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SUMÁRIO
Resumo............................................................................................................................. 4
Resumo das atividades parciais.........................................................................................4
1. Introdução......................................................................................................................5
2. Aprofundamento teórico................................................................................................7
2.1 Ditadura militar no Cone Sul...........................................................................7
2.2 Interdiscurso...................................................................................................14
2.3 Silêncio...........................................................................................................18
2.4 Semântica global............................................................................................19
2.5 Competência discursiva..................................................................................22
3. Corpus e encaminhamentos preliminares da análise....................................................24
3.1 O ano em que meus pais saíram de férias.......................................................24
3.2 Machuca.........................................................................................................27
3.3 Kamchatka.....................................................................................................29
3.4 Práticas intersemióticas..................................................................................33
4. Análises parciais...........................................................................................................34
5. Cronograma de trabalho...............................................................................................41
6. Bibliografia citada........................................................................................................42
7. Anexos.........................................................................................................................43
4
Resumo
No Projeto de Pesquisa, foi proposto que buscaríamos compreender se e como se
delimita uma semântica relacionada aos desaparecimentos e mortes ocorridos durante o
período em que foi vivido o regime militar nos países do Cone Sul. Para isso, estudamos
três filmes que contam a história e três garotos que vivem envoltos por mistérios,
silêncios, metáforas e não ditos, pelo fato de estarem colocados em lugares ideológicos,
e muitas vezes físicos, desconhecidos. Seus pais também pouco dizem sobre a situação
que estão vivendo, o que faz o entendimento dos garotos ficar ainda mais limitado. Neste
Relatório Parcial buscamos explicitar como foi construída uma determinada base política
no Brasil, na Argentina e no Chile que se colocou como um ponto semelhante entre os
países e serviu para estabelecer aliança entre os mesmos, comentando alguns dos
documentos liberados recentemente pela Comissão Nacional da Verdade brasileira e
observando como foram arquivados e classificados os casos de desaparecimento, morte e
tortura de que se tem notícia nos países citados.
Para compreender como os sentidos são construídos para essas crianças,
observaremos, nas narrativas fílmicas, tomadas aqui como textualização de discursos,
quais são os fatores presentes no dia a dia que fazem com que construam sentidos para o
que acontece no mundo em que estão inseridas. Para isso, são mobilizados principalmente
os conceitos de semântica global e competência discursiva, propostos por Dominique
Maingueneau em Gênese dos discursos, [1984] 2007, entre outras noções que dão
sustentação a estas formulações teóricas.
Resumo das atividades parciais
Julho: Participação com apresentação de pôster no 63º Seminário do GEL (Anexo
1);
Agosto: Palestra sobre o curso de Linguística ministrada na Semana de Orientação
Profissional realizada no Colégio Batista Brasileiro, unidade Bauru (Anexo 2).
Levantamento de bibliografia e leitura sobre competência discursiva,
interdiscurso e semântica global;
Setembro: Resenha dos capítulos 1, 2 e 4 do livro Gênese dos discursos;
participação com apresentação de trabalho junto ao grupo de estudos Comunica -
inscrições linguísticas na comunicação no IV Ciad (Anexo 3);
5
Outubro: Estudo e seleção das cenas dos filmes que serão analisadas;
Novembro: Participação com apresentação de pôster no IV Seminário de
Produção em Linguística (Anexo 4);
Dezembro: Entrega do Relatório de Acompanhamento.
1. Introdução
Com base no quadro teórico da Análise do Discurso de tradição francesa e
partindo da hipótese de que é possível delimitar uma semântica global relacionada aos
desaparecimentos acontecidos durante a ditadura militar no Cone Sul, mobilizamos
algumas noções propostas por Dominique Maingueneau, sendo uma delas a competência
discursiva:
No curso de sua vida, o mesmo indivíduo pode, sucessivamente e talvez
simultaneamente, inscrever-se em competências discursivas distintas,
embora se tenha facilmente a tendência a imaginar que cada qual está
associado a uma e só uma competência [...] É possível dar conta mais
facilmente desses fenômenos se postulamos a existência de uma
competência com regras simples: os Sujeitos estão tanto menos presos
a um “paradigma” quanto mais o acesso a um novo paradigma
discursivo é formalmente fácil. (MAINGUENEAU, 2007, p. 54-55)
Essa competência tem a ver, então, com os lugares de fala, com a própria
delimitação desses lugares a partir dos quais os discursos são textualizados.
Sobre essa textualização, entendemos que são analisadas a partir de um princípio,
o da semântica global, que relaciona os diversos planos que constituem o discurso
Um procedimento que se funda sobre uma semântica “global” não
apreende o discurso privilegiando tal ou tal de seus “planos”, mas
integrando-os todos a todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da
enunciação. (MAINGUENEAU, 2008, p. 75).
Estes conceitos serão aqui mobilizados para análise de três obras cinematográficas
– entendidas aqui como textualizações – que narram histórias de crianças que vivem o
período em que se impôs um regime militar no Brasil, em boa medida contemporâneo ao
que foi vivido no Chile e na Argentina, sendo essas histórias O ano em que meu pais
saíram de férias (2006), dirigido e produzido por Cao Hamburguer, Machuca (2004), por
6
Andrés Wood e Kamchatka (2002) por Marcelo Piñeyro. O que há de comum entre eles
é o fato de os meninos que protagonizam estarem inseridos em lugares ideológicos
completamente desconhecidos a princípio, cercados de perguntas e mistérios, já que não
compartilham de um conhecimento geral de mundo, isto é: não têm, segundo nossa
hipótese de trabalho, competência discursiva para apreender a conjuntura vivida e
participar dela como sujeitos da história.
Entendemos também que as metáforas, os não ditos e os silêncios funcionam
como nós fundamentais no processo de desenvolvimento de competência discursiva
dessas crianças. Portanto, compreendemos que não pode se formar uma competência
discursiva se existir ausência de informações.
Para delimitar o funcionamento da semântica global relacionada ao
desaparecimento sistemático promovido nesse período, partiremos de algumas categorias
propostas por Maingueneau no capítulo 3 do livro Gênese dos discursos ([1984] 2007): a
intertextualidade, o vocabulário, os temas, o estatuto do enunciador e do destinatário, a
dêixis enunciativa, o modo de enunciação e o modo de coesão.
Compreendemos também ser de extrema importância explorar os aspectos política
e governamentalmente semelhantes que serviram de base para as ditaduras militares
vividas de 1964 a 1985 no Brasil, na Argentina de 1976 a 1983 e no Chile de 1973 a 1990.
Durante estes anos, os territórios passaram por uma fase de intensa repressão política e
censura, compartilhando de diversos aspectos semelhantes, já que o governo seguia um
regime maior imposto, relacionado aos Estados Unidos e à Operação Condor, como
registram documentos revelados recentemente pela Comissão Nacional da Verdade 1.
Para observar como se constrói uma semântica global a partir da perspectiva das
crianças protagonistas dos filmes supracitados, entendemos primeiramente se tratar de
uma semântica que supõe silêncios, não ditos, metáforas e uma série de outros recursos
1 A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada através da Lei 12528/2011 e foi instituída em 16 de
maio de 2012, contando com sete integrantes nomeados pela presidenta Dilma Rousseff. Nasce com o
objetivo de apurar, ao longo de dois anos, quais foram as violações aos Direitos Humanos que aconteceram
entre 1946 e 1988. Em dezembro 2014, ao findar do período proposto para a investigação, foi publicado
um relatório de três volumes, dividido em cinco partes que explicitam separadamente aquilo o que foi
proposto nos trabalhos da Comissão, quais eram os contextos das violações aos Direitos Humanos e qual
era o papel do Estado nas ações realizadas, quais eram os métodos e práticas envolvidas em torturas,
execuções e prisões, qual era o papel do poder Judiciário nos cenários de violação e uma conclusão do que
foi tratado durante o período de trabalho da CNV e daquilo que está exposto no relatório, logo, contém os
resultados das apurações realizadas e está disponível por completo em http://www.cnv.gov.br/index.php
(Acesso em dezembro/2015).
