabelecidas pelo partido, seja
pelo abandono da agremiação pela qual o representante foi eleito.
(b) Tampouco o texto constitucional remete ao legislador a possibilidade de restringir
o direito fundamental do exercício do mandato. As prerrogativas e restrições dispostas no
“estatuto dos congressistas” previsto na Constituição (artigos 53 a 56) trazem sua
configuração completamente delineada. Não há espaço para o desenvolvimento legislativo,
com exceção da previsão de casos de quebra de decoro pelo regimento interno das casas
parlamentares. Inclusive a perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral reduz-se aos
casos previstos na Constituição (art. 55, V).
(c) A desfiliação partidária não afronta o princípio da autenticidade eleitoral, pois o
eleitor forma seu voto, na maioria dos casos, levando em consideração o candidato. A questão
mais árida está em saber se a liberdade para o exercício do mandato entendida de maneira
ampla a não autorizar a perda de mandato por desfiliação partidária ofende o princípio da
783 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 170-171. 784 Conforme Angel Garrorena Morales (GARRORENA MORALES, Angel. Representación política y
Constitución democrática. Op. cit., p. 93). 785 Com exceção dos militares, segundo o artigo 14, § 8º, combinado com o art. 42 § 6º da Constituição.
207
necessária participação das minorias nas instituições políticas, garantido pelo sistema eleitoral
proporcional. A configuração infraconstitucional desse sistema, que permite a transferência de
votos entre partidos coligados sem exigência de qualquer identidade ideológica, no entanto,
parece afastar esse conflito.
Outro ponto a ser considerado é aquele que marca as distintas respostas dadas pelo
Supremo Tribunal Federal para a questão da perda de mandato por infidelidade partidária. A
Ministra Cármen Lúcia acentua que a desfiliação partidária não é ato ilícito e que, portanto, a
perda de mandato não é sanção. É sacrifício de direito decorrente de ato lícito. Segundo seu
raciocínio, seguido também pelo Ministro Carlos Ayres Britto, em suas manifestações
anteriores o Supremo Tribunal Federal afastou a perda de mandato por infidelidade partidária
por considerá-la ausente das hipóteses do artigo 55 da Constituição.786
Para o Ministro, esse
entendimento pretérito da Corte, no entanto, parte de um pressuposto falso ao equiparar a
desfiliação partidária do mandatário com atos ilícitos penalizados com a perda de mandato. A
desfiliação partidária seria ato lícito, com consequências políticas e jurídicas, e equiparada à
renúncia tácita.
A tese de que a desfiliação partidária é equivalente – na produção dos seus efeitos – à
renúncia tácita do mandatário787
não pode prosperar.788
Barbosa Lima Sobrinho afirma que a
renúncia no direito público não compartilha as características da renúncia no direito
privado:789
não é ato unilateral, não está apenas no âmbito da vontade do mandatário.790
Sendo o exercício do mandato um direito fundamental, cabe analisar a possibilidade
de renúncia e, em caso afirmativo, seus requisitos. Jorge Reis Novais aponta que em alguns
786 O Ministro Carlos Ayres Britto ressalta a ausência de garantia constitucional de manutenção do
mandato em caso de desfiliação partidária no artigo 56, o que, segundo ele, evidencia a perda de mandato em favor de partido. 787 Esse argumento é apontado por J. J. Gomes Canotilho quando da análise da compatibilidade do
abandono do partido com o princípio da imediaticidade do voto (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 295). Para Auro Augusto Caliman, a
renúncia do mandato se presume apenas quando da posse em outro cargo eletivo. O autor afasta a possibilidade
da renúncia em branco, afirmando sua nulidade, a partir da leitura sistemática da Constituição de 1988
(CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. Op. cit., p. 119). 788 O parágrafo único do artigo 72 da Lei 5.682/71 – Lei Orgânica dos Partidos Políticos – dispunha que se
equiparava “a renúncia, para efeito de convocação do respectivo suplente, a perda de mandato” por infidelidade
partidária. A perda de mandato, e não o ato de infidelidade partidária (abandono do partido ou oposição às
diretrizes partidária), é que era equiparada à renúncia. 789 Segundo Francisco Amaral, a renúncia é ato unilateral e gratuito, é declaração de vontade, que implica o
despojamento de direito. Afirma ainda que são irrenunciáveis os direitos que envolvem interesses de ordem
pública (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 179). 790 “No direito público, um mandato legislativo, conferido por certo eleitorado, tem sentido não apenas
para o titular do direito, como para o corpo eleitoral e para os partidos políticos que se envolveram no pleito. (...)
O mandato não é um bem de natureza patrimonial, interessando apenas ao seu portador; é uma função pública,
relacionada com o eleitorado de que dimana e com a assembléia a que se destina. Não é possível supor que essa
diferença de origem e de significação deixe de refletir-se nas regras, a que se deve subordinar a renúncia nos dois
domínios, o do direito público e o do direito privado” (LIMA SOBRINHO, Barbosa. Da renúncia no direito
público. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 9, p. 168-176, jul. 1960, p. 168-176).
208
casos a Constituição traz um direito fundamental com conteúdo também de dever – voto,
educação dos filhos – e assim não caberia a renúncia. Outra hipótese é a de direitos
fundamentais que desempenham funções de caráter social, institucional ou estatal, com forte
relação com o interesse público (direitos de participação política e direito ao segredo do voto),
cuja renúncia (principalmente coletiva) pode levar à instabilidade do sistema político ou
jurídico. Para os demais casos, em princípio, a renúncia ao direito fundamental é exercício de
direito fundamental.791
Esse parece ser o caso do exercício do mandato eletivo.
Jorge Miranda afirma que a Constituição impõe o exercício da representação por
tempo determinado e que há um dever de permanência do titular do mandato, informado pelo
interesse público. Ressalta o autor, no entanto, que “no limite”, por razões políticas ou
pessoais, é possível que o representante renuncie.792
Mas há pressupostos e requisitos para a renúncia. O seu elemento central é uma
decisão voluntária que leva ao enfraquecimento da proteção de direito fundamental. Para que
isso seja possível, impõe-se que “quem renuncia seja o titular dessa posição jurídica e possa
dispor dela”.793
A validade da declaração de vontade exige caráter inequívoco e contundente e
consciência plena, “numa situação em que quem renuncia está em condições de avaliar todas
as conseqüências da sua decisão e decide tanto quanto possível livre de constrangimentos,
ameaças ou coação”.794
Além disso, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê, em seu artigo 239,
uma formalidade para a renúncia, exigindo que a declaração de renúncia seja dirigida à mesa
diretora da casa e ressaltando que “somente se tornará efetiva e irretratável depois de lida no
expediente e publicada no Diário da Câmara dos Deputados”.
Admitindo, de acordo com o texto constitucional, que o mandatário seja o titular do
mandato (porque se não o fosse, não poderia renunciar a ele), a possibilidade de renúncia
tácita quando da desfiliação partidária não preenche os requisitos para sua validade. Não se
pode deduzir do abandono da legenda uma vontade inequívoca e contundente de renunciar ao
exercício do mandato. Menos ainda pode-se inferir que os mandatários tinham como efeito
791 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 234-242. 792 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III – Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Op. cit., p. 237-
238. 793 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Op. cit., p. 249-250. O autor
ainda ressalva que as renúncias a direitos fundamentais que reificam a pessoa, deixando-a à mercê de outra ou
que afetem alguma dimensão de sua autodeterminação presente ou futura, são ilegítimas (p. 277). Em outros
casos, como nos direitos trabalhistas, a Constituição exige disposição legislativa expressa para proteger o
trabalhador de decisões que afetem seu direito a uma existência digna (p. 266). 794 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p.
251-252.
209
possível de sua decisão a perda do mandato: o texto constitucional e a posição do Supremo
Tribunal Federal assinalavam em sentido contrário. Não há o que se falar, portanto, em
renúncia tácita. Cabe referir-se à Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, que vê na saída
voluntária do partido uma expressão da liberdade de associação partidária.795
Tampouco parece defensável o encadeamento de argumentos que “extrai” da
Constituição a regra da perda de mandato. A história constitucional o desmente, como o
desautorizam os debates constituintes. Havia a previsão expressa da perda de mandato por
infidelidade partidária entre as hipóteses decorrentes de atos ilícitos no artigo 35 da
Constituição de 1969.796
Quando da elaboração da Constituição de 1988, como demonstrado,
ela foi expressamente excluída do texto. Objeto de diversas emendas, não foi incorporada ao
elenco do artigo 55. Não parece ter cabimento, por consequência, afirmar que ela não
precisava, ou não deveria, ou que seria “acaciano”, constar daquele rol. Ali estava no
ordenamento constitucional anterior, foi ali que tentaram colocá-la. A não inclusão da
hipótese na Constituição, depois de uma Carta que a mencionava e de uma deliberação
constituinte sobre a sua previsão, não permite deslocar sua compreensão para que caiba no
sistema, apesar de tudo isso. Afirmar que a perda de mandato por infidelidade partidária não
constitui sanção para poder extraí-la do sistema como sua decorrência lógica não parece, de
maneira alguma, coadunar-se com a compreensão jurídica e social dessa consequência. Ainda
que os pronunciamentos jurídicos tenham evitado utilizar o termo cassação, essa é a palavra
utilizada para se referir aos mandatários infiéis. E certamente esse é o sentimento do
representante político que é afastado do mandato, apesar do texto constitucional.
Sanção implica a afetação da posição jurídica do indivíduo, seja pela privação de
direitos ou pela imposição de deveres.797
Tem finalidade repressiva, de “reintegração da
ordem jurídico-normativa violada”,798
mas também um caráter preventivo, de “incentivar o
cumprimento da lei, atribuindo ao seu descumprimento uma conseqüência negativa”.799
Até
aqui, não há como se negar que a perda de mandato eletivo configura sanção. Com ela, o
indivíduo, mandatário, perde sua função de representante e as prerrogativas relacionadas ao
795 URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Representação política e parlamento: contributo para uma teoria político-constitucional dos principais mecanismos de proteção do mandato parlamentar. Op. cit., p. 215. 796 Jorge Miranda, ao tratar da perda de mandato regulada pela Constituição portuguesa, afirma que a
hipótese relativa à “inscrição em partido diverso daquele por que o Deputado se tenha apresentado a sufrágio”
corresponde a uma sanção (MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III – Direito Eleitoral e Direito
Parlamentar. Op. cit., p. 239). 797 MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direito administrativo sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 84. 798 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 81. 799 MUNHOZ DE MELLO, Rafael. Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As
sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 42.
210
cargo. Pela posse do suplente ainda vinculado ao partido político pelo qual o trânsfuga se
elegeu, busca-se reintegrar a ordem jurídica e social violada, com a recomposição da
representatividade das forças políticas nas casas parlamentares. A perda de mandato em face
do abandono do partido traz como efeito o desincentivo a este comportamento. Estão
presentes as funções repressiva e preventiva. O abandono do partido, pela leitura dos
ministros, é um fato desaprovado socialmente. À reprovabilidade da conduta estaria ligada
uma consequência danosa. Materialmente, a sanção resta configurada.
No sistema jurídico brasileiro, no entanto, não pode haver sanção sem previsão legal
expressa, seja da definição do ilícito, seja da determinação da pena a ele conectada (artigo 5º,
XXXIX da Constituição). Na hipótese aventada, não há, realmente, previsão em norma
jurídica (legal ou constitucional) nem da conduta que agora se considera reprovável, nem de
sua punição. Mas, sem essa previsão expressa, não parece ser possível imputar a uma conduta
lícita – e derivada da liberdade de associação – um resultado tão grave como a perda do
mandato eletivo. A noção de Estado de Direito consagrado na Constituição de 1988 inibe tais
visões pragmáticas que simplesmente desconsideram o importante “princípio da tipicidade”
como um elemento integrante do ideal de segurança jurídica construído como uma garantia do
cidadão contra a arbitrariedade do Estado (isso em termos genéricos, todavia, a situação se
agrava sobremaneira em se tratando o caso da “pena de perda do mandato representativo” –
por certo a situação nesta hípótese é ainda mais grave).
Acrescente-se a isso a determinação, pelos votos prevalecentes, da garantia do devido
processo legal, com contraditório e ampla defesa, no processo de decretação de perda de
mandato por desfiliação partidária sem justa causa. Essa prescrição, acolhida pela Resolução
22.610, apenas faz sentido em face da aplicação de uma sanção. Se fosse exercício de direito,
ato lícito, sacrifício de direito ou renúncia tácita, não haveria porque cercar a produção de
seus efeitos destas garantias.
A hermenêutica propugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral, notadamente na lavra do
Ministro Carlos Ayres Britto, na realidade promove um gerrymandering interpretativo; ou
seja, sua única função é tentar justificar a “revelação” desta hipótese de perda de mandato
construída em franca oposição ao texto constitucional. No entanto, os argumentos utilizados,
para além de equivocados, são internamente contraditórios.
O entendimento dominante eleva a exigência constitucional de fidelidade partidária
como condição de elegibilidade à condição de fundamento da perda de mandato pelo
abandono do partido pelo qual o representante foi eleito. Isso não está na Constituição. A
211
Constituição não exige – e a prática constitucional não exigiu por vinte anos800
– a filiação
partidária para o exercício do mandato. Exaltar os partidos políticos por seu papel na
democracia (mais o papel que deveriam exercer do que o papel que de fato exercem) não pode
levar a dizer que a Constituição diz mais do que diz. Ainda que possa parecer esquizofrênico
para alguns intérpretes, a Constituição somente permite exigir a filiação partidária para
concorrer a mandato eletivo, não mais que isso.801
A contradição mais explícita parece residir na adoção da resposta do Tribunal Superior
Eleitoral à consulta 1398 como termo inicial para a compreensão da possibilidade de perda de
mandato quando da desfiliação partidária por parte do representante. Os ministros se referem
ao princípio da segurança jurídica e também à natureza jurídica não vinculativa e sem índole
constitutiva das respostas às consultas pela Justiça Eleitoral e, ainda assim, por maioria,
aceitam a perda de mandato a partir dessa manifestação “pedagógica”. O Ministro Gilmar
Mendes alude à publicação das decisões, mas mantém esse termo inicial. Marcante é o
pronunciamento do Ministro Celso de Mello, afirmando que a resposta do Tribunal Superior
Eleitoral indica veemente revisão jurisprudencial, evidenciada pela manifestação de três
ministros do Supremo Tribunal Federal afirmativamente à consulta. Mas o peso das
manifestações anteriores do Supremo Tribunal Federal e a ausência de alteração do texto
constitucional, argumentos mais vigorosos, apontavam em sentido oposto. O Ministro Marco
Aurélio alega essa incongruência, mas fica vencido.
A resposta do Tribunal Superior Eleitoral a consultas, no exercício de sua função
administrativa, não é norma. Não é ato normativo, não cria, não extingue direitos. Jamais
poderia, portanto, servir de termo inicial para a criação de qualquer direito ou restrição, muito
menos de uma hipótese de perda de mandato eletivo. E, ainda que fosse ato administrativo
constitutivo, estaria em franca oposição à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Ainda resta avaliar a postura hermenêutica dos ministros do Supremo Tribunal Federal
e verificar sua adequação a um Estado Democrático de Direito e ao equilíbrio indispensável
entre jurisdição constitucional e democracia.
O Ministro Eros Grau, relator de um dos mandados de segurança, vota pelo não
conhecimento das ações. Verifica a inadequação do instrumento processual em face da
800 Quem sabe o tempo seja a pista. O Supremo Tribunal Federal concordaria com Thomas Jefferson e
considera que a Constituição expirou após dezenove anos, conforme aponta John Hart Ely (ELY, John Hart.
Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. 11). Em
vista das novas circunstâncias, decidiram dar novo significado ao texto, ainda que inequivocadamente contrário à
vontade do constituinte. Nada menos democrático. 801 Afirma Maria Lúcia F. Comparato: “Não há jurídica e legalmente obrigatoriedade de filiar-se a partido
político para desempenhar o mandato até o seu final” (COMPARATO, Maria Lúcia F. Fidelidade Partidária.
Revista de Direito Público, São Paulo, n. 96, p. 283-284, out./dez. 1990, p. 283-284).
212
ausência manifesta de liquidez e certeza do direito alegado pelos partidos políticos. Afirma a
impossibilidade de alterar o sentido da Constituição pela construção jurisprudencial em sede
de mandado de segurança, em que não há dilação probatória.
Essa postura claramente minimalista, que dá resposta à demanda – resposta que quase
coincide com a manifestação da maioria da Corte, pois nove ministros denegam a segurança –
mas não constrói texto constitucional, parece bastante adequada. Os juízes minimalistas
apenas decidem casos, e um de cada vez, sem se posicionar desnecessariamente em
controvérsias, sem construir regras gerais. O que pode parecer covardia para os ativistas (em
todos os sentidos: os que se afastam da Constituição ao decidir, os que contrariam as decisões
anteriores e os que afugentam as decisões democráticas) é o reconhecimento da falta de
legitimidade democrática forte dos juízes, não eleitos e vitalícios.802
O tema da fidelidade partidária, os ministros reconheceram, não é pacífico. Ainda
assim, decidiram, por maioria, construir não apenas uma norma constitucional
inconstitucional (de hierarquia constitucional, porém contrária à Constituição), mas
estabelecer as suas exceções, atribuir competência para a sua aplicação, indicar traços do rito
a ser adotado. A ementa do mandado de segurança 26.603, de relatoria de Celso de Mello,
tem oito páginas, com vários fundamentos que passaram a normatizar a vida democrática sem
passar por um debate político. Os ministros aludiram, muitas vezes, ao que deveria ser, ao que
seria coerente, à sua visão do desenho constitucional adequado para o sistema brasileiro. O
pensamento vitorioso é perfeccionista, pois busca tornar o texto constitucional o melhor
possível a partir da interpretação, da eleição de valores que os ministros consideram mais
elevados.803
Tal posicionamento tende a desrespeitar a democracia e ignorar a falibilidade dos
juízes.804
No caso da fidelidade partidária, os ministros da Corte Suprema desrespeitaram o
poder constituinte, o processo legítimo e democrático da construção da Constituição.
Substituíram a decisão lá tomada, em um processo de ampla e robusta discussão, pela escolha
de onze (ou melhor, oito) ministros. E criaram uma prescrição de hierarquia constitucional em
contradição com uma norma constitucional originária.805
802 Essa é a análise de Cass Sunstein (SUNSTEIN, Cass R. Radicals in robes: why extreme right-wing
courts are wrong for America. Op. cit., p. 27 e ss). 803 Há que se assinalar, no entanto, que o processo democrático de tomada de decisões leva, eventualmente,
à eleição de valores com os quais alguns indivíduos podem discordar fortemente, como aponta John Hart Ely
(ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Op. cit., p. 248 n 52). Efeitos
democráticos de processos democráticos. 804 Novamente como ressalta Cass Sunstein (SUNSTEIN, Cass R. Radicals in robes: why extreme right-
wing courts are wrong for America. Op. cit., p. 51). 805 Ainda que seja possível sustentar falhas na convocação da Assembleia Nacional Constituinte e mesmo
no processo constituinte, por conta da atuação do Centrão (Centro Democrático), questionando seu caráter
totalmente democrático, isso não leva à afirmação de que os tribunais (e muito menos o tribunal máximo) sejam
mais democráticos que a representação política. Aceitar que as legislaturas não são totalmente democráticas não
213
Não se pretende negar a imbricação entre Direito e moral ou se afirmar que a moral é
um campo completamente distinto do Direito. A moral política deve ser considerada o
coração do Direito Constitucional.806
O Direito e a moral são conexos conceitual,
justificatória, interpretativa e diretamente, e a aceitação do Direito como válido pressupõe um
julgamento moral, que também valida o consentimento democrático como critério de
legitimidade.807
Tomada a Constituição como decisão política fundamental,808
o conteúdo
dessa decisão será necessária e ontologicamente embebido de julgamentos, padrões e decisões
morais.809
A estrutura de uma comunidade política810
e a eleição dos valores fundamentais de
convivência e de critério de justiça exigem uma postura moral que dê base para o
ordenamento jurídico.
Uma leitura moral, que reconheça a existência de cláusulas abertas na Constituição a
serem preenchidas por um conceito de justiça compartilhado extra-subjetivamente, não pode
permitir, no entanto, que a concepção moral subjetiva e individual do julgador sobreponha-se
a uma decisão política constituinte democrática.811
A linguagem utilizada pelos ministros que definiram a imposição constitucional da
perda de mandato em caso de desfiliação partidária pelos representantes evidencia uma carga
moralista bastante elevada.812
Há uma sobrevaloração dos partidos políticos, que não parece
torna o Poder Judiciário mais democrático, como ressalta John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and
Distrust: A Theory of Judicial Review. Op. cit., p. 67), não obstante sua atuação possa melhorar o desempenho
democrático daquelas, como indica Ronald Dworkin (DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 2. edição.
Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 426-427). Ainda, com Roberto
Gargarella, é indispensável ressaltar que a decisão judicial não está aberta à participação ou ao controle e que o
Poder Judiciário conta com credenciais democráticas débeis (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al
gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Op. cit.). 806 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral reading of the American Constitucion. Op. cit., p. 2. Ronald Dworkin chega a sugerir que devemos compreender o direito como um departamento da moralidade
(DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p.
34), o que soa exagerado. 807 Conforme o desenvolvimento de Carlos Santiago Nino (NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y
Política: Una revisión de la teoría general del Derecho. Op. cit.). 808 Segundo a leitura de Carl Schmitt (SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Tradução: Jeffrey Seitzer.
Chicago: Duke University Press, 2008 [1928], p. 75). 809 Novamente, como ressalta Carlos Santiago Nino (NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Política:
Una revisión de la teoría general del Derecho. Op. cit., p. 34). 810 Comunidade política implica uma comunidade moral, firmada a partir de condições estruturais e
relacionais (DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral reading of the American Constitucion. Op. cit., p. 23-24). 811 A interpretação das normas constitucionais a partir de exigências morais traz a melhor decisão, “mais
justa e íntegra compreensão da constituição e dos compromissos lá assumidos pela comunidade política”. Mas os
aplicadores do direito devem fazer uma leitura moral “não segundo as suas convicções pessoais ou a tradição da
classe a que pertencem, mas em atenção à história política e social da comunidade em que vivem”, como aponta
Vera Karam de Chueiri (CHUEIRI, Vera Karam de. O discurso do constitucionalismo: governo das leis versus
governo do povo. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). Direito e discurso: discursos do direito.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 161-171, p. 163-164). 812 O realismo reconhece a humanidade dos juízes e a possibilidade de que seus valores pessoais interfiram
em suas decisões. Isso, no entanto, deixa o Estado de Direito na dependência da virtude dos magistrados. Essa
214
ter correspondência na vida política nacional e nem no ordenamento jurídico, bem como a
invenção de um eleitor modelo, racional e razoável, que escolhe seus representantes pela
ideologia partidária e espera de seu eleito o cumprimento dos objetivos estatutários do
partido.813
E, dessas falsas premissas, revelam uma verdade absoluta a partir de um
inexistente pressuposto conjunto de princípios morais objetivo e passível de ser descoberto,
inaceitável para uma sociedade pluralista e democrática.814
Reafirma-se o papel do Poder Judiciário na proteção das regras do jogo
democrático.815
Isso, no entanto, sem afirmar que os ministros, indicados, não eleitos e
vitalícios, refletem melhor do que os representantes os valores sociais e possam estabelecê-los
em substituição àqueles.816
Os constituintes não adotaram a perda de mandato por infidelidade
partidária – não foi sequer uma decisão postergada, foi uma escolha considerada e debatida;
os representantes políticos não emendaram a Constituição para incorporá-la ao sistema. Não
se pode permitir que isso seja feito por “oráculos” judiciais.
A escolha constituinte de um valor e de princípios dele derivados impedem que a
interpretação judicial seja realizada com ampla discricionariedade, inclusive com
fundamentação em valores e princípios contrapostos aos estabelecidos na Constituição.817
A decisão do Supremo Tribunal Federal que constitui a regra constitucional da
fidelidade partidária não passa em nenhum dos testes de conformidade, adequação ou
consistência.818
Não considera o Direito como integridade, pois não respeita a exigência de
estabilidade nem interpreta o sistema de direitos como uma expressão coerente de justiça,819
mas estabelece seu próprio critério de justiça e de conformidade, a partir de uma leitura
subjetiva e perfeccionista. Parte da decisão judicial não como uma questão de princípio, mas
preocupação é compartilhada por John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial
Review. Op. cit., p. 44). 813 Há quase uma mitificação dos partidos, semelhante à realizada em relação ao povo por regimes
falsamente democráticos. Como o povo ícone, apresentado por Friedrich Müller (MÜLLER, Friedrich. Quem é o
povo? A questão fundamental da democracia. 2. ed. Tradução: Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000,
p. 65-73). 814 Como bem acentua John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial
Review. Op. cit., p. 54). 815 Luís Roberto Barroso afirma que geralmente “o processo político majoritário se move por interesses, ao
passo que a lógica democrática se inspira em valores. E, muitas vezes só restará o Judiciário para preservá-los”
(BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 390). 816 John Hart Ely insiste nesse ponto (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial
Review. Op. cit., p. 102-103). 817 Conforme ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Revista Española de
Derecho Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985., p. 23-25. 818 Antes parece adequar-se perfeitamente à caracterização da jurisdição constitucional brasileira feita por
Clèmerson Merlin Clève: “loteria judicial” (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Direitos fundamentais e jurisdição
constitucional. Palestra proferida na Semana Acadêmica do Centro Acadêmico Hugo Simas – UFPR, Curitiba,
17.set. 2008). 819 Como exige o pensamento de Ronald Dworkin (DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p.
441).
215
“de compromisso, estratégia ou acomodação política”,820
afirmando, pragmaticamente, que
isso pode reduzir a crise de representatividade, que pode melhorar a qualidade da democracia.
Não demonstra sua coerência com a compreensão anterior, quebra a “cadeia do Direito”,821
desrespeitando a unidade e transformando a obra pela interpretação.822
O Supremo Tribunal
Federal não compreende o Direito como uma prática social, em que sua decisão compõe um
trabalho coletivo sobre cujo resultado final nenhum sujeito ou colegiado tem controle,823
não
vê a Constituição como uma catedral construída ao longo do tempo ao não considerar o
descompasso de sua decisão com as ações anteriores (e possivelmente posteriores) dessa obra
coletiva que é o ordenamento jurídico.824
Finalmente, a decisão em comento não passa nos testes propostos por Roberto
Gargarella.825
Não respeita a consistência e a igualdade, tratando diferentemente os
mandatários trânsfugas com base em um critério arbitrário, elevando a resposta do Tribunal
Superior Eleitoral à consulta 1398 ao status de norma constitucional; não respeita a prática
democrática (neste caso específico a atuação democrática dos constituintes); não respeita a
autonomia, desqualificando o eleitor que escolhe candidatos e não partidos.
Desde março de 2007, no entanto, aplica-se a perda de mandato por desfiliação
partidária sem justa causa, ainda que não tenha havido alteração constitucional em relação ao
tema. O Supremo Tribunal Federal modifica a configuração constitucional em relação à
liberdade para o exercício do mandato.826
A liberdade para o exercício do mandato eletivo é princípio constitucional
estruturante. Não está ao alcance do poder de reforma da Constituição, do Poder Legislativo e,
com maior razão, do Poder Judiciário. A decisão é eivada de inconstitucionalidade pela
afronta ao princípio. Mas não é só isso.
Essas decisões ofensivas à Constituição também revelam seus vícios a partir de um
duplo ponto de vista. Primeiramente, há uma ausência de legitimidade histórica, evidenciada
tanto em relação à norma positivada – o texto constitucional intencionalmente não acolhe a
820 De forma inaceitável, como aponta Ronald Dworkin (DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral
reading of the American Constitucion. Op. cit., p. 83). 821 Alegoria de Ronald Dworkin (DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 275-286). 822 Como denuncia Vera Karam de Chueiri (CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do Direito e Modernidade. Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: JM Editora, 1995, p.
98-99). 823 Exigência de um sistema democrático, como impõe o pensamento de Carlos Santiago Nino (NINO,
Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 54). 824 Alegoria de Carlos Santiago Nino (NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional:
Análisis filosófico, jurídico y politológico de la práctica constitucional. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2005
[1992], p. 63-66). 825 GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007, p. 87-124. 826 Essa decisão histórica será tratada novamente no capítulo 5 desta segunda parte, quando será analisado
o princípio da estrita legalidade eleitoral.
216
perda de mandato por infidelidade partidária conforme demonstram as discussões na
Assembleia Nacional Constituinte – como considerando as decisões anteriores do Supremo
Tribunal Federal. Em segundo lugar, há uma incompatibilidade sistemática: o mandato eletivo
configurado constitucionalmente é representativo, e o mandatário atua com liberdade; a
previsão de fidelidade partidária está referida ao estatuto dos partidos; e há um conjunto de
prerrogativas direcionadas aos congressistas.
A ausência de legitimidade histórica implica a incompatibilidade sistemática – a
Constituição estabelece o sistema eleitoral, o modelo de mandato e o estatuto dos
congressistas sem incluir nesse desenho a fidelidade partidária. Da inexistência de
incompatibilidade sistemática decorre a ilegitimidade histórica: na falta de suporte
constitucional para a “extração” da fidelidade partidária, a construção jurisprudencial é
incoerente com as decisões constituintes, legislativas e jurisprudenciais anteriores.
217
3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NECESSÁRIA PARTICIPAÇÃO DAS
MINORIAS NO DEBATE PÚBLICO E NAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
O desenho constitucional da democracia brasileira, a partir do ideal republicano e da
exigência de tratamento com igual consideração e respeito de todos os cidadãos, aponta uma
escolha política fundamental em harmonia com os princípios constitucionais gerais: a ênfase
na participação das minorias no debate público e na composição das instituições políticas.827
Trata-se de desenvolvimento do pluralismo político,828
estabelecido como fundamento
da República e que configura a democracia brasileira, e do princípio da igualdade eleitoral.829
A democracia brasileira é fortemente pluralista, o que exige a convivência entre uma
diversidade de concepções de mundo e de crenças e decisões: aberta, com audiência,
participação e diálogo.830
Se, como afirma Jürgen Habermas, o Estado de Direito “estabelece
a esfera pública atuando politicamente como órgão do Estado para assegurar
institucionalmente o vínculo entre lei e opinião pública”,831
a participação, inclusive
institucional, das opiniões e ideologias da sociedade deve ser garantida e fomentada. Afinal
um espaço público excludente não é apenas incompleto: nem sequer é espaço público.832
827 Aroldo Mota ressalta que a preocupação com a representação das minorias estava presente desde a
primeira Constituição republicana (artigo 8º) e repetiu-se com mais ênfase na reforma constitucional de 1926
(artigo 6º, h) (MOTA, Aroldo. O Direito Eleitoral na Constituição de 1988. Fortaleza: Stylus, 1989, p. 69). O
primeiro anteprojeto de Constituição apresentado pelo relator Bernardo Cabral trazia em seu preâmbulo
referência à representação proporcional e à participação das minorias no Parlamento. Para Gilberto Amado, no
entanto, o sistema proporcional não visa à representação das minorias, mas “à representação de todas aquelas
opiniões que, existindo em força numérica suficientemente importante para significar uma corrente de idéias,
têm o direito de influir, na proporção da sua força, no governo do país” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p. 61-62). 828 O pluralismo político é visto, com Alcides Munhoz da Cunha, como a face dinâmica do pluralismo
ideológico (CUNHA, Alcides Munhoz da. Justiça Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Paraná
Eleitoral, Curitiba, n. 33, p. 23-33, jul. 1999, p. 23-33). 829 José Joaquim Gomes Canotilho afirma que “o princípio da igualdade eleitoral não é uma função do
sistema eleitoral a regular pelo legislador. Pelo contrário: o princípio da igualdade, juntamente com outros
princípios constitucionais, possui um caráter constitutivo para a definição e conformação de todo o sistema
eleitoral” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1999, p. 301). Grifos no original. 830 Conforme a concepção de Luis Sanchez Agesta. SANCHEZ AGESTA, Luis. Curso de Derecho
Constitucional Comparado. 7. ed. Madrid: Universidade de Madrid, 1980, p. 101-102. Com José da Cunha Nogueira, “[o] pluripartidarismo possibilita a organização, atuação, evidência e representação de múltiplas
correntes ponderáveis da opinião pública, dando maior liberdade às expressões democráticas, sob o império do
diálogo no entrechoque das oposições” (NOGUEIRA, José da Cunha. Manual prático de Direito Eleitoral. Rio
de Janeiro: Forense, 1989, p. 29). 831 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 [1961], p. 101. 832 Ibid., p. 105. Para o autor, a distribuição desigual dos direitos políticos vigente no Estado liberal não
significava uma exclusão da esfera pública, mas “a mera ratificação jurídica de um status originado
economicamente na esfera privada, ou seja, o status do homem privado ao mesmo tempo educado e proprietário”
(p. 106).
218
Esse ponto de vista também é defendido por Roberto Gargarella. O autor afirma que as
decisões políticas que atinjam as minorias (não necessariamente minorias numéricas, mas os
grupos sem acesso ao poder) devem ser deliberadas e tomadas com a “presença efetiva”
dessas minorias, inclusive institucionalmente. Trata-se de uma exigência epistêmica para
alcançar uma decisão imparcial quanto aos interesses dos afetados e para que argumentos não
compartilhados por todos sejam trazidos para o debate.833
A todos deve se reconhecida a liberdade de participação. Mas isso não é suficiente.
Não basta a possibilidade de serem ouvidos. Impõe-se que todos os interesses sejam
igualmente considerados. A participação de grupos minoritários ou de partidos menores na
tomada de decisão é indispensável para a configuração da democracia. Restam injustificadas,
assim, as determinações infraconstitucionais que restringem a expressão, a participação e a
consideração dos interesses das minorias.
Assim se manifesta Lilian Márcia Balmant Emerique, relacionando a igualdade
eleitoral com a escolha do sistema eleitoral: “o princípio da igualdade eleitoral assume um
caráter constitutivo para a estruturação do sistema proporcional. E o dito sistema, por sua vez,
deve ser encarado como um elemento fundamental para a caracterização do princípio
democrático”.834
Antes, Gilberto Amado já havia defendido o sistema proporcional como
essencial para a igualdade do voto, como o sistema democrático por excelência e como “o
esplendor supremo do sufrágio universal”.835
O pluralismo político é o fundamento do princípio constitucional da necessária
participação das minorias no debate público e nas instituições políticas.
Karl Loewenstein aponta o pluralismo (em sentido amplo, incorporando aspectos
religiosos, culturais e profissionais) como um dos controles verticais entre os detentores e os
destinatários do poder, ao lado do federalismo e das garantias das liberdades individuais. Para
o autor, a existência de grupos pluralistas limita os detentores do poder e as decisões políticas,
em livre competição, formam-se a partir de um compromisso entre os interesses pluralistas.836
No pluralismo, há uma “sociedade disposta sobre uma multiplicidade de grupos
portadores de interesses diversos”, não necessariamente incompatíveis. E a finalidade de uma
democracia pluralista, acentua Lilian Márcia Balmant Emerique, é a institucionalização da
833 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia
política. Tradução: Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1999], p. 173-174. O autor questiona a
política de cotas, mas defende uma política de grupos. 834 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito fundamental como oposição política: discordar, fiscalizar
e promover alternância política. Curitiba: Juruá. 2006, p. 60. 835 AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p. 52 e 73. 836 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 422-425.
219
divergência.837
Já o princípio proporcional é constitutivo do desenho democrático brasileiro e
é instrumento de garantia da participação das minorias no debate público e nas instituições
políticas.838
3.1 O SISTEMA ELEITORAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
A Constituição traz como constitutivo da democracia brasileira a exigência de um
debate robusto, em que todas as vozes têm espaço para sua manifestação e devem ser levadas
a sério839
e uma de suas evidências é a configuração do sistema eleitoral.
Na democracia brasileira “toda ou qualquer seção [do povo] deve ser representada, não
desproporcionalmente, mas proporcionalmente”, com a eleição de representantes da minoria,
que serão a minoria dos representantes.840
A representação proporcional busca a igualdade na
relação número de votos / número de cadeiras, criando uma situação de “justiça eleitoral”,841
desejada e configurada pela Constituição.
Sistema eleitoral é a fórmula que traduz a vontade popular em representação política,
“o conjunto de técnicas e procedimentos que se empregam na realização das eleições,
destinados a organizar a representação do povo no território nacional”.842
837 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito fundamental como oposição política: discordar, fiscalizar
e promover alternância política. Op. cit., p. 87 e 90. 838 Em face da Constituição de 1967, Pontes de Miranda se refere a dois reflexos do princípio proporcional:
a proporcionalidade na composição dos órgãos legislativos e a proporcionalidade na representação interna ou
“princípio da co-participação pluripartidária nas Comissões” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. t. 4, p. 564). Roberto Barcellos de
Magalhães também ressalta o sistema porporcional na Carta de 1967 e afirma sua capacidade de distribuição equititativa de representação das correntes de opinião (MAGALHÃES, Roberto Barcellos de. A Constituição
Federal de 1967 comentada. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. t. 2, p. 385). 839 Para Reinhold Zippelius, “[f]az parte da concepção básica de democracia que todos os possíveis
interesses e opiniões tenham uma oportunidade de competirem entre eles, e que procurem adquirir influência
sobre a acção estatal” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução: Karin Praefke-Aires
Coutinho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994], p. 299). 840 MILL, John Stuart. Governo Representativo. Tradução: E. Jacy Monteiro. São Paulo: Ibrasa, 1964
[1861], p. 89. 841 MEYNAUD, Jean. Sistemas eleitorais. Brasília: Projeto Rondon, [1980?]. 842 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 368. Para Augusto Aras, sistema eleitoral é o “conjunto de técnicas que se prestam a organizar o eleitorado e designar a forma como serão eleitos os representantes políticos dos cidadãos, explicitando o modo com que os
votos dos eleitores se materializarão em mandatos eletivos” (ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de
mandato parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 87). José Antônio Giusti Tavares, por sua vez,
afirma: “Sistemas eleitorais são construtos técnico-institucional-legais instrumentalmente subordinados, de um
lado, à realização de uma concepção particular da representação política e, de outro, à consecução de propósitos
estratégicos específicos, concernentes ao sistema partidário, à competição partidária pela representação
parlamentar e pelo governo, à constituição, ao funcionamento, à coerência, à coesão, à estabilidade, à
continuidade e à alternância dos governos, ao consenso público e à integração do sistema político” (TAVARES,
José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 17).
220
A escolha do sistema eleitoral a ser aplicado é uma decisão política fundamental de
âmbito constitucional e influencia a participação popular na formação da vontade política e a
organização partidária.
Embora se reconheça a existência de tantos sistemas eleitorais quanto forem os
diplomas legislativos que o normatizem,843
serão analisados aqui os dois tipos ideais: o
sistema majoritário e o sistema proporcional, este último também conforme disposto ao longo
do tempo na legislação brasileira.
Em estudo aprofundado sobre o tema, Luís Virgílio Afonso da Silva apresenta cinco
variáveis dos sistemas eleitorais844
: a) a magnitude da circunscrição (a quantidade de
mandatos a serem definidos em cada circunscrição) e sua divisão e distribuição geográfica; b)
a forma de apresentação das candidaturas (pessoal ou pelos partidos políticos); c) a
modalidade do voto; d) a fórmula eleitoral; e) a magnitude da câmara (a quantidade de
representantes políticos). O autor afirma duvidar da importância deste último item na
configuração dos sistemas eleitorais – pois seria absorvido pela magnitude da circunscrição
eleitoral.845
Em relação ao primeiro ponto, a existência de um único cargo em disputa exclui a
aplicação do sistema proporcional. É o que acontece na eleição para chefe do Poder Executivo
nas três esferas da Federação e quando o Senado é renovado por um terço. Nos demais casos,
os dois sistemas são aplicáveis. No Brasil, adota-se o sistema majoritário também na
renovação de dois terços do Senado e o sistema proporcional para as demais casas
legislativas.
A fórmula eleitoral é o que caracteriza, de fato, o sistema eleitoral, ao traduzir a
vontade popular em representação política. Pode ser majoritária (em que são eleitos os
candidatos que alcançarem o maior número de votos) ou proporcional (que leva em
consideração os votos dados ao partido ou coligação e os atribuídos a outros candidatos sob a
843 Trata-se de um tema que encontra tratativa por juristas e por cientistas políticos. Algumas colaborações
destes serão trazidas ao trabalho, nos limites possíveis de quem não compartilha sua gramática. Ainda, será dada atenção às análises científicas, mas principalmente às escolhas constituintes, jurisdicizadas em dispositivos de
hierarquia superior. 844 Arend Lijphart indica sete parâmetros para a caracterização dos sistemas eleitorais: fórmula eleitoral,
magnitude dos sistemas eleitorais, barreira eleitoral, número total de membros da assembleia eleita, influência
das eleições presidenciais sobre as eleições legislativas, grau de desproporcionalidade e vínculos eleitorais
interpartidários (LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.
170). Para a presente pesquisa, assume-se como suficiente a sistematização de Luís Virgílio Afonso da Silva
(SILVA, Luís Virgilio Afonso da. Sistemas eleitorais: tipos, efeitos jurídico-políticos e aplicação ao caso
brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999). 845 Ibid., p. 41 e seguintes.
