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FFRROONNTTEEIIRRAASSDDAAIIGGUUAALLDDAADDEENNOO
EENNSSIINNOOSSUUPPEERRIIOORR::
EEXXCCEELLNNCCIIAA && JJUUSSTTIIAARRAACCIIAALL
Bolsista:Sabrina MoehleckeOrientador:Romualdo Luiz Portela Oliveira
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Sabrina Moehlecke
FRONTEIRAS DA IGUALDADE NO ENSINO SUPERIOR:
EXCELNCIA & JUSTIA RACIAL
Tese de Doutoradoapresentada Faculdade deEducao da Universidadede So Paulo.
Orientador: Prof. Dr.Romualdo Portela Oliveira
So Paulo
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Universidade de So PauloFaculdade de EducaoPrograma de Ps-Graduao em Educaorea de concentrao: Estado, Sociedade e Educao
FRONTEIRAS DA IGUALDADE NO ENSINO SUPERIOR:
EXCELNCIA & JUSTIA RACIAL
Sabrina Moehlecke
Orientador: Prof. Dr. Romualdo Portela Oliveira
Tese de Doutoradoapresentada como requisito
parcial para a obteno dottulo de Doutora emEducao.
Durante a elaborao deste trabalho a autora recebeu o apoio financeiro da FAPESP
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Agradecimentos
"Entre a idia e sua expresso, existe uma vida"
Some kinda love, Lou Reed
Felizmente, a dimenso solitria da construo desse trabalho de doutorado foi diversas
vezes interrompida por importantes e estimulantes amizades e dilogos. A muitos gostaria de
agradecer por fazerem parte de minha vida durante esse percurso e de, certamente, tornarem-no
mais interessante:
Aos meus pais, pelo constante entusiasmo, compreenso e por todo carinho e apoio que
sempre nos dedicaram.
Cris e Las, minhas irms, por tudo que passamos juntas, pois mesmo quando
seguimos direes que parecem to distintas, como se pouco mudasse.
Ao meu maninho Andr, pela eterna pacincia e inestimvel ajuda nas minhas
constantes tentativas de compreender o universo estatstico.
Aos amigos Sumaya, Marcos, Maria, Beto, Mrio, Alessandra, Ktia e Marcelo, que at
tornaram-se mais prximos quando mais distante fisicamente estvamos. Depois de tantos anos
passados na academia temos, todos, muito que comemorar.
amiga Gilda, com quem divido o flat alguns dias do ano e de onde se desenvolveu
uma amizade que espero se mantenha ainda que a vida mude constantemente nossos rumos. E aquem devo uma relaxante, ensolarada e animada virada de ano pelas terras capixabas.
Valria, Joo, Ocimar e Mrcia, amigos de labuta, projetos e viagens, e a quem estou
devendo algumas noites para festejar.
s colegas do CEPPPE, Luciane, Andria, Alessandra, Alicia, Brigite, Amanda, Aninha,
Cludia, com quem convivi mais intensamente ano passado e sem as quais dificilmente
manteramos o ritmo intenso de trabalho, realizado de forma competente e ao mesmo tempo
descontrada.
Ivanira, Wilson e Jane, pelo cuidadoso trabalho que desenvolveram por ocasio do
survey dessa pesquisa.
Aos reencontros, sempre marcantes, com Moiss, Rafael e Percival, que, espero,
permaneam mais prximos.
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Aos professores Pedro Noguera e Gary Orfield, que gentilmente me acolheram quando de
meu estgio nos Estados Unidos e pela pacincia que tiveram diante de meus constantes
questionamentos e demandas.
Sandra Zkia, pelos anos de convivncia em vrios projetos e com quem muito aprendi.
Rosngela Prieto e Cludia Vianna, pela experincia nica de trabalho que pudecompartilhar e que muito tem ajudado em minhas primeiras incurses na docncia.
Ao professor Celso Beisiegel, por ter me acompanhado e apoiado desde quando ingressei
no mestrado na FEUSP.
Ao Afrnio Catani, pelas interessantes e animadas discusses e pela oportunidade em
pesquisar e conhecer melhor a rea do ensino superior.
E ao meu orientador Romualdo, que teve a pacincia de acompanhar, nos ltimos seis
anos, meus estudos sobre a ao afirmativa e com quem aprendi muito mais do que se espera
formalmente de uma orientao. Nem sempre conseguimos acompanhar seu ritmo, mas
certamente aprendemos a levar a vida, e principalmente seus contratempos, de uma maneira mais
leve e bem humorada.
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Resumo
Polticas de igualdade racial como a ao afirmativa, ao exigirem direitos coletivos e a
identificao racial dos grupos beneficiados, perturbam no apenas a noo moderna de
igualdade e justia, segundo a qual a distribuio de bens e posies sociais seria baseada noindivduo e em seus mritos e talentos naturais, mas tambm a ideologia brasileira da
mestiagem e da democracia racial, constitutiva de nossa identidade e unidade nacionais, onde
no haveria espao para divises ou diferenciaes de raa. Analisa-se, ento, como tm sido
recebidas as experincias de ao afirmativa implementadas no Brasil, especialmente no ensino
superior, local da excelncia e meritocracia. Contextualiza-se, inicialmente, o desenvolvimento
das preocupaes com a igualdade nas oportunidades de acesso educao superior, para em
seguida confrontar, em termos normativos, os argumentos universalistas e particularistas
construdos no debate de tais propostas. No intuito de analis-las com mais detalhes, observa-se
seu desenvolvimento nos Estados Unidos, reconstituindo-se seu contexto histrico, as formas
assumidas e avaliando-se alguns dos resultados alcanados, atravs do estudo de caso da
Universidade da Califrnia. Nos dois ltimos captulos, apresenta-se as principais teorias norte-
americanas e brasileiras sobre polticas de ao afirmativa, confrontando-as s percepes sobre
o tema observadas entre os estudantes entrevistados em um survey realizado na cidade de So
Paulo. Percebe-se existir, para alm das explicaes sobre identidade nacional e racismo velado,
mltiplos fatores a influenciar e motivar os estudantes no apoio ou rejeio a tais polticas, comoo status universitrio, indicando a necessidade de aprofundarmos os estudos sobre relaes
raciais na rea da poltica.
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"Admito acreditar que as teorias deveriam ser testadas tanto por suaabrangncia como por sua compreenso, sua importncia tanto quanto suavalidade e sua elegncia tanto quanto sua congruncia com fatos tais comoos que temos mo. minha maior convico que a sociologia faz seus
avanos intelectuais mais significativos sob o impulso de estmulos eatravs de processos que partilha extensamente com a arte; que, sejamquais forem as diferenas entre a cincia e a arte, o que elas tm emcomum o que mais importa para a descoberta e a criatividade. (...)Vale a pena notar que a palavra teoria origina-se da mesma raiz gregaque a palavra teatro. Ela significa, basicamente, olhar fixamente para,contemplar. (...)Ambos, artista e cientista, so movidos pelo desejo de entender, deinterpretar e de comunicar sua compreenso para o resto do mundo. (...)
A concluso, ento, no que cincia e arte so, ou deveriam ser,similares. A concluso mais simples, mas mais fundamental, que emambas, arte e cincia, opera o mesmo tipo de imaginao criativa. (...)Quanto mais eu estudo as inter-relaes entre as artes, mais ficoconvencido que todo homem , em parte, um artista. Certamente como umartista ele modela sua prpria vida e movimenta e atinge outras vidas. Euacredito que somente como artista que o homem conhece a realidade. Arealidade o que ele ama, e se seu amor se perde isto o seu infortnio. "
(Robert A. Nisbet. 1970. A Sociologia como uma forma de arte.)
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................. 12
I. DO OBJETO E OBJETIVOS ................................................................................................ 12
II. DO
DEBATE E
HIPTESES
.............................................................................................. 15III. METODOLOGIA DO SURVEY........................................................................................... 23
1. A DEMOCRATIZAO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL .. 29
1.1. BALANO DA LITERATURA SOBRE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR................................ 291.2. OS ANOS 60 E A REFORMA UNIVERSITRIA ................................................................ 311.3. O DEBATE SOBRE DEMOCRATIZAO E SELETIVIDADE SOCIAL.................................... 331.4. A REDEMOCRATIZAO E A NOVA REFORMA DOS ANOS 90 ......................................... 381.5. DEBATE: VELHAS E NOVAS QUESTES ......................................................................... 421.6. CONSIDERAES ......................................................................................................... 50
2. A IGUALDADE QUE PERTURBA A JUSTIA NO MUNDO MODERNO: O
DISCURSO SOBRE AO AFIRMATIVA .................................................................. 532.1. AS DECLARAES DE DIREITO.................................................................................... 542.2. A IGUALDADE PELA DIFERENA: UNIVERSALISTAS E COMUNITARISTAS...................... 602.3. O DEBATE SOBRE AO AFIRMATIVA NA MDIA ........................................................ 69
3. O DILEMA AMERICANO E A INTEGRAO RACIAL: A EXPERINCIA DEAO AFIRMATIVA NOS ESTADOS UNIDOS ......................................................... 80
3.1. CONTEXTO HISTRICO ................................................................................................ 813.2. POLTICAS DE AO AFIRMATIVA NO ENSINO SUPERIOR............................................ 883.3. O DESENVOLVIMENTO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NOS ESTADOS UNIDOS ........ 893.4. ESTUDO DE CASO: A EXPERINCIA DA UNIVERSIDADE DA CALIFRNIA EM BERKELEY92
3. 5. CONSIDERAES ...................................................................................................... 1034. UMA POLTICA DE IGUALDADE RACIAL EM MEIO MESTIAGEM .. 107
4.1. UMA QUESTO DE IDENTIDADE NACIONAL ................................................................ 1084.2. POLITICS MATTERS: PARA ALM DA RAA E DA LINHA DE COR................................. 1154.3. POLTICAS DE DIVERSIDADE ...................................................................................... 1184.4. O RACISMO AMBIVALENTE ........................................................................................ 1224.5. A PERCEPO DA DISCRIMINAO RACIAL ............................................................... 1324.6. O DOMNIO DOS JOGOS DE INTERESSES ...................................................................... 1384.7. A IDIA DA RAA SOCIAL BRASILEIRA ................................................................... 1434.8. O STATUS UNIVERSITRIO......................................................................................... 146
4.8. CONSIDERAES ....................................................................................................... 1525. MERITOCRACIA E DIREITO AO ENSINO SUPERIOR .................................... 154
5.1. O TALENTO NA ARISTOCRACIA BRASILEIRA .............................................................. 1545.2. VESTIBULAR, TESTES E AO AFIRMATIVA: AS REPRESENTAES DOS ESTUDANTES1625.3. USOS E IMPLICAES DE TESTES ............................................................................... 1665.4. ENSAIO: PELO DIREITO AO ENSINO SUPERIOR.......................................................... 172
6. BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 176
7. ANEXOS ....................................................................................................................... 191
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Introduo
I. Do Objeto e Objetivos
Essa pesquisa de doutoramento fez parte de um projeto de estudo iniciado em 1998, por
ocasio da realizao do Mestrado, em que me propus analisar as chamadas polticas de ao
afirmativa direcionadas populao negra1 brasileira. O principal objetivo do trabalho foi
aproximar-me das questes suscitadas no debate sobre essa temtica e mapear algumas das
experincias desenvolvidas no ensino superior, tanto no mbito do poder pblico quanto dos
movimentos sociais organizados, do perodo da redemocratizao dos anos 80 ao ano de 2000.
