Curso de Ps-Graduao Lato Sensu a Distncia
Cultura Teolgica
Teologia do Antigo
Testamento
Autor: Blanca Martn Salvago
EAD Educao a Distncia Parceria Universidade Catlica Dom Bosco e Portal Educao
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SUMRIO
UNIDADE 1 NOES PRELIMINARES.............................................................. 05
1.1 Bblia, coleo de livros ..................................................................................... 05
1.2 Bblia, Palavra de Deus ..................................................................................... 07
1.3 A autoria na Bblia ............................................................................................. 10
1.4 A interpretao da Bblia ................................................................................... 11
1.5 Critrios bsicos da leitura crist ....................................................................... 13
1.6 Situao geogrfica de Israel ........................................................................... 16
1.7 Israel e seu entorno ........................................................................................... 17
UNIDADE 2 AS ORIGENS Gn 1-11 ................................................................. 21
2.1 O Gnesis ......................................................................................................... 23
2.2 Os textos da Criao ......................................................................................... 24
2.3 Conflito Bblia x Cincia .................................................................................. 32
2.4 Caim e Abel Gn 4,1-16 ................................................................................... 34
2.5 O dilvio Gn 6-9 ............................................................................................. 36
2.6 A Torre de Babel Gn 11,1-9 ........................................................................... 38
UNIDADE 3 O DEUS LIBERTADOR E O DEUS DA ALIANA: O LIVRO DO
XODO ................................................................................................................... 43
3.1Israel escravo no Egito (Ex 1,1-15,21) ............................................................... 44
3.2 Pragas e Pscoa ............................................................................................... 48
3.3 Caminhada pelo deserto ................................................................................... 50
3.4 Aliana............................................................................................................... 53
3.5 Os Dez Mandamentos ....................................................................................... 54
UNIDADE 4 O MOVIMENTO PROFTICO ......................................................... 63
4.1 Caractersticas dos profetas .............................................................................. 64
4.2 Verdadeiros e falsos profetas ............................................................................ 65
4.3 Contedo da pregao dos Profetas ................................................................. 67
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UNIDADE 5 OS LIVROS SAPIENCIAIS E OS SALMOS .................................... 71
5.1 Conceito bblico de sabedoria e de sbio .......................................................... 72
5.2 Os Salmos ......................................................................................................... 73
REFERNCIAS ....................................................................................................... 75
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INTRODUO
No temos a pretenso de fazer uma abordagem completa da Teologia do
Antigo Testamento, pois o Antigo Testamento muito amplo e so muitos os temas
que mereceriam a nossa ateno.
Este material didtico comea com uma unidade introdutria em que se
abordam alguns assuntos preliminares que estabelecem as bases para a
compreenso das outras unidades, assim como as outras disciplinas de teologia
bblica.
Decidimos dedicar mais espao abordagem das origens (Gnesis) e da
sada do Egito (xodo), por serem livros que contm temas fundamentais para a
Teologia do Antigo Testamento: a Criao, a revelao do Deus libertador, a
celebrao da Pscoa e a Aliana entre Deus e o povo.
Dedicaremos tambm um breve espao para falarmos a respeito do
movimento proftico, para entender o que so os profetas, quais as caractersticas
destes personagens to importantes para a teologia bblica.
Por ltimo apresenta-se, tambm de maneira muito breve, a natureza dos
livros sapienciais e dos Salmos para entender o que a sabedoria e quais os
principais objetivos dos livros do corpo sapiencial.
Espero que este material ajude voc a se introduzir no apaixonante mundo do
Antigo Testamento e se deixe envolver pelo Esprito do Deus Criador e Libertador,
que continua falando por meio dos Profetas para semear e espalhar a sabedoria de
vida entre todos ns.
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UNIDADE 1 NOES PRELIMINARES
O objetivo desta unidade introduzir o aluno no mundo da Bblia,
apresentando alguns conceitos bsicos e noes introdutrias quanto importncia
da Bblia para os cristos e para o mundo de hoje, assim como algumas noes
quanto sua correta interpretao.
1.1 Bblia, coleo de livros
Todos, ou quase todos, temos Bblia em casa, e quase todos tambm
conseguem narrar algumas histrias contidas na Bblia. Desde crianas escutamos
falar a respeito da Bblia e da Histria Sagrada. Mas infelizmente no podemos dizer
que quase todos temos uma compreenso ampla e correta dos livros bblicos. Que
seja o livro mais vendido no quer dizer que seja o mais lido e muito menos o mais
conhecido. Tem livros da Bblia que so
praticamente desconhecidos: voc j
escutou falar do pequeno livro de
Abdias? De que fala o livro de Esdras?
Muito se fala do final do mundo, mas
qual o correto significado do livro do
Apocalipse? Trata-se de um livro que
fala do final do mundo?
Fonte: http://migre.me/ffSNx
Poderamos fazer muitas perguntas e seria difcil conseguir responder a
todas. A Bblia muito extensa e apresenta a mensagem divina em contextos
histricos e sociais muitos diferentes. Alguns livros so mais conhecidos, at por
conta das histrias que escutamos de crianas, como, por exemplo, o livro de Jonas
ou a histria do xodo, mas outros ficam no esquecimento.
Em primeiro lugar, vamos tentar
entender o que significa a palavra Bblia. Bblia: trata-se de palavra grega, que significa livros (no plural).
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Estamos acostumados a relacionar a Bblia com um livro, mas ser que isso
correto? Na realidade, a Bblia no um livro, mas uma coleo de muitos livros,
escritos ao longo de muitos sculos, por autores muito diversos e com
intencionalidades tambm diferentes.
Figura 1 A Bblia na linha do tempo
Fonte: http://migre.me/fgsXj
Veja a seguir uma representao grfica da coleo de livros que contm a
Bblia:
Figura 2 Livros da Bblia
Fonte: http://migre.me/ffT4J
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O Antigo Testamento tambm livro sagrado para os judeus. Trata-se dos
livros escritos antes do nascimento de Jesus. Porm, o Novo Testamento, isto , os
livros escritos aps o nascimento de Jesus, so considerados como inspirados
apenas pelos cristos.
Porm, tem mais uma diferena entre o
cnon judeu e o cnon cristo. Os livros do
Antigo Testamento que foram escritos em grego
tambm no entraram no cnon dos judeus. Eles
aceitaram como inspirados apenas os livros
escritos em hebraico. Enquanto que os catlicos aceitam como inspirados tambm 7
livros escritos em grego.
Quando da Reforma Protestante, Lutero adotou como lista de livros
sagrados o cnon judeu. Da a diferena que existe at hoje entre a Bblia
Evanglica e a Bblia Catlica.
Livros que se encontram apenas na Bblia Catlica: Tobias, Judite, 1 e 2
Macabeus, Baruc, Eclesistico e Sabedoria. Algumas partes dos livros de Daniel
e de Ester, escritos em grego, tambm ficaram fora da Bblia Evanglica.
Perceba que as diferenas se referem apenas ao Antigo Testamento, o
Novo Testamento tem os mesmos livros nos dois casos.
1.2 Bblia, Palavra de Deus
Ento, a Bblia a coleo de livros cannicos, livros normativos. Isso quer
dizer que so considerados inspirados por conterem a revelao de Deus ao povo.
Deus quer se manifestar, se comunica, revelando seu plano de salvao para com a
humanidade. Veja que no estamos falando apenas de comunicao ao povo de
Israel, povo eleito, mas a toda a humanidade. Isto , a Bblia foi escrita com o
intuito de ser um guia para cada um de ns, homens e mulheres de qualquer nao
e de todos os tempos.
Cnon: palavra de origem grega, que significa cana, modelo, norma. Isto , trata-se da lista de livros que uma religio considera sagrados e, por isso, so normativos para os seus seguidores.
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O objeto da revelao divina pode se resumir em duas palavras: f e moral.
Isto , o objetivo da revelao levar as pessoas a se religar a Deus, estabelecer
uma relao com Deus de maneira que essa adeso possa moldar sua conduta
(moral) de acordo com a vontade de Deus.
Portanto, no adequado entender a Bblia como um livro de histria ou
como um livro de cincia. No so respostas de cunho cientfico que temos que
procurar na Bblia, pois no foi escrita por cientistas, mas por pessoas simples de
muitos sculos atrs que tinham a inteno de dar uma catequese, partilhar uma
experincia de f.
Por mais que a revelao bblica se manifesta atravs da histria do povo de
Israel, a Bblia no um livro de histria no sentido moderno da palavra; no
podemos esperar rigor histrico nesse sentido. Por exemplo, nos primeiros captulos
do livro do xodo, quando se fala da escravido, o autor no menciona qual o nome
do Fara que oprimia Israel. Isso seria inconcebvel em um livro de histria moderno.
Resumindo, podemos dizer, com as palavras de Gass (2012):
A leitura da Bblia quer nos ajudar em nossos dias a perceber a presena viva de Deus, do seu sonho de vida e esperana, de paz e solidariedade. Por isso, a Palavra de Deus , acima de tudo, como a luz de um farol que indica o caminho por onde andar. Mas no apenas ilumina. tambm luz que aquece nossa esperana. Nela encontramos sentido para nossas vidas (GASS, 2012, p.09).
Mas temos que evitar uma concepo mgica da Bblia: trata-se de Palavra
de Deus, mas escrita por homens. Homens
inspirados por Deus, que iluminam seu presente
a partir da experincia de Deus que eles tm.
lgico que essas pessoas inspiradas por Deus
no so neutras; elas pertencem a momentos
histricos concretos, tinham costumes tpicos da
poca, viviam em um contexto socioeconmico
particular, tinham a imagem de Deus influenciada
pelo momento histrico e religioso de cada um.
Fonte: http://migre.me/ffT9O
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Portanto, a Bblia no um livro cado do cu. Como muito bem esclarece
Mannucci (1995, p.75): A Bblia no foi ditada por nenhum anjo, mas foi escrita por
dezenas de autores [...] que tiveram em comum a preocupao de narrar e
testemunhar os feitos milenares do seu povo [...].
Fonte: http://migre.me/fifcw
A ao do Esprito Santo como a
chuva. Ela cai do alto e, junto com a
terra c embaixo, ajuda a semente a
germinar, de modo que se transforme
em planta, floresa e frutifique (GASS,
2012, p.29).
A metfora da planta muito sugestiva: s com gua, a planta no
consegue viver, mas s com terra, tambm no daria certo. A gua que vem do cu
(a inspirao do Esprito) fundamental para poder dar fruto; o Esprito ilumina e
assiste e, junto com a terra, que na metfora seria a contribuio humana (a
percepo do ser humano, sua experincia de Deus), faz com que o autor sagrado
consiga comunicar a Palavra de Deus, inserido sempre em um contexto cultural,
social, econmico e poltico concreto.