221
mesma legenda para determinar os eleitos).846
Quando há a adoção do sistema majoritário
para a eleição do Parlamento com a divisão em distritos da circunscrição, fala-se em sistema
distrital.
Ao tratar dos dois princípios, Arend Lijphart estabelece a distinção entre democracia
majoritária e democracia consensual, quando da resposta à questão de quem governa e quais
interesses o governo deve atender – a primeira afirma a prevalência da maioria do povo e
adota o sistema majoritário; a segunda impõe a necessidade de abranger o maior número
possível de pessoas, determina a negociação e acolhe o sistema proporcional.847
A divisão da circunscrição coincide com a divisão geográfica dos estados federados e
dos municípios. Na formação da Câmara de Deputados, pelos limites impostos pela
Constituição,848
há disparidade entre o peso do voto nos diversos estados,849
mas isso não
ocorre nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. No caso da adoção do
sistema distrital, a divisão dos distritos passa a ser determinante para a legitimidade e
autenticidade do resultado da eleição.
Embora as agremiações partidárias existam desde o Império, apenas a partir de 1945
passou-se a exigir que os candidatos a cargos eletivos fossem apresentados pelos partidos
(artigo 39 do Decreto-Lei 7.586/45 – Lei Agamenon). O Código Eleitoral de 1932 previa o
registro, cinco dias antes da eleição, de candidatos apresentados por partidos, aliança de
partidos ou grupo de pelo menos 100 pessoas. Na Constituinte de 1934, além dos deputados
eleitos diretamente, havia representantes classistas, escolhidos por delegados dos sindicatos e
associações. Durante as discussões sobre a convocação da Assembleia Nacional Constituinte
de 1988 muitos juristas defenderam a possibilidade de candidaturas avulsas,850
mas a proposta
foi afastada.
846 Luís Virgílio Afonso da Silva apresenta diversas fórmulas proporcionais e discorre sobre as vantagens
de cada uma delas (Ibid., p. 52-64). José Antônio Giusti Tavares estabelece um continuum de proporcionalidade
em que a eleição por pluralidade em listas partidárias hierarquizadas, fechadas e bloqueadas em uma
circunscrição nacional ocupa o extremo da não proporcionalidade absoluta e a representação proporcional
integral em colégio eleitoral nacional único está no extremo da perfeita proporcionalidade (TAVARES, José
Antônio Giusti. Op. cit., p. 18). 847 LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Op. cit., p. 17-19. 848 Artigo 45, caput e parágrafo 1º da Constituição: “Artigo 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de
representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. § 1º O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será
estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no
ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de
setenta Deputados”. 849 Segundo dados da eleição de 2006 para deputado federal, o quociente eleitoral – número de votos
necessários para a eleição de um deputado – de São Paulo foi de 292.676 votos, enquanto o de Roraima
representou 23.866 eleitores. Essa disparidade também é tema de discussão da eterna reforma política. 850 Entre eles Eros Roberto Grau, Márcio Thomaz Bastos, Ives Gandra da Silva Martins e Dalmo de Abreu
Dallari. A possibilidade de apresentação de candidaturas avulsas, para Orides Mezzaroba, é um fator de
desprestígio e de tentativa de dispersão dos partidos políticos (MEZZAROBA, Orides. O Partido Político no
222
Interessante ressaltar que, no âmbito do ordenamento espanhol, Óscar Sánchez Muñoz
aponta a liberdade de apresentação de candidaturas como constitutiva do princípio da
igualdade na disputa eleitoral e como reflexo do pluralismo. Lá a apresentação de candidatos
pode ser feita por partidos, federações e coalizões de partidos e por agrupamentos de eleitores.
O autor ressalta como requisitos democráticos da elaboração das candidaturas a democracia
intrapartidária e a democracia paritária.851
A exigência de apresentação de candidaturas pelos partidos faz Luís Virgílio Afonso
da Silva afirmar que o sistema proporcional adotado no Brasil é de lista fechada e não-
hierarquizada, em contraposição às listas bloqueadas (nas quais a ordem dos candidatos a
preencherem as vagas obtidas pelos partidos é definida em convenção) e às listas abertas (em
que “não só é permitido ao eleitor reordenar a ordem dos candidatos de uma lista partidária,
como também a ele é facultado escolher entre diversos candidatos de várias listas”).852
Na
linguagem política, no entanto, o sistema brasileiro é considerado de lista aberta, ao permitir
que o eleitor decida sobre quais os candidatos apresentados pelos partidos serão eleitos.853
Desde 1932, o Brasil adota o sistema proporcional, com alterações. No primeiro
modelo, as vagas não distribuídas pelo quociente eleitoral (divisão do número de votos pelo
número de cadeiras da casa legislativa, cabendo a cada partido o número de vagas
equivalentes ao resultado da divisão do número de votos por ele recebidos pelo quociente
eleitoral) eram destinadas aos candidatos majoritários. Essa fórmula foi afastada com o
Decreto-Lei 7.586/45 (Lei Agamenon) que introduziu o sistema exclusivamente proporcional
para a Câmara dos Deputados. Para o cálculo do quociente eleitoral os votos válidos incluíam
os em branco (artigo 45), e as sobras eram preenchidas pelo partido mais votado (artigo 48).
Brasil: teoria, história, legislação. Joaçaba: UNOESC, 1995, p. 50 e 82). Se não resta dúvida quanto à sua
afirmação em eleições ordinárias, não se aplica idêntico raciocínio em relação à Constituinte, principalmente
pela possibilidade de ser uma Assembleia Constituinte exclusiva. Sobre o assunto e sobre o processo
constituinte, ver a pesquisa anterior da autora (SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e democracia - Tijolo
por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2007). 851 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 91, 105 e 132 e seguintes. Para o autor, o monopólio
dos partidos na apresentação das candidaturas não seria antidemocrático, desde que não existissem especiais restrições à criação e ao funcionamento dos partidos e à apresentação das candidaturas, garantindo, assim, que o
pluralismo político tenha reflexo na competição eleitoral (p. 110). Para além dessas características, no entanto,
também os demais requisitos relacionados à igualdade na disputa eleitoral. 852 SILVA, Luís Virgilio Afonso da. Op. cit., p. 46. 853 NICOLAU, Jairo. Voto personalizado e reforma eleitoral no Brasil. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon;
RENNÓ, Lucio R. (Orgs.).Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.
23-33, p. 25-26. O autor faz referência à singularidade do sistema brasileiro em relação ao voto na legenda, que
influencia no número de cadeiras distribuídas ao partido, porém não na distribuição de cadeiras entre os
candidatos. Afirma que “[n]o extremo, uma eleição em que todos os eleitores votassem na legenda, não haveria
uma definição sobre quais candidatos seriam eleitos” (p. 27).
223
Nova mudança ocorreu com o Código Eleitoral de 1950 (Lei 1.164). No parágrafo 1º
de seu artigo 46, o Código mantinha o sistema proporcional para a eleição da Câmara dos
Deputados, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais e previa a aliança de
partidos (artigo 47). Na apuração do voto dava-se maior prestígio à legenda partidária. O
cálculo do quociente eleitoral alterou-se apenas quanto à distribuição das sobras, que passou a
ser feita pelas maiores médias entre os partidos que alcançavam o quociente eleitoral, mantido
até os dias atuais.
O Código Eleitoral de 1965 (Lei 4.737), ainda em vigor apesar das inúmeras
modificações e artigos não mais aplicados embora não revogados expressamente, mantém as
regras para a distribuição das vagas pelo sistema proporcional. O artigo 105 proibia as
coligações partidárias para as eleições proporcionais, vedação afastada pela Lei 7.454/85
(artigo 6º).
A Constituição de 1988, ao dispor sobre a eleição para a composição da Câmara de
Deputados, fixa no caput do artigo 45 o sistema proporcional, sem detalhar sua fórmula,
recepcionando a tratativa do Código Eleitoral de 1965. Como última mudança em relação ao
sistema, a Lei 9.504/97 (Lei das Eleições) revogou o parágrafo único do artigo 106 do Código
Eleitoral, excluindo os votos em branco do cálculo do quociente.
A sociedade brasileira é heterogênea.854
A Constituição mostra a convivência de
interesses e ideologias distintos, que se encontraram na Assembleia Nacional Constituinte e
costuraram um texto compromissório. O pluralismo político é um dos fundamentos da
República brasileira.855
Para encontrar eco nas instituições políticas – essencialmente
representativas – é necessário que o sistema eleitoral permita a representação das diversas
formas de pensar existentes na sociedade.856
Essa a defesa que, ainda no século XIX, fazia John Stuart Mill: o sistema
representativo deve ser estruturado de maneira a não possibilitar “a qualquer dos diversos
interesses parciais tornar-se tão poderoso que chegue a prevalecer contra a verdade e a justiça
e contra os outros interesses parciais combinados”.857
No mesmo sentido e pouco mais de
854 Para Arend Lijphart o sistema majoritário mostra-se perverso nas sociedades com menor grau de homogeneidade, configurando-se como antidemocrático e perigoso, ao assinalar a falta de acesso institucional às
minorias, podendo levar a uma ditadura da maioria e ao enfrentamento civil (LIJPHART, Arend. Modelos de
democracia. Op. cit., p. 52-53). 855 E o multipartidarismo é a projeção associativa do pluralismo político (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La
igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 49). 856 “A representação proporcional é o primado do princípio democrático”, afirma Antônio Carlos Mendes
(MENDES, Antônio Carlos. Representação proporcional (estudo de um caso). In: FIGUEIREDO, Marcelo;
PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de
Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 89-102., p. 89). 857 MILL, John Stuart. Governo Representativo. Op. cit., p. 87.
224
uma década mais tarde, a análise de Francisco Belisário Soares de Souza aponta a necessidade
de participação das minorias nas deliberações do Parlamento, afirmando ser “da índole do
sistema parlamentar que todas as opiniões venham apresentar suas armas na arena, da qual
saem as leis e o governo da sociedade”.858
Ainda que esses argumentos tenham sido utilizados para evitar o domínio absoluto das
maiorias populares a partir da adoção do sufrágio universal, a manutenção do sistema
proporcional nas democracias contemporâneas serve para temperar os Parlamentos com os
interesses das minorias sociais, econômicas, culturais e políticas, mesmo que sejam maiorias
numéricas. Ou seja: se antes a defesa do sistema proporcional se destinava à proteção da
minoria proprietária, hoje pode servir para dar voz à minoria identificada como grupo sem
poder, ainda que numericamente majoritária.859
A maioria é “linguagem da decisão”,860
mas quem governa é a sociedade, afirma Assis
Brasil. A única representação verdadeira é a que leva em consideração toda parcialidade
política, para que essa se faça ouvir e influencie a tomada de decisão ou se conheçam seus
defeitos: “Frauda a opinião, sem cumplicidade dos homens e sem culpa de ninguém, a não ser
o legislador, a lei que estatue que metade e mais um do eleitorado farão a totalidade dos
representantes”.861
Ressalta Georges Burdeau que a representação proporcional impõe-se por um
argumento de justiça, pois é o único sistema que assegura a igualdade de voto. No entanto,
não assegura a eficácia do governo e é difícil de ser aplicado e compreendido pelo
eleitorado.862
858 SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979 [1872], p. 143. 859 Sobre as diferentes concepções de minoria ver GARGARELLA, Roberto. Crisis de la representación
política. Ciudad de México: Fontamara, 1997, p. 30-31. 860 Afirma Wanderley Guilherme dos Santos que a produção de decisões depende da magnitude da
distribuição de cadeiras, dos requisitos parlamentares de decisão e das virtualidades de coalizão, enquanto que a
distribuição de cadeiras entre os partidos depende das preferências do eleitorado (SANTOS, Wanderley
Guilherme dos. Governabilidade e democracia natural. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 82). 861 ASSIS BRASIL, J-F. de. Democracia representativa: do voto e do modo de votar. Paris: Guillard,
1895, p. 49-51, 132 e 250. Seu projeto de lei, apresentado ao final de sua obra, combina o princípio proporcional
com o princípio majoritário, para harmonizar a representação da minoria com a consolidação de uma maioria
parlamentar capaz de trazer estabilidade e solidez na administração do interesse público: os candidatos que alcançarem o quociente eleitoral são considerados eleitos em primeiro turno e as vagas que sobrarem são
preenchidas pelos mais votados, em um sistema de votação que permite ao eleitor votar em um nome no topo da
cédula (voto em primeiro turno) e em mais quantos nomes quiser (segundo turno). Este modelo foi adotado pelo
Código Eleitoral de 1932. 862 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Tradução: Ramón Falcón Tello.
Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 189-190. Para o autor, a representação proporcional “presenta un
valor indiscutible, ya que sustituye por una representación equitativa al sistema mayoritario en el que la
minoría no es nada”. Hans Kelsen afirma que o Parlamento deve ser fundado sob o sistema proporcional
(KELSEN, Hans. A democracia. Tradução: Ivone Castilho Benedetti et alii. São Paulo: Martins Fontes, 2000
[1955], p. 71. Trata-se do ensaio “Essência e valor da democracia”, publicado em 1920 e revisto em 1929).
225
O sistema eleitoral proporcional reflete uma luta eficaz pela proteção das minorias e se
revela parcialmente incapaz de refletir todas as correntes de interesses por conta da
centralização da eleição nos partidos políticos, que não conseguem absorver todas as
tendências do povo, acentua Georg Jellinek.863
Carré de Malberg afirma que a adoção da representação proporcional contraria o
governo representativo.864
Neste, o papel da Assembleia é querer pela nação, como uma
unidade, e não representar as diversas opiniões ou interesses da sociedade. O autor insere a
discussão sobre a escolha entre o princípio majoritário e o princípio proporcional no contexto
da controvérsia sobre a natureza jurídica do sufrágio, afirmando que o primeiro se coaduna
com a percepção do sufrágio como uma potestade coletiva e o segundo se harmoniza com
uma concepção de um poder individual, afastando essa ao negar um direito de soberania
individual.865
A partir de outros pressupostos e mais de um século antes, Benjamin Constant se
posiciona a favor da eleição por distritos, contra um colégio eleitoral único. Vê o interesse
geral como a transação entre os interesses particulares e a representação geral como a
“representação de todos os interesses parciais que terão de transigir naquilo que lhes é
comum”. A parcialidade de cada um, unida em assembleia, transforma-se na imparcialidade
de todos.866
Bernard Manin aponta que o sistema proporcional leva a governos de coalizão, o que
impede um controle popular da atuação dos representantes por meio de juízos retrospectivos.
Além disso, acentua a possibilidade de acusação mútua pelas decisões legislativas
impopulares, o que faz decrescer a responsabilização do mandatário.867
Não obstante, o princípio proporcional é o mais adequado para garantir o caráter
deliberativo da democracia brasileira e a participação das minorias nas instituições políticas e
863 JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 74. 864 “La elección proporcional es una institución esencialmente democrática, y que, por ello mismo, se
concilia difícilmente con las tendencias casi aristocráticas que originalmente se hallaban contenidas en el
régimen llamado representativo. Por su misma naturaleza, está destinada a evolucionar en el sentido de la
democracia directa” (MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. Tradução: José Lión Depetre.
Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2001 [1922], p. 1156 n 7). 865 Ibid., p. 1060-1063 e 1108-1111. 866 CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: Princípios políticos aplicáveis a todos os
governos representativos e particularmente à Constituição atual da França. Tradução: Maria do Céu Carvalho.
Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989 [1815], p. 102-106. Para o autor, “[c]em deputados escolhidos por cem distritos
de um Estado levam para a assembléia os interesses particulares, as preocupações locais de seus constituintes.
Essa origem lhes é útil. Forçados a deliberar juntos, logo se dão conta dos respectivos indispensáveis sacrifícios.
No esforço para diminuir sua extensão reside uma das maiores vantagens da forma de sua designação. A
assembléia acaba sempre por uni-los em acordos e quanto mais fragmentada forem as eleições, a representação
terá um caráter mais geral” (p. 105). 867 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Tradução: Fernando Vallespín. Madrid:
Alianza Editorial, 1998 [1995], p. 222.
226
no debate público. A soberania popular é o princípio legitimador do exercício do poder
político no Brasil e se exerce coletivamente. A Constituição elege o pluralismo político como
fundamento do Estado brasileiro (artigo 1º, V).868
O pluralismo político e a representação
política relacionam-se com a noção político-representativa constitucional e a adoção do
sistema proporcional garante a “fidelidade da representação àquela pluralidade de idéias
existente no interior da sociedade brasileira”.869
E por isso, além da inequívoca escolha expressa no texto constitucional,870
o sistema
proporcional para a eleição de deputados e vereadores é o mais adequado. Ao permitir que as
casas legislativas sejam compostas de representantes vinculados a distintas correntes
ideológicas, reflete de maneira mais ampla a diversidade na sociedade brasileira e promove a
coexistência das diversas tendências político-ideológicas na arena política.
Jairo Nicolau evidencia as preocupações do sistema proporcional: “a) assegurar que a
diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refletida no Parlamento; e b) garantir
eqüidade matemática entre os votos dos eleitores e a representação parlamentar”.871
José
Joaquim Gomes Canotilho ressalta que o sistema proporcional invoca a igualdade material (ao
atender à exigência de voto igual), a adequação à democracia partidária e a representação de
todos os grupos sociais.
Embora a intenção do sistema proporcional seja permitir que a representação seja
proporcional às preferências políticas manifestadas pelo eleitorado, sua capacidade de
reprodução do espectro social não é absoluta. Sempre há perdas, e em favor dos maiores
partidos. Jefferson Dalmoro e David Fleischer afirmam que no Brasil parte do desvio se deve
à discrepância entre o peso do voto do eleitor nos diferentes estados e sugerem uma fórmula
868 “O modelo pluralista [de Estado] corresponde à exigência ética de garantir ao maior número possível de
pessoas um espaço autónomo para o desenvolvimento da sua personalidade e garantia dos seus interesses que
seja compatível com os interesses e desejos de desenvolvimento, igualmente legítimos, dos seus concidadãos”
(ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 301). 869 MEZZAROBA, Orides. O humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa
brasileira contemporânea. In:_____. Humanismo latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2003, p. 59-101, p. 93-93. 870 Essa a opinião de José Antônio Giusti Tavares. O autor assinala a previsão (e seu afastamento, no
decorrer de processo constituinte) de sistema misto (distrital e proporcional) no primeiro projeto de Constituição e no primeiro substitutivo, o que revela a consagração do “consenso histórico de que desfruta a representação
proporcional no Brasil” (TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas:
teoria, instituições, estratégia. Op. cit., p. 23). Vale ressaltar que o sistema de representação proporcional é limite
material expresso ao poder de reforma na Constituição portuguesa (artigo 288º, h), não sendo admissível sua
relativização ou “qualquer „engenharia de círculos‟ que perverta, na prática, a regra da proporcionalidade”
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
1999, p. 301). Assim dispõe o artigo 288 da Constituição portuguesa: “As leis de revisão terão de respeitar: ... h)
O sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania,
das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional”. 871 NICOLAU, Jairo. Sistemas eleitorais: uma introdução. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 31.
227
eleitoral distinta para cada estado.872
Miguel Reale aponta a “aparência de representação
proporcional”, viciada pela desproporção dos representantes de cada Estado, apontando como
efeitos possíveis a eleição de um presidente com minoria na Câmara, a possibilidade de um
partido ser o mais votado no país e ter “posição secundária na Câmara” e ainda a sobre-
representação de um partido com força política em determinados colégios eleitorais: “dotado
de ponderável bancada e diminuto quociente eleitoral”.873
Assis Brasil apresenta a adoção de um distrito eleitoral nacional único para a eleição
dos deputados federais como o ideal para alcançar uma proporcionalidade mais efetiva, e em
virtude da maior liberdade para o exercício do mandato e maior independência em relação aos
interesses particulares e às conveniências locais, mas indica a imensa dificuldade representada
pelo vasto território nacional874
.
Os opositores do sistema proporcional875
defendem a superioridade das vantagens do
princípio majoritário, como o favorecimento da governabilidade, a estabilidade dos governos,
capacidade de ação, a tendência ao bipartidarismo ao impossibilitar, na prática, a
sobrevivência de pequenos partidos e a formação de uma oposição consistente.876
Crítico da
representação proporcional, Luiz Navarro de Britto afirma que ela “constrói um mecanismo
de estrangulamento das correntes de opiniões majoritárias”, negando operacionalmente a
democracia.877
Segundo Miguel Reale, o princípio da representação proporcional ocasiona o
“multiplicar-se desmedido dos partidos políticos, com o gravame de uma carência quase
absoluta de substância doutrinária”.878
Para Augusto Aras, o número reduzido de partidos,
proporcionado pela adoção do princípio majoritário, confere maior estabilidade ao governo ao
872 DALMORO, Jefferson; FLEISCHER, David. Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o
problema da proporcionalidade. In: KRAUSE, Silvana; SCHMITT, Rogério (Orgs.). Partidos e coligações eleitorais no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2005, p. 85-113, p. 92. 873 REALE, Miguel. O sistema de representação proporcional e o regime presidencial brasileiro. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 7, p. 9-44, nov. 1959, p. 30. 874 ASSIS BRASIL, J-F. de. Democracia representativa: do voto e do modo de votar. Op. cit., p. 212-213. 875 O sistema proporcional brasileiro passou a sofrer um maior questionamento a partir de 2002, com o
“fenômeno Enéas”. Enéas Carneiro, candidato ao cargo de deputado federal pelo Partido da Reedificação da
Ordem Nacional (PRONA) por São Paulo, obteve 1.573.642 votos (8,02% dos votos válidos na eleição de 2002).
Com isso, seu partido elegeu também Amauri Gasques (com 18.421 votos), Prof. Irapuan Teixeira (com 673
votos), Elimar (com 484 votos), Ildeu Araújo (com 382 votos) e Vanderlei Assis (com 275 votos). Ficaram de
fora da lista de eleitos, por exemplo, Jorge Tadeu do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (com
127.977 votos) e Paulo Kobayashi do Partido da Social Democracia Brasileira (com 109.442 votos) [dados disponíveis na página do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (http://www.tre-sp.gov.br/eleicoes/
elei2002/res1t/depfed.htm). Acesso em 23 de março de 2009]. 876 Wanderley Guilherme dos Santos critica o argumento de que o princípio majoritário gera mais
qualidade dos corpos representativos, afirmando que “os sistemas eleitorais não filtram caráter ou competência
parlamentar, apenas traduzem a capacidade diferencial dos candidatos em acumular votos” (SANTOS,
Wanderley Guilherme dos. Governabilidade e democracia natural. Op. cit., p. 79). 877 BRITTO, Luiz Navarro. A representação proporcional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
Horizonte, n. 19, p. 237-255, jul. 1965, p. 254. 878 REALE, Miguel. O sistema de representação proporcional e o regime presidencial brasileiro. Op. cit.,
p. 21.
228
reduzir o confronto entre correntes políticas, o que tem como efeito negativo enfraquecer a
“dialética democrática”.879
A defesa de um dos princípios para a configuração do sistema eleitoral depende da
escolha política de uma prioridade – se a função primordial das eleições parlamentares é
garantir uma sólida base de apoio ao governo, dá-se preferência ao sistema majoritário; se a
principal preocupação é garantir a expressão dos diversos grupos sociais, o sistema
proporcional será adotado. Pela leitura da Constituição, é possível reconhecer a tomada de
decisão em favor da ampla representatividade das diversas correntes de pensamento. E a
aplicação do sistema proporcional na prática evidencia seu potencial de representatividade das
ideologias existentes na sociedade.880
Analisando o sistema proporcional brasileiro adotado em 1945, Luiz Navarro de Britto
afirma que a representação proporcional mostrou-se “um instrumento conservador,
comprometendo a dinâmica da vida política brasileira”. Aduz que o sistema brasileiro
dificulta o surgimento de novas forças políticas e distorce a opinião das minorias em face da
desigualdade da representação do eleitorado dos diversos estados. Aponta, como Miguel
Reale,881
a desvirtuação da representação das opiniões no regime presidencialista, em que os
partidos formam governos de coalizão. Ressalta ainda o desvio na vontade do eleitor quando
da formação de coligações.882
Em relação à alegada “ingovernabilidade”, não resta razão aos opositores do sistema
proporcional. Fábio Wanderley Reis afirma que a governabilidade é um atributo da sociedade,
e não do aparelho estatal e que sua concepção está relacionada à ideia de eficiência, à
obtenção de resultados a partir de fins dados. Na democracia, no entanto, parte-se da
multiplicidade e da problematização dos fins, de amplo espectro de atores e interesses, que
devem ser conciliados a partir de uma discussão democrática. O único enfoque que interessa,
neste ponto, seria a “governabilidade em sentido próprio”, ou seja, possibilitar que a
sociedade reconheça no Estado seu agente autêntico.883
879 ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Op. cit., p. 97-98. 880 Os resultados da eleição de 2006 para a composição da Assembleia Legislativa do Paraná reforçam esse
argumento. Treze partidos obtiveram vagas – embora três deles só tenham conseguido graças a suas coligações, pois não conseguiram atingir o quociente eleitoral. Levando-se em consideração os partidos consolidados que
concorreram isoladamente (pois as coligações falseiam um tanto o resultado da eleição), o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro obteve 29,68% dos votos válidos e 31,48% das cadeiras e o Partido da
Social Democracia Brasileira contou com 12,39% dos votos e ficou com 12,96% das vagas de deputado estadual. 881 REALE, Miguel. O sistema de representação proporcional e o regime presidencial brasileiro. Op. cit.,
p. 87-93. 882 BRITTO, Luiz Navarro. A representação proporcional. Op. cit., p. 237-255. 883 REIS, Fábio Wanderley. Dilemas da democracia no Brasil. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio
Octávio (Org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 391-409, p.
391-409. Jônatas Machado acentua que há uma conexão interna entre os direitos civis e políticos e dos direitos
229
Cesareo R. Aguilera de Prat denuncia que as teses sobre a ingovernabilidade são de
inpiração neoconservadora, preocupadas com as garantias do Estado de Direito que fazem o
princípio democrático “transbordar” e prejudicam o “rendimento” do regime. Seus principais
alvos são a “excessiva” proliferação de partidos e “la presión cruzada de crecientes demandas
sociales difícilmente armonizables, seleccionables y aplicables”.884
Para Fábio Konder Comparato, a questão política brasileira não se centra em uma
pretensa crise de governabilidade, mas na “tentativa absurda de fazer funcionar a democracia
sem o povo”.885
Uma das críticas feitas ao sistema proporcional, no entanto, deve ser considerada,
embora sob um prisma ligeiramente diverso. Brada-se contra a existência de um número
excessivo de partidos políticos886
como efeito da adoção do sistema proporcional. Isso é
inegável ao se contrapor com a aplicação do princípio majoritário para todos os cargos. Não
se concorda, contudo, que seja um mal em si.887
Como já defendido, a democracia brasileira é
eminentemente representativa e o ordenamento jurídico exige a intermediação dos partidos
para a escolha dos representantes. Logo, a configuração jurídico-política brasileira exige
partidos que alcancem largamente o espectro ideológico compartilhado pela sociedade. Além
disso, outras formas de controle da proliferação partidária são encontradas no Direito
brasileiro, como a distribuição desigual do fundo partidário, a concessão graduada do direito
de antena e a polêmica cláusula de barreira, manifestamente inconstitucional.
Ressalte-se, novamente, que o pluralismo político é um dos princípios fundamentais
da República, elencado no artigo primeiro da Constituição. Assim sendo, a existência de
sociais, pois o estabelecimento dos objetivos sociais – os fins do agir estatal – devem partir de um “procedimento aberto, informado e reflexivo de discussão e crítica pública” (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de
expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 86). 884 AGUILERA DE PRAT, Cesareo R. Problemas de la democracia y de los partidos en el Estado social.
Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Madrid, n. 67, p. 93-123, ene./mar. 1990, p. 104-105. 885 COMPARATO, Fábio Konder. Sentido e alcance do processo eleitoral no regime democrático. Revista
Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 17, p. 220-228, 1997, p. 225-226. 886 Assis Brasil afirma que a preocupação com a existência de muitos partidos traduz-se como medo à
liberdade (ASSIS BRASIL, J-F. de. Democracia representativa: do voto e do modo de votar. Op. cit., p. 149).
Presume-se, no entanto, que nos primórdios da República não se imaginasse como viável a coexistência de 29
partidos políticos nacionais. Reinhold Zippelius afirma que um pluralismo partidário extremo “[a]centuaria
certamente as diferenciações programáticas, mas teria o forte inconveniente de fraccionar o parlamento em demasiados grupos, dificultando, desta maneira, a formação de maiorias claras, de governos estáveis e de uma
política enérgica” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 246). Vale ressaltar, no entanto,
que Óscar Sánchez Muñoz afirma que em 27 de julho de 2004 havia 2.496 formações partidárias inscritas no
Registro do Ministério do Interior Espanhol, incluídas aí federações regionais dos grandes partidos. Nas eleições
gerais de 2004, 96 partidos apresentaram candidatos a deputados. O autor indica ainda o número de 210 partidos
na França, 236 no Reino Unido e 93 na Alemanha. SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades
en las competiciones electorales. Op. cit., nr 165. 887 A existência de um número elevado de partidos políticos com representação amplia a legitimação para a
propositura de ação direta de inconstitucionalidade (e de ação declaratória de constitucionalidade), reforçando o
controle de constitucionalidade e democratizando a jurisdição constitucional.
230
vários partidos, ainda que sejam muitos, há de ser defendida e não tratada como um
problema.888
José Joaquim Gomes Canotilho relaciona o sistema partidário com o princípio
democrático e afirma, sob a Constituição portuguesa, ser o pluralismo partidário decorrente da
adoção do sistema proporcional e elevado a princípio constitutivo da identidade
constitucional.889
Impõe-se, no entanto, que os partidos sejam efetivamente identificados por
sua ideologia.
Outro ponto que deve ser questionado é a possibilidade de coligações para a eleição
proporcional, o que ofende o princípio da autenticidade eleitoral pela divisão interna das
cadeiras sem levar em consideração o número de votos dados a cada partido. Aplicando a
regra da proibição das coligações nas eleições para a Câmara de Deputados de 1994, 1998 e
2002, no entanto, Jefferson Dalmoro e David Fleischer apresentam uma diminuição do
número de partidos com representação e um aumento na desproporção dos resultados.890
Arend Lijphart também acentua que a possibilidade de coligação, com a divisão das cadeiras
entre os partidos que formam a coligação proporcionalmente ao apoio eleitoral recebido, traz
como efeito potencial a redução da desproporcionalidade e o aumento do número de partidos
com representação.891
Para realizar o princípio constitucional da participação das minorias e ao mesmo
tempo evitar coligações entre partidos sem qualquer concordância ideológica, afastando o
mercado do tempo de horário eleitoral gratuito, uma possibilidade é quebrar a exigência de
que apenas os partidos que atinjam o quociente eleitoral possam participar das sobras na
distribuição de cadeiras.892
Instado a se pronunciar sobre o direito de candidatos cujo partido não havia alcançado
o quociente eleitoral, mas que ficaram com número de votos superiores àqueles necessários
para alcançar as cadeiras distribuídas pelas médias, o Tribunal Superior Eleitoral afastou a
888 Para Aroldo Mota, “não há porque não defender a existência de muitos partidos, tantos quantos forem
as correntes de opinião efetivamente organizadas numa sociedade” (MOTA, Aroldo. O Direito Eleitoral na
Constituição de 1988. Fortaleza: Stylus. 1989, p. 13). 889 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 305. 890 DALMORO, Jefferson; FLEISCHER, David. Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o
problema da proporcionalidade. Op. cit., p. 103-108. 891 LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Op. cit., p. 182. 892 DALMORO, Jefferson, e David FLEISCHER. Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o
problema da proporcionalidade.” Op. cit., p. 108. Ao discorrer sobre as técnicas de distribuição das sobras, Jean
Meynaud indica que a fórmula da maior média busca que cada cadeira represente o maior número possível de
votos e inclui na distribuição os partidos que não alcançaram o quociente eleitoral (MEYNAUD, Jean. Sistemas
eleitorais. Op. cit., p. 11). Proposta apresentada também por Antônio Carlos dos Santos Bitencourt
(BITENCOURT, Antônio Carlos dos Santos. Três aspectos polêmicos da legislação eleitoral. Revista de Direito
Público, São Paulo, n. 89, p. 157-164, jan./mar. 1989, p. 157-164).
231
possibilidade de participação nas sobras, em virtude da existência de lei (Código Eleitoral)
estabelecendo regra razoável, não contrária à Constituição.893
O princípio da necessária participação das minorias não impõe a modificação da regra
das distribuições das sobras, mas tampouco a veda. Está na esfera do debate político, na arena
parlamentar, a discussão sobre o alcance do princípio proporcional na representação
brasileira. E leva à intensificação da representação das opiniões.894
Ainda sobre o tema, não parece adequada à realidade brasileira a proposta de adoção
de listas fechadas para a eleição de deputados e vereadores. Seus defensores apontam o
necessário fortalecimento dos partidos políticos, o custo das campanhas e a existência de
disputas entre os candidatos da mesma legenda como motivos para a mudança. José Joaquim
Gomes Canotilho afirma que a votação em lista fechada não ofende o princípio da
imediaticidade do voto.895
No entanto, as listas fechadas retiram do eleitor, do soberano, a possibilidade de
escolher os seus representantes diretamente. Já existe um filtro partidário na formação da
relação de representação: somente podem ser candidatos aqueles previamente escolhidos
pelos partidos políticos em convenção. Ainda que não haja clara ofensa aos princípios
constitucionais, esse modelo não é o que mais se harmoniza com o desenho da democracia
brasileira.896
Porém, a definição prévia nas convenções partidárias da ordem dos candidatos que
ocuparão as cadeiras eventualmente conquistadas traz, além da diminuição da força da
escolha do eleitor,897
duas importantes questões.
A primeira delas é a forma de definição da ordem das listas. Ainda que se imponham
regras para a sua formação, a verificação de seu cumprimento, direta ou indiretamente, ficaria
ao cargo da Justiça Eleitoral ou por meio da ressurreição dos observadores eleitorais – com
893 Relata Walter Costa Porto (PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. São Paulo: Martins Fontes, 2004,
p. 178-181). 894 Em sentido oposto, Obdulia Taboadela Álvarez elogia a adoção pelo sistema eleitoral espanhol da
fórmula D‟Hondt (que, embora proporcional, favorece os partidos maiores e exclui da representação os que tenham obtido menores quantidades de votos), por favorecer a estabilidade (TABOADELA ÁLVAREZ,
Obdulia. Processos Eleitorais e Integração Regional. Palestra proferida no Núcleo de Pesquisa em Direito
Público do Mercosul – UFPR, Curitiba, 12.fev. 2009). 895 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 295. 896 As listas fechadas e bloqueadas afetam de cheio a liberdade de sufrágio desde a perspectiva subjetiva do
eleitor (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p.
136, nr 60). 897 Critica Assis Brasil, no início da experiência republicana brasileira, os “clubs partidários”, onde poucos
indivíduos se arrogam o direito de confeccionar listas, suprimindo a liberdade do eleitor, substituindo-se ao povo
(ASSIS BRASIL, J-F. de. Democracia representativa: do voto e do modo de votar. Op. cit., p. 223).
232
ofensa à autonomia dos partidos garantida constitucionalmente898
– ou por meio das
demandas judiciais de potenciais candidatos preteridos. Uma possibilidade de evitar o
“centralismo arbitrário” das oligarquias partidárias é a adoção de convenções de nominação e
de primárias.899
As listas fechadas, ou pré-ordenadas, ainda que fortaleçam os partidos,
favorecem as oligarquias partidárias.900
Wanderley Guilherme dos Santos aduz que a exigência de filiação partidária,
acentuada pelo voto em listas, assim como o oferecimento ao eleitorado de candidatos “de
rala diferença quanto à inclinação ideológica, aos atributos pessoais, ou a ambos” são
mecanismos que reduzem a competição democrática e, quando institucionalizados, podem
levar a um regime oligárquico ainda que haja intensa participação popular.901
Um questionamento que surge é a forma como se dará a observância do parágrafo
terceiro do artigo 10 da Lei 9.504/97 – a reserva de pelo menos 30% das vagas para cada sexo
– na formação das listas. Ou se permite que o partido decida livremente a distribuição dessa
vagas (e se admite a possibilidade de esvaziamento do dispositivo legal com a alocação das
vagas reservadas ao final da lista) ou se impõe artificialmente a inclusão destas vagas em
898 José Joaquim Gomes Canotilho, em referência à Constituição portuguesa, afirma que a liberdade interna
dos partidos afasta qualquer controle sobre a organização interna do partido, inclusive em relação à sua
“democraticidade” interna, embora o respeito ao princípio democrático seja constitucionalmente imposto
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 309). 899 Conforme acentua José Antônio Giusti Tavares (TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais
nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op. cit., p. 42). Para Alcides Munhoz da
Cunha, “[a] autenticidade da representação interna na escolha de candidatos é condição necessária para assegurar
a autenticidade da representação dos eleitos”, configurando questão de ordem pública (CUNHA, Alcides
Munhoz da. Justiça Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Op. cit., p. 23-33). 900 Essa é a análise de Celso Ranulfo de Melo (MELO, Celso Ranulfo. Sistema partidário,
presidencialismo e reforma política no Brasil. Op. cit., p. 157-175, p. 171). Angel Garrorena Morales aponta que
a adoção do sistema proporcional na Espanha levou à possibilidade de expressão da diversidade, mas a sua vinculação a listas fechadas evidenciou a onipotência dos partidos (GARRORENA MORALES, Angel.
Representación política y Constitución democrática. Madrid: Civitas, 1991, p. 64-65). Reinhold Zippelius
sublinha, no entanto, um argumento que atenuaria o poder dos partidos na elaboração da lista: “a pré-selecção
encontra-se vinculada por retroacção à vontade presumível dos eleitores, desde que a eleição tenha um caráter de
autêntica concorrência. Na verdade, a fim de garantir na campanha eleitoral uma oportunidade de êxito para o
seu programa político e os seus candidatos, cada partido deve vir ao encontro dos desejos dos eleitores que, desta
forma, exercem já influência sobre a tal pré-selecção”. Afirma, ainda, que a elaboração de listas não ofende a
exigência de que o eleitor determine, em última instância, as pessoas que serão designadas a ocupar as cadeiras
parlamentares, pois a determinação da ordem dos nomes ocorre antes da manifestação do eleitorado. Mas
acentua, adiante, a desvantagem da lista fechada que reduz a participação do eleitor (ZIPPELIUS, Reinhold.
Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 243, 258, 263-264). 901 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Governabilidade e democracia natural. Op. cit., p. 41-42. José
Antônio Giusti Tavares ressalta que esse modelo de boletim de voto dá ao partido poder máximo e ao eleitor
poder mínimo: ao partido o poder da definição final da representação e aos dirigentes o poder de determinar as
probabilidades de eleição de seus candidatos (TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas
democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op. cit., p. 41). Fávila Ribeiro afirma que os
partidos políticos devem usar o esforço pela modernização e melhoramento do sistema “também para o seu
consumo interno, abolindo os caciquismos com todos os seus resíduos oligárquicos” (RIBEIRO, Fávila.
Pressupostos constitucionais do direito eleitoral brasileiro no caminho da sociedade participativa. ANAIS do I
Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul,
1990, p. 14-58, p. 38.
233
intervalos determinados (e se consente com um eventual desvio na determinação dos
representantes eleitos).902
Outro problema se refere às “candidaturas natas”,903
antidemocráticas por
excelência.904
. Se admitidas, não obstante a manifestação do Poder Judiciário sobre a sua
inconstitucionalidade em outro contexto,905
a renovação das casas legislativas seriam
possíveis apenas quando da morte, da extinção da vocação pública de um político ou de sua
magnanimidade. Inserir os políticos com forte respaldo eleitoral, no entanto, em uma
colocação abaixo de figuras partidárias inexpressivas leva à eleição falseada de
representantes.
Os benefícios da adoção das listas pré-ordenadas não parecem compensar os desvios
que acarretaria. Limitar o número de candidatos que um partido pode apresentar ao total de
cadeiras em disputa é uma forma de se reduzir a disputa entre os candidatos da mesma
agremiação e diminuir o custo das campanhas, sem que se retire do eleitor a plena escolha
daqueles que irão representá-lo. O sistema proporcional com listas abertas para a eleição de
deputados e vereadores traduz de maneira o mais legítima possível a heterogeneidade da
sociedade brasileira e coaduna-se com o projeto democrático inscrito na Constituição de 1988
e com o princípio constitucional da necessária participação das minorias do debate público e
nas instituições políticas.