Sucintamente, observou-se que a discusso fora objeto de seminrio realizado pelo
governo federal em 1996, que instalou no mesmo ano o Grupo de Trabalho Interministerial para
formular polticas de valorizao da populao negra e o Grupo para a Eliminao da
Discriminao no Emprego e na Ocupao. Suas discusses foram acompanhadas por alguns
grupos dos movimentos negros, contudo, aes prticas de ao afirmativa ficaram restritas, at o
final dos anos 90, s iniciativas da sociedade civil. Essa situao modificou-se em 2001, quando
o governo brasileiro, por ocasio da Conferncia Mundial contra o Racismo realizada em
Durban, frica do Sul, apresentou um programa de ao afirmativa e, ao final do mesmo ano,
diversos rgos federais estabeleceram o sistema de cotas raciais na contratao de funcionriose na distribuio de bolsas de estudo. Na rea educacional, a Assemblia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro aprovou o uso de cotas raciais e sociais na seleo de estudantes para suas
universidades estaduais.
Paralelamente, na educao superior, vivia-se um contexto de intensa presso por
expanso e reforma do sistema, especialmente diante da quase universalizao do ensino
fundamental e da progressiva extenso do ensino mdio a todos. Somente em 2002, tivemos
quase 4 milhes de candidatos a uma vaga no ensino superior que foram deixados de fora do
sistema, o que correspondia a 76% daqueles que tentaram transpor os muros da universidade.
Nesse processo criou-se o Movimento dos Sem Universidade; proliferaram Cursinhos
preparatrios para o vestibular alternativos voltados populao de baixa renda, negros e outras
minorias excludas; e surgiram propostas de flexibilizao do sistema de seleo. Esses novos
1 Utilizo o termo negro no sentido de afro-descendente, semelhante quele que lhe atribudo por diversosmovimentos negros brasileiros. Ao trazer a referncia s origens africanas da populao, esse termo em geraltambm abrange tanto pretos quanto pardos, segundo a classificao utilizada pelo IBGE.
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aspirantes educao superior provm de estratos sociais mais desfavorecidos que a classe mdia
absorvida pelo setor privado at ento e pertencem a grupos que historicamente estiveram
distantes desse espao, como a populao negra e indgena. Diante desse perfil de estudantes, a
presso por incluso e expanso de vagas recai principalmente sobre as instituies de ensino
superior pblicas e gratuitas, o que podemos observar no significativo aumento da relaocandidato/vaga no setor pblico, que foi de 8,9 em mdia em 2002, comparado a 1,6 no privado.
Todavia, as solues para a ampliao do sistema de ensino superior brasileiro ou para a
melhoria das condies de igualdade racial2em nossa sociedade so, e no poderiam deixar de
ser, conflitantes. At recentemente, poucos eram aqueles que reconheciam existir um problema
racial no pas, pois julgvamo-nos uma nao mestia e miscigenada impregnada pelo ideal da
democracia racial. Por sua vez, a educao superior brasileira, sob uma perspectiva universalista,
sempre foi orgulhosa de seu sistema de ingresso por exames vestibulares, atravs dos quais
avaliava-se o mrito intelectual de cada candidato independentemente de suas origens sociais,
raciais, tnicas ou de gnero.
As polticas de ao afirmativa tensionam ambas as vises. A classificao racial que s
vezes utilizam confronta a idia dos brasileiros como um povo mestio e nico, vivendo numa
sociedade ausente de divises ou diferenciaes raciais. Tambm exigem o reconhecimento da
existncia de racismos e discriminaes raciais no pas, pois se caracterizam como uma medida
de justia e reparao pela desigualdade de oportunidades existentes na sociedade em relao ao
acesso a bens e servios. Questionam a idia de meritocracia liberal sustentada por processosformalmente neutros ao chamarem a ateno para suas conseqncias em termos das
desigualdades produzidas entre os grupos raciais, muito alm do que seria razovel supor se
existisse uma distribuio natural e eqitativa de talentos entre os distintos grupos.
Por poltica de igualdade racial entendemos todas aquelas aes institucionais, como a
ao afirmativa, interessadas em amenizar ou erradicar as desigualdades sociais existentes entre
grupos raciais, como brancos e negros, quer tenham um carter universalista ou diferencialista
(racializado). Polticas universalistas so caracterizadas como aquelas aes sociais,
redistributivas ou compensatrias, indiferentes a condies adscritas, dirigidas ao conjunto da
populao ou parte mais desfavorecida socialmente. Contrapondo-se a esta perspectiva, as
polticas diferencialistas, tambm designadas como particularistas, trazem como foco de suas
aes no o indivduo, mas grupos especficos definidos por sua condio racial, tnica ou de
2O termo raa utilizado como uma construo social, que supe uma ideologia racial e um racismo peculiares, apartir da qual as pessoas se classificam e se relacionam. Trata-se de um conceito propriamente sociolgico, queprescinde de fundamentao biolgica (cf. Guimares, 1999: 20).
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gnero. Polticas de igualdade racial podem abranger essas diferentes estratgias, nem sempre
excludentes, e fazer uso de distintos mecanismos, como as cotas, proporcionais ou no, mais ou
menos flexveis, metas, cronogramas, ainda que no debate brasileiro isso se tenha reduzido ao
sistema de cotas.
Mais do que avaliar se polticas de ao afirmativa so uma medida interessante a serimplementada no Brasil, pretende-se nesse trabalho compreender as percepes formadas a seu
respeito e o que motivou as pessoas a apia-las ou no. Diante das questes que envolvem,
dificilmente encontraremos uma posio unnime, mas o que definiria a formao de possveis
maiorias favorveis ao afirmativa?O que estaria a motivar os sujeitos nas posturas e falas
que adotam publicamente sobre as polticas de igualdade racial? Como novas concepes de
igualdade perturbam o discurso tradicional sobre justia no Brasil e no ensino superior, espao
privilegiado da meritocracia liberal?
Originalmente, essa pesquisa focaria o debate sobre polticas de ao afirmativa a partir
de uma perspectiva normativa e axiolgica, dentro da filosofia poltica. Realizar-se-ia uma
anlise crtica da noo moderna de igualdade, a partir da oposio entre teorias polticas de
fundamento universalista e diferencialista, no intuito de explicar as motivaes polticas,
ideolgicas e de valores que sustentariam o posicionamento em relao a tais polticas. Esse
projeto, ao longo do desenvolvimento do trabalho, foi alterado. Isso ocorreu principalmente no
segundo ano do doutorado, por ocasio do estgio e pesquisa de campo realizados nos Estados
Unidos, onde tive contato com um vasto material na rea que me fez decidir mudar os rumos do
projeto. Primeiramente, encontrei dois estudos que realizaram algo muito prximo do que
pretendia, Affirmative action and principles of justice, de Kathanne Greene (1989) e
Affirmative action and justice: a philosophical and constitucional inquiry, de Michael
Rosenfeld (1991). Juntamente com essa descoberta, tomei conhecimento de um debate que
comeava a questionar a centralidade tanto da explicao poltica com a qual eu pretendia
trabalhar, que ressaltava os valores morais e ideolgicos a influir no apoio dado s polticas de
ao afirmativa, quanto da teoria construda em torno do conceito de racismo simblico, nointuito de explicar a rejeio ao afirmativa que no mais recorria a argumentos racistas, mas
noo de igualdade. Estas, acrescidas da teoria do racismo de livre-mercado, seriam apenas uma
das explicaes possveis para justificar os diferentes posicionamentos adotados. Dessa forma,
optei por observar de que forma as diversas questes levantadas por estas teorias mostravam-se
presentes no Brasil.
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Contudo, como a rea da teoria poltica racial ainda pouco desenvolvida no pas,
estando a discusso das relaes raciais mais restrita antropologia e em menor grau
sociologia, e para que no fossem utilizados apenas autores norte-americanos, optou-se por
realizar um survey, no intuito de confrontar as hipteses tericas com o que observamos
empiricamente.A seguir, apresentam-se as principais questes presentes no debate sobre polticas de ao
afirmativa, as hipteses com as quais trabalhamos e a metodologia utilizada em nosso survey.
II. Do Debate e Hipteses
O debate e aes nos ltimos vinte anos sobre as relaes raciais brasileiras, no mbito
dos movimentos negros e do poder pblico, seguiram no sentido de estabelecer a questo racial
como problema nacional, centrada numa estratgia de denncia da ideologia da democracia racialatravs da explicitao das desigualdades sociais existentes entre brancos e negros.
Primeiramente, caberia perguntar qual o impacto desse debate entre a populao em geral.
Observam-se mudanas no discurso do Brasil como paraso racial e um reconhecimento da
existncia de desigualdades substantivas e concretas entre os grupos raciais, ou o problema
continua sendo negado e a harmonia racial reafirmada?
Qual a importncia das explicaes atribudas s desigualdades raciais?Srgio Martins
(1996) entende que um consenso mnimo na sociedade brasileira sobre as razes dasdesigualdades material e social a que esto submetidas a populao negra seria o primeiro passo
necessrio para a implementao de polticas raciais como a ao afirmativa. Historicamente, o
debate sobre as causas das desigualdades raciais tem oposto explicaes que identificam um
problema de classe a outras que ressaltam a existncia de motivaes de cunho racial, disputa
essa que remonta ao debate terico na rea de Relaes Raciais e s reivindicaes do
movimento negro.