A ao do Esprito Santo, a inspirao, no deve ser entendida como um
ditado. Ele assistia os autores, como fora e guia para estimular seu pensamento e
sua escrita.
Mas em todos os testemunhos deixados
pelos diferentes hagigrafos, por mais diferentes
que possam ser os seus contextos, podemos
encontrar um denominador comum, uma preocupao fundamental que perpassa a
Bblia toda e que lhe d unidade e fora. Usando de novo as palavras de Gass
(2012, p.12):
O critrio fundamental, a principal chave de interpretao para ler as Escrituras a pessoa de Jesus Cristo. [...] E ele mesmo diz qual o critrio para compreender a Palavra de Deus presente nas palavras humanas, escritas pelo povo de Israel. [...] O critrio central que Jesus nos fornece a defesa da vida. Defesa da vida em qualquer
Hagigrafo: palavra de origem grega, que significa autor sagrado, inspirado.
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situao em que ela se encontre diminuda, seja na doena, na excluso, na pobreza, na prpria morte.
Portanto o ponto fundamental da Bblia e seu critrio de interpretao
Jesus e sua defesa da vida. Mas ateno, no se trata apenas de defender a vida,
mas lutar para que todos tenham vida em abundncia. Essa frase de Jesus deixa
claro que a defesa da vida fsica muito pouco. E nos evangelhos vemos Jesus
defendendo qualquer tipo de excluso, tentando garantir a dignidade da pessoa
integral.
Por isso no podemos separar, como s vezes se faz, o seguimento de
Jesus do compromisso social. Pois, afinal:
1.3 A autoria na Bblia
So poucos os livros da Bblia dos quais temos certeza de quem foi o autor.
Isso se deve a que naquela poca a questo da autoria no se entendia como hoje.
Atualmente a questo dos direitos autorais coisa sria e ningum pensa em
escrever ou publicar o livro com o nome de outra pessoa. Porm, na antiguidade as
coisas se entendiam de maneira diferente e escrever atribuindo a autoria a algum
personagem do passado que gozasse de autoridade e crdito dentro da comunidade
era prtica normal. Era uma maneira de homenagear o mestre, de um lado, e dar
autoridade ao contedo, do outro.
Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundncia (Jo 10,10)
[...] Eu vos asseguro: o que fizestes a estes meus irmos menores, a mim o fizestes (Mt 25)
Hagigrafo: palavra de origem grega, que significa autor sagrado, inspirado.
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Os autores aos quais so atribudos os livros da Bblia devem ser
considerados mais como patronos ou iniciadores de uma corrente de escritos
(GASS, 2012, p.27).
A Moiss, por exemplo, atribuda a Lei, mesmo que sejam leis que
surgiram muito depois da morte de Moiss, mas como Moiss era considerado pelo
povo como o legislador (cf. os 10 Mandamentos: Ex 20), a ele eram atribudas as
leis, mesmo posteriores a ele.
Os Salmos so atribudos a Davi, que tinha fama de ser poeta e ter
habilidade tocando instrumentos (1 Sm 16,23: [...] Davi pegava a harpa e tocava
com a sua mo; ento Saul sentia alvio, e se achava melhor, e o esprito mau se
retirava dele).
Alguns livros sapienciais so atribudos a Salomo, por ser considerado pelo
povo um rei sbio (1 Rs 4,9-10: Deus concedeu a Salomo sabedoria e inteligncia,
[...] A sabedoria de Salomo superou a dos sbios do Oriente e do Egito).
Porm, no passam de meras atribuies, so escritos, na sua maioria,
muito posteriores a esses personagens patronos. Da maioria dos livros da Bblia
no conhecemos o nome do(s) autor(es).
1.4 A interpretao da Bblia
J dissemos que o nosso critrio fundamental deve ser a pessoa de Jesus e
os valores evanglicos pelos quais ele deu inclusive a vida. Mas como devemos
interpretar a Bblia? Basta l-la e interpret-la ao p da letra?
Os livros da Bblia foram escritos
muitos sculos atrs, por pessoas de cultura
muito diferente nossa e em terras muito
distantes da nossa. Portanto, faz-se
necessrio um trabalho de interpretao para
no cair na interpretao literal,
fundamentalista.
Fonte: http://migre.me/fhDSN
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Vamos colocar um exemplo simples. Na nossa lngua portuguesa, utilizamos
expresses no nosso dia a dia que so entendidas por todos, mas no poderiam ser
entendidas ao p da letra. Por exemplo:
Minha irm e eu somos unha e carne
Fulano entrou pelo cano
Ficou enchendo linguia
Se eu escrever hoje um livro e disser que minha irm e eu somos unha e
carne, qualquer contemporneo nosso vai entender que estou querendo dizer que
h muita intimidade entre ns duas. No verdade? Mas, com o passar do tempo,
essa expresso pode cair em desuso e pode que as pessoas das prximas
geraes no entendam essa expresso e precisem de uma nota de rodap que
explique que na poca em que a autora escreveu, essas palavras expressavam uma
estreita intimidade entre duas pessoas. Deu para entender?
isso o que acontece com certas expresses e costumes que encontramos
na Bblia e que no podem ser adequadamente entendidas sem uma explicao. s
vezes o erro pode ser ficarmos apenas na superficialidade da mensagem, mas
outras vezes, o erro pode ser grosseiro e podemos chegar a entender at o contrrio
do que os autores pretendiam expressar, como o caso do que acontece com
algumas expresses numricas do livro do Apocalipse. Um livro que pretende ser
uma mensagem de esperana e de conforto, s vezes, por ser mal interpretado,
acaba assustando e levando as pessoas a ter medo de sua mensagem.
A partir da letra do texto temos que conseguir descobrir o seu sentido real,
seu esprito, isto precisamos descobrir qual foi a inteno do autor, qual a
mensagem que ele quis transmitir.
Nesse sentido, a Dei Verbum, Constituio Dogmtica sobre a Revelao
Divina, no seu nmero 12, diz:
[...] a letra mata, mas o Esprito que d a vida (2 Cor 3,6)
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12. Como, porm, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e maneira humana, o intrprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com ateno o que os hagigrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras. Para descobrir a inteno dos hagigrafos, devem ser tidos tambm em conta, entre outras coisas, os gneros literrios. [...] Importa, alm disso, que o intrprete busque o sentido que o hagigrafo em determinadas circunstncias, segundo as condies do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo-se dos gneros literrios ento usados. [...]
importante que o leitor busque ir alm da interpretao literal ou textual.
Fazendo uma correta interpretao da Palavra e evitando, assim, deturpar a
mensagem bblica.
1.5 Critrios bsicos da leitura crist
A Conferncia dos Religiosos do Brasil aponta trs critrios bsicos da leitura
crist da Bblia. Trata-se de uma prtica simples e profundamente fiel mais antiga
Tradio das Igrejas (CRB, 2000, p.19):
1. Ler a Bblia a partir da Realidade. Lembrando que a opo preferencial
deve ser sempre pelos mais pobres e excludos.
2. Leitura feita em Comunidade.
3. Ler a Bblia respeitando o Texto, colocando-se escuta do que Deus quer
realmente comunicar, abrindo-se converso ou mudana para adequar a
nossa vida sua mensagem.
Vamos entender melhor estes critrios utilizando um texto bblico muito
conhecido: a passagem dos Discpulos de Emas (Lc 24,13-35).
A passagem comea apresentando a situao de dois discpulos que se
encontram desnorteados, sem rumo, sem esperana. Jesus se aproxima deles e
pergunta: De que esto falando? (Lc 14,21). Jesus quer se aproximar da realidade
deles (primeiro passo): o que ser que os aflige? Qual seu problema? O que fez com
que eles perdessem a esperana? Da, eles respondem: Ns espervamos que ele
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fosse o libertador, mas [...] (Lc 14,21). A morte de Jesus deixa eles desanimados,
achando que tudo estava acabado.
Nos versculos seguintes (Lc 24, 25-27), vemos que Jesus utiliza a Bblia
para iluminar o problema, isto , para trazer luz sobre a sua realidade e poder
mostrar que havia motivos de esperana. Portanto, o segundo passo seria
transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperana [...] Condio
para poder fazer este segundo passo ter familiaridade com a Bblia (CRB, 2000,
p.20).
Mas ainda tem o terceiro passo:
A Bblia, por si, no abre os olhos. Mas faz arder o corao! (Lc 24,32). O que abre os olhos e faz os dois amigos perceberem a presena de Jesus o partir do po, o gesto comunitrio da partilha, a celebrao. [...] O terceiro passo saber criar um ambiente orante de f e de fraternidade, onda possa atuar o Esprito que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou (CRB, 2000, p.20)
Podemos, ento, resumir os trs critrios na figura a seguir:
Figura 3 Os trs critrios da leitura orante da Bblia
Fonte: Adaptado de CRB (2000, p.19)
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Exerccio 1
1. A respeito do cnon bblico, analise os enunciados a seguir:
I. H diferenas entre o cnon Evanglico e o cnon Catlico no Antigo e no Novo Testamento.
II. No cnon Evanglico no entraram os livros do Antigo Testamento escritos em grego.
III. O cnon Catlico e o Evanglico so idnticos.
a) Apenas o enunciado I est correto.
b) Apenas o enunciado II est correto.
c) Apenas o enunciado III est correto.
d) Nenhum enunciado est correto.
2. A respeito da autoria na Bblia, analise os enunciados a seguir:
I. Conhecemos o autor da maioria dos livros bblicos.
II. O nico autor da Bblia Deus, portanto podemos ignorar a autoria humana.
III. Alguns livros so atribudos a personagens importantes do passado, a modo de homenagem.
a) Apenas os enunciados II e III esto corretos.
b) Apenas os enunciados I e II esto corretos.
c) Apenas o enunciado II est correto.
d) Apenas o enunciado III est correto.
3. Responda verdadeiro ou falso:
I. A Bblia de fcil compreenso por ser Palavra de Deus, basta ler para entender.
II. Os autores bblicos pertencem a outro tempo e outra cultura diferente da nossa.
III. Uma correta interpretao deve levar em conta qual foi a inteno do autor.
IV. A interpretao da Bblia ao p da letra pode levar a erros grosseiros.
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1.6 Situao geogrfica de Israel
A terra de Israel est localizada em uma situao geogrfica estratgica,
pois une trs continentes: Europa, sia e frica. Veja no mapa a seguir a localizao
de Israel no mundo:
Figura 4 Situao geogrfica de Israel
Fonte: Adaptado de http://migre.me/fjEBd
No mapa acima, o pas de Israel a pequena poro destacada de cor roxa.
