\UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
MESTRADO EM EDUCAO
UMA CARTOGRAFIA DA PRODUO DO RACISMO NO
CURRCULO VIVIDO NO COTIDIANO ESCOLAR DO ENSINO
FUNDAMENTAL
SANDRA MARIA MACHADO
VITRIA/ES 2011
SANDRA MARIA MACHADO
UMA CARTOGRAFIA DA PRODUO DO RACISMO NO CURRCULO VIVIDO
NO COTIDIANO ESCOLAR DO ENSINO FUNDAMENTAL
Trabalho dissertativo apresentado como requisito final obteno do Ttulo de Mestre em Educao pelo Programa de Ps-Graduao em Educao PPGE-UFES, na Linha de Pesquisa Currculo Cultura e Formao de Educadores.
Orientadora: Professora Doutora Janete Magalhes Carvalho.
VITRIA
2011
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Machado, Sandra Maria, 1965- M149c Uma cartografia da produo do racismo no currculo vivido
no cotidiano escolar do ensino fundamental / Sandra Maria Machado. 2011.
185 f. : il. Orientador: Janete Magalhes Carvalho. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade
Federal do Esprito Santo, Centro de Educao. 1. Histria. 2. Escravido. 3. Racismo. 4. Currculos. I.
Carvalho, Janete Magalhes, 1945- II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Educao. III. Ttulo.
CDU: 37
s Minhas MES JOANAS:
Joana da Conceio Machado (in memorian), minha av paterna a quem serei eternamente grata por ter me ensinado, na prtica, a importncia do carinho e cuidado no meu processo de subjetivao.
Joana Carlesso Braz, amiga a quem agradeo, entre muitas outras tantas coisas, a oportunidade de ter ingressado no magistrio, quando apostou em mim e abriu todas as portas, sem que eu tivesse nenhuma experincia no sentido profissional, e tambm no pessoal quando me acolheu, desde o final da minha adolescncia.
AGRADECIMENTOS
No consigo passar por momentos importantes na minha trajetria de vida sem
lembrar-me de pessoas a partir das quais me constitu, sem mencionar aquelas as
quais julgo de muitssima importncia, as que se deixaram marcar e que tambm me
fizeram marcar, de uma forma ou de outra. Este trabalho amplia mais um captulo da
minha histria e, consequentemente, as pessoas que acompanharam neste
processo, de uma forma especial a escreveram comigo. Citarei apenas algumas das
muitas que, de forma explcita e implcita, me empurraram em direo vida, nesta e
em outras caminhadas que espero no terminar aqui.
Amiga e companheira de muitos anos, torcedora fiel e maior, Sandra Maria
Zambaldi, pela presena, cuidado, carinho, amor, pelo exemplo de f, persistncia e
compreenso irrestrita com relao aos vrios acontecimentos do nosso cotidiano e
apoio, principalmente nos dois ltimos anos da nossa vida em comum.
Marluce Leila Simes Lopes, que conheci em agosto de 2007, que me faz
acreditar na possibilidade de retorno vida, ameaada, na poca, por um problema
de sade, hoje superado. Ao incentivo para que eu certificasse os conhecimentos
adquiridos atravs da autoformao sobre as questes relacionadas cultura
afrobrasileira. Por se permitir fugir de sua vida pessoal e de sua pesquisa j
iniciada, para que pudssemos discutir sobre a importncia da temtica para a
formao de professores, que resultou no projeto inicial dessa pesquisa.
minha me, Santa Glria Reali, pelas ausncias e presenas, marcantes nos
momentos mais diversos e que me fizeram entender que presena, nem sempre
estar perto fisicamente, da mesma forma que ausncia no simplesmente estar
longe.
Minha querida Tia Dalva Reali por ter sido presente em momentos decisivos da
minha vida.
Professora Doutora Janete Magalhes Carvalho, com quem propiciei o prazer do
primeiro, de muitos bons encontros no momento da entrevista para seleo do
curso de Mestrado, em 2008, a quem aprendi a admirar pela inteligncia, pacincia,
dinamismo, coerncia, serenidade, carinho e outros tantos adjetivos sinnimos a
esses. Por ter me feito ver/sentir a Filosofia com olhos de que enxerga o invisvel.
Ao Professor Dr. Carlos Eduardo Ferrao, pelo companheirismo irrestrito e
cumplicidade em momentos decisivos durante curso e pela garra com que se coloca
diante da vida.
Professora Doutora Regina Helena S. Simes, pelo prazer que me proporcionou
em todos os momentos em que pude ouvi-la, durante suas aulas, e nos momentos
informais nos corredores do PPGE.
Professora Doutora Maria Aparecida Santos Corra Barreto, mulher guerreira a
quem admiro, desde quando ainda no a conhecia mais de perto, por representar
to bem o povo negro capixaba. Obrigada por gentilmente aceitar fazer parte desta
avaliao.
Professora Dr. Nanci Helena Rebouas Franco, pelo carinho e entusiasmo com o
qual inicialmente aceitou fazer parte da banca de defesa deste trabalho e,
posteriormente, pela responsabilidade, leitura atenta e elaborao de um parecer
cuidadoso e entusiasmado sobre o mesmo.
Famlia Zambaldi, em especial aos membros que me tm mais de perto: Djanira,
Graa, Jamile, Rayane, Maria Aparecida, Luis Neto e Rodrigo, pelo carinho, afeto e
torcida incondicional.
Maria da Penha Stefanelli Carlesso, a quem poderia eu chamar de av, me e
amiga, pelo carinho, cuidado dispensado a mim, durante todo o tempo em que
estivemos prximas. Estendo meus agradecimentos, nesse mesmo sentido, a
Aguimar Brz, Geovana e Guilherme Carlesso Brz pelo apoio incondicional.
s amigas Jenilza Spinass Morellato e Ironilda Rangel pelo apoio, torcida, carinho,
afeto, parceria e ouvido atento aos desabafos, quando as presses emocionais
pareciam insuportveis. Obrigada pela presena constante. Nesse item, incluo,
tambm, os amigos Srgio Pereira dos Santos e Geisa Hupp Lacerda.
Aos colegas e amigos da Escola Esperana do Rio Francs, com os quais estudei
as primeiras sries do Ensino Fundamental, principalmente Margarida Vergna
Bosi, minha eterna amiga, cuja existncia me ajudou superar a frustrao de no ter
podido estudar no perodo compreendido entre os meus 10 e 15 anos de idade.
Escola Resistncia, na representao de todo seu corpo tcnico e administrativo,
pelo espao cedido para a realizao da pesquisa e aos estudantes com os quais
pude compartilhar momentos de frustraes e alegrias, durante nossos encontros.
Patrcia Gomes Rufino Andrade, pelo companheirismo demonstrado em
sondagens, em que somos submetidos ao caminhar em direo a novos e
potentes encontros.
s Secretarias Municipais de Educao de Joo Neiva e de Aracruz pela liberao
sem prejuzos de vencimentos durante o perodo necessrio para a concluso do
curso que agora termina.
Aos colegas da turma 23, pela convivncia respeitosa e amigvel durante o tempo
em que permanecemos juntos, em especial, os especiais que, sem cit-los, sabem
de quem falo.
CEAFRO de Aracruz, em todas as suas constituies, por ter me feito ampliar os
horizontes em direo s questes raciais, onde conheci pessoas que me fizeram
estimulavam caminhar em busca de novas possibilidades, nem por isso, livre de
frustraes e angstias, que as questes raciais despertam naqueles que trabalham
com tal temtica.
Vera Lcia Vicente, que fez parte da minha vida em momentos cruciais e decisivos
para minha formao acadmica, mesmo que no nos encontremos fisicamente com
frequncia, sua presena na minha vida.
Aos companheiros, Gustavo Henrique Forde, Luis Carlos Oliveira, Yasmim
Poltronieri Neves, obrigada pela torcida e incentivo durante pesquisa.
secretaria do PPGE, em especial Maria Inez Rozalem Capaz, pela simpatia,
ateno, dinamismo e humanizao com que executa suas funes.
A todos aqueles que no aparecem, os invisveis, que de alguma forma
colaboraram nas aes simples, mas que, sem elas, a elaborao desse trabalho
no seria possvel.
V buscar seu povo. Ame-o
Aprenda com ele Comece com aquilo que ele sabe
Construa sobre aquilo que ele tem. (KWAMW NKRUMAH)
RESUMO
Esta pesquisa caracteriza-se em um estudo sobre os processos de perpetuao do
racismo no Brasil e suas formas de atualizao, entre e para com os estudantes das
sries iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pblica localizada na regio da
Grande So Pedro, municpio de Vitria, ES. A pesquisa objetivou buscar, na
cartografia da histria oficial, as marcas deixadas pela escravido e como elas se
atualizam nos fluxos do cotidiano escolar. Buscou tambm problematizar as prticas
de educadores em relao a posturas caracterizadas como racistas que, de acordo
com inmeras pesquisas, acontecem constantemente no cotidiano escolar; como a
escola prope, caso proponha, a ressignificao dos saberes construdos e/ou
adquiridos durante a formao dos professores; de que forma o Continente frica
representado no currculo praticado na escola e o que prope o Projeto Poltico
Pedaggico da instituio sobre a temtica em questo. A proposta metodolgica
desta pesquisa partiu dos conceitos de cartografia defendidos por Rolnik (1989),
Kastrup (2007) e outros. Os intercessores tericos pra discutir os poderes e saberes
no cotidiano escolar e para alm dele foram Certeau (1994, 1995), Carvalho (2007,
2008 e 2009), Ferrao (2004 e 2007), Sousa Santos (2002, 2006 e 2008), Santos
(2002) e outros. Para os Estudos Culturais, recorremos aos aportes tericos,
Canclini (2008), Hall (2006 e 2008), Gomes (2002, 2003, 2005 e 2008) e outros. A
anlise histrica, no que se refere questo de raa e racismo no Brasil, nos
baseamos em Guimares (1999 e 2002), Munanga (1989, 2000, 2006, 2008 e
2009), Hasenbalg (2005), Moore (2005, 2007 e 2008) Schwarcz (1997, 2006 e 2007)
e outros. Conclui que as discusses sobre a questo racial no espao escolar
comeam a aparecer, porm, ainda de forma truncada e incipiente.