Peggy A. Lovell (1992) identifica duas escolas de pensamento no que diz respeito
situao racial no Brasil: uma que se baseia no argumento de uma maior importncia da categoria
de "classe"sobre a de "raa"para explicar as desigualdades entre brancos e negros; e outra que
entende que a discriminao racial existe no pas e um trao contemporneo. Nenhuma das
duas negaria o preconceito ou o fato da maioria dos negros ser mais pobre que os brancos, mas
cada uma delas teria uma explicao diferente sobre a desigualdade scio-econmica entre
brancos e negros.
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Na primeira escola, a principal referncia so os estudos sobre relaes raciais realizados
por Florestan Fernandes. A explicao apresentada pelo socilogo paulista na obra "A integrao
do negro na sociedade de classes" (1978 [1965]) tem sido tradicionalmente interpretada como
postulando que as desigualdades sociais entre brancos e negros estariam associadas herana de
um passado escravista e pr-moderno. Com a industrializao da sociedade brasileira e possveismudanas estruturais, essas injustias raciais histricas poderiam ser superadas.
A partir do final dos anos 70, um conjunto de pesquisas desenvolvidas por Carlos
Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle Silva (1980) procurou mostrar a relevncia da
discriminao, propriamente racial, como trao contemporneo do Brasil. Romperam com o
argumento anterior ao conceberem o racismo para alm de um reflexo epifenomnico da
estrutura econmica ou um instrumento conspiratrio usado pelas classes dominantes para dividir
os trabalhadores. (Hasenbalg & Silva, 1992: 11). Compreendem-no como uma ideologia e
conjunto de prticas, que reelaboram as sobrevivncias do antigo regime e as transformam
dentro da nova estrutura social existente (cf. Hasenbalg, 1979: 76). A raa/cor passa a ser
pensada como um esquema classificatrio e um princpio de seleo racial que est na base da
persistncia e reproduo de desigualdades sociais e econmicas entre brasileiros brancos e no-
brancos. (Hasenbalg & Silva, 1992: 11). Estas pesquisas indicam a dissociao fundamental
entre grupos de cor e classes sociais, por um lado, e de grupos de cor e posio social, por outro.
(Guimares, 1997: 168).
Discutindo a perspectiva interpretativa adotada por Hasenbalg e Silva, Antonio SergioGuimares (1997) entende que, ao mesmo tempo em que tais estudos superaram uma abordagem
desenvolvimentista e integracionista, tambm obscureceram a permanente associao entre
raa, cor e posio social no Brasil. Ao propor que pensemos o Brasil como uma sociedade
de status, Guimares ressalta o carter de permanncia e rigidez do sistema de hierarquia social
do pas. Afirma que
a importncia das diferenas de status (posies sociais) no Brasil tem se
reproduzido desde a colonizao, atravs do sistema de castas escravistas e, mais
tarde, do clientelismo rural ou urbano, resistindo espantosa urbanizao e
industrializao do pas nos ltimos cinqenta anos; para no falar da sua
resistncia s mudanas de sistema e de regime polticos. (Guimares, 1997: 169).
Para alm do nvel da ideologia3, Guimares prope a sociedade de status como
3Guimares refere-se aqui interpretao realizada por Roberto DaMatta, quando este identifica a resistncia smudanas na sociedade brasileira como uma ideologia organizada em torno do princpio de classificaohierrquica, sustentada em relaes sociais baseadas em laos pessoais. (Guimares, 1997: 169).
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uma sociedade onde os grupos sociais, inclusive as classes sociais, desenvolveram
direitos a certos privilgios em relao ao estado e aos outros grupos sociais. Tais
privilgios de posio so resguardados, no plano das relaes entre sujeitos, por
distncias e etiquetas, que tm na aparncia e na cor, (...) suas principais referncias
e marcos no espao social. (1997: 169).Sua questo central a naturalizao das hierarquias sociais existentes no Brasil.
Ao buscar na hierarquia social e nos grupos de prestgio brasileiros a raiz do
racismo cotidiano, isto , do tratamento desigual de pessoas baseado na cor, espero
ter colocado sobre bases mais precisas o desrespeito aos direitos civis. (...) isso
significa que para combater o racismo e para reduzir as desigualdades econmicas,
preciso, antes de tudo, denunciar as distncias sociais que as naturalizam, justificam
e legitimam. (Guimares, 1997: 171-172).
Tentativas recentes como a de Guimares (1997) buscaram explorar a inter-relao
existente entre ambos os fatores, social e racial, no que poderia vir a estabelecer um acordo
mnimo nas explicaes. Entretanto, no plano do senso comum, fora dos embates acadmicos,
esse um campo ainda permeado por posies divergentes. Lus Cludio Barcelos e Elielma A.
Machado (2001), em pesquisa realizada com estudantes universitrios no Rio de Janeiro,
observaram que so recorrentes as explicaes de carter individualista oferecidas por seus
entrevistados, que atribuam a um desinteresse dos prprios negros em melhorar sua situao a
justificativa para as condies desfavorveis em que se encontravam.Outro aspecto a analisar seria o apoio ou oposio a uma poltica de igualdade racial de
acordo com a forma como construda. As possveis polticas voltadas para a melhoria das
desigualdades entre os grupos raciais usualmente so divididas entre polticas universalistas,
destinadas a toda a populao ou de carter redistributivo, privilegiando o recorte scio-
econmico, e polticas diferencialistas, que envolveriam aes direcionadas a grupos especficos
de acordo com critrios de gnero, raa, etnia e outros.
Por fim, o ltimo ponto seria incorporar os trs aspectos anteriores, ou seja, as percepes
sobre as desigualdades raciais, suas causas e as possveis solues, s teorias tm procurado
explicar as motivaes das diferentes posies adotadas em relao s polticas de ao
afirmativa. Ou seja, o que motiva o apoio a um tipo de poltica e no a outro? Existiria uma
correlao entre as justificativas apresentadas para as desigualdades raciais e o tipo de poltica
defendida?
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As polticas pblicas brasileiras tm se caracterizado por adotar uma perspectiva social e
universalista. Mesmo quando se reconhece a existncia de situaes de desigualdade racial e se
formulam polticas para solucion-las, estas no incorporam a raa como um aspecto relevante
ou especfico, nem necessariamente reconhecem a discriminao racial como um dos fatores
determinantes dessas desigualdades, como tm reivindicado os movimentos negros. Concorda-seque as desigualdades raciais representam um problema, mas sua causa seriam as condies
sociais precrias nas quais se encontra a populao negra e no as prticas de racismo e
discriminao racial.
De acordo com Kabengele Munanga (1996), ainda que as polticas implementadas no
Brasil privilegiem uma abordagem universalista, existe uma variao nas explicaes e nas
propostas de "combate ao racismo" dependendo das posies poltico-ideolgicas adotadas. O
autor identifica duas posturas tpicas, uma caracterstica da direita, ou de liberais e outra da
esquerda.
A direita, considerando a extino do racismo institucionalizado em todo o mundo atual,
assume que a razo essencial da persistncia das desigualdades raciais deve-se ao fato de que os
negros sofrem de uma falta de cultura e instruo compatveis com a economia ps-industrial.
(1996: 79) Ou seja, reconhece a existncia de desigualdades entre os grupos raciais mas no as
atribui ao racismo; suas causas seriam, essencialmente, as
foras do mercado, indiferentes raa e atentas apenas s carncias dos negros,
numa economia em que a inteligncia, baseada no domnio da informtica e das
telecomunicaes, atributo indispensvel para a sobrevivncia de qualquer um,
independentemente de sua raa, sexo ou religio. (Munanga, 1996: 79-80).
Quanto s estratgias para a resoluo desse problema da maneira como o configura, a
direita afirma a necessidade de uma guerra contra a pobreza e medidas que promovam o
crescimento econmico e o emprego para os negros.
J na esquerda, central a viso do racismo como uma questo de classe. Radicalmente,as desigualdades raciais so interpretadas como reflexos dos conflitos de classes, e
os preconceitos raciais considerados como atitudes sociais propagadas pela classe
dominante, visando diviso dos membros da classe dominada, para legitimar a
explorao e garantir a dominao. (Munanga, 1996: 80).
Como estratgia, prope transformar profunda e radicalmente a estrutura de uma
sociedade de classe. (Munanga, 1996: 80).
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Peter Fry (1991) tambm observa semelhante predomnio da viso universalista em nossa
cultura poltica, a qual reala a identidade do brasileiro como um povo mestio. Ao comparar ex-
colnias portuguesas e britnicas, observa diferenas no comportamento chamado politicamente
correto nesses distintos contextos sociais. Nos Estados Unidos, por exemplo, as polticas
voltadas para as minorias etno-raciais ou sexuais estariam articuladas com a noo de diferenae afirmao de identidades especficas. J no Brasil, a filiao etno-racial ou de gnero no seria
utilizada comumente na definio de polticas, prevalecendo como critrio bsico as condies
scio-econmicas. Barcelos (1996), ao avaliar a mobilizao racial no Brasil, segue a mesma
direo ao afirmar que a cultura poltica existente no pas caracteriza-se pela pouca receptividade
afirmao de identidades particulares.
Na literatura norte-americana, a teoria dos valores polticos assume uma posio ctica
quanto ao papel causal do racismo na determinao da oposio s polticas raciais
contemporneas (Sniderman & Piazza, 1993; Sniderman & Camines, 1997). Argumenta-se que
as animosidades e os esteretipos raciais no so mais elementos centrais na definio de
opinies sobre polticas raciais. O que importa so a cultura e a ideologia poltica e no
consideraes de ordem raa. Reconhece-se que o preconceito no desapareceu da sociedade
norte-americana e que em circunstncias particulares e em certos segmentos ainda tem grande
impacto, contudo, o preconceito racial no mais organizaria e dominaria a reao da grande
maioria da populao branca norte-americana. De acordo com essa teoria: a) os americanos esto
fortemente comprometidos com o valor da igualdade; b) a oposio a polticas como a aoafirmativa e o sistema de cotas est ligada a valores polticos e ideolgicos como individualismo
e justia, e no o racismo, preconceito ou animosidade racial; c) tanto conservadores quanto
liberais avaliam polticas para grupos raciais de forma diferente dependendo do grupo alvo; d)
racismo e conservadorismo so atitudes independentes, ao menos entre as pessoas mais
educadas; e) a educao do respondente e no sua orientao ideolgica que explica as
diferenas no apoio a polticas para grupos raciais (Sidanius, Singh & Federico, 2000).