Trata-se de um pas muito pequeno, especialmente se comparado com o tamanho
do Brasil: Israel 340 vezes menor que o Brasil, mais ou menos do tamanho do
Estado de Sergipe!
O pas pequeno [...] tem a extenso de 200 km (norte-sul) por 80 km (leste-oeste), a que se deve acrescentar uma outra faixa de 40 km na Transjordnia. Ao todo so cerca de 20.000 km2. [...] Para o perodo do Bronze recente, quando o Egito e a Mesopotmia podiam contar com alguns milhes de habitantes, a Palestina nem sequer chegava aos 250 mil habitantes. No pice do
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desenvolvimento, durante o segundo perodo do Ferro poder chegar a 400 mil pessoas. (LIVERANI, 2003, p.28)
Lendo a Bblia, voc pode perceber que o Pas onde nasceu e viveu Jesus
recebe muitos nomes: Terra Santa, Terra Prometida, Israel, Cana, Palestina,
Judeia... Por que tanta variedade de nomes?
1.7 Israel e seu entorno
Lendo a Bblia, voc pode perceber que no se fala apenas de Israel. Fala-
se de Abrao que saiu da cidade de Ur, da Mesopotmia, da escravido no Egito,
das tbuas da Lei que o povo recebeu no monte Sinai, de conflitos de Israel com
povos vizinhos (Moab, Edom, Amon, Sria, Filisteus, etc.), do tempo em que
Nabucodonosor fez com que o povo tivesse que ir para o exlio na Babilnia, do
imprio assrio, persa, grego, romano, das sete igrejas da sia Menor do
Apocalipse...
So muitos povos e muitas cidades que aparecem e bom sempre termos
um mapa por perto para identificar esses lugares. Veja mais de perto a regio
destacada na figura da pgina anterior:
Antes da formao do povo de Israel (at 1250 a.C.) essa terra recebia
o nome de Terra de Cana.
A partir da poca tribal (organizao em tribos), passou a se chamar:
Israel, Terra Prometida ou Terra Santa.
Aps a morte de Salomo (930 a.C.), o Pas dividiu-se em dois reinos. O
reino do norte passou a se chamar Reino de Israel e o reino do sul,
Reino de Jud.
Na poca do imprio romano, aquela regio recebeu o nome de
Palestina.
As trs provncias mais citadas no Novo Testamento so de norte a sul:
Galileia, Samaria e Judeia. (GASS, 2000, p.62).
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Figura 5 Oriente Antigo
Fonte: Auth, 2001.
A maior parte da histria da Bblia se desenvolve em uma rea muito
pequena do extremo oriental do Mar Mediterrneo, nos pases litorneos que esto
situados entre o mar e os grandes desertos arbicos.
O mundo do mar e o mundo do deserto se encontram separados pelo crescente frtil. D-se esse nome a uma faixa de pases bem regados, que se estendem desde o Egito ao sul (com sua civilizao baseada na grande corrente do rio Nilo), que passava por uma zona de chuvas naturais na costa oriental do Mediterrneo, at as terras frteis da Mesopotmia, com seus grandes rios: Tigre e Eufrates. (ALEXANDER, 1987, p.01)
Dentro dessa faixa, Israel era lugar de
passagem obrigatria, por estar situada entre as
potncias do norte, Assria e Babilnia, na
Mesopotmia, e a potncia do Sul, o Egito.
Mesopotmia: No se trata de um pas, mas de uma regio. uma palavra de origem grega: meso (meio) potams (rio). Isto , a palavra Mesopotmia se refere regio situada entre os rios Tigre e Eufrates.
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Figura 6 Crescente frtil
Fonte: http://migre.me/fm6Ub
Essa regio do Crescente Frtil, formada pelos rios Nilo, Jordo, Tigre e
Eufrates, tambm chamada de Meia lua frtil por causa do arco formado pelas
regies frteis, como se pode ver no mapa anterior.
Sugesto de leitura
Para se aprofundar mais na Introduo Sagrada
Escritura, sugiro que voc leia o livro:
GASS, Ildo Bohn (org.). Uma introduo Bblia: porta de entrada. Vol. I. 3. ed. So Paulo: Paulus. So Leopoldo, RS: CEBI, 2012. A linguagem utilizada muito simples e aborda os temas apresentados nesta unidade e outros muitos de interesse para uma introduo Bblia.
Fonte: http://migre.me/fCUyZ
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Exerccio 2
1. Relacione as duas colunas:
1. Nilo Nome de Israel no imprio romano
2. Cana Rio da Mesopotmia
3. Palestina Rio do Egito
4. Eufrates Regio entre rios
5. Mesopotmia Nome de Israel at 1250
2. Analise os enunciados a seguir:
I. O Crescente frtil e Mesopotmia so sinnimos, indicam a regio entre os rios
Tigre e Eufrates.
II. A terra de Israel encontra-se em situao estratgica: entre trs continentes.
III. Israel era um pas grande que nem o Egito.
a) Apenas os enunciados I e II esto corretos.
b) Apenas os enunciados I e III esto corretos.
c) Apenas o enunciado I est correto.
d) Apenas o enunciado II est correto.
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UNIDADE 2 AS ORIGENS Gn 1-11
O objetivo desta unidade aprofundar nos textos de Gnesis 1-11, que
abordam a questo da origem do mundo, do ser humano e da origem do mal.
So textos muito conhecidos no seu teor textual, pois so histrias que
escutamos desde crianas, mas nem sempre so conhecidos de maneira mais
aprofundada, indo alm da literalidade e se perguntando qual seria a mensagem real
e original dos textos no contexto em que foram escritos.
o que vamos tentar nesta unidade. Mas antes, vamos comear com umas
palavras a respeito do Pentateuco, que, como voc sabe a primeira parte da nossa
Bblia.
Fonte: http://migre.me/flFnW
Pentateuco uma palavra de origem
grega: penta (cinco) teukos (estojo, rolo). A
palavra teukos se referia ao estojo onde eram
guardados os rolos (antigamente no havia livros,
mas rolos de papiro). A primeira parte da Bblia
contm cinco livros, que so chamados de Torah
(Lei) pelos judeus.
Fonte: http://migre.me/ffSRV
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Durante muitos sculos,
pensou-se que o autor do Pentateuco
era Moiss, mas, como falamos na
primeira unidade, trata-se apenas de
uma atribuio para homenagear
Moiss, lder indiscutvel no perodo de
caminhada pelo deserto, que teve,
entre outras funes, a incumbncia de
guiar o povo quando saiu da escravido
do Egito, a caminho da Terra Prometida
e mediou a aliana de povo com Deus.
E, claro, dessa maneira tambm se
garantia a autoridade e aceitao das
leis.
Fonte: http://migre.me/fm78a
Porm, lendo de maneira crtica o Pentateuco, percebemos que
praticamente impossvel que tenha sido escrito por ele, nem sequer podemos admitir
que tenha sido escrito por uma nica pessoa. Usa-se vocabulrio muito diferente:
Deus umas vezes chamado de Elohim e outras de Jav; o sogro de Moiss recebe
vrios nomes, o monte da revelao tambm aparece umas vezes com o nome de
Sinai e outras como monte Horeb, etc.
Algumas passagens so narradas duas vezes. Temos duas vezes a aliana
de Deus com a Abrao (Gn 15 e Gn 17), dois textos da criao (Gn 1 e Gn 2-3), dois
textos do chamado de Moiss (Ex 3-4 e Ex 6), etc.
Por outro lado, vemos que em todos os livros do Pentateuco a narrao na
terceira pessoa: O Senhor disse a Moiss [...] (Ex 12,43); Moiss chamou [...] (Ex
12,21). Se fosse Moiss que estivesse escrevendo, encontraramos: O Senhor me
disse; eu chamei, etc.
Hoje se sabe que por trs do Pentateuco h vrias tradies de vrias
pocas diferentes que unidas posteriormente, formaram os cinco primeiros livros.
Portanto, no se pode falar de um nico autor.
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2.1 O Gnesis
A palavra Gnesis uma palavra grega, que significa origem. Ento, o nome
j est indicando a natureza do contedo desse livro. Fala-se da origem do mundo e
do ser humano (Gn 1-2), da origem do mal e como este foi se estendendo no mundo
(Gn 3-11), das origens do povo de Israel e dos povos do seu entorno (Gn 12-50),
com a histria dos Patriarcas (Gn 12-36) e a
histria de Jos (Gn 37-50).
Segundo von Rad (1988), o livro do
Gnesis no constitui um livro isolado que possa
ser interpretado prescindindo do resto do
Hexateuco. O livro est formado por tradies de
diferentes pocas histricas, e diversos gneros
literrios: lenda (o mito) e saga.
O mito, na histria de um povo, no uma histria mentirosa, mas uma narrao que tenta explicar como este povo deve relacionar-se com Deus e com a natureza que est ao seu redor. Portanto, todo mito tem relao com a realidade, boa ou ruim, que este povo est vivendo [...]. (SARTOREL & PAIXO, 2007, p.13).
Tudo isso tem que ser levado em conta para poder interpretar esses textos
de maneira adequada, para poder descobrir qual a verdadeira inteno dos autores,
superando a interpretao literal ou fundamentalista, sabendo que os autores
apenas pretendiam dar uma catequese, transmitir uma experincia de f. Portanto,
temos que lembrar qual o objeto da revelao, como falvamos na unidade anterior:
questes de f e moral, no um livro de histria (no sentido moderno da palavra)
nem um livro de cincia. Os autores eram pessoas simples, e s conheciam a
cincia da observao.
por isso que podemos ler no livro de Josu uma orao pedindo que o sol
pare (Js 10, 12). Hoje sabemos que a terra que gira ao redor do sol, mas na poca
de Josu (sc. XIII a.C.) no sabiam disso, ele apenas observava que quando
levantava, de manh, o sol estava de um lado e quando escurecia, o sol j estava no
lado contrrio. Portanto, era normal na poca dele pensar que seria o sol quem
Hexateuco: Von Rad defende que o primeiro bloco da Bblia deveria incluir o livro de Josu, pois o povo sai do Egito para entrar na Terra Prometida e essa entrada acontece apenas no livro de Josu. Por isso ele prefere falar de Hexateuco, incluindo Josu nesse primeiro bloco da Bblia.
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girasse ao redor da terra e no o contrrio. Pois, afinal, ningum v a terra em
movimento.
Isso quer dizer que a Bblia no pode ser pega como verdade de cincia,
no esse tipo de perguntas que devemos fazer aos textos bblicos, que pretendem
formar (diferente de informar), transmitir uma experincia de f e o convencimento
de que Deus a origem de tudo e de todos, que Deus o Criador e ns somos as
criaturas s quais Ele confiou sua obra.