7
linguageiros que influenciam na construção de sua competência discursiva. Para que seja
construído um sentido, segundo a perspectiva teórica aqui assumida, é preciso que
relações parafrásticas, isto é, que modos de dizer se estabeleçam confrontando-se. Por
isso, é importante considerarmos, também, a noção de primado do interdiscurso, já que
as crianças se colocam em um determinado universo discursivo, conforme propõe
Maingueneau para entendimento do interdiscurso, no qual seus lugares se definem porque
estão cercadas por formações discursivas em concorrência, que delimitam um campo
discursivo e, dentro desse campo, são constituídos os discursos, seus subconjuntos, os
espaços discursivos que, recortados pelo analista, são zonas de contato em que se pode
verificar como se dá a interação com o Outro constitutivo do Um.
Neste Relatório, nos apoiaremos nos conceitos acima citados para buscar
compreender como as formas de interação das crianças com o mundo que as cerca, sendo
através de seus pais, de palavras ou de silêncios, acabam fazendo algum sentido para elas
e como este sentido é construído.
2. Aprofundamento teórico
2.1 Ditadura militar no Cone Sul
A ditadura militar foi instaurada e seguiu entre os anos de 1964-1990 em três
países do Cone Sul: Brasil, Chile e Argentina. Para compreender como se deu a relação
entre os países e os regimes impostos, é importante expor um breve contexto histórico de
como seguiu a política e sua relação com os militares nesses países. Os territórios já
compartilhavam de aspectos políticos e ideológicos semelhantes desde o fim da Primeira
Guerra Mundial, como expõe Pereira:
Após a Primeira Guerra Mundial, as grandes características da legalidade da
segurança nacional se desenvolveram em linhas semelhantes no Brasil, no
Chile e na Argentina, influenciadas por fatores comuns aos três países: as
pressões dos conflitos ideológicos do período entreguerras, do colapso
econômico, da ascensão hegemônica dos Estados Unidos após a Segunda
Guerra, e da criação de um sistema de segurança hemisférico durante a Guerra
Fria, que reforçou a tendência dos militares latino-americanos em se
concentrarem nas ameaças internas, mais que nas externas. (PEREIRA, 2010,
p. 79)
A partir de registros como este, podemos perceber que o sistema autoritário que regeu
cada país foi preparado algum tempo antes da ditadura ser instaurada. Quando foram
8
criados, os sistemas judiciais da América Latina adotaram um modelo semelhante ao das
legislações espanholas, que vivia sob uma monarquia absolutista enquanto as legislações
de outros países da Europa já eram desenvolvidas sob a influência de reformas liberais.
Além disso, nos territórios sul americanos, entre os séculos XIX e XX, o presidente era
quem determinava a suspensão de “direitos fundamentais sob qualquer circunstância que
julgassem apropriadas” (PEREIRA, 2010, p. 81), enquanto em outros países europeus era
necessária a aprovação do Parlamento. É importante ressaltar que o Brasil não havia sido
governado por militares até o ano de 1964, apesar de terem sido uma das bases da
presidência de Getúlio Vargas, enquanto a Argentina tinha tido militares nos cargos
máximos de seu governo por quatro vezes – 1930-1932, 1943-1946, 1955-1958 e 1966-
1973 – antes do golpe de 1976. No Chile, o primeiro militar, Carlos Ibañez del Campo,
chegou à presidência em 1927 ficando até 1931, e desde então até o golpe de 1973 os
militares passaram a exercer poder sobre as forças armadas, apesar de serem isolados dos
civis (Cf. PEREIRA, 2010).
A repressão política no Brasil já estava presente antes da ditadura ser instaurada
no território. Enquanto Getúlio Vargas governava o país, em 1935 um levante comunista
intitulado “Intentona” – que contou com o apoio de alguns militares – sofreu forte
repressão, pois foi vista como um ataque ao Estado. Diante da reação do governo contra
o levante foram tomadas novas medidas de repressão em relação àqueles que se
relacionavam ao comunismo e “atacavam” ao governo. As novas medidas incluíam uma
nova lei de segurança nacional que estabelecia o poder “de decretação de estado de sítio
e de exonerar militares, servidores públicos e até mesmo empregados do setor privado
suspeitos de serem comunistas” (PEREIRA, 2010, p. 85-86). Após as medidas serem
instauradas, foi então criado o Tribunal de Segurança Nacional (TSN) (1936-1945), que
levou a julgamento 1.420 pessoas, segundo o Superior Tribunal Militar2 , que apontavam
algum tipo de ameaça ao governo. Os militares divergiam em posições, principalmente
durante a década de 1950. Quando Juscelino Kubitschek concorreu à presidência (1955),
em oposição a ele surgiu uma aliança entre civis e militares e, contra esta aliança, alguns
militares iniciam um movimento em apoio ao então eleito presidente e posteriormente
também em apoio a João Goulart, que assume a presidência em 1961 após a renúncia de
Jânio Quadros. Durante seu mandato, cria-se uma grande oposição ao candidato por parte
2 http://www.stm.jus.br/o-stm-stm/jmu-na-historia/acontecimentos/item/1491-tribunal-de-seguranca-
nacional, acesso em dezembro de 2015.
9
do alto comando militar, alegando que existia uma ligação entre o então presidente, o
movimento sindical e o Partido Comunista; porém, o movimento nascido entre os
próprios soldados e oficiais militares em 1955 em apoio a Juscelino continua em apoio a
Goulart, agora tornando-se ainda maior e contando também com o apoio de Leonel
Brizola. A divisão entre o comando militar era visível e a situação vivida era preocupante,
a qualquer momento podia desencadear em uma guerra civil. O impasse foi resolvido
dando a João Goulart poderes reduzidos em seu governo, além de ter sido aprovada uma
emenda constitucional que instaurava um regime parlamentarista, o primeiro da América
Latina, portanto, o presidente devia dividir seu poder de decisão e governo com um
primeiro ministro. Após o poder ser tomado pelos militares em 1964, os processos
relacionados aos crimes políticos eram levados a julgamento por um “sistema híbrido que
fundia os sistemas de justiça civil e militar” (PEREIRA, 2010, p. 96).
O Chile compartilhou de algumas posições que se assemelham às do Brasil.
Primeiramente, a maioria dos militares chilenos se opunha explicitamente aos partidos
comunistas e às ideologias ligadas ao socialismo. Porém, em contraste aos militares
brasileiros, os chilenos já participavam de missões de grande importância no governo do
país, obtendo destaque em diversos pontos relacionados à repressão e por isso adquiriram
um caráter mais coeso e rígido em comparação ao Brasil, estavam livres de qualquer
controle civil e lidavam com os aparentes “problemas” relacionados à ordem do país sem
o menor controle, deixando marcas de extermínios e destruição por onde achassem
necessário. Enquanto no Brasil foi criado o TSN para resolver os casos relacionados à
justiça política, no Chile a justiça era aplicada pelos próprios militares. Durante o governo
da década de 1920, os militares já prendiam e exilavam os opositores, o que prova que a
organização dos mesmos se relacionava o mínimo possível com os civis e com o poder
judiciário. A Lei para a Defesa Permanente da Democracia (Lei n. 8.987) – conhecida
também como ley maldita por aqueles que não concordavam com ela –, vigorou de 1948
a 1958, e durante esse período o Partido Comunista foi classificado como ilegal, proibiu-
se os membros de participar de sindicatos e permitia-se o banimento de pessoas
consideradas subversivas, autorizando, assim, a prisão dos comunistas e mantendo-os
trancafiados nas bases militares. Em 1958, aprovaram também a Lei da Segurança Estatal
(Lei n. 12.927), que declarava que qualquer pessoa que se opusesse ao governo ou que
provocasse uma guerra civil estaria cometendo um crime contra a segurança nacional,
além de vedar a divulgação de informações dentro ou fora do país por parte dos membros
10
das forças armadas. Na década de 1960 o governo foi autorizado a suprimir as garantias
constitucionais sem aviso prévio ou autorização do Congresso, o que permitia os militares
exercerem forte repressão aos protestos trabalhistas, por exemplo, pondo fim a elas da
maneira como desejassem, sendo por meio de extermínio ou não. Após o golpe militar de
1973, o Chile passou a enfrentar as questões judiciais apenas por meio das decisões dos
militares.