Distintos valores de igualdade, como o apoio igualdade formal, mas no igualdade de
oportunidades ou de resultados, estaria a motivar as diferentes posies sobre polticas de
igualdade racial? De acordo alguns grupos dos movimentos negros (Moehlecke, 2000), o que
explicaria a rejeio a polticas para a populao negra seriam as prticas cotidianas mais sutis de
racismo, discriminao e preconceito raciais, encobertas pela ideologia da democracia racial. O
carter de nossas relaes raciais geralmente no permitiu o confronto racial explcito e formal,
j que a prpria identidade nacional brasileira constituiu-se, entre outras coisas, a partir da idia
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da mistura das raas, que teria gerado um povo que no conheceria divises raciais. Denuncia-se
que nosso credo racial universalista serviu para encobrir o racismo, as injustias e as
desigualdades sociais desfavorveis populao negra.
Essa percepo sobre nossas relaes raciais tem influenciado o debate sobre polticas de
igualdade racial. Antonio Sergio Guimares (1999), ao analisar a discusso brasileira sobre aao afirmativa, identificou, entre outros, trs argumentos contrrios a tais polticas: a)
significariam o reconhecimento da existncia de raas e distines de raas, o que contraria o
credo brasileiro de que somos um s povo, uma s nao; b) a adoo de medidas universalistas
teria o mesmo efeito; c) no existiria consenso na sociedade brasileira sobre a desigualdade
social provocada por diferenas de cor e raa. Esses argumentos trazem um ponto em comum:
negam o uso de critrios especificamente raciais na definio de polticas e indicam que, para
esse grupo de pessoas, o racismo no um problema relevante.
As teorias scio-psicolgicas norte-americanas na rea das relaes raciais so
interessantes para pensarmos sobre as mais variadas formas que o racismo pode assumir em
diferentes contextos. Baseando-se em pesquisas nacionais, constatou-se que a igualdade racial
formal, ao contrrio do que existia poca do movimento pelos direitos civis, tornou-se um ideal
amplamente aceito nos Estados Unidos. Entretanto, ressalta-se que o racismo no teria
desaparecido, apenas adquiriu novas caractersticas. Esse "novo racismo" definido como
"racismo simblico" ou "racismo ambivalente". Algumas teorias divergem quanto natureza e
maneira como esse racismo relacionar-se-ia com valores e atitudes racialmente neutros.
De acordo com o racismo simblico, uma nova forma de racismo estaria por trs da
oposio contempornea dos brancos s polticas raciais e aos candidatos polticos negros (Sears
& Kinder, 1971). Suas proposies principais so: a) antigas formas de racismo hoje pouco
predizem atitudes diante de polticas raciais, em parte porque o apoio a esse racismo declinou; b)
apesar do seu declnio, a socializao de esteretipos negativos sobre negros continua; c) negros
so vistos por brancos como violando valores tradicionais norte-americanos; d) esse novo
racismo envolve crenas como: a discriminao no mais uma barreira para negros; negros
devem se esforar mais; negros muito freqentemente recebem tratamento especial do governo
(Kinder & Sanders, 1996; Sears, 1988; Sears et al.1997; Sears, Henry, & Kosterman, 2000).
Na perspectiva do racismo ambivalente, as imposies da era ps-direitos civis no
permitem mais a explicitao pblica do racismo. Dessa forma, o racismo explcito estaria sendo
substitudo por um racismo mais sutil, observado na defesa de valores tradicionais, no exagero de
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diferenas culturais e na ausncia de emoes positivas com relao a grupos de fora (Meertens
& Pettigrew, 1997; Pettigrew, 2000; Pettigrew & Meertens, 1995).
Um racismo, sutil e dissimulado, manifestado atravs de um discurso de harmonia e
igualdade racial, seria a principal motivao na oposio s polticas de ao afirmativa no
Brasil?Uma terceira abordagem, distinta das anteriores, abrange as teorias sociolgicas, que
enfatizam a estrutura social e os interesses de grupo como explicaes para as posies tomadas
acerca de polticas raciais. Segundo a teoria do "conflito de grupo realista", o problema racial
surge diante da ameaa que os negros representam aos privilgios dos brancos. Mesmo uma mera
percepo da privao de um grupo j poderia ser suficiente para desencadear reaes, sem
necessitar de reais conflitos de interesse (cf. Vanneman & Pettigrew, 1972).
Alguns tericos da identidade social percebem o conflito como algo inerente prpria
formao de grupos (Tajfel & Turner, 1986). Outros pesquisadores sustentam existir um sentido
de posicionamento de grupo a influir as aes e reaes dos indivduos. Vo alm dos interesses
econmicos e polticos concretos presentes na teoria do conflito de grupo realista para focar a
idia de status (cf. Bobo, Kluegel & Smith, 1997). Lawrence Bobo desenvolve a idia de laissez-
faire racism, que consiste em dois componentes principais: o persistente esteretipo negativo de
negros e a explicao dogapscio-econmico racial como responsabilidade dos prprios negros.
No Brasil, a principal hiptese que procura explicar a rejeio s polticas de ao
afirmativa ressalta seu carter racializado e particularista, exgeno e conflitante com nossacultura poltica universalista, influncia e influenciada pela ideologia da democracia racial.
Decorre, ento, que o que motivaria as pessoas seriam valores polticos e raciais associados
identidade nacional. Por outro lado, e reafirmando a posio que sustentam desde o final dos
anos 70, os movimentos negros brasileiros argumentam que nossa democracia racial, enquanto
ideologia, tem na verdade encoberto nossas divises raciais e operado como mecanismo de
perpetuao da discriminao e desigualdades raciais.
Considerando essas duas posies, nosso estudo segue no sentido de analisar a possvel
influncia de outros fatores na explicao dos posicionamentos dos indivduos em relao a
polticas de ao afirmativa, como, por exemplo, as razes apresentadas para as desigualdades
raciais existentes, o pertencimento racial, as percepes sobre as relaes raciais, o pblico alvo,
o tipo de poltica de igualdade racial proposta, o nvel educacional e o status de grupo e a posio
social.
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Em sntese, estaremos analisando as seguintes questes e hipteses presentes na literatura
sobre polticas raciais:
a) Teorias polticas: distintos valores polticos com relao igualdade, e no motivaes
racistas, definem as diferentes posies assumidas em relao s polticas de igualdade racial,
como a ao afirmativa;b) Cultura poltica brasileira: no Brasil existe uma tradio de polticas universalistas e isso
dificulta a receptividade s polticas que exigem a afirmao de identidades particulares.
c) Novo Racismo: o que explica a rejeio a polticas de ao afirmativa a existncia de
prticas histrias e sutis de racismo, discriminao e preconceito, encobertas pela ideologia
da democracia racial brasileira.
d) Teorias sociolgicas: a estrutura social e os interesses de grupos explicam as posies sobre
polticas raciais; a oposio a essas polticas significa antes um processo de proteo dos seus
prprios interesses.
O ensino superior tem sido uma rea privilegiada do debate e experincias de ao
afirmativa no Brasil, no apenas por motivos conjunturais, como o processo de expanso e
reforma por que passa, mas tambm por ser um dos raros espaos na sociedade brasileira onde
intensamente difundida a ideologia meritocrtica, originalmente universalista e constituda por
oposio a distines de grupos. Utiliza-se, ento, a educao superior como local para pensar os
embates, questes e hipteses elaboradas em torno de polticas de ao afirmativa.
No intuito de contextualizar a forma como o debate sobre polticas de igualdade racialestabeleceu-se no ensino superior brasileiro, analisa-se no primeiro captulo as mudanas
ocorridas nos ltimos 40 anos, em termos da expanso do sistema e das preocupaes tericas
construdas acerca da igualdade nas oportunidades de acesso a esse nvel de ensino no pas. Com
o esgotamento do modelo da reforma universitria de 1968 e diante de significativa presso por
ampliao, o sistema de ensino superior nos anos 90 confronta-se com o desafio de encontrar
maneiras de acolher um novo perfil de estudantes que em sua maioria no tm condies de
financiar seus estudos superiores e que historicamente estiveram de fora dos bancos
universitrios.
Quais as questes tericas trazidas pela idia de igualdade subjacente s polticas de ao
afirmativa, em especial as de cunho racial?No segundo captulo, analisa-se, de uma perspectiva
normativa e axiolgica, os argumentos universalistas e particularistas a partir de nossa tradio
moderna. Em seguida, observa-se como se estrutura o debate em torno da ao afirmativa no
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Brasil e as principais polmicas levantadas, atravs da anlise de artigos publicados na mdia
escrita.
Antes de explorar com mais detalhes como esse tema recebido no pas, observa-se como
foi seu desenvolvimento nos Estados Unidos, onde as experincias com ao afirmativa j
existem h quase quarenta anos. Reconstitui-se seu contexto histrico, as formas que assumem eanalisa-se alguns dos resultados alcanados. Pragmaticamente, podemos dizer que elas
funcionaram?Atravs de um estudo de caso a implementao do programa de ao afirmativa
da Universidade da Califrnia-, observa-se os embates envolvidos e as maneiras encontradas por
uma instituio altamente seletiva de educao superior para conciliar aes de incluso de
grupos raciais e tnicos com a manuteno do padro de excelncia de seus cursos.
No quarto captulo, analisa-se as principais teorias norte-americanas e brasileiras sobre
polticas de ao afirmativa, confrontando-as s percepes sobre o tema observadas nos
estudantes entrevistados no surveyrealizado na cidade de So Paulo. Para alm das explicaes
sobre valores e identidade nacionais e formas veladas de racismo, percebe-se existir mltiplos
fatores a influenciar as avaliaes sobre tais polticas, como a idia de um status universitrio,
identificada como a principal varivel explicativa do apoio ou rejeio ao afirmativa.