2.2 Os textos da Criao
Para o leitor s vezes passa despercebido, mas na Bblia no h um texto
da criao, mas dois (Gn 1,1-2,4a e Gn 2.4b-3,24). E, mesmo que a mensagem seja
semelhante, entre os dois textos h diferenas significativas:
Um texto conta a criao dentro do esquema de uma semana,
enquanto que no outro se fala de um paraso, da rvore do bem e do
mal, Ado e Eva, etc.
No primeiro texto, homem e mulher so criados ao mesmo tempo, no
final da obra criadora de Deus, enquanto que no segundo, Deus cria
em primeiro lugar Ado, depois o resto das coisas criadas, at chegar
no final criao de Eva.
No primeiro texto, Deus cria apenas falando, enquanto que no segundo
Ado criado da terra e Eva criada pegando a matria-prima de
Ado.
No primeiro texto se fala da criao em seis dias, mas no segundo
texto no se fala nada a respeito de quanto tempo foi necessrio.
O primeiro texto nem fala do pecado, do mal. Todos os dias da semana
acabam com a mesma frase: E Deus viu que era bom (Gn 1,
10.12.18. 21. 25. 31). Apenas o segundo texto que fala da origem do
mal e do pecado.
No primeiro texto, antes de Deus comear a Criao, havia muita gua:
Deus teve que separar as guas abaixo da abbada das guas acima
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da abbada (Gn 1,2.6-7); enquanto que no segundo texto, o caos era
a seca, a falta de gua (Gn 2, 5-6).
Citamos apenas alguns exemplos, mas fazendo uma leitura atenta dos dois
textos (Gn 1,1-2,4a, de um lado e Gn 2,4b-3,24, do outro), voc mesmo pode
perceber que h outras muitas diferenas, inclusive o estilo e a linguagem so muito
diferentes.
A seguir vamos abordar cada um deles por separado e vamos descobrir que
a mensagem dos dois basicamente a mesma, mas cada autor, influenciado pela
sua poca, apresentou a catequese de maneira totalmente diferente.
2.2.1 Gn 1,1-2,4a
Este texto nos situa no ambiente do
exlio na Babilnia (o mesmo contexto do texto
do dilvio, como veremos mais adiante).
Segundo Schwantes (2007), so dois os
argumentos que permitem esta afirmao:
a) Em primeiro lugar, o texto d muito destaque ao ritmo semanal e
importncia do dia do sbado:
Se bem que este sbado represente uma tradio antiga, at tribal, foi o exlio que o valorizou sobremodo. Entre os babilnios, o sbado veio a tornar-se um sinal diferenciador. Identificava os deportados. Podemos, pois, situar Gnesis 1 no 6 sculo a.C., entre os deportados, na Babilnia [...]. (SCHWANTES, 2007, p.31).
Colocar Deus criando (trabalhando) em seis dias e descansando no stimo
pretendia ser um estmulo e um exemplo para os judeus exilados no sentido de
valorizar a prtica da observncia do sbado em um contexto que no era favorvel
a tal prtica, pois os babilnios no adotavam o ritmo da semana. Seus dias festivos
tinham origem no ritmo da lua e eram quinzenais. E, por outro lado, o trabalho
forado imposto pelos babilnios exigia atividade contnua (SCHWANTES, 2007,
p.33).
Ento, agora fica mais clara a inteno do autor quando decidiu apresentar
Deus criando em seis dias. Lembre que o segundo texto da criao (Gn 2-3) em
Exlio: as lideranas do povo de Israel foram deportadas Babilnia no tempo de Nabucodonosor. A primeira deportao foi no ano 597 a.C. e a segunda no ano 586 a.C.
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nenhum momento menciona quanto tempo levou a obra criadora de Deus, at
porque os autores, como tambm ns, no tinham esse dado. O autor no pretendia
dizer quanto tempo Deus dedicou Criao (lembre que no so cientistas que
escrevem a Bblia, e o objetivo deles no era dar informaes cientficas, mas formar
pessoas de f, com o convencimento de que tudo vem das mos de Deus).
Figura 7 Criao de Michelangelo
Fonte: http://migre.me/ffTe6
b) Em segundo lugar, evidente tambm a polmica com os deuses da
luz (sol, lua e estrelas). Na Babilnia cultuavam como deuses os astros. O autor
quer deixar muito claro que o que l era adorado como deuses eram apenas
criaturas de Deus.
O autor dedica dois dias da semana a falar dos astros: o primeiro e o quarto.
No esquema dos sete dias, trata-se de dois momentos muito importantes: o incio e o centro. Da se pode inferir que a temtica dos astros muito relevante para nosso poema. [...] Tem a ver com a religio do imprio babilnico. Os smbolos maiores de sua crena eram os astros. Na capital, o santurio central estava dedicado ao sol. Portanto, todo o imprio se entendia como representante do sol. (SCHWANTES, 2007, p.34)
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Outro elemento do texto que merece nossa ateno o ltimo dia, quando
Deus cria o ser humano. interessante perceber que no versculo 27, quando Deus
cria o ser humano, aparece trs vezes a palavra criar:
Com a repetio da palavra criou, o autor quer chamar a ateno para o
ato criador mais importante, a criao por excelncia. Todas as coisas anteriores
foram criadas pensando na criao do ser humano que vem coroar a obra criadora.
O homem e a mulher so, portanto, idnticos diante de Deus. Nos mitos
babilnicos, s os reis eram feitos imagem de Deus, mas aqui a Bblia nos d
uma certeza: no existe privilgio de nobreza porque toda e qualquer pessoas foi
feita imagem e semelhana de Deus (SARTOREL & PAIXO, 2007, p. 17)
Com base neste versculo, ficam desautorizados todo e qualquer tipo de
excluso, de racismo, preconceito, seja qual for o motivo: gnero, raa, classe
social, religio, etc. Todos somos criaturas de Deus e todos somos igualmente
importantes para Deus.
Nos versculos seguintes (Gn 1,28-30), Deus confia ao ser humano o
cuidado de todos os outros seres criados. Deus oferece ao ser humano tudo o que
for necessrio para a vida: entrego todas as rvores que do semente sobre a face
da terra; e todas as rvores frutferas que do semente vos serviro de alimento
(Gn 1,30).
Deus fala de encher a terra, submet-la e domin-la (v.28), mas claro que
estas palavras devem ser entendidas no sentido de cuidar, preservar, e no no
sentido de usar e abusar, o domnio no deve ser destruidor, somos chamados a ser
zeladores da criao.
A tarefa dos seres humanos consiste, pois, por um lado, na transformao do ambiente natural em ambiente cultural. O desafio do ser humano justamente transformar em cultura o que simplesmente natural. Nisso reside talvez uma das genunas tarefas criadoras do ser humano: ser co-criador com Deus. Por outro lado, a tarefa do ser humano implica tambm o guardar, isto , no destruir a natureza criada por Deus, mas sim, mant-la em suas bases de
E Deus criou o homem sua imagem; imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou (Gn 1,27).
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sustentao e no seu prprio ciclo de vida. (REIMER, 2006, pp.43-44.)
Ento, fechando o comentrio ao primeiro texto, veja quantas coisas bonitas
podem ser exploradas numa aula, na catequese, na homilia, ou em qualquer outro
contexto, a respeito deste texto: todos os seres criados tm sua origem em Deus, o
descanso bom e querido por Deus (sbado), nenhuma criatura pode se arrogar
condio divina (como acontecia com os astros na Babilnia), o ser humano (homem
e mulher) so a coroa da criao, e a eles Deus confia a continuidade da obra
criadora, cuidando e preservando a natureza.
2.2.2 Gn 2,4b-3,24
O contexto agrcola, da roa o que marca este texto. Schwantes (2007,
p.59), destaca que enquanto Gn 1,1 falava da criao dos cus e da terra, Gn 2,4b
refere-se criao da terra e dos cus. Portanto, em 2,4b a terra mais
importante. Outros indcios do contexto agrcola: o caos apresentado como a falta
de gua, a seca (2,5), que o maior drama do campons; Deus cria o homem do
barro, da terra (2,7); o paraso consiste em um pomar cheio de rvores frutferas;
quando da expulso do paraso, Ado ter que ser lavrador da terra (3,17-23).
Portanto, podemos concluir que um texto escrito desde a tica do lavrador
(SCHWANTES, 2007).
Outro elemento importante no texto a serpente, que nas culturas que
circundam Israel representa foras hostis ao plano de
Deus, a personificao do mal e da idolatria. Esse
detalhe importante para a adequada datao do texto,
que, segundo Schwantes (2007), no combina com o
sc. X (na poca de Salomo), como muitas vezes se
pensou, pois no uma poca especialmente marcada
pela luta contra a idolatria. J, na poca de Elias (sc.
VIII a.C.), sabemos que a luta foi acirrada (1 Rs 18) e
tambm com Oseias e Isaas, que so profetas do
mesmo sculo.
Fonte: http://migre.me/fmn6u
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Outro indcio, segundo o mesmo autor, que faz pensar nessa poca do sc.
VIII a importncia dada lei. A obedincia lei (2,16-17) sustenta a vida, enquanto
que a transgresso leva morte: A lei, a torah, uma proposta antiga. Mas o
movimento deuteronmico do final do sc. VIII a.C. que d nfase especial e
decisiva lei (2007, p.60).
No cap. 2 se apresenta a possibilidade de vida sendo fiis ao projeto de
Deus. Dessa maneira, o homem pode usufruir do paraso feito por Deus para que ele
possa ter vida e vida em abundncia (emprestando aqui as palavras de Jo 10,10).
Mas no cap. 3 se apresenta o outro lado da moeda: a morte, caso o homem no
aceite sua condio de criatura que dependente do seu Criador e tem que
respeitar sua submisso a Ele e sua dependncia. nisso que consiste o temor de
Deus: em saber-se criaturas, que dependem do seu Criador e aceitar as regras do
jogo, que seria o cumprimento da Lei.
isso que significa no comer da rvore do conhecimento do bem e do
mal (Gn 2,17). O ser humano tem que respeitar a lei de Deus porque Ele que
sabe discernir entre o bem e o mal. Comer da rvore seria querer ser igual a Deus,
ocupar seu lugar com arrogncia e prepotncia. A tradio se encarregou de
associar a rvore proibida com um p de ma, mas o texto bblico no fala nada
disso. De qualquer maneira, importante perceber que a proibio se refere a uma
nica rvore, enquanto que o homem poderia comer e usufruir de todas as rvores.