Ainda sobre a composição do Parlamento, há sussurros a respeito do “excesso” de
representantes políticos nas casas legislativas.906
O Poder Judiciário manifestou-se nesse
902 A professora Obdulia Taboadela Álvarez, em conferência, fez referência à regra interna do PSOE
(Partido Socialista Obrero Español) de elaborar listas alternadas (homem – mulher – homem – mulher...) e da
adoção posterior de norma similar pelos demais partidos (TABOADELA ÁLVAREZ, Obdulia. Processos
Eleitorais e Integração Regional. Op. cit.). Projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo (PL 4636/09) que
importa a adoção das listas fechadas prevê que os dois sexos sejam contemplados a cada três nomes na primeira
metade da lista. 903 A previsão de candidaturas natas assegura aos detentores de mandato o registro de sua candidatura à
reeleição, independentemente de sua escolha em convenção partidária. 904 Conforme aponta Orides Mezzaroba (MEZZAROBA, Orides. O Partido Político no Brasil: teoria,
história, legislação. Op. cit., p. 76). 905 Na ação direta de inconstitucionalidade 2530-9, proposta pelo Procurador-Geral da República contra o parágrafo 1º do artigo 8º da Lei 9504/97, foi concedida liminar para suspender a eficácia da previsão das
candidaturas natas, em julgamento de 24 de abril de 2002. Não há ainda decisão final na ação. 906 Em artigo de 1966, José Bonifácio defendia a fusão das duas casas legislativas, para “ganhar tempo,
evitar repetições, descer à realidade, conformar-se com os novos tempos e remover o obsoleto, o ultrapassado”
(BONIFÁCIO, José. A Reforma do Poder Legislativo. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,
n. 20, p. 23-38, jan. 1966, p. 25). Sob o enfoque da ofensa ao princípio “um homem, um voto” pela eleição do
mesmo número de senadores em cada unidade da federação, Carlos Santiago Nino defende um Parlamento
unicameral ou a alteração das competências do Senado, para alcançar apenas as matérias de interesse dos estados
federados e o direito de veto em relação à legislação referente a direitos individuais (NINO, Carlos Santiago. La
constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996, p. 234).
234
sentido e, afrontando disposição literal da Constituição,907
determinou o número de
vereadores de todos os municípios brasileiros. O desconforto alcança principalmente a
Câmara de Deputados, com seus 513 mandatários. A democracia brasileira, representativa em
sua prática, essencialmente representativa, exige, no entanto, representantes. Considerando o
cálculo do número de representantes do poder legislativo pela raiz cúbica da população908
a
Câmara deveria ser composta por 568 deputados. O problema, para alguns, pode estar então
no custo dessa representação e no descompasso em face dos benefícios que ela traz, em uma
perigosa análise de eficiência e de mercado que eventualmente pode chegar à defesa de um
regime político mais eficiente, ainda que menos democrático.909
Ou, ainda, na qualidade dos
representantes, cuja melhora depende, simultaneamente, dos partidos políticos (que fazem o
primeiro filtro ao elaborar suas listas de candidatos), dos cidadãos e do respeito aos princípios
constitucionais eleitorais.
O que resta indiscutível é que a adoção do sistema proporcional para a distribuição das
cadeiras da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de
Vereadores marca indelevelmente uma configuração democrática que não pode ser afastada
por uma decisão dos poderes constituídos. E se, como afirma John Rawls, a justiça é a
primeira virtude das instituições sociais,910
o sistema proporcional é virtuoso.
3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DISTRITAL
A negação completa do princípio proporcional na formação das casas legislativas é
incompatível com os princípios constitucionais estruturais do Direito Eleitoral, marcadamente
o princípio da autenticidade eleitoral (tanto em relação ao voto como quanto à fidedignidade
da representação política) e o princípio da necessária participação das minorias.
907 Art. 29. “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de
dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os
princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...)
IV - número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os seguintes limites: a) mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes; b) mínimo de trinta e três e
máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e menos de cinco milhões de habitantes; c)
mínimo de quarenta e dois e máximo de cinqüenta e cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de
habitantes”. Esse artigo foi alterado pela Emenda 58/2009, que estabeleceu outros parâmetros. 908 LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Op. cit., p. 180. 909 Arend Lijphart afasta essa relação, comprovando a maior eficiência final nas democracias de consenso,
ainda que não de maneira acentuada, em relação à administração macroeconômica e ao controle da violência
(Ibid., p. 293-308). 910 “Justice is the first virtue of social institutions, as truth is of systems of thought” (RAWLS, John. A
Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 3).
235
Afirma-se que o sistema proporcional brasileiro surgiu para enfraquecer os partidos,
para reduzir a influência dos partidos republicanos estaduais e que impõe-se “despersonalizar
a disputa eleitoral e obrigar o eleitor, especialmente nas eleições para o Legislativo, a escolher
entre os partidos, e não entre os candidatos”, para possibilitar a construção de uma
“democracia representativa partidária”. Com a adoção do voto distrital, no entanto, “as
minorias praticamente são eliminadas no sistema distrital, e isso compromete mortalmente o
princípio da Democracia representativa”.911
Em 1909, León Duguit defende, enfaticamente, a reforma do sistema francês, para a
adoção do sistema proporcional, combinado com uma representação profissional, afirmando
que a eleição uninominal e por maiorias é um “instrumento de desmoralização e de corrupção
universais”.912
Para Maurice Hauriou a divisão em distritos pequenos estimula o clientelismo
e faz do eleitor vassalo e cliente.913
No caso brasileiro, além de historicamente ter se revelado instrumento de
desmoralização e corrupção, o sistema é também inconstitucional. Com o sistema distrital
visa-se adotar o princípio majoritário para a eleição de deputados e vereadores, com a divisão
dos estados e municípios em distritos. A sua adoção, ainda que por emenda constitucional,
está vedada pela intangibilidade dos princípios constitucionais estruturantes.914
A adoção do princípio majoritário com a divisão em distritos significa dotar uma
pequena maioria do poder de determinar o interesse público e excluir a representação de todos
os que não escolheram o mais votado.915
A divisão em distritos leva, por si, a uma
911 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O processo eleitoral como instrumento para a democracia. Resenha
Eleitoral [do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina], Florianópolis, v. 5, n.1, p. 65-83, 1998. Disponível
em: http://www.tre-sc.gov.br/sj/cjd/doutrinas/carmen.htm. Acesso em: 24 nov. 2009. Afirma ainda a autora: “O direito de votar não é apenas o direito a votar, vale dizer, marcar o papel. Antes, é o direito de transformar o
papel marcado em voto computado para o fim precípuo de compor o corpo representativo democrático. Esse
principio não é atendido pelo sistema eleitoral majoritário, pelo menos em suas formulação e prática brasileiras,
daí todos os riscos que a sua adoção sem um debate sério se faz”. 912 DUGUIT, León. La transformación del Estado. 2. ed. Tradução: Adolfo Posada. Madrid: Franscisco
Beltrán, [1909], p. 101: “Es para todos un deber trabajar, en la medida de las respectivas fuerzas, por la
realización de semejante reforma y por la supresión de la elección uninominal y de mayorías, que es un
instrumento de desmoralización y de corrupción universales”. 913 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. ed. Tradução: Carlos Ruiz del
Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 497. 914 Sobre o voto distrital, Paulo Bonavides afirma que sua “natureza antiminoritária é de maneira flagrante infensa às teses democráticas mais amplas, que se prendem indissoluvelmente à participação proporcional e
representativa de todas as camadas eleitorais, constitutivas do povo politicamente organizado e governante”
(BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 258). 915 MILL, John Stuart. Governo Representativo. Op. cit., p. 90-91. John Stuart Mill vai além e afirma que o
sistema distrital leva os partidos a escolherem os candidatos que contem com menos opositores dentro e fora do
partido, “isto é, indivíduo sem qualquer peculiaridade distintiva, ou qualquer opinião conhecida exceto a senha
do partido”. E aduz: “Os únicos indivíduos que conseguem eleger-se são os que possuem influência local, que
abrem caminho por meio de despesas exageradas ou que, a convite de três ou quatro negociantes ou advogados,
são enviados por um dos dois grandes partidos dos clubes de Londres como homens com cujos votos os partidos
podem contar em todas as circunstâncias” (p. 91 e 96).
236
desigualdade de fato na representação, fortemente agravada pela adoção do princípio
majoritário.916
Os que propõem tal mudança ressaltam as vantagens do sistema majoritário para a
formação de governos funcionais917
e para o fortalecimento dos partidos políticos,918
além dos
benefícios da divisão em distritos, como a diminuição do custo das campanhas eleitorais, a
possibilidade de fiscalização e acompanhamento efetivos das condutas eleitorais e uma
identificação maior entre o representante e os representados.
Alberto Rollo e João Fernando Lopes de Carvalho defendem a distritalização do voto,
que permitiria uma fidelidade do eleito com o partido e com seu eleitorado a partir de
compromissos, além de baratear a campanha e estabelecer uma disputa mais clara, sem brigas
partidárias internas.919
Assim o faz também Maria Garcia: defende um sistema eleitoral
majoritário e distrital, juntamente com a possibilidade de revocatória de mandatos e com a
redução de representantes.920
Para que tal sistema não ofenda também o princípio da igualdade do voto, é necessário
que a distritalização (divisão dos distritos) leve em consideração a proporção entre os distritos
das cadeiras em disputa e do corpo eleitoral, não seja inspirada por recortes étnicos,
religiosos, linguísticos, ideológicos ou partidários pré-existentes e que não seja uma divisão
tendenciosa.921
916 É o que acentua Maurice Duverger (DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos: Instituições
Políticas e Direito Constitucional – I. Tradução: Fernando Ruivo e Fernando Augusto Ferreira Pinto. Coimbra:
Almedina, 1985 [1980], p. 89-93). Luciano Cânfora afirma que “[u]m dos aspectos do esforço que tem por fim
impedir a validade erga omnes da democracia representativa é a cada vez mais sofisticada pesquisa de leis
eleitorais de tipo majoritário. Estas tendem, segundo seus promotores, a „racionalizar‟ (segundo outros, a
restringir) a expressão da „vontade popular‟, evitando que ela se exercite em estado puro, limitando a série de opções” (CÂNFORA, Luciano. Crítica da retórica democrática. Tradução: Valéria Silva. São Paulo: Estação
Liberdade, 2007 [2002], p. 57). 917 Para Jean Meynaud, a adoção da proporcionalidade não implica instabilidade governamental, e afirma:
“os fatores das atitudes não são dados pelo próprio regime eleitoral”. Aduz que ainda que o sistema eleitoral
influencie o sistema partidário e o funcionamento do regime, o debate sobre ele “não deve obscurecer a
verdadeira hierarquia dos problemas contemporâneos” (MEYNAUD, Jean. Sistemas eleitorais. Op. cit., p. 22 e
35). 918 “O sufrágio maioritário pode surgir indiscutivelmente como sistema apropriado para a nomeação de
uma representação do povo, contanto que se considerasse a eleição, pelo menos na perspectiva ideal-típica, como
a nomeação de um representante que se distinguisse pelas suas qualificações pessoais e detivesse a confiança do
povo”, argumenta em sentindo oposto Reinhold Zippelius (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 260). 919 ROLLO, Alberto; CARVALHO, João Fernando Lopes de. Fidelidade partidária e perda de mandato.
Semestre eleitoral [Tribunal Regional Eleitoral da Bahia], Salvador, v. 9, n. 1/2, p. 9-32, jan./dez. 2005, p. 10 e
28-29. 920 GARCIA, Maria. “Democracia e o modelo representativo”. In: GARCIA, Maria (org). Democracia,
hoje. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997, p. 41-82, p. 82. 921 José Antônio Giusti Tavares ressalta ainda que é uma exigência democrática aos sistemas eleitorais que
“o custo em votos de um representante seja o mesmo em todos os distritos e para todos os partidos” (TAVARES,
José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op.
cit, p. 38).
237
As propostas de reforma ora defendem esse modelo de forma pura, ora o desejam
combinado com o sistema proporcional, em um sistema distrital misto.
Saltam aos olhos os problemas do sistema puro.922
Em primeiro lugar, não há espaço
para a representação das minorias, o que contraria toda a preocupação de espelhar no
Parlamento – espaço privilegiado da formação da vontade política – as diversas concepções
de Estado e de bem viver presentes na sociedade brasileira. Adotar o princípio majoritário
para a eleição de deputados e vereadores é renunciar à conquista do espaço de dissenso
qualificado pela coexistência, dentro das regras do jogo democrático e com atuação efetiva, de
partidos políticos que representam um amplo leque de ideologias. Vai de encontro ao
pluralismo político, fundamento da República brasileira e ao princípio constitucional de
necessária participação das minorias nas instituições políticas e do debate público. É
flagrantemente inconstitucional.
Walter Costa Porto ressalta a importância de analisar a proposta de reforma do sistema
eleitoral a partir das experiências sobre o voto distrital, que evidenciaram a desconsideração
das minorias e a inutilidade dos votos de parcela da população.923
Para a composição do Senado o Brasil sempre adotou o princípio majoritário (embora,
durante o Império, os três mais votados formassem uma lista tríplice para a escolha pelo
Imperador). A eleição de deputados, no entanto, deu-se de diversas maneiras. O Brasil adotou
o sistema distrital para a eleição de deputados durante o Segundo Império e na República
Velha, com efeitos negativos. O resultado alcançado foi a composição de câmaras unânimes,
o surgimento de “notoriedades de aldeia”, a defesa de interesses locais, o obscurantismo
parlamentar e o enfraquecimento dos partidos políticos pela sua divisão em grupos regionais,
combinados com fraudes e eleições “a bico de pena” (com alterações nas atas que
determinavam o resultado da votação). A análise desse período é feita por Victor Nunes Leal,
por Jairo Nicolau e pelo então deputado Francisco Belisário Soares de Souza.924
O Brasil adota o voto único, em que o eleitor vota apenas em um nome, não
importando quantas vagas devam ser preenchidas. Historicamente, no entanto, o sistema
brasileiro já experimentou o voto limitado ou lista incompleta (com a Lei do Terço de 1875,
quando o votante escolhia tantos nomes de cidadãos elegíveis quantos correspondessem a dois
922 A passagem do sistema eleitoral brasileiro de oligárquico a poliárquico, em vista da explosão do
eleitorado brasileiro, pode ser comprometida pelo “artefato compressor do distritalismo majoritário”, afirma
Wanderley Guilherme dos Santos (SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Governabilidade e democracia
natural. Op. cit., p. 56-57). 923 PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. Op. cit., p. 74. 924 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4.
ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978; NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002; SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979
[1872].
238
terços dos Eleitores que a paróquia devia dar, e depois em 1892), o voto múltiplo (em 1841 e
na primeira eleição da República, em 1890, quando o eleitor votava em tantos nomes quanto
fossem as cadeiras do estado na Câmara) e o voto cumulativo (em 1904 os distritos passaram
a eleger cinco representantes e o eleitor podia votar quatro vezes no mesmo candidato),
sempre com a justificativa de permitir uma maior representação das minorias.925
Até 1881 a eleição de deputados no Império era indireta. Os votantes escolhiam os
Eleitores de Província que elegiam os deputados, sempre pelo princípio majoritário. A
circunscrição eleitoral coincidia com a província até 1855, quando houve a divisão em
distritos uninominais – o território era dividido em tantos distritos quantos fossem as cadeiras
na Assembleia e cada distrito elegia o mais votado. Exigia-se maioria absoluta, com previsão
de mais de um turno de votação. As províncias eram divididas em distritos de três
representantes, eleitos por maioria relativa, em 1860. Quinze anos depois a província voltou a
ser a circunscrição e em 1881 foi retomado o sistema de 1855.
Na República houve a adoção do sistema distrital em 1892, com distritos de três
representantes e voto limitado (dois terços). Em 1904, os distritos elegeram cinco
representantes com voto cumulativo.926
A adoção do princípio majoritário para a eleição de deputados e vereadores acentua
imensamente a desproporcionalidade da representação, afasta a coerência entre o apoio
popular ao partido e o número de cadeiras por ele obtido.927
A mais tênue definição
contemporânea de democracia não escapa da igualdade política, da participação igualitária
925 Vale acrescentar ainda que o Brasil adotou o voto censitário (em que o direito de votar era reconhecido apenas aos que tinham determinada renda) até a proclamação da República em 1889 e o voto capacitário (com
restrição aos analfabetos) da Lei Saraiva de 1881 até a Emenda 25/85 à Constituição de 1969. 926 Miguel Reale aduz: “Na realidade, porém, nossa história eleitoral, de 1891 a 1930, equivale a uma
sucessão de escolhas pré-determinadas, prevalecendo sempre os grupos oligárquicos encastelados na federação
dos partidos estaduais que, então, efetivamente, detinham tôdas as rédeas do poder” (REALE, Miguel. O sistema
de representação proporcional e o regime presidencial brasileiro. Op. cit., p. 20). 927 Arend Lijphart traz dados da eleição no Reino Unido em 1978, informada pelo sistema de maioria
simples. Com 39,8% dos votos, o Partido Nacional obteve 51 das 92 cadeiras e o Partido do Crédito Social
apenas uma cadeira, apesar do apoio de 17,1% do eleitorado. Em Barbados, onde se adota o mesmo modelo, nas
eleições de 1986 o Partido Trabalhista Democrático alcançou 88,9% das cadeiras com 59,4% dos votos
(LIJPHART, Arend. Modelos de democracia. Op. cit., p. 39 e 45-46). Getúlio Marcos Pereira Neves traz dados das eleições da África do Sul em 1961, quando o Partido Unido obteve 36,2% dos votos e 31,4% dos assentos e
o Partido Nacional, com 46,54% dos votos ficou com 67,4% das cadeiras. Aponta ainda a distorção na Nova
Zelândia: em 1975 os nacionalistas, com 47,4% do apoio do eleitorado conquistou 60,9% do Parlamento e os
trabalhistas, com 39,7% dos votos, contou com apenas 35,6% dos mandatos parlamentares (NEVES, Getúlio
Marcos Pereira. Notas sobre a representação política no sistema distrital. Jus Navigandi, disponível em
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1504. Acesso em: 28 ago. 2003). A distorção mais evidente do sistema
distrital, por força de sua repercussão, no entanto, ocorreu nas eleições presidenciais de 2000 nos Estados
Unidos. O Partido Republicano, com 47,82% dos votos ficou com 50,37% dos grandes eleitores no Colégio
Eleitoral, enquanto que o Partido Democrata, que contou com o apoio de 48,38% dos votantes, foi derrotado com
49,44% de delegados.
239
dos cidadãos na formação dos corpos representativos e da vontade do Estado, da igual
representação.928
Apenas para ressaltar a inadequação desse sistema, agrega-se a questão da criação dos
distritos, quanto à forma de sua divisão e quanto aos seus efeitos. No sistema distrital, de fato,
toda a questão da legitimidade da escolha dos representantes fica condicionada pela divisão
dos distritos.
Gerrymandering é o nome dado à divisão tendenciosa dos distritos eleitorais, que os
fazem coincidir com a força política de determinados candidatos ou partidos.929
É um desvio
verificado nos sistemas que adotam os distritos uninominais e que pode ser afastado pela
adoção do desenho dos distritos coincidentes com divisões administrativas. Neste caso,
porém, não se mantém a igualdade de representação do eleitorado, o que acentua a
desigualdade de representação já existente na Câmara de Deputados e cria distinções entre
municípios do mesmo Estado.
Os efeitos da divisão de Estados e municípios para a eleição de representantes são
igualmente graves. Os defensores deste sistema argumentam em favor de uma maior
proximidade entre representantes e representados, mas isso traz na mesma intensidade a
possibilidade de representação de interesses privados e de conflitos de interesses dentro da
própria unidade da federação.
Os partidos políticos podem ser enfraquecidos, com a eleição de “notoriedades de
aldeia”, que, eleitos apenas por sua própria força, podem dispensar a vinculação partidária.930
E se há redução dos custos das campanhas eleitorais, a influência do poder econômico e do
poder político é mais decisiva em uma esfera menor.
No sistema distrital misto pelo menos metade das cadeiras em disputa é preenchida
por distritos uninominais e as demais pelo sistema proporcional de lista fechada. O eleitor
928 John Hart Ely afirma que esse entendimento era compartilhado também pelos framers: alguns
elaboradores da Constituição dos EUA ressaltavam a importância de um sistema que garantisse igual
representação para grupos populacionais iguais. Indica, ainda, manifestações de juízes da Suprema Corte no
sentido da inadequação do sistema eleitoral inglês (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of
Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. 122 e 238 n 55). 929 Luís Virgílio Afonso da Silva indica a origem do termo: “nome dado por um editor norte-americano
que, ao ouvir de um cartunista de seu jornal que o desenho do distrito de Essex, em Massachusetts, assemelhava-se a uma salamandra (salamander), respondeu que seria melhor chamá-lo de gerrymander, fazendo um
trocadilho com o nome do responsável pelo novo desenho do distrito, o governador de Massachusetts, Elbridge
Gerry” (SILVA, Luís Virgilio Afonso da. Sistemas eleitorais: tipos, efeitos jurídico-políticos e aplicação ao caso
brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 44). Walter Costa Porto o denomina de “mapismo” (PORTO, Walter
Costa. A mentirosa urna. Op. cit., p. 75), nomenclatura utilizada para uma fraude na apuração eleitoral. 930 “Particularmente, em países que ainda não lograram a integração nacional plena e a modernização
sócio-política consistente, o distritalismo retém e realimenta a cultura política paroquialista, bem como o
coronelismo, o neocoronelismo, ou qualquer outra forma de mandonismo local; e a política de clientela enquanto
padrão universal a orientar a interação entre a sociedade e o governo” (TAVARES, José Antônio Giusti.
Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op. cit., p. 121).
240
vota duplamente para a formação das casas legislativas: uma vez no candidato de sua
preferência que concorre sob o princípio majoritário e uma no partido que preferir, que
elegerá representantes de todo o Estado pelo sistema proporcional de lista fechada.
Usualmente é o número de votos recebidos na votação proporcional que determina o número
de cadeiras a serem preenchidas pelos partidos.
A Comissão Afonso Arinos sugere para a Assembleia Constituinte a adoção do
modelo alemão, mas com apenas um voto por eleitor. As cadeiras destinadas a cada partido
derivam da soma dos votos de todos os distritos, em um cálculo proporcional.931
O sistema distrital misto tem como fundamento o princípio da representação
majoritária, ainda que a distribuição de cadeiras se dê a partir dos votos recebidos pelo
sistema proporcional. No modelo alemão, os primeiros candidatos que ocupam as cadeiras são
os eleitos nos distritos, majoritariamente, e são previstas cadeiras adicionais se o número de
cadeiras determinado pelo voto proporcional for inferior ao número de candidatos eleitos
distritalmente. Residualmente são eleitos os candidatos pelo sistema proporcional, que, ainda,
são eleitos pela lógica do sistema majoritário em face da formação do voto proporcional
seguir a tendência do voto majoritário.932
Konrad Hesse aduz que o atual sistema eleitoral alemão não tem sede constitucional e
que traz as debilidades da eleição proporcional (maiorias mais inseguras, menor estabilidade
do governo e tendência a colisões) em contrapartida aos seus efeitos favoráveis (composição
mais precisa das forças políticas no Parlamento e representação adequada, temperada pela
cláusula de desempenho).933
O México também adota um sistema distrital misto: trezentos deputados são eleitos
pelo princípio majoritário em distritos uninominais e duzentos pelo princípio proporcional,
divididos em cinco circunscrições plurinominais. A Constituição ainda estabelece que para
que um partido possa apresentar as listas regionais para concorrer às vagas proporcionais,
deve apresentar candidato pelo menos em duzentos distritos, há uma cláusula de desempenho
931 Conforme FLEISCHER, David; BARRETO, Leonardo. Reformas políticas y democracia en Brasil. In:
ZOVATTO, Daniel; HENRÍQUEZ, J. Jesús Orozco (Coord.).Reforma política y electoral en América Latina
(1978-2007). Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México e Idea Internacional, 2008, p. 315-
352, p. 326-327. Possivelmente um dos “notáveis erros dos notáveis”, embora assim não apontado por Ney Prado, que “denuncia” o preconceito, o casuísmo, o elitismo, o utopismo, a demagogia, o socialismo, o estatismo
e o xenofobismo da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, da qual renunciou ao cargo de Secretário-
Geral (PRADO, Ney. Os notáveis erros dos notáveis. Rio de Janeiro: Forense, 1987). 932 Conforme acentua José Antônio Giusti Tavares (TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais
nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op. cit., p. 103-114). Pesquisas realizadas na
Alemanha durante os anos 80 revelam falta de identificação entre eleitores e representantes eleitos pelo sistema
misto e que 4/5 dos cidadãos desconhecem o significado de dois votos (p. 114-115). 933 A Constituição alemã anterior determinava o sistema proporcional (HESSE, Konrad. Elementos de
Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. 20. ed. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 129-130).
241
de dois por cento dos votos no sistema proporcional para concorrer às cadeiras, nenhum
partido pode ultrapassar trezentos deputados e há um mecanismo de correção das distorções
provocadas pelo sistema majoritário.934
Romano José Enzweiler afirma ainda que o sistema distrital misto soma as qualidades
do princípio majoritário, como a proximidade com o eleitor, a possibilidade de aperfeiçoar os
mecanismos de controle social e a promoção da governabilidade, com as vantagens do
sistema proporcional: “a representatividade e a vocalização das minorias”.935
Para Marcus
Vinicius Furtado Coêlho, esse sistema pode reduzir o abuso de poder.936
Carlos Mário da
Silva Velloso também defende a adoção do voto distrital misto.937
Além de diminuir a proporcionalidade da representação política, aumentando o
número de votos necessários para um partido eleger um representante e assim reduzindo o
espectro de ideologias na formação do Parlamento, o sistema distrital misto cria duas classes
de deputados, que podem representar interesses distintos938
e confundir os eleitores. Ainda, se
for permitido ao candidato concorrer pela vaga distrital e pelo sistema proporcional haverá
uma dupla campanha, certamente com um custo mais elevado; se não lhe for permitido,
candidatos que concorrerem à vaga distrital com significativo, embora não majoritário, apoio
popular – no limite, 49,99% dos votos – ficarão fora do Parlamento.
O sistema distrital misto não parece corresponder às exigências democráticas da
sociedade brasileira.939
Uma análise de suas características evidencia a superioridade do
sistema proporcional, tal como adotado no Brasil. Além disso, as falhas do sistema eleitoral,
como bem apontam Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra, decorrem do
934 Art. 54. “V. En ningún caso, un partido político podrá contar con un número de diputados por ambos
princípios que representen un porcentaje del total de la Cámara que exceda en ocho puntos a su porcentaje de
votación nacional emitida. Esta base no se aplicará al partido político que, por sus triunfos en distritos
uninominales, obtenga un porcentaje de curules del total de la Cámara, superior a la suma del porcentaje de su
votación nacional emitida más el ocho por ciento.” 935 ENZWEILER, Romano José. Dimensões do sistema eleitoral: o distrital misto no Brasil. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2008, p. 90. 936 COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Eleições: Abuso de poder. Brasília: [s.n.], 2006. 937 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A reforma eleitoral e os rumos da democracia no Brasil. In:
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes; VELLOSO Carlos Mário da Silva (Coords.). Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 11-30, p. 17. 938 Para Nelson Jobim, isso é uma vantagem, pois permite o atendimento às demandas das regiões e
compromete metade do Parlamento com as questões nacionais. “O eleitor escolhe uma representação para o seu
distrito e, ao mesmo tempo, escolhe uma legenda partidária que tenha programa administrativo e político
nacional” (JOBIM, Nelson. Câmara dos Deputados como assembléia dos estados - voto distrital misto. Revista
de Direito Público, São Paulo, n. 98, , p. 108-110, abr./jun. 1991, p. 110). 939 José Antônio Giusti Tavares assinala a tentativa de implantação do sistema misto na revisão
constitucional de 1994 pelo “núcleo conservador”, mas o parecer do relator sequer foi apreciado (TAVARES,
José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Op.
cit., p. 23).
242
predomínio do poder econômico e da falta de consciência política da população,940
o que não
parece ser afastável pela mudança das circunscrições e pelo abandono do princípio da
proporcionalidade.
3.3 A PROIBIÇÃO DE UMA CLÁUSULA DE DESEMPENHO
A opção constitucional pelo princípio da necessária participação das minorias nas
instituições e nas decisões políticas é incompatível com a adoção de uma cláusula de
desempenho para os partidos políticos. Ainda que os partidos políticos, por mais numerosos
que sejam, não possam dar conta do pluralismo social, fechar as portas da política
institucional para algumas agremiações partidárias contraria a ideia de democracia.941
Assim entende Orides Mezzaroba. Para o autor, uma cláusula de exclusão ou qualquer
outro artifício redutor do princípio do pluralismo partidário, reconhecido pela Constituição,
são inconcebíveis. A limitação do “direito de representação de minorias no Legislativo” fere o
pluralismo político.942
Para José Antônio Giusti Tavares, a cláusula de exclusão é um elemento adicional dos
sistemas eleitorais e tem como objetivo evitar a representação de minorias demasiado
escassas, sem densidade em relação à vontade coletiva do eleitorado. Para dar “rigor e
efetividade à representação proporcional”, o autor propõe a substituição do quociente
eleitoral, determinado em cada circunscrição estadual, por um patamar uniforme nacional, de
cinco por cento dos votos em todo o país.943
A “barreira eleitoral” atua de maneira decisiva no futuro dos partidos políticos e “hace
desaparecer la oposición política, además el debate parlamentario de todas las fuerzas
políticas democráticas”, tornando o sistema oligárquico, afirmam Domingo García Belaunde
e José F. Palomino Manchego. Em seguida, no entanto, os autores afirmam que as cláusulas
940 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 50. 941 Ressalta Joaquin Herrera Flores que “enquanto que a sociedade civil se reforça ao pluralizar-se, a
estrutura estatal segue imóvel ao considerar-se acriticamente como a suprema representação dos interesses gerais. (...) A proteção e sobretudo o reconhecimento das minorias como sujeitos políticos legítimos constitui um
desafio para a democratização do Estado de Direito” (HERRERA FLORES, Joaquin. Democracia, Estado y
Derecho. Hacia un marco alternativo de estudios jurídicos. Teia Jurídica 2000. Disponível em:
www.teiajuridica.com. Acesso em: 25 ago. 2000). A crítica do autor se dirige ao fechamento institucional às
formas diretas de democracia, mas se aplica também à restrição do espaço do Parlamento aos grandes partidos. 942 MEZZAROBA, Orides. O humanismo latino, a soberania popular e a democracia representativa
brasileira contemporânea. Op. cit., p. 97. Também em MEZZAROBA, Orides. O partido político no Brasil:
princípios constitucionais balizadores para criação e funcionamento. Op. cit., p. 56. 943 TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria,
instituições, estratégia. Op. cit., p. 45-46 e 24.
243
de desempenho podem configurar uma barreira positiva, se respeitados limites (os quais não
são indicados pelos autores) e sejam operativas, para que se fortaleçam as agremiações
partidárias.944
Wanderley Guilherme dos Santos, que afasta a relação entre multipartidarismo e
ingovernabilidade e aponta a possibilidade de impasses também em sistemas bipartidários,
afirma que “cláusulas de barreira não são mecanismos para prevenir excessos de
fracionalização, mas mecanismos para reduzir a competição e a representação político-
partidárias”.945
Os cientistas políticos Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano
Santos asseveram que o incremento da representatividade da representação inclui, ao lado das
eleições diretas para todos os cargos, do sistema proporcional, da “distribuição equitativa de
atribuições, direitos e recursos parlamentares entre os legisladores individuais”, um sistema
multipartidário.946
A intenção do estabelecimento de requisitos para a efetiva existência e funcionamento
dos partidos políticos, ao que parece, não está ligada a exigências democráticas. O argumento
central é a estabilidade política, ameaçada por um número excessivo de partidos políticos e
por casas parlamentares fragmentadas.
No entanto, vale apontar a ressalva de Óscar Sánchez Muñoz: “La estabilidad política
es un objetivo en si legítimo y compatible con el orden constitucional, pero la búsqueda de la
estabilidad llevada al extremo puede degenerar en un peligroso anquilosamiento para el
sistema democrático”.947
Ressalta Jorge Miranda que a Constituição portuguesa, ao impor o
sistema proporcional para a eleição dos deputados, impõe a proibição de estabelecimento
legal de “limites à conversão de votos em mandatos por exigência de uma percentagem de
votos nacionais mínima”.948
A cláusula de barreira, prevista no artigo 13 da Lei dos Partidos Políticos (Lei
9.096/95) foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.949
. Gilmar Mendes
944 GARCÍA BELAUNDE, Domingo; PALOMINO MANCHEGO, José F. Barrera electoral.
DICCIONARIO electoral. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 97-101, p. 98 e
100-101. 945 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Governabilidade e democracia natural. Op. cit, p. 68, 86 e 109.
Grifo no original. 946 ANASTASIA, Fátima; MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representação
política na América do Sul. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 180. 947 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 364. 948 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito, 2003, p. 144. 949 As ações diretas de inconstitucionalidade 1351-3 e 1354-8 foram julgadas parcialmente procedentes, em
julgamento unânime em 07 de dezembro de 2006. O artigo 13, que previa a cláusula de desempenho, foi
totalmente afastado, bem como seus reflexos na distribuição do fundo partidário e do direito de antena. Dispunha
o artigo 13 da Lei 9.096/95: “Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as
244
defende essa decisão, afirmando que a proporção estabelecida pelo legislador e os seus
reflexos na disputa eleitoral “condena as agremiações minoritárias a uma morte lenta e
segura”.950
A sentença do Tribunal Constitucional alemão de 29 de agosto de 1990, que afasta a
aplicação de uma cláusula de barreira uniforme nas primeiras eleições da Alemanha unificada,
é analisada por Pedro Cruz Villalon. A lei eleitoral (já em vigor na República Federal da
Alemanha) impunha um desempenho de cinco por cento dos votos nacionais para os partidos
políticos nas eleições parlamentares, sem distinção entre os partidos da ex-Alemanha
Ocidental e da antiga Alemanha Oriental. Esse critério, formalmente igualitário e uniforme,
levava a uma exigência bastante díspar: os partidos da ex-República Federal deveriam
alcançar cerca de seis por cento dos votos em seu território enquanto às agremiações da ex-
República Democrática era imposta a obtenção de 24 por cento dos votos em seu território. O
Tribunal Constitucional afasta por inconstitucionalidade também sua suavização uniforme. Os
argumentos apresentados pelos julgadores referem-se à ofensa à igualdade de oportunidades
dos partidos políticos e à igualdade do voto, às diferenças no “valor de êxito” dos votos.951
quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio
de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo
menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles”. Os reflexos de sua
adoção encontravam-se nos artigos 41 (“O Tribunal Superior Eleitoral, dentro de cinco dias, a contar da data do
depósito a que se refere o § 1º do artigo anterior, fará a respectiva distribuição aos órgãos nacionais dos partidos,
obedecendo aos seguintes critérios: I- um por cento do total do Fundo Partidário será destacado para entrega, em
partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; II -
noventa e nove por cento do total do Fundo Partidário serão distribuídos aos partidos que tenham preenchido as
condições do art. 13, na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados”), 48
(“O partido registrado no Tribunal Superior Eleitoral que não atenda ao disposto no art. 13 tem assegurada a
realização de um programa em cadeia nacional, em cada semestre, com a duração de dois minutos”) e 49 (“O
partido que atenda ao disposto no art. 13 tem assegurado: I - a realização de um programa, em cadeia nacional e de um programa, em cadeia estadual em cada semestre, com a duração de vinte minutos cada; II - a utilização do
tempo total de quarenta minutos, por semestre, para inserções de trinta segundos ou um minuto, nas redes
nacionais, e de igual tempo nas emissoras estaduais”). Após a declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal
Superior Eleitoral decidiu, por resolução, distribuir o fundo partidário e o direito de antena segundo critérios
razoáveis: a Resolução 22.503/06 determinou o tempo de 5 minutos, 10 minutos ou 50 minutos por semestre por
partido, a depender de sua representatividade e do número de votos obtidos; e a Resolução 22.506/07
estabelecendo a divisão do fundo partidário em três partes: 29% para todos os partidos de acordo com a sua
representação; 29% para os partidos que tenham eleito pelo menos dois representantes em pelo menos cindo
estados com ao menos um por cento dos votos do país na proporção de sua votação e 42% divididos por igual
para todos os partidos. Contra essa resolução, publicada em 13 de fevereiro de 2007, a Lei 11.459, de 21 de
março de 2007, adiciona o artigo 41A à Lei 9.096/95, com a seguinte redação: “5% (cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos
registrados no Tribunal Superior Eleitoral e 95% (noventa e cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão
distribuídos a eles na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados”. 950 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 748-749. 951 CRUZ VILLALON, Pedro. Legislación Electoral y circunstancias excepcionales: la igualdad de
oportunidades de los partidos en las primeras elecciones generales de la nueva R. F. A. (Sentencia del Tribunal
Constitucional Federal alemán de 29 de septiembre de 1990). Revista Española de Derecho Constitucional,
Madrid, a. 10, v.30, p. 129-132, sep./dic. 1990, p. 129-132. O autor elogia a rapidez do controle de
constitucionalidade do dispostivo (quatro semanas até a decisão final), a decisão de condenar o Estado à
245
A exclusão, direta ou postergada, como uma lenta exterminação, dos partidos políticos
menos expressivos, contraria frontalmente o sistema proporcional, a representação das
minorias e o princípio da democracia deliberativa. Não há “igual consideração e respeito”
quando, abaixo de um patamar de votos determinado, os partidos e os mandatários passam a
ser tratados como de segunda categoria.
A voz das minorias partidárias deve ser defendida, inclusive sua participação efetiva
nas casas parlamentares. Não se pode fazer um recorte pressupondo que os partidos “nanicos”
sejam todos partidos “de aluguel”: alguns podem defender determinada postura que, a partir
de sua visibilidade, pode vir a se tornar majoritária.952
Para Marcos Ramayana, a exigência de um nível de desempenho para os partidos
ofende o pluralismo político e “aniquila a representação minoritária dos pequenos partidos
políticos”, além de ameaçar o princípio republicano dificultando a renovação dos mandatos.953
A adoção de uma cláusula de desempenho ameaça, ainda, o direito de oposição. Em
um regime democrático, Georges Burdeau vê o direito de resistência ao arbítrio do poder da
maioria no “reconocimiento de los derechos de la oposición y en la regulación de
procedimientos que permitan su ejercicio”.954
Teresa Maria Frota Haguette afirma que três elementos formam a base das
democracias ocidentais: o direito de associação (que se manifesta nos sindicatos), o direito de
participação nas decisões políticas (que configura o sistema eleitoral) e o direito à divergência
e à oposição, que se estrutura pelo sistema partidário (que permite que a oposição seja
possível) e “[t]em no pluripartidarismo a sua instituição maior”.955
Há, para Lilian Márcia Balmant Emerique, um direito fundamental de oposição
política, derivado da liberdade de opinião e de outros direitos e liberdades. A oposição tem
como funções essenciais, em uma sociedade democrática pluralista, a fiscalização, a
indenização dos demandantes pelo custo do processo e a recusa do Tribunal em estabelecer as regras, embora
tenha configurado as possibilidades legislativas. 952 Com Ladislau Fernando Röhnelt, destaca-se o papel relevante dos pequenos partidos nas democracias e
afirma-se que “impedir que vivam os pequenos partidos é impedir que as minorias tenham voz no processo
político, que cresçam e se multipliquem, como cresceram e multiplicaram-se os partidos que hoje são grandes e vigorosos” (RÖHNELT, Ladislau Fernando. Partidos políticos e organização partidária. ANAIS do I Seminário
Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, 1990, p. 166). 953 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 9. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p.
325-326. 954 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones políticas. Op. cit., p. 63. 955 HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Cidadania: o direito à oposição e o sistema de partidos. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 78/79, p. 65-102, jan./jul. 1994, p. 66. Adiante, aduz: “A
existência de uma vintena de partidos não deixa dúvidas quanto à possibilidade real de criação de uma base legal
para o exercício da divergência, embora se possam colocar sérias dúvidas sobre ser esta a melhor forma de sua
organização” (p. 101-102).
246
dissidência e a alternância política e é indispensável garantir um “papel propositivo próprio”
às minorias.956
Clèmerson Merlin Clève também acentua o papel da oposição no Parlamento,
afirmando que a Constituição estabelece direitos a ela, a partir do pluralismo político como
fundamento, prevendo a representação proporcional dos partidos nas mesas e comissões das
casas, o reconhecimento do poder de iniciativa legislativa a todos os parlamentares, a
existência de um líder da minoria, que participa do Conselho da República e a legitimidade
dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional para a propositura de ação de
controle de constitucionalidade.957
956 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito fundamental como oposição política: discordar, fiscalizar
e promover alternância política. Op. cit., p. 269, 317, 240 e 251. 957 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 145-146.