Já os militares argentinos também representavam a considerada mais forte e
violenta repressão, segundo Pereira, aos classificados como subversivos. Na década de
1910, diversas pessoas foram mortas e tiveram seus bens destruídos durante uma caça
intensa dos militares àqueles envolvidos nos movimentos trabalhistas. Na década de 1920
acontece o episódio denominado “Patagônia trágica”, quando o Exército matou entre mil
e dois mil trabalhadores que estavam em greve. Desde a década de 1930, os militares
argentinos começam, então, a exercer enorme repressão ao que se relacionava às eleições.
O primeiro presidente militar que toma o poder em 1930, José Félix Uriburu, já instaura
leis que abrem o caminho para a execução, exílio e tortura dos subversivos, portanto, os
militares já se comprometiam, até mesmo perante a lei, a ter essa postura relacionada à
violência. Os populistas argentinos ganham um pouco mais de força após a posse de Juan
Domingo Perón à presidência, de 1946 a 1955 seu governo ofereceu benefícios tanto à
classe trabalhista, concedendo diversos benefícios materiais, quanto aos militares, sendo
anticomunismo. Outro golpe militar acontece em 1955, unindo a maior parte do alto-
comando militar, a Igreja Católica e as elites agrárias e financeiras. Já em 1956 é aprovado
o Decreto-Lei n. 18.787, que declarou ilegais as atividades relacionadas ao movimento
comunista. Os decretos e leis que entraram em vigor nos anos seguintes chegaram a
decretar que os cidadãos ligados de alguma forma ao comunismo poderiam perder a
carteira de identidade e o emprego público, entre outros direitos, e aqueles naturalizados
argentinos podiam ser deportados ou perder a cidadania. Como a Argentina já havia
passado por governos militares, as forças armadas se mostraram impiedosas e intolerantes
a toda e qualquer atitude que fosse considerada contrária ao governo, portanto, o governo
imposto em 1976 já havia herdado um caráter repressivo extremante violento vivido em
outros regimes.
Após os militares tomarem o poder no Brasil, o presidente Humberto de Alencar
Castelo Branco, o primeiro presidente do regime, nomeou alguns participantes para
assumirem cargos de poder na esfera jurídica, assim, foi conferida legitimidade jurídica
11
a todo e qualquer ato proveniente dos militares e foram estabelecidas as relações entre as
forças armadas e o Judiciário civil. Logo no primeiro ano de golpe teve início a “Operação
limpeza”, que tinha como objetivo reprimir qualquer atividade ou posição que atingisse
a segurança nacional do país. As pessoas relacionadas ao governo de João Goulart e às
bases populares corriam grande risco de ter os direitos políticos privados, de ser
exoneradas ou aposentadas de seus cargos pelo governo. Esta operação contou com o
apoio explícito do embaixador dos Estados Unidos na época, Lincoln Gordon. Com a
promulgação do Ato Institucional n. 2, foi concedido ao presidente o poder de decretar
estado de sítio para reprimir os declarados subversivos pelo governo. Em 1967, Arthur
Costa e Silva chega ao poder com o intuito de intensificar ainda mais os processos de
repressão. Em seu governo são promulgados sete novos atos institucionais, entre eles o
AI-5, que suspendeu o habeas corpus para os crimes contra a segurança nacional,
concedeu ao presidente o poder de interferir nos estados e municípios sem ser detido pelas
leis, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão brasileiro por 10 anos e entre
outros aspectos impunha a censura para músicas, teatros, jornais, livros e revistas. No
mesmo ano entra em vigor o Decreto Lei n. 314, que, entre outros aspectos, decretava a
soberania do Estado, colocando-o acima da lei e passando por cima da ideia de que estava
sujeito às determinações constitucionais. Quanto aos presos por crime político, era
suposto que todos passassem por julgamento acompanhados por um advogado de defesa
geralmente contratado pela família do preso, quatro oficiais militares, procuradores do
Ministério Público Militar que auxiliavam na instauração dos processos e os juízes civis,
que muitas vezes acobertavam as torturas que eram praticadas na prisão e que
provavelmente seriam exonerados se não assim fizessem. Também é importante apontar
que as absolvições ocorreram raras vezes no fim da década de 1970 devido a alegações
de tortura, porém nunca no período de 1968-1974, considerado o auge da linha-dura da
ditadura militar. Para a sociedade era colocada uma imagem de que os militares apenas
seguiam a ordem dos tribunais e das sentenças dadas em julgamentos, portanto,
conseguiam passar uma ideia de proteção da segurança para os cidadãos brasileiros,
queriam apenas demonstrar estar cumprindo a lei contra os subversivos e terroristas, mas,
enquanto os presos eram mantidos em cárcere, sofriam torturas não só na prisão como
também nos centros de tortura até mesmo clandestinos, ou seja, existiam muitas pessoas
que não eram levadas a julgamento. No capítulo 7 do relatório divulgado em dezembro
de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) expõe quatro modalidades de violação
aos direitos humanos que se dividem em:
12
1) prisão (ou detenção) ilegal ou arbitrária; 2) tortura; 3) execução
sumária, arbitrária ou extrajudicial e outras mortes imputadas ao
Estado; e 4) desaparecimento forçado, considerando a ocultação de
cadáveres, conforme o caso, como elemento dessa última modalidade
de grave violação de direitos humanos ou como crime autônomo de
natureza permanente. (Quadro conceitual das graves violações, 2014.)
Compreende-se, através do relatório acima referido, que a prisão aqui colocada é
relacionada a qualquer tipo de privação da liberdade por curto ou longo prazo. Tortura é
colocada pela Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes como o ato de fazer sentir violenta dor ou
sofrimento a fim de obter confissão ou informações, punir, intimidar ou coagir alguém.
A execução sumária, arbitrária ou extrajudicial e outras mortes imputadas ao Estado são
encaradas como as mortes que ocorreram em batalha armada com o poder público, e os
suicídios ocorridos sob prisão ou tortura. Já a prática do desaparecimento forçado e
ocultação de cadáver é algo que foi muito recorrente nas ditaduras vividas na América do
Sul. Os considerados subversivos eram presos e executados e, para não deixar rastros,
escondiam-se seus corpos em cemitérios clandestinos ou em fundos de rios, mares e lagos.
Assim, não era possível identificar os desaparecidos, alguns casos não se resolveram
jamais. O III relatório da CNV traz as informações sobre os mortos e desaparecidos entre
1946 e 1988, sendo ao todo 434 pessoas, sendo 191 mortos e 243 desaparecidos. A
repressão no Brasil foi considerada muito ampla, estima-se que 50 mil pessoas tenham
sido presas por motivos políticos em algum momento da ditadura, 10 mil pessoas partiram
para o exílio e a maioria delas voltou após ser instaurada a Lei da Anistia em 1979.