Essa ltima idia melhor trabalhada no captulo final, quando discutimos a imagem de
ilha de excelncia e mrito que caracteriza o sistema de ensino superior, principalmente pelo
sistema de seleo utilizado, baseado em testes e exames formalmente neutros. Quais as crticas
feitas ao uso de testes e quais as conseqncias de sua flexibilizao, como sugerem algunsmodelos de ao afirmativa? Como essas mudanas so recebidas e percebidas pelos nossos
estudantes entrevistados? possvel pensar em um direito educao superior, tanto em termos
da incluso e garantia de efetiva igualdade de oportunidades de acesso para grupos raciais e
tnicos quanto de uma progressiva expanso do sistema?
III. Metodologia doSurvey
Escopo e instrumentos da pesquisa
A pesquisa de campo realizada consistiu num survey por amostragem, desenvolvido no
segundo semestre de 2002, entre os alunos de graduao ingressantes em 2000 na Universidade
de So Paulo - USP, no campus da capital e, portanto, no 3 ano de curso, e entre os alunos de
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trs Cursos Preparatrios para o vestibular alternativos4 existentes na cidade de So Paulo
ingressantes em 2002 (Cursinho do Grmio da Escola Politcnica da USP - POLI, Cursinho da
Psicologia da USP e Cursinho da Associao de Educadores da USP - AEUSP).5
Como instrumento de pesquisa, foi elaborado um questionrio respondido
individualmente pelos envolvidos. As entrevistas foram aleatrias, mas controladas as variveis"ano de ingresso" e "instituio a que pertencem" para que sejam representativas do grupo em
estudo. Um modelo do questionrio consta anexo (anexo1).
Nos quadros abaixo segue uma descrio da amostra utilizada.
Quadro 1 - Estudantes de Graduao da Universidade de So Paulo
Cursos No. Ingressantes turma 2000 amostra
Direito 460 76
Geografia 160 54
Medicina 175 61
Fonoaudiologia 25 16
Engenharia - CB 750 76
Fsica (bacharelado) 160 55
Total 1745 338
= 5% = 0.10
Quadro 2 - Estudantes de Cursos Preparatrios para o Vestibular Alternativos
Cursos No. de alunos* Amostra
Cursinho da POLI 8000 100
Cursinho da Psicologia da USP 210 63
Cursinho da AEUSP 120 46
Total 9470 209
* Estimativas referentes a 1999 e 2000. = 5% = 0.10
Para chegarmos a essa amostra, foi utilizada a frmula abaixo, ajustada com o estudo
piloto realizado.
4 Por Cursinhos alternativos entende-se aqueles sem fins lucrativos destinados populao desfavorecidasocialmente.5Para maiores informaes sobre a histria e o funcionamento desses cursinhos ver Bacchetto (2003). Interessanteobservar, apenas, que os trs cursinhos citados foram criados e continuam sendo mantidos por estudantes da prpriaUSP.
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n = z2/2 . pq . N-n no= z2/2 . pq
2 N-1 2
Quadro 3 Definio dos componentes da frmula estatsticap = p - valor no = primeira aproximao da amostra
q = 1 - p = erro tipo 1 (grau de confiana)
N = populao total = erro amostral
n = tamanho da amostra z = 1,96 (valor obtido da tabela normal)
O tratamento estatstico dos dados obtidos com as entrevistas realizadas no survey foi
desenvolvido pela Empresa de Estatstica Jnior do Instituto de Matemtica, Estatstica eComputao da Universidade de Campinas.
Contexto Demogrfico da Universidade de So Paulo e do Estado de So Paulo
Em termos de composio racial, a populao brasileira distribui-se proporcionalmente,
segundo o Censo realizado em 2000, entre 54% de brancos, 39% de pardos, 6% de pretos, 0,5%
de amarelos e 0,3% de indgenas. Na regio Sudeste, a situao altera-se um pouco: a
porcentagem de brancos fica em 64%, de pretos em 6,7%, pardos em 28,4%, amarelos em 0,8% eindgena em 0,1%.
No que diz respeito USP, a Fundao para o Vestibular - FUVEST introduziu em 2000
o quesito cor/raa como um dos itens de seu questionrio de ingresso a ser preenchido pelos
candidatos inscritos no vestibular, tornando possvel a anlise do perfil racial de seus candidatos
e ingressantes. De um modo geral, podemos observar que em 2000 a proporo de pretos e
pardos diminui na relao entre inscritos e convocados para a 1chamada, a de brancos manteve-
se a mesma e a de amarelos aumentou. Do total de convocados para a 1 chamada, em 2000
encontrou-se 1,2% de pretos e 4,8% de pardos, 12,9% de amarelos e 80,4% de brancos; em 2001,
temos 1% de pretos e 6% de pardos, 12,9% de amarelos e 79,5% de brancos. Dentro das
carreiras, nos dois anos analisados observou-se uma leve tendncia rea de humanas concentrar
maior percentagem de pretos e pardos e menor de amarelos, em comparao com as reas de
exatas e biolgicas.
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Justificativas
Os estudantes da USP foram escolhidos por representarem um grupo que potencialmente
estaria envolvido nos desdobramentos de polticas de ao afirmativa adotadas no ensino
superior, quer como atores polticos ou como estudantes que passaram por um dos processos
seletivos mais concorridos do pas. A escolha pelos ingressantes em 2000, alunos ento no
terceiro ano de faculdade, foi realizada para que os entrevistados tivessem um certo tempo de
vivncia na universidade.
A opo por entrevistar tambm estudantes de Cursos preparatrios para o Vestibular
Comunitrios foi feita por estes representarem os supostos beneficirios das polticas em questo,
formuladas em termos sociais e/ou raciais, e por serem um importante grupo de controle, pois
tm um perfil social e racial distinto da maioria dos alunos da USP.
A escolha dos cursos da USP que fariam parte da amostra foi realizada considerando-seexistir uma hierarquia entre eles, mesmo dentro de uma universidade como a Universidade de
So Paulo, principalmente em relao ao seu grau de seletividade. Nesse sentido, definimos seis
cursos que possuam um nmero significativo de alunos (mais do que 60), dois de cada uma das
grandes reas - humanas, exatas e biolgicas, sendo um deles mais concorrido (em termos da
relao candidato/vaga) e outro menos concorrido.
Tcnicas de Anlise Estatstica
Os recursos de anlise estatstica utilizados na pesquisa foram as anlises univariadas,
bivariadas e multivariadas e seus subgrupos; anlises de correlao de Pearson; anlises de
varincia; teste do Quiquadrado; e teste de significncia.
As anlises univariadas atendem a objetivos descritivos e examinam a distribuio de
apenas uma varivel a cada vez. As anlises bivariadas e multivariadas tm objetivos
explicativos atravs dos quais buscamos conhecer a relao existente entre os valores de uma
varivel dependente e os valores de uma varivel independente, de forma probabilstica.
As anlises de correlao tambm tm objetivos explicativos, onde procuram identificar a
existncia ou no de relao linear entre duas variveis. A constatao de uma correlao seja ela
positiva ou negativa, significa que uma varivel exerce influncia sobre a outra, mas no implica
necessariamente numa relao de causalidade.
Para avaliar a fidedignidade das informaes levantadas, foram realizados testes de
varincia, significncia e qui-quadrado. No teste de varincia, "os casos estudados so
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combinados em grupos representando uma varivel independente, e o grau de diferenciao entre
os grupos analisado em termos de uma varivel dependente. O grau de diferenciao dos
grupos comparado com o padro de distribuio aleatria." (Babbie, 2001: 421). O teste de
significncia expressa uma relao de probabilidade:
"Significativo no nvel 0,05 (p
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a. Pertencimento racial: questes 5 e 6.
b. Condio scio-econmica (Critrio Brasil): questes 7, 8, 9 e 10.
c. Pertencimento universidade: estar ou no na USP.
d. Posies polticas: questes 20 e 21.
e. Posies em relao noes de igualdade: questes 24b e 22a
(formal), questes24c e 22c (oportunidades e condies).
f. Posies sobre as relaes raciais:
- reconhecimento do preconceito\discriminao\racismo: questes 19c, 24f, 24h,
24i.
- explicaes sobre as desigualdades raciais: questes 23, 24a, 24e, 24g, 27.
g. Posies acerca do valor do mrito: questes 19d, 25, 24d.
h. Posies sobre o vestibular: questes 19a, 32g e 32h.
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1. A Democratizao do Acesso ao Ensino Superior no Brasil
O ensino superior brasileiro continua, como o era nos anos 60, um espao no
universalizado cujo acesso est legalmente condicionado s capacidades acadmicas de cada um.
Entretanto, nas ltimas quatro dcadas, observou-se uma preocupao recorrente com ademocratizao do ingresso a esse nvel de ensino. Mas que democracia poderia ser
reivindicada em espao ainda to restrito como o da educao superior?Processos democrticos
de gesto e distribuio interna de poder, igualdade de oportunidades no acesso e permanncia,
direito de todos educao?
A partir da literatura, analisa-se que sentidos essa democratizao assumiu ao longo dos
ltimos quarenta anos, observando a relao entre as preocupaes que envolveram o acesso ao
ensino superior e as transformaes polticas e sociais por que passou a sociedade brasileira.
Dividi-se a anlise em dois momentos: os anos 60 e 70, durante os quais foi gestada e
implementada a reforma universitria de 1968; e os anos 80 e 90, quando se acentuaram os
limites da reforma dos anos 60, suscitando mudanas e a formulao de novos projetos para o
ensino superior.
1.1. Balano da literatura sobre acesso ao ensino superior
Na rea educacional, os trabalhos sobre o tema do acesso educao superior passaramde uma situao marginal a uma progressiva expanso da produo, que se acentuou ao final da
dcada de 70 e se consolidou nos anos seguintes (Peixoto, 2001: 129). A temtica ganhou
relevncia a partir de um problema prtico, a demanda externa e interna por vagas nas
universidades, e de uma medida poltica, a Reforma Universitria de 1968, que pretendeu
solucion-lo. A grande maioria dos balanos realizados tomou como ponto de partida para suas
anlises esta reforma, vista como marco de significativas transformaes no acesso ao ensino
superior (Franco, 1985; Baeta, 1985; Gatti, 1992; Peixoto, 2001).