247
4 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MÁXIMA IGUALDADE NA
DISPUTA ELEITORAL
A Constituição estabelece como norma estruturante do Direito Eleitoral o princípio
constitucional da máxima igualdade entre os candidatos. Essa escolha reflete-se no princípio
republicano e na ideia de igualdade construída na Constituição, que impõe uma regulação das
campanhas eleitorais, alcançando o controle da propaganda eleitoral, a neutralidade dos
poderes públicos, a vedação ao abuso de poder econômico e a imparcialidade dos meios de
comunicação. A campanha eleitoral mostra se a eleição é livre e justa. 958
A concretização legal do princípio constitucional traz como sanção aos abusos tanto
uma inelegibilidade endógena (que afasta o candidato da eleição em curso) como uma
inelegibilidade exógena, impossibilitando a participação do responsável pelo e do beneficiário
do abuso em eleições futuras pelo prazo previsto.959
Nas origens do governo representativo, aduz Bernard Manin, prevalecia o princípio da
distinção. No começo do século XX, a adoção do sufrágio universal indica uma concepção de
governo popular, desmentida pela permanência de efeitos não igualitários e aristocráticos da
eleição. Para o autor, são quatro os fatores que geram tais efeitos: “el tratamiento desigual de
los candidatos por parte de los votantes, la distinción de los candidatos requerida por una
situación selectiva, la ventaja cognoscitiva que otorga una situación de prominencia y el
coste de diseminar información”.960
No entanto, qualquer significação de democracia, ainda que leve em conta todas as
inúmeras variáveis que compõem seu significado, tem como elemento central a igualdade
política, conforme acentua John Hart Ely. Essa igualdade se impõe em relação ao valor do
voto, à efetiva representação e à disputa eleitoral.961
Para W. J. M. Mackenzie, que acentua o
958 TUESTA SOLDEVILLA, Fernando. Campaña electoral. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 121-126, p. 121 e 123. O autor define as campanhas eleitorais
como as atividades que têm como propósito a captação de votos, “sujetas a normas y pautas de actuación que garanticen y permitan la igualdad de los competidores, la limpieza y transparencia del proceso electoral y la
neutralidad de los poderes públicos”. Para Erick Wilson Pereira o princípio da igualdade é a estrutura de todo o
processo eleitoral, como imperativo da República (PEREIRA, Erick Wilson. Controle jurisdicional do abuso de
poder no processo eleitoral. São Paulo: LTr, 2004, p. 64-65). 959 Terminologia adotada por Alcides Munhoz da Cunha (CUNHA, Alcides Munhoz da. Justiça Eleitoral e
autenticidade do sistema representativo. Paraná Eleitoral, Curitiba, n. 33, p. 23-33, jul. 1999, p. 23-33). 960 MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo. Tradução: Fernando Vallespín. Madrid:
Alianza Editorial, 1998 [1995], p. 165 e 168. Nas páginas seguintes o autor passa a analisar os quatro fatores. 961 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard
University Press, 1980, p. 122-123.
248
papel do dinheiro nas eleições, a garantia da igualdade deve passar pelo controle das
campanhas eleitorais, dos fundos dos partidos e dos meios de comunicação.962
A ideia de igualdade entre os candidatos pode, segundo Óscar Sánchez Muñoz, ser
compreendida a partir de um princípio de não discriminação, de cunho liberal, ou a partir da
exigência de uma intervenção estatal que assegure um equilíbrio. Essa segunda visão
pressupõe uma concepção, a partir de uma decisão política coerente com o sistema
constitucional, de fatores relevantes e de fatores irrelevantes para a obtenção de um mandato
eletivo. Para o autor, o fundamento da classificação dos fatores deve relacionar-se ao papel
que eles exercem na autenticidade da participação política dos cidadãos.963
O sistema
brasileiro se aproxima mais dessa segunda leitura.
O texto constitucional português faz referência expressa a esse princípio,
estabelecendo em seu artigo 113º, 3, que as campanhas eleitorais se regem pela liberdade de
propaganda, pela igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas, pela
imparcialidade das entidades públicas perante as candidaturas e pela transparência e
fiscalização das contas eleitorais.
No Direito espanhol, Óscar Sánchez Muñoz extrai do princípio da igualdade de
oportunidades na disputa eleitoral duas implicações. A primeira se refere ao acesso à
competição eleitoral, que impõe um princípio geral de liberdade para a apresentação de
candidaturas, fundamentado também no pluralismo político e na liberdade de criação dos
partidos. Em segundo lugar, o princípio implica restrições à liberdade de atuação dos
candidatos.
Além disso, o autor aponta uma dimensão negativa da igualdade de oportunidades, que
exige a identificação pelo legislador democrático dos fatores de diferenciação que podem
levar ao desequilíbrio indevido na disputa, relacionados com o uso do poder político (que
sofre limitação absoluta, em face do mandato de estrita neutralidade dos poderes públicos),
com o poder econômico e com o poder midiático, e uma dimensão positiva, que impõe a
compensação da diferença de situação dos candidatos em relação aos fatores tidos como
irrelevantes para a disputa.964
O gênero é, para Óscar Sánchez Muñoz e para a legislação brasileira, um fator
irrelevante na disputa eleitoral e que provoca uma intervenção do Estado por seu legislador
962 MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Madrid: Tecnos, 1962 [1958], p. 176. 963 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 12-15. 964 Ibid., p. 65, 74-85. À frente, o autor se refere à democracia paritária como componente do princípio da
igualdade entre os candidatos (p. 143 e seguintes).
249
democrático no sentido de reduzir as desigualdades daí derivadas. Impõe-se a democracia
paritária como medida antidiscriminatória.965
No Brasil, o poder de reforma da Constituição atingiu o cerne do princípio
constitucional da máxima igualdade entre os candidatos, ao acolher, em oposição à história
política e constitucional do país, o instituto da reeleição para os cargos do Poder Executivo.966
A irrelegibilidade refletia uma garantia republicana e era quase um dogma.967
Constituía uma
das escolhas constituintes fundamentais.968
Paulo Peretti Torelly aponta que a vedação à reeleição consagra “objetivamente a
isonomia entre os candidatos e as respectivas concepções políticas que representam” e que
essa interdição é constitutiva da instituição republicana. Dispositivo expresso de todos os
textos constitucionais, com exceção da Constituição de 1937, a proibição de um mandato
sucessivo para os chefes do Poder Executivo expressa “um limite material presente na
coerência do todo normativo da ordem constitucional assentada na idéia de isonomia”.969
Sua adoção leva à quebra de uma lógica de tratamento igual, ao menos formalmente,
dos candidatos ao pleito. A desigualdade se estabelece simplesmente a partir da dupla
condição de candidato e chefe da Administração,970
configurando uma “regra de privilégio”,
um “Cavalo de Tróia”.971
Paulo Bonavides afirma que o Brasil está em crise de legitimidade,
uma crise constituinte, “desde a Emenda materialmente inconstitucional da reeleição do
965 Ibid., p. 143-158. 966 Para Francisco de Assis Vieira Sanseverino, a não problematização da reeleição nos cargos do Poder
Legislativo deve-se ao fato de que os parlamentares tomam decisões coletivas (SANSEVERINO, Francisco de
Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais: condutas vedadas aos agentes públicos.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 50). 967 Como aponta Torquato Jardim (JARDIM, Torquato. A representação eleitoral em face da Constituição e
da Lei Geral das Eleições. ANAIS do Primeiro Congresso Centro-Sul de Direito Eleitoral. Campo Grande:
Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, 1998, p. 201-215, p. 204). Lauro Barreto afirma a
consagração do repúdio expresso à reeleição nos 180 anos de vida republicana (BARRETO, Lauro. Reeleição e
continuísmo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 3). 968 Para Cármen Lúcia Antunes Rocha, a emenda da reeleição toca o princípio democrático e destoa com os
“paradigmas basilares do sistema, o que configura ilegitimidade constituinte” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes.
O processo eleitoral como instrumento para a democracia. Resenha Eleitoral [do Tribunal Regional Eleitoral de
Santa Catarina], Florianópolis, v. 5, n.1, p. 65-83, 1998. Disponível em: http://www.tre-sc.gov.br/sj/cjd/
doutrinas/carmen.htm. Acesso em: 24 nov. 2009). 969 TORELLY, Paulo Peretti. A substancial inconstitucionalidade da regra da reeleição: Isonomia e República no Direito Constitucional e na Teoria da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2008, p. 208 e 230. Para o autor, a regra que permite a reeleição impede a eficácia dos princípios constitucionais
que asseguram a isonomia, como o livre exercício de voto, a liberdade de expressão dos candidatos e da opinião
pública e a igualdade substantiva de condições no acesso aos eleitores (p. 235). 970 SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais:
condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 55. 971 TORELLY, Paulo Peretti. A substancial inconstitucionalidade da regra da reeleição. Op. cit., p. 236 e
280. Para o autor, a vedação à reeleição garante a isonomia entre os candidatos, a pluralidade democrática, a
distinção entre a administração pública e a disputa eleitoral e “a legitimidade racional e democrática dos
processos eleitorais” (p. 276).
250
presidente da República”.972
Igualmente crítico à adoção da reeleição, contrária a toda
tradição, prudência e bom senso, manifesta-se Fábio Konder Comparato.973
Essa não é a opinião de Vera Maria Nunes Michels, que vê na possibilidade de
reeleição dos chefes do Poder Executivo “algo saudável numa democracia”, pois permite que
os eleitores renovem o mandato de bons administradores. Afirma ainda a autora que a maior
exposição do abuso de poder político propiciada pela reeleição demandará normas eficazes e
maior conscientização dos eleitores.974
Para Aroldo Mota, analisando a possibilidade de reeleição, “[a] influência do poder
público no resultado da eleição é muito pequena”. Além disso, afirma que ou se adota a
reeleição ou se proíbe, não fazendo sentido exigir que o ocupante do cargo se afaste para a
campanha.975
Karl Loewenstein, ao se referir ao controle sobre o processo eleitoral em regimes
autoritários, aponta a incorporação de vantagens na campanha eleitoral para os partidos
governamentais como um método antidemocrático.976
Mesmo que não se possa configurar o
regime político brasileiro em 1997 como autoritário, parece inegável que a incorporação da
possibilidade de reeleição para os chefes do Poder Executivo permite uma vantagem pouco
democrática na disputa eleitoral.977
E é inconstitucional.
Ademais, com a alteração apenas de um parágrafo da Constituição, sem a alteração
dos demais dispositivos do artigo 14, o sistema constitucional restou incoerente e iníquo:
permanece a necessidade de afastamento dos titulares do Poder Executivo para concorrer a
outros cargos e a inelegibilidade por parentesco, mas o candidato à reeleição pode permanecer
no cargo que novamente disputa.
O parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição referia-se à necessidade de renúncia ao
mandato pelos chefes do Poder Executivo “para concorrerem a outros cargos”, em harmonia
972 BONAVIDES, Paulo. A salvaguarda da democracia constitucional. In: MAUÉS, Antônio G. Moreira
(Org.). Constituição e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 245-260, p. 245. Sérgio Sérvulo da
Cunha aponta que durante a revisão constitucional foram apresentadas quarenta e nove propostas para permitir a
reeleição do chefe do Poder Executivo (CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Reeleição do Presidente da República.
Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 13, p. 201-209, 1996, p. 201-209). 973 COMPARATO, Fábio Konder. Sentido e alcance do processo eleitoral no regime democrático. Revista
Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 17, p. 220-228, 1997, p. 220-228. 974 MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito eleitoral: análise panorâmica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998, p. 153. 975 MOTA, Aroldo. O Direito Eleitoral na Constituição de 1988. Fortaleza: Editora Stylus. 1989, p. 23. 976 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 335. 977 Vale ressaltar, no entanto, a análise dos cientistas políticos Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e
Fabiano Santos sobre a matéria. Para os autores, a reeleição para os cargos do Poder Executivo pode ser mostrar
positiva “na medida em que estimula a operação de mecanismos de accountability” (ANASTASIA, Fátima;
MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representação política na América do Sul. São
Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 36).
251
com o parágrafo anterior que em sua redação original impunha a impossibilidade dos chefes
do Poder Executivo de concorrerem ao mesmo cargo. A Emenda 16/97 alterou apenas o
parágrafo 5º, permitindo a reeleição para um único período subsequente.
Celso Antônio Bandeira de Mello faz uma análise a partir do princípio da isonomia na
disputa eleitoral das regras constitucionais sobre a reeleição. Afirma ser “da mais
incontendível certeza” a prevenção constitucional às situações de desequilíbrio entre os
candidatos e aduz que o texto original da proposta de emenda previa expressamente a
permanência no cargo. Ao ser afastada tal possibilidade, segundo o autor, nada impõe uma
leitura que inverta o princípio da igualdade entre os candidatos, em uma aplicação da
Constituição que aceita a desigualdade entre o que tenta a reeleição e os demais concorrentes.
Permitir que o candidato à reeleição se mantenha do cargo seria “inculcar imbecilidade à
norma jurídica”, “o mais rematado absurdo, a mais completa inconsistência, a mais radical
estultice, a mais cabal incongruência da Lei Magna”. Sublinha que a interpretação que
permite a permanência no cargo faz a emenda inconstitucional, pois ofende as cláusulas
pétreas, a igualdade como o primeiro dos direitos e garantias individuais. E afasta o
argumento da impossibilidade de aplicação da regra do parágrafo 6º defendendo que os
parágrafos 5º, 6º e 9º do artigo 14 da Constituição são “declarações expressas [que] conduzem
implicitamente à inelegibilidade do presidente que não se desincompatibilize seis meses antes
do pleito”, e que a não restrição do direito dos chefes do Poder Executivo de permanecerem
no cargo leva à restrição do direito “de todo e qualquer cidadão concorrer em igualdade de
condições com estas autoridades”, em um choque do interesse privado com o interesse
público da lisura das eleições.978
Mas, nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal preferiu não atuar na remoção de uma
“esquizofrenia” constitucional, ainda que decorrente de reforma. Em decisão liminar na ação
direta de inconstitucionalidade 1805-1,979
o Tribunal, vencido apenas o Ministro Marco
Aurélio, afastou a extensão da exigência de desincompatibilização prevista no parágrafo 6º do
artigo 14 da Constituição para os candidatos à reeleição em cargos do Poder Executivo.
A ementa da liminar afirma que a Emenda Constitucional 16/97 substituiu uma regra
de inelegibilidade absoluta por uma norma de elegibilidade, e que a desincompatibilização – o
afastamento do cargo ou da função pública – relaciona-se com a inelegibilidade e não com a
possibilidade de reeleição. Aduz que o afastamento para concorrer ao mesmo cargo somente
poderia ser exigido se houvesse um comando constitucional expresso, sob pena de criação,
978 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Desincompatibilização e inelegibilidade de chefes de
Executivo. Revista Trimestral de Direito Público , São Paulo, n. 18, p. 5-14, 1997. 979 Decisão em plenário de 26 de março de 1998, publicada apenas em 14 de novembro de 2003.
252
“por via exegética”, de “cláusula restritiva da elegibilidade prevista no § 5º do art. 14, da
Constituição, na redação da Emenda Constitucional nº 16/1997, com a exigência de renúncia
seis meses antes do pleito, não adotada pelo constituinte derivado”.980
Para Torquato Jardim, a premissa do “novo regime da reeleição” é a presunção de
“comportamento republicano probo do candidato à reeleição”.981
O sistema constitucional e
eleitoral brasileiro, no entanto, não se caracteriza por presumir o comportamento probo dos
agentes públicos. Desde o Império há legislação, constantemente ampliada, prevendo
inelegibilidades e incompatibilidades para ocupantes de determinados cargos, a fim de se
evitar o uso da função pública para desequilibrar o pleito em benefício próprio ou alheio.
As inelegibilidades por parentesco, a proibição de reeleição, as regras e os prazos de
desincompatibilização da Lei Complementar 64/90, evidenciam uma presunção absoluta
contra aqueles que ocupam os cargos apontados.982
A Lei das Eleições, Lei 9.504/97, lista uma série de condutas no seu artigo 73 que, por
presunção legal, são “tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos
pleitos eleitorais”. Não é necessário demonstrar a má-fé ou o desvio de finalidade do agente
público: a lei presume um comportamento antirrepublicano e ímprobo dos candidatos e não
exclui dessa reputação legal aquele que busca a reeleição.
No Brasil não há limitações à reeleição nos cargos parlamentares. Fátima Anastasia,
Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos acentuam que na América do Sul todos os países
permitem a reeleição de parlamentares, ainda que a Venezuela permita no máximo dois
mandatos consecutivos e que a Colômbia tenha aceito essa possibilidade apenas a partir de
2002.
Benjamin Constant se opõe fortemente à limitação da reeleição para o Parlamento.
Afirma que a reeleição sucessiva “remunera e favorece as resistências morais” e que “nada é
mais contrário à liberdade e ao mesmo tempo mais favorável à desordem que a exclusão
forçada dos representantes do povo”.983
980 Esquizofrenicamente o Supremo Tribunal Federal afasta uma decorrência lógica das normas de
desincompatibilização (existentes nos textos constitucionais desde o Império) em respeito ao poder de reforma
da Constituição, mas desconsidera as opções do constituinte originário na determinação da titularidade do mandato eletivo e no desenho do sistema eleitoral brasileiro, em nome da lógica. 981 JARDIM, Torquato. A representação eleitoral em face da Constituição e da Lei Geral das Eleições.
Op. cit., p. 214. 982 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Desincompatibilização e inelegibilidade de chefes de
Executivo. Op.cit., p. 5-14, p. 7. 983 Benjamin Constant aponta três requisitos para exercer funções representativas: nascimento, idade legal
e tempo livre necessário para informar-se e atingir a retidão de julgamento, o que é garantido pela propriedade.
Afasta expressamente os não-proprietários da condição de eleitor e de elegível: “Aqueles a quem a indulgência
mantém uma eterna dependência e condena a trabalhos diários, não têm maior informação que as crianças sobre
os assuntos públicos, nem têm maior interesse do que os estrangeiros na prosperidade nacional, cujos elementos
253
João Fernando Lopes de Carvalho sublinha que a possibilidade de um parlamentar de
concorrer à reeleição sem necessidade de afastar-se do cargo o coloca em uma posição
privilegiada, com maior exposição nos meios de comunicação social e com outras formas de
divulgar seu trabalho e suas propostas.984
Outro recorte que a Constituição e a legislação eleitoral fazem em relação aos direitos
políticos é a previsão de incompatibilidades. A incompatibilidade é uma restrição à
elegibilidade decorrente de um impedimento que pode ser afastado por vontade do futuro
candidato ou por vontade alheia, no caso da incompatibilidade por parentesco.985
As
incompatibilidades, voltadas à autenticidade eleitoral e à igualdade entre os candidatos, estão
previstas no ordenamento jurídico brasileiro desde sempre. Há uma presunção de que a
ocupação de determinados cargos, não necessariamente públicos, gera para seu ocupante uma
vantagem na disputa eleitoral não admitida pelo Direito.986
As incompatibilidades constitucionais estão previstas nos parágrafos 6º e 7º do artigo
14. O primeiro diz respeito aos chefes do Poder Executivo que pretendem concorrer a outros
cargos – a eles se impõe a renúncia a seus cargos até seis meses antes da eleição. O parágrafo
seguinte se refere ao cônjuge e aos parentes do titular do Poder Executivo, que são impedidos
de concorrer se o titular não renuncia a seu posto, exceto se forem titulares de mandato eletivo
candidatos à reeleição.
A Lei Complementar 64/90 indica uma série de cargos cuja ocupação é incompatível
com a disputa eleitoral, a partir do inciso II do artigo 1º, e remissões nos incisos seguintes. A
lógica é imputar a impossibilidade de concorrer ao pleito se não houver afastamento definitivo
ou temporário do cargo ou função, pública ou não, no prazo estabelecido, sob pena de
macular a autenticidade eleitoral.
não conhecem e de cujos benefícios só participam indiretamente” (CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos
constitucionais: Princípios políticos aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à
Constituição atual da França. Tradução: Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989 [1815], p.
111-120). 984 CARVALHO, João Fernando Lopes de. Inelegibilidades constitucionais. In: ROLLO, Alberto (Org.).
Elegibilidade e inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum, 2008, p. 81-144, p. 93. O autor aponta ainda o
tratamento diferenciado em relação a ocupantes de outros cargos públicos e de outros profissionais, como dirigentes de sindicatos. 985 Para Adriano Soares da Costa a incompatibilidade é uma condição de elegibilidade imprópria (COSTA,
Adriano Soares. Instituições de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2006, p. 184). Não parece, no
entanto, relevante essa identificação, sendo preferível utilizar os termos consagrados pelo ordenamento jurídico
brasileiro e pela doutrina. 986 Ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello que as previsões de incompatibilidade da Lei Complementar
64/90 carregam uma “previsão juris et de jure a de que para ferir os valores que se propõe a colocar sob
proteção basta a mera ocupação daqueles postos no período indicado”, não se exigindo abuso das prerrogativas
do cargo (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Desincompatibilização e inelegibilidade de chefes de
Executivo. Op. cit., p. 5-14, p. 7).
254
O prazo geral é de seis meses para concorrer ao cargo de Presidente da República, de
Vice-Presidente, de Governador, de Vice-Governador, de Senador, de Deputado Federal e
Estadual e de Vereador e de quatro meses para o cargo de Prefeito e de Vice-Prefeito. Os
servidores públicos, estatutários ou não, que não ocupam cargo diretivo, devem se licenciar de
suas funções três meses antes do pleito para concorrerem a qualquer cargo eletivo.
Ainda em relação ao princípio da máxima igualdade na disputa eleitoral, há de se
atentar para a questão da liberdade de expressão.
A adoção do pluralismo político como fundamento do Estado brasileiro implica a
participação no debate de todas as opiniões políticas. Mas não qualquer participação – exige-
se “respeito e salvaguarda permanentes da competência de participação por igual direito e da
dignidade de cada indivíduo”.987
A ampla expressão do pluralismo exige a garantia de um
espaço em que todos tenham voz e não apenas aqueles que detenham meios para isso.988
A imprensa e os meios de comunicação de massa, fundamentais para a configuração
de uma sociedade democrática, alteram o seu papel com o passar do tempo. Como aponta
Jürgen Habermas, os “princípios jornalísticos da imprensa ilustrada”, que marcam a
“imprensa politicamente pensante”, perdem seu espaço para uma lógica de mercado e de
consumo. Para o autor, “[o] mundo criado pelos meios de comunicação de massa só na
aparência ainda é esfera pública”. O público deixa de pensar a cultura para apenas consumi-la;
uma cultura de integração, repleta de formas publicitárias e slogans, que absorve a esfera
pública política. “O jornalismo crítico é suprimido pelo manipulativo”.989
Isso se repete na vida política, também marcada pela lógica da oferta e da procura,
segundo Pierre Bourdieu, em face da “desigual distribuição dos instrumentos de produção de
uma representação do mundo social” – a concorrência entre os agentes políticos gera produtos
políticos, programas, problemas, análises, conceitos, acontecimentos, que os cidadãos
consumidores devem escolher, “com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto
mais afastados estão do lugar de produção”. Ressalta ainda que “o mercado da política é, sem
dúvida, um dos menos livres que existem”.990
987 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução: Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 [1994], p. 303. O autor, ao contrário de Roberto Gargarella, afirma
que são aceitos no debate público apenas aqueles que compartilham de um consenso fundamental, concordando
com determinadas regras: “a sociedade aberta não legitima a eliminação das suas próprias premissas”. 988 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 59. 989 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 [1961], p. 200-201 e 207-210. 990 BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In:_____.
O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 163-207, p. 164
e 166.
255
O princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos alcança o âmago
de um valor central de um regime democrático: a liberdade de expressão. Conforme acentua
Jônatas Machado, a liberdade de expressão, para além de um direito fundamental, tem uma
posição primordial na Constituição em face de seu caráter constitutivo dos princípios
estruturantes e dos direitos fundamentais, refletindo-se no sistema político, econômico,
religioso, científico, artístico.991
Jürgen Habermas afirma que os direitos fundamentais de liberdade de expressão e de
opinião, de reunião e associação e de imprensa devem ser interpretados “positivamente como
garantias de participação, se é que eles devem querer preencher com algum sentido a sua
função originária”. Com o apoio em Ridder, aduz a formulação de uma “liberdade pública de
opinião”, “que primeiro providencia para os cidadãos a participação com igualdade de
chances no processo de comunicação pública”. A liberdade de opinião e expressão está para
além da esfera individual, sendo necessária a garantia de “igualdade de chance de acesso à
esfera pública”.992
O fato de a liberdade de expressão ser um princípio constitutivo dos Estados
Democráticos de Direito, bem como a proteção ao conteúdo das mensagens políticas,
conforme sublinha John Hart Ely, não afasta a incidência de uma regulação das
manifestações.993
Mas a imposição de limites à expressão deve ser cuidadosamente verificada,
em face da posição fundamental que ocupa a liberdade de expressão na estrutura democrática.
Roberto Gargarella afirma que “el socavamiento de la libertad de expresión afecta
directamente el nervio principal del sistema democrático”. Para o autor, as limitações às
expressões públicas de cidadania não devem se dirigir ao conteúdo do discurso nem buscar
evitar que ele se torne público; devem ser avaliadas em relação ao compromisso democrático
com um debate público robusto, que permita a participação de todas as vozes.994
Em face desse princípio, relacionado com a liberdade de eleição, Óscar Sánchez
Muñoz aponta que alguns direitos subjetivos, inclusive de natureza fundamental, podem
sofrer restrições no período eleitoral, como ocorre com o princípio da liberdade de expressão
991 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 9-16. O autor afirma que os sistemas devem ter seu funcionamento estrutural e comunicativamente aberto, “em termos tipicamente market based” (p. 16). Não soa bem, no entanto,
a utilização de categorias mercadológicas para o tratamento de direitos fundamentais, o laissez-parler que o
autor afima (p. 872). Adiante o autor expressamente afirma que a “liberdade de expressão é um bem insuscetível
de subordinação a uma pura lógica económica de mercado”, havendo motivos para a intervenção estatal (p. 218). 992 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. Cit., p. 264-265. 993 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Op. cit., p. 110. Ao se referir à
primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, o autor defende a necessidade do estabelecimento de
regras, a partir da análise dos casos particulares, pela Suprema Corte (p. 231, n 14). Isto não parece adequado ao
sistema brasileiro, principalmente em relação às normas de propaganda eleitoral. 994 GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007, p. 26-28 e 41.
256
e o da liberdade de empresa.995
Tais restrições, vale ressaltar, não podem ir além do mínimo
necessário para garantir a efetividade dos princípios estruturantes.
Jônatas Machado aponta que o princípio da igualdade de oportunidades comunicativas
tem função estruturante e que sua dimensão objetiva se revela na “função democrática de
formação da opinião pública e da vontade política, no dever de protecção de minorias e na
garantia de uma esfera de discurso público aberta e pluralista”.996
Ressalta Francisco de Assis
Vieira Sanseverino que devem ser levados em consideração a liberdade de informação (em
relação a quem transmite e a quem recebe), a liberdade de manifestação e o princípio da
igualdade de oportunidade na disputa eleitoral.997
Não há, no entanto, uma colisão entre os princípios da liberdade e da igualdade
quando do controle da propaganda eleitoral, do financiamento de campanhas e da vedação ao
abuso. Como aponta Owen Fiss, há o confronto entre duas concepções de liberdade. A
primeira é focada na liberdade de expressão como manifestação da autonomia individual; a
segunda relaciona a liberdade de expressão com a sua finalidade no regime democrático:
fortalecimento do debate público e intensificação da autodeterminação coletiva.998
Neste
contexto, é papel do Estado preservar a abertura e a integridade do debate público,999
em
virtude do seu compromisso com a democracia e com a qualidade epistêmica da discussão
pública, que exige igualdade de acesso aos meios de comunicação.1000
Parece defensável afirmar que a Constituição, por seus princípios fundamentais, se
inclina para a segunda concepção. Assim, mesmo que a liberdade de expressão seja um valor
base para a liberdade democrática e que o discurso seja sempre no sentido de seu caráter
absoluto e intangível – e não possa ser diferente – não se pode negar a necessária imposição
995 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 59. 996 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 365 e 384. Para o autor, a dimensão subjetiva das liberdades comunicativas (que veda
a atuação do Estado) pode entrar em conflito com essa dimensão objetiva e se esse embate for insanável deve-se
privilegiar a dimensão jurídico-subjetiva (p. 384-385). 997 SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. Direito eleitoral. Porto Alegre: Verbo Jurídico. 2006, p.
112. 998 FISS, Owen M. Free speech and social structure. Yale Law School. 1986. Disponível em: www.law.yale.edu/faculty/fisspublications.htm. Acesso em: 20 maio 2009. 999 Id. 1000 Conforme aponta Carlos Santiago Nino (NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia
deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996, p. 224). Jônatas Machado também ressalta essa questão, afirmando a
necessidade de impedir que os interesses de um indivíduo ou um grupo levem ao bloqueio das possibilidades de
comunicação de todos, sendo necessária a correção das desigualdades comunicativas, a partir dos princípios da
liberdade, da igualdade, da justiça e da reciprocidade. Afirma que “a liberdade de expressão em sentido amplo
constitui um instrumento de difusão pluralística do poder imprescindível a uma ordem constitucional livre e
democrática” (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública
no sistema social. Op. cit., p. 18 e 89-90).
257
de restrições, ainda quando se trate de expressão política.1001
Há de se reconhecer o “efeito
silenciador da liberdade de expressão”: a ampla liberdade de expressão de um indivíduo ou de
um grupo pode afastar um grupo marginalizado da discussão dos assuntos públicos.1002
A configuração constitucional brasileira se acomoda ao modelo da opinião pública
livre e não ao modelo de mercado das idéias, na distinção de Óscar Sánchez Muñoz.1003
O
princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral exige a restrição à liberdade
de campanha e à atuação dos meios de comunicação no pleito para evitar que haja a influência
indevida de um fator tido como irrelevante e que o acesso aos meios de comunicação
(permitido pelo poder econômico ou pela a relação de um partido ou candidato com seus
dirigentes) leve ao desequilíbrio, atingindo o pluralismo e a liberdade de formação da opinião.
A regulação da liberdade de expressão deve ser tratada de maneira cuidadosa, sob
pena de se permitir a aniquilação do direito; mas a existência de normas jurídicas, debatidas
democraticamente em uma arena que conta com a participação das minorias, que regulem a
campanha eleitoral não parece colocar em risco a observância do princípio: antes o realiza em
sua vertente mais robusta, em sua leitura mais exigente.1004
Para Jônatas Machado, as liberdades de comunicação são limitadas pela proteção ao
Estado de Direito Democrático. Assim, não são aceitos discursos que desafiam a legitimidade
da ordem estabelecida e que incitam à guerra civil, à alteração violenta do Estado de Direito, à
luta política pela violência ou à desobediência coletiva.1005
A questão que se coloca é apontar
o juiz da legitimidade dos discursos políticos.
1001 Como acentua John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Op. cit., p. 109 e 231 n 10). 1002 FISS, Owen M. El efecto silenciador de la libertad de expresión. Isonomía: Revista de Teoría y
Filosofía del Derecho [Instituto Tecnológico Autónomo de México], Ciudad de México, n. 4, p. 17-27, abr.1996,
p. 22. O efeito silenciador não decorre simplesmente do conteúdo, mas da diferença social entre os indivíduos ou
grupos: “The silencing effects of words do not depend simply on their content, but also on the social standing of
those who hear them” (FISS, Owen M. The Supreme Court and the problem of hate speech. Capital University
Law Review, v. 24, n. 2, p. 281-291, 1995, p. 290). Luis Felipe Miguel adicionaria ainda a influência da seleção
dos fatos e dos ângulos e a escolha de termos para descrever determinadas ações (como o uso de “ocupação” ou
de “invasão” para descrever os atos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) para acentuar a atuação
dos meios de comunicação de massa na formação da opinião pública (MIGUEL, Luís Felipe. Mídia e opinião
pública. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 331-341). 1003 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 243-244. 1004 É a noção de democracia que impõe que o discurso dos poderosos não cale ou impeça a expressão dos
fracos (FISS, Owen M. El efecto silenciador de la libertad de expresión. Op. cit., p. 23). Para Jônatas Machado,
impõe-se “garantir a existência, integridade e acessibilidade de uma esfera de discussão pública aberta e
pluralista, sem impedimentos e discriminações, e combater os efeitos das discriminações ocorridas no passado”
(MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema
social. Op. cit., p. 363). 1005 Ibid., p. 865.
258
O princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral impõe ainda a
coibição dos abusos na campanha. Os abusos que viciam a livre formação da vontade do
eleitor podem ser vistas como formas abusivas de exercício de direito, assim consideradas,
segundo Francisco Amaral, quando se dão para além de seus limites, de suas finalidades, para
além da função instrumental do direito.1006
A legislação eleitoral busca reprimir os abusos na disputa eleitoral – nomeadamente o
abuso do poder econômico, o uso do poder político e o uso indevido dos meios de
comunicação social – prevendo instrumentos processuais para a sua apuração e sanções
jurídicas e políticas quando de seu cometimento.
Os abusos de poder econômico e do poder de autoridade, ressalta José Neri da
Silveira, ofendem a liberdade do sufrágio e a igualdade na disputa eleitoral pelo “aliciamento
ilegítimo de eleitores”.1007
Para Olavo Brasil Lima Junior, a democracia “requer que o
processo decisório não seja contaminado pelas desigualdades e condicionamentos impostos
pela apropriação privada do capital, sob pena de afastar o demos da polis”.1008
“O direito de votar e ser votado é obviamente afetado de maneira negativa pelo
controle desigual de recursos financeiros (as campanhas eleitorais, por exemplo, são
claramente condicionadas em seus resultados pelos grandes gastos que envolvem)”, aduz
Fábio Wanderley Reis.1009
Lauro Barreto critica severamente as disposições legais sobre o tema, afirmando sua
insuficiência e anacronismo e apontando como responsável pela ineficácia do combate ao
abuso de poder nas campanhas a inexistência de juízes especializados próprios da Justiça
Eleitoral.1010
De fato, o tratamento legal da coibição dos abusos nas campanhas eleitorais é
deficitário. Possivelmente as falhas das normas jurídicas sejam propositais, para impedir uma
efetiva punição dos infratores. No entanto, a autolimitação do Tribunal Superior Eleitoral no
reconhecimento dos abusos, com a utilização de argumentos como a exigência de
1006 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 208-212. 1007 NERI DA SILVEIRA, José. Aspectos do processo eleitoral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,
p. 91. 1008 LIMA JUNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 33. 1009 REIS, Fábio Wanderley. Democracia, Igualdade e Identidade. In: PERISSINOTTO, Renato; FUKS,
Mário (Orgs.). Democracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 11-31, p. 12. 1010 BARRETO, Lauro. Escrúpulo e poder: o abuso de poder nas eleições brasileiras. Bauru: Edipro, 1995,
p. 19-23. Essa também é a crítica de Luis Gustavo Motta Severo da Silva (SILVA, Luis Gustavo Motta Severo
da. A inefetividade da Ação de Investigação Judicial Eleitoral: análise crítica do artigo 22, XV, da Lei
Complementar nº 64/90. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande;
STRAPAZZON, Carlos Luis (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 289-
318.)
259
potencialidade para alterar o resultado da eleição e de proporcionalidade da sanção em relação
à conduta, faz com que o mínimo de possibilidade de garantia da igualdade da disputa
eleitoral se esvaia. Essa timidez ou respeito à vontade popular não é, no entanto, uma
constante no comportamento da Justiça Eleitoral. Em outras matérias, os juízes pretendem até
mesmo realizar a Constituição diretamente, com uma leitura ampla e pessoal da moralidade
em matéria eleitoral.
4.1 A REGULAÇÃO DA PROPAGANDA ELEITORAL E O USO INDEVIDO DOS
MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
As campanhas eleitorais não podem prescindir da liberdade de propaganda, mas isso
tem de ser combinado com a exigência de igualdade entre os concorrentes, como corolário do
ideal republicano e do princípio democrático.
Propaganda é, segundo Fávila Ribeiro, “um conjunto de técnicas empregadas para
sugestionar pessoas na tomada de decisão”, que prescinde de argumentos persuasivos em
busca de uma reação emocional.1011
A liberdade de propaganda deriva da liberdade de expressão e daí decorre sua
proteção. A sua regulação é indispensável para assegurar a isonomia entre os candidatos,
desde que no estrito limite da lei, pois “a liberdade não é atributo exclusivo de alguns, tendo
de ser igualmente acessível a todos, adquirindo expressiva dimensão social com o
estabelecimento de um ambiente propício ao debate de idéias, ao confronto de opiniões”.1012
Com José da Cunha Nogueira, o tratamento da liberdade de propaganda deve garantir o
funcionamento da competição democrática, em consonância com a igualdade: protege-se a
liberdade contra a atuação indevida das agências estatais e a igualdade em face das
dominações sociais que possam “de alguma maneira embaraçar e desnivelar o livre diálogo
democrático”.1013
Em virtude da sua influência na disputa eleitoral, a apreciação da questão da liberdade
de propaganda deve extrapolar o âmbito individual. O valor da liberdade deve ser lido de
acordo com o princípio da igualdade, base do ideal republicano e do Estado democrático de
Direito.
1011 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 289. 1012 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 294. 1013 NOGUEIRA, José da Cunha. Manual prático de Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 34.
260
Joel José Cândido aponta como bens jurídicos protegidos pela regulação da
propaganda a soberania do Estado, a ordem pública, a moral e os bons costumes, o controle de
abusos, a defesa dos direitos e a imposição dos deveres e os princípios constitucionais
fundamentais, mas ressalva que a normatização deve dar-se “nos termos e sob o império da
lei”.1014
Deve-se observar, ainda, se as restrições à liberdade de expressão na propaganda
eleitoral não se dirigem, indiretamente, à discriminação de grupos sociais ou partidos políticos
que não teriam outra forma de se manifestar em virtude dos custos envolvidos.1015
Cada vez
mais torna-se importante a valorização da participação política dos pequenos movimentos
sociais, alguns deles já de alguma forma ligados às organizações nãogovernamentais, que
surgem justamente com “a função e a meta” de assessorá-los.1016
Esse é um dos mais
legítimos papéis que deve ser assumido pelo terceiro setor, infelizmente mais ligado a uma
atividade caritativa do que a uma verdadeira atuação política transformadora. A normativa
legal não promove, no entanto, condições para a efetivação da liberdade de expressão de
movimentos sociais e associações, para a manifestação de suas posições políticas.
Tal estreitamento, antidemocrático e contrário ao pluralismo, não se harmoniza com o
desenho constitucional.1017
Tampouco se pode conceber uma restrição judicial independente
de norma jurídica – ou contrariamente a ela – à propaganda eleitoral, forma qualificada de
exercício da liberdade de expressão que se relaciona duplamente com a democracia.
Joel José Cândido indica seis princípios regentes da propaganda política: o princípio
da legalidade (lei federal regula a propaganda), princípio da liberdade (livre direito à
propaganda, na forma da lei), princípio da responsabilidade (dos partidos e coligações, com
solidariedade dos candidatos pelos abusos), princípio igualitário (igual acesso à propaganda
paga ou gratuita), princípio da disponibilidade (livre disposição dos meios lícitos de
propaganda) e princípio do controle judicial da propaganda (exclusividade da Justiça Eleitoral
na aplicação das regras da propaganda eleitoral e no exercício do poder de polícia).1018
Lauro
1014 CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. 11. ed. Bauru: Edipro, 2004, p. 150. 1015 John Hart Ely aponta tal exigência (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial
Review. Op. cit., p. 111). 1016 VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica.
Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 118. O autor faz um estudo sobre o terceiro setor e sobre o desvio na atuação
das organizações não-governamentais. 1017 Um caso interessante na campanha eleitoral para vereador em Curitiba em 2008 se relaciona a essa
questão. Professor Galdino, candidato pelo Partido Verde, realizou sua campanha de bicicleta, munido de
microfone e alto-falante, divulgando um jingle repetitivo que reunia suas pretensas qualidades para o cargo de
representante político. Proibir essa forma de propaganda, embora inconveniente e perturbadora do sossego
público, seria bloquear o acesso ao processo democrático para a mudança política, como indica John Hart Ely
(ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Op cit., p. 116-117). 1018 CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. Op. cit., p. 153.
261
Barreto adiciona o princípio da ampla fiscalização da propaganda (pela possibilidade de todos
os partidos, coligações e candidatos, e em determinados casos, o eleitor, representar à Justiça
Eleitoral em face de propaganda eleitoral em desconformidade com a legislação).1019
A formação da vontade política do eleitorado passa pela livre e pública formação da
opinião pública.1020
Incorporando o princípio da igualdade, o debate público de ideias exige a
“faculdade de participação permanente e juridicamente igual de qualquer um”.1021
Isso deve
ser levado em consideração na regulação da propaganda eleitoral.
As propagandas eleitorais a partir dos meios de comunicação de massa forjaram a
figura do “candidato sabão em pó”1022
e a do eleitor-consumidor.1023
A propaganda política
tem como objetivo “veicular concepções ideológicas com vistas à obtenção ou manutenção do
poder estatal” e a propaganda eleitoral é aquela destinada a levar ao público os candidatos que
estão concorrendo ao pleito para captar votos,1024
mas não é isso que informa as estratégias de
campanha.
1019 BARRETO, Lauro. Manual de propaganda eleitoral. Bauru: Edipro, 2000, p. 24. 1020 Maurizio Passerin D‟Entrèves afirma que opiniões representativas somente podem surgir quando os cidadãos se confrontam em um espaço público. A opinião política não pode ser formada privadamente, pois deve
se colocar em teste em uma discussão pública. Se não, ter-se-á apenas uma opinião como unanimidade
inconsciente da sociedade de massa (D'ENTRÈVES, Maurizio Passerin. Hannah Arendt and the idea of
citizenship. In: MOUFFE, Chantal (Ed.). Dimensions of radical democracy. London: Verso, 1992, p. 145-168).