Percebe-se o primeiro paralelo entre as ditaduras do Brasil e do Chile, devido aos
dois países estarem vivendo em um governo considerado esquerdista, que estava
promovendo reformas e sofrendo oposição de empresários, militares e dos Estados
Unidos que esperaram nove dias para expressar as saudações ao golpe chileno, diferente
do que aconteceu no Brasil, onde a saudação foi imediata. Os militares envolvidos no
golpe chileno declararam já em 1973 que estavam em busca da “restauração da
chilenidade, da justiça e da institucionalidade rompida” no país, e nesta mesma declaração
diziam que o novo governo estaria independente do poder judiciário. Na época do golpe
chileno (1973), foi noticiado que não houve julgamento para centenas de pessoas, foram
executadas sem maiores explicações. Nos casos em que o julgamento ocorreu, era feito
por tribunais militares isolados do Judiciário civil, portanto os presos tinham seus direitos
praticamente anulados, já que não eram defendidos por ninguém e enfrentavam sentenças
13
sumárias, até mesmo a pena de morte. Os brasileiros que estavam exilados no Chile, cerca
de três mil, foram perseguidos especialmente pelo embaixador brasileiro no país e
também presos e levados à tortura ou execução, e o visto para voltar ao país de origem
foi negado, mas as idas dos policiais brasileiros ao Chile eram facilitadas para que
ajudassem no interrogatório dos presos. Além disso, foi enviada ao Brasil uma lista dos
nomes dos presos e das pessoas que estavam exiladas em território chileno, assim
formando uma organização de segurança pronta para trocar informações entre os países.
Logo no início da ditadura chilena, as ordens militares já substituíam os códigos civis e
penais, a Constituição foi suspensa, foi decretado estado de sítio, algumas pessoas foram
intimadas a comparecer ao Ministério da Defesa, a execução de indivíduos pegos
praticando a luta armada foi liberada e fecharam o Congresso, entre outras medidas.
Ainda em 1973 foi promulgado o Decreto Lei n. 5 que liberava o uso de força letal aos
militares em qualquer ação que atacasse as forças armadas, além de ser aceita por lei a
pena de morte em determinados casos. No mesmo ano aconteceu o episódio denominado
“A Caravana da Morte”, com a qual o regime violava sua própria legalidade imposta, pois
agiu com força bruta contra pessoas que não expressavam nenhuma ameaça ao regime. A
caravana percorreu seis cidades chilenas e o general Sérgio Arellano Stark alegou estar
apenas acelerando os processos de julgamento dos presos, assassinando não só aqueles
que se encontravam em cárcere como pessoas que não estavam envolvidas em nenhum
crime contra o governo.
A ditadura instaurada em 1966 na Argentina foi considerada como uma medida
relacionada à “revolução” do governo militar em busca de reorganização do país, assim
como em 1964 no Brasil. O fato de os Estados Unidos estarem apoiando os militares
brasileiros levou os argentinos a tomarem a mesma posição. Já o regime de 1976 teve
uma relação direta com o Chile, pois logo de início foram tomadas medidas extremamente
repressivas e o Congresso foi fechado. O que aconteceu na Argentina foi considerado
como “guerra suja”, pois foi imposta uma dominação suprema do Estado sobre todos
aqueles que se “encaixavam” no que era considerado subversão. Isso se deu
principalmente pelo fato de o poder Judiciário argentino se opor às ideias de segurança
nacional propostas pelos militares, logo, os militares viveram em uma rota de ilegalidade
durante o regime. Os militares argentinos faziam uso dos tribunais para sentenciar os
presos políticos, que tinham direito a um advogado de defesa e eram julgados por juízes
civis nomeados diretamente pela junta militar e os tribunais civis estavam prontos para
ajudar a acobertar o terror praticado pelo Estado. As pessoas eram capturadas e levadas
14
aos centros de detenção sem nenhum registro ou seguimento das leis, apenas eram
interrogados e torturados, às vezes levados à morte, estimando-se entre vinte e trinta mil
execuções seguindo estes padrões. O relatório Nunca Más 3 constatou o desaparecimento
de 8.961 pessoas entre 0 e 70 anos durante a ditadura argentina, sendo a maioria (32,62%)
entre 21 e 25 anos. Até mesmo enquanto não vigorava nenhuma ditadura no país,
enquanto estavam sob o governo de Isabél Perón, a extrema direita criou a chamada Triple
A (Alianza Anticomunista Argentina), que tinha como objetivo caçar os comunistas e
derrubar o governo, depois, ganha o apoio dos militares em 1976.
Segundo dados registrados no capítulo 6 do relatório divulgado pela Comissão
Nacional da Verdade (CNV), denominado Conexões internacionais: a aliança repressiva
no Cone Sul e a Operação Condor, por exemplo, sabe-se hoje que a criação do sistema
da Operação Condor foi proposta em 1975 pelo coronel Manoel Contreras, chefe do órgão
central da repressão da ditadura chilena. O capítulo ainda revela que a Operação
“demandava a operacionalização de um banco de dados e de uma central de informações,
bem como a promoção de reuniões de trabalho regulares entre os serviços de informação
do Cone Sul” (BRASIL, 2014, p. 221). Alguns documentos foram produzidos pela
Central Intelligence Agency (CIA), o que prova a participação dos Estados Unidos na
Operação, além disso, foi revelado pelo relatório que os esquadrões militares seguiam a
ordem das forças especiais do Exército dos Estados Unidos, US Army Special Operation
Forces (SOF), que tinha como missão treinar o combate às guerrilhas clandestinas.
No Relatório final, pretendemos dar acabamento à apresentação comparada desses
dados, tratando das heranças atuais dessas ações articuladas.
2.2 Interdiscurso
Considerando que os aspectos históricos acima desenvolvidos constituem as
condições de produção dos discursos textualizados nos filmes que estudamos, importa,
neste momento, refletir sobre a noção de interdiscurso.
3 O relatório Nunca Más foi elaborado pela Comisíon Nacional sobre la Desaparición de Personas
(CONADEP), que foi criada pelo Governo Argentino em 1983 com a finalidade de investigar os
desaparecimentos que ocorreram durante o regime militar argentino e quem eram as vítimas desaparecidas.
Os resultados das investigações foram publicados através do relatório em 1984 e está disponível em:
http://www.derechoshumanos.net/lesahumanidad/informes/argentina/informe-de-la-CONADEP-Nunca-
mas.htm (Acesso em dezembro/2015).
15
Na década de 1960, M. Pêcheux busca problematizar os conceitos de sujeito e
ideologia através da perspectiva da língua e do discurso. A partir disso, o analista propõe
deixar de lado a ideia de que o sujeito se coloca como a origem do sentido e passa a vê-
lo como heterogêneo, constituído por diversos discursos, que são atravessados um pelo
outro e construídos através de uma articulação entre o linguístico e o sócio-histórico.
Assim, podemos compreender como se dá a noção do interdiscurso para Pêcheux, que o
coloca como estando relacionado à memória e àquilo que já foi dito, além de estar
necessariamente ligado às formações discursivas, que são postas como definidoras do que
pode ou deve ser dito em determinada conjuntura, sempre em dependência de um “todo
complexo dominante” (1975). Já que todas as formações discursivas estão dependentes
dele, podemos colocar o interdiscurso como o próprio complexo dominante, algo que já
se encontra na ordem do dizível, constituído por meio da história e da língua, fatores que
se impõem ao sujeito enunciador, como coloca Orlandi, 2007. O interdiscurso aparece
para o sujeito, então, sob a forma de diversas formulações provenientes de enunciações e
posições distintas, que se colocam através do domínio da memória, porém, o conceito
está relacionado também ao inconsciente, já que aquele que fala pode muitas vezes ter a
ilusão de ser a origem de determinado discurso. Portanto, compreendemos que, para
Pêcheux, o sujeito está sempre inserido em uma determinada ideologia, mesmo que se
acredite livre dela, e está também atravessado pelo inconsciente, já que não é sempre que
reconhece discursos outros presentes no que é dito. Assim, se os discursos estão sempre
relacionados a um outro discurso e são provenientes dos sentidos que já estão
cristalizados, então todo discurso é fruto do interdiscurso.