E o que afinal o jardim, o paraso? Veja as palavras de Sartorel e Paixo:
O jardim est no oriente, de onde tem origem a luz a e a vida. Onde precisamente? Os quatro rios que so nomeados contornam um territrio to grande que compreende o mundo todo, garantindo a vida pela abundncia da gua. O jardim est aqui, o pas onde a gente mora, um pas bom como o ouro de Hvila. Ento, o jardim no outra coisa a no ser o nosso mundo humano! (SARTOREL & PAIXO, 2007, p.26).
Portanto, o campo (jardim) o mundo e Ado qualquer homem, porque na
realidade se refere a toda a humanidade.
Mas Deus percebe a solido de Ado e Deus disse: No bom [...]. Neste
sentido, muito interessante a observao de Sartorel e Paixo (2007), pois at
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agora Deus sempre tinha dito que tudo era muito bom (Gn 1), mas percebe que h
uma coisa errada: a solido do homem. Ento Deus decide fazer uma companheira
e o texto diz que foi tirada do lado de Ado: nem da cabea (para no se sentir
superior), nem dos ps (para no se sentir inferior ao homem), mas do lado, para
que ela seja adequada para poder formar uma s carne junto com ela (v.24). s
dela que Ado pode dizer: Essa sim osso dos meus ossos e carne da minha
carne (2,23). O ser humano no foi criado para viver s, mas em comunidade, em
famlia.
Como voc j deve ter percebido, neste segundo texto, no se fala nada a
respeito do tempo da criao, como j falamos no incio desta unidade. Tambm no
se menciona a criao dos astros, pois no eram preocupao na poca deste
autor.
Porm outros elementos presentes no primeiro texto esto igualmente
presentes no segundo, mas de maneira diversa, com palavras diferentes. Vamos ver
alguns exemplos:
Jav Deus tomou o homem e o colocou no jardim de den, para que o
cultivasse e guardasse (2,15). O homem deu nome a todos os animais
(2,20). O homem tem domnio sobre a criao. Isto , Deus criou a terra
para que o ser humano usufrua dela e de tudo o que ela contm.
Portanto, aqui o ser humano tambm apresentado como coroa da
criao e com misso especial como continuador da obra criadora,
cuidando e preservando.
Fica tambm evidente que h entre Deus e o homem uma relao
especial ( imagem e semelhana), diferente das outras criaturas:
soprou-lhe nas narinas um sopro de vida (2,7) S o ser humano
modelado com as mos de Deus, tanto o homem (2,7), quanto a mulher
(2,22).
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Origem do mal (Gn 3)
No cap. 2 vemos como poderia ser a vida do ser humano em harmonia com
ele mesmo, com seu prximo (homem e mulher), com a natureza e com Deus, se o
homem respeitasse e fosse fiel a Deus e seu projeto de vida.
Porm, no cap. 3 vemos as consequncias da ruptura, que acontece pela
influncia negativa da serpente, que, deturpando as palavras de Deus, quer levar o
ser humano infidelidade, ruptura da relao com Deus. Deus dissera que o
homem no podia comer apenas de uma rvore, enquanto que a serpente diz:
verdade que Deus disse que vocs no podem comer de nenhuma rvore do
jardim? (3,1).
Fica evidente a inteno da serpente de exagerar a proibio divina, para
despertar o desejo da desobedincia. Quer dizer, a serpente faz propaganda
enganosa, querendo que o homem e a mulher pensem que desobedecendo a Deus,
eles mesmos conseguiriam ser iguais a Ele, e desse jeito, chama a ateno do ser
humano para seu maior desejo: criar sua prpria lei e acabar com a condio de
criaturas dependentes do seu Criador.
A serpente de Gnesis 3 provm do mundo cultural e religioso dos egpcios. O fara dominava sob o signo da serpente. Desde o segundo milnio, o culto mediado pela simbologia da serpente era conhecido em Cana. E depois no deixou de marcar presena [...] a devoo serpente era difundida no Israel do tempo dos reis (SCHWANTES, 2007, p.65).
Os israelitas conviviam com os povos cananeus. Nesse contexto, a serpente
simbolizava a tentao e a atrao que os cultos cananeus supunham para os
israelitas, at o ponto de cair na idolatria e na infidelidade a Deus e seu projeto.
As consequncias do pecado sero diversas, mas todas mostram que
acabou a harmonia do incio:
Ruptura com Deus: o homem sente medo e se esconde (3,10)
Ruptura entre homem e a mulher (3,12)
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Inimizade entre homens e animais (3,14)
A relao do homem com a natureza se transforma, acaba a harmonia
com a natureza: o homem ter que trabalhar com fadiga, encontrar
espinhos e ervas daninhas. A mulher por sua vez, dar luz com dores
(3,17-19)
O pecado acaba com a harmonia em todos os sentidos: entre os seres
humanos, com a natureza e com Deus e tambm do homem com ele mesmo
(vergonha: vv.10-11).
2.3 Conflito Bblia x Cincia
Colocamos a palavra conflito entre aspas porque, na realidade, no h ou
no deveria haver conflito, pois, como j dissemos, a Bblia no um livro de
Cincia, apenas pretende dar uma catequese e transmitir verdades de f. A Bblia
no responde a questionamentos cientficos. Desse jeito ficaramos frustrados
procurando respostas cientficas na Bblia, pois no foram cientistas que a
escreveram e sim pessoas de f.
De outro lado, vimos como temos dois textos que apresentam a criao de
maneira muito diferente e em alguns casos at contrria (por exemplo: o
entendimento do caos, a ordem da criao). Ento, se pegamos uma verso como
a verdadeira do ponto de vista cientfico, teramos que concluir a no verdade do
outro. Tomando o exemplo da ordem da criao: se canonizamos a ordem de Gn 1
(homem e mulher ao mesmo tempo e por ltimo), temos que desautorizar a ordem
apresentada no segundo texto (primeiro o homem, depois todos os outros seres e
por ltimo a mulher).
Portanto, impe-se uma nica soluo: extrair dos textos a bonita
mensagem apresentada acima e deixar que os cientistas continuem pesquisando
para dar resposta aos questionamentos cientficos.
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Exerccio 3
1. Analise os enunciados a seguir:
I. O livro do Gnesis se refere s origens apenas do povo de Israel.
II. Os textos da Criao apresentam uma catequese a respeito das origens do mundo e do homem.
III. Os textos da Criao devem ser entendidos como verdades de f, mas no como relatos com validade cientfica.
a) Apenas os enunciados I e III esto corretos.
b) Apenas os enunciados I e II esto corretos.
c) Apenas os enunciados II e III esto corretos.
d) Todos os enunciados esto corretos.
2. Indique se os enunciados a seguir so verdadeiros (V) ou falsos (F):
I. Segundo o texto bblico, a rvore proibida era um p de ma.
II. Homem e mulher so criados para se fazerem companhia, como complemento um do outro.
III. Misso do ser humano dominar a natureza, no sentido de cuidar e preservar a Criao.
IV. O fato de apresentar a criao em seis dias influncia do contexto cultural do exlio na Babilnia, onde no adotavam o ritmo da semana.
V. O contexto de Gn 2 claramente agrcola.
VI. Existem muitas diferenas entre os dois textos da criao, mas os dois coincidem na mensagem fundamental: Deus criou tudo e todos e o ser humano o principal de todos os seres.
VII. Todo cristo deve aceitar a ordem da criao do segundo relato como verdade de f.
VIII. Bblia e cincia se complementam, cada uma tem intenes e objetivos diferentes.
IX. Bom cristo deve rejeitar a cincia, devem bastar os relatos bblicos.
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2.4 Caim e Abel Gn 4,1-16
Para entender este texto temos que continuar superando a interpretao
literal e tentando ir alm, descobrindo os indcios que o prprio texto oferece para
uma interpretao mais adequada, lendo nas entrelinhas do texto.
Trata-se de um texto que muitas vezes leva as pessoas a um beco sem
sada. Afinal, lendo ao p da letra: Ado e Eva tiveram dois filhos, um mata o outro,
resta apenas um. Como pode vir o resto da humanidade apenas dessa
descendncia?
Mas, como j vimos, Ado e Eva representam toda a humanidade. Deus no
criou apenas um homem e uma mulher, mas todo homem e toda mulher de todos os
tempos. Ento, isso j um indicador de que Caim e Abel podem tambm ser
indivduos que esto representando grupos mais amplos. No ?
Segundo o v.2, Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo.
Cada um apresenta uma oferta a Deus: Caim apresentou produtos do solo (v.3),
pois ele cultivava o solo, enquanto que Abel ofereceu os primognitos e a gordura
do seu rebanho (v.4a), pois ele era pastor. E aqui se apresenta o problema que vai
provocar o cime ou a inveja de Caim: Jav gostou de Abel e de sua oferta, e no
gostou de Caim e da oferta dele (Gn 2, 4b-5a).
Para entender o pano de fundo do texto, veja as palavras de Sartorel e
Paixo:
Caim e Abel representam o conflito entre dois grupos diferentes, mas de economia paralela. De um lado, temos o pastor (Abel), do outro o lavrador (Caim). [...] Aps a colheita, os rebanhos pastavam sobre a terra cultivvel. Quando chegavam as chuvas, perodo em que a terra era preparada para o plantio, os rebanhos tinham que se distanciar, ocupando regies ridas e desrticas. Nos perodos de seca os pastores precisavam achegar-se ao mundo dos agricultores, da o conflito. (SARTOREL & PAIXO, 2007, p.41)
Ento, temos como pano de fundo a briga entre sedentrios (instalados nas
cidades ou aldeias) e os nmades ou seminmades, que tinham rebanhos, mas no
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tinham terras e viviam se deslocando procura de pastagens para o gado,
sobretudo na poca da seca.
Caim mata Abel porque no suporta sentir-se preterido. Mais ainda quando o
texto diz que Caim nascera em primeiro lugar. Deus escolhe o ltimo, em lugar do
primognito, como percebemos que acontece na histria dos patriarcas: Isaac e
Jac no so os primognitos.
Mas, por que Deus preferiu a oferta de Abel? Deus sempre se inclina para o
lado do mais fraco e aqui temos mais um exemplo de essa preferncia: os nmades
tinham menos segurana, estavam desprotegidos, tinham m fama entre os
sedentrios. O texto no explicita o motivo da preferncia divina, no se fala da
qualidade da oferenda, portanto o problema no a oferenda e sim quem a
apresenta.