Palavras-Chave: Histria. Escravido. Racismo. Currculo.
ABSTRACT
This research is characterized in a study about the processes of perpetuation of
racism in Brazil and its ways to be up to date, from and to students of early grades of
elementary school in a public school located in the region of Grande So Pedro, in
the city of Vitria, ES. The survey aimed to gather in the official history of
cartography, the marks left by slavery and how they are updated in the flow of
quotidian of school. Also searched to problemize educators performances related to
stances characterized as racist that, according to numerous studies, are constantly
taking place in school life; how the school proposes, if it does, the resignification of
the knowledge which were built and/or acquired during the teachers formation; how
the African continent is represented into the curriculum practiced in schools and what
the Political Pedagogical Project from the institution proposes about the topic in
question. The methodology proposal of this research came from mapping concepts
of cartography advocated by Rolnik (1989), Kastrup (2007) and others. Intercessors
theorists to discuss the power and knowledge in school life and beyond were Certeau
(1994, 1995), Carvalho (2007, 2008 and 2009), Ferrao (2004 and 2007), Sousa
Santos (2002, 2006 and 2008), Santos (2002) and others. For the cultural studies we
used the theoretical framework, Canclini (2008), Hall (2006 and 2008), Gomes (2002,
(2003, 2005 and 2008) and others. The historical analysis, referring to race and
racism, we based on Guimares (1999 and 2002), Munanga (1989, 2000, 2008 and
2009), Hasenbalg (2005), Moore (2005, 2007 and 2008), Schwarcz (1997, 2006 and
2007) and others. Concludes that discussions about race in the school begin to
appear, but in a truncated and nascent way, requiring investments, mainly in teacher
formation.
Key Words: History. Slavery. Racism. Curriculum.
LISTA DE SIGLAS
ACPV Associao de Catadores de Papel de Vitria.
CE - Centro de Educao.
CEAFRO - Comisso de Estudos sobre a Cultura Afro-brasileira.
CECUN - Centro de Estudos da Cultura Negra.
CF - Constituio Federal.
CNE - Conselho Nacional da Educao.
CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa.
CST - Companhia Siderrgica de Tubaro.
EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental.
EMEI - Escola Municipal de Educao Infantil.
ERER - Educao para as Relaes Etnicorraciais.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.
IDEB - ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica.
IFES - Instituto Federal do Esprito Santo.
IML - Instituto Mdico Legal.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Ansio Teixeira.
MN - Movimento Negro.
NEAB - Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros.
ONU - Organizao das Naes Unidas.
PNIDCNs-ERER Plano Nacional para Implementao das diretrizes Curriculares
para a Educao das relaes Etnicorraciais.
PPGE - Programa de Ps-Graduao em Educao.
PPP - Projeto Poltico Pedaggico.
PT- Partido dos Trabalhadores.
SECAD - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade.
SENENAE - Seminrio Nacional de Entidades Negras na Educao.
SEPPIR - Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial.
SIS - Segundo a Sntese de Indicadores Sociais.
TDI - Transtorno Desintegrativo da Infncia.
TEM - Teatro Experimental do Negro.
TGD - Transtornos Globais do Desenvolvimento.
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
UFES - Universidade Federal do Esprito Santo.
UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura.
UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia.
UNIS - Unidade de Reintegrao Socioeducativa.
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................... 17
1 PRIMEIROS PASSOS: CAMINHOS ANTERIORES PESQUISA..................20
1.1 Primeiros caminhos em direo a muitos encontros ........................... 20
1.2 Iniciando a conversa! Lembranas de infncia .................................... 21 1.3 Mas o que isso tem a ver com o que escrevo? ..................................... 23 1.4 Sobre a questo racial, o que ficou? ..................................................... 25 1.5 Em famlia ................................................................................................. 28 1.6 Retorno ao ambiente escolar ................................................................. 28
2 FRICA/BRASIL .............................................................................. 32 2.1 frica/Brasil: que relao essa? ......................................................... 32 2.2 As relaes frica/Brasil sob o olhar da escola ................................... 33 2.3 Escravizao de pessoas oriundas do Continente Africano no
Brasil ......................................................................................................... 34
2.3.1 Escravizando .................................................................................. 36 2.4 A negao da resistncia negra: Resistncia no Pr-abolio ........... 39
2.4.1 Armas silenciosas.. ......................................................................... 44
2.4.2 Armas coletivas ............................................................................... 45
2.4.3 Armas de papel ............................................................................... 47 2.5 Resistncias no Estado do Esprito Santo ............................................ 48
2.6 Resistncia no Ps-abolio .................................................................. 55
2.7 frica sob novos olhares ........................................................................ 58
3 RACISMOS: FATOS E CONTEXTOS .............................................................. 61
3.1 Raa-Racismo: entre ditos e escritos sobre as relaes raciais no
Brasil ............................................................................................................... 61
3.2 Racismo musicado e sob a forma de entretenimento .......................... 70
3.3 Racismo em forma de homenagem: boa inteno? ............................. 77
4 HORIZONTE RACIAL ..................................................................................... 80
4.1 Nunca antes na Histria deste pas ................................................... 80
5 ENTENDENDO O SENTIDO DA PESQUISA ................................................. 88
5.1 Contexto da pesquisa: entre a riqueza do mar e a pobreza do
rtulo .............................................................................................................. 90
5.2 Escola Pesquisada.................................................................................. 95
5.3 Caracterizao da pesquisa ................................................................... 97
5.3.1 Ensaiando a entrada em campo ..................................................... 99
5.3.2 Nossos primeiros encontros ........................................................... 100
5.3.3 Primeiras impresses ..................................................................... 104
5.3.4 Ainda com as mesmas impresses ................................................ 105
6 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 135
REFERNCIAS .................................................................................................... 140
ANEXOS ............................................................................................. 149
17
INTRODUO
A elaborao de um trabalho dissertativo, por si s, j se constitui uma tarefa um
tanto complexa. Se o tema for relacionado questo racial, a complexidade
aumenta consideravelmente. Em funo de vivermos em uma sociedade construda
sob o mito da democracia racial, o racismo negado de forma acintosa.
Conseguimos facilmente identificar um racista, mas temos dificuldades em nos ver
como tal.
As formas com que a sociedade brasileira lida com as questes raciais impedem
que se estabelea um dilogo tranquilo sobre a questo. Quando aparece,
acidentalmente, na pauta de discusso, geralmente tem sido tratadas na forma de
negao, o que indica uma falta de seriedade. No raramente aparece na forma de
humor, que acabam colaborando para sua banalizao.
A banalizao do racismo visa criar a impresso de que tudo anda bem na sociedade, imprimindo um carter banal s distores socioeconmicas entre as populaes de diferentes raas. Os que acreditam no contrrio podem ser julgados revoltosos, inconformados e, at mesmo, racistas s avessas. Contra estes, a boa sociedade estaria legitimada a organizar vigorosas aes de represso. Essa expanso e aceitao do racismo conduzem, inexoravelmente, sua banalizao. (MOORE, 2007, p. 29).
Os estudos elaborados sobre a questo racial na escola, entendida como uma
instituio onde se aprende e se compartilha, no apenas os saberes formais, mas
tambm valores crenas e hbitos, assim como preconceitos raciais, de gnero,
idade, entre outros, de acordo com Gomes (2008), tm aumentado e se tornado
recorrentes.
At meados da dcada de 1990 no havia discusses significativas, de grandes
repercusses sobre a questo racial no Brasil. Negros e indgenas eram
representados apenas pelo vis das imagens caricaturadas e folclorizadas, trazidas
nos livros de Histria e Literaturas, geralmente reduzidas poucas linhas, notas
nada explicativas de rodap, nem sempre enxergadas e lidas pelos professores
das referidas disciplinas.
18
difcil reconhecer que os problemas relacionados rejeio do outro em funo da
cor da pele, entendido aqui como racismo, no se constitui em problema apenas
para aqueles a quem o racismo direcionado, mas, tambm, para toda sociedade
como um todo. Embora j existam muitos trabalhos sobre essa questo, ainda
existem lacunas severas que do escola a possibilidade de alegar que no
trabalham a questo, ora porque no percebem essa prtica na escola, ora porque
no possuem conhecimentos bastantes para discutir a questo de forma eficiente.
Tais argumentos, no raramente geram uma espcie de campo de foras
antagnicas que causam constrangimentos, embates e tenses, assim, julgamos
necessrio que se ampliem as discusses sobre tal tema.
Neste trabalho desenvolvido com os atores da Escola Resistncia1, localizada na
regio da Grande So Pedro, municpio de Vitria, ES, h relatos produzidos por
alunos e professores sobre a problematizao das redes dos saberes-fazeres-
poderes praticados na escola. Tais relatos revelam s questes de natureza racista
que acontecem no cotidiano escolar.
A proposta metodolgica desta pesquisa foi baseada nos conceitos de cartografia
defendidos por Rolnik (1989), Kastrup (2002 e 2007) e outros. Para anlise histrica,
no que se refere questo de raa e racismo no Brasil, nos baseamos em
Guimares (1999 e 2002), Munanga (1989, 2000, 2006, 2008 e 2009), Hasenbalg
(2005), Moore (2005, 2007, 2008), Schwarcz (1997, 2006, 2007) e outros.
No primeiro captulo, trouxemos uma narrativa de experincias pessoais baseadas
nos encontros com situaes de contatos diretos e indiretos, envolvendo questes
raciais na escola Esperana, na fase inicial do Ensino Fundamental, bem como nos
demais nveis e modalidades de ensino em que atuamos desde a dcada de 70.
Inicialmente como aluna e, posteriormente, a partir de 1991, como professora, at
2008, quando iniciamos a elaborao do projeto de trabalho que agora se encerra
com esse trabalho dissertativo.
No captulo dois, estabelecemos uma discusso sobre as relaes entre o Brasil a o
Continente Africano, desde a chegada dos povos trazidos para o Brasil, enfatizando
1 Nome fictcio alusivo histria do bairro onde a mesma est localizada.
19
os modos da escravizao a que tais povos foram submetidos, a hostilidade, o
compadrio, as relaes entre senhores e escravizados, as resistncias nas suas
mais variadas formas e contextos.