Diante da noção postulada por Pêcheux, notamos que o sujeito enunciador não é
uma fonte absoluta daquilo que diz e dos sentidos que produz, ele se constitui pelas falas
e discursos já postulados na sociedade, a interdiscursividade. Essa interação das várias
vozes e dos fatores sócio-históricos em um determinado discurso também é responsável
por reiterar o caráter heterogêneo da linguagem, pois aquilo que é dito faz parte de um já
dito, um discurso não independe de outros. Ainda em relação àquilo que é dito, Pêcheux
esclarece que o sujeito é afetado por esquecimentos, sendo o primeiro deles aquele que
leva o enunciador a apagar determinadas marcas de sua memória, ou seja, se colocar como
real enunciador daquilo que é dito, assim, se colocando como criador único de seu
discurso. O esquecimento nº 2 relaciona-se à ilusão do sujeito em acreditar que tudo que
é dito por ele será compreendido em sua totalidade pelo interlocutor.
16
Diante dos conceitos citados, Gregolin propõe:
A ordem do discurso é uma ordem do enunciável. A ela deve o sujeito
assujeitar-se para se constituir em sujeito de seu discurso. Por isso, o
enunciável é exterior ao sujeito enunciador e o discurso só pode ser
construído em um espaço de memória, no espaço de um interdiscurso,
de uma série de formulações que marcam, cada uma, enunciações que
se repetem, se parafraseiam, opõem-se entre si e se transforma.
(GREGOLIN, 2001, p. 72)
Para compreender o interdiscurso segundo formulações de Pêcheux, é importante
nos determos no conceito de memória discursiva, que se refere aos sentidos que já estão
postos em circulação, estão cristalizados, e que são retomados por meio do discurso.
A memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge
como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer,
mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p. 52)
Portanto, trata-se de uma diversidade de já ditos (implícitos) que sustentam aquilo
que será dito e como o pré-construído se coloca em relação às novas formulações
provenientes do mesmo.
Diante disso, podemos compreender, então, como os pré-construídos e os
implícitos, que estão ligados à memória discursiva, são de extrema importância para
construir os discursos. Assim, é pertinente que observemos no interdiscurso como se dá
o fator histórico, relacionado ao presente, ao passado e ao futuro dos enunciados, como
coloca Orlandi:
[...] é o interdiscurso que especifica, como diz Pêcheux (1983), as
condições nas quais um acontecimento histórico (elemento histórico
descontínuo e exterior) é suscetível de vir a inscrever-se na
continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma
memória. (ORLANDI, 2008, p. 33)
Com base nesses fundamentos, para Dominique Maingueneau (2007), a
noção de um primado do interdiscurso se assenta na ideia de que em todo discurso existe
uma heterogeneidade dada antes de qualquer discursivização. A partir disso, o linguista
propõe alguns conceitos para a melhor compreensão da teoria aqui discutida. Para ele, o
interdiscurso divide-se em três “dimensões”, sendo a primeira delas o universo
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discursivo, onde as formações discursivas se relacionam em uma certa conjuntura, que
determina um conjunto finito; segundo Possenti (2003, p. 263), “define apenas uma
extensão máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos domínios susceptíveis de
serem estudados”, portanto, relaciona-se com a ideia de interdiscurso proposta por
Pêcheux. O campo discursivo pode ser compreendido como um conjunto de determinadas
formações discursivas que se delimitam em uma delimitação demarcada no universo
discursivo entre discursos que compartilham da mesma função social, como coloca
Maingueneau, “pode-se tratar do campo político, filosófico, dramatúrgico, gramatical
etc.”. No interior do campo discursivo formam-se os discursos e, então, podemos
compreender que esses discursos aparecerão como formas regulares sobre formações
discursivas já existentes, porém, os discursos se colocam de maneira diferente um do
outro, já que são atravessados por heterogeneidade, “uma hierarquia instável opõe
discursos dominantes e dominados e eles não se situam todos necessariamente no mesmo
plano” (MAINGUENEAU, 2007, p. 36-37). Por fim, os espaços discursivos se
conformam como subconjuntos das formações discursivas que devem nascer a partir de
hipóteses do analista, que tenham fundamento no conhecimento dos textos e em um saber
histórico, que se confirmarão ou não com o progresso da pesquisa.
Pensando nas relações do Mesmo e do Outro, Maingueneau propõe que o Outro
nunca será reduzido à figura do interlocutor, pois os discursos estão necessariamente
ligados, vê-se o interdiscurso como parte fundamental daquilo que é interno a eles, isto é,
há uma relação indissolúvel entre interdiscurso e intradiscurso. Assim, afirma-se o caráter
dialógico de todo enunciado, pois é impossível “dissociar a interação dos discursos do
funcionamento intradiscursivo” (MAINGUENEAU, 2007, p. 39):
Assim, o Outro não deve ser pensado como uma espécie de “envelope”
do discurso nem um conjunto de citações. No espaço discursivo, o
Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma
entidade exterior; nem é necessário que seja localizável por alguma
ruptura visível da compacidade do discurso. Ele se encontra na raiz de
um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é
em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma
plenitude autônoma. O Outro é o que faz sistematicamente falta a um
discurso, é aquela parte de sentido que foi necessário que o discurso
sacrificasse para constituir sua identidade. (MAINGUENEAU, 2007, p.
39)
18
Portanto, o Outro e o Mesmo estão estritamente ligados para a constituição do discurso,
o Outro relaciona-se a tudo que já está posto, não é possível identifica-lo devido a todo o
percurso que é traçado para que ele seja parte do “novo” discurso, mas mesmo assim ele
já está posto.
Maingueneau também propõe que os discursos estão sempre em conflito, já que o
primeiro, ao permitir a constituição de discursos segundos também está sendo por eles
ameaçado. Assim, quando um discurso é constituído através de um já posto, um discurso
primeiro, é compreensível que ambos vivam em concorrência. Mas, se um discurso nasce
de um outro e em determinado momento o discurso primeiro deixa de estar posto, o
“novo” discurso estará relacionado com diversas outras relações semânticas, o que ainda
permitirá a leitura do Outro dentro deste Mesmo.
2.3 Silêncio
Ainda pensando em como se forma o sentido e o “novo” discurso para o sujeito,
nos deparamos com os não ditos e os silêncios, já que podem também ser os constituintes
de um pensamento. Para Orlandi (2008), o silêncio se dá como uma relação do sujeito
com aquilo que pode ser dito, pois a partir da possibilidade do dizível ele pode construir
uma série de relações com outros sentidos através do silêncio. A identificação do sujeito
também está indiscutivelmente ligada ao silêncio, pois ele não está unicamente inscrito
em uma determinada formação discursiva, podendo sempre se deslocar entre a relação
das formações, possibilitada sempre pelo silêncio, “é no silêncio que as diferentes vozes
do sujeito se entretecem um uníssono. Ele é o amálgama das posições heterogêneas”
(ORLANDI, 2007, p. 90), portanto, no silêncio pode-se trabalhar com a contradição de
diversos sentidos para se compreender como é dada a identificação do sujeito.
O fato de o sujeito estar inscrito em determinada dimensão histórica e espacial nos
aponta que existe uma relação entre a realidade e o silêncio, visto também como sentido.
“Não se pode estar fora do sentido assim como não se pode estar fora da história”
(ORLANDI, 2007, p. 92), portanto, tudo o que é visto e vivido acaba por produzir sentido
mesmo que cercado de não ditos e silêncios. Assim, Orlandi divide as formas do silêncio
em a) silêncio fundador, sendo aquele que torna toda significação possível e b) a política
do silêncio, que se divide entre o dizer e o não dizer. A política do silêncio também se
distingue em a) constitutivo, que postula que todo dizer cala o outro sentido e b) local,
que está ligado à censura. A autora também ressalta que o silêncio não está relacionado à
19
ausência de palavras, mas sim faz uma relação direta com a impossibilidade de um
discurso ser sustentado, pois em determinadas condições fala-se o contrário do que se
pensa para não dizer algo, ou um determinado discurso pode ser proibido, logo, não pode
ser dito, portanto, “as palavras vêm carregadas de silêncio(s)” (ORLANDI, 2007, p. 102),
já que ao enunciar determinado discurso, o sujeito suprime outro.