Um assunto permanente nesses quarenta anos foi o vestibular, abordado sob diversos
aspectos, que abrangeram desde questes tcnico-pedaggicas a questes macro-sociais (Vianna,
1980; Franco, 1985; Baeta, 1985; Gatti, 1992; Peixoto, 2001). Sua importncia nos estudos sobre
o acesso ao ensino superior deveu-se ao fato de ser o principal instrumento de seleo daqueles
que teriam direito a uma vaga nas instituies de educao superior no Brasil e sobre o qual
incidiram muitas das modificaes realizadas nesse nvel de ensino. Um ponto forte nesse debate
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foi a influncia da origem scio-econmica dos candidatos nos nveis de desempenho no
vestibular, levando discusso sobre seu carter discriminatrio e elitista. J a nfase em seus
aspectos tcnicos e pedaggicos foi mais significativa nos anos 70, especialmente entre
integrantes de instituies responsveis pela realizao do vestibular (Peixoto, 2001: 129).
Discutia-se sobre o vestibular enquanto instrumento de medida, sobre testes de mltipla escolha,os sistemas classificatrio ou eliminatrio, a incluso de provas de redao, a capacidade de
seleo dos melhores alunos e de predio de seu sucesso nos cursos superiores. Ressaltava-se,
ainda, as relaes do vestibular com o sistema de ensino, pensado tanto como possibilidade de
incentivar melhorias nos nveis anteriores ao superior quanto de desvirtuamento dos seus
objetivos, fazendo do ensino mdio apenas um preparatrio para o vestibular ou mesmo
estimulando a criao de cursinhos preparatrios.
Para alm das preocupaes com o vestibular, temos a questo das diferenas nas
oportunidades de acesso ao ensino superior, questo que assumiu diversos matizes: a seletividade
social, de gnero e tnica, realizada pelo vestibular, implicando nas desigualdades de
oportunidades de acesso; os mtodos alternativos de seleo; as diferenas nas escolhas das
carreiras; e a hierarquizao interna dos cursos superiores.
A idia de democratizao marcou a discusso em torno do processo de expanso da
educao superior nos anos 60 e as mudanas que a partir da se iniciaram, adquirindo vrios
sentidos ao longo do perodo:
Fala-se em democratizao do ensino, democratizao de oportunidades,democratizao de vagas, democratizao de carreiras. Democratizao (...) uma
idia que tem em comum o fato de opor um momento da histria em que, no Brasil, a
educao um atributo das elites a um outro em que o acesso escola comea a ser
uma aspirao de muitos, das demais camadas sociais. A tendncia observada tratar
o tema da democratizao do ensino superior antes como uma questo de meios do
que como um problema de fins, o que seria mais justo face sociedade extremamente
desigual em que ocorre a disputa por vagas na universidade. (Franco, 1985: 20).
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1.2. Os Anos 60 e a Reforma Universitria
A partir de 1945, o ensino ginasial6brasileiro conheceu significativa expanso, seguindo
as transformaes que ocorreram na sociedade, como a queda do Estado Novo, o processo de
urbanizao e intensificao da industrializao, e as mobilizaes sociais por educao e cultura
que se espalharam pelo pas. Internamente ao sistema educacional, a principal causa desse
crescimento foi o fim dos exames de admisso realizados na passagem do ensino primrio ao
mdio. Outra mudana significativa ocorreu com a criao da lei de equivalncia, iniciada com
as Leis Orgnicas de 1942 a 1956 e consolidada com a Lei de Diretrizes e Bases da Educao
Nacional - LDB de 1961. Com o fim da dualidade no ensino mdio, abriu-se a possibilidade a
todos os concluintes dos cursos mdios profissionais de se candidatarem ao ensino superior,
oportunidade antes restrita queles que freqentaram o ensino secundrio. Os graduados em nvel
mdio mais do que dobraram de 1955 a 1964 (Gouveia, 1967), o que conseqentementeaumentou a presso por vagas no ensino superior.
Diante do crescimento do nmero de candidatos muito acima do nmero de vagas
oferecidas no nvel superior, a competio e a seletividade realizadas atravs dos exames
vestibulares poca taxados por alguns como estudanticdio (Campovilla, 1965) - tambm
aumentaram. A situao agravou-se com o problema dos excedentes, ou seja, aqueles estudantes
que foram aprovados para um curso superior, mas que no poderiam freqent-lo por falta de
vagas. O tema ganhou projeo na mdia, levou formao de classes extras para os estudantes e
a diversos protestos estudantis. Os alunos reivindicavam seu direito de freqentarem o ensino
superior, j que foram aprovados para o mesmo de acordo com as regras estabelecidas
legalmente. Processos judiciais impetrados foram favorveis aos estudantes (Cunha, 1988).
Esse processo culminou na aprovao da Lei no. 5540 de 1968, que estabeleceu a
Reforma Universitria. Aprovada pelo governo militar em seu momento mais autoritrio, a
reforma abordou duas questes centrais para o acesso ao ensino superior: a expanso desse nvel
de ensino e o exame vestibular.
A Reforma de 68, com a expanso do ensino superior no seu horizonte de preocupaes,
props como soluo a criao de grandes estabelecimentos universitrios, escolhidos pela
facilidade de ampliao medida que aumentasse a demanda por vagas. Entretanto, os rumos
tomados foram outros, como veremos mais frente.
6 A Lei Orgnica do Ensino Secundrio, promulgada em 9 de abril de 1942 mediante o decreto-lei no. 4244,reestruturou o ensino secundrio em um primeiro ciclo, chamado ginasial, e um segundo ciclo, subdividido emclssico e cientfico (cf. Romanelli, 2001).
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O vestibular, institudo em 1911 pela Reforma Rivadvia Correia e caracterizado como
um exame de sada do ensino secundrio chamado preparatrio, foi transformado em 1925 em
exame de ingresso, com o propsito de verificar a capacidade do candidato em acompanhar um
curso superior. Sua prxima mudana significativa ocorreu com a Reforma Universitria de
1968, quando passou a abranger os conhecimentos comuns s diversas escolas do ensino mdio,a avaliar a formao recebida pelos candidatos e sua aptido intelectual para os cursos superiores.
Props-se ainda unificar os exames em termos regionais e estabelecer um contedo nico para
todos os cursos ao invs dos antigos exames por rea de conhecimento. Modificou-se, assim, a
situao existente desde a LDB de 1961, que concedia s Universidades autonomia para
realizarem o concurso vestibular. Coube Comisso Nacional de Vestibular Unificado -
CONVESU viabilizar essas mudanas preconizadas pela Reforma de 68 (Cunha, 1988). As
provas tornaram-se majoritariamente escritas ao invs de orais e gradativamente foram
introduzidas questes de mltipla escolha no lugar das dissertativas. O exame perdeu seu carter
eliminatrio para tornar-se classificatrio, na tentativa de resolver o problema dos excedentes ao
condicionar o ingresso s vagas existentes, excluindo-se apenas o candidato com resultado nulo
em qualquer das provas, em substituio exigncia anterior de uma nota mnima igual ou
superior a cinco.
Em termos da expanso do sistema, no perodo de 1962 a 1979, o nmero de alunos
matriculados cresceu mais de 12 vezes, passando de 107 mil matriculados em 1962 a 1,300
milhes em 1979. O total de novas vagas oferecidas subiu de 47 mil para 402 mil.Quantitativamente, ampliou-se significativamente o acesso ao ensino superiro. Entretanto, esse
crescimento esteve concentrado em estabelecimentos isolados privados, que passaram de 42 mil
em 1965 para 407 mil em 1974. J a proporo de instituies de ensino superior pblicas
diminuiu de 56% em 1965 para 38% em 1974 (fontes: MEC/INEP/SECC; Sousa, 1975).
Houve, ainda, um aumento desproporcional dos candidatos em relao ao nmero de
vagas. Os inscritos ao vestibular passaram de 71 mil em 1962 para 1,559 milhes em 1979, e a
relao candidato vaga passou de 1,5 em 1962 para 3,9 em 1979. Enquanto o nmero de
candidatos aumentou quase 22 vezes, o nmero de vagas cresceu 8,5 vezes.
Contudo, juntamente com a implantao da Reforma e a expanso do ensino superior
vieram as crticas qualidade e ao abastardamento da educao superior cujas novas polticas,
na nsia pela ampliao de vagas, teriam descuidado do controle do nvel dos cursos oferecidos
(Cunha, 1977: 12). Em termos de legislao educacional, tivemos a Lei no.5692 de 1971, que
profissionalizou compulsoriamente os cursos do ensino mdio, na tentativa de diminuir parte da
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demanda por ensino superior. Como uma forma de melhorar o nvel de preparao dos alunos, a
redao foi introduzida nos exames vestibulares, primeiramente na Universidade de So Paulo,
em 1974 e nacionalmente, em 1976. Alguns critrios eliminatrios foram reintroduzidos no
processo seletivo e o sistema classificatrio tornou-se efetivamente misto. Em 1974, da parte do
Conselho Federal de Educao, praticamente no foi autorizada a abertura de novos cursossuperiores.
1.3. O debate sobre democratizao e seletividade social
Como avaliar a expanso do ensino superior ocorrida nos anos 60 e 70? Houve uma
intensa democratizao? Resumidamente, pode-se dizer que a ampliao da educao superior
caracterizou-se pelo aparecimento de um novo tipo de escola, as instituies superiores voltadas
para o lucro e por um significativo crescimento das matrculas no ensino superior, ainda que no
tenham acompanhado o crescimento do nmero de candidatos a uma vaga. A expanso incluiu
um maior nmero de estudantes e, alm disso, incorporou um novo estrato social s instituies
de ensino superior, que deixaram de ser freqentadas quase que exclusivamente pela elite para
envolver tambm os setores da classe mdia baixa. No entanto, o reconhecimento do carter
democratizador das mudanas ocorridas variou significativamente. Como a questo foi analisada
sob diversos pontos de vista, apresentamos algumas das principais abordagens.
Uma das caractersticas centrais no debate sobre a democratizao do ensino o princpioliberal da universalidade, segundo o qual todos os nveis do sistema educacional, inclusive o
ensino superior, deveriam ser disponveis para cada indivduo, sendo sua carreira educacional
determinada por sua inteligncia e motivao, mais do que por sua origem scio-econmica.
(Santos Fo., 1986: 23). Quer-se enfatizar que o acesso ao ensino superior deve estar aberto a
todos, condicionado capacidade e mritos individuais, e no a restries de ordem social, de
status ou de nascimento; quer-se garantir uma igualdade de oportunidades.