No captulo trs, enfatizamos as formas do racismo a que os descendentes de
escravizados com caractersticas fenotpicas que os identificam como tal, foram e
ainda so os mais discriminados entre os discriminados nos mais diversos espaos
da sociedade, com nfase na mdia televisiva e escrita.
No captulo quatro, colocamos em destaque as polticas pblicas na forma de leis e
demais componentes jurdicos aprovados na ltima dcada, com o objetivo de
diminuir tenses acerca das questes raciais, bem como o surgimento de formas de
resistncias s aes racistas.
No captulo cinco, trouxemos de forma mais detalhada o contexto da pesquisa, bem
como os relatos sobre os afetados pelo racismo de forma direta ou indireta, os
espaos pesquisados, as impresses sobre o ambiente pesquisado. Os modos
como o racismo se apresenta, a deficincia na formao de educadores para o trato
com as questes raciais, que tem colaborado para no efetivao de prticas
antirracistas.
Para Romo (2001), os educadores no foram preparados para trabalhar com a
diversidade. Por isso, tendem a padronizar o comportamento aprendente de seus
alunos de modo singular, baseado no eurocentrismo, concluindo que as crianas
negras no acompanham os contedos, pois so defasadas econmica e
culturalmente e, portanto, relaxadas e desinteressadas. Esses pensamentos,
apoiados em esteretipos raciais e culturais disseminados na/pela sociedade,
infelizmente resultam na evaso escolar.
20
1 PRIMEIROS PASSOS: CAMINHOS ANTERIORES PESQUISA
1.1 Primeiros caminhos em direo a muitos encontros
Sem memria, no somos nada; com memria, podemos nos tornar sujeitos localizados em um espao/tempo, sendo capazes de assumir uma atitude crtica diante da realidade.
(IGUATEMI RANGEL, 2009).
Ao construir esta dissertao me deparei2 com uma questo um tanto complexa.
No era possvel iniciar uma fala sobre a questo racial3, sem antes retornar ao que
me move, ao que me afeta com relao a este assunto. Mas como iniciar um
assunto to complexo, sem tornar a escrita complexa tanto em significado quanto o
discurso da camisa de fora que tem se tornado a questo racial no nosso tempo?
Depois da qualificao, tive a certeza da necessidade do contar de mim, de falar um
pouco da minha histria, para dizer o que me fez/faz caminhar em direo ao tema
proposto para este trabalho. Isso ficou evidente no momento em os membros da
banca4 me perguntam: Do onde falo? Como me constituo? Quais a vivncias que me
autorizam a dissertar sobre o tema em questo?
Obviamente este trabalho no pretende ser um texto autobiogrfico, entretanto,
alguns dos fatos narrados aqui trazem memrias de minha trajetria pessoal que,
embora colocados em um tempo verbal chamado passado, ainda se fazem
presentes em outras histrias, outras crianas, outras adolescncias, outros espaos
geogrficos, que, mesmo distantes, ainda se entrecruzam como se fossem um
constante dj vu5. Tais fatos talvez possam dar uma ideia do quanto somos
2Nessa parte do texto usarei o verbo na 1 pessoa do singular, uma vez que falo de como me
constitu. 3 Em funo de esse trabalho dissertativo ter enfoque racial, no decorrer do mesmo, farei meno aos
quesitos raa/cor de alguns sujeitos envolvidos. 4 Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferrao, a Prof Dr Maria Aparecida Santos Barreto, a Prof Dr Regina
Helena Silva Simes. 5 Expresso francesa que significa j visto, sensao intensa de j ter vivido no passado a situao
atual, com a mesma intensidade afetiva.
21
afetados pelas histrias de vida e o quanto somos influenciados, na fase adulta,
pelas nossas histrias e memrias de infncia.
1.2 Iniciando a conversa! Lembranas de infncia
Minhas lembranas/memrias ou contos revisitados comeam com os momentos de
cuidados do meu av paterno para comigo. Eu tinha aproximadamente cinco anos
quando sofri um acidente domstico. Ao falar ou, neste caso, escrever sobre isso,
viajo no tempo. Parece que ainda me vejo sobre seu colo, cheio de carinho,
cuidados e afetos, lembro-me dos detalhes. como se aqueles momentos tivessem
ficado pausados e/ou congelados na minha mente, esperando apenas o play. Talvez
tenha iniciado aqui meus primeiros encontros, os maus encontros6, pela dor
resultante do acidente que me impediam de andar, correr, tomar banho no rio sob os
cuidados de minha, tambm extremamente carinhosa, av, e os bons encontros, os
carinhos e o cuidado com que fui acolhida por meu av.
A fisionomia de meu av era sempre serena. Um indgena de cabelos brancos,
deficiente visual, que conhecia como poucos, os lugares por onde andava. Sua
orientao espacial era completada com o auxlio de uma bengala, cujo apoio para a
mo ele mesmo havia moldado com um canivete, com qual tambm cortava o fumo
de rolo para os seus cigarros de palha e tambm fazia trabalhos manuais.
Mesmo com as limitaes impostas pela perda visual, conseguia fazer vrias tarefas
domsticas, inclusive aquelas consideradas complexas, entre elas, cuidar de mim.
Faleceu, antes de eu ter completado seis anos. Certamente essa foi a primeira
separao da qual tenho lembrana.
O que me fez ser criada por meus avs paternos, foi o fato de ser filha de uma
adolescente branca, solteira, que engravidara de um jovem negro, com o qual no
tinha um namoro assumido. Se hoje, ser me solteira, embora nos deparemos com
muitos casos, ainda um fato um tanto complexo, imaginem na metade da dcada
6 Utilizo aqui a ideia de bom e mau encontro de Espinosa, usado frequentemente por minha
Orientadora, Prof Dr Janete Magalhes Carvalho, em suas aulas.
22
de mil novecentos e sessenta! Meu av materno, descendente direto de italianos,
embora casado oficialmente com minha av materna, uma mulher negra, era
altamente preconceituoso, nesse caso, racista. Essa palavra no era conhecida
naquele tempo, mas seus efeitos j eram sentidos por mim. Em funo da no
aceitao do relacionamento de minha me com meu pai, pelo meu av paterno, ele
no facilitava em nada a vida de minha me. Essas, entre outras razes, fizeram
com que minha me biolgica deixasse-me sob os cuidados de meus avs paternos.
Durante muito tempo, o fato de no ter sido criada pela me, me incomodava
bastante. Na poca, no era comum uma criana de pais vivos no ser criada pelos
mesmos. Isso fazia de mim uma exceo entre as crianas da minha idade. Era uma
espcie de incmodo, principalmente, quando meus primos e primas, muitos da
minha idade, me chamavam de filha de ningum. Alguns deles chegavam a
reproduzir os comentrios que eram feitos pelos seus pais em desaprovao
gravidez de minha me, como se ela fosse um espcie de mau exemplo para as
meninas da famlia.
O fato de ela me ter abandonado suscitou em mim uma espcie de rejeio em
relao a ela. Lembro-me que, em alguns momentos, chegava a me esconder
quando ela ia me visitar. Mais tarde compreendi que, se ela quisesse realmente se
livrar de mim, teria me doado a qualquer pessoa, e no exatamente minha av
paterna, que cuidou de mim com altas doses de zelo, carinho, cuidado e proteo.
Junto a minha av, morava tambm meu pai. Fui criada como uma espcie de irm
caula dele. Nesse contexto, fui educada por minha av, em parceria, mas sem
muita interferncia de meu pai, pois ele se comportava como irmo mais velho e
nunca com autoridade paterna. Penso que cuidar de mim talvez tenha sido uma
tarefa das mais importantes para minha av. Devido ao carinho com que recebia os
netos, era chamada de Me Joana7. Pelo carinho e proteo com os quais me
cobria, em muitos momentos, sentia-me a pessoa mais importante do mundo. Penso
que, para ela, eu realmente me tornei essa pessoa porque, depois da morte de meu
av, ela praticamente abandonou todas as tarefas da roa para cuidar de mim.
7Embora a expresso casa de Me Joana, significa lugar de desordem, casa sem respeito,
prostbulo, lugar onde impera toda a confuso e falta de respeito. Minha casa de Me Joana, naquelas circunstncias era o lugar perfeito, o maior significado de amor, carinho, afeto e cuidado.
23
1.3 Mas o que isso tem a ver com o que escrevo?
Estes relatos dizem que minha origem como a da maioria dos brasileiros,
descendentes de europeus, indgenas e africanos. No meu caso, as caractersticas
fenotpicas so predominantemente negras, com famlia desestruturada, como a
maioria das crianas de escolas pblicas, com as quais trabalho e realizo esta.
No meu contexto de criao, a infncia se d num vilarejo chamado Rio Francs8
constitudo por poucas famlias. Dois fatos interessantes tornavam aquele vilarejo
um lugar um tanto diferente. O primeiro era a existncia de um rio que separava os
terrenos, onde as famlias que moravam de um lado tinham uma viso ampla dos
terreiros9 das casas de quem residia no lado oposto ao rio. De uma forma geral,
todos os moradores se conheciam, tinham uma relao amistosa e muitos podiam
visualizar o que se passava no terreiro do outro, j que no existiam matas s
margens do rio, que ficava numa espcie de vale, mesmo sem a existncia de
montanhas.
No vilarejo, era comum a existncia de moradores temporrios, que trabalhavam na
produo do carvo vegetal, geralmente negros, chamados de carvoeiros. O outro
fator que fazia o lugar ser nico era tambm a existncia de duas igrejas catlicas.
Uma tinha como padroeiro So Benedito, conhecida na redondeza como Igreja dos
Pretos, a outra tinha como padroeira Nossa Senhora da Penha, conhecida como
Igreja dos Branco.
As construes datavam praticamente da mesma poca. Embora as igrejas fossem
conhecidas como Igreja dos brancos e Igreja dos pretos, no havia uma proibio
explcita quanto frequncia de negros igreja dos brancos, e vice versa, a no ser
pelos olhares atravessados que, nessa poca, no eram muito bem entendidos por
mim, uma vez que no conhecia o conceito de racismo, embora nem por isso tenha
me livrado de seus efeitos.