Nas análises que serão desenvolvidas futuramente, esperamos poder discutir mais
aprofundadamente a relação dos silêncios e não ditos com a paráfrase, que, no quadro
teórico aqui mobilizado, é a matriz dos sentidos ou, em outros termos, é o procedimento
que baliza a produção dos sentidos.
2.4 Semântica global
Assim, se silêncios e não ditos, como outros elementos, fazem parte do jogo
interdiscursivo que constitui cada discurso, propomos abordar a identidade discursiva
com base no conceito de semântica global, segundo o qual é necessário entender que os
“planos” discursivos estão todos interligados, não é possível dissociá-los e colocar o
sentido de um discurso apenas em um deles;
Um procedimento que se funda sobre uma semântica “global” não
apreende o discurso privilegiando tal ou tal de seus “planos”, mas
integrando-os a todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da
enunciação. (MAINGUENEAU, 2007, p. 79)
Não existe algo que se coloque por trás do discurso, uma arquitetura, como coloca
Maingueneau, mas sim um sistema que envolve o discurso como um todo, “na
multiplicidade de suas dimensões” (MAINGUENEAU, 2007, p. 80), logo, não é possível
que o indivíduo, ao enunciar, escolha previamente como seu discurso se dará através do
vocabulário, previamente relacionado ao tema e ao gênero, por exemplo. Estes planos são
“ilustrações” colocadas pela língua apenas para que seja explícito o fato de que existem
dimensões dentro da mesma, são constitutivos de diversas instâncias que não estão
dissociadas.
Para a melhor compreensão de como se organiza uma semântica global,
Maingueneau considera, entre outras, as seguintes dimensões:
20
Intertextualidade - com que se propõe a existência de um sistema de restrições
próprio para cada discurso relacionado ao posicionamento que é defendido, justamente
pela relação que o discurso coloca com o sistema e as formações a que pertence, portanto,
existem “regras” sobre o que pode ou não ser dito em relação a ele, relacionadas também
ao passado que os discursos constroem particularmente, recusando algumas filiações e se
relacionando a outras. O autor ainda propõe a existência de uma intertextualidade interna
como aquela que se constrói entre textos do mesmo campo, e coloca a intertextualidade
externa como a que se relaciona a campos distintos, pois existem campos que conversam
entre si, como o acadêmico e o científico.
Vocabulário - sobre essa categoria, o linguista explica que não faz sentido que
delimitemos determinado vocabulário que seja próprio de um discurso, pois as mesmas
unidades lexicais podem estar relacionadas a campos discursivos distintos, portanto, a
palavra não constitui uma unidade de análise pertinente. No entanto, alguns lexemas são
considerados fundamentais para que seja constituída uma cristalização semântica nos
discursos, eles acabam por constituir ações que legitimam o discurso, criam os aspectos
que os definem. Já que o lexema não será exclusivo de um discurso, é importante observar
que existe sempre uma possibilidade de troca relacionada ao seu uso exterior, portanto,
criando uma ponte de comunicação entre os campos discursivos, opostos ou não. Porém,
não se pode pensar que as palavras não são usadas com alguma finalidade dentro do
discurso, afinal, elas já possuem determinado sentido dentro da língua. Conforme seus
usos se tornam recorrentes em certas conjunturas, as palavras “tendem a adquirir o
estatuto de signos de pertencimento” (MAINGUENEAU, 2007, p. 85), assim, os
enunciadores do discurso a qual determinados semas já estão filiados, serão levados a
utilizá-los, reforçando assim sua posição no campo discursivo.
O tema é colocado como “’aquilo de que um discurso trata’, em qualquer nível
que seja” (MAINGUENEAU, 2007, p. 85). Maingueneau afirma que, assim como o que
acontece em relação ao vocabulário, é importante compreender como são construídos os
tratamentos semânticos que constituem os temas. Nas palavras de Michel Pêcheux, citado
pelo linguista:
Uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhes
seria próprio, como se estivesse preso a sua literalidade. Ao contrário, seu
sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais
palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões
ou proposições da mesma formação discursiva. (PÊCHEUX, 1975, p. 145 apud
MAINGUENEAU, 2007, p. 86)
21
Portanto, nenhum tema é considerado original, está em outros discursos e também
naqueles que se posicionam contrários a ele, pois os discursos que são adversários
compartilham de determinados pressupostos que permitem que se oponham dentro de um
mesmo campo discursivo, mas a construção dos sistemas semânticos e de restrições será
feita de maneira diferente, eventualmente oposta; portanto, os temas são construídos de
maneiras divergentes.
Dos temas já postos nascem os temas impostos, que convergem do sistema de
restrições do seu “fundador” quando são compatíveis, e que não convergem, mas estão
interligados por meio do discurso em que se inscrevem, no caso dos temas impostos
incompatíveis. Existem também os temas específicos, que estão em convergência com o
tema principal, são próprios do discurso.
O estatuto do enunciador e do destinatário – estas categorias supõem que se
delega uma determinada posição ao que enuncia, que a deve ocupar para que aquilo que
é dito seja legitimado junto ao destinatário. Mainguenau exemplifica:
No discurso humanista devoto, por exemplo, o enunciador se dá como
integrado a uma “Ordem”: é membro de uma comunidade religiosa
reconhecida, bispo, mestre-escola ... e dirige-se a destinatários também
inscritos em “Ordens” socialmente bem caracterizadas (enquanto pais
de família, magistrados, donas de casa etc....) (MAINGUENEAU,
2007, p. 91).
Logo, é importante observar em que posição social e institucional estão colocados
os sujeitos para compreender como vão ser construídos os sentidos do dizer e como eles
farão sentido em determinada conjuntura.
A dêixis enunciativa está relacionada ao espaço e tempo em que determinado
discurso se coloca, o significado da enunciação está estritamente ligado à conjuntura
espaciotemporal em que ela se coloca. A dêixis, em sua modalidade espacial e temporal,
tem o poder de delimitar a cena de fala e a cronologia que se constroem para que o
discurso possa autorizar a enunciação. Sobre isso, pretendemos desenvolver, no próximo
Relatório, análises que tratem das cenas da enunciação, tal como propõe o autor, para
tratar da textualização multisemiótica que constitui nosso corpus.
O modo de enunciação está ligado a como o enunciador profere um discurso, que
recursos mobilizará para legitimar o seu dizer. É importante compreender a relação entre
o enunciador e o destinatário e os aspectos que os envolvem, levando em consideração a
22
oralidade, o tom (corporalidade e caráter do enunciador), a voz e o ritmo da fala, além do
comportamento do próprio corpo:
Se, segundo a expressão de Certeau, “cada sociedade tem seu corpo”¹²¹,
delimitado por múltiplas codificações, cada discurso também tem o seu:
corpo textual que não se dá jamais a ver, mas está presente por toda
parte, disseminado em todos os planos discursivos. (MAINGUENEAU,
2007, p. 97)
O autor ainda ressalta a importância de se observar que em todo texto incide uma
voz, “através de seus enunciados, o discurso produz uma ‘voz’ que lhe é própria. Não se
trata de fazer falar um texto mudo, mas de identificar as particularidades da voz que sua
semântica impõe” (MAINGUENEAU, 2007, p. 95). Logo, só se pode crer em
determinado discurso ou tomá-lo para si, se existir a percepção de que ele está filiado a
um outro discurso já colocado previamente, o que tem a ver com a memória discursiva,
conforme abordado acima. O sujeito pode incorporar-se do corpo textual proposto por um
discurso, assim habitando seus postulados e legitimidade e tomando sua posição quando
em relação com um outro. Portanto, o destinatário acaba por determinar o modo de agir
e de dizer do enunciador, “ele acende uma ‘maneira de ser’ através de uma ‘maneira de
dizer’” (MAINGUENEAU, 2007, p. 98).