No v.12 Deus pronuncia seu castigo a Caim. E o castigo muito
significativo: Voc andar errante e perdido pelo mundo. Quer dizer, o castigo
que Caim sinta na pele o que ser nmade e no ter a segurana e proteo que
tinham os sedentrios. Portanto, o castigo vai ao encontro da interpretao do texto
na linha do conflito entre sedentrios e
nmades. Isto , no se trata apenas de
um assassinato, de um fratricdio: dois
grupos humanos que deveriam conviver
como irmos, vivem se hostilizando, com a
clara primazia dos sedentrios sobre os
nmades. Quando Deus pergunta a Caim
pelo irmo, ele responde que no sabe (e
no quer saber): por acaso eu sou o
guarda do meu irmo (v.8). Essa resposta
reflete o descaso e descompromisso de
uma classe com relao outra.
Fonte: http://migre.me/fvBsG
No final do relato, Deus coloca um sinal em Caim (v.15), para que ningum
se vingue. Deus castiga, mas no abandona, cuida do assassino. A pena de morte
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no resolve, por grave que seja o pecado cometido, Deus no aprova combater a
violncia com mais violncia.
2.5 O dilvio Gn 6-9
Segundo Schwantes (2007), a datao deste texto complicada. So vrios
os autores que intervm na elaborao do texto, em pocas diferentes. Mas partindo
do contexto do exlio na Babilnia, o texto faz sentido. Afinal l na Babilnia, havia
medo contnuo de enchentes por causa dos rios Tigre e Eufrates.
Segundo o Sl 137, os judeus exilados se assentaram s margens dos rios:
Junto aos canais da Babilnia nos sentamos e choramos, com saudades de Sio,
nesse contexto no estranha que o povo tivesse medo de enchente, de dilvio, de
gua demais.
Na Babilnia, os exilados entram em contato com as tradies
mesopotmicas e seus costumes, tambm com seus deuses, que segundo a
tradio mesopotmica mantinham as comportas dos cus fechadas, mas quando
os deuses ficavam bravos, eles abriam as comportas do cu e acontecia o dilvio
(lembre que na Mesopotmia, os deuses eram os astros, que no firmamento
garantem a ordem, impedindo que as guas de acima do firmamento desabem Gn
1,6-8). A funo do culto era fazer com que as comportas permanecessem fechadas.
O primeiro que chama a ateno no texto sua extenso: a maior
narrao de Gn 1-11.
Uma histria to longa no surge num repente. Tem em sua base um exerccio de saber e de intelectualidade. Tinham-no os deportados, pois, quando ainda estavam em Jerusalm, j eram conhecedores dos contedos. Desde os assrios do sc. VIII, a elite de Jerusalm estava em contato com as tradies religiosas mesopotmicas. Conhecia, pois, os discursos mesopotmicos a respeito das guas, do firmamento e do dilvio [...] (SCHWANTES, 2007, p. 22).
Schwantes prope fazer uma comparao entre o texto do dilvio
mesopotmico e o texto bblico para perceber as semelhanas e as diferenas.
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Os textos babilnicos provm dos setores dominantes. Falam a linguagem e pronunciam os interesses do imprio. A histria bblica, ao contrrio, vem do reverso deste mesmo imprio. Representa a fala e os interesses de escravos e escravas que tinham de suar o suor de gente trabalhadora para manter as glrias do estado dominante. (SCHWANTES, 2007, p.23)
A religio da Babilnia estava baseada no medo: o povo teria que se manter
na linha e cumprir as leis do imprio para evitar que os deuses ficassem airados e
abrissem as comportas dos cus, provocando o caos do dilvio.
Mas, lendo o texto bblico at o final, vemos que a mensagem bblica bem
diferente. Inicia falando do pecado humano, da gerao perversa (no mais do que
as outras, ou no mais do que a atual): Deus viu a terra corrompida, porque todo
homem da terra tinha se corrompido em seu comportamento (Gn 6, 12), a terra
est cheia de violncia [...] vou destru-los junto com a terra (6,13). Eu vou mandar
o dilvio sobre a terra, para exterminar todo o ser vivo que respira debaixo do cu
(v.17).
Mas seguindo a leitura, vemos que no cap. 7 acontece o dilvio e o captulo
8 se centra mais na figura de No e na nova criao que comear com ele. No final
do cap. 8 j temos um indcio de que a histria ter um final diferente: Nunca mais
amaldioarei a terra por causa do homem, porque os projetos do corao do homem
so maus desde a sua juventude.
Nunca mais destruirei todos os seres
vivos, como fiz (Gn 8,21). Isto , o
dilvio faz parte do passado, nunca
mais haver dilvio sobre a terra
porque afinal no o dilvio que vai
resolver o problema do corao
humano. O medo no faz o homem se
converter.
Fonte: http://migre.me/fgv5m
38
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Ento o texto bblico aproveita a narrao do dilvio mesopotmico, que j
era conhecida pelo povo assentado na Babilnia, para tirar o medo do povo: o
dilvio passou, nunca mais haver dilvio sobre a terra!!
E o cap. 9 fecha a narrao do dilvio com o sinal da aliana que Deus quer
fazer de novo com o povo. Repetem-se as ordens dadas na Criao: Deus
abenoou No e seus filhos, dizendo: Sejam fecundos, multipliquem-se e encham a
terra (Gn 9,1.7). E repete a promessa de que no precisa ter mais medo, pois [...]
nada mais ser destrudo pelas guas do dilvio, e nunca mais haver dilvio para
devastar a terra (Gn 9,11).
E muito significativo o sinal que Deus escolhe como smbolo dessa
aliana: o arco-ris. O arco-ris aparece no cu quando acabou a tempestade e
sinal de que comea a bonana e o
sol j est aparecendo. Deus no
quer ser identificado com o dilvio. O
sinal de seu pacto, de sua aliana,
ser o arco-ris. Por outro lado, no
se trata de um sinal exclusivo de
Israel, mas um sinal universal,
porque a aliana tambm para
todos os povos.
Fonte: http://migre.me/fgvbp
2.6 A Torre de Babel Gn 11,1-9
Com este texto chegamos ao ltimo episdio de Gn 1-11. Na narrao,
comeo e fim claramente se correlacionam: o v.1 e o v.9 se complementam. No
incio, todos esto juntos e tm uma s lngua. No final, todos esto dispersos,
falando diferentes lnguas (SCHWANTES, 2007, p.40).
Durante muito tempo, a maior cidade da antiguidade foi Babel ou Babilnia. Babel significa Portal dos deuses. A cidade tinha construes imponentes. [...] A maior construo em Babilnia era uma torre construda no centro da cidade, sobre um templo muito antigo. Na poca do exlio da Babilnia, os exilados contemplavam
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esta torre [...] O rei Nabucodonosor levou 43 anos para construir [...] uma torre que simbolizasse suas conquistas. A torre dominava totalmente a cidade. Era vista de qualquer um dos bairros que se estendiam ao longo do rio Eufrates. (MESTERS & OROFINO, 2007, p.73)
Portanto, a torre simbolizava o
imprio, suas conquistas e sua poltica.
smbolo tambm da arrogncia e
prepotncia (uma torre que chegue at o
cu, para ficarmos famosos... Gn 11,4).
Essa prtica dos governantes fazerem
construes para serem lembrados
continua at hoje.
Fonte: http://migre.me/fvAOH
A partir desse contexto, podemos entender melhor os primeiros versculos
da narrao. Estar unidos e falar a mesma lngua, que, em princpio poderia ser
interpretado como coisa boa, so vistos por Deus como uma ameaa e como algo
que no bom (v.6). Pois na verdade se refere realidade do exlio, onde os povos
(Israel entre eles) so obrigados a ficarem na Babilnia e falando a lngua do
imprio. Esto juntos, mas na marra, se puderem escolher, iriam logo embora, cada
um para a sua terra. Nesse contexto o estarem juntos j no tem mais um sentido
positivo. E assim que Deus o interpreta.
comum interpretarmos o relato da torre de Babel, to somente como uma
maldio, um castigo de Deus a toda a humanidade, dispersando as pessoas e
confundindo as lnguas, devido ao orgulho e ganncia dos homens (SARTOREL;
PAIXO, 2007, p. 47). Porm, lendo com mais ateno, percebe-se que o castigo
para o imprio: a disperso supe deixar que os povos submetidos possam partir,
sair da Babilnia. Cada povo poder voltar para a sua terra, falar sua prpria lngua,
manter sua prpria cultura. Mas para os povos submetidos isso no um castigo,
pelo contrrio, sua libertao e salvao.
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Ento, temos que concluir que a unidade aparente, seria mais adequado
falar de uniformidade. Falar a mesma lngua sinal de imposio cultural e no de
unidade.
Gn 11,1-9 o anncio de que Deus no quer o imperialismo, quer que cada
povo tenha sua identidade (sua lngua) e possa viver livremente na sua terra
(disperso).
No v.5 podemos ver uma pitada de ironia. O projeto era chegar aos cus (a
Deus), porm, o v.5 diz que Deus ainda teve que descer para ver o que os homens
estavam aprontando. Isto , a pretenso humana absurda, pois o homem sempre
vai ficar muito aqum do plano divino.
Podemos resumir a histria esquematicamente como segue:
X
Figura 8 Resumo do relato da Torre de Babel
Fonte: Elaborao prpria
Em Gn 11,1-4, todas as aes tm como sujeito as pessoas. Enquanto que
em Gn 11,5-8, as aes tm Deus como sujeito. Deus que transforma o quadro
inicial de arrogncia do imprio em libertao para os povos.
Gn 11,1-4
Uniformidade Todos unidos Querem chegar aos cus Todos falando uma s lngua No se dispersar
Israel no exlio da
Babilnia
Gn 11,5-8
Deus desce Disperso Diversidade Cada povo fala sua lngua Castigo para o imprio Libertao para os submetidos
Fim do exlio: Volta
para Israel
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Sugesto de leitura
Para se aprofundar mais nos textos de Gn 1-11, sugiro que voc leia o livro:
SCHWANTES, Milton. Projetos de esperana: meditaes sobre Gn 1-11. 2. ed. So Paulo: Paulinas, 2002.
Milton Schwantes apresenta de maneira clara e amena a
teologia dos primeiros livros do Gnesis.
Fonte: http://migre.me/fCUAW
Exerccio 4
1. Analise os enunciados a seguir:
I. Caim representa os sedentrios e Abel os nmades.
II. Deus preferiu a oferenda de Abel porque era de mais qualidade.
III. O sinal que Deus coloca em Caim para se vingar do culpado.
a) Apenas os enunciados I e II esto corretos.
b) Apenas os enunciados I e III esto corretos.
c) Apenas os enunciados II e III esto corretos.
d) Apenas o enunciado I est correto.
e) Apenas o enunciado II est correto.