A igreja dos pretos era frequentada quase que exclusivamente pelos membros da
8Vilarejo tambm conhecido como Crrego Francs, situado no municpio de Aracruz, interior do
Esprito Santo a aproximadamente 120 km da capital, Vitria. 9O que conhecemos hoje como quintal.
24
famlia de seu construtor e por algumas famlias de carvoeiros10, que se dividiam
entre a igreja dos pretos e uma igreja evanglica11. Minha av paterna era um tipo
religioso um tanto curioso. Era catlica, se tornou evanglica e nunca deixou de
fazer as oraes da igreja catlica. Eu ficava meio perdida no meio disso tudo.
Como a maioria das crianas de famlias evanglicas, no sabia ao certo se rezava
ou orava. Mas qual a diferena entre rezar e orar? Na poca, o que sabamos era
que os catlicos rezavam e os evanglicos oravam. E a, o que fazer? No se podia
orar na escola!
A escola do lugarejo era o espao de todas as crianas: brancas, negras,
indgenas12, fossem elas filhas de proprietrios de terras, meeiros, carvoeiros,
catlicos e evanglicos, convictos ou no. Era regra rezar antes do incio das aulas,
mas nem todas as crianas rezavam, umas porque ainda no haviam decorado as
rezas, outras porque no queriam mesmo. Quando uma criana no rezava junto
com a professora, era ironizada por ela com olhares e/ou frases que davam a
entender s outras crianas que aquela que no rezava havia mudado de religio.
Algumas frases ficaram marcadas. Pelo fato de nunca ter decoradas as rezas da
igreja catlica, como a maioria das crianas, por vrias vezes ouvi: Vai ver que virou
crentinha tambm! ou Esse povinho que muda de religio j sabe pra onde vai!
Para aquele lugar que bom nem falar. O j sabe para onde vai soava como uma
espcie de condenao. O inferno era um lugar to mal falado que ningum se
sentia muito vontade quando a palavra era pronunciada. Hoje percebo que foi
naquela poca que me deparei pela primeira vez com algumas prticas que
atestavam preconceito e ou intolerncia religiosa. Na poca ainda no conhecia
este conceito, portanto essa conscincia inexistia em mim. Eu ainda acreditava em
inferno, graas aos causos contados por nossos parentes mais velhos, aqueles que
10
Famlias, quase sempre negras, contratadas para trabalhar no desmatamento e na produo de carvo. 11
Igreja Evanglica Assembleia de Deus, construda sob a influncia da minha av materna, senhora negra, uma das poucas mulheres, na regio que possuam um vasto conhecimento sobre a Bblia e uma excelente oratria. 12
Na poca, o termo indgena no era utilizado. Os descendentes de indgenas eram chamados ou conhecidos como caboclos.
25
poderamos comparar aos Griots13. Esses causos eram contados em noites em que
a lua cheia iluminava os terreiros e nos reunamos para ouvir as histrias que os
mais velhos contavam. Grande parte das histrias contadas era relacionada
existncia de assombraes.
Acredito que as primeiras sries do Ensino Fundamental talvez tenha sido a poca
mais frtil no que refere s memrias que marcaram meu processo de subjetivao,
tanto na escola entre os colegas, quanto em casa com a famlia. As lembranas da
infncia sempre estiveram guardadas numa espcie de arquivo, apenas esperando
o apertar do play para, ento serem atualizadas, tomarem forma, preencherem
todo o espao possvel e revelarem imagens ntidas como se estivessem
acontecendo no presente.
1.4 Sobre a questo racial, o que ficou?
No ambiente diverso da escola, como citado anteriormente, proporcionalmente havia
brancos em nmero maior, negros em quantidade menor e indgenas numa
quantidade bem menor. Ao todo, ao longo dos anos das sries iniciais, conheci
apenas cinco crianas indgenas.
No havia crianas em idade escolar fora da escola, entretanto, estar na escola,
assim como hoje, no significava necessariamente ser alfabetizado. Muitos
estudantes ficavam anos na mesma srie e, no raramente, eram ridicularizados em
funo disso. Esses estudantes quando evadiam, j estavam em idade incompatvel
com a srie que deveriam estar cursando. Para eles, j no precisavam mais ir
escola, uma vez que tinham aprendido a desenhar o nome. Em alguns casos, era o
nico conjunto de letras que reconheciam.
Entre os estudantes que ficavam reprovados, destacavam-se os negros. Muitos
deles eram conhecidos fora da escola apenas pelos apelidos, geralmente
associados cor da pele. Os apelidos quase sempre se referiam aos seres que nos
13
Os GRIOTS, na cultura africana so contadores de histrias, lendas. So tambm responsveis pela transmisso dos valores civilizatrios de seus povos. So reverenciados e considerados as pessoas mais importantes das famlias e das comunidades onde habitam.
26
rodeavam, fossem eles animados ou inanimados. A fauna e o folclore eram
invocados com veemncia. Da fauna, os bichos mais lembrados eram formiga
cabeuda, jacu, macaco, galinha de macumba, tiziu, jacupemba14, urubu e todos os
demais elementos conhecidos que tivessem penas, plos, couraas e ou carapaas
enegrecidos. Do folclore, os personagens mais homenageados eram me dgua,
mula sem cabea, saci perer e chico boneco15, entre outros. Os objetos inanimados
utilizados com a mesma finalidade eram toco de grana, cerne de jacarand, carvo,
cmara de ar, pneu. A lista continuava e a criatividade nesse sentido no tinha
limites.
As meninas evanglicas que usavam cabelo enrolado em forma de coque eram
frequentemente chamadas de rolo de fumo. As no evanglicas que tinham os
cabelos cortados no formato arredondado eram chamadas de cabea de cesto, ou
casa de cupim. Tudo inicialmente estava associado a elementos do dia a dia, pois
morvamos no interior do interior, sem energia eltrica e acesso a outros tipos de
mdias que pudessem aumentar o repertrio de adjetivos desqualificantes. Os
apelidos estavam geralmente associados a elementos da natureza, com exceo da
palha de ao (na poca ainda no existia uma marca registrada conhecida) era um
dos poucos produtos industrializados como forma de estigmatizar os cabelos no
lisos.
Para alm da questo racial, nossa vida corria literalmente livre, como a de todas as
crianas em todas as pocas. Divertamo-nos no campo de futebol ao lado da
escola, jogando pelada na hora do recreio, meninos contra meninas. No
conhecamos todas as regras, mas a diverso era garantida. Muitas outras
brincadeiras da poca garantiam a potncia dos encontros extraclasse, elas nos
davam energia bastante para driblar a seriedade daquilo que vivamos nos
momentos no to amistosos.
14
Ave de penas cinza escura da mesma famlia, (classificao biolgica) das galinhas com aproximadamente 55 cm de altura e pesam aproximadamente 850 g. Na poca era comum encontra-las na regio. 15
Chico boneco era um senhor negro, alto, magro, que no final da dcada 60 e incio da dcada de 70 ainda era vivo. Era morador do municpio de Linhares. Tive a oportunidade de conhec-lo, de longe, caminhando pelas ruas. Sua figura era usada pelos pais como uma forma de ameaa s crianas, o morador era visto como uma forma de assombrao, como uma forma de punio quando estas aprontavam algumas de suas peraltices. Chico Boneco foi imortalizado, transformado como folclore no final da dcada de 80 pela obra de escritora Josimeri Arajo.
27
Nos momentos amistosos esquecamos os apelidos e xingamentos, ramos amigos
de verdade, dividamos tudo, sorrisos, tarefas, merendas, segredos, sonhos e
desejos. Entre esses sonhos, um se transformou em desejo, ou ser que
poderamos chamar de sonho desejante? Vamos imaginar que sim!
O sonho desejante mais conhecido era o de Angeli16, uma colega da famlia dos
construtores da Igreja dos Pretos. Ela nunca escondeu sua vontade de participar,
como anjo, da coroao de Nossa Senhora, que acontecia na Igreja dos Brancos.
Essa coroao era um evento, uma festa que reunia uma grande quantidade de
pessoas, tanto do vilarejo quanto de comunidades vizinhas. Na poca, era
inimaginvel uma criana negra ser anjo, principalmente na coroao da santa
padroeira da igreja dos brancos. Quando Angeli falava empolgada sobre seu sonho,
alguns colegas falavam de forma irnica: Voc? Anjo? Nunca vi anjo preto! S se
fosse pra fazer o demnio! Mas na coroao de Nossa Senhora no tem
demnio...! Era improvvel que o sonho desejante de Angeli se concretizasse. Era
predominante o pensamento descrito no poema de Souza17:
As pragas devastadoras invadiram a Dispora, E embranqueceram nossa cultura. Transformaram em vovs e vovs,
Nossas iais e iois. Instituram um bem branco
E um mal negro... Uma paz branca, E um luto negro...
Almas brancas que vo pro cu, Almas negras, pro inferno.
Deuses brancos que so benficos, Deuses negros que so malficos...
Anjos brancos que so cristos, Anjos negros que so demnios.
[...]
O interessante que, mesmo na improvvel possibilidade de conseguir realizar tal
desejo, Angeli o evidenciava. Os anos iam passando e ela no desistia. Angeli
cresceu e ento no podia mais ser anjo, pois existia um pr-requisito e ela no
mais o preenchia. Tinha passado da idade e tamanho necessrio para ser anjo. Os
anjos no crescem! Com isso, terminamos a fase inicial do Ensino Fundamental. Era
16
Nome fictcio, na lngua Yorub significa anjo. 17
Shirley Pimentel Souza, poetisa baiana, no poema Anjos negros. Disponvel em: http://www.pucrs.br/mj/poema-negro-3.php. Acesso em 22/09/2011.
28
o mximo que poderamos chegar escola pluridocente do Rio Francs.
1.5 Em famlia
Como dito, a miscigenao da qual me origino fez com que em minha famlia fosse
possvel verificar os mais variados tons de pele, brancos, pretos, menos pretos.