Parte significativa da produo sobre o ingresso ao nvel superior no Brasil deteve-se
anlise de como esse princpio de igualdade foi traduzido em prticas educacionais. Para alguns,
a democratizao refletiu-se numa tendncia deselitizante observada no ensino superior,
identificada atravs da mudana no perfil dos universitrios brasileiros. Da seleo entre muito
poucos do sculo XVI ao incio do sculo XIX, teramos passado para uma seleo entre
poucos, no perodo que abrangeria a vinda da famlia real ao Brasil at meados do sculo XX. A
seleo entre muitos iniciar-se-ia aps a dcada de 50 e, com a supresso da evaso na
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educao bsica, a expanso de vagas e o aperfeioamento dos exames de ingresso, entraramos
na seleo entre todos, caracterizando a deselitizao do acesso ao ensino superior (Santos,
1998).
Ao analisar o perfil dos alunos ingressantes no ensino superior nos anos 60, Aparecida
Joly Gouveia (1968) estende a idia de democratizao da educao, definindo-a a partir dadistribuio dos diferentes grupos sociais entre os vrios cursos universitrios. Segundo a autora,
o limite terico da democratizao do ensino
seria a completa eqidade nas oportunidades de acesso aos diferentes nveis de
ensino, oferecidas aos vrios grupos da populao. Estatisticamente, a realizao
desse modelo traduzir-se-ia em situaes como a seguinte: se, em determinado pas,
os agricultores (ou os habitantes das zonas rurais, os pretos, os indivduos do sexo
feminino) constiturem a metade da populao, nesta mesma proporo ho de figurar
no corpo discente das escolas superiores. (1968: 233).
Ao seguir essa perspectiva, precisa seu conceito de igualdade de oportunidades liberais
que, se por um lado aceita a existncia de diferenas naturais de talentos entre os indivduos, por
outro supe que a distribuio desses talentos independa dos grupos sociais aos quais pertencem
os indivduos.
Os estudos realizados nos anos 60 e 70 pretenderam mostrar o quo distante desse
princpio de universalidade e igualdade estava a realidade do acesso ao ensino superior no Brasil.
Influenciadas pelas teorias da reproduo social, especialmente pelos trabalhos de PierreBourdieu e J.C. Passeron, como Les hretiers: les tudiants et la culture, de 1964 e A
Reproduo, de 1970, as pesquisas na rea focalizaram sua anlise sobre quem estaria sendo
beneficiado com a expanso do ensino superior e por que, ressaltando principalmente a
influncia das condies scio-econmicas dos candidatos no processo de seleo.
Gouveia (1968), em pesquisa com universitrios do primeiro ano de trs instituies
superiores paulistas - USP, Mackenzie e PUC-SP - observa que os estratos de nvel mdio da
populao estariam mais presentes nessas universidades e que os filhos de trabalhadores manuais
representariam apenas um sexto do corpo discente. Preocupado com a origem social dos
universitrios, seu trabalho constata uma seletividade social existente nos cursos superiores,
assim como j observaram estudos anteriores (Foracchi, 1965; Castro, 1968). Mas, alm das
diferenas no perfil dos estudantes universitrios, Gouveia percebe que este variava de acordo
com o curso realizado. Ou seja, alm de uma incluso desproporcional de alguns grupos sociais
na universidade como um todo, tambm ocorria uma estratificao social nos cursos, onde a
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distribuio dos diferentes grupos seguia uma hierarquizao das carreiras, classificada pela
autora entre cursos seletos, intermedirios e populares. Conclui, ento, que a mera expanso
quantitativa das oportunidades educacionais no iria suprimir, necessariamente, desigualdades no
acesso a certos nveis ou tipos de educao nem garantiria a democratizao do ensino:
no se ter conseguido tal democratizao, mesmo quando possam as camadasmenos favorecidas freqentar cursos superiores, enquanto os filhos de industriais se
concentrarem em faculdades de Medicina, Arquitetura e Engenharia, e os filhos de
operrios, em cursos de economia e direito de segunda categoria. (Gouveia, 1968:
244).
Nos estudos seguintes, a anlise da seletividade social e dos condicionantes scio-
econmicos centrou-se no exame vestibular, principal mecanismo de acesso e seleo. As
tenses e disputas em torno do ensino superior tambm recaram, nesse momento, sobre o
sistema de ingresso.
O vestibular seria o instrumento que potencialmente garantiria a universalidade e
igualdade de oportunidades ao utilizar um exame formalmente neutro que avaliaria unicamente o
mrito e a capacidade de cada um em freqentar um curso superior: No que concerne
discusso sobre a natureza das provas, os especialistas em medidas argumentam que provas
objetivas bem elaboradas so eficazes para selecionar os mais capazes de forma mais
democrtica, porque no sofreriam a influncia da subjetividade do examinador. (Baeta, 1985:
107). As modificaes realizadas nos anos 60 foram avaliadas de forma positiva. A introduodo sistema classificatrio ao invs do eliminatrio, e a unificao regional e por contedos dos
exames foram vistos como benficos aos estudantes por evitarem que se acumulem despesas com
inscrio, estudo e transporte.
Entretanto, essas mudanas no foram suficientes para evitar a seletividade social
perpetuada atravs dos exames vestibulares (Hamburger, 1970; Castro & Ribeiro, 1979). Castro e
Ribeiro (1979), a partir de dados do vestibular da Cesgranrio de 1973 a 1978, analisam a
variao na participao de estudantes de nveis scio-econmicos mais desfavorecidos na
universidade. Dos resultados observados, percebem que no s a presena dos vestibulandos era
proporcionalmente menor quanto mais baixo o seu nvel social, como tambm eram menores as
suas chances de aprovao nos exames. Quanto possvel democratizao do acesso, concluem
no haver evidncia de que a universidade se abra para grupos sociais de origem mais modesta
no perodo considerado. (Castro & Ribeiro: 1979: 13).
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Alm de ressaltarem a permanncia das desigualdades de oportunidades, Castro e Ribeiro
chamam a ateno para um novo processo em curso, a formao de barreiras no acesso internas
s universidades. Diante da transparncia de informaes sobre o desempenho exigido nos
diferentes cursos e carreiras, observam existir uma pr-seleo, anterior realizao do
vestibular, onde os estudantes com fraca formao escolar e de baixa renda tenderam a procurarcursos menos concorridos e prestigiados, enquanto que aqueles de melhor renda e desempenho
eram atrados por carreiras de alto prestgio e maior retorno financeiro:
[o] aumento no acesso das classes baixas se d nas carreiras que mais rapidamente
se desprestigiam, onde mais difcil conseguir emprego e onde os nveis mdios de
remunerao so menores. Ou seja, h uma crescente diferenciao interna da
universidade. Os vestibulandos de nvel scio-econmico baixo cada vez menos
conseguem atingir as carreiras mais almejadas. (ibdem: 18).
Desvenda-se no apenas a seletividade social presente no acesso ao ensino superior, mas
tambm as transformaes das desigualdades nas oportunidades educacionais. Percebem como a
dualidade do sistema de ensino, j observada por Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo,
perpetua-se, no mais atravs de diferentes cursos de nvel mdio e seus exames de admisso,
mas por meio de cursos superiores em instituies de qualidade distinta e em carreiras de
diferentes prestgio e retorno financeiro.
O tom que predominou nos anos 60 e 70 foi de crtica ao projeto incompleto de
democratizao da educao, ressaltando o descompasso e a contradio entre a viso liberal daeducao como espao da igualdade de oportunidades e a realidade da sociedade brasileira,
marcadamente oposta, seja no campo poltico, econmico ou educacional. Arabela Oliven, ao
analisar o processo de expanso do ensino superior do perodo, centrado no setor privado e na
forma de escolas isoladas, conclui que este representou uma forma de cooptao da classe
mdia, que teve como finalidade ampliar as bases de legitimao do Regime, no representando
democratizao, mas refletindo isto sim, as contradies da nossa sociedade e, principalmente, as
da classe mdia com seus interesses a curto prazo. (Oliven, 1980: 75). Para a autora, a expanso
teve como motivao conter o perigo da politizao e presso estudantis, organizadas
principalmente em universidades pblicas, e cooptar o apoio da classe mdia, tradicionalmente
dependente do Estado e da elite, ao projeto poltico governamental. Ao indicar as finalidades e
propsitos poltico-governamentais que orientaram a ampliao da educao superior, Oliven
reala seu distanciamento de ideais democrticos e igualitrios.
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Lcio Kowarick, em breve artigo publicado na revista Cincia e Cultura, radicaliza a
crtica aos fundamentos liberais e aos limites estruturais impostos pelo capitalismo
democratizao do ensino e extenso da igualdade:
A competio que marca a trajetria escolar no igualitria. Ao contrrio, est
marcada por diferentes handicaps que transcendem de muito as potencialidadesindividuais.(...) no so sempre os mais aptos que chegam ao final da corrida, mas
so, em grande parte, os que possuem determinadas condies econmicas e scio-
culturais. Os favoritos, aqueles que podero percorrer a trajetria educacional at os
nveis altos, j esto, em grande parte, de antemo escolhidos. O background de
uma criana ou jovem, isto , a posio social que ocupa sua famlia em termos de
renda, ocupao, educao, prestgio, acesso a informaes etc..., condiciona
fortemente a probabilidade do seu sucesso educacional. (Kowarick, 1976: 134).
Que igualdade possvel quando alguns j nascem favoritos?Para Kowarick, a idia de
igualdade de oportunidades educacionais algo irrealizvel. A democratizao do ensino, numa
sociedade capitalista liberal, s teria sentido como um ideal bem intencionado mas utpico.
(ibdem: 135):
A idia de uma democratizao fundamental ou de extenso da cidadania que
tem como postulado um amplo acesso educao, perdeu seu vigor enquanto
alternativa reformista na medida mesmo em que a expanso educacional tendeu a
espelhar as desigualdades de oportunidades existentes entre os diversos grupossociais de uma sociedade. (...) Mesmo nas sociedades avanadas a questo da
igualdade de oportunidades e o suposto sistema de gratificaes baseado na
meritocracia nada mais so do que crenas alimentadas pela ideologia burguesa
liberal. (ibdem: 134).