Cabe aqui, como ressalva, a opinião de Augusto Fuschini, escrevendo sobre a realidade portuguesa em 1899,
trazida por António Manuel Hespanha: “Sem dúvida, a opinião pública é essencialmente ignorante e versátil.
Como as mulheres formosas e histéricas, deixa-se mais facilmente conduzir pelas palavras lisonjeiras e sedutoras
dos que lhe cultivam os defeitos e afagam as vaidades, do que pelas lições severas dos que procuram elevar-lhe o
nível intelectual e moral” (HESPANHA, António Manuel. O constitucionalismo monárquico português. Breve
síntese. Disponível em: < http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3904.pdf>. Acesso em: 22 nov.
2009). Ainda vale trazer a opinião de Pierre Bourdieu, para quem “a opinião pública não existe”, ou ao menos
não se pode dizer o que ela é: ela não pode ser lida como a soma das opiniões individuais, através de pesquisas de opinião (BOURDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. In: THIOLLENT, Michel. Crítica Metodológica,
investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1981, p. 137-151, p. 137-151). 1021 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 342. Para Fávila Ribeiro, “as normas
protetoras da liberdade [de propaganda] aparecem em funcional implicação com os postulados da igualdade”
(RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 308). 1022 Interessante ressaltar que as campanhas publicitárias eleitorais que tentam “vender” o candidato com
argumentos não políticos não são recentes na política brasileira. O slogan do candidato à presidência da
República Brigadeiro Eduardo Gomes ressaltava as características relevantes de sua proposta política: “Vote no
Brigadeiro, que é bonito e é solteiro”. Candidato da União Democrática Nacional às eleições presidenciais de
1945 e 1949, derrotado em ambas (na primeira por Gaspar Dutra e em seguida por Getúlio Vargas), diz-se que
sua popularidade o fez nome do docinho preferido dos brasileiros. Se non è vero, è bene trovato. 1023 A visão da arena política como um mercado é freqüente. Manuel García-Pelayo aduz que os partidos
políticos funcionam como empresas políticas, political entreprises, “que, al igual que cualquier empresa, tratan
de maximizar sus beneficios satisfaciendo, de un lado, las demandas ya existentes en ciertos sectores de la
sociedad y, de outro, creando artificialmente demandas seguidas de la oferta de satisfacerlas a fin de acrecer
sus beneficios en el mercado electoral en una coyuntura dada”. Isso se reflete também na “flexibilidad
ideológica” dos partidos, adaptável às conjunturas político-eleitorais e direcionada à sua “razón concreta o
programática de existir”: obter o maior número possível de votos (GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de
partidos. Madrid: Alianza Editorial, 1996 [1986], p. 78-79). 1024 O conceito é de Jairo José Gomes (GOMES, Jairo José. Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey,
2008, p. 263 e 273).
262
Ressalta Carlos Santiago Nino que a democracia não se fortalece com campanhas
eleitorais de cunho comercial; ao contrário, enfraquece-se pelo apelo à irracionalidade e pelos
altos custos, usualmente suportados por interesses privados, que afastam do debate os
candidatos sem recursos e seus argumentos.1025
A “espetacularização” das campanhas eleitorais passa a concentrar os discursos em
torno de pequenas diferenças, “laminadas a ouro”, com recontextualização dos fatos e com
um marketing da personalidade afastado da história do candidato.1026
Sequer se discute a
condução da campanha eleitoral pela lógica da publicidade: “O discurso político é uma jogada
de venda articulada, e a participação política está reduzida à escolha entre as diversas imagens
consumíveis”.1027
O tratamento dos candidatos como mercadoria de consumo rápido e descartável1028
não é privilégio da política brasileira. Outros países sofrem com essa mercantilização do
debate político,1029
com perda de qualidade na formação do voto e na capacidade de
construção de consensos em torno de propostas políticas concretas.1030
Ou, ao menos, com
deturpações na determinação de critérios para a escolha de representantes.
Karl Loewenstein aponta a utilização na propaganda política de instrumentos que
provocam efeitos emocionais, substituindo os argumentos racionais que levariam à persuasão.
O discurso da propaganda política passa a ser dirigido por profissionais da formação da
opinião pública, com a utilização de pesquisas de opinião. Os candidatos são vendidos como
“pasta de dientes o jabón”.1031
Não distinta é a análise de Jürgen Habermas, para quem as
eleições forjam uma mobilização popular, dirigida por “gerentes eleitorais” que, pela
1025 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., 227-228. O autor
apresenta como possibilidade de superar isso a realização de acordos voluntários entre os candidatos para limitar
a extensão da campanha e afastar a propaganda que mostre apenas nomes e slogans (Ibid., p. 228). 1026 Essa análise é feita por Richard Sennett (SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Tradução:
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record. 2006, p. 151). 1027 Conforme a leitura de Michael Hardt e Antonio Negri (HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império.
Tradução: Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 343). 1028 Não há, no entanto, um órgão de proteção ao eleitor-consumidor, que proteja o cidadão contra vício ou
fato do “produto”. Interessante ressaltar que o nome dado ao referendo revocatório de mandatos eletivos nos
Estados Unidos é o mesmo dado para a troca de produtos defeituosos: recall. 1029 A campanha eleitoral milionária de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos em 2008
ganhou o prêmio de anunciante do ano nos Estados Unidos (AdAge), superando a Apple. Em 2009 foi a
vencedora do prêmio Grand Clio de marketing. 1030 Carlos Santiago Nino afirma que no debate público em todo mundo as discussões sobre as grandes
questões políticas são substituídas por imagens pictórias, opiniões absolutamente vagas e apelos emocionais
(NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 222). 1031 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 415. O autor conceitua propaganda como
“el uso de personas, palabras, objetos, símbolos, u otras técnicas de representación para conducir, hacia los
objetivos de los que la manejan, la mentalidad y la conducta de aquellos a los que va dirigida”, como uma
faceta do processo de poder (p. 414).
263
linguagem do marketing político, tentam adequar os cidadãos apáticos à “posição de
consumidor apolítico”, vendendo política apoliticamente.1032
A organização das campanhas em torno de mensagens publicitárias, de apelo fácil com
slogans retóricos, não corresponde à “garantía de un proceso comunicativo respetuoso con la
libertad de la formación de la decisión de los electores”.1033
Ao contrário, faz com que os
cidadãos se vinculem mais à imagem que ao conteúdo das mensagens, sem se concentrarem
no valor intrínseco dos “produtos” que buscam atrair sua preferência, conforme aponta José
Luis Vega Carballo.1034
Há um processo de escolha política sem que haja a formação de uma
opinião pública, sem que o eleitor “seja capaz de participar de decisões efetivas ou até mesmo
de participar”.1035
Não há, no entanto, vedação a esse uso da propaganda eleitoral no sistema jurídico
brasileiro. Ainda que haja uma nítida discrepância entre essa ênfase publicitária nas
campanhas eleitorais e a exigência do princípio republicano, inspirado por um ideal de
cidadania ativa, qualquer controle prévio sobre o conteúdo das propagandas seria ofensivo ao
princípio democrático e à liberdade de expressão. Uma fiscalização mais intensa do
financiamento de campanhas e uma restrição mais enfática ao abuso de poder econômico, em
face do alto custo de produção das campanhas de marketing, seria a única forma de tentar
evitar esse desvio na finalidade da propaganda eleitoral.1036
A censura das propagandas eleitorais não se harmoniza com os princípios
constitucionais estruturantes – sua concepção se relaciona com uma ideia de “verdade”,
incompatível com um Estado Democrático de Direito.1037
A regulação da propaganda eleitoral
tem como único escopo promover a igualdade entre os candidatos e assim se legitima.1038
1032 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. cit., p. 251-252. Nas páginas
seguintes o autor ressalta a importância da apresentação do líder e de seu empacotamento, necessariamente
“adequados ao mercado”. 1033 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 253. 1034 VEGA CARBALLO, José Luis. Manipulación. DICCIONARIO electoral. San José: Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 2000, p. 834-844, p. 840. 1035 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. cit., p. 258. 1036 Não se deseja, em absoluto, um retorno à “Lei Falcão” – Decreto-Lei 6.639/76 – que, vedando a
divulgação das propostas políticas, permitia apenas a divulgação do nome, número, partido e currículo dos
candidatos, acompanhado de sua foto. 1037 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 41. 1038 Do voto do ministro Sepúlveda Pertence, relator, no julgamento da Medida Cautelar 1.241 em 25 de
outubro de 2002 no Tribunal Superior Eleitoral: “É sedimentada a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral
quanto à validade de restrições legais à liberdade constitucional de informação, na medida necessária à vedação
de interferência indevidas no processo eleitoral”. Inteiro teor disponível na página do Tribunal Superior Eleitoral
na internet: www.tse.jus.br - Acesso em 26 de dezembro de 2009.
264
Celso Antônio Bandeira de Mello defende uma campanha extremamente breve, 40
dias para a disputa presidencial e 22 dias para os demais cargos, para reduzir os recursos
eleitorais necessários.1039
A propaganda extemporânea, antes da data legal – 05 de julho do ano da eleição, para
a propaganda de rua – configura abuso de poder,1040
em seu viés econômico. A configuração
do abuso do poder econômico pela propaganda antes do tempo marca-se pela utilização de
recursos econômicos na campanha antes da constituição dos comitês financeiros, em
discrepância do determinado pela Lei das Eleições.1041
A regulamentação da propaganda eleitoral “de rua” sofre uma alteração enfática com a
Lei 11.300/06, publicada em 10 de maio de 2006, menos de cinco meses da votação, a um
mês das convenções. Não obstante, por resolução do Tribunal Superior Eleitoral, alguns
dispositivos dessa lei foram aplicados já nas eleições de 2006, em flagrante ofensa ao artigo
16 da Constituição. Com a lei, passa a ser proibida a propaganda por outdoors, que eram
divididos igualitariamente entre os candidatos e partidos, levando em consideração os pontos
de maior e menor impacto – portanto sem a influência determinante do poder econômico – e
permanece permitida a propaganda em muros, que dependem de acordo entre o proprietário
do muro e o candidato ou partido, usualmente mediante paga. Isso leva a mais desigualdade
entre os concorrentes e não, como afirma Marcus Vinicius Furtado Coêlho, uma diminuição
do impacto do poder econômico por meio da propaganda.1042
A Lei 12.034/09 acrescenta o
parágrafo 8º no artigo 37 da Lei 9.504/97 e impõe que “[a] veiculação de propaganda eleitoral
em bens particulares deve ser espontânea e gratuita, sendo vedado qualquer tipo de
pagamento em troca de espaço para esta finalidade”. Resta saber como se dará a fiscalização.
As restrições legais, desde que adequadas aos princípios constitucionais (o que não
parece ser o caso da proibição de outdoors combinada com a permissão do uso de muros na
propaganda), não podem, no entanto, ser estendidas por resolução do Tribunal Superior
Eleitoral. E menos ainda permite-se a remissão da regulação da propaganda à legislação de
posturas municipais, o que, em eleições que ultrapassem a circunscrição do município, pode
gerar uma intensa desigualdade na disputa eleitoral. E mais, como sublinha Guilherme de
Salles Gonçalves, a restrição municipal da propaganda pode servir aos interesses do prefeito
1039 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Representatividade e democracia. In: ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes; VELLOSO, Carlos Mário da Silva (Coords.).Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996,
p. 41-53, p. 49. 1040 COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Eleições: Abuso de poder. Brasília: Ed. Autor, 2006, p. 169. 1041 Art 25. “O partido que descumprir as normas referentes à arrecadação e aplicação de recursos fixadas
nesta Lei perderá o direito ao recebimento da quota do Fundo Partidário do ano seguinte, sem prejuízo de
responderem os candidatos beneficiados por abuso do poder econômico”. 1042 COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Eleições. Abuso de poder. Op. cit., p. 45.
265
candidato à reeleição e de vereadores que buscam um novo mandato, já conhecidos do
eleitorado.1043
Um ponto relevante relacionado ao Direito positivo a ser considerado em relação às
regras de propaganda eleitoral adequadas ao princípio da máxima igualdade na disputa
eleitoral diz respeito ao acesso aos meios de comunicação social e ao tempo de direito de
antena1044
destinado aos candidatos que participam do pleito.1045
É reflexo do princípio da igualdade entre os candidatos a proibição de propaganda
paga na televisão e no rádio, meios de comunicação de massa. A utilização desses meios para
a divulgação das candidaturas deve dar-se sob requisitos equitativos de distribuição do tempo
do horário eleitoral gratuito. Essa regra deve atingir também os canais de TV por
assinatura,1046
pois a restrição não se fundamenta na natureza jurídica dos meios de
comunicação, mas em seu impacto e no elevado custo de divulgação da propaganda, o que
levaria a uma discriminação indevida na disputa eleitoral.
Pela legislação brasileira, o tempo de propaganda eleitoral é dividido um terço por
igual a todos os partidos que apresentem candidatos e os dois terços restantes
proporcionalmente ao número de representantes na Câmara de Deputados, considerada a
representação partidária resultante da eleição (artigo 47, §§ 2º e 3º da Lei 9.504/97). Com a
1043 GONÇALVES, Guilherme de Salles. A liberdade de exercício da propaganda eleitoral e o „dever‟ de
respeito às posturas municipais. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande;
STRAPAZZON, Carlos Luis (Coord.). Direito eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 205-
241, p. 208. 1044 Para Bernardo Diniz de Ayala, direito de antena é a “situação jurídica activa que consiste no aproveitamento gratuito de um espaço de emissão, na rádio ou na televisão, para expor ideias imputáveis ao
respectivo titular, que se responsabiliza pelo conteúdo da emissão” (AYALA, Bernardo Diniz de. O direito de
antena eleitoral. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas constitucionais: nos 20 anos da Constituição de
1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v. 1, p. 573-653, p. 573). O autor ressalta três tipos de direito de antena na
Constituição portuguesa: um geral, que se aplica aos partidos políticos e às organizações sindicais, profissionais
e representativas das atividades econômicas; um específico dos partidos políticos da oposição, que obedece aos
critérios de representatividade; e um direito de antena eleitoral, de titularidade dos candidatos, que deve ser
igualmente distribuído (p. 576-577). No âmbito eleitoral, os princípios do Direito de antena são a dupla
relevância da proibição da censura, a liberdade de propaganda, a igualdade, a eficácia, a identificabilidade e a
licitude (p. 594). 1045 Em relação ao direito de antena destinado aos partidos (onde há proibição de apelo direto ao voto, como aqui) no sistema português, Jônatas Machado critica a divisão do tempo baseada na representatividade do partido
na Assembleia da República e no número de votos recebidos, afirmando que os critérios adotados levam à
cristalização da posição relativa dos partidos. Aponta ainda outras fraquezas estruturais do direito de antena,
como a segmentação temporal e à parcialidade do conteúdo, que não permite um “debate sério, profundo e
crítico-racional das questões políticas, na sua complexidade, com o correspondente exame cruzado de razões e
contra-razões” (MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social. Op. cit., p. 687-688). 1046 Como o é na legislação espanhola baseada no modelo de garantia da opinião pública livre, que busca
evitar a influência do poder econômico na propaganda eleitoral, segundo Óscar Sánchez Muñoz (SÁNCHEZ
MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 247).
266
possibilidade de coligações, a divisão do tempo é bastante díspar, principalmente nas eleições
majoritárias.1047
Bernardo Diniz de Ayala acentua a divisão equitativa do tempo de propaganda
eleitoral exigida pela Constituição portuguesa.1048
Enquanto o direito de antena geral e o
direito de antena dos partidos de oposição são distribuídos de acordo com a representatividade
das agremiações, a propaganda destinada diretamente ao apelo ao voto “deve repousar em
tempos de emissão equitativos, ou seja, distribuídos em moldes tendencialmente iguais pelos
vários concorrentes”. O autor justifica essa distinção de critérios afirmando que a
representatividade não pode servir de critério para a eleição seguinte, impondo-se que todos
os partidos tenham o mesmo tratamento e oportunidades, ao menos juridicamente.1049
Não é a mesma análise de Óscar Sánchez Muñoz, para quem a legislação eleitoral não
pode tratar de maneira absolutamente igual partidos com representatividade distinta, sob pena
de conceder tratamento privilegiado aos cidadãos que decidiram por partidos menores. No
entanto, ressalta o autor, essas “cuotas de visibilidad” não podem servir para beneficiar os
1047 Apenas para ilustrar a argumentação, veja-se o tempo do horário eleitoral gratuito nas eleições para a
Prefeitura de Curitiba em 2008. A Coligação O Trabalho Continua, que buscava a reeleição de Beto Richa,
contava com 11 minutos, 46 segundos e 58 centésimos no programa em bloco e mais 1059 inserções (spots de 30
segundos veiculados durante a programação normal das emissoras de rádio e televisão distribuídos segundo um
mapa de mídia onde se verificam os horários de maior e menor impacto) durante todo o período (de 19 de agosto
a 02 de outubro de 2008). A Coligação Curitiba Para Todos tinha 5 minutos, 11 segundos e 26 centésimos por
programa e mais 466 inserções. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que disputou sozinho, tinha à
sua disposição 4 minutos, 43 segundos e 19 centésimos além de 424 inserções. Ainda concorreram ao pleito a
Coligação Uma Só Curitiba (2‟08‟‟80 e 193 inserções), o Partido Verde e o Partido Comunista do Brasil (ambos com 1‟45‟‟41 e 158 inserções cada um), a Coligação Frente de Esquerda Curitiba (1‟22‟‟02 e 123 inserções) e o
Partido Trabalhista do Brasil (1‟17‟‟34 e 116 inserções). Dados obtidos junto à Assessoria de Comunicação
Social do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. 1048 Artigo 40.º Direitos de antena, de resposta e de réplica política. “1. Os partidos políticos e as
organizações sindicais, profissionais e representativas das actividades económicas, bem como outras
organizações sociais de âmbito nacional, têm direito, de acordo com a sua relevância e representatividade e
segundo critérios objectivos a definir por lei, a tempos de antena no serviço público de rádio e de televisão. 2. Os
partidos políticos representados na Assembleia da República, e que não façam parte do Governo, têm direito, nos
termos da lei, a tempos de antena no serviço público de rádio e televisão, a ratear de acordo com a sua
representatividade, bem como o direito de resposta ou de réplica política às declarações políticas do Governo, de
duração e relevo iguais aos dos tempos de antena e das declarações do Governo, de iguais direitos gozando, no âmbito da respectiva região, os partidos representados nas Assembleias Legislativas das regiões autónomas. 3.
Nos períodos eleitorais os concorrentes têm direito a tempos de antena, regulares e equitativos, nas estações
emissoras de rádio e de televisão de âmbito nacional e regional, nos termos da lei”. 1049 AYALA, Bernardo Diniz de. O direito de antena eleitoral. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas
constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v. 1, p. 573-653, p. 598-599. O
autor aduz que na eleição para Presidente da República (que admite candidaturas independentes embora exija a
assinatura de 7500 a 15000 proponentes) a distribuição do tempo é estritamente igualitária e que para a
Assembleia da República, leva-se em consideração o número de candidatos apresentados e o número de círculos
(distritos) nos quais o partido concorre, levando em consideração, portanto, o peso possível dos partidos na
eleição que se aproxima e não na eleição que já passou (p. 599-600).
267
partidos que já contam com cadeiras no Parlamento e para “invisibilizar” as agremiações
menores.1050
A divisão do tempo do direito de antena faz parte da esfera de decisão política do
legislador. A Constituição, por meio de seus valores e princípios, não estabelece critérios para
essa repartição. A liberdade de conformação, no entanto, não é absoluta. As diretrizes estão
colocadas e servem de balizas para a verificação da adequação das escolhas legislativas.
O Estado Democrático de Direito, informado pelo princípio do pluralismo, deve
assegurar o direito de oposição democrática, como instrumento de crítica e de
responsabilização políticas.1051
O direito de antena não se relaciona apenas a um direito de
comunicação do seu titular, mas está intimamente ligado ao pluralismo característico de um
Estado democrático e à necessária conscientização para a formação do voto: assim se
configura como uma liberdade, um direito e também uma garantia dos valores
democráticos.1052
Um tempo irrisório para a propaganda eleitoral não permite a promoção das
candidaturas e a exposição de idéias (mais necessário no caso de candidatos de agremiações
menores). Ofende o princípio da eficácia da propaganda, pois dificilmente consegue provocar
uma reflexão política no cidadão e contribuir para o pluralismo político.1053
A liberdade de expressão exige o meio para a sua realização, com o acesso aos meios
de comunicação e a liberdade de propaganda.1054
O acesso ao direito de antena deve ser o
mais amplo e igualitário possível, para permitir que o direito cumpra suas funções em relação
à democracia e ao Direito: instigar o pluralismo, impor o cumprimento da função pública dos
órgãos de comunicação social e garantir eleições verdadeiramente democráticas, pois “[n]ão
há voto livre sem opinião esclarecida; não se concebe liberdade de escolha sem consciência
das alternativas”.1055
1050 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 28 e 274-281. Em nome do princípio da igualdade, o autor chega a defender o acesso dos partidos menores a
meios mínimos de produção que garantam qualidade dos programas eleitorais (p. 281). No entanto, como a
ênfase é na mensagem e nas propostas, e não no visual, uma divisão mais igualitária do tempo já estaria mais
adequada ao princípio em tela. 1051 Conforme Jônatas Machado, referindo-se ao pensamento de Amartya Sen (MACHADO, Jônatas E. M.
Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Op. cit., p. 80). 1052 AYALA, Bernardo Diniz de. O direito de antena eleitoral. Op. cit., p. 583-584 e 587. 1053 Ibid., p. 602. Uma exceção, bastante curiosa, são as campanhas de Enéas Carneiro. Com 17 segundos de
propaganda eleitoral em 1989, um minuto e 17 segundos em 1994 e um minuto em 40 segundos em 1998, e o
famoso bordão “Meu nome é Enéas!” o candidato do então Partido da Reconstrução Nacional teve um
desempenho nas urnas superior a Leonel Brizola. Em 2002, elegeu-se como o deputado federal mais votado do
Brasil, com 1.573.642 votos. 1054 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 418. 1055 AYALA, Bernardo Diniz de. O direito de antena eleitoral. Op. cit., p. 608-610.
268
Em relação à imprensa escrita, a legislação brasileira permite propaganda paga. A Lei
12.034/09 proíbe a propaganda na véspera e no dia da eleição. Esse tipo de propaganda, com
diferentes valores para os órgãos de imprensa, em razão de seu impacto, além de permitir
jornais apenas para fins eleitorais, induz à distinção entre os candidatos em virtude dos
recursos para o acesso.
No Direito espanhol, a propaganda paga na imprensa é livre, desde que os gastos
eleitorais nessa categoria não ultrapassem vinte por cento do total das despesas de
campanha.1056
A ênfase das campanhas eleitorais, marcada pelo rádio na década de 1950 e pela
televisão das décadas seguintes, com uma sofisticação marcada a partir no final do século XX,
quando se incorporou um refinado discurso publicitário às peças, vai cedendo lugar ao uso da
internet e das chamadas “mídias sociais”.
Em relação ao uso da internet, e acompanhando Óscar Sánchez Muñoz, é possível
separar três categorias de atividades: (a) a que se assemelha à publicidade comercial, como os
anúncios e banners; (b) atividades de comunicação do candidato ou do partido, como diários
pessoais eletrônicos (blogs), salas de bate-papo (chats) e fóruns de discussão; e (c) atividades
de comunicação de terceiros, como páginas pessoais e blogs. Para o autor, as primeiras devem
se submeter às regras de limitações dos gastos eleitorais, as segundas devem ser livres, mas
com a fiscalização dos gastos envolvidos em sua produção e as terceiras seriam assimiláveis a
artigos de opinião publicados na imprensa escrita.1057
Embora a divisão das atividades seja adequada, a regulamentação dada ao primeiro
tipo não parece coerente com o princípio da máxima igualdade na disputa eleitoral,
principalmente quando se trate de página de grupos de comunicação vinculados a emissoras
de televisão ou de rádio, da imprensa escrita, de provedores de serviços de acesso à internet
ou de portais de entretenimento. Nesses casos o mais adequado seria a proibição da
propaganda paga, pois o impacto de banners em páginas acessadas não em busca de
informações políticas é bastante relevante e a propaganda não é acessível a todos os
candidatos em face de seu custo.
1056 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 246. 1057 Ibid., p. 335-337. O autor critica o “mito de la „libertad‟ o „democraticidad‟ intrínseca de la red”,
afirmando que ainda que na internet haja espaço para todos segue havendo ricos e pobres. O uso da rede para
campanhas eleitorais, assinala o autor, não apenas incrementa a visibilidade das opiniões minoritárias como
também reforça a das majoritárias (p. 338-339).
269
Jônatas Machado aponta a distinção entre a recepção ótica e acústica a partir do sofá
(couch-viewing) e da escrivaninha (desk-viewing),1058
afirmando que com a interatividade “o
receptor passa a ser também emissor”, o que caracterizaria a internet como um fórum.
Sublinha ainda a redução dos custos de produção e de distribuição de material informativo,
permitindo o consumo individualizado do serviço e a pluralização dos fornecedores de
informação. Acentua as características da centralidade da autonomia individual, da
diversidade de conteúdos e da descentralização de autoridade, com relativa paridade entre
emissores e receptores.1059
Para Luis Felipe Miguel, ao contrário, a absoluta desigualdade
entre o emissor, que detém o monopólio da fala, e os receptores, característico dos meios de
comunicação de massa, não se debilita na internet.1060
A Lei das Eleições, com as alterações promovidas pela Lei 12.034/09, permite a
propaganda na internet a partir do dia 05 de julho do ano da eleição. Está autorizada a
propaganda na página do candidato e do partido na internet, cujo endereço deve ser informado
à Justiça Eleitoral e que deve ser hospedado em provedor brasileiro; por meio de mensagens
eletrônicas a endereços cadastrados e por meio de blogs, redes sociais, mensagens
instantâneas e assemelhados, cujo conteúdo seja gerado ou editado por candidatos, partidos ou
coligações ou de iniciativa de qualquer pessoa natural. Não é permitida a propaganda paga na
internet nem a propaganda, ainda que gratuita, em páginas de pessoas jurídicas ou páginas dos
órgãos públicos.
O princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral impõe a garantia
da neutralidade e do pluralismo na informação política e eleitoral,1061
opondo-se ao uso
1058 Sobre essa distinção, Jürgen Habermas afirma: “Rádio, cinema e televisão levam gradualmente ao
desaparecimento da distância que o leitor precisa guardar ante a letra impressa – uma distância que a privacidade
de assimilação tanto solicitava quanto a esfera pública de uma troca de idéias sobre o que havia sido lido acabava
possibilitando. Com os novos mídias, modifica-se a forma de comunicação enquanto tal; por isso, no sentido
estrito da palavra, atuam de um modo mais penetrante do que a imprensa alguma vez pôde fazê-lo. O
comportamento do público, sob a coação do „don‟t talk back‟, assume uma nova configuração. Os programas
que os novos mídias emitem, se comparados com comunicações impressas, cortam de um modo peculiar as
reações do receptor. Eles cativam o público enquanto ouvinte e espectador, mas ao mesmo tempo tiram-lhe a
distância da „emancipação‟, ou seja, a chance de poder dizer e contradizer. O raciocínio de um público-leitor dá
tendencialmente lugar ao „intercâmbio de gostos e preferências‟ de consumidores – inclusive o falar sobre o
consumido, „a prova dos conhecimentos do gosto‟, torna-se parte do próprio consumo” (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. cit., p. 202). Feita há quase cinquenta anos, a análise não trata da
internet e das mídias sociais, que incitam um „talk back‟, mas absolutamente superficial. 1059 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 352-353 e 1105. Para o autor, as restrições à liberdade de expressão na internet devem
se dirigir à proteção da infância e da juventude e dos direitos de personalidade. As técnicas de restrição indicadas
são a responsabilização dos fornecedores de acesso, a proibição, criminalização e bloqueio da difusão (p. 1109,
115 e 1123). 1060 MIGUEL, Luís Felipe. Mídia e opinião pública. Op. cit., p. 331-341. 1061 Conforme a expressão de Óscar Sánchez Muñoz (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de
oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 255). Fernando Tuesta Soldevilla se refere à
270
indevido1062
dos meios de comunicação social. Os meios de comunicação também devem
obediência ao princípio da igualdade entre os partidos, que se dirige ao Estado e aos
particulares.1063
A atuação dos meios de comunicação social, por si só, sem necessariamente ser
abusiva, implica a seleção de algumas informações e a decisão de como serão apresentadas.
Essa parcialidade influencia, desde logo, a formação da opinião pública e da vontade eleitoral,
pela definição de temas políticos e restrição do debate.
Owen Fiss refere-se às redes de comunicação como o novo fórum (“eletronic street
corner”), além de configurarem sujeitos discursantes. Afirma que a opinião desses
sujeitos/espaços de debate não é vinculada apenas nas mensagens editoriais, mas em todos os
programas, que projetam sua visão de mundo. Sua participação no debate traz elementos e
assuntos, mas também os afasta.1064
Nesse caso, a proteção da liberdade de expressão
(compreendida como uma liberdade social) está vinculada à sua atuação no enriquecimento
do debate público. Há riscos no controle pelo Estado desses espaços de veiculação de
opiniões, pois em face da imposição de severas restrições os meios de comunicação podem
evitar participar do debate público, o que o empobrece excessivamente.1065
A influência da cobertura da imprensa, com ênfase em aspectos personalistas e
escândalos, contribui para o cinismo do eleitorado e para o declínio do engajamento cívico, no
momento de campanha eleitoral que deveria servir para que os cidadãos pensassem
politicamente, afirmam Susan A. Banducci e Jeffrey A. Karp.1066
Jônatas Machado acentua que a liberdade de imprensa é uma garantia substantiva da
democracia, ao contribuir para a afirmação de uma opinião pública autônoma. Aduz que a
liberdade de radiodifusão se relaciona com a difusão pluralística do poder, mas ressalta a
função de interesse público exercida, em face de sua configuração como instrumento decisivo
neutralidade informativa dos meios de comunicação (TUESTA SOLDEVILLA, Fernando. Campaña electoral.
Op. cit., p. 124). 1062 Alcides Munhoz da Cunha distingue o “abuso” do “uso indevido”. Enquanto este descreve um ilícito,
atentatório aos bens protegidos pelo direito eleitoral e traz como consequências sanções penais ou
administrativas, o abuso compreende a exasperação do uso indevido, sua forma qualificada, que traz sanções de
natureza política. O abuso não se presume, e para sua caracterização exige-se comprovação da relevância do ato,
nexo de causalidade e capacidade de causar vício substancial à disputa eleitoral (CUNHA, Alcides Munhoz da.
Justiça Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Op. cit., p. 23-33). 1063 EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Direito fundamental como oposição política: discordar, fiscalizar
e promover alternância política. Curitiba: Juruá, 2006, p. 62. 1064 “What is said determines what is not said” (FISS, Owen M. Free speech and social structure. Op. cit.).
Luís Felipe Miguel também ressalta o papel de formação da agenda pública, do “cardápio” das questões a serem
refletidas pelo público, seja nos noticiários seja por progremas de entretenimento (MIGUEL, Luís Felipe. Mídia
e opinião pública. Op. cit., p. 331-341). 1065 FISS, Owen M. Free speech and social structure. Op. cit. 1066 BANDUCCI, Susan A.; KARP, Jeffrey A. How elections change the way citizens view the political
system: campaigns, media effects and electoral outcomes in comparative perspective. British Journal of Political
Science, Colchester, v. 33, p. 443-467, jul. 2003.
271
na formação da opinião pública e da vontade política, chamando a atenção para os efeitos de
seleção, hierarquização e conformação dos conteúdos publicísticos.1067
Karl Loewenstein
aponta para o perigo que a concentração do poder que forma a opinião pública representa para
a liberdade política, afirmando ser inevitável “cierto control estatal sobre la economia de
mercado libre de la opinión pública”.1068
Ressalta Jürgen Habermas que “[m]esmo o jornalismo político deve, como todas as
instituições que exercem uma influência privilegiada, de modo demonstrativo ou
manipulativo, na esfera pública, por sua vez estar subordinado ao mandamento democrático
de ser abertamente público”.1069
Cabe, portanto, a intervenção do Estado para assegurar “a existência, integridade e
acessibilidade de uma esfera de discurso alargada a todos os domínios do sistema social”
fundamentada na inclusividade da comunidade constitucional de diálogo.1070
Owen Fiss
atribui ao Poder Judiciário a competência para verificar a conformidade com os valores
constitucionais e afastar o perigo de uma atuação antidemocrática, contraproducente, do
Estado. Destaca que a validade do agir do Estado está vinculada aos efeitos no debate público
de suas restrições e que os juízes são capazes de preencher a expressão “enriquecimento do
debate público” como o são para o termo “autonomia”.1071
“Os meios de comunicação social substituem-se ao público na função de manter viva a
discussão política”, reduzindo o cidadão a consumidor de opiniões já estabelecidas, quando
oferece alternativas.1072
Sua análise parcial dos fatos, com favorecimento de um dos
candidatos na disputa, sem declaração expressa dessa preferência, leva ao desvirtuamento da
formação do voto. A atuação dos meios de comunicação, essencial para a garantia da
liberdade e para a formação da vontade democrática, não deve ser desprezada em seu aspecto
danoso – a possibilidade de manipular e ameaçar a liberdade e transformar a democracia em
“telecracia”.1073
As restrições legais não são as mesmas para os meios de comunicação. Faz-se uma
distinção entre as emissoras de rádio e televisão e a imprensa escrita, que se justifica tanto
1067 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 505 e 613-619. 1068 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 421. 1069 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. cit., p. 244-245. 1070 MACHADO, Jônatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no
sistema social. Op. cit., p. 666 e 678-679. 1071 FISS, Owen M. Free speech and social structure. Op. cit. 1072 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 354-355. 1073 Ibid., p. 357-358.
272
pelo regime jurídico aplicado às primeiras e pela liberdade assegurada constitucionalmente à
segunda quanto pelo impacto das distintas formas de comunicação no debate político.1074
O controle não pode ser puramente “cronométrico”, mas tampouco pode levar a um
controle da linha editorial dos meios de comunicação.
4.2 A ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS E O USO DO PODER POLÍTICO
Outro aspecto do princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos é a
exigência da absoluta neutralidade dos poderes públicos na campanha eleitoral. No caso do
poder político, seu uso já configura abusivo, pois se trata de fator absolutamente irrelevante
na disputa eleitoral, que não comporta sequer medidas para compensar a desigualdade entre
os candidatos.1075
Ressalta Romeu Felipe Bacellar Filho que “a finalidade pública está compreendida no
princípio da impessoalidade administrativa” e que a Constituição, no parágrafo 1º do artigo
37,1076
traz um comando inequívoco de impessoalidade. Para o autor, “[o] administrador que
transgrida este preceito convulsiona, desarmoniza e desacredita a ação administrativa”.1077
1074 A ministra Ellen Gracie se refere à diferenciação, no julgamento da Medida Cautelar 1.241 em 25 de
outubro de 2002 no Tribunal Superior Eleitoral (relator ministro Sepúlveda Pertence): “Os meios que utilizam
áudio e vídeo são evazivos da esfera de percepção dos destinatários da informação. É praticamente impossível a
qualquer cidadão, em qualquer lar brasileiro estar alheio ao que se divulga pela televisão e pelo rádio. Já o leitor
de jornal, por outra parte, toma voluntariamente a deliberação de adquirir e ler um determinado órgão de
imprensa. A posição do leitor da imprensa escrita é nitidamente pró-ativa, por isso mesmo a Legislação Eleitoral
não se ocupa de sancionar a sua eventual parcialidade”. Inteiro teor disponível na página do Tribunal Superior Eleitoral na internet: www.tse.jus.br - Acesso em 26 de dezembro de 2009. 1075 Conforme SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales.
Op. cit., p. 281 e seguintes. O autor ressalta que estão incluídas na proibição as campanhas de incentivo ao voto
promovidas pelos poderes públicos: “la campaña institucional, para ser compatible con el principio de libertad
de la emisión del voto, debe estar dirigida únicamente a combatir la abstención de carácter técnico, que puede
tener su origen, entre otros motivos, en la falta de información, pero en ningún caso a combatir la abstención
basada en motivos políticos, que constituye una postura política legítima amparada por la Constitución” (p.
288). No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral desde 1994 faz campanhas institucionais. Neste primeiro ano, as
peças publicitárias buscam apenas explicar a votação em duas cédulas. Nas eleições seguintes, com a adoção da
urna eletrônica, a campanha se destina a demonstrar a nova forma de votação, mote que se fortalece nos pleitos
de 1998 e 2000. Nessa última eleição, a campanha institucional traz a Família Bandeira, que discute questões relacionadas à cidadania e de participação política. A partir de 2002, o Tribunal Superior Eleitoral adota o slogan
“Vota Brasil”, mantido até hoje, com um forte conteúdo político e que prega o voto consciente. 1076 Art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 1º - A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e
campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não
podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores
públicos.” 1077 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre Direito Administrativo. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2009, p. 34-35.
273
O legislador brasileiro, em obediência ao princípio da igualdade na disputa, corolário
das exigências democráticas e republicanas do jogo democrático, e aos princípios da
Administração Pública, adota um conjunto de restrições aos detentores de funções e cargos
públicos. Trata-se, na visão de Fávila Ribeiro, “inegavelmente de uma decapitação da
capacidade governamental”, justificada pela necessidade de obstar a utilização do poder
público para beneficiar determinado candidato.1078
Para Francisco de Assis Vieira Sanseverino, as condutas vedadas previstas no artigo
73 da Lei 9.504/97 são uma espécie do gênero abuso de poder político.1079
Na realidade, o
simples uso do poder político é vedado na disputa eleitoral – uma conduta singular em
benefício de um candidato (ou em prejuízo de outro) determina, por si só, o desvio de
finalidade.
A legislação eleitoral, conforme sua leitura pela jurisprudência, faz uma distinção
entre a atuação vedada e o abuso. Para a configuração do abuso – que tem como sanção a
inelegibilidade – exige-se potencialidade para alterar o resultado da eleição e assim
comprometer a normalidade e legitimidade do pleito.
As condutas vedadas pelos artigos 73 e 75 da Lei 9.504/97 presumem-se tendentes a
afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos: não há que se perquirir a respeito da
intenção do agente público.1080
Agirá de maneira vedada, desequilibrando indevidamente a disputa eleitoral, o agente
público que (I) ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens
móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção
partidária (com exceção do uso, em campanha, de transporte oficial pelo Presidente da
República, desde que o gasto seja ressarcido pelo partido ou coligação, bem como o uso, em
campanha, pelos candidatos a reeleição de Presidente e Vice-Presidente da República,
Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, Prefeito e Vice-Prefeito, de
suas residências oficiais para realização de contatos, encontros e reuniões pertinentes à
própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público); (II) usar materiais ou
serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas
1078 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Op. cit., p. 282. 1079 SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais:
condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 43. 1080 Assim a ementa do Acórdão 24862 do Tribunal Superior Eleitoral: “Para a caracterização de violação
ao art. 73 da Lei nº 9.504/97, não se cogita de potencialidade para influir no resultado do pleito. A só prática da
conduta vedada estabelece presunção objetiva da desigualdade”. Relator designado: Luiz Carlos Lopes Madeira,
decisão por maioria em 09 de junho de 2005.
274
consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram;1081
(III) ceder servidor
público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do
Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato,
partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou
empregado estiver licenciado; (IV) fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato,
partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social
custeados ou subvencionados pelo Poder Público; (V) nomear, contratar ou de qualquer forma
admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios
dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar
servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos
eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados: a) a nomeação ou exoneração de
cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; b) a nomeação para
cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e
dos órgãos da Presidência da República; c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos
homologados até o início daquele prazo; d) a nomeação ou contratação necessária à instalação
ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa
autorização do Chefe do Poder Executivo; e) a transferência ou remoção ex officio de
militares, policiais civis e de agentes penitenciários; (VI) nos três meses que antecedem o
pleito: a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e
dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos
destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em
andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e
de calamidade pública; e, em relação aos agentes públicos das esferas administrativas cujos
cargos estejam em disputa: b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham
concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras,
serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das
respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade
pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral;1082
e c) fazer pronunciamento em cadeia de
rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito, salvo quando, a critério da Justiça
Eleitoral, tratar-se de matéria urgente, relevante e característica das funções de governo; (VII)
1081 Esclarece Francisco de Assis Vieira Sanseverino que o excesso não é apenas quantitativo, mas também
qualitativo – ou seja, quando o conteúdo extrapola as prerrogativas (SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira.
O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais: condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 71-
72). 1082 O Tribunal Superior Eleitoral tem se inclinado pela exigência de prova do ato de autorização da
veiculação de publicidade institucional para a responsabilização do agente (acórdãos 25.073, 25.120 e 5.565).