(aqui entram todas as possveis combinaes de palavras usadas para classificar
brasileiros quanto cor). Mesmo entre pares, a questo racial tambm se faz
presente. Com o fim da primeira fase do Ensino Fundamental, sobrava mais tempo
para que nossos contatos em famlia ficassem mais frequentes, principalmente
quando tnhamos ocupaes coletivas nos trabalhos da roa.
Nos momentos de brigas ou do descumprimento de algumas das ordens dadas
pelos tios, ramos chamados por apelidos como uma forma de punio e ameaa,
mas, como na escola, tambm tnhamos muitos momentos marcantes de alegria,
brincadeiras, jogos de felicidades. Eram os mais diversos e mais divertidos
possveis. Alm desses bons encontros, eu tinha a leitura como uma das minhas
diverses quando fora do grupo. Alm da Bblia18 e das letras do hinrio chamado de
Harpa Crist19, que tnhamos como livros de uso obrigatrios nas reunies da igreja
evanglica. No tnhamos livros, nem mesmos didticos. Meu pai era leitor assduo
da revista Selees Readers Digest20 e literatura de cordel e, com essas leituras,
meu lado cultural era exercitado.
1.6 Retorno ao ambiente escolar
Nessa fase da adolescncia, passados cinco anos aps terminar a quarta srie do
Ensino Fundamental, volto a estudar e, a ento, percebo que a questo racial
continua presente. Eu e mais trs colegas negras j havamos passado da idade,
ramos defasadas. Graas ao meu exerccio cultural, no tive a mnima dificuldade
18
Livro referncia do Cristianismo. 19
Hinrio com 524 msicas cantadas na Igreja Assembleia de Deus. 20
Revista Americana lanada no Brasil em 1942.
29
na volta escola, minhas notas ficavam entre as melhores em todas as matrias,
era comum ouvir dos professores que eu era negra, mas era inteligente, uma negra
de alma branca. Para ter reconhecimento nas aes julgadas como importantes,
era necessrio fazer transplante de alma. Hoje, Tal fato me remete msica de
Jorge Arago:
[...] Se o preto de alma branca pra voc
o exemplo da dignidade No nos ajuda, s nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade. [...]
Fatos como esses caracterizam as constantes diferenas de tratamentos entre
estudantes brancos e negros. Um destes fatos transformou-se espcie de marca
positiva quando cursava a stima srie. Graas minha participao e de Barbosa21
a professora de histria passava praticamente toda aula discutindo o contedo
conosco. Ns adorvamos as aulas de Histria Antiga, principalmente sobre o Egito,
mas no associvamos o Egito ao Continente Africano. Nessa poca ainda no
tnhamos criticidade o bastante para perceber esses detalhes.
Em funo da nossa participao ativa nas discusses, a professora nos envolvia
durante as aulas. Formvamos praticamente um trio, eu, a professora e Barbosa,
enquanto os demais estudantes da turma tinham uma participao mnima. Isso
chegou a incomod-los. Lembro-me nitidamente de uma das aulas em que uma
aluna, em nome dos demais alunos, chegou a fazer para a professora a seguinte
pergunta: - Professora, a senhora s gosta de preto? Nesse momento a professora
ficou numa saia justa, mas explicou turma a razo pela qual dispensava sua
maior ateno a ns. Confesso que isso me dava uma pontinha de orgulho, pois,
sua maneira, nos colocava em evidncia. Didaticamente, ela poderia no estar
agindo de forma correta, mas devia entender que o importante era o que ensinava.
A cor da pele dos estudantes era um detalhe insignificante.
Depois disso, muita coisa aconteceu. Muitos foram os momentos em que me deparei
com situaes altamente constrangedoras, do ponto de vista racial, tanto no
ambiente familiar quanto nas rodas de conversas que tnhamos com os colegas.
21
Nome fictcio de meu colega de sala, tambm negro,
30
Esses momentos sociais no eram raros, uma vez que, no local onde morava, e na
poca em que me encontrava na adolescncia e no incio da vida adulta, ainda no
se praticava o isolamento social que se constata hoje, ou isso ainda no era
percebido, uma vez que a naturalizao da lugar do negro fazia com que as pessoas
nem percebessem que existia esse isolamento .
O tempo passou e quando tento me lembrar de todos os contedos vistos, ao longo
do Ensino Fundamental, Mdio e Superior22, constato o que as pesquisas apontam
sobre a questo. No currculo escolar, a questo racial era discutida de forma
pontual. Tudo o que se falava tinha ligao apenas com mistura de raas e as
formas de escravizao. As diferenas sociais relacionadas questo racial no
eram compatveis com o discurso da democracia racial. As questes que se referiam
s lutas do povo negro no apareciam. Minhas informaes acadmicas sobre a
questo eram mnimas.
Meus primeiros contatos com movimentos sociais comearam no final da dcada de
80, na medida em que conheci pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Entretanto, o encontro de fato com estas questes foi durante o 4 Seminrio
Nacional de Entidades Negras na Educao (SENENAE), organizado pelo Centro de
Estudos da Cultura Negra (CECUN) no ano de 2004. A partir deste encontro, foi
possvel conhecer pessoas que se identificavam com a causa, com as quais pude, a
partir das leituras sugeridas, enriquecer meus argumentos com relao temtica.
Embora j tivesse participado de outras manifestaes coletivas em defesa das
minorias, como simpatizante do Partido dos Trabalhadores (PT), pela primeira vez
tive contato com um grande grupo de pessoas com as quais compartilhei as minhas
poucas ideias a respeito do racismo. Assim, sentia-me confortavelmente
representada naquele grupo. A partir deste seminrio, direcionei minhas leituras
para as questes relacionadas Lei 10.639/200323, que havia sido aprovada no ano
anterior. Aos poucos fui entendendo teoricamente questes que, na prtica, j havia
experimentado ao longo de minha existncia.
22
Refiro s duas Graduaes: Pedagogia e Cincias Biolgicas. 23
A Lei 10.639 de 09 de janeiro 2003, que altera a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional e institui a obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira no currculo oficial dos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, pblicos e particulares no Brasil.
31
Em funo dessas leituras, fui intensificando, mesmo que de forma discreta, minha
militncia em direo s questes defendidas pelo Movimento Negro (MN), que at
ento no conhecia muito bem. Isso passou a ser uma marca nas minhas
discusses no contexto escolar em que atuava. Em 2006, fui convidada pela
Secretaria de Educao do Municpio de Joo Neiva24, onde j trabalhava desde
1991, a discutir com professores as questes relacionadas lei citada.
Em 2007 fui convidada a fazer parte do primeiro grupo de estudos, formado
exclusivamente para discutir a questo racial, a Comisso de Estudos sobre a
Cultura Afro-brasileira (CEAFRO), no municpio de Aracruz. Nesse espao, tive a
oportunidade de encontrar pessoas que estavam h mais tempo estudando sobre o
tema. Com elas, pude ampliar ainda meus horizontes na discusso sobre a questo
com mais segurana. Com a inteno de ampliar as possibilidades de dilogos entre
os pares e no pares que se encontram nos espaos escolares e fora deles, alcei
voo em direo pesquisa que resulta neste trabalho dissertativo.
24
Municpio situado a aproximadamente 82 km ao norte de Vitria, capital do Esprito Santo.
32
2 FRICA/BRASIL
2.1 frica25 e Brasil: que relao essa?
Neste captulo diremos26 apenas algumas palavras que podem ser consideradas
simplesmente como a inteno de uma vrgula, diante da suntuosidade, que por ns,
conferida ao Continente Africano que Moore (2005, p.135) define como:
[...] palco exclusivo dos processos interligados de hominizao e de sapienizao o nico lugar do mundo onde se encontram, em perfeita sequncia geolgica, e acompanhados pelas indstrias lticas ou metalrgicas correspondentes, todos os indcios da evoluo da nossa espcie a partir dos primeiros ancestrais homindeos. A humanidade, antiga e moderna, desenvolveu-se primeiro na frica e logo, progressivamente e por levas sucessivas, foi povoando o planeta inteiro.
No intencionamos contar a histria do continente, j que foi nele que surgiu a vida
e, nesse sentido, somos contados por ele. Dele originaram-se nossos ancestrais. A
histria humana comea na frica. Traremos em forma de interrogao apenas
alguns fragmentos do que a histria oficial elegeu como digna de ser contada.
Interrogaremos algumas verdades estabelecidas, sob um prisma diferenciado no
sentido de problematizar os resultados das relaes entre o Brasil e os pases
africanos com os quais foram estabelecidas relaes comerciais (compra e venda)
de pessoas.
Com sua extenso territorial de cerca de 30.343.551 Km, o que corresponde a 22%
da superfcie slida da terra (MOORE 2005, p. 135), o Continente Africano possui
uma topogrfica diversificada, com savanas interminveis, grandes extenses de
solos desrticos e semidesrticos, chapadas, campos, grandes cadeias de
montanhas, suntuosos lagos e regies de florestas.
25
A palavra frica possui at o presente momento uma origem difcil de elucidar. Aps ter sido designado o litoral norte africano [...]. Comeando pelas mais plausveis pode-se dar as seguintes verses: Uma etimologia da palavra frica retirada dos termos fencios, um significa espiga, smbolo da fertilidade dessa regio, e o outro, Pharikia, regio das frutas. A palavra derivada do latim aprica (ensolarada) ou do grego aprik (isento de frio). Outra palavra de raiz fencia, faraga que exprime a ideia de separao, de dispora. (UNESCO, 2010, v 1, p.31). 26
A partir desta parte usarei os verbos na 1 pessoa do plural, entendo que todas as pessoas que cito neste trabalho dissertativo fazem parte de mim, uma vez que todos que passaram e passam por ns, deixam conosco parte de suas vidas em levam parte da nossa. Assim nos constitumos pessoas.