2. A respeito do dilvio indique se os enunciados so verdadeiros ou falsos:
I. O contexto do relato do dilvio o exlio na Babilnia.
II. Uma das finalidades do relato que o povo tenha medo de Deus.
III. O arco-ris o sinal da aliana universal que Deus faz com a humanidade.
IV. Os exilados tinham uma situao privilegiada na Babilnia por pertencerem
elite de Jerusalm.
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V. O arco-ris era representao dos deuses da Babilnia.
3. Marque a alternativa correta:
a) A Torre de Babel estava situada em Israel.
b) A disperso castigo para o imprio e para os povos submetidos.
c) Falar a mesma lngua interpretado positivamente por Deus.
d) O texto quer preservar a identidade cultural dos povos e sua liberdade.
e) A mensagem do texto que Deus quer que todos os povos falem a lngua
hebraica.
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UNIDADE 3 O DEUS LIBERTADOR E O DEUS DA ALIANA: O
LIVRO DO XODO
O objetivo desta unidade introduzir o acadmico no estudo do livro do
xodo: entender a escravido no Egito, o papel fundamental de Moiss na
organizao para a libertao, a festa que celebra a sada do Egito e a libertao, a
Pscoa, e, por ltimo, a Aliana do Sinai.
Poder-se-ia dizer que o livro do xodo no Antigo Testamento o que os
Evangelhos so para o Novo Testamento. A importncia deste livro por causa de
trs grandes temas que perpassam todo o resto do Antigo Testamento e tambm o
Novo Testamento: a revelao do Deus da vida e da libertao; a festa da Pscoa e
a Aliana de Deus com seu povo.
A palavra xodo uma palavra grega, que significa sada. O segundo livro da
Bblia tem esse nome, fazendo referncia sada do Egito, que representa a maior
faanha do Deus do Antigo Testamento, revelando-se como o Deus que quer a vida
em liberdade e que reprova todo tipo de escravido e opresso. O povo sai do Egito
com a inteno de entrar na terra prometida (Israel), mas entre a sada e a entrada,
tero que fazer uma longa caminhada pelo deserto. A travessia do deserto muito
significativa, porque no se trata apenas de sair de um pas para entrar em outro. A
caminhada no apenas geogrfica, mas , sobretudo, espiritual.
O caminho do xodo tem um sentido profundamente pedaggico, ou seja, sua histria quer ensinar e manter viva na memria das pessoas uma lio de vida. Nele est presente um projeto de libertao [...] Ao se colocar em marcha, esse grupo ir viver uma experincia singular com seu Deus. O Deus que ir se revelar no deserto um Deus que tambm se pe em marcha com seu povo. [...] Deus peregrino, pois habita em cabanas no meio do seu povo (VILLAC & SCARDELAI, 2011, p. 27).
O tempo do deserto um tempo de encontro com um Deus diferente
daquela religio que tinham conhecido no Egito. um tempo para amadurecer como
povo que quer se estruturar de maneira diferente, viver na liberdade, guiados e
protegidos por Jav, Deus que se apresenta como uma divindade prxima, que guia
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e protege. Assim, quando chegarem Terra Prometida, tero condies de se
organizar como povo com estruturas mais justas e igualitrias. o que Israel vai
tentar nos quase dois sculos de Tribalismo. Aps o perodo tribal, Israel ter a
experincia da monarquia, quando, infelizmente, as estruturas de opresso e de
trabalhos forados voltam a ser uma realidade.
3.1 Israel escravo no Egito (Ex 1,1-15,21)
O xodo no d o nome do Fara ao qual se referem os episdios narrados
nos primeiros captulos do livro, porm, a informao de Ex 1,11 ([...] construram
para o Fara as cidades-armazns de Pitom e Ramss), faz com que se possa
datar o xodo no sculo XIII a.C., na poca do Fara Ramss II.
Fala-se da escravido de Israel no Egito e da sada deste povo da
escravido, mas, na realidade, Israel no foi o nico povo a ficar escravo no Egito e
tambm no podemos identificar o grupo que saiu da escravido com o povo de
Israel, pois o prprio texto bblico identifica o grupo que saiu do Egito como hebreus
(Ex 1,16.19; 2,6-7.11; 3,18). Israel o resultado da juno desse grupo que saiu do
Egito e mais outros grupos que se uniro a eles uma vez assentados na terra de
Cana.
O sistema social que se descreve no Gnesis (Gn 47) e que de fato vigorava no Egito era o que os cientistas chamam de Modo de Produo Asitico (MPA). O povo dos campos no era escravo no sentido de ser uma propriedade privada de pessoas ricas que pudessem compr-los ou vend-los a seu bel-prazer. Pelo contrrio, todo o povo devia ao Estado trabalho quando o Estado o exigisse. (PIXLEY, 1987, p.17)
Sugesto de leitura
Para saber mais a respeito da formao do povo de Israel e os diferentes grupos que se uniram ao redor do mesmo projeto: vida em liberdade e longe dos grupos dominantes, sugiro a leitura do livro: GASS, Ildo Bohn (org.). Uma introduo Bblia. Formao do povo de Israel. Vol. II. 4.ed. So Paulo:Paulus. So Leopoldo, RS: CEBI, 2003.
Fonte: http://migre.me/fCUxw
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Mas que significa hebreu? sinnimo de israelita? Trata-se de um termo
que no se refere a uma etnia ou nao, mas sim a uma classe social: aquele que
est fora da lei, o excludo, quem est margem da sociedade. Hebreus e hebreias
so todos os pobres que tomam conscincia de sua dignidade e lutam para que ela
se torne realidade (GASS, 2012, p.17).
E interessante que Deus se apresenta como Deus dos hebreus, Deus
desse grupo de pessoas excludas, que reivindicam uma vida melhor, longe dos
opressores:
3.1.1 Dois projetos contrrios
Segundo Ex 1,10, com a escravido, o Fara pretendia que o povo no se
multiplicasse, pois via o povo como uma ameaa. J desde o incio vemos dois
projetos encontrados:
De um lado, j conhecemos o projeto de Deus, que um plano de
vida:
Gn 1,28: sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam
a terra.
Quando Deus chama Abrao, diz: Eu farei de voc um grande
povo (Gn 12,2).
Do outro lado, o Fara quer exatamente o contrrio: que o povo no se
multiplique, trata-se de um plano de explorao e morte. E para isso, ele
toma trs medidas:
Primeira: a escravido (Gn 1,10). Mas esta estratgia no deu
certo, pois, quanto mais oprimiam o povo, tanto mais crescia e
se multiplicava (Gn 1,12).
[...] Ento voc ir com eles at o rei do Egito e lhe dir: Jav, o Deus dos hebreus,
veio ao nosso encontro [...] (Ex 3,18)
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Segunda: ordena s parteiras que quando elas forem assistir s
mulheres hebreias, se for menino, matem; se for menina,
deixem viver (Gn 1,16). Esta medida tambm no deu certo,
pois as parteiras temeram a Deus (v.17).
Terceira: o Fara mandou todo o povo: Joguem no rio Nilo todo
menino que nascer (Gn 1,22).
este confronto entre dois planos contrrios que est por trs da primeira
parte do livro do xodo (Ex 1-15). Os hebreus, no Egito, conheceram a religio do
fara, que legitimava a opresso. O fara era considerado filho do deus do Egito.
Portanto, o povo sabia da vontade de deus escutando e obedecendo as leis do
fara. Desobedecer ao Fara era desobedecer a lei de deus.
O fara era um deus encarnado, segundo a ideologia religiosa egpcia [...].
Os reis locais se dirigiam a ele como o Sol de todas as terras e como o deus
(LIVERANI, 2003, p.38).
Veja na figura a seguir o lugar que ocupava deus na religio do Egito:
deus - Fara
Povo
Na religio do Egito, deus ficava do lado do Fara, legitimando seus planos,
e distante do povo.
Em Ex 3-4 Deus chama Moiss com uma misso:
3,7: Eu vi muito bem a misria do meu povo que est no Egito. Ouvi o seu
clamor contra seus opressores, e conheo seus sofrimentos.
3,8: Por isso, desci para libert-lo do poder dos egpcios e para faz-lo
subir dessa terra para uma terra frtil e espaosa, terra onde corre leite e mel [...].
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Deus no indiferente ao sofrimento e opresso. Ele v a opresso e decide
intervir, descer.
3,10: Por isso, v. Eu envio voc ao Fara, para tirar do Egito o meu povo,
os filhos de Israel Isto , a descida de Deus vai se concretizar por meio da figura de
Moiss, que ser o encarregado de organizar o povo para sair do Egito.
3,13: Moiss pergunta a Deus qual o seu nome. E Deus responde: [...] Eu
sou aquele que sou [...]. Mas que significa esse nome? Deus responde com o nome
Jav, que no hebraico um verbo, que significa
ser, estar e existir. Esse verbo est conjugado na
primeira pessoa, isto , teramos que traduzir
como: eu sou o existente, eu sou aquele que
est, aquele que realmente , diferente dos dolos, que no so reais, no existem.
Eu sou aquele que est, ou seja, eu sou aquele que est no meio do povo, aquele
que guia, que protege, que se compromete com a vida do povo, que no est
distante, indiferente, mas faz sua tenda no meio do povo. Poderamos traduzir Jav
com outro nome bem conhecido de Deus: o Emanuel, Deus conosco.
Nesse momento, em que inicia o processo de libertao e em que Deus diz
que est disposto a libertar o povo por meio de Moiss, Ele manifesta seu nome que
tem tudo a ver com essa misso: ao contrrio do que eles conheciam no Egito, Jav
est no meio do povo, acampa com ele, quer que o povo tenha vida, quer fazer
aliana com ele para selar esse compromisso. Portanto, agora, a experincia do
povo com Deus comea a ficar bem diferente:
Povo - Deus
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Isto supe uma revoluo religiosa, pois Deus declara que Ele diferente do
deus do Egito. O povo no pode confundir as coisas, pois a caracterstica de Jav
que ele no abandona o povo.
3.2 Pragas e Pscoa
O relato sobre as pragas deve ser entendido a partir do pano de fundo do
confronto de dois projetos contrrios. O povo conhecia o poder do Fara e de seu
deus, que se apresentavam como onipotentes e est conhecendo agora o poder de
Jav. De um lado o projeto de opresso e morte e, do outro lado, o projeto de vida.
Mas quem tem mais poder? Ser que vale a pena confiar no poder do Deus Jav?
Ou ser mais inteligente se render ao poder do Fara?
At agora, Deus tinha tentado resolver o problema de boa maneira, mediante o dilogo do rei com Moiss. Em vista do fracasso, decide atuar [...] (7,4). E comea o grande confronto, expressado atravs das pragas. Se Moiss conta com a ajuda de Deus (a vara prodigiosa), o fara conta com a ajuda de seus magos. (SICRE, 2000, p. 100).