275
realizar, em ano de eleição, antes do prazo fixado no inciso anterior, despesas com
publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas
entidades da administração indireta, que excedam a média dos gastos nos três últimos anos
que antecedem o pleito ou do último ano imediatamente anterior à eleição; (VIII) fazer, na
circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a
recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início
do prazo para a realização das convenções partidárias e até a posse dos eleitos; e (IX) realizar
inaugurações com shows artísticos pagos com recursos públicos nos três meses que
antecedem as eleições.1083
As sanções estabelecidas são a suspensão imediata da conduta e multa ao agente.
Além disso, o candidato beneficiado pela cessão ou uso de bens públicos, pelo uso de
materiais ou serviços custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, pela cessão de servidor
público ou empregado da administração direta ou indireta ou pelo uso de seus serviços, pelo
uso promocional de distribuição gratuita de bens e serviços custeados ou subvencionados pelo
Poder Público e pela realização de transferência voluntária de recursos, pela publicidade
institucional vedada e por pronunciamento não autorizado em cadeia de rádio e televisão
estará sujeito à cassação do registro ou diploma. Não se exige contribuição ou anuência: basta
a comprovação do nexo de causalidade.
Ressalte-se que as exceções referidas pela lei dão vantagens aos titulares de cargos
públicos, como o uso de transporte oficial (ainda que se imponha o ressarcimento), o uso de
residências oficiais1084
e o uso de materiais e serviços que não “excedam as prerrogativas”. No
entanto, a legislação traz uma série de restrições, além de expressamente adotar um conceito
amplo de agente público.1085
As sanções referidas às condutas descritas como infrações eleitorais não afastam
outras penas quando também se reflitam em atos de improbidade administrativa, crimes ou
infrações disciplinares.1086
1083 Para essa última hipótese, constante no artigo 75 da Lei 9504/97, não há sanção específica. Para
Francisco de Assis Vieira Sanseverino, para dar eficácia jurídica ao comando, deve-se considerar sua infração
recebimento de doação estimável em dinheiro de fonte vedada (órgão da Administração Pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenientes do Poder Público – artigo 24, II da Lei 9504/97), o que
configura abuso de poder econômico (SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública”
nas campanhas eleitorais: condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 142). 1084 Ambas são objeto de ação direta de inconstitucionalidade (1805-1), ainda sem decisão final. 1085 Dispõe o parágrafo primeiro do artigo 73 da Lei 9504/97: “Reputa-se agente público, para os efeitos
deste artigo, quem exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos
ou entidades da administração pública direta, indireta, ou fundacional”. 1086 Francisco de Assis Vieira Sanseverino aponta elementos para reduzir a subjetividade do julgador na
aplicação das sanções referentes às condutas vedadas aos agentes públicos, referindo-se à adoção como “critério
276
A questão da publicidade institucional, inserida nas vedações expressas, talvez seja
uma das mais controversas na linha entre o Direito Administrativo e o Direito Eleitoral. Sua
regulamentação se constitui de dispositivos constitucionais – com a previsão do princípio da
publicidade (caput do artigo 37), a configuração do conteúdo da publicidade institucional,
necessariamente de caráter educativo, informativo ou de orientação social (artigo 37 §1º),1087
cujo desrespeito configura abuso de autoridade, segundo a Lei das Eleições (artigo 74)1088
–,
de restrição imposta pela Lei 9.504/97 nos três meses que antecedem a eleição (artigo 73, VI,
b)1089
e em relação ao montante de gastos (artigo 73, VII) e pelo Decreto 6.555/08, que afirma
os objetivos e indica as diretrizes das ações de comunicação do Poder Executivo Federal. Não
há no Brasil uma lei específica sobre a publicidade institucional.1090
Há grande dificuldade em traçar o limite entre o cumprimento do princípio da
publicidade e a promoção pessoal do agente público, que possivelmente buscará outro
mandato. Essa questão, central nas democracias contemporâneas, agrava-se quando se permite
a reeleição dos chefes do Poder Executivo.1091
Lauro Barreto chama a atenção para a impossibilidade de se caracterizar, de plano, a
propaganda governamental como propaganda política, apesar de sua grande influência na
esfera política. Essa interferência no debate público se faz com a proteção da imposição
constitucional, o que dificulta ainda a repressão de sua utilização indevida.1092
objetivo de avaliação a questão da ofensa à igualdade de oportunidades entre os candidatos nas campanhas
eleitorais” e a possibilidade de reexame por outro órgão da Justiça Eleitoral (SANSEVERINO, Francisco de
Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais: condutas vedadas aos agentes públicos.
Op. cit., p. 160). 1087 § 1º - “A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens
que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.” 1088 Art. 74. “Configura abuso de autoridade, para os fins do disposto no art. 22 da Lei Complementar nº 64,
de 18 de maio de 1990, a infringência do disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, ficando o
responsável, se candidato, sujeito ao cancelamento do registro de sua candidatura.” Esse dispositivo da Lei
Eleitoral, adverte Francisco de Assis Vieira Sanseverino, atinge apenas os atos realizados durante a campanha
eleitoral (SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. O “uso da máquina pública” nas campanhas eleitorais:
condutas vedadas aos agentes públicos. Op. cit., p. 138). 1089 Desde 1990, a legislação eleitoral francesa proíbe campanhas promocionais sobre gestões públicas nos
seis meses anteriores à eleição, conforme SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las
competiciones electorales. Madrid: Op. cit., p. 304. 1090 Óscar Sánchez Muñoz aponta a Ley 29/2005, de 29 de diciembre, de Publicidad y Comunicación
Institucional como reguladora, junto com a lei eleitoral, como reguladoras da matéria na Espanha (SÁNCHEZ
MUÑOZ, Óscar. Ibid., p. 287). 1091 E não apenas no Brasil. Cesar Montufar fala desde o Equador: “Los canales de información oficial
hacia la ciudadanía se limitan casi exclusivamente a la promoción que las autoridades e instituciones hacen de
su propia gestión. En muchas ocasiones, esta información está destinada a apuntar los procesos electorales en
que muchas autoridades buscan reelegirse” (MONTUFAR, Cesar. Antipolítica, representación y participación
ciudadana. Ecuador Debate, Quito, n. 62, ago. 2004. Disponível em: www.dlh.lahora.com.ec/paginas/debate/
paginas/debate1126.htm. Acesso em: 03 mar. 2009). 1092 BARRETO, Lauro. Manual de propaganda eleitoral. Op. cit., p. 21.
277
A publicidade institucional, ressalta Óscar Sánchez Muñoz, é um elemento
perturbador da vida política, que pressupõe o risco de que se converta em um instrumento de
propaganda política e a possibilidade de controle pelo governo dos meios de comunicação por
intermédio dos contratos de publicidade.1093
No entanto, não é possível afastá-la, em face da
necessidade republicana e democrática de transparência e de prestação de contas.1094
A Constituição, em seu artigo 37 §1º, impõe que “A publicidade dos atos, programas,
obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou
de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem
promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
Há uma discussão doutrinária sobre o cabimento de ação de impugnação de mandato
eletivo baseada em abuso de poder político, em face da inexistência de previsão
constitucional.1095
Pedro Henrique Távora Niess afirma sua impossibilidade,1096
assim como
Pádua Lopes.1097
Para Alcides Munhoz da Cunha, as demais formas de abuso podem ser
reduzidas ao uso indevido do poder econômico, como “especificação ou variante do uso
indevido ou do abuso de poder econômico”, pois refletem “uma expressão pecuniária,
econômica”.1098
No mesmo sentido, Lauro Barreto, afirmando que a hipótese de abuso de
poder econômico inclui as outras modalidades de abuso.1099
O Tribunal Superior Eleitoral afirma que o abuso deve estar relacionado com abuso de
poder econômico ou corrupção.1100
Cabe ao proponente o ônus argumentativo de relacionar o
abuso de poder político às hipóteses previstas na Constituição.
1093 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 285. Para o autor, as campanhas institucionais servem para alcançar uma maior identificação dos cidadãos
com suas instituições (p. 295). 1094 Óscar Sánchez Muñoz faz referência a uma decisão do Tribunal Constitucional alemão que indica um
“mandato de especial discrição ou cautela” em relação à publicidade institucional no período pré-eleitoral
(BVerfGE 63, 230 (244)) (Ibid., p. 297). 1095 Art. 14 “§ 10 - O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias
contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.” 1096 NIESS, Pedro Henrique Távora. Ação de impugnação de mandato eletivo. Bauru: Edipro, 1996, p. 15. 1097 PÁDUA LOPES. Impugnação de mandato: considerações sobre a ação não regulamentada. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 95, p. 168-178, jul./set. 1990, p. 176. 1098 CUNHA, Alcides Munhoz da. Justiça Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Op. cit., p.
23-33. 1099 BARRETO, Lauro. Investigação judicial eleitoral e ação de impugnação de mandato eletivo. Bauru:
Edipro, 1999, p. 74. 1100 Recurso especial eleitoral 28581. Relator Min. Félix Fisher, julgado em 21 de agosto de 2008. Ementa:
Eleições 2004. Recurso especial eleitoral. Preclusão. Não-ocorrência. Ação de impugnação de mandato eletivo.
Causa de pedir. Captação ilícita de sufrágio. Abuso de poder político e econômico. Julgamento extra petita. Não-
ocorrência. Conduta. Subsídio de contas de água. Prefeito. Abuso de poder econômico mediante utilização de
recursos públicos. Cabimento da AIME. Potencialidade demonstrada.
278
4.3 O CONTROLE DO FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS E O
ABUSO DO PODER ECONÔMICO
A questão da influência do poder econômico, fator relativamente irrelevante na disputa
eleitoral, mostra-se um problema ainda não resolvido nas democracias.1101
Se o uso do poder
econômico não é afastado pela legislação eleitoral, o seu abuso macula a legitimidade da
disputa e agrega influências indevidas à representação.1102
Pedro Henrique de Távora Niess aduz que a interferência do poder econômico no
pleito não é condenada pelo ordenamento jurídico: “é lícito, tanto que é regulado”. O que é
coibido é a má influência, sua intervenção excessiva, capaz de afetar a normalidade e a
legitimidade da eleição.1103
Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado que desempenham
importante função pública na democracia brasileira. Pelo desenho constitucional, detêm o
monopólio para a apresentação de candidatos a cargos eletivos, a partir de uma seleção em
seus próprios quadros, e são destinatários de garantias e vedações fixadas
constitucionalmente.
A existência de financiamento público para os partidos – uma das garantias
constitucionais – mostra-se legítima a partir dessa conformação constitucional.1104
Esse direito
a prestações do Estado, ao lado do direito de antena, justifica-se em face da impossibilidade
da manutenção dos partidos apenas com as contribuições dos militantes e da inconveniência
1101 Para Luciano Cânfora, “é impróprio definir como „democracia‟ um sistema político no qual o voto é
mercadoria no mercado político, e a admissão ao Parlamento requer um „dispêndio‟ eleitoral fortíssimo por parte do aspirante a „representante popular‟. Esse aspecto entristecedor (mais ainda no plano ético do que no
democrático) e fundamental do sistema parlamentar permanece, em grande parte, obscuro. Contudo, é o pilar
básico do sistema. A camada política representa tendencialmente as classes médio-altas e abastadas. Mas é
considerado antiparlamentar afirmar abertamente essa verdade de imediata evidência” (CÂNFORA, Luciano.
Crítica da retórica democrática. Tradução: Valéria Silva. São Paulo: Estação Liberdade, 2007 [2002], p. 31). 1102 Como Gilberto Amado aponta, na década de 30: “A pressão das forças econômicas é de tal ordem
intensa em nossos dias que o entrechoque em que elas vivem há de refletir-se forçosamente no seio da
representação nacional” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal, 1999 [1931], p.
13). 1103 NIESS, Pedro Henrique Távora. Ação de impugnação de mandato eletivo. Op. cit., p. 24. A influência
do poder econômico na disputa eleitoral macula a vontade popular, “gerando mandatários descomprometidos com os destinos da sociedade, servidores de interesses inconfessáveis de grandes corporações econômicas e
engajados na perpetuação do poder de castas oligárquicas”, conforme Marcus Vinicius Furtado Coêlho
(COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Eleições. Abuso de poder. Op. cit., p. 38). 1104 Para José Joaquim Gomes Canotilho é legítimo o aporte de dinheiro público para o financiamento das
campanhas eleitorais; no entanto, “[d]e acordo com a caracterização dos partidos – associações privadas com
estatuto subjectivo de liberdade interna e externa e organizações independentes do Estado, livremente
concorrentes –, é questionável a transformação em tarefa do Estado o financiamento da actividade partidária”. O
autor também ressalta a dificuldade de determinação de critérios para a distribuição dos fundos públicos
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
1999, p. 311 e 313).
279
de sua dependência financeira de fontes privadas, o que pode permitir que interesses
particulares influenciem sua atuação.1105
Pinto Ferreira defende o financiamento dos partidos pelo fundo partidário para garantir
sustentação às agremiações partidárias e “vedar a arrecadação de dinheiro em fontes
inidôneas, o que é comum no Brasil, com os „banqueiros de bicho‟, „caixinhas‟, „lideranças
ricas‟, permitindo a formação de oligarquias dominantes”.1106
A divisão do fundo partidário não pode configurar uma cláusula de diferenciação ou
um “prêmio ao poder” e “uma tentativa camuflada da redução externa partidária e do próprio
espectro político”.1107
Há de ser feita sob critérios razoáveis, de preferência estabelecidos pela
representação política, sem ofensa ao princípio constitucional da máxima igualdade na disputa
eleitoral e ao princípio constitucional da necessária participação das minorias nas instituições
políticas e no debate público.
Uma proposta para libertar os partidos e os candidatos das amarras do poder
econômico, constante na eterna reforma política, é o financiamento público exclusivo das
campanhas eleitorais. A ideia é aumentar o aporte financeiro da União e possibilitar que a
disputa eleitoral se realize apenas com dinheiro público.
Além de exigir uma fiscalização bastante acurada, sob pena de sua inocuidade, a
adoção do financiamento público exclusivo, com a distribuição de recursos vinculada ao
desempenho eleitoral ou à representatividade parlamentar, ofende o direito de oposição, ao
impedir – na prática – a obtenção de representação pelos partidos menores.
Interessante ressaltar que Carlos Santiago Nino analisa a questão de um ponto de vista
diametralmente oposto. Constatando que os custos elevados de uma campanha afastam
candidatos sem ligação com poderosos interesses privados ou grupos de interesse, o que leva
ao afastamento de uma cidadania, propõe a proibição absoluta de financiamento privado,
combinado com o acesso obrigatório aos meios de comunicação.1108
1105 Essas observações são apontadas por Manuel García-Pelayo, que também trata da divisão dos recursos
públicos: “Los partidos son formal y abstractamente iguales, pero tienen distinta magnitud y presencia en la
vida política en razón de lo cual el principio de igualdad tiende a combinarse o, más bien, a configurarse en el
de la proporcionalidad entre las prestaciones recibidas (cantidades de dinero y tiempo en los médios de comunicación social) y el número de sufragios obtenidos o de representantes elegidos en las últimas elecciones,
lo que es signo de su representatividad, y con ello, de la cuota de su participación en la dirección política del
Estado, sea en el ejercicio del Gobierno, sea en el de la oposición” (GARCÍA-PELAYO, Manuel. El Estado de
partidos. Op. cit., p. 66-67). O autor, no entanto, não se dedica às formas e possibilidades de divisão dos recursos
entre os partidos. 1106 PINTO FERREIRA, Luiz. Comentários à Lei Orgânica dos Partidos Políticos. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 175-176. 1107 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 312-
313. 1108 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 228.
280
A proposta apresentada não faz referência à distribuição entre os partidos ou
candidatos dos recursos públicos ou do tempo nos meios de comunicação para a divulgação
das candidaturas e das propostas. A distribuição pela representatividade, como já visto, não
corresponde ao desenho constitucional democrático. A igual distribuição, no entanto,
dificilmente alcançaria um consenso entre os partidos e os parlamentares, embora corresponda
à noção de igualdade como nivelamento, exigida na participação do processo democrático
para maximizar sua qualidade epistêmica na visão de Carlos Santiago Nino.1109
Ainda que compreendida como realização da igualdade exigida para a efetivação da
democracia deliberativa e de sua capacidade epistêmica, a vedação absoluta ao financiamento
privado contrasta com a autonomia pessoal.
Parece que a questão deve se concentrar no controle dos recursos e na identificação de
sua origem.
Nas democracias de massa, a exigência de recursos financeiros para a realização de
propaganda surge como um forte elemento de desigualdade.1110
Assim, o controle de
financiamento de campanhas se justifica a partir do comando constitucional de máxima
igualdade entre os candidatos.1111
A atuação do Estado na regulamentação das contribuições e
dos gastos tem razões igualitárias: as restrições se justificam pela demanda de grupos
concentrada na “oportunidade plena e equitativa para participar no debate público”,
relacionada, portanto, à sua liberdade de expressão.1112
Reinhold Zippelius se preocupa com a dependência dos partidos de interesses que
possam anuviar sua atuação em defesa do bem comum, ressaltando a necessidade de
publicidade dos debates parlamentares, inclusive nas comissões, das motivações das leis e da
atuação dos grupos de interesses. Indica forte inquietação principalmente com a questão do
financiamento das agremiações partidárias, afirmando a problemática aceitação de donativos
privados e a insuficiência das contribuições dos filiados. Apresenta a possibilidade de
financiamento complementar dos partidos pelo Estado, mas sem isso implique a influência do
1109 Ibid., p. 93. 1110 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Op. cit., p. 343. 1111 Para Óscar Sánchez Muñoz, o Direito Eleitoral deve contemplar mecanismos para evitar que o “dinheiro vote” (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales.
Op. cit., p. 174). Maurice Duverger, no entanto, afirma que “as democracias ocidentais são „plutodemocracias‟,
onde o poder real assenta ao mesmo tempo no povo, na eleição e no dinheiro” e que há uma parte de autocracia
nas democracias liberais, relacionada ao poder econômico, à burocracia e à seleção de representantes pelos
partidos (DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos: Instituições Políticas e Direito Constitucional –
I. Tradução: Fernando Ruivo e Fernando Augusto Ferreira Pinto. Coimbra: Almedina, 1985 [1980], p. 57 e 69-
71). 1112 Ressalta Owen Fiss (FISS, Owen M. Free speech and social structure. Op.cit.). O autor ressalta ainda
que os gastos de campanha devem ser restringidos para garantir que todas as vozes sejam ouvidas no debate
político.
281
Estado nos partidos, o que pode ser assegurado pela distribuição de fundos na proporção dos
votos recebidos, embora isso leve à consolidação de uma maioria já constituída. E defende a
proibição de “donativos aos quais se associem notoriamente influências indesejáveis”, como
os provenientes de poderes externos e os concedidos “na expectativa de obter uma
determinada vantagem económica ou política”. Acentua, ainda, a necessidade de
transparência no financiamento dos partidos.1113
Lauro Barreto questiona a substituição da proibição absoluta de contribuições para a
campanha eleitoral, com exceção do fundo partidário e da colaboração de militantes e filiados
(prevista no artigo 91 da Lei 5.682/71), pela ampla liberação da participação do empresariado
no financiamento da disputa: “Escancarou-se (...) a preponderância da moeda sobre as idéias e
propostas no processo eleitoral”.1114
A questão do financiamento das campanhas eleitorais se refere também à configuração
livre do mandato representativo, ao impor a atuação imparcial do agente público, livre de
vinculações a interesses individuais.
Mas sua relação mais íntima é com o princípio constitucional da máxima igualdade na
disputa eleitoral, em razão da qual, para Óscar Sánchez Muñoz, sempre a partir do
ordenamento jurídico espanhol, impõem-se medidas negativas e medidas positivas. As
medidas positivas se relacionam com a limitação de gastos e de ingressos, com uma
regulamentação rígida sobre a arrecadação e a aplicação de recursos, a partir da delimitação
legal da campanha, da limitação absoluta dos gastos eleitorais com o estabelecimento de um
teto máximo de gastos, das limitações específicas de determinados tipos de gastos eleitorais e
em relação aos ingressos, com a delimitação sobre a legalidade de doações de pessoas
jurídicas e estrangeiras e com a exigência de publicidade dos montantes doados e dos
doadores.1115
Na questão das doações das pessoas jurídicas, ressalta Óscar Sánchez Muñoz, duas
opções se colocam. A primeira delas é a do modelo liberal de transparência, em que as
doações são livres, mas há necessariamente que se dar publicidade da origem dos recursos. É
o modelo adotado na Alemanha e no Reino Unido1116
e sua eficácia depende da sua
fiscalização. A outra opção se refere ao modelo de financiamento cidadão, em que as doações
1113 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Op. cit., p. 327-328. 1114 BARRETO, Lauro. Escrúpulo e poder: o abuso de poder nas eleições brasileiras. Op. cit., p. 80. 1115 SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit.,
p. 180-220. 1116 Onde durante a campanha eleitoral se exige, segundo o autor, a publicização semanal dos recursos
arrecadados (Ibid., p. 204, nr 56).
282
das pessoas jurídicas são vedadas. A contribuição para uma campanha é vista como uma
faceta do direito de participação política, inexistente na esfera das pessoas jurídicas.1117
O legislador brasileiro trata das doações de pessoas jurídicas nas disposições
transitórias da Lei 9.504/97, em seu artigo 81, em evidente titubeio, com a sua
admissibilidade até o limite de dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.
Não parece haver problema com essa permissão – desde que sejam observados os princípios
da Administração Pública quando da relação dessas pessoas jurídicas com os mandatários que
tiveram suas campanhas financiadas por elas.
O financiamento público dos partidos políticos, assinala Óscar Sánchez Muñoz, é uma
medida positiva imposta pelo princípio da igualdade entre os candidatos. A subvenção estatal,
direta e indireta, às agremiações partidárias justifica-se pelas funções que elas cumprem na
democracia e pela conveniência de mantê-las fora de uma relação de absoluta dependência de
fontes de financiamento. Para que o financiamento público seja coerente com o princípio da
igualdade, ele deve se revestir de uma finalidade compensatória, destinada a reequilibrar a
diferente distribuição de um fator que é tomado como irrelevante (e que, portanto, deve ser
neutralizado) na disputa eleitoral – o poder econômico.1118
A partir dessas considerações, resta inconcebível que a distribuição do financiamento
público – no caso brasileiro, das cotas do fundo partidário1119
– seja realizada de maneira a
permitir uma acentuação das diferentes capacidades econômicas das agremiações partidárias.
Seria ainda mais grave para a democracia pluralista brasileira a adoção do financiamento
público exclusivo com critérios excludentes – ou exterminadores – de divisão.1120
1117 Ibid., p. 203-206. 1118 Ibid., p. 221-226. 1119 O “Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos” é formado por multas eleitorais,
recursos destinados por lei, doações de pessoas físicas e jurídicas e dotações orçamentárias da União. Sua
divisão originalmente prevista na Lei 9.504/97 (1% por igual a todos os partidos e 99% na proporção dos votos
recebidos na última eleição para a Câmara de Deputados apenas para os partidos que houvessem superado o
desempenho de cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo
menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles) foi declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Depois de um período em que a divisão foi definida pela
Resolução 22.506/07 do Tribunal Superior Eleitoral (29% na proporção da representação, 29% pros partidos
com representação em duas eleições em no mínimo cinco estados, alcançados 1% dos votos, na proporção dos
votos e 42% por igual aos partidos registrados), a divisão passou a ser 5% em partes iguais a todos os partidos e 95% na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados. O fundo partidário
está disciplinado pelos artigos 38 a 44 da Lei 9504/97. 1120 Óscar Sánchez Munõz assim se pronuncia a respeito da legislação espanhola, que leva em consideração
na divisão das subvenções públicas o número de cadeiras obtidas e não o número de votos: “... los criterios de la
LOREG [Ley Orgánica del Régimen Electoral General, 5/1985], lejos de configurar un sistema de financiación
pública destinado a compensar las diferencias de facto existentes entre los partidos en cuanto a recursos
econômicos, contribuyendo a optimizar la visibilidad de las distintas opciones políticas por el electorado,
producen justamente el efecto contrario, pues benefician desproporcionadamente a los grandes partidos, que
son los que más facilidades tienen para acceder a la financiación privada, y penalizan a los pequeños, lo que en
definitiva redunda en la petrificación del sistema de partidos, sin apenas posibilidades para que nuevas
283
Em relação às regras do financiamento de campanhas, a jurisprudência brasileira tende
a desconsiderar “erros formais” e passa até a desconsiderar determinadas punições por não as
considerar “proporcionais”. Assim se dá com a aplicação do artigo 30A da Lei 9.504/97,1121
caso em que o Tribunal Superior Eleitoral deixa de aplicar a sanção por considerá-la
inadequada a alguns casos de descumprimento da legislação eleitoral.1122
Vale ressaltar, aqui, a lição de W. J. M. Mackenzie, para quem “es más fácil perseguir
por razón de inobservancias técnicas que por delitos substantivos” e como a legislação
eleitoral tem exigências formais, “tan solo se necesita probar la sencilla proposición de que
el dinero se ha gastado, no la obscura proposición de que se haya hecho de él un uso
inmoral”. Assim, “la vigilancia y control por las autoridades públicas o por los partidos
entre si se simplifican muchísimo”.1123
Similar é a opinião de Pedro Henrique de Távora Niess, que defende a punição de toda
irregularidade, pois “derive do método mais simples e tradicional ou da técnica mais
sofisticada e moderna, caracteriza a utilização do poder econômico de forma abusiva, porque
investe contra o equilíbrio possível do certame eleitoral”.1124
No mesmo sentido, ainda
ressalta-se o posicionamento de José Antonio Fichter, para quem o uso de quantia além do
permitido revela a ilegitimidade e impõe a desconstituição do mandato, não sendo necessário
demonstrar a sua infuência para a obtenção da vitória nas urnas.1125
Em virtude da leitura jurisprudencial, no entanto, exige-se o abuso do poder
econômico para a imposição das sanções mais graves. A potencialidade de alterar o resultado
da eleição torna-se elemento para a cominação da cassação de registro e da pena de
inelegibilidade.
opciones puedan poner en peligro el statu quo existente” (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de
oportunidades en las competiciones electorales. Op. cit., p. 230). 1121 Art. 30-A. “Qualquer partido político ou coligação poderá representar à Justiça Eleitoral, no prazo de 15
(quinze) dias da diplomação, relatando fatos e indicando provas, e pedir a abertura de investigação judicial para
apurar condutas em desacordo com as normas desta Lei, relativas à arrecadação e gastos de recursos. (Redação
dada pela Lei nº 12.034, de setembro de 2009). § 1º Na apuração de que trata este artigo, aplicar-se-á o
procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, no que couber. (Incluído
pela Lei nº 11.300, de 2006). § 2º Comprovados captação ou gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, será
negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado.” (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006). 1122 Assim no Recurso Ordinário 1450, relatado pelo ministro Felix Fischer e julgado em 4 de agosto de 2009: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO. OMISSÃO. IRREGULARIDADES NA
ARRECADAÇÃO E GASTOS DE RECURSOS DE CAMPANHA. SANÇÃO APLICÁVEL. NEGATIVA DE
OUTORGA DO DIPLOMA OU SUA CASSAÇÃO. ART. 30-A, § 2º. PROPORCIONALIDADE.
PRETENSÃO. REDISCUSSÃO DA CAUSA. REJEIÇÃO. 1. Para incidência do art. 30-A da Lei nº 9.504/97,
necessária prova da proporcionalidade (relevância jurídica) do ilícito praticado pelo candidato. Nestes termos, a
sanção de negativa de outorga do diploma ou de sua cassação (§ 2º do art. 30-A) deve ser proporcional à
gravidade da conduta e à lesão perpetrada ao bem jurídico protegido. 1123 MACKENZIE, W. J. M. Elecciones libres. Madrid: Tecnos, 1962 [1958], p. 169. 1124 NIESS, Pedro Henrique Távora. Ação de impugnação de mandato eletivo. Op. cit., p. 103 1125 FICHTNER, José Antonio. Impugnação de mandato eletivo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 120.
284
Para a apuração e punição do abuso de poder econômico, são previstas as ações de
investigação judicial eleitoral e de impugnação de mandato eletivo, bem como e o recurso
contra a diplomação. A previsão dos casos de abuso e de instrumentos processuais, no
entanto, não encontra efetividade na esfera política capaz de garantir, ao mesmo tempo, a
igualdade na disputa eleitoral e a autenticidade na formação do voto, em face da fragilidade
da legislação, dos critérios do Tribunal Superior Eleitoral e da engenhosidade humana.
285
5 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE ESPECÍFICA EM
MATÉRIA ELEITORAL
A legalidade específica, absoluta ou estrita, alcança determinados ramos do Direito,
como o Direito Penal, o Direito Tributário, o Direito Administrativo e o Direito Eleitoral,
relacionados intimamente com o núcleo essencial de direitos fundamentais. Nesses casos, a
Constituição permite a regulação do exercício dos direitos e a imposições de deveres apenas
por lei formal votada pelo Parlamento, com a participação da representação política em um
espaço deliberativo plural e público.
O desenvolvimento deste princípio se relaciona diretamente com a competência da
Justiça Eleitoral e com sua função na verificação de poderes. As regras do jogo eleitoral,
esqueleto do regime democrático, devem necessariamente se originar do Parlamento, e de um
Parlamento formado a partir da representação das forças sociais. No Brasil não tem sido
assim. A Justiça Eleitoral, com a conivência do Supremo Tribunal Federal ou a partir do seu
impulso, inova em matéria eleitoral, a partir de uma autorreconhecida “competência
normativa”.
A Justiça Eleitoral reúne um feixe de atribuições, com competência administrativa e
jurisdicional.1126
Sob a primeira, organiza as eleições, divide as zonas eleitorais, alista
eleitores, registra os partidos e fiscaliza suas finanças, processa e apura os votos, proclama o
resultado dos pleitos, expede diplomas e instruções. Em sua competência jurisdicional estão
incluídos o processamento e o julgamento dos feitos eleitorais, relacionados ao registro de
candidatos, à propaganda eleitoral e ao direito de resposta, à prestação de contas de
campanhas, às investigações eleitorais, à impugnação de mandato eletivo e à impugnação à
diplomação.1127
Sob a denominação de competência normativa resta a elaboração dos
regimentos internos dos tribunais.
1126 Para Torquato Jardim, a Justiça Eleitoral atua com competência jurisdicional “propriamente dita”, em
jurisdição voluntária, de natureza administrativa e de natureza regulamentar (JARDIM, Torquato. Processo e
Justiça Eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Revista de Informação Legislativa, local, n. 119, p.
25-46, jul./set. 1993, p. 25-46, p. 26). Ver também sobre o assunto, GOMES, Suzana de Camargo. A Justiça
Eleitoral e sua competência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 1127 Não se inclui aqui a competência para a decretação de perda de mandato eletivo por desfiliação
partidária sem justa causa nem para o reconhecimento de justa causa para a desfiliação partidária por se tratarem
de ações derivadas de uma Resolução do Tribunal Superior Eleitoral que ofende formal e materialmente a
Constituição.
286
Não existe um poder legislativo da Justiça Eleitoral,1128
ao lado de suas competências
jurisdicional e administrativa. A Constituição não o reconhece. Não acolhe sequer seu poder
regulamentar, o que invalida até mesmo essa competência.1129
A competência para a
expedição de normas gerais e abstratas, ainda que secundárias, deve ter sede constitucional.
O texto constitucional prevê competência privativa do Presidente da República para
“expedir decretos e regulamentos” para a fiel execução das leis e dispor mediante decreto
sobre a organização da administração federal, com os limites estabelecidos pela Constituição
(artigo 84, IV e VI),1130
a expedição de “instruções para a execução de leis, decretos e
regulamentos” como competência dos Ministros de Estado (artigo 87, parágrafo único, II).
Resoluções são previstas nas competências do Congresso Nacional e do Senado Federal
(artigos 59, VII, 68, § 2º e 155) e a competência da Justiça do Trabalho para estabelecer
normas em dissídios coletivos (art. 114, § 2º). E, por força da Emenda Constitucional 45/04,
reconhece a competência do Conselho Nacional de Justiça para expedir atos regulamentares
(artigo 103-B, §4º, I).
A Constituição se refere à produção de normas jurídicas para além do processo
legislativo em relação à Justiça do Trabalho e ao Conselho Nacional de Justiça.
No parágrafo segundo do artigo 114, a Constituição prevê a competência da Justiça do
Trabalho para, em dissídio coletivo, “estabelecer normas e condições, respeitadas as
disposições convencionais e legais mínimas da proteção ao trabalho”. Clèmerson Merlin
1128 A Constituição anterior reconhecia competência legislativa à Justiça Eleitoral (art. 137. A lei
estabelecerá a competência dos juízes e Tribunais Eleitorais, incluindo entre as suas atribuições: II - a divisão
eleitoral do País; IV - a fixação das datas das eleições, quando não determinadas por disposição constitucional ou
legal), mas não a Constituição atual, como aponta Clèmerson Merlin Clève (CLÈVE, Clèmerson Merlin.
Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993, p. 81-82). 1129 Para José Joaquim Gomes Canotilho o poder regulamentar deve ter um fundamento jurídico-
constitucional: “O poder regulamentar configura-se, pois, como um poder constitucionalmente fundado e não
como poder criado por lei” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 773-774). 1130 As agências reguladoras possuem poder regulamentar a partir da delegação, por lei, do Poder Executivo, mas não têm competência para inovar na ordem jurídica. Egon Bockmann Moreira aponta como característica de
tais agências a “possibilidade de emanar normas regulamentares exclusivas”. (MOREIRA, Egon Bockmann.
Agências administrativas, poder regulamentar e o sistema financeiro nacional. Revista Eletrônica de Direito
Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, n. 11, ago./out. 2007. Disponível em: www.direitodoestado.
com.br/redae.asp. Acesso em: 10 jan. 2010, p. 64-65). No mesmo sentido, assevera Paulo Motta que não lhes é
permitido, no entanto, inovar na ordem jurídica – sua regulação deve dar-se estritamente no campo técnico
(MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Agências reguladoras. Barueri: Manole, 2003, p. 168-169). Em sentido
contrário, afirmando a “deslegalização” e o amplo poder normativo das agências reguladoras: ARAGÃO,
Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 424.
287
Clève acentua a ampla competência normativa estabelecida constitucionalmente, em oposição
à Constituição anterior, que previa lei para especificar as hipóteses de criação normativa.1131
Armando Süssekind trata do tema sob a nomenclatura de “sentença normativa”,
identificando-a como produção jurídica de origem estatal que “constitui direito novo, pela
criação ou revisão de normas ou condições de trabalho, aplicáveis, abstratamente, aos que
pertencem ou venham a pertencer aos grupos envolvidos”.1132
Victor Nunes Leal sublinha
que, não obstante seu caráter normativo, essa decisão se caracteriza como ato judicial.1133
Vale ressaltar, no entanto, que o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho
foi enfaticamente reduzido pela Emenda Constitucional 45/2004 em virtude da exigência de
“comum acordo” para o dissídio coletivo.
Em relação ao Conselho Nacional de Justiça, a Emenda Constitucional 45/2004 traz à
Constituição a previsão expressa de competência regulamentar, no artigo 103B, §4º, I.1134
A
isso não corresponde, no entanto, “delegação” de poder legislativo ou autorização para
“romper com o princípio da reserva da lei e de reserva de jurisdição”, conforme apontam
Clèmerson Merlin Clève, Lenio Luiz Streck e Ingo Wolfgang Sarlet. Os autores acentuam que
essa competência é limitada tanto pela reserva de lei, que impede a expedição de
regulamentos com caráter geral e abstrato, como pela impossibilidade de atingir direitos e
garantias fundamentais.1135
No julgamento da medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade 12, o
Supremo Tribunal Federal, no entanto, afirma que a Resolução 07/05 do Conselho Nacional
de Justiça, referente à proibição de nomeação de parentes para cargos em confiança, tem
“caráter normativo primário”, possibilitando que, diretamente, concretize os princípios
constitucionais, além de se revestir “dos atributos da generalidade (os dispositivos dela
constantes veiculam normas proibitivas de ações administrativas de logo padronizadas),
impessoalidade (ausência de indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja) e
abstratividade (trata-se de um modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto,
1131 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 83-84. Para uma análise da “função disciplinadora” do poder normativo do
Tribunal Superior Eleitoral em relação aos sindicatos nas décadas de 1970 e 1980, ver HORN, Carlos Henrique. Negociações coletivas e o poder normativo da Justiça do Trabalho. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio
de Janeiro, v. 49, n. 2, p. 417-445, 2006. 1132 SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 122. 1133 LEAL, Victor Nunes. Funções normativas de órgãos judiciários. In:_____. Problemas de Direito
Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960 [1946], p. 179-222, p. 187. 1134 Assim como o faz para o Conselho Nacional do Ministério Público, conforme previsão do artigo 130-A,
§2º, I. 1135 CLÈVE, Clèmerson. Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Os limites
constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP). Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 12, p. 17-26, 2005.
288
pois claramente vocacionado para renovar de forma contínua o liame que prende suas
hipóteses de incidência aos respectivos mandamentos)”, o que possibilitaria o controle
abstrato de constitucionalidade.
Do voto do relator, Ministro Carlos Ayres Britto, se extrai o entendimento de que a
Resolução retira seu fundamento de validade diretamente da Constituição, tendo força de
“diploma normativo primário”. Afirma expressamente a possibilidade de inovação na ordem
jurídica, por autorização constitucional, pelo Conselho Nacional de Justiça. Em seu voto, o
Ministro Marco Aurélio nega a existência de poder normativo ou competência legiferante
concedido pela Constituição ao Conselho Nacional de Justiça. Sendo assim, tratando-se de ato
regulamentar, como afirma o texto constitucional, não caberia controle concentrado de
constitucionalidade.1136
Não obstante a posição majoritária (ainda provisória) do Supremo Tribunal Federal,
capitaneada pelo Ministro Carlos Ayres Britto, não existe autorização constitucional ao
Conselho Nacional de Justiça para legislar. Trata-se, conforme a própria dicção do comando
normativo, de poder regulamentar.
Romeu Felipe Bacellar Filho afirma, expressamente, que “qualquer inovação jurídica
realizada pelas resoluções do Conselho Nacional de Justiça constituirá exercício de função
legislativa não autorizada constititucionalmente”, pois “os atos provenientes do exercício do
poder regulamentar não podem jamais inovar no ordenamento jurídico, criando direitos e
obrigações”: “o regulamento deve ser reduzido sempre à sua real expressão de mero
explicitador, mero pormenorizador da lei formal”.1137
Se há previsão constitucional de competência normativa em relação à Justiça do
Trabalho e de competência regulamentar do Conselho Nacional de Justiça, em matéria
eleitoral a Constituição adota a estrita legalidade, afastando a criação de regras eleitorais fora
do Parlamento. Não cabe, em caso algum, ao Poder Judiciário, seja pelo Supremo Tribunal
Federal, seja pelo Tribunal Superior Eleitoral, “aprimorar” a legislação eleitoral e as
instituições políticas, nem sequer expedir resoluções.
A Constituição reserva à lei complementar a definição da organização e competência
da Justiça Eleitoral.1138
Até a edição dessa lei, o Código Eleitoral é considerado
1136 A ação direta de constitucionalidade ainda não foi apreciada no mérito. O acórdão do julgamento da
medida cautelar, ocorrido em 16 de fevereiro de 2006, tem 124 páginas e valeria uma larga análise dos
fundamentos e das ilações realizadas. Não é, no entanto, objeto dessa pesquisa. 1137 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Poderes da República e sua relação no ordenamento jurídico
brasileiro. Conferência de abertura. XXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, Florianópolis, 21 out.
2009. 1138 Art. 121. “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de
direito e das juntas eleitorais.”
289
(parcialmente) lei complementar para os fins da exigência constitucional. E prevê, junto com
a Lei dos Partidos Políticos e com a Lei das Eleições, a edição de instruções (e não de
regulamentos) pelo Tribunal Superior Eleitoral.
5.1 A ANTERIORIDADE CONSTITUCIONAL EM MATÉRIA ELEITORAL
A legalidade em matéria eleitoral está explicitada em um dispositivo específico da
Constituição de 1988. Em seu texto original, o artigo 16 estabelecia que “a lei que alterar o
processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”.1139
Com a Emenda
Constitucional 4/93, o preceito passa a ser: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em
vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de
sua vigência”.1140
Cabe aqui, uma rápida distinção entre existência, validade e eficácia no mundo
jurídico. Hans Kelsen aduz que a validade se relaciona com a existência específica da norma e
sua obrigatoriedade, enquanto a eficácia está ligada à conformação da conduta humana à
norma jurídica.1141
Não é nesse sentido que os termos são aplicados no dispositivo
constitucional.
Marcos Bernardes de Mello se refere a essa distinção em relação ao fato jurídico,
indicando que a existência dá-se pelo reconhecimento pelo Direito de determinado fato, a
validade corresponde à suficiente conformação do fato de acordo com o Direito e a eficácia
determina-se pela produção de efeitos, ainda que não reconhecidos como válidos.1142
No
âmbito das normas constitucionais, José Afonso da Silva define eficácia como a possibilidade
de aplicação.1143
A ressalva trazida pela emenda indica uma posposição da eficácia da norma que altera
o processo eleitoral, com o intervalo de pelo menos um ano entre a existência válida da norma
1139 Por previsão constitucional expressa, nos artigos 4º, §1º e 5º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o artigo 16 não se aplicou às eleições de 15 de novembro de 1988 e de 15 de novembro de 1989. 1140 Trata-se, segundo a linha seguida por essa pesquisa, de derivação intangível do princípio constitucional
da estrita legalidade em matéria eleitoral. Essa não é, no entanto, a opinião de André Ramos Tavares
(TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
732). 1141 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000 [1945], p. 55-56. 1142 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 101-107. 1143 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1968, p. 51.