33
O continente tem hoje com aproximadamente 800 milhes de habitantes espalhados
ao longo de seus 54 pases, divididos em regies, muitas delas com uma riqueza
mineral incalculvel, uma diversidade de naes, com a existncia e a interao de
mais de 2.000 povos com diferentes modos de organizao socioeconmica e de
expresso tecnolgica (ibidem). Esse espao geogrfico chamado frica possui em
seu bojo culturas, lnguas, histrias e valores civilizatrios. a mais longa ocupao
humana de que se tem conhecimento (2 a 3 milhes de anos at o presente) e,
consequentemente, uma maior complexidade dos fluxos e refluxos migratrios
populacionais (ibidem).
a parte do mundo onde o ser humano, pela primeira vez, erigiu sociedades
baseadas na cooperao solidria (MOORE 2008, p. 13). Infelizmente tais
caractersticas so desconhecidas por grande parte da populao mundial dentro e
fora dele. O Continente foi vilipendiado durante vrios sculos de explorao. A
frica presenciou geraes de viajantes, de traficantes de escravos, de
exploradores, de missionrios, que, em nome de Deus e cegos pela falta de
sensibilidade, elaboraram as mais diversas estratgias de explorao, pro cnsules,
e sbios de todo tipos acabaram por fixar sua imagem deste continente em cenrio
onde o mundo s enxerga a misria e caos (UNESCO, 2010. V. 1. p. 32). Ao longo
da histria as sociedades africanas foram sendo fragmentadas por potncias
colonizadoras, que, em busca do lucro, fomentaram o subdesenvolvimento africano.
2.2 As relaes frica/Brasil sob o olhar da escola
As relaes entre Brasil e frica vo muito alm da importao/exportao de mo
de obra escravizada. No imaginrio construdo ao longo de nossa permanncia nos
bancos escolares, a partir das mdias didticas e dos mais variados tipos de
instrumentos de veiculao de informaes, no cabiam e, em algumas situaes,
no cabem imagens afirmativas sobre a populao oriunda do continente em
questo. Os povos oriundos de frica no eram vistos como produtores de culturas,
de histria, de modelos civilizatrios. As suas mais diversas formas de ser/estar no
mundo foram ignoradas e subtradas de sua importncia.
34
A recusa ocidental em reconhecer o Continente Africano como produtor de culturas
que serviram de base para muitas das ideias disseminadas pelo mundo afora como
sendo de outros povos, principalmente europeus, ainda perpetua at os dias atuais.
Ao longo dos tempos, fomos forados a aprender que os povos africanos eram
subdesenvolvidos, simplesmente por serem negros. A escola como um lugar onde
se assenta as vises culturais defendidas pela sociedade, cumpriu seu papel de
forma majesttica. Imageticamente ns, negros e brancos brasileiros, fomos
com/vencidos pela ideia de que os povos africanos nada mais eram do que criaturas
que vieram ao mundo para servir.
A arte eleita para retratar o cotidiano de brancos e negros na terra Brasil, durante o
perodo do imprio, em vez de representar o povo negro que realizava os mais
variados tipos de atividades, em todas as reas do conhecimento, desde as mais
simples at aquelas que exigiam um grau elevado de conhecimento trazidos do
continente de origem foi a caricatura.
Se fssemos nos embasar apenas na iconografia dos arquivos publicizados nos
materiais que circulavam na escola, no incio e ao longo de nossa vida acadmica,
certamente no poderamos, em nenhum momento, achar que os povos retratados
de tais formas teriam realmente condies de terem sido, outra coisa alm de
servos.
2.3 Escravizao de pessoas oriundas do Continente Africano no Brasil
Antes de iniciarmos qualquer aprofundamento sobre tal regime, devemos considerar
que o processo de escravizao no comea com a chegada dos portugueses ao
Brasil. Sua existncia descrita em tempos anteriores ao nosso, nem por isso
devemos considerar como um fenmeno universal, pois apresent-lo como tal, de
acordo como Grenouilleau (2009) equivaleria a consider-lo como mais ou menos
natural e tradicional (p.14), e, apresentado dessa forma, seria uma maneira de
justificar um sistema injustificvel; a explorao do homem pelo homem.
Mesmo sem uma forma coerente de justificar a prtica da escravizao, ela esteve
35
presente em diversos pases em vrios momentos da histria da humanidade.
Chegou a ser, durante muito tempo, o que se poderia chamar de eixo em torno do
qual girou o comrcio no mundo (HOCHSHSCHILD, 2007, p. 26).
Para falarmos sobre a escravizao no Brasil, precisamos revirar a histria,
entrarmos no tnel do tempo, manipularmos o zoom, nos aproximarmos e nos
afastarmos das ideias e imagens que sero explicitadas no decorrer deste
trabalho. Faz-se necessrio discorrermos sobre como tal processo se fez presente
na histria do mundo, como chegou, e qual a durao no nosso pas. Faremos isso
sem a pretenso de contarmos a histria do mundo ou do pas, at mesmo pela
impossibilidade de fazermos isso.
Enfatizamos que no pretendemos nos referir aos descendentes dos escravizados
como vtimas. No entanto, os fragmentos de relatos ditos/escritos, capturados
na/pela histria, que sero aqui colocados, podero dar margem a tal interpretao.
Abordamos, de forma resumida, os efeitos da manipulao das informaes sobre o
processo da escravizao na histria escrita do Brasil, veiculadas nas mdias
didticas. A relao entre escravizao e o segregacionismo a que os negros foram,
e ainda so submetidos, para ento chegarmos ao cotidiano escolar e entendermos,
ou no, como a prtica do racismo se fez/faz presente e como tal prtica se atualiza
entre/para/com os diversos atores envolvidos no processo de escolarizao.
O processo de escravizao de africanos, no Brasil, tem incio em meados do sculo
XVI. Aos olhos dos colonizadores, tanto os negros quanto os indgenas eram vistos
como selvagens, primitivos, no dignos, desalmados e objetos a serem manipulados
ou quaisquer outros adjetivos de significados semelhantes. Segundo SCHWARCZ
(2006), os escravizados eram considerados objetos ou bens semoventes, possui-
los significava riqueza e prestgio social.
Para os colonizadores, no importava saber de onde vinham e nem em quais
condies esses trabalhadores produziam ou extraiam todo e qualquer produto
necessrio manuteno de suas riquezas. Em funo desta desqualificao, foram
severamente explorados e utilizados para todo e qualquer tipo de servio onde fosse
necessrio o uso da fora fsica. Mas o que propiciou o regime de escravizao
36
africana no Brasil?
Sobre essa questo, Munanga (1986, p. 8) tem a seguinte proposio:
Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em meados do sculo XV, a organizao poltica dos estados africanos j tinha atingido um nvel de aperfeioamento muito alto. As monarquias eram constitudas por um conselho popular no qual as diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e moral equivaliam poltica. Em contrapartida, o desenvolvimento tcnico, includo a tecnologia de guerra, era menos acentuada. Isto pode ser explicado pelas condies ecolgicas, socioeconmicas e histricas da frica daquela poca, e no biologicamente, como queriam alguns falsos cientistas. Neste mesmo sculo XV, a Amrica foi descoberta. A valorizao de suas terras demandava mo-de-obra barata. A frica sem defesa apareceu ento como reservatrio humano apropriado, com um mnimo de gastos e de riscos.
Para o autor, vrios fatores favoreceram a prtica de explorao africana pelos
colonizadores. Mesmo com uma organizao poltica de pases africanos
classificados como eficiente, as falhas no sistema de segurana com relao
preparao de tecnologias aplicadas s guerras facilitaram a insero de potncias
europeias no continente em questo.
Com a expanso da aquisio de terras por pases europeus, tanto no Continente
Africano quanto nas Amricas e, com grande experincia na explorao de pessoas,
os colonizadores viram a possibilidade de explorar a mo de obra africana em solo
brasileiro. Para isso, agiam de forma inescrupulosa tanto nos mtodos de captura,
atravs da compra de humanos das mos dos mercadores27 de pessoas, quanto nos
modos de tratamento com relao s pessoas compradas at que os mesmos
chegassem a solo brasileiro. O tratamento inescrupuloso acontecia, via de regra,
durante todo o perodo em que a escravizao permaneceu latente no pas.
2.3.1 Escravizando
Sobre os mtodos utilizados para forar os africanos trazidos para o Brasil a
executarem as tarefas atribudas a eles, pensamos no ser necessrio relatar nesse
trabalho. Grande parte da literatura circulante sobre a histria do negro no Brasil, j
fez a divulgao dos castigos de forma muito eficiente, com riqueza de detalhes.
27
Esses mercadores eram organizaes de continentes fora de frica e tambm de africanos que capturavam inimigos de guerras entre os diferentes povos africanos que se tronavam rivais.
37
Dessa forma, nesse tpico, enfatizaremos algumas entre as muitas incoerncias que
passam despercebidas quando fazemos uma leitura menos crtica sobre os fatos
referentes aos perodos e processos que se entrelaam no processo de
escravizao e aos rtulos atribudos aos escravizados.
No raramente nos deparamos com informaes oficiais nos dando conta de que os
africanos trazidos para o Brasil eram analfabetos, como se essas informaes
fossem verdades absolutas. Grande parte dos que aqui chegaram eram
alfabetizados em seus idiomas, que gentilmente foram rebaixados para dialetos.
Os receptores destes povos no viam nenhum interesse em que os mesmo fossem
alfabetizados na lngua oficial da coroa.
Em 17 de fevereiro de 1854, foi assinado o Decreto n 1.331 A que regulamentava a
reforma do ensino primrio e secundrio do Municpio da Corte. Em seu artigo 69
do pargrafo 1 ao 3, instava a seguinte redao:
Art. 69. No sero admittidos 28
a matricula, nem podero frequentar as escolas: 1 Os meninos que padecerem de molestias contagiosas. 2 Os que no tiverem sido vaccinados. 3 Os escravos.
Os escravizados, os portadores de doenas contagiosas e aqueles que estavam
susceptveis a ela, eram colocados em um mesmo nvel, no poderiam frequentar a
escola. Tal informao nos remete ao seguinte pensamento: se os escravizados no
manifestassem desejo de frequentar a escola, haveria motivos para que o estado se
ocupasse em sancionar leis e decretos proibindo a entrada deles nas escolas?
Algum precisa ser proibido de fazer algo que no deseja?
Em 6 de setembro do ano de 1878, o Decreto n 7.031-A29, estabelecia que os
negros s pudessem estudar no horrio noturno, mediante disponibilidade de
professores. O estado usa de sua autoridade para definir at onde permitiria a
mobilizao dos negros, mesmo libertos.