Ainda que a nfase nas origens econmicas das desigualdades e a crtica s limitaes da
igualdade de oportunidades educacionais prevaleceram nos debates sobre democratizao do
ensino nos anos 60, algumas pesquisas tambm chamaram a ateno para outros aspectos
essenciais democratizao: as desigualdades tnicas e de gnero.
Carmen Lcia M. Barroso e Guiomar Namo de Mello (1975), em estudo sobre a insero
da mulher no ensino superior, observam que a questo da igualdade no acesso no exigia uma
ampliao do ingresso, mas antes uma melhor distribuio das mulheres entre as diversas
carreiras, pois elas se concentravam naquelas profisses tradicionalmente femininas, como o
magistrio. Alm disso, as autoras constatam que as mulheres tinham melhor desempenho que os
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homens no ensino mdio e estavam em maior nmero entre os candidatos a uma vaga no ensino
superior, contudo, suas chances de ingresso eram menores: H uma tendncia de as diferenas
de sexo, quando investigadas na situao escolar, serem favorveis s mulheres, ao passo que, de
modo geral, d-se o contrrio quando o desempenho avaliado em situaes mais padronizadas e
impessoais, como em concursos e exames de ingresso. (Barroso, C.L.; Mello, G.N., 1975: 73).As autoras introduzem uma nova dimenso nos estudos sobre acesso ao ensino superior, a cultura
e as relaes de gnero, e em especfico a observncia das caractersticas de personalidade e
comportamento atribudos s mulheres.
Dando continuidade s suas pesquisas anteriores, Aparecida Joly Gouveia (1972), ao
analisar uma amostra de estudantes matriculados em trs universidades na cidade de So Paulo,
observa existir uma relao entre a freqncia determinada rea de estudos e a situao
socioeconmica e a origem tnica da famlia do estudante. Com relao influncia da origem
tnica, que dividiu em cinco categorias brasileiros, judeus, japoneses, srio-libaneses e latinos -
constata existir uma diferenciao na escolha da carreira, mesmo controlada a varivel
socioeconmica:
Os estudantes brasileiros e latinos so os menos propensos cincia e tecnologia e,
por outro lado, os mais propensos a direito, cincias humanas e ramos correlatos.
Contrariamente, os japoneses so os que menos freqentemente matriculam-se nesta
rea. Concentram-se em cincia e tecnologia quando provm de famlia de nvel
mdio ou superior; mesmo, porm, entre os de origem mais modesta, que maisraramente chegam a matricular-se a, so os japoneses os que mais comumente o
fazem. (Gouveia, 1972: 79).
Essas duas ltimas pesquisas apresentadas incorporam a cultura e as diferenas em termos
de gnero, raa e etnia discusso sobre democratizao do acesso ao ensino superior como
aspectos relevantes a serem considerados. Contudo, ser apenas nos anos 80 e principalmente 90
que essas preocupaes se generalizam e ganham espao na agenda das polticas educacionais.
1.4. A redemocratizao e a nova reforma dos anos 90
Os anos 80 foram marcados pelo processo de redemocratizao do pas, pela Lei de
Anistia de 1979, a reorganizao da sociedade civil, o movimento pelas Diretas em 1984, o
processo constituinte, a elaborao da Constituio de 1988. Foi um perodo instvel econmica
e politicamente, caracterizado pelos governos dos vices: primeiramente Jos Sarney, empossado
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presidente aps a morte de Tancredo Neves, e depois Itamar Franco, que assume depois do
impeachment do Presidente eleito Fernando Collor de Mello.
A rea educacional vivenciou intensos debates e propostas de reforma, fragilizados, no
entanto, pela descontinuidade poltica. No perodo de dois mandatos presidenciais, passaram pelo
Ministrio da Educao - MEC oito dirigentes. Das aes significativas no ensino superior,tivemos a constituio da Comisso Nacional para a Reformulao do Ensino Superior em 1985,
que implantou o programa Nova Universidade e em 1986 a instituio do Grupo Executivo
para a Reformulao da Educao Superior. Dentre as modificaes realizadas nas polticas de
admisso, houve em 1987 a ruptura em definitivo do modelo nico de vestibular, que da
centralizao anterior passou a um processo de descentralizao. Discutiu-se propostas
alternativas de acesso a esse nvel de ensino, como a avaliao seriada formulada pela
Universidade de Braslia e depois pelo MEC com o Sistema de Acompanhamento de Processos
das Instituies de Ensino Superior - SAPIENS; cotas de 50% para alunos carentes em
instituies pblicas, como props em 1986 a Comisso de Assuntos Constitucionais; ou mesmo
a extino do vestibular (Chiroleu, 1996). Outra questo que voltou pauta foi as vagas ociosas
decorrentes, na rede privada, da falta de recursos financeiros dos estudantes e, na rede pblica, da
rigidez dos exames de acesso. O problema agravou-se na segunda metade dos anos 80: nos anos
de 1986, 87 e 88, as vagas ociosas foram de 8%, 9% e 18%, respectivamente, nas instituies
particulares e 3,5%, 12% e 13,5% nas instituies pblicas (Franco, 1989: 103). Esse debate
estendeu-se por anos e solues efetivas ocorreram apenas nos anos 90, como quando aUniversidade de So Paulo modificou, em 1993, seus critrios de aprovao nos exames
vestibulares, dando maior nfase em seu carter classificatrio e restringindo medidas
eliminatrias (Beisiegel, 1995).
Em meados dos anos 90, nos deparamos com um cenrio poltico em certa medida
distinto daquele da dcada anterior, principalmente pela definio mais clara de um projeto de
reforma para o Estado e para a rea educacional, inclusive no nvel superior. Por contraste, o que
caracterizou esse momento foi a continuidade, marcada pela reeleio do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, governando o pas por dois mandatos consecutivos e pela permanncia de um
nico Ministro da Educao, Paulo Renato Souza, durante oito anos.
A expanso do ensino superior pela diversificao e privatizao do sistema orientou as
decises do MEC e do recm-criado Conselho Nacional de Educao e consolidou-se na Lei de
Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDB aprovada em 1996 e no Plano Nacional de
Educao - PNE de 2001. Em termos do acesso ao nvel superior, a LDB permitiu a existncia de
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outros sistemas de ingresso que no os exames vestibulares; estabeleceu novos modelos de
instituies e cursos superiores, como os Centros Universitrios, que no necessitam dedicar-se
pesquisa e dispensam a autorizao prvia para a criao de novos cursos, e os chamados "cursos
seqenciais por campo de saber", de menor durao que os tradicionais. J o PNE props uma
expanso do ensino superior dos atuais 9%
7
para, ao menos, 30% da populao brasileira na faixaetria dos 18 aos 24 anos at o final de 2010; a manuteno da proporo de alunos em
instituies pblicas superiores em um patamar mnimo de 40%; e a definio de aes
direcionadas incluso de minorias vtimas de discriminao na educao de nvel superior.
Analisando os dados educacionais dos anos 80 e 90, observou-se uma significativa
expanso do ensino fundamental, que em 2002 atingiu 97% das crianas na faixa etria
correspondente, totalizando 35,150 milhes de matrculas e garantindo sua quase
universalizao. O ensino mdio contabilizou 8,710 milhes de matrculas nesse mesmo ano e
cresceu 53% de 1996 a 2002. Em 2000, os concluintes no ensino fundamental eram 2,648
milhes e no ensino mdio 1,836 milhes (Censo da Educao Bsica 2000 e 2002). J a
expanso do ensino superior concentrou-se nos anos 90 e ocorreu majoritariamente no setor
privado.
De 1,377 milhes de alunos matriculados na educao superior em 1980 passamos para
1,518 milhes de alunos em 1989. Enquanto que a matrcula total cresceu no perodo 11%, no
ensino privado aumentou 5% e no pblico estadual 77%. A proporo de matrculas em
instituies de ensino superior privadas diminuiu de 64% para 61,5%.O nmero de vagas aumentou muito pouco, passando de 404 mil em 1980 a 466 mil em
1989. O nmero de candidatos ao vestibular manteve-se praticamente o mesmo: eram 1,800
milhes em 1980 e 1,818 milhes em 1989, tendo atingido um pico de 2,193 milhes em 1987. A
relao candidato vaga caiu de 4,5 em 1980 para 3,9 em 1989. O quadro geral foi de estagnao
na dcada de 80.
A situao comeou a mudar nos anos 90. De 1,540 milhes de alunos matriculados em
1990 passamos para 3,479 milhes em 2002, representando um crescimento de 126%, mais
acentuado a partir de 1995. O nmero de vagas subiu de 502 mil em 1990 para 1,773 milhes em
2002, representando um crescimento de 253%, onde o setor privado aumentou 282% e o pblico
70% em relao oferta de vagas. As instituies privadas possuam 83% do total de vagas
oferecidas em 2002. No entanto, eram responsveis por 70% do total de alunos matriculados em
instituies de ensino superior, j indicando uma taxa significativa de ociosidade.
7 Esse percentual aproxima-se dos 13% quando so contabilizadas as matrculas de alunos de faixas etriassuperiores.
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O nmero de candidatos tambm aumentou significativamente: de 1,905 milhes em
1990 chegamos a 4,984 milhes em 2002, representando um crescimento de 162%. Apesar da
maioria das vagas estar concentrada nas instituies privadas, a maior parte dos alunos
candidatou-se a uma instituio pblica, federal ou estadual, onde a procura tem aumentado
consideravelmente a cada ano. Do total de candidatos inscritos, 3,779 milhes no conseguiramuma vaga em instituio de ensino superior; nas instituies pblicas, o nmero de candidatos
deixados de fora do sistema foi de 2,346 milhes e nas privadas 1,432 milhes.
A relao candidato/vaga variou de 3,8 em 1990 a 2,8 em 2002. No entanto, essa queda
concentrou-se basicamente nas instituies privadas, onde a relao baixou para 1,6, enquanto
que nas pblicas esta s tem aumentado, sendo de 8,9, em mdia, em 2002. No que diz respeito
aos sistemas de acesso, os ingressantes atravs de processos distintos do vestibular
representavam 9% do total em 2002.
Podemos observar por esses dados que, apesar do nmero de vagas oferecidas ter
aumentado em propores maiores que a procura, ela no tem sido suficiente para atender ao
crescente nmero de alunos excludos do sistema. Faamos um pequeno exerccio de projeo da
demanda por educao superior para entendermos melhor que pblico esse e quais os desafios
que nos tem