290
e a eleição em relação à qual será aplicada. Trata-se de eficácia diferida, um princípio da
anualidade singular.1144
Esse artigo configura uma “muralha da democracia”, uma exigência da pré-
determinação das regras do jogo da disputa eleitoral com um ano de antecedência para evitar
casuísmos e surpresas, em nome da estabilidade.1145
Trata-se de uma medida saneadora que
aperfeiçoa o processo eleitoral,1146
de uma garantia contra intervenções casuisticamente
dirigidas, assegurando “a inquebrantabilidade da isonomia nas regras do pleito”.1147
Ou,
ainda, de assegurar as instituições representativas contra o “dirigismo normativo das forças
dominantes de cada período”.1148
Em relação à Constituição portuguesa, Jorge Miranda se refere ao princípio da
estabilidade eleitoral, afirmando a necessidade de que a lei eleitoral a ser aplicada seja aquela
vigente ao tempo da dissolução dos órgãos colegiais.1149
Aduzem Carlos Mário da Silva Velloso e Walber de Moura Agra que o princípio da
anterioridade eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição, tem como finalidade “evitar que
o Poder Legislativo possa introduzir modificações casuísticas na lei eleitoral para
desequilibrar a participação dos partidos e dos respectivos candidatos, influenciando,
portanto, no resultado da eleição”.1150
Ressalte-se que essa regra dirige-se ao Poder Legislativo porque apenas ao Parlamento
é dado inovar na ordem jurídica eleitoral. As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, que
regulamentam as regras impostas pelo legislador, são inconstitucionais. O que se tem visto,
além disso, é uma extrapolação na atividade “interpretativa”, com a “revelação” de novas
normas jurídicas. Isso é ainda mais inconstitucional, se for possível uma graduação da
inconstitucionalidade: é usurpação de competência. Não se pode sequer cogitar de estender a
aplicação do artigo 16 às resoluções, para “constitucionalizá-las parcialmente”. Não basta.
1144 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1999, p.
86. 1145 Conforme assinala Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira (CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes
Luz de Pádua. Preleções de Direito Eleitoral: Direito Material. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. v. 2, p. 3). 1146 PINTO FERREIRA, Luiz. Comentários à Lei Orgânica dos Partidos Políticos. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 29. 1147 Como ressalta Sivanildo de Araújo Dantas (DANTAS, Sivanildo de Araújo. Direito eleitoral: teoria e
prática do procedimento das eleições brasileiras. Curitiba: Juruá, 2004, p. 218). 1148 RIBEIRO, Fávila. Pressupostos constitucionais do direito eleitoral brasileiro no caminho da sociedade
participativa. ANAIS do I Seminário Brasileiro de Direito Eleitoral. Porto Alegre: Tribunal Regional Eleitoral do
Rio Grande do Sul, 1990, p. 14-58, p. 46. Fávila Ribeiro ressalta também a necessidade de aprimoramento da
legislação eleitoral para reduzir a sua vulnerabilidade em face das fraudes e vícios do processo. Tais
modificações, no entanto, não devem se dar em período capaz de perturbar a disputa eleitoral, ou quando
“estejam já reconhecíveis as condições concretas da pugna eleitoral em andamento” (p. 46 e 51). 1149 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional III: Direito Eleitoral e Direito Parlamentar. Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito, 2003, p. 30. 1150 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 48.
291
Joel José Cândido afirma que a lei eleitoral “tem data certa para ser editada, jamais
tomando de assalto, de sobressalto ou de surpresa os seus destinatários”. O autor defende a
edição de uma nova lei eleitoral para cada eleição, em nome do aprimoramento da ordem
jurídica.1151
Opinião contrária apresentam Mônica Herman Salem Caggiano, apontando o
casuísmo das leis do ano, e Carlos Mário da Silva Velloso, que acentua a insegurança e a
impossibilidade de consolidação de um entendimento jurisprudencial.1152
Gilmar Mendes ressalta a posição do Supremo Tribunal Federal na ação direta de
inconstitucionalidade 3685, que considerou “que o princípio da anualidade eleitoral integra o
plexo de direitos políticos do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e os direitos dos próprios
partidos”.1153
A definição de “processo eleitoral”, no entanto, é objeto de disputa entre os
doutrinadores. O que cabe no substantivo “processo”?1154
Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira e Carlos Eduardo de Oliveira Lula
compartilham uma concepção mais ampla da restrição do artigo 16 da Constituição,
considerando sua teleologia: a proibição de leis casuísticas. Para o Thales Tácito Pontes Luz
de Pádua Cerqueira, estão fora da aplicação do princípio da anualidade as inelegibilidades, a
emancipação de Município e a alteração do número de vereadores, os crimes eleitorais, o
processo penal eleitoral e as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral. Ao seu turno, incluem-
se nas matérias englobadas pelo dispositivo a lei partidária, a lei eleitoral, o processo penal
eleitoral autônomo e as resoluções que configuram ato normativo primário.1155
A vedação constitucional atinge as regras capazes de alterar a “realidade fática do
processo das eleições”, mas não aquelas que venham “apenas imprimir operatividade ao
pleito”, segundo a visão de Sivalnildo de Araújo Dantas.1156
Para Fávila Ribeiro, as
1151 CÂNDIDO, Joel José. Inelegibilidades no Direito Brasileiro. 2. ed. Bauru: Edipro, 2003, p. 20-21. 1152 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004,
p. 89 nr 34. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A reforma eleitoral e os rumos da democracia no Brasil. In:
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes; VELLOSO Carlos Mário da Silva (Coords.). Direito Eleitoral. Belo
Horizonte: Del Rey, 1996, p. 11-30, p. 11-30, p. 16. 1153 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 796. 1154 José Antônio Giusti Tavares apresenta a distinção de Rae entre electoral laws (referentes ao
procedimento eleitoral e ao escrutínio) e election laws, que tratam do sufrágio, das inelegibilidades e da divisão em distritos. Para Tavares, leis eleitorais em sentido estrito se referem à circunscrição eleitoral, à estrutura do
boletim de voto, ao procedimento da votação e à fórmula eleitoral (TAVARES, José Antônio Giusti. Sistemas
eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria, instituições, estratégia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994, p. 35-36). 1155 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Preleções de Direito Eleitoral. Op. cit., p. 6-7;
LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. Leme: Imperium, 2008, p. 85. Neste caso a Constituição
seria ofendida em seus primórdios: o Preâmbulo, quando afirma a instituição de um Estado democrático, o
parágrafo único do artigo primeiro, quando estabelece a soberania popular, o artigo segundo, que assegura a
separação de poderes, o inciso II do artigo 5º... sequer seria necessário chegar ao Capítulo IV do Título II. 1156 DANTAS, Sivanildo de Araújo. Op. cit., p. 217 n 234.
292
inelegibilidades são indubitavelmente relacionadas ao “processo eleitoral”, o que é
evidenciado pelos objetivos da lei previstos no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição:
proteger a normalidade e legitimidade das eleições.1157
Em sentido contrário, Joel José
Cândido afirma que a restrição do artigo 16 aplica-se apenas às leis temporárias, destinadas à
regulação de um pleito específico, e não às normas eleitorais permanentes, como a lei das
inelegibilidades.1158
O autor defende uma noção estrita do “processo eleitoral” atingido pelo
artigo 16 da Constituição, relacionando-o apenas às “normas que estabelecem os parâmetros
igualitários entre os partidos, no pleito, e não aquelas que apenas instrumentalizam o
processo, incapazes, por isso, de gerar surpresas ou desequilíbrios na eleição e no seu
resultado”. Estão excluídas do princípio da anterioridade, assim, as normas de votação e
apuração, de diplomação, que prevejam crimes eleitorais e sobre o processo civil e penal em
âmbito eleitoral. E incluídas as regras sobre convenções, coligações, registro de candidatos,
arrecadação e aplicação de recursos e propaganda. 1159
A exigência de igualdade imposta pelo ordenamento constitucional, no entanto, não se
impõe apenas em relação aos partidos políticos. Atinge, de maneira enfática, os candidatos –
dessa maneira, não é possível afastar as regras de inelegibilidade e de incompatibilidade da
aplicação do artigo 16. Aliás, tendo em vista sua finalidade, o comando normativo que
exterioriza o princípio da anterioridade deve ser interpretado de maneira mais ampla possível.
Mas essa não vem sendo a interpretação do Poder Judiciário.
Em resposta à consulta 11173, sobre a aplicação da Lei Complementar 64 de 18 de
maio de 1990, que, ao regular o disposto no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição,
estabeleceu casos de inelegibilidade e seus prazos, nas eleições do mesmo ano, o Tribunal
Superior Eleitoral, em decisão de 31 de maio de 1990, por unanimidade, estabelece a
aplicação imediata da lei, por se tratar de exigência constitucional, “sem configurar alteração
do processo eleitoral”. Do curto voto do relator, Ministro Octavio Gallotti, extrai-se que “[o]
estabelecimento, por lei complementar, de outros casos de inelegibilidade, além dos
diretamente previstos na Constituição, é exigido pelo art. 14, § 9º, desta e não configura
alteração do processo eleitoral, vedada pelo art. 16 da mesma Carta”.1160
O Supremo Tribunal Federal manifestou-se em relação ao alcance do artigo 16. No
julgamento da medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 353, os ministros
1157 RIBEIRO, Fávila. Pressupostos constitucionais do direito eleitoral brasileiro no caminho da sociedade
participativa. Op.cit., p. 52. 1158 Para Joel José Cândido a restrição do artigo 16 aplica-se apenas às leis temporárias, destinadas à
regulação de um pleito específico, e não às normas eleitorais permanentes, como a lei das inelegibilidades
(CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. 11. ed. Bauru: Edipro, 2004, p. 122). 1159 Ibid., p. 23. 1160 Resolução 16.551/90 do Tribunal Superior Eleitoral.
293
reconhecem a necessidade de definição da locução “processo eleitoral” que compõe o
princípio da anterioridade da lei eleitoral. Na questão de ordem suscitada pelo relator, julgada
posteriormente, a entidade propositora da ação foi considerada ilegítima, por não ser entidade
de classe, mas uma “associação de associações”.1161
No julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 354, em 24 de setembro de
1990, o Supremo Tribunal Federal afirmou que a mudança das regras de apuração dos votos,
com nítida prevalência do voto dado ao candidato em relação à indicação da legenda, a menos
de um ano da eleição, não ofende o princípio da anualidade. Dessa forma, julgou
improcedente, por maioria de votos, a alegação de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei
8.037/90 que determinava sua vigência e aplicação imediatas.1162
Para o relator, Ministro Octavio Gallotti, a expressão “processo eleitoral” constante do
texto constitucional abarca “a sucessão, o desenvolvimento e a evolução do fenômeno
eleitoral, em suas diversas fases ou estágios, a começar pelo sistema partidário e a escolha dos
candidatos, passando pela propaganda, e pela organização do pleito propriamente dito, a
1161 ADI MC 353 e ADI QO 353, de relatoria do Min. Celso de Mello. A primeira foi julgada em 05 de
setembro de 1990 e a segunda em 10 de março de 1993. 1162 A redação da Lei 8037/90 é a seguinte: Art. 1º “Os arts. 176 e 177 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de
1965, que instituiu o Código Eleitoral, com as alterações promovidas pelas Leis nºs 6.989, de 5 de maio de 1982
e 7.332, de 1º de julho de 1985, passam a vigorar com a seguinte redação: Art. 176. Contar-se-á o voto apenas
para a legenda, nas eleições pelo sistema proporcional: I - se o eleitor escrever apenas a sigla partidária, não
indicando o candidato de sua preferência; II - se o eleitor escrever o nome de mais de um candidato do mesmo
Partido; III - se o eleitor, escrevendo apenas os números, indicar mais de um candidato do mesmo Partido; IV -
se o eleitor não indicar o candidato através do nome ou do número com clareza suficiente para distingui-lo de
outro candidato do mesmo Partido. Art. 177. Na contagem dos votos para as eleições realizadas pelo sistema
proporcional observar-se-ão, ainda, as seguintes normas: I - a inversão, omissão ou erro de grafia do nome ou
prenome não invalidará o voto, desde que seja possível a identificação do candidato; II - se o eleitor escrever o
nome de um candidato e o número correspondente a outro da mesma legenda ou não, contar-se-á o voto para o
candidato cujo nome foi escrito, bem como para a legenda a que pertence; III - se o eleitor escrever o nome ou o número de um candidato e a legenda de outro Partido, contar-se-á o voto para o candidato cujo nome ou número
foi escrito; IV - se o eleitor escrever o nome ou o número de um candidato a Deputado Federal na parte da
cédula referente a Deputado Estadual ou vice-versa, o voto será contado para o candidato cujo nome ou número
foi escrito; V - se o eleitor escrever o nome ou o número de candidatos em espaço da cédula que não seja o
correspondente ao cargo para o qual o candidato foi registrado, será o voto computado para o candidato e
respectiva legenda, conforme o registro”. Art. 2º “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”. Art. 3º
“Revogam-se as disposições em contrário”. Os dispositivos do Código Eleitoral determinavam que: Art. 176.
“Contar-se-á o voto apenas para a legenda, nas eleições pelo sistema proporcional: I - se o eleitor escrever o
nome de mais de um candidato do mesmo partido; II - se o eleitor, escrevendo apenas os números, indicar mais
de um candidato do mesmo partido; III - se o eleitor não indicar o candidato através do nome ou do número com
clareza suficiente para distinguí-lo de outro candidato do mesmo partido; IV - se o eleitor, indicando a legenda, escrever o nome ou o número de candidato de outro partido”. Art. 177. “Na contagem dos votos para as eleições
realizadas pelo sistema proporcional observar-se-ão, ainda, as seguintes normas: I - a inversão, omissão ou êrro
de grafia do nome ou prenome não invalidará o voto desde que seja possível a identificação do candidato; II - se
o eleitor escrever o nome de um candidato e o número correspondente a outro da mesma legenda ou não, contar-
se-á o voto para o candidato cujo nome foi escrito e para a legenda a que pertence, salvo se ocorrer a hipótese
prevista no IV do artigo anterior; III - se o eleitor escrever o nome ou o número de um candidato a deputado
federal na parte da cédula referente a deputado estadual ou vice-versa o voto será contado para o candidato cujo
nome ou número foi escrito; IV - se o eleitor escrever o nome ou o número de candidatos em espaço da cédula
que não seja o correspondente ao cargo para o qual o candidato foi registrado, será o voto computado para o
candidato e respectiva legenda, conforme o registro”.
294
culminar na apuração do resultado”. Sob as normas elaboradas em período anterior ao exigido
pela anterioridade, “quando já esboçado o balanço das forças políticas empenhadas no pleito
que se aproxima”, paira a suspeita de parcialidade. Decide pela improcedência da ação por
não ver nos dispositivos capacidade de gerar surpresa ou quebra de isonomia.
O Ministro Marco Aurélio vota pela inconstitucionalidade, considerando que as regras
de apuração de votos integram a ideia de processo eleitoral trazido pelo artigo 16 da
Constituição. O Ministro Carlos Velloso, considerando a expressão “processo eleitoral” como
o “complexo de atos que visam a receber e transmitir a vontade do povo”, entende que as
regras de apuração também estão abrangidas pela exigência constitucional.
O processo eleitoral é composto por uma fase pré-eleitoral (desde a apresentação das
candidaturas até a propaganda eleitoral), uma fase eleitoral propriamente dita (a votação) e
uma fase pós-eleitoral (com a apuração e a diplomação), afirma o Ministro Celso de Mello, e
relaciona-se com a definição de competência da Justiça Eleitoral. Assim, vota pela
inconstitucionalidade da lei, determinando a aplicação da anterioridade do artigo 16 da
Constituição também aos artigos 25 e 26 da Resolução 16.640/TSE que transcreviam os
termos da Lei impugnada.
O Ministro Sepúlveda Pertence se manifesta no sentido de “emprestar ao conceito de
processo eleitoral, para os fins do artigo 16, extensão tão ampla quanto seus termos
comportem, de modo a abranger, radicalmente, desde o alistamento eleitoral e a habilitação
dos partidos à escolha dos candidatos, definindo assim todas as personagens do drama
eleitoral; do registro dos candidatos à propaganda; da votação ao procedimento e aos critérios
da apuração até o momento culminante da proclamação e da diplomação dos eleitos”.
O entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence leva à identidade entre o “processo
eleitoral” do artigo 16 e todo o Direito Eleitoral, afirma o Ministro Paulo Brossard. As
mudanças promovidas pela Lei 8.037, sendo Direito eleitoral substantivo, não estão
submetidas à anterioridade constitucional, afirma o ministro. Seu voto é pela
constitucionalidade.
O Ministro Célio Borja, após pedir vista, vota com o relator pela constitucionalidade
da vigência e aplicação imediatas. O Ministro Sydney Sanches também acompanha o relator,
afirmando que o artigo 16 da Constituição não deve ter tido como “propósito impedir
alterações louváveis na legislação eleitoral durante o ano da campanha”, como o fez a lei em
análise.
295
Para o Ministro Aldir Passarinho, a locução do artigo 16 atinge “aquilo que disser com
a verdade das urnas”. A modificação proposta “significa mudança substancial com relação à
apuração dos votos e do resultado eleitoral”, devendo, portanto, ser submetida à anualidade.
Em voto vista, o Ministro Moreira Alves aponta a distinção entre processo eleitoral e
Direito Eleitoral, relacionando aquele aos atos que estão diretamente ligados às eleições.
Afirma que a expressão do artigo 16 inclui apenas as normas instrumentais ou formais
relativas às eleições e as regras de interpretação da vontade do eleitor são de direito material.
Seu voto é pela constitucionalidade. Finalmente, o Ministro Néri da Silveira afirma que a
regra não se dirige ao eleitor, mas “àquele que apura o resultado e com o objetivo de
estabelecer um critério de compreensão, de interpretação da vontade do eleitor”, e acompanha
o relator. 1163
Em um caso concreto, apreciado em 17 de junho de 1992, um candidato reclamava da
sua exclusão do pleito de 1990 por conta da inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g,1164
da
lei e arguia, entre outras coisas, sua inconstitucionalidade em face do artigo 16 da
Constituição.1165
Para o relator do recurso extraordinário, Ministro Sepúlveda Pertence, como a lei
alterou o regime de inelegibilidades e a partir de sua concepção mais ampla de processo
eleitoral, estaria submetida ao artigo 16 da Constituição. A lei estabelece casos de
inelegibilidade e define seus prazos, bem como os de desincompatibilização, o que modifica
essencialmente as regras da disputa eleitoral. Afirma ainda que a lei, exigida pela
Constituição, altera a lei anterior que tratava do tema, Lei Complementar 5/70 e vota pela
inconstitucionalidade da aplicação imediata da lei e deferindo o registro da candidatura. Sua
manifestação foi seguida pelo Ministro Marco Aurélio e pelo Ministro Carlos Velloso. O
Ministro Celso de Mello repete seu voto proferido na ação direta de inconstitucionalidade 354
e afirma que, inobstante a ordem constitucional ao legislador contida no parágrafo 9º do artigo
14, a lei de inelegibilidade não se subtrai “aos condicionamentos temporais que incidem sobre
o poder reservado à União sobre essa específica matéria concernente ao processo eleitoral”.
1163 ADI 354/DF - Distrito Federal - Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator: Min. Octavio Gallotti. EMENTA: Não infringe o disposto no art. 16 da Constituição de 1988 (texto original) a cláusula de vigência
imediata constante do art. 2º da Lei nº 8.037, de 25 de maio de 1990, que introduziu na legislação eleitoral
normas relativas à apuração de votos. Ação Direta julgada improcedente, por maioria, vencidos os Ministros
Marco Aurélio, Carlos Velloso, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Aldir Passarinho. 1164 Art. 1º “São inelegíveis: I - para qualquer cargo: g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de
cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão
competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as
eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data da decisão”. 1165 Somente serão analisadas as razões do julgamento quanto à preliminar de inconstitucionalidade, que se
relaciona diretamente com a compreensão do alcance da anterioridade constitucional em matéria eleitoral.
296
Segundo o Ministro Paulo Brossard, a hipótese em discussão – inelegibilidade
decorrente de desaprovação de contas – é “constitucionalmente focalizada” e geraria
suspensão de direitos políticos por força dos artigos 15 e 37 § 4º da Constituição. Assim,
aplicar o artigo 16 nesse caso seria “negar aplicabilidade imediata a outros artigos da própria
Constituição”. Não reconhece, por conseguinte, a inconstitucionalidade. É seguido pelo
Ministro Célio Borja, pelo Ministro Octavio Gallotti e pelo Ministro Moreira Alves. O
Ministro Sydney Sanches acompanha a divergência, ressaltando a intenção do constituinte na
previsão da lei complementar e optando pelo entendimento restrito do artigo 16, sob pena de
“uma profunda alteração no resultado dessa eleição [de 1990]”.
Para o Ministro Aldir Passarinho, “o ponto referente às inelegibilidades é exatamente
um que deve – mais do que qualquer outro – ser considerado como abrangido pela restrição
constitucional”. Aponta, ainda, a ausência de ressalva no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias em relação ao tema, como o faz sobre outras questões.
Com o voto de desempate, o Ministro Néri da Silveira afirma que “a matéria relativa à
inelegibilidade não se compreende no âmbito do art. 16 da Constituição”. Ressalta o caráter
constitucional das inelegibilidades, tratadas exaustivamente nos textos constitucionais
brasileiros até a Emenda Constitucional 14/65, que remete a previsão de outros casos por lei
complementar.1166
Resta saber como os critérios estabelecidos por parte da doutrina e pelo Supremo
Tribunal Federal funcionam na definição de “processo eleitoral”. O que acaba acontecendo é
uma “seleção” das regras pelo Tribunal Superior Eleitoral, como na Lei 11.300, de 10 de maio
de 2006. Essa “minirreforma eleitoral”, como foi denominada, pela leitura singela do artigo
16 da Constituição, somente poderia gerar efeitos para a eleição de 2008, pois sua publicação
se dá a menos de cinco meses antes da eleição. Mas a “regulamentação” do TSE pela
Resolução 22.205 de 23 de maio do mesmo ano, segundo seus próprios consideranda, resolve
quais dispositivos seriam aplicáveis às eleições daquele ano. A segunda consideração da Corte
Eleitoral afirma que “o artigo 16 da Constituição Federal não se dirige à edição de normas que
não afetem o processo eleitoral”.
Com essa percepção, amplia as doações vedadas, o rol de gastos eleitorais, veda a
qualquer modalidade de propaganda em bens públicos, bens de uso comum, ou bens cujo uso
dependa da cessão ou permissão do poder público, proíbe comícios com shows e a
1166 Recurso Extraodinário 129.392, Relator Min. Sepúlveda Pertence. “Rejeição pela maioria – vencidos o
relator e outros Ministros – da argüição de inconstitucionalidade do art. 27 da LC 64/90 (Lei de Inelegibilidades)
em face do art. 16 da CF: prevalência da tese, já vitoriosa no TSE, de que, cuidando-se de diploma exigido pelo
art. 14, § 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência
imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição.”
297
distribuição de brindes, afasta a propaganda em outdoor, restringe o período de propaganda na
imprensa escrita até a antevéspera das eleições, antecipa a vedação de transmissão de
programa apresentado ou comentário por candidato para a escolha em convenção. E atinge de
maneira diferente os possíveis candidatos, a um mês das convenções partidárias.
O entendimento débil da vedação constitucional do artigo 16 enfraquece os princípios
constitucionais da estrita legalidade em matéria eleitoral e da máxima igualdade na disputa
eleitoral.1167
Novamente afirma-se que a locução “processo eleitoral” deve ser interpretada de
maneira ampla, a partir da sua compreensão como norma garantidora da igualdade entre os
candidatos. Não se concebe a alteração das regras do jogo eleitoral relacionadas às
inelegibilidades, às coligações, ao registro de candidatos, à propaganda, à aplicação e
arrecadação de recursos, à apuração de votos e às hipóteses de cabimento das ações eleitorais
a menos de um ano da data do pleito. Qualquer norma que se refira à matéria eleitoral deve
obedecer ao princípio da anterioridade constitucional.
5.2 A “RESERVA DE LEI” DO PARLAMENTO
O constitucionalismo, principalmente em relação às constituições rígidas, impõe uma
diferenciação entre poder constituinte e poderes constituídos. Entre os poderes constituídos, a
Constituição estabelece uma divisão de funções, com a atribuição de uma função específica a
cada órgão de soberania e com a previsão de um sistema de controle recíproco. O Poder
Legislativo é aquele que decide sobre a matéria legal.1168
O princípio da estrita legalidade em matéria eleitoral impõe que as regras eleitorais
devem ser estabelecidas por lei, entendida essa em sentido estrito: regras derivadas de um
processo democrático de deliberação parlamentar, a partir da arena política formada por
representantes das correntes de opinião da sociedade. Esse, para Manuel Aragon, é o único
sentido adequado à “reserva de lei” em um Estado democrático. E é apenas neste sentido,
despretensiosamente, que se utiliza a expressão. Conhece-se a advertência de Celso Antônio
1167 Adverte Fávila Ribeiro: “É preciso que se colha do dispositivo o acalentado rendimento social,
impedindo a redução de seu alcance, não deixando prosperarem fraturas pelas vias interpretativas. Para isso,
quanto mais desvelo houver em sua aplicação menor será o risco de que possam medrar condescendências que
avariam a igualdade nas disputas eleitorais, e imponham a idéia de justiça deserte ou seja expelida dessa área
conflituosa” (RIBEIRO, Fávila. Pressupostos constitucionais do direito eleitoral brasileiro no caminho da
sociedade participativa. Op. cit., p. 47). 1168 Conforme Victor Nunes Leal: “Em suma, quem decide da matéria constitucional é o poder constituinte.
Do mesmo modo, quem decidirá da matéria legal é o poder legislativo, respeitados os preceitos da Constituição”
(LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento. In:_____. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense,
1960 [1945], p. 57-91, p. 65).
298
Bandeira de Mello de que o uso desta expressão, originária do e pertinente no Direito alemão,
seria totalmente descabido no Brasil (pois a distinção entre o que é da alçada de cada Poder
não se descobre em função da matéria).1169
Todavia, para fins de “reforço da ideia” de que
somente a norma inovadora originária do Parlamento pode criar direitos e obrigações de
natureza eleitoral, torna-se útil a noção. Ademais, em certas circunstâncias torna-se necessário
retomar o óbvio: o Poder Executivo não pode exercer atividade legislativa no âmbito eleitoral
(ainda que em suas prerrogativas constitucionais atípicas tais como na edição de medidas
provisórias e de leis delegadas) e muito menos a Justiça Eleitoral e seus órgãos.
Não apenas a partir da oposição entre o Parlamento (representativo) e o monarca (não
representativo), mas considerando a democracia pluralista, o Parlamento é o órgão
fundamental de representação de todo o povo, em que as minorias podem se fazer ouvir e
participar da elaboração da norma, em um procedimento que se marca pelo contraste, pela
publicidade e pela livre deliberação.1170
A afirmação se coaduna com o sistema brasileiro,
pois não há matéria que não seja reservada à lei ou que lhe pudesse ser subtraída por uma
atuação regularmentar inovadora.
É o Parlamento a arena da discussão pública, o lugar do debate robusto e acessível a
todos, da apresentação de argumentos e de contra-argumentos, de deliberação sobre a vontade
do Estado.1171
“O Parlamento constitui um „espaço de luta‟, e o campo da lei é o campo da
mediação”, afirma Clèmerson Merlin Clève.1172
O Poder Legislativo, como aduz Carlos Ayres
Britto, conta com um prestígio constitucional, em face de sua formação ser derivada
diretamente da vontade do povo e de consubstanciar todas as ideologias da sociedade, como
“a mais completa expressão do pluralismo político”.1173
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a origem parlamentar da lei permite a sua
elaboração a partir de “várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos
segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social”. Assim, a
lei aproxima-se da média do pensamento social, construído por uma pluralidade de grupos. O
autor acentua, ainda, o “grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade
1169 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 1052. 1170 ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Revista Española de Derecho
Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985. 41-42. 1171 MILL, John Stuart. Governo Representativo. Tradução: E. Jacy Monteiro. São Paulo: Ibrasa, 1964
[1861], p. 71. 1172 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 48, nr 13. 1173 BRITTO, Carlos Ayres. O perfil constitucional da licitação. Curitiba: ZNT, 1997, p. 83 nr 24.
299
normativa” garantido pelo processo legislativo, ao contrário do que ocorre com a edição do
regulamento.1174
Fabrício Motta evidencia a relação desse prisma do princípio da legalidade com a
ideologia democrática, com uma concepção de lei a partir da “participação do povo na sua
elaboração, por meio de seus representantes”. O autor ressalta que não há, no sistema
brasileiro, limites materiais à lei, desde que compatível com a Constituição.1175
O princípio da reserva da lei do Parlamento leva em consideração a escolha
constitucional pelo tratamento de determinadas matérias por meio de lei do Parlamento. Esta
decisão é justificada pela seleção constitucional de temas que devem ser tratados no âmbito da
representação, envolvida pela legitimidade democrática e cuja decisão é passível de amplo
controle dos seus fundamentos, garantido pela publicidade das discussões e pela possibilidade
de participação no debate de todos os partidos com representação.1176
Clèmerson Merlin Clève expressamente inclui entre as matérias que são absolutamente
reservadas ao Poder Legislativo as relacionadas aos direitos políticos e eleitorais, ressaltando
a escolha constitucional em atribuir a determinadas matérias o tratamento exclusivo a partir da
lei formal, submetida ao debate da representação política.1177
As normas eleitorais, que estabelecem as regras do jogo da disputa democrática, não
podem ser elaboradas em gabinetes ou salas de sessões. Sua fundamentação pública e sua
construção democrática são essenciais para a legitimidade de suas imposições e restrições.
Assim entende Sivalnildo de Araújo Dantas, ao afirmar que somente a lei – em sentido formal
– pode operar modificações no procedimento eleitoral.1178
Há, ainda uma “preferência do legislador como órgão concretizador da constituição”,
conforme leitura de José Joaquim Gomes Canotilho.1179
. Nas regras de disputa pelos cargos
eletivos impõe-se uma reserva legal absoluta. Em matéria eleitoral – como no âmbito
tributário e em Direito Penal – é possível se referir a um princípio de reserva parlamentar,1180
1174 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 360-363. 1175 MOTTA, Fabrício. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 116 e 120rn. 1176 Conforme ressalta J. J. Gomes Canotilho. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional
e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 672-673. 1177 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias. Op. cit., p. 33-34, 59 e 78 nr 130. 1178 DANTAS, Sivanildo de Araújo. Direito eleitoral: teoria e prática do procedimento das eleições
brasileiras. Op. cit., p. 219. 1179 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 1226. 1180 CLÈVE, Clèmerson. Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. “Os limites
constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP)”. Revista da ESMESC, v. 12 (2005), p. 17-26.
300
no sentido de excluir da esfera regulamentar a definição das regras fundamentais que
desenvolvem os princípios estruturantes.
A noção de lei em sentido estrito implica uma visão do princípio da separação de
poderes informada por cláusulas parâmetros – independência e harmonia entre os poderes,
indelegabilidade e inacumulabilidade – que impede, apesar do sentido atual do princípio, seu
aniquilamento.1181
Como afirma Luciane Moessa de Souza, “[h]á que se buscar, portanto, um
equilíbrio entre as limitações colocadas pelo princípio da separação de poderes e a
necessidade de efetividade dos direitos fundamentais, sempre observado o princípio
fundamental da supremacia da Constituição”.1182
A Constituição expressamente se refere à reserva de lei complementar1183
para o
estabelecimento de hipóteses de inelegibilidade infraconstitucionais (artigo 14, § 9º) e para a
organização e competência da Justiça Eleitoral (artigo 121). E, ao impor uma anterioridade
específica em matéria eleitoral, faz uma reserva de lei para a regulação do processo eleitoral
(artigo 16).1184
As regras eleitorais se referem à concretização do princípio de legitimação do
exercício do poder político. Exige-se, para a sua imposição, ampla discussão parlamentar,
com caráter fortemente deliberativo e com a participação das minorias. A legitimidade para a
restrição de direitos – direitos políticos, como a elegibilidade, ou liberdades, como a liberdade
de expressão – está, por força do princípio do Estado de Direito, no órgão representativo.
Apenas o Parlamento pode ditar normas sobre a disputa eleitoral.
Em nome, simultaneamente, de uma necessária “moralização” do processo e de um
imperioso impulso na reforma política, o Tribunal Superior Eleitoral vem, frequentemente,
inovando em matéria eleitoral, criando direitos e obrigações, assinalando casos de
inelegibilidade sem previsão expressa em lei (complementar, por exigência constitucional),
determinando número de cadeiras de vereadores, criando hipótese de perda de mandato.
1181 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes. O poder congressual de sustar atos
normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 13-19. 1182 SOUZA, Luciane Moessa de. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 158. 1183 Trata-se, portanto, de uma “reserva de lei reforçada”, com exigência de um maior consenso parlamentar
para a elaboração da lei. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Op. cit., p. 676. 1184 Para José Joaquim Gomes Canotilho há uma reserva de lei “absoluta” quando se trata da definição “de
um regime jurídico global, como é o caso, por exemplo, da disciplina jurídica das eleições para os titulares de
órgãos de soberania”. Id.
301
Na questão da fidelidade partidária, o Supremo Tribunal Federal, reformando a
Constituição e legislando sobre Direito Eleitoral e sobre processo civil, criou “um
procedimento inexistente numa justiça incompetente”.1185
5.3 O “PODER REGULAMENTAR” DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Como se afirmou, a atuação da Justiça Eleitoral na expedição de resoluções é
inconstitucional. Sem previsão expressa na Constituição e em face de uma função atípica, não
se pode considerar a possibilidade de elaboração de normas, ainda que secundárias, pelo
Poder Judiciário.
A visão contemporânea da separação de poderes, ou divisão de funções entre os
órgãos de soberania do Estado, impõe o reconhecimento do exercício de parcela da função
típica de um órgão por outro. Assim, por exemplo, o Poder Legislativo julga o Presidente da
República nos crimes de responsabilidade, o Poder Executivo edita medidas provisórias e
elabora leis delegadas e o Poder Judiciário elabora seus regimentos internos1186
e administra
seu pessoal e seu orçamento.
A função legislativa, no entanto, com a exceção das espécies normativas previstas nos
incisos IV e V do artigo 59 da Constituição – leis delegadas e medidas provisórias –,
submetidas a requisitos específicos e que não prescindem da atuação efetiva do Poder
Legislativo, seja por sua autorização prévia no caso da delegação legislativa, seja pela análise
quando da conversão em lei das medidas provisórias, está reservada ao Poder Legislativo.
Ao Poder Executivo, com as exceções apontadas, e ao Poder Judiciário é vedado
estabelecer normas gerais e abstratas que inovem1187
no ordenamento jurídico. Reconhece-se
competência “normativa”, para elaborar ato normativo sem força de lei, ao Poder Executivo
1185 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua; CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque
Pontes Luz de Pádua. Fidelidade partidária & perda de mandato no Brasil. São Paulo: Premier Máxima, 2008,
p. 85. Os autores ressaltam ainda que o Supremo Tribunal Federal emprestou à decisão nos mandados de
segurança um efeito erga omnes (p. 132). 1186 Para Clèmerson Merlin Clève, o Poder Judiciário exerce função legislativa (em sentido material), na elaboração dos regimentos internos, que podem chegar até a criar recursos não previstos na legislação processual
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 81). Roberto Rosas se refere ao poder normativo do Poder Judiciário,
relacionando-o primeiramente à competência para a elaboração dos regimentos internos dos tribunais, mas
evidenciando que não corresponde ao poder de legislar (ROSAS, Roberto. Direito Processual Constitucional. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 56 e 58). O autor afirma o exercício de uma competência
legislativa da Justiça Eleitoral quando da divisão eleitoral do país (p. 61). 1187 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “inovar quer dizer introduzir algo cuja preexistência não se
pode conclusivamente deduzir da lei regulamentada” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de
Direito Administrativo. 25. ed. Op. cit., p. 353).
302
para a elaboração de regulamentos e ao Poder Judiciário, no âmbito do Conselho Nacional de
Justiça e da Justiça do Trabalho.
A Justiça Eleitoral não está entre os órgãos competentes para a expedição de atos
normativos segundo a Constituição. Logo, a elaboração de resoluções não tem respaldo
constitucional. Não obstante, essa questão não se coloca, seja pela doutrina, seja pela
jurisprudência. O que se pode admitir é a expedição de instruções, compreendidas
adequadamente – que se destinem apenas à atuação administrativa da Justiça Eleitoral, sem
possibilidade de seus efeitos atingirem os particulares.
A elaboração das “instruções” para o fiel cumprimento da legislação eleitoral pelo
Tribunal Superior Eleitoral fundamenta-se em dispositivos infraconstitucionais: no parágrafo
único do artigo 1º e no inciso IX do artigo 23 do Código Eleitoral, no artigo 61 da Lei dos
Partidos Políticos (Lei 9.096/95) e no artigo 105 da Lei das Eleições (Lei 9.504/97).
Instruções são, na lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “regras gerais,
abstratas e impessoais, de caráter prático, baixadas por órgãos da Administração Pública aos
agentes públicos ou encarregados de obras e serviços públicos, prescrevendo-lhes o modo
pelo qual devem pôr em andamento seus cometimentos”. Diferenciam-se dos regulamentos
porque se dirigem apenas aos órgãos da Administração Pública.1188
Isso é o máximo que se
pode admitir como possível no âmbito da competência normativa da Justiça Eleitoral. Mais
significa extrapolar as normas constitucionais e legais.
Ainda que não se admita a força constituinte do fato consumado,1189
ressalte-se que
caso se conceba, erroneamente, a competência regulamentar da Justiça Eleitoral como válida,
deve-se reconhecer-se os limites estritos deste poder. A competência regulamentar1190
é uma
espécie de poder normativo, mas vinculada, no ordenamento jurídico brasileiro, à edição de
normas secundárias para a execução direta de uma lei específica. Seu fundamento formal
deriva da Constituição e seu alcance não atinge a regulamentação direta das normas
constitucionais – competência, por excelência, do Poder Legislativo.1191
1188 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de Direito Administrativo: Introdução. 3.
ed. São Paulo: Malheiros, 2007 [1979]. v. 1, p. 381-383. 1189 Como o faz Georg Jellinek (JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução: Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 7 e 29). 1190 No direito brasileiro cabe com perfeição a ressalva de Manuel Aragón: “En realidad, casi todas las
categorías del Derecho público están necesitadas de esta «reconstrucción». Piénsese en el propio concepto de
Reglamento, tan vinculado, por acción o reacción, al principio monárquico, vinculación que ha de abandonarse
si se pretende, lo que me parece necesario, encajar la potestad reglamentaria en el marco de las exigencias de
un Estado social y democrático de Derecho. Reflexión que habría de extenderse a la misma «función de
Gobierno» como categoría o a esa otra tan necesitada de precisión como es la del «autogobierno» del Poder
Judicial” (ARAGÓN, Manuel. La eficacia jurídica del principio democrático. Op. cit., p. 42). 1191 VIEIRA, José Roberto et alii. Perfil constitucional do regulamento e alguns reflexos tributários. Revista
Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 4, p. 175-233, 2003, p. 185 e 187. Sob a égide da Constituição
303
Regulamentos, para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “são regras jurídicas gerais,
abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado,
enquanto Poder Público”.1192
Conforme sublinha Clèmerson Merlin Clève, o Poder
Executivo, diante de atribuição constitucional, produz, no exercício de função administrativa,
regulamentos, que são manifestações de uma função normativa secundária, configurando
“atos praticados com fundamento na lei e insuscetíveis de inovar, originariamente, a ordem
jurídica”. Para o autor, a justificação material do poder regulamentar reside na necessidade da
estreita colaboração entre os poderes Executivo e Legislativo e na exigência de uma
flexibilidade regulamentar para determinados setores, como a tecnologia. A justificação
formal está na sua previsão constitucional, que estabelece os limites de seu exercício. 1193
A divergência doutrinária sobre os regulamentos é intensa. Se grande parte da doutrina
(com relevante exceção de Eros Roberto Grau) considerava, antes da Emenda 32/2001, que só
havia regulamentos executivos – editados para a fiel execução da lei – no Direito brasileiro,
após a alteração promovida no artigo 84, VI,1194
passa-se a defender (com relevante exceção
de Celso Antônio Bandeira de Mello)1195
a existência de regulamento autônomo (não
fundamentado em uma lei específica).1196
De qualquer forma, os regulamentos não podem, sob pena de inconstitucionalidade,
alterar ou substituir leis.1197
Não podem criar direitos ou obrigações. Não podem restringir
anterior, Carlos Mário da Silva Velloso afirmava a caracterização dos regulamentos como atos normativos
secundários gerais e a existência apenas de regulamentos de execução no direito brasileiro (VELLOSO, Carlos
Mário da Silva. Do poder regulamentar. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 65, p. 39-50, jan./mar. 1983, p.