28
Mantivemos a escrita original da poca para no cometer anacronismos de significados na tentativa de traduzir os textos. Faremos o mesmo nos textos posteriores. 29
Anexo ao relatrio apresentado em 1878, pelo ministro e secretrio dos Negcios do Imprio, Dr. Carlos Lencio de Carvalho na Assembleia Legislativa em dezembro de 1878. Disponvel em: . Acesso em 28 ago. 2011.
38
As muitas leis de cunho abolicionista traziam em suas entrelinhas brechas que as
tornavam ambguas, pois por um lado premiavam os escravizados, por outro
indenizavam os escravizadores. Ser que estas eram as frmulas encontradas
para que tais leis fossem aprovadas? Se fossem, por que as fontes oficiais no
informavam os benefcios duplos?
Vista como uma lei abolicionista, a Lei Rio Branco, N 2040, promulgada em 28
de setembro de 1871, tambm conhecida como a Lei do Ventre Livre, considerava
livres todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir daquela data. Sobre
tal lei, os livros didticos trazem apenas o Artigo 1 que dizia: Os filhos de mulher
escrava que nascerem no Imprio desde a data de assinatura desta lei, sero
considerados de condio livre.
Entretanto, no mencionavam que a referida lei foi considerada ineficiente pelo
movimento abolicionista. A mesma no explicitava que nenhuma criana pode ser
livre, tendo sua me na condio de escravizada. No diziam tambm que o 1 do
mesmo artigo j tratava de indenizar os senhores pelas perdas que teriam com a
promulgao da referida lei.
1. da lei 2040:- Os ditos filhos menores ficaro em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mes, os quais tero a obrigao de cri-los e trat-los at a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da me ter opo de receber do Estado a indenizao de 600$000, ou de utilizar-se dos servios do menor at a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Govrno receber o
menor e lhe dar destino, em conformidade da presente lei.
As fontes oficiais no informavam que a mortalidade infantil triplicou entre a
populao escravizada, devido s ms condies de trabalho desempenhadas pelas
mes e falta de tempo para o cuidado dos filhos. Tudo isso contribua para que as
crianas no ultrapassassem os primeiros anos de vida. Uma vez que no seriam
mais usados no trabalho como escravos, j no era mais interessante para os
senhores cuidar de crianas que no mais lhes pertenciam.
Sobre a Lei do Brasil n 3.270 de 28 de setembro de 1885, tambm conhecida
como a Lei dos Sexagenrios, os livros didticos trazem apenas parte do 10, que
diz: So libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da
data em que entrar em execuo esta lei. So omitidas as informaes contidas
39
no pargrafo seguinte que complementa o sentido do benefcio: ficando, porm,
obrigados, a ttulo de indenizao pela sua alforria, prestar servios a seus ex-
senhores pelo espao de trs anos.
Ainda no contexto da mesma lei, os livros no trazem informaes como: devido s
condies de trabalho a que eram submetidos, a mdia de vida da populao
escravizada era de aproximadamente 35 anos. Assim, quando chegavam aos 60
anos, geralmente suas condies de sade j no permitiam grandes feitos em
termos de trabalho.
Com a falta de informaes verdadeiras ou com informaes truncadas que iam
sendo transformadas em verdades nicas, a colnia, que um dia se transformaria
em pas, seguia seu curso de construo. Na mesma proporo em que os braos
negros construam a riqueza material dos famigerados interesses da coroa, sua
imagem ia sendo reduzida a de simples executores de tarefas.
Mas afinal, esse povo nunca reagia aos maus tratos a que eram submetidos
durante o processo de escravizao? Ao que parece, as reaes da populao
escravizada foram esvaziadas, a divulgao das rebelies, revoltas e insurreies
no ocupavam muito espao nas conversas pblicas dos senhores de engenho,
no apareciam nos veculos noticiosos da poca na mesma proporo que os
castigos. As notcias de atos de resistncias coletivas e/ou individuais, no eram
contedos que circulavam na histria. Felizmente hoje j existem vrios
autores/pesquisadores negros e negros que esto recontando histria a partir de
pesquisas de documentos histricos no divulgados, que relatam as mais variadas
formas de resistncias do povo negro escravizado, como citaremos mais adiante.
2.4 A negao da resistncia negra: Resistncia no Pr-abolio
Durante sculos, na histria do Brasil, a populao afrodescendente foi considerada
bem semovente, ou seja, a existncia na mente conservadora da cpula
escravocrata, s se dava devido a natural capacidade de servido, que Buarque
(2009, p. 19) chama ndole prestativa. O discurso da incapacidade da populao
40
negra para fazer qualquer tipo de atividade em que fosse necessrio o uso da
habilidade intelectual tornou-se uma certeza absoluta to bem implantada, que suas
razes permanecem gerando brotos que ainda hoje aparecem em lugares onde
menos se espera.
Os elementos miditicos que fizeram circular as notcias sobre a populao negra
durante os perodos pr e ps-abolio no evidenciavam as diversas formas de
resistncias da populao negra em relao ao processo de escravizao. As
poucas notcias de lutas da populao negra eram atribudas aos abolicionistas.
Embora entre eles existissem vrios negros, o protagonismo da abolio sempre foi
atribuda aos brancos, como se os escravizados fossem incapazes de se
mobilizarem em prol de suas da liberdades.
As tenses suscitadas em prol da abolio aconteceram numa forma de
entrelaamento entre interesses polticos reconhecidos como legtimos, juntamente
com a estrutura coletiva de escravizados e libertos, num esforo que custou a vida
de muitos, incluindo os senhores de engenhos e/ou outros membros de suas
famlias assassinados pelos escravizados. Esses movimentos de liberdade sofreram,
durante muito tempo, uma tentativa de apagamento num processo de invisibilizao
muito bem orquestrado pela histria oficial.
Vrios autores, entre eles Gilberto Freire, na conhecida obra Casa Grande e
Senzala, que teve sua primeira publicao em 1933, afirmam que a escravizao
era negociada pela forma de compadrio, alguns deles sugeriam que os negros
aceitavam a escravizao e se aproveitavam da situao. Contrrios a tais
pensamentos, vemos essa situao, no como forma de sujeio.
O compadrio pode ser considerado uma forma de resistncia light, onde, mesmo em
situao de subservincia, os escravizados faziam acordos para evitarem traumas
maiores na relao, uma vez que no existiam muitas outras formas de se viver sem
que as perseguies e restries fossem uma constante. Por outro lado, ao exercer
o compadrio, os senhores tinham de volta a certeza de que entre eles e os
escravizados com os quais a relao era estreitada, no haveria um perigo to
eminente de reaes que oferecesse perigo para si ou seus parentes prximos.
41
Nesse perodo, as polticas pblicas e legislaes afirmavam e legalizavam todas as
formas de represlias contra escravizados que entrassem na luta anti escravagistas.
Nesse tempo histrico, as leis eram elaboradas com vistas a reforar e justificar as
humilhaes e maus tratos cometidos contra os escravizados. Em funo desse
rigor legal, aumentava ainda mais o desejo de liberdade de uns, enquanto outros
sucumbiam ao medo.
O que se sabe que era possvel conquistar essa liberdade de vrias formas. Entre
elas, podemos citar a obteno da carta de alforria atravs do pagamento em
dinheiro, considerada legal, que se tornava definitiva; a que era concedida em
funo de algum trabalho especfico que o escravizado prestaria ao seu senhor, cujo
pagamento seria a obteno da carta; e aquela na qual o dono dava a carta ao seu
escravizado por vontade prpria.
Essa ltima forma poderia ser desfeita se o antigo dono assim desejasse, o que
poderamos chamar de alforria condicional. O escravizado pensa ter a liberdade e,
quando menos imagina, pode perder a condio de liberto ou forro. Em casos como
esses, muitos ex-escravizados eram persuadidos a ver a alforria como um ato de
bondade dos senhores, a quem se tornavam eternamente gratos.
Os senhores eram legitimados, ao submeterem seus trabalhadores aos mais
diversos tipos de castigos. Os castigos no neutralizavam as resistncias, alis, os
aparatos legais para legitimarem as mais diversas formas de violncia contra a
populao escravizada s existiam e eram atualizados exatamente em funo da
resistncia. Um desses aparatos legais pode ser comprovado no exemplo a seguir:
Sero punidos com pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra grave ofensa fsica, a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morar, a administrador, feitor, e as suas mulheres que com eles viverem. Se o ferimento ou ofensa fsica forem leves, a pena ser de aoites, a proporo das circunstncias, mais ou menos agravantes. (Lei n 4 art. 1,1835, GOVERNO REGENCIAL)
30
S se probe ou s se castiga aquele que desobedece ou quebra as normas, e as
normas e regras da poca eram a submisso sem reao. Alm do aparato legal,
30
Disponvel em http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-20/Legimp-20_3.pdf>. Acesso em 23 ago. 2010.
42
os castigos pblicos serviam como uma espcie de presso psicolgica utilizada
para inibir as tentativas de resistncia.
Figura 1: Aplicao do castigo- negros no tronco. Fonte: DEBRET 1975,
Na ilustrao, o foco o tronco. O autor d nfase a no resistncia. A posio
corprea dos que esto ao redor do tranco, passa a ideia de apatia, como se no
tivessem condies de reagir. Naquele momento, ao ato central, um negro, de
calas abaixadas, smbolo mximo da humilhao, sendo aoitado por outro negro.
Como explicar tal fato? Ou o que perguntar a tais gravuras?
Nesse contexto, a praa o palco da servido, da violncia sem morte fsica, do
castigo, da humilhao pblica. Ao escravizado que matasse, morte! No existia
legtima defesa da liberdade, do direito de ser livre. Ao escravizador que matasse,
defesa da honra! Nenhum senhor poderia ter seus bens materiais e imateriais
ameaados. Talvez essa fosse considerada uma das formas mais violentas de
ataque subjetividade negra e tambm da branca, j que o sentimento de
superioridade exacerbada tambm pode se caracterizar como uma forma de
violncia.