O relato vai mostrando em sucessivas etapas o poder de Jav, que se
apresenta como definitivamente superior e invencvel. Os magos do fara,
representantes de seu poder, conseguem repetir os dois primeiros prodgios (Ex
7,22; 8,3), mas no conseguem repetir o terceiro prodgio (Ex 8,14), e a partir desse
momento prevalece o poder de Jav, por meio dos prodgios realizados por Moiss e
Aaro.
A sequncia de prodgios acaba com a morte dos primognitos dos egpcios.
Aqui temos que lembrar que em Ex 1, o fara queria a morte dos meninos dos
hebreus. No desfecho da histria, a morte bate na porta do fara, ou seja: o feitio
vira contra o feiticeiro. E fica claro quem o mais poderoso e que o povo pode
confiar em Jav como um Deus poderoso, que quer a vida do povo.
A vitria tem que ser celebrada. A Pscoa (Ex 12-13) a festa em que Israel
vai celebrar a vitria contra os egpcios, que supe a libertao das garras do fara e
o comeo de uma vida diferente sob a guia de Jav.
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A palavra Pscoa significa passagem e celebra a sada da escravido e a
passagem para a liberdade; passagem de estar submetidos ao fara, que escraviza,
a estar guiados por Jav, que protege. Isso, sem dvida, motivo de muita festa (cf.
cntico de vitria em Ex 15, 1-21).
A Pscoa devia ser celebrada em famlia (Ex 12,3). Cada famlia deve pegar
um cordeiro. Mas, ateno, se a famlia for muito pequena para dar conta de um
cordeiro, ento, devem chamar os vizinhos para comer junto (Ex 12,4). importante
que a festa no seja motivo de esbanjo, de desperdcio: o tamanho do animal deve
ser conforme o nmero de pessoas (v.4), no deixaro restos para o dia seguinte;
se sobrar alguma coisa, devem queim-la no fogo (Ex 12,10).
A experincia da libertao era to importante que tinha que ser transmitida
e atualizada por todas as geraes: Esse dia ser para vocs um memorial, pois
nele celebraro uma festa de Jav. Vocs o celebraro como um rito permanente,
de gerao em gerao (Ex 12,14). O rito da festa inclua perguntas e respostas
que explicassem s novas geraes o sentido da festa: Quando seus filhos
perguntarem: que rito este? vocs respondero: o sacrifcio da Pscoa de
Jav (Ex 12,26-27; cf Ex 13,14). importante que as novas geraes entendam a
importncia da festa e o que significa cada detalhe: Nesse dia voc explicar ao
seu filho: Tudo isso pelo que Jav
fez por mim quando eu saa do Egito
(Ex 13,9).
Por ltimo, temos que lembrar
que a pscoa era uma ceia, uma
refeio. As primeiras comunidades
crists tambm celebravam a
eucaristia em uma ceia (1 Cor 11,20-
21).
Fonte: http://migre.me/fvB3O
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3.3 Caminhada pelo deserto
Em Ex 15,22 comea a caminhada pelo deserto. Ser uma caminhada longa
at chegar Terra Prometida. A entrada em Cana acontece apenas no livro de
Josu. Portanto, at o final do Pentateuco, o povo permanece no deserto, umas
vezes parado (como no Sinai), outras vezes caminhando rumo Terra Prometida.
O mapa a seguir mostra as possveis trajetrias do povo at a chegada
Terra Prometida. muito difcil reconstruir o caminho. So vrias as teorias. Confira
no mapa a seguir.
Figura 8 Possveis trajetrias do xodo
Fonte: Auth, 2001.
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Ser uma caminhada longa e nada fcil. O grupo de hebreus que fugiu do
fara vai encontrar todo tipo de dificuldades: sede (Ex 15,22-27; 17,1-7), fome (Ex
16); batalhas com outros grupos (Ex 17,8-16). Mas no para por a, o grupo ter que
enfrentar tambm sua prpria insegurana, muitas vezes surgem vozes contra o
movimento de libertao e pensam at em desistir e voltar para o Egito: ser que
no havia sepulturas l no Egito? Voc nos trouxe ao deserto para morrermos [...]
(Ex 14,11; cf. Ex 15,24; 16,3; 17,3; etc.).
A liberdade desejada, mas tem um
preo e nem sempre o povo est
disposto a pagar seu preo. A falsa
segurana do Egito no pode prevalecer,
custe o que custar. preciso olhar para
frente, marchar (Ex 14,15b) (VILLAC e
SCARDELAI, 2011, p.28).
Fonte: http://migre.me/fvB9g
A sensao que h momentos em que parece que Deus abandona seu povo! So alguns dos grandes desafios colocados diante do projeto de construo do povo. Na verdade, a pedagogia do deserto para ensinar que as privaes ali experimentadas so para reforar o esprito de solidariedade e a conscincia da liberdade de um povo (VILLAC & SCARDELAI, 2011, p. 29)
3.3.1 Novas estruturas sociais
Vamos focar nossa ateno em dois textos muito sugestivos quanto s novas
estruturas que Jav quer para seu povo.
Em primeiro lugar, um texto muito conhecido: Ex 16, o man. Israel estava
com fome, murmura, reclama a Moiss, e Jav acaba resolvendo o problema com o
man. O man resolve o problema da fome, mas tem algumas orientaes que o
povo tem que respeitar:
Cada um tem que sair e recolher cada dia o quanto lhe basta para
comer (Ex 16,16). Eles obedeceram a ordem. Porm, Moiss d mais
uma ordem, que no obedecida: [...] Ningum guarde para amanh
seguinte. Mas eles no deram ouvidos a Moiss, e alguns o
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guardaram para o dia seguinte. Porm, criou vermes e apodreceu. Por
isso, Moiss ficou indignado contra eles (Ex 16,19-20).
No sexto dia, recolhiam o dobro, pois o sbado deve ser dia de
descanso, reservado a Jav (Ex 16,22-23). Porm, havia tambm uma
proibio: Comam hoje, porque hoje um sbado de Jav. Hoje
vocs no encontraro alimento no campo (Ex 16,25). Porm, alguns
desobedeceram ordem e saram esperando encontrar man tambm
no sbado. E nesse caso, Jav que fica irritado com eles (Ex 16, 28).
O texto quer demostrar mais uma vez a importncia do descanso para
no cair de novo na escravido a que foram submetidos no Egito.
O recado desta passagem o mesmo que encontramos no Pai Nosso: pedir
o nosso po de cada dia e no ficar preocupados demais com as coisas materiais:
Portanto, no fiquem preocupados, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? Os pagos que ficam procurando essas coisas. O pai de vocs, que est no cu, sabe que vocs precisam de tudo isso. Pelo contrrio, em primeiro lugar busquem o Reino de Deus e a sua justia, e Deus dar a vocs, em acrscimo, todas essas coisas. Portanto, no se preocupem com o dia de amanh, pois o dia de amanh ter suas preocupaes. Basta a cada dia a prpria dificuldade (Mt 6,31-34).
O outro texto interessante Ex 18,13-27. O sogro de Moiss, Jetro, saiu ao
encontro de Moiss no deserto e quando chegou e viu a organizao do povo, faz
uma crtica ao jeito de Moiss exercer a liderana: O que voc est fazendo no
est certo. Voc est matando, tanto a si mesmo como ao povo que o companha.
uma tarefa muito pesada e voc no pode faz-la sozinho (Ex 18,18).
Afinal, o que foi de to errado que Jetro viu? Ele viu Moiss como liderana
nica; tudo dependia dele (Ex 18,14). E isso no est certo. A liderana deve ser
dividida, at para evitar que o lder caia na autossuficincia e na arrogncia.
Jetro d alguns conselhos que so acolhidos por Moiss com humildade.
Moiss vai continuar sendo liderana indiscutvel, porm, haver outros lderes
dividindo a responsabilidade junto com ele. Jetro diz que ele deve escolher esses
lderes, mas seguindo alguns critrios, no serve qualquer um. O poder pode
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corromper pessoas que no so aptas para tal. Vamos ver quais so esses critrios.
Ateno!
Os critrios so interessantes, at para os dias de hoje. Tem que ser algum
dentre o povo, no adianta algum que cai de paraquedas, que no conhece a
realidade e os anseios do povo. Homem (ou mulher) capaz e temente a Deus,
caractersticas que no devem ser confundidas com ir missa, participar do culto ou
aparecer em uma procisso, claro que muito mais srio, trata-se de realmente
serem pessoas comprometidas com o projeto de Deus e com os valores
evanglicos, ficando sempre de parte dos mais desprotegidos. Pessoas seguras e
inimigos do suborno, isto , pessoas ntegras, maduras, seguras de si e com
princpios.
No basta dividir o poder, as pessoas tm que ser escolhidas com critrio!!!
Essas dicas tambm valem para hoje!!!
muito significativo que quem observa o problema algum que no fazia
parte do movimento, algum que v o problema desde fora. Quem estava com
Moiss no deserto, no conseguia ver o problema, muito menos a soluo. E isso
faz pensar nas nossas igrejas: no devemos nos fechar aos comentrios e crticas
que vm de fora, pois s vezes no conseguimos ver os prprios problemas, no
conseguimos enxergar que pode ser diferente. E precisamos ter a humildade de
Moiss: escutar e... por que no, mudar a nossa prtica, quando for necessrio.
3.4 Aliana
Quando pensamos na aliana, logo vem na nossa mente a aliana que
trocam os casais em sinal do amor e fidelidade. E esse o sentido que tem tambm
a aliana bblica, s que neste caso, o pacto de amor e fidelidade entre o Deus
Jav e o povo (os hebreus). Deus se compromete a estar sempre junto com o povo,
Escolha entre o povo homens capazes e tementes a Deus, que sejam seguros e inimigos do suborno [...] Os assuntos graves eles traro a voc; os assuntos simples, eles prprios resolvero [...] (Ex 18,21-22).
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proteg-lo e gui-lo; e o povo se compromete a ser fiel a Jav e cumprir os seus
mandamentos.
A iniciativa da aliana de Deus (Ex 19,3-4), se o povo aceitar fazer aliana
com Jav, os prodgios que conheceu no passado (libertao da escravido do
Egito), podero se repetir no futuro: se me obedecerem e observarem a minha
aliana, vocs sero minha propriedade
especial [...] (Ex 19,5). Mas mesmo
sendo uma coisa boa para o povo, Deus
no impe, mas prope. O povo ter que
aceitar, do contrrio no haver aliana.
Com
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