39-50). 1192 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de Direito Administrativo. Op. cit., p.
359. 1193 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 139, 149, 216 e 219-221. 1194 Originalmente, o artigo 84, que trata da competência privativa do Presidente da República, trazia em
seu inciso VI a seguinte redação: “VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal,
na forma da lei”. Com a Emenda 32/2001, esse passa a ser o dispositivo: “VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação
ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”. 1195 Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que as disposições do artigo 84, VI, dão ao Presidente da
República poderes menos amplos do que os concedidos nos regulamentos autônomos europeus. Indica, no
entanto, que por força da alínea b, há a previsão de expedição pelo Poder Executivo de “ato concreto de sentido
contraposto a uma lei”, pois os cargos públicos são criados por lei e podem ser extintos por regulamento. O autor reconhece no sistema brasileiro apenas os regulamentos executivos (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito Administrativo. 25. ed. Op. cit., p. 336-337 e 346). 1196 Para José Roberto Vieira, Fábio Alessandro Fressato Lessnau, Cléverton Bueno de Oliveira, Marcelo
Costenaro Cavali, Renata Beckert Isfer e Rita Carolina Barreto, não há regulamento autônomo no ordenamento
jurídico brasileiro, porque sempre haverá subordinação à lei. A hipótese prevista no artigo 84, VI, configura
regulamento orgânico (VIEIRA, José Roberto et alii. Perfil constitucional do regulamento e alguns reflexos
tributários. Op. cit., p. 175-233). 1197 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 684.
O autor ressalta que os regulamentos autônomos estão limitados pelo bloco de constitucionaldidade e pelos
princípios gerais de Direito (p. 778).
304
nem ultrapassar a lei. E os regulamentos de execução estão essencialmente limitados pela lei
que os fundamenta.
Não se podem admitir regulamentos emanados do Poder Judiciário em matéria
eleitoral. Menos ainda a possibilidade de regulamentos autônomos em face do princípio
constitucional da estrita legalidade.
O princípio da legalidade, chave do sistema jurídico brasileiro, impõe um conceito de
regulamento que não ultrapasse a medida da lei que lhe dá fundamento. O regulamento é ato
“estritamente subordinado”, “dependente de lei”, como afirma Celso Antônio Bandeira de
Mello.1198
Os regulamentos, segundo Clèmerson Merlin Clève, estão submetidos aos princípios
de primazia ou preeminência da lei (o regulamento está hierarquicamente abaixo da lei), da
precedência da lei (vinculação positiva à lei, revelada pelo dever de apontar o fundamento
legal), da acessoriedade dos regulamentos (não podem tomar o lugar das leis), do
congelamento da categoria (se uma matéria foi tratada por lei, o tratamento somente pode ser
modificado por outra lei), da identidade própria do regulamento (não pode integrar o diploma
legal), da autonomia da atribuição regulamentar (diante da previsão constitucional não se faz
necessária autorização legislativa), da colaboração necessária entre a lei e o regulamento
(quando necessário o regulamento deve ser editado) e da autonomia da lei (sua vigência não
pode depender da edição do regulamento e sua eficácia não pode ser paralisada pela não
edição do ato regulamentar.1199
É um equívoco afirmar que o regulamento é materialmente lei e formalmente ato
administrativo.1200
É ato administrativo geral e abstrato, mas traz critérios para a decisão de
casos concretos.1201
A normatização de determinada matéria por regulamento sem lei a ser
regulamentada é nula em face de sua inconstitucionalidade, pois o regulamento “não poderia
suprir a lei onde a Constituição a exige”.1202
Além disso, ressalta Victor Nunes Leal que “[a] pretexto de facilitar a execução da lei,
não pode, entretanto, o regulamento pretender fixar-lhe a interpretação de maneira
conclusiva”, de modo a obrigar o Poder Judiciário.1203
1198 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. Op. cit., p. 337 e
343. 1199 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 235-237. 1200 Como o faz Victor Nunes Leal, a partir de León Duguit (LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento.
In:_____. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960 [1945], p. 57-91, p. 65-66). 1201 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na
Constituição de 1988. Op. cit., p. 221. 1202 LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento. Op. cit., p. 74. 1203 Ibid., p. 75.
305
A Justiça Eleitoral exerce funções regulamentares sem autorização constitucional ou
legal. O exercício (não autorizado constitucionalmente) dessa competência legal não afasta a
atuação do Presidente da República na regulamentação da legislação eleitoral, em face de seu
poder de regulamentação geral assegurado pela Constituição.
A atuação do Tribunal Superior Eleitoral em matéria de resoluções, se admitida
(inobstante sua inconstitucionalidade), deve se subordinar à noção de função regulamentar de
maneira estrita: aquela em que não há espaço para discricionariedade qualquer, mas apenas se
deve desdobrar, especificar o que a lei determina de modo genérico. Dessa forma, as
resoluções eleitorais devem se restringir a esclarecer datas, competências e procedimentos
para a eleição específica que será disputada, facilitando a compreensão da legislação eleitoral.
Apenas isso.
Mas dois são os instrumentos pelos quais a Justiça Eleitoral vem, inconstitucional e
antidemocraticamente, inovando a ordem jurídica brasileira: as resoluções e as consultas.
Nenhuma delas têm previsão constitucional, ambas derivam do Código Eleitoral – Lei
4.737/65.1204
As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, se afastada sua inconstitucionalidade
absoluta, somente podem ter a natureza jurídica de regulamentos de execução, destinados a
facilitar a execução da lei, precisando o conteúdo dos seus conceitos e determinando os
procedimentos a serem tomados pela Justiça Eleitoral em sua função administrativa. 1205
Não
inovam a ordem jurídica, não podem operar contra a lei, para além da lei, são completamente
subordinados à lei: “Qualquer de suas disposições que contrarie dispositivo de lei a que o
mesmo [o regulamento de execução] se refere, ou de qualquer outra lei, não pode ter
aplicação”.1206
Essas instruções se exteriorizam em forma de resoluções, que, por força de previsão
legal,1207
são editadas até o dia 05 de março do ano da eleição e têm natureza jurídica
1204 Art. 23 – “Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: IX - expedir as instruções que julgar
convenientes à execução deste Código; XII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas
em tese por autoridade com jurisdição, federal ou órgão nacional de partido político. A competência dos
Tribunais Regionais Eleitorais para responder a consultas está prevista no artigo 30, VIII. A previsão para
expedição de instruções é repetida na Lei dos Partidos Políticos (artigo 61) e na Lei das Eleições (artigo 105).” 1205 Definição de regulamento de execução a partir de Clèmerson Merlin Clève (CLÈVE, Clèmerson
Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. Op. cit.,
p. 244-245). 1206 LEAL, Victor Nunes. Lei e Regulamento. Op. cit., p. 80-81. 1207 Originalmente o artigo 105 da Lei das Eleições (Lei 9504/97) dispunha: “Até o dia 5 de março do ano
da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral expedirá todas as instruções necessárias à execução desta Lei, ouvidos
previamente, em audiência pública, os delegados dos partidos participantes do pleito”. A redação foi alterada
pela Lei 12.034/09, como reação aos excessos do Tribunal Superior Eleitoral: “Até o dia 5 de março do ano da
eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer
sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução,
306
regulamentar. Não são submetidas, portanto, à anterioridade eleitoral exigida pelo artigo 16 da
Constituição, o que reforça seu caráter não inovador. 1208
As resoluções, aponta Torquato Jardim, são decisões “que têm por função dar eficácia
legal e eficácia social às normas constitucionais e legais eleitorais”, “explicando os seus fins e
traduzindo em linguagem acessível ao eleitorado, aos candidatos e aos partidos políticos, os
requisitos e os procedimentos adequados ao exercício da cidadania” ou “pondo termo ao
processo judicial”.1209
Suzana de Camargo Gomes afirma que as instruções do Tribunal Superior Eleitoral
“possuem nítido caráter normativo e força de regra geral, sendo que se violadas ensejam a
interposição de recurso especial” e ressalta a impossibilidade de as resoluções extrapolarem o
conteúdo da lei e sua função de facilitar o entendimento e a aplicação da legislação
eleitoral.1210
Pinto Ferreira apresenta posicionamento similar, afirmando que a eficácia das
instruções do Tribunal Superior Eleitoral depende de sua concordância com o texto legal e
enfatizando que se trata de uma “competência puramente regulamentar e não legislativa”.1211
No mesmo sentido o pensamento de José Augusto Delgado, que reconhece a
“característica de cunho supletivo e criador” das instruções, necessárias ao Direito Eleitoral,
mas “desde que não resulte, a sua aplicação, em se tornar incompatível com a norma
positivada”: não lhe é permitido “alcançar a integridade de qualquer direito ou garantia
fundamental do cidadão, nem diminuir ou aumentar os limites dos direitos subjetivos
constituídos pela lei eleitoral”. O autor afirma que a base jurídica do “regulamento eleitoral”
está relacionada à atividade inerente da Justiça Eleitoral, de caráter administrativo e
judiciário.1212
ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”. Além disso,
foi adicionado um terceiro parágrafo ao artigo: “§ 3 Serão aplicáveis ao pleito eleitoral imediatamente seguinte
apenas as resoluções publicadas até a data referida no caput”. 1208 Discorda-se vigorosamente da concepção de Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira e Camila
Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua Cerqueira, que afirmam que “a Resolução do TSE tem força de
lei ordinária federal”, podendo se caracterizar como um ato normativo primário (que cria o direito) ou secundário
(que copia o direito). Para os autores a inconstitucionalidade da Resolução 22.610/07 está no fato de que ela
tratou de matéria constitucional (CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua e CERQUEIRA, Camila
Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. Op. cit., p. 138). A Resolução é totalmente inconstitucional,
formal e materialmente. 1209 JARDIM, Torquato. Processo e Justiça Eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Op. cit., p.
33. À tarefa de explicitar a legislação eleitoral para facilitar seu cumprimento se relaciona o princípio da
exaustividade do direito eleitoral mexicano, que deve ser observado pelas autoridades eleitorais na expedição de
resoluções (OROZCO HENRÍQUEZ, Jesús. Consideraciones sobre los principios y reglas en el derecho electoral
mexicano. Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, Ciudad de México, n. 18, p. 139-165, abr. 2003,
p. 154). 1210 GOMES, Suzana de Camargo. A Justiça Eleitoral e sua competência. Op. cit., p. 174 e 222. 1211 PINTO FERREIRA, Luiz. Comentários à Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Op. cit., p. 5. 1212 DELGADO, José Augusto. A contribuição da Justiça Eleitoral para o aperfeiçoamento da democracia.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 127, p. 109-118, jul./set. 1995, p. 115-116.
307
Considerando a expedição de instruções pelo Tribunal Superior Eleitoral
adequadamente, como ato interno à Administração, não se pode confundi-la com o exercício
do poder regulamentar. Admitindo-se esse, ao arrepio da Constituição e da lei, há de se, ao
menos, reconhecer sua característica de ato normativo vinculado às disposições legais, que
deve obediência aos princípios da preferência ou preeminência da lei, da precedência da lei,
da complementaridade ou acessoriedade dos regulamentos, do congelamento do grau
hierárquico1213
e da separação entre o “direito da lei” e o “direito dos regulamentos”.1214
O regulamento serve para promover a fiel execução das leis, tarefa expressamente
relacionada com as instruções do Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se de comando inapto a
inovar originalmente o ordenamento jurídico, residindo “em lugar subordinado ao ocupado
pela lei”.1215
A própria expressão “fiel execução” demonstra a ênfase na fidelidade, no
respeito e na obediência à lei que é imposta ao regulamento e à resolução.
Em decisão na ação direta de inconstitucionalidade 2628-3, o Supremo Tribunal
Federal afastou a possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade da resolução
do Tribunal Superior Eleitoral por inadmitir controle “de legalidade do poder regulamentar”.
Clèmerson Merlin Clève, no entanto, afirma que o regulamento – e, portanto, a resolução –
“pode ofender a Constituição, não apenas na hipótese de edição de normativa autônoma, mas
também quando o exercente da atribuição regulamentar atue inobservando os princípios da
reserva legal, da supremacia da lei e, mesmo, o da separação de poderes”.1216
A função das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, na realidade, é a de facilitar o
entendimento e a aplicabilidade da legislação eleitoral, esparsa em diversos diplomas
legais,1217
separando por temas e especificando datas e juízos competentes para a eleição em
disputa. Nada mais. Além disso, essa atuação encontra limites. Um deles se refere ao prazo
para a edição de resoluções para regulamentar a eleição (até o dia 05 de março do ano
1213 José Joaquim Gomes Canotilho assim explica o princípio do congelamento do grau hierárquico:
“Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau hierárquico desta regulamentação fica
congelado, e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando,
revogando ou integrando a lei anterior” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. Op. cit., p. 780-781). 1214 Ibid., p. 775-782. 1215 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias. Op. cit., p. 34. 1216 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 143. O autor defende a “criação de um processo objetivo de controle da
legitimidade da normativa regulamentar” (p. 144). Em sua ausência em face das resoluções, com Victor Nunes
Leal, “o Supremo Tribunal Federal terá perdido, em parte, seu privilégio de ser o intérprete máximo do direito
federal, pois no caso previsto o Tribunal Superior Eleitoral terá dito a última palavra na interpretação de direito
federal, sem possibilidade de recurso para o Supremo”. O autor sugere o cabimento de mandado de segurança
proposto junto ao próprio Tribunal Superior Eleitoral (LEAL, Victor Nunes. Funções normativas de órgãos
judiciários. Op. cit., p. 221). 1217 LACERDA, Paulo José M.; CARNEIRO, Renato César; SILVA, Valter Félix da. O poder normativo da
Justiça Eleitoral. João Pessoa: Sal da Terra, 2004, p. 37.
308
eleitoral), configurando um marco temporal.1218
O limite material está determinado pelo
ordenamento jurídico eleitoral e o limite formal reside na imposição de que as resoluções
sejam exteriorizadas como instruções.1219
Outra atividade da Justiça Eleitoral que tem escapado dos limites constitucionais e
legais é a resposta a consultas. Essas se justificam, segundo Torquato Jardim, pela necessária
celeridade do processo eleitoral, pela necessidade de reduzir conflitos e pela conveniência da
previsibilidade legal.1220
A resposta a consultas não tem caráter vinculante, não cria norma
jurídica e não escapa da competência administrativa da Justiça Eleitoral: trata-se de ato
enunciativo, em que a Administração expõe sua opinião. Somente a partir dessa configuração
se compreende a exclusão do controle da constitucionalidade das consultas. 1221
Para Roberto Rosas, a resposta à consulta faz lei em relação à parte interessada, tem
força normativa e tem nítido caráter político.1222
Tito Costa aduz que as respostas possuem
caráter normativo que “está para a Justiça Eleitoral como a Súmula do Supremo Tribunal
Federal está para as decisões deste”.1223
Não obstante, a resposta a consultas levou a alterações profundas nas regras do jogo
democrático e ao afastamento de dispositivo constitucional expresso. Ainda que o próprio
Poder Judiciário faça a leitura constitucionalmente adequada das resoluções e das consultas,
na realidade essas manifestações do poder regulamentar da Justiça Eleitoral vêm inovando na
ordem jurídica, sem qualquer reação por parte do Supremo Tribunal Federal ou, ainda, sob
seu comando.
Foi assim na “verticalização das coligações” e na possibilidade de decretação de perda
de mandato eletivo por desfiliação partidária sem justa causa. Para Jairo Nicolau, essas
1218 Vale ressaltar que nem mesmo esse limite temporal tem sido adequadamente obedecido, em face da
edição de resoluções modificadoras após a data limite. Exemplo disso é a Resolução 22.718 de 28 de fevereiro
de 2008, que dispunha sobre a propaganda eleitoral e sobre as condutas vedadas aos agentes públicos,
modificada posteriormente pelas Resoluções 22.781 (de 05 de maio), 22.829 (de 05 de junho), 22.874 (de 01º de
julho), 22.896 (de 14 de agosto), 22.930 (de 10 de setembro), 22.945 (de 29 de setembro) e 22.961 (de 17 de
outubro de 2008). Verifica-se que durante todo o período eleitoral, inclusive entre os dois turnos de votação, a
regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral foi constantemente alterada. 1219 Esses limites são aludidos por Paulo José M. Lacerda, Renato César Carneiro e Valter Félix da Silva, que, no entanto, se referem aos “limites da atividade legislativa do Tribunal Superior Eleitoral” (LACERDA,
Paulo José M., CARNEIRO, Renato César e SILVA, Valter Félix da. Op. cit., p. 80-82). 1220 JARDIM, Torquato. Processo e Justiça Eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Op. cit., p.
45. As duas últimas finalidades, no entanto, estão sendo atacadas e não promovidas pelas respostas às consultas. 1221 Conforme já se manifestou o Supremo Tribunal Federal na decisão liminar da ação direta de
inconstitucionalidade 1805-1: “Não conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade, no que concerne às
Resoluções referidas do TSE, em respostas a consultas, porque não possuem a natureza de atos normativos, nem
caráter vinculativo”. 1222 ROSAS, Roberto. Direito Processual Constitucional. Op. cit., p. 63 e 174-175. 1223 COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 36.
309
decisões judiciais provocaram uma judicialização da vida partidária, estatizando a decisão
sobre os quadros e as coligações partidárias.1224
O artigo 6º da Lei das Eleições (Lei 9.504/97) trata da possibilidade das coligações. A
interpretação tomada na eleição de 1998 foi afastada em 2002 por uma consulta ao Tribunal
Superior Eleitoral (consulta 715). A partir dessa nova interpretação, dada em 26 de fevereiro
de 2006, as coligações que se realizaram neste ano tiveram que obedecer à “verticalização das
coligações”.
Essa “interpretação” do Tribunal Superior Eleitoral foi afastada pela Emenda
Constitucional 52, de 08 de março de 2006. Essa decisão legislativa, que alcançou consenso
qualificado nas duas casas, em duas votações, previa sua aplicação nas eleições de 2006. O
Supremo Tribunal Federal, no entanto, paradoxalmente, declarou inconstitucional esse
dispositivo em ação direta de inconstitucionalidade (3685-8). A emenda teve que esperar o
prazo do artigo 16 da Constituição. A resolução foi aplicada imediatamente.1225
Joel José Cândido sublinha que a menos de quatro meses da realização das convenções
já havia tratativas em curso sobre candidatos e vices, bem como pesquisas de intenção de voto
a respeito de nomes já cogitados. Houve prejuízo do processo eleitoral com a modificação do
entendimento do Tribunal Superior Eleitoral.1226
Mais do que isso. Como aponta Monica
Herman Salem Caggiano, a imposição de verticalização fere a autonomia partidária e é
matéria reservada à lei e não ao regulamento.1227
André Ramos Tavares defende a “verticalização”, afirmando que é possível deduzir a
necessidade de uma simetria entre as coligações a partir do caráter nacional exigido pelo
artigo 17 da Constituição e pelo artigo 6º da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95), que
permite as coligações “dentro da mesma circunscrição”. Para o autor, reforça-se essa
conclusão “se se pretende perseguir uma consistência partidário-ideológica mínima”. E a
Emenda Constitucional 52/06 deveria ser declarada totalmente inconstitucional.1228
Para Augusto Aras, a atuação do Poder Judiciário na determinação da verticalização
das coligações foi medida “de natureza intencionalmente preventiva, ante a possível falta de
1224 NICOLAU, Jairo. Os desafios dos partidos políticos no Brasil. Palestra proferida no curso Curto Pensar – SESC-PR, Curitiba, 06 out. 2009. 1225 Isso demonstra a fragilidade do argumento de Eduardo García de Enterría de afirmar que o poder
constituído atua como limite à potestade interpretativa da jurisdição constitucional, podendo afastar uma
conclusão inafastável (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el Tribunal
Constitucional. Madrid: Civitas, 1983, p. 201). 1226 CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. Op. Cit., p. 376. 1227 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Op. cit., p. 92. 1228 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. Op. cit., p. 730-731. O autor afirma que o
Supremo Tribunal Federal se autolimitou ao declarar inconstitucional apenas a aplicação imediata da emenda (p.
733).
310
iniciativa dos parlamentares que, na matéria, têm legislado costumeiramente „em causa
própria‟”.1229
As regras relativas à escolha de candidatos e ao registro não podem ser desatreladas do
processo eleitoral1230
– portanto seria necessariamente aplicável o artigo 16 da Constituição à
resolução.
Para Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira e Camila Medeiros de Albuquerque
Pontes Luz de Pádua Cerqueira, há uma incoerência entre a inexigibilidade de respeito às
coligações firmadas nacionalmente nas esferas estaduais – afastada pela Emenda 52/06 – e a
imposição de fidelidade partidária, o que revelaria duas visões contrapostas sobre as
ideologias partidárias.1231
Outro caso exemplar – no sentido de um exemplo a ser denunciado, combatido e
evitado – é a eleição da fidelidade partidária como elemento fundamental do sistema
brasileiro. Essa escolha deu-se no âmbito de uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral e o
Supremo Tribunal Federal1232
referendou a hipótese de perda de mandato eletivo por
desfiliação partidária sem justa causa.
Para “regulamentar” a decisão do Supremo Tribunal Federal a partir da sua resposta à
consulta 1398, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 22.610/07.
A Resolução é plenamente inconstitucional. É maculada por vícios de forma e de
fundo. Não há ampla defesa1233
(as ressalvas à perda de mandato são taxativas, há limitação
do número de testemunhas e imposição de prazo para a tramitação da ação), impõe-se a
modificação do ônus da prova (coerente com a concepção de que o mandato pertence ao
1229 ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda de mandato parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, p. 197. 1230 Conforme acentua Fávila Ribeiro (RIBEIRO, Fávila. Pressupostos constitucionais do direito eleitoral
brasileiro no caminho da sociedade participativa. Op. cit., p. 52). 1231 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua e CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque
Pontes Luz de Pádua. Fidelidade partidária & perda de mandato no Brasil. Op. cit., p. 264-265. 1232 O Supremo Tribunal Federal parece compreender o comando constitucional que lhe atribui o dever de
guardar a Constituição como o sobrinho do tio da obra de Joaquim Manoel de Macedo (MACEDO, Joaquim
Manoel de. Memórias do Sobrinho de Meu Tio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1868]. MACEDO,
Joaquim Manuel de. A carteira do meu tio. Rio de Janeiro: Record, 2001 [1855]) – guardar no bolso, sem afastar-se materialmente dela, mas sem respeitar seus princípios e disposições. Pois o Supremo Tribunal Federal
tem alterado a Constituição. Possivelmente não tanto como o Poder Legislativo, mas, ainda que de modo menos
extenso, a mudança promovida pelo Supremo Tribunal Federal é mais grave. Por dois motivos: a alteração do
texto constitucional – ou do seu significado – não se dá na arena democrática, pela atuação dos representantes
políticos e pelo processo estabelecido pela Constituição, com suas limitações materiais, formais e
circunstanciais; e inexiste mecanismo de controle de adequação ao texto constitucional da mudança promovida
pela corte suprema. 1233 Ressalte-se que a ampla defesa na representação por infidelidade partidária era assegurada pela
Constituição de 1969, como ressalta Tito Costa. COSTA, Tito. Infidelidade partidária: conceito e aplicação.
Revista de Direito Público, São Paulo, n. 19, p. 301-304, jan./mar. 1972.
311
partido, mas incoerente com o desenho constitucional)1234
, cria-se uma regra de competência
da Justiça Eleitoral, ao arrepio da previsão constitucional de lei complementar, que se estende
para além da diplomação dos eleitos.
Mas não é apenas por meio da autorização legal para a expedição de instruções ou pela
resposta a consultas que o Tribunal Superior Eleitoral (juntamente com o Supremo Tribunal
Federal) inova em matéria eleitoral. Na apreciação de casos, constrói normas constitucionais e
legais, muitas vezes em flagrante oposição às elaboradas democraticamente. Ou, ainda, por
meio de determinação expressa do Supremo Tribunal Federal, como no caso do número de
vereadores em todos os municípios brasileiros.
Em uma decisão em recurso extraordinário de uma ação civil pública (RE 197.917), o
Supremo Tribunal Federal prescreveu um “critério aritmético rígido” para a determinação do
número de vereadores, afirmando que “[d]eixar a critério do legislador municipal o
estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites
máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional
expressa da proporcionalidade”.
O dispositivo constitucional estabelecia a fixação do número de vereadores pela lei
orgânica do município, proporcionalmente à população do município, observados os limites
de mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes;
mínimo de trinta e três e máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e
menos de cinco milhões de habitantes; e mínimo de quarenta e dois e máximo de cinquenta e
cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de habitantes.
A Lei Orgânica do Município de Mira Estrela previa onze cadeiras, para uma
população de um pouco mais de dois mil e seiscentos habitantes. Dentro do limite
constitucional, mas, segundo o Supremo Tribunal Federal, sem atender ao princípio da
proporcionalidade, da razoabilidade e da isonomia e dos princípios da moralidade, da
impessoalidade e da economicidade administrativa. Em controle incidental, o dispositivo
municipal foi declarado inconstitucional.
A partir desta decisão e por provocação da Procuradoria-geral Eleitoral, o Tribunal
Superior Eleitoral edita a Resolução 21.702/04, que determina o número de vereadores em
todos os municípios do Brasil. Ou seja, de uma manifestação sobre um caso concreto em que
1234 Possivelmente a Resolução parte da concepção que a desfiliação partidária presumivelmente dá-se sem
justa causa e gera – a partir da equivocada leitura constitucional dos ministros do Supremo Tribunal Federal – a
perda de mandato. Fica o requerente desta forma desonerado de fazer prova da inexistência de justa causa: ao
requerido, o mandatário que se desfiliou, é quem deve produzir prova de justa causa que daria permissão para o
abandono do partido. Sobre o assunto ver ARENHART, Sérgio Cruz. Ônus da prova e sua modificação no
processo civil brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 54, p. 25-60, maio 2006.
312
não havia clara inconstitucionalidade, o Poder Judiciário resolveu complementar a contrario
sensu a norma constitucional, aprimorando a construção constituinte e negando regra expressa
de competência de um ente federativo.
Nas disposições transitórias, o constituinte estabeleceu a competência dos Tribunais
Regionais Eleitorais para determinação do número de vereadores a serem eleitos em 1988.
Mas, como bem ressalta Antônio Carlos Mendes, “[o] conteúdo normativo desse preceito
exauriu-se com o exercício da mencionada competência”. Para o autor, a estipulação do
número de vagas pela Resolução 21.702 do Tribunal Superior Eleitoral a partir dos critérios
estipulados pelo Supremo Tribunal Federal não afasta o exercício da função legislativa
municipal. “Entretanto, no exercício dessa função legislativa, o Município deve observar os
critérios de aferição da proporcionalidade, previstos em princípios e preceitos constitucionais,
com o significado que lhes deu a interpretação do colendo STF”. 1235
Alberto Rollo aponta a inconstitucionalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal,
com a aplicação da tabela inclusive em cidades onde havia decisões, transitadas em julgado,
em favor das Câmaras Municipais.1236
Não foi preciso que as leis orgânicas constitucionalizassem supervenientemente a
decisão do Supremo Tribunal Federal e a resolução do Tribunal Superior Eleitoral, adequando
o exercício de sua competência constitucional autônoma à leitura particular dos ministros. O
poder de reforma da Constituição alterou o artigo 29, reestabelecendo a competência
constitucional para a sua determinação, com a indicação de parâmetros mais estreitos,
indicados em vinte e quatro alíneas.1237
1235 MENDES, Antônio Carlos. Representação proporcional (estudo de um caso). In: FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio
Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 89-102, p. 91 e 96. 1236 ROLLO, Alberto. Convenções partidárias e registro de candidatos. In:_____. (Org.) Elegibilidade e
inelegibilidade. Caxias do Sul: Plenum, 2008, p. 15-39, p. 39. 1237 Art. 29. “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de
dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os
princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: IV -
para a composição das Câmaras Municipais, será observado o limite máximo de: (Redação dada pela Emenda
Constitucional 58/09): a) 9 (nove) Vereadores, nos Municípios de até 15.000 (quinze mil) habitantes; b) 11
(onze) Vereadores, nos Municípios de mais de 15.000 (quinze mil) habitantes e de até 30.000 (trinta mil)
habitantes; c) 13 (treze) Vereadores, nos Municípios com mais de 30.000 (trinta mil) habitantes e de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes; d) 15 (quinze) Vereadores, nos Municípios de mais de 50.000 (cinquenta mil)
habitantes e de até 80.000 (oitenta mil) habitantes; e) 17 (dezessete) Vereadores, nos Municípios de mais de
80.000 (oitenta mil) habitantes e de até 120.000 (cento e vinte mil) habitantes; f) 19 (dezenove) Vereadores, nos
Municípios de mais de 120.000 (cento e vinte mil) habitantes e de até 160.000 (cento sessenta mil) habitantes; g)
21 (vinte e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes e de até
300.000 (trezentos mil) habitantes; h) 23 (vinte e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 300.000 (trezentos
mil) habitantes e de até 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) habitantes; i) 25 (vinte e cinco) Vereadores, nos
Municípios de mais de 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) habitantes e de até 600.000 (seiscentos mil)
habitantes; j) 27 (vinte e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 600.000 (seiscentos mil) habitantes e de
até 750.000 (setecentos cinquenta mil) habitantes; k) 29 (vinte e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de
313
Alega-se que a intervenção do Poder Judiciário na definição de regras jurídicas dá-se
pela indolência do Poder Legislativo em cumprir sua função principal. Tal argumento, que
encontra fácil abrigo em qualquer discurso antidemocrático e também é utilizado para
justificar a atuação legislativa do Poder Executivo, contraria todo o regime representativo.1238
Ao se criticar tal postura, não se faz aqui, no entanto, uma defesa do caráter dos
legisladores e da qualidade de sua representação. Afirma-se, ao contrário, que o
descumprimento do dever de legislar retira a possibilidade de controle social do cumprimento
do mandato do parlamentar, determinante para a configuração de uma república democrática.
A subtração de determinadas matérias do debate político, no entanto, importa igual
afastamento do controle popular, com a tomada de decisão por agentes não eleitos e não
controlados por agentes eleitos.1239
O que não se pode aceitar é uma total judicialização da vida política, como que
considerando que “os tribunais constitucionais e os outros tribunais são a última etapa do
750.000 (setecentos e cinquenta mil) habitantes e de até 900.000 (novecentos mil) habitantes; l) 31 (trinta e um)
Vereadores, nos Municípios de mais de 900.000 (novecentos mil) habitantes e de até 1.050.000 (um milhão e
cinquenta mil) habitantes; m) 33 (trinta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.050.000 (um milhão e
cinquenta mil) habitantes e de até 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) habitantes; n) 35 (trinta e cinco) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) habitantes e de até 1.350.000 (um
milhão e trezentos e cinquenta mil) habitantes; o) 37 (trinta e sete) Vereadores, nos Municípios de 1.350.000 (um
milhão e trezentos e cinquenta mil) habitantes e de até 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes; p) 39
(trinta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) habitantes e de
até 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes; q) 41 (quarenta e um) Vereadores, nos Municípios de
mais de 1.800.000 (um milhão e oitocentos mil) habitantes e de até 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos mil)
habitantes; r) 43 (quarenta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 2.400.000 (dois milhões e quatrocentos
mil) habitantes e de até 3.000.000 (três milhões) de habitantes; s) 45 (quarenta e cinco) Vereadores, nos
Municípios de mais de 3.000.000 (três milhões) de habitantes e de até 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes;
t) 47 (quarenta e sete) Vereadores, nos Municípios de mais de 4.000.000 (quatro milhões) de habitantes e de até
5.000.000 (cinco milhões) de habitantes; u) 49 (quarenta e nove) Vereadores, nos Municípios de mais de
5.000.000 (cinco milhões) de habitantes e de até 6.000.000 (seis milhões) de habitantes; v) 51 (cinquenta e um) Vereadores, nos Municípios de mais de 6.000.000 (seis milhões) de habitantes e de até 7.000.000 (sete milhões)
de habitantes; w) 53 (cinquenta e três) Vereadores, nos Municípios de mais de 7.000.000 (sete milhões) de
habitantes e de até 8.000.000 (oito milhões) de habitantes; e x) 55 (cinquenta e cinco) Vereadores, nos
Municípios de mais de 8.000.000 (oito milhões) de habitantes.” 1238 Vale aqui trazer duas frases de Edmund Burke: “Espero que si es nuestra libertad la que ha debilitado
el ejecutivo no haya un plan de pedir ayuda al despotismo para llenar las deficiencias del derecho”. “Es una
parte no depreciable de la prudencia el saber qué cantidad de mal debe tolerarse para no correr el riesgo, al
intentar conseguir un grado de pureza impracticable en épocas de costumbres degeneradas, de que en vez de
cortar las malas prácticas existentes, se puedan producir nuevas corrupciones para ocultar y asegurar las
antiguas” (BURKE, Edmund. Pensamientos sobre las causas del actual descontento. In:_____. Textos políticos.
Tradução: Vicente Herrero. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1942 [1770], p. 259-293, p. 262-263 e 283). E, ainda, a ressalva de Gilberto Amado: “Convém não esquecer que em política a idéia de perfeição
é uma idéia criminosa que deve ser combatida como um dos maiores males que podem afligir os povos. O que se
deve procurar é um justo equilíbrio, o menor mal entre os males, pois os homens não encontraram ainda o meio
de realizar, na coexistência social, o paraíso terrestre” (AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília:
Senado Federal, 1999 [1931], p. 28-29). 1239 Como ressalta John Hart Ely (ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.
Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. 132 e 134). O autor traz uma citação de Appleby: “[T]aking
things out of politics‟ [means] taking things out of popular control. This is a frequent device of special-interest
groups to effect the transfer of governmental power away from the large public to the special-interest small
publics” (p. 242, n 91).
314
aperfeiçoamento político”, como ressalta José Joaquim Gomes Canotilho.1240
Os legisladores
se deram conta dessa interferência indevida e, por meio de uma norma jurídica,
estabeleceram, de maneira acaciana e conceitualmente equivocada, que a competência do
Tribunal Superior Eleitoral para editar intruções tem caráter regulamentar e não pode
restringir direitos ou estabelecer sanções não previstas em lei. E foi além: impôs a
participação dos partidos.1241
O cuidado do legislador não é excessivo. Vale lembrar o aviso do compadre Paciência,
o ético cidadão da obra de Joaquim Manuel de Macedo: “Estou vendo que mais dia menos dia
querem que se mande arrear o estandarte auriverde, e que se levante no pau do morro do
Castelo uma beca por bandeira nacional!”.1242
1240 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. [Anais de teleconferência]. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de
Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 26. O autor aduz que os
juristas se posicionam nas questões ao lado do legislador, do juiz ou do chefe do Poder Executivo. E afirma: “em
princípio, sou amigo do legislador, porque nele identifico a democracia, o agente conflitual e transformador” (p.
47). Na mesma discussão, Gilberto Bercovici se opõe ao “positivismo jurisprudencial” (expressão que atribui a
Pedro de Vega García), afirmando que “não podemos achar que as soluções serão alcançadas pelo Judiciário,
limitando o Direito Constitucional às decisões judiciais. Não será deixando que o tribunal resolva, já que o
Executivo não quis, ou o Legislativo não quis, que eu acredito que nós vamos resolver ou refletir melhor sobre as
questões constitucionais” (BERCOVICI, Gilberto. [Anais de teleconferência]. In: COUTINHO, Jacinto Nelson
de Miranda (Org). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 78). 1241 A Lei 12.034/09 inclui o artigo 105 da Lei das Eleições, com a seguinte redação: “Art. 105. Até o dia 5
de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir
direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias
para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos
políticos.” 1242 MACEDO, Joaquim Manuel de. A carteira do meu tio. Op. cit., p. 169. Para uma análise sobre a obra
de Joaquim Manuel de Macedo e seu olhar sobre o Império brasileiro, ver LOPES PEREIRA, Luis Fernando.
Joaquim Manuel de Macedo: Uma luneta mágica sobre a cultura político-jurídica do Império. In: FONSECA,
Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (Orgs.). História do Direito em perspectiva: do
Antigo Regime à Modernidade Jurídica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 331-350.
315
CONCLUSÃO
O texto constitucional brasileiro de 1988 permite, a partir de seus dispositivos
sistematicamente compreendidos, identificar cinco princípios estruturantes do Direito
Eleitoral, princípios que, em um sentido jurídico tradicional do termo, devem ser os
balizadores da elaboração e da interpretação das normas jurídicas a eles relacionadas, bem
como critérios de validade das decisões judiciais que lhes tangenciam.
Fez-se nessa pesquisa uma análise das escolhas fundamentais que marcam a
configuração do Estado brasileiro a partir da Carta de 1988. Algumas opções tomadas pelos
constituintes não coincidem, teoricamente, com “o melhor desenho” para as instituições
políticas e para a democracia brasileira. Mas são decisões estruturantes, que impõem o
reconhecimento de sua legitimidade e a observância dos princípios que delas derivam.
Não se propõem alterações nos valores, nos princípios e nas regras da Constituição, ao
menos em relação ao seu texto original. Mesmo a teoria mais frágil do poder constituinte
reconhece a intangibilidade do núcleo fundamental da Carta na sua manifestação originária. O
próprio Supremo Tribunal Federal assim se manifestou, ainda que, posteriormente, tenha
ofendido o texto original da Constituição provocando uma mutação inconstitucional.
Assim, uma alegada incoerência ou “ilogicidade” do sistema eleitoral não pode ser
afastada, seja por atuação do poder de reforma, seja – ainda menos – por uma construção
jurisdicional. Aquele pode um tanto, mas não pode tudo; pode reformar a Constituição em
suas regras, mas não, atingir seus princípios estruturantes, as escolhas fundamentais, sob pena
de substituir o poder constituinte. O Poder Judiciário deve proteger e guardar a Constituição,
não modificá-la, não “aprimorá-la”.1243
Os princípios constitucionais eleitorais se desenvolvem em imposições e proibições ao
legislador, ao magistrado e ao cidadão. O princípio da autenticidade eleitoral pressupõe a
existência de um sistema de verificação de poderes e uma eleição limpa, bem como a previsão
– exclusivamente pela Constituição – de condições de elegibilidade e, somente em lei
complementar, de hipóteses de inelegibilidade. A liberdade para o exercício do mandato,
decorrente da noção de representação política, impede instruções aos representantes, seja pelo
eleitorado, seja pelo partido político. Não permite, ainda, a perda de mandato por infidelidade
partidária, no contexto específico da Constituição brasileira vigente.
1243 Vale ressaltar: “O que desarranja um sistema político democrático é precisamente aquilo que o
transcende, dificilmente o que o põe em funcionamento” (SANTOS, Wanderley Guilherme. Governabilidade e
democracia natural. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 151).
316
O sistema eleitoral proporcional brasileiro é adequado ao princípio constitucional da
necessária participação das minorias no debate público e nas instituições políticas, pois
possibilita o direito de oposição e a formação plural dos Parlamentos. Sua substituição por um
sistema majoritário é francamente inconstitucional, bem como sua mitigação por uma cláusula
de desempenho e por uma distribuição desarrazoadamente desigual do fundo partidário e do
direito de antena. Derivação direta do princípio republicano, a máxima igualdade na disputa
eleitoral – também princípio constitucional estruturante do Direito Eleitoral – leva a um
controle da propaganda, da atuação dos agentes públicos e do financiamento de campanhas e,
ainda, impõe uma coibição efetiva dos abusos no período eleitoral.
Finalmente, o princípio da legalidade reveste-se de características específicas no
âmbito eleitoral. Não há espaço para a regulamentação para além da arena parlamentar,
constituída conforme a noção de democracia deliberativa da Constituição de 1988. Não há
amparo constitucional para as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral para além das
instruções, devidamente compreendidas. E as normas jurídicas eleitorais, todas elas, devem
obediência ao princípio da anterioridade constitucional eleitoral.
A leitura dos princípios estruturantes do Direito Eleitoral sob as lentes da Constituição
pode apontar algumas aparentes contradições. Como combinar o princípio da liberdade para o
exercício do mandato com a imposição da composição proporcional das casas legislativas e
com a distribuição das cadeiras aos partidos políticos, é um exercício para o legislador,
sempre nos limites delineados pelos princípios, sem que ao Poder Judiciário caiba afastar um
dos princípios em nome do outro.
Ao Poder Judiciário cabe realizar a Constituição, outorgá-la efetividade, para que ela
funcione “de boa-fé”.1244
E aos juristas, mais ainda no campo eleitoral onde raream, impõe-se
a tarefa de lutar pela preservação dos princípios constitucionais, pela segurança jurídica, pela
certeza das regras do jogo, pela democracia e pela República.
1244 CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: Princípios políticos aplicáveis a todos os
governos representativos e particularmente à Constituição atual da França. Tradução: Maria do Céu Carvalho.
Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989 [1815], p. 136.
317
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