O modo de coesão está em relação com a interdiscursividade, constitui-se
em como o discurso é retomado e como constrói sua própria rede de remissões. Assim,
também determina uma maneira de argumentar, de desencadear seus temas, construir
capítulos, etc. Dessa forma, poderemos observar que cada discurso se filia também a
alguns semas e expedientes de articulação que se mostram recorrentes.
Contudo, Maingueneau expõe a importância de observarmos a semântica global
como um todo, um conjunto de planos discursivos indissociável, mesmo que construídos
de maneiras distintas, que são responsáveis por constituir o próprio discurso.
2.5 Competência discursiva
No capítulo 2 do livro Gênese dos discursos [1984] (2007), Dominique
Maingueneau propõe entendermos que nessa constituição interdiscursiva dos discursos,
opera uma competência discursiva, isto é, ela decorre da noção do primado do
interdiscurso, proposto no capítulo anterior da mesma obra, e se relaciona estritamente
com as construções feitas a partir da relação língua/história, portanto afasta-se do conceito
23
proposto por Chomsky, que relaciona a competência aos conhecimentos indutivos do
indivíduo para com sua língua na interpretação de sentenças gramaticais.
Ao longo do capítulo, Maingueneau propõe que o sujeito deve reconhecer os
processos que estão relacionados ao discurso, não o encarando como um produto final.
Para tanto, exige-se essa competência capaz de reconhecer e interpretar as formações
discursivas a que um discurso se filia. Se o indivíduo não for capaz de reconhecer o todo
do discurso, inclusive suas estruturas, não será capaz de reproduzi-lo ou filiar-se a ele, já
que não compartilha da competência necessária para realizá-lo. Isso também está
relacionado a ser ou não o enunciador de um discurso, pois Maingueneau encara-o como
aquele “capaz de reconhecer enunciados como bem formados’, isto é, que pertencem a
sua própria formação discursiva” e “capaz de produzir um número ilimitado de
enunciados inéditos pertencentes a essa formação discursiva”, nisto estão as dimensões
da competência discursiva de um indivíduo constituído como tal ao se pôr como sujeito
de discurso.
Considerando que a competência discursiva está unicamente relacionada aos fatos
discursivos, não podemos compreendê-la como uma crença, portanto um sujeito pode
supor que pertence a determinada formação dada sua competência quando, de fato, sua
situação de fala não coincide com sua crença, justamente pelo indivíduo desconhecer
como funciona a heterogoneidade que produz efeito de homogeneidade identitária de um
discurso. Sobre as formações discursivas relacionadas aos discursos, Courtine explica:
O fechamento de uma formação discursiva é fundamentalmente
instável; ele não consiste de um limite traçado uma vez por todas que
separa um interior e um exterior, mas inscreve-se entre diversas
formações discursivas como uma fronteira que se desloca em função
dos objetivos visados pela luta ideológica. (COURTINE, 1981 apud
MAINGUENEAU, 2007, p. 62)
A citação acima reforça a ideia de que é necessário compreender como se dá a
heterogeneidade do discurso para que ele seja compreendido como um todo, já que as
formações discursivas estão em constante movimento e se colocam na fronteira de si
mesmas e de seus objetivos nos campos discursivos em que podemos, como analistas,
recortar espaços de observação, conforme se definiu o interdiscurso acima.
24
Ainda é importante compreender que a competência discursiva se coloca como
peça fundamental da relação entre o discurso e da própria “capacidade do Sujeito de
interpretar e de produzir enunciados que decorrem dele” (MAINGUENEAU, 2007, p.
54), portanto, se o indivíduo não for preparado, a partir de discursos colocados
historicamente pela sociedade em que vive, não poderá compartilhar dessa capacidade de
interpretação e produção. Segundo nossa hipótese de trabalho, se os indivíduos forem
cercados de silêncio e metáforas também percebemos que pode existir uma “falha” na
formação da competência, pois os discursos não soarão da maneira devida para serem
compreendidos em seu funcionamento, isto é, os vários planos que produzem a semântica
global definidora de um discurso supõem expedientes formais e memórias que devem ser
mobilizados.
3. Corpus e encaminhamentos preliminares da análise
Pensando em delimitar uma semântica global relacionada ao desaparecimento
sistemático que caracterizou o período em tela, levando em consideração os pontos acima
colocados, foram selecionados três filmes (O ano em que meus pais saíram de férias, de
2006, Machuca, de 2004 e Kamchatka, de 2002) que são ambientados na conjuntura de
ditadura militar dos três países, respectivamente Brasil, Chile e Argentina. Os três focam
sua narrativa na história de meninos entre 10 e 12 anos que vivem sem compreender a
totalidade do mundo em que estão, pois não têm explicações satisfatórias daquilo que está
acontecendo onde vivem.
Nos filmes selecionados, será observado como é construído o relacionamento dos
pais com seus filhos, ou dos adultos com as crianças, a partir dos enunciados que
sustentam as cenas que mostram a vida que os militantes levavam, de fuga e reclusão, nas
quais se procura esconder das crianças, consideradas incapazes de compreender os
acontecimentos ao mesmo tempo que estão ansiosas para entendê-los.
3.1 O ano em que meus pais saíram de férias
Lançado em 2006, dirigido por Cao Hamburguer e coproduzido por Fernando
Meirelles e Daniel Filho, o filme O ano em que meus pais saíram de férias conta a história
de Mauro, que tem 12 anos e dá início ao enredo, contando sobre uma de suas paixões, o
futebol de botão, com base naquilo que seu pai lhe disse sobre o jogo. Logo, os pais do
menino, sem muitas explicações, dizem que sairão de férias por um tempo, e que voltarão
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no início da Copa do Mundo. Após alguns telefonemas realizados pelos pais ainda na
casa do protagonista, Mauro viaja com eles de Belo Horizonte a São Paulo, com o intuito
de ficar na casa de seu avô enquanto seus pais “saem de férias”. A viagem se passa sem
maiores problemas, a não ser o nervosismo do pai ao avistar um veículo repleto de
militares à sua frente, indícios de que Bia e Daniel estão em fuga, provavelmente por
serem militantes de esquerda. O avô do menino, Mótel, vem a falecer enquanto seu filho,
a esposa e o neto estão a caminho de sua casa. Ao chegar ao bairro do Bom Retiro e se
dirigir à casa do avô, Mauro tem a infeliz surpresa de encontrá-lo morto. Seus pais já
viajaram e ele fica sozinho até que um vizinho, o judeu Sholomo, o encontra e, reticente,
lhe oferece abrigo. Eles não compartilham costumes, não compreendem as mensagens
recíprocas e assim Mauro vai descobrindo, aos poucos, sempre imerso no seu mundo de
criança, o Brasil em que vive. Conforme os dias se sucedem, o menino começa a levantar
hipóteses sobre algo estar passando no país, ele presencia prisões, a ação dos militares
nas ruas e provê esconderijo a um militante. Ao final do filme, sua mãe volta para buscá-
lo, porém seu pai não, e ele vem a pensar que foi “exilado” e, de algum modo, constrói
um sentido para o termo desconhecido.
No decorrer dos 5 minutos iniciais do filme, já somos levados a perceber como é
importante a interação do pai com o garoto, já que, logo na primeira cena, Mauro inicia
sua fala com uma explicação sobre o futebol a partir dos ensinamentos do pai, expediente
que será reiterado na narrativa fílmica:
Mauro: Meu pai disse que no futebol todo mundo pode falhar. Menos o goleiro.
Eles são jogadores diferentes, porque passam a vida ali, sozinhos, esperando o pior.
Antes de Bia e Daniel começarem a viagem até São Paulo, ocorre uma interação
que expõe a relação da criança com seus pais. Mauro pergunta a seu pai se a viagem será
rápida, pois ele não quer repetir de ano e deseja que Daniel confirme sua expectativa.