As ilustraes utilizadas, de forma massiva, nos livros didticos, para representar o
cotidiano da colnia, ainda tm seus objetivos. A forma como so trazidas as
imagens do cotidiano negro, coloca histria do mesmo sempre associada ao regime
43
de servido, como se sua histria comeasse nos pores dos navios negreiros, no
tronco, nos leiles em forma de lotes a serem comercializados. Produz-se um
apagamento das histrias de resistncias. Fale-se da servido, mas no se explicam
os usos das correntes, das chibatas, capites do mato e outros aparatos
antirresistncia.
Cria-se um fosso na histria. Se no passado distante os castigos em praa pblica
serviam como forma de exemplo para quem ousasse reagir escravizao, em um
passado no to distante assim, serve para no deixar apagar da memria de
brancos e negros a supremacia branca. Servem como instrumentos de distores da
subjetividade de estudantes negros e brancos ao qual foram submetidos ao longo de
suas vidas acadmicas.
Nos relatos oficiais sobre as relaes entre escravizados e escravizadores, cenas
como as da figura 2 no aparecem. Os efeitos da faca so muito violentos,
imediatos, e merecem censura prvia, j os efeitos do tronco e do chicote so
apenas castigos e, por isso, uma vez legitimados, so eternizados na subjetividade
dos que representam os chicoteados.
Figura 2: Assassinato de senhores, feitores. (Arago
31). Fonte: Pinsky (2001).
31
Desenhista, escritor e explorador com ideias abolicionistas. Acompanhou a expedio de circunavegao comandada por Louis de Freycinet a bordo do navio Uranie, entre os anos 1817 e 1820. Durante essa viagem, visitou o Rio de Janeiro em 1817, onde produziu seis pranchas retratando a cidade.
44
Imaginemos quantos livros didticos foram impressos com figuras subliminarmente
comprometidas com a desqualificao do povo negro? Quantos de ns, durante
nossa vida estudantil, j no nos deparamos com ilustraes com os mesmos
efeitos simblicos? Imaginemos quantos olhares foram trocados por estudantes
brancos e negros de forma acusadora e ameaadora nos bancos escolares sem que
os professores pudessem atuar de forma crtica durante a explanao dos
contedos como forma de amenizar o tom da violncia implcita e explcita.
2.4.1 Armas silenciosas
Ao contrrio do que muitas de nossas leituras obrigatrias dos livros didticos que
nos formaram, nos fizeram acreditar que o povo que aqui chegara de forma
indesejada, no se sabe ao certo de quais regies do continente africano e nem em
quais condies foram negociados para que fossem enviados para o Brasil, tinha
que se reinventar para no sucumbir s presses fsico/psicolgicas. Para isso
utilizavam as mais variadas formas de re/existncia. De vtimas, suas rebelies, que
embora os livros didticos no tragam muitos detalhes sobre as formas como se
rebelavam, quando essas informaes aparecem, os escravizados erem
transformados em algozes de seus opressores.
Como forma de resistncia, tambm utilizavam armas silenciosas. Com os
conhecimentos que possuam sobre a manipulao de ervas e resduos animais,
produziam e administravam, de forma gradual, vrios tipos de venenos nas comidas
de senhores. Alm disso, colocavam vboras nos travesseiros deles como afirma
Schwarcz (1996, p. 25).
Senhores e feitores eram as vtimas prediletas de assassinatos e envenenamentos. O quebranto, por exemplo, to descrito, nos romances da poca, como uma grande lassido
32 que se apoderava dos senhores, no
era mais que o resultado da administrao gradual de venenos que amansavam suas vtimas. Exmios preparadores de venenos de origem animal e vegetal, os escravizados esmeravam-se tambm em colocar cobras nas botinas de seus proprietrios e outros bichos venenosos em seus travesseiros. (Grifo nosso).
32
Cansao, fadiga, moleza, canseira, afobao (Dicionrio Aurlio. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993).
45
Das mais diversas formas de resistncia do povo negro escravizado, algumas eram
levadas ao que podemos chamar de extremismo. Algumas escravizadas faziam uso
de plantas para fins abortivos. Preferiam matar seus filhos, a v-los viver nas
mesmas condies vividas por elas. Na obra intitulada Escravido escrita em 1870,
Joaquim Nabuco e reorganizada em 1988, resume o pensamento recorrente na
poca acerca dos abortos e suicdios. a morte o que menos humilhante para a
vtima do que sujeit-lo ao cativeiro (p. 29). Essa era uma das formas de causar
prejuzo a seus senhores, como afirma Moura (1981, p.14):
Do ponto de vista do prprio escravo essas reaes iam desde os suicdios, fugas individuais ou coletivas, at formao de quilombos, s guerrilhas, s insurreies citadinas e a sua participao em movimentos organizados por outras classes e camadas sociais. O escravo, desta forma, solapava nas suas bases as relaes escravistas, criando uma galxia de desajustes desconhecida pelos dirigentes polticos da poca.
2.4.2 Armas coletivas
Os quilombos so hoje reconhecidos como espaos de organizaes coletivas de
resistncia no perodo pr-abolio. No apenas como um espao de fuga, mas
tambm como organizaes que resistiam ao processo de escravizao. Entre os
quilombos, Palmares, liderado por Zumbi, era mais citado, embora com poucos
detalhes. Moura (1989, p. 22) define os quilombos como:
O movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos prprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o territrio nacional. Movimento de mudana social provocado, ele foi uma fora de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos nveis econmico social e militar e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substitudo pelo trabalho livre.
A nfase nos documentos histricos foi dada forma como o lder de Palmares,
Zumbi, foi capturado. Enfatiza-se tambm a astcia de Domingos Jorge Velho33 em
persuadir integrantes do Quilombo de Palmares a trarem seus companheiros.
Palmares era citado como se fosse o nico quilombo existente no Brasil. No
problematizavam o genocdio praticado contra a populao que ali residia. Ainda
hoje existem poucos documentos ou trabalhos cientficos sobre quilombos.
33
Bandeirante segundo a histria oficial comandou a invaso ao Quilombo de Palmares..
46
O pensamento coletivo34 podia ser observado mesmo em aes sem grande
alcance. Para alm dos quilombos, os negros livres que exerciam atividades
remuneradas j trabalhavam como comerciantes e outros, entre eles os escravos de
ganho35 que juntavam suas economias adquiridas com os trabalhos feitos por fora
ou com o que recebiam a mais pelos servios extras, formavam grupos para
comprar suas alforrias e de seus parentes. As organizaes das aes coletivas
eram realizadas, tanto nas senzalas quanto em outros espaos como locais de
cultos religiosos. Os Terreiros36 tambm eram severamente perseguidos durante a
pr-abolio.
Dentre esses movimentos coletivos, a Revolta dos Mals37 era um dos poucos
reconhecidos oficialmente, porm sem muitos detalhes. Esse movimento, datado de
1835, teve como palco as ruas de Salvador, Bahia. Embora no haja registros mais
conclusivos, segundo algumas fontes, dentre as quais podemos citar Reis (2003), a
revolta dos Mals reuniu cerca de 600 homens. Esse nmero de pessoas parece
pequeno, mas, se considerarmos a populao atual de Salvador, seria o equivalente
a 24 mil pessoas. Para alm de ser uma luta a favor da libertao dos escravizados,
tinha tambm um cunho religioso, j que o catolicismo era imposto pelo governo em
consonncia com a igreja, pois na poca dividiam o poder.
Tal Revolta, assim como as muitas outras acontecidas em outras provncias, foram
possveis, no porque todos os negros se conhecessem, mas por aquilo que tinham
em comum, que os tornava grupo.
De fato identidade tnica e religiosa foi muito importante para deslanchar o movimento. A maioria dos muulmanos que viviam na Bahia em 1835 era nag. Apesar de na frica, e mesmo no Brasil, outros grupos, como os hausss, serem mais islamizados do que os nags, coube a estes o predomnio no movimento de 1835. Os nags islamizados no s constituram a maioria dos combatentes, como a maioria dos lderes. Mais de 80 por cento dos rus escravos em 1835 eram nags, sendo eles apenas 30 por cento dos africanos de Salvador; dos sete lderes identificados, pelo menos cinco eram nags. Eram nags os seguintes lderes: os escravos Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicob, Dassalu ou
34
No utilizo o termo para falar de unanimidade, entre os africanos, existiam negros que j tinham conseguido se tornar grandes homens de negcio e chegavam a possuir trabalhadores na condio de escravizados, j que possu-los era sinnimo de poder. 35
Escravizados de rua que eram alugados pelos senhores para fazer trabalhos externos. 36
Local de cultos de religies de matrizes africanas como a Umbanda e o Candombl. 37
A expresso male vem de imal, que na lngua iorub significa muulmano. Portanto os Mals eram especificamente os muulmanos de lngua iorub, conhecidos na Bahia como nags.
47
Damalu e Gustard. Tambm nag era o liberto Manoel Calafate. Os outros eram o escravo tapa
38. Lus Sanim e o liberto hauss Elesbo do Carmo ou
Dandar, que negociava com fumo (REIS, 2003 p. 6).
Movimentos como estes, assim como a formao dos quilombos, aconteceram em
vrias regies do Brasil, entretanto, a visibilidade e veracidade destes eventos,
assim como a de tantos outros, foi diminuda ou distorcida. As informaes sobre as
formas de castigos aos lideres, essas sim, eram amplamente divulgadas. Se na
poca existisse imprensa televisiva, certamente, seriam transmitidas em cadeia
nacional.
2.4.3 Armas de papel
Em todos os exemplos de lutas citados at aqui, a resistncia escrita esteve
presente durante o perodo escravocrata. Ao contrrio do pensamento de que a
populao negra era analfabeta, o analfabetismo no era unanimidade. Existiam
muitos negros, tanto libertos quanto escravizados, alfabetizados. Tanto nas lnguas
de seus pases de origem quanto na lngua oficial da colnia.
A produo de escritos pblicos, como forma de resistncia escravizao, j
existia desde 1833. De acordo com Pinto (2010, p. 17), os mais conhecidos, que
chegaram a alcanar repercusso regional foram:
O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente (todos do Rio de Janeiro do ano de 1833); O Homem: Realidade Constitucional ou Dissoluo Social (de Recife, 1876); A Ptria rgo dos Homens de Cor (d
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