Após darem início à viagem e ouvir alguns comentários pelo rádio do carro, o garoto
manifesta mais uma dúvida, agora sobre Tostão e Pelé, jogadores da seleção brasileira do
ano de 1970.
Mauro: Pai, por que o Tostão não pode jogar junto com o Pelé?
A curiosidade do garoto por tudo aquilo que o rodeia logo fica aparente, pois quando seus
pais passam pelo veículo governado por militares, Mauro apoia a cabeça na janela do
26
carro e exclama “Olha!”, observando os oficiais enquanto seu pai expressa nervosismo,
ultrapassando o veículo e seguindo viagem. Ainda continuam as referências aos
conhecimentos passados pelos pais da criança enquanto ele continua seu pensamento
sobre a seleção:
Mauro: Enquanto todo mundo duvidava da seleção, meu pai tinha certeza que
1970 era o ano do Brasil na Copa do Mundo! Mas tava tudo tão esquisito que até eu
comecei a duvidar...
Neste trecho, podemos observar primeiramente como é importante a posição
passada pelo pai para que Mauro compreenda os assuntos que o rodeiam – aqui, o futebol.
Desde a primeira cena, onde o garoto passa ao telespectador a informação sobre o goleiro,
depois passando pela pergunta sobre os jogadores e agora revelando o que seu pai acredita
que irá acontecer com a seleção, percebemos que Mauro também se posiciona a partir do
que seu pai coloca para ele, isso é confirmado pelo uso do “até” com valor de advérbio
no enunciado, leva-nos a pensar que o menino acredita nas palavras do pai, porém,
observando as condições em que o país está vivendo desde 1964, já consegue notar que
existem coisas “esquisitas”, ou seja, que não se explicam ou não se encaixam em sua
percepção. Já na porta da casa de seu avô, Mauro reforça que não deseja ficar e faz
perguntas à sua mãe, não obtendo respostas, cenas que serão analisadas no decorrer deste
Relatório, adiante.
Para proteger Mauro e a si do que pode acontecer se ele disser que os pais estão
fugindo da ditadura, antes de sair Daniel reforça que estão saindo de férias, e diz para o
menino não se esquecer disso. Observa-se o estranhamento do garoto ao entrar em um
universo completamente desconhecido, o dos judeus, ao conhecer Shlomo e não
compreender o que é dito por ele.
Mauro também se mantém em silêncio quando questionado sobre o paradeiro de
seus pais. São dadas algumas “pistas”, pois um dos garotos pergunta se os pais dele estão
“presos”, o outro afirma que “fugiram”. Ao ouvi-los, o protagonista se mostra pensativo
e não esboça nenhum sinal de resposta à pergunta e à afirmação. Além desta cena, Mauro
também se mostra pensativo e observador ao ouvir a conversa de alguns homens no bar
falando sobre “comunismo” e “futebol”. Sobre “comunismo”, o garoto não se posiciona.
Mas sobre a seleção, Mauro logo se manifesta, colocando as ideias de seu pai.
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Conforme os dias passam, Mauro não esquece de seus pais e principalmente de
tudo aquilo que seu pai o dizia. Assim que a Copa chega, Mauro se prepara e espera para
a chegada dos pais, que não aparecem. No decorrer do tempo, o garoto presencia
finalmente a ação violenta dos militares, se depara com prisões e agressões. Conforme
Mauro se relaciona com Ítalo, amigo dos seus pais que sabe do paradeiro dos mesmos, a
ideia de que eles “estão de férias” é reforçada diversas vezes, até mesmo pela ideia que
Ítalo propõe de também “tirar férias”. O reencontro do protagonista com sua mãe é
marcado de emoções, perguntas sem resposta novamente e o uso de metáforas. O final do
filme é marcado pela dúvida de Mauro quanto ao “exílio”, que o menino relaciona à
“ausência do pai”, que está, segundo sua mãe, “sempre atrasado”.
3.2 Machuca
O filme Machuca, de 2004, foi dirigido por Andrés Wood, se passa em Santiago,
Chile, em 1973 e conta a história de dois meninos de 11 anos, Pedro Machuca e Gonzalo
Infante, que se tornam amigos pela convivência escolar, proporcionada pelo padre
McEnroe, que visa a uma integração entre os garotos da elite e os que vivem na periferia,
embora não tenha o apoio dos pais dos alunos da escola que dirige para aceitar os meninos
pobres. Gonzalo é de uma família rica e influente, que não tem problemas com a ditadura,
enquanto a família de Machuca vive em um povoado ilegal e busca formas de
sobrevivência. Juntos, os garotos passam por diversas situações como a participação em
protestos comunistas e de direita, nos quais eles começam a compreender as dimensões
daquilo que se passa no país, mas, ao mesmo tempo, se veem inseridos em um mundo
que não é totalmente conhecido, que vai se mostrando mais claro conforme a ação dos
militares se faz mais presente no dia a dia dos personagens. A história segue mostrando
uma amizade sólida que se forma apesar dos limites impostos pelas diferenças sociais,
que é bastante marcada pelas condições do regime.
O primeiro contato de Gonzalo com Pedro Machuca é por meio do Padre
McEnroe, que leva os meninos da periferia para estudar na mesma escola dos meninos
com melhores condições de vida. Desde o início da relação dos meninos pobres com os
ricos o padre os ensina a manter o devido respeito.
São colocados diversos enunciados relacionados à luta armada e à situação que o
país vivia, tais como “Não à guerra civil”, “Renuncie pelo Chile”, “Fora direitistas, aqui
vem o povo!” e “A velha economia capitalista está morta”. Algum destes são observados
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pelo curioso Gonzalo Infante, que olha atento e pondera em silêncio, aparentemente
tentando construir sentidos para aquilo que lê, até ser chamado por sua mãe. Logo, a
relação de Gonzalo e Machuca se torna muito próxima e eles vão até um protesto a favor
do governo militar para vender algumas mercadorias como bandeiras e cigarros. Ao ouvir
“quem não for comunista, pule!”, as crianças começam a pular apenas pela ordem do
vizinho de Machuca que os instrui a assim fazer. Após participarem da passeata a favor
do governo, os garotos seguem até o protesto dos considerados comunistas, pulando
também ao ouvirem “quem não pular é direitista!”. Gonzalo logo exprime dúvida sobre
o que é um direitista.
Apesar da grande amizade que se constrói, a diferença social dos garotos fica bem
marcada durante todo o decorrer do filme até mesmo por traços sutis, expostos, por
exemplo, nas condições em que Machuca vive, em uma casa construída de madeira muito
simples que não possui nem sequer um banheiro nas devidas condições de higiene,
enquanto Gonzalo vive em uma casa considerada luxuosa, possui alguns bens como um
tênis da marca Adidas (uma grife que, à época, marca a importante distinção de posse),
que acaba emprestando ao amigo Machuca, pode comprar diversos alimentos mesmo em
tempos da crise desesperadora em que o país vivia, com racionamentos. Em certo
momento do filme, o pai de Machuca, visivelmente alcoolizado, visita sua família apenas
para pegar o dinheiro da mãe do menino e, ao notar a presença de Gonzalo, reforça que,
pelo fato do menino vir de família rica, logo a amizade dos dois iria acabar, pois o filho
sempre será a pessoa que “limpa os banheiros”, ou seja, não será alguém de destaque,
com grande poder aquisitivo, enquanto o amigo iria estar na faculdade, trabalhando na
empresa do pai depois de 10 anos e futuramente dono da empresa. Na escola em que os
garotos estudam, o conflito também é visível, pois algumas das crianças não aceitam os
meninos pobres, o que gera muitas brigas. Os garotos ricos têm o total apoio de seus pais,
que acreditam que a violência se dá apenas pela presença dos novatos, “pessoas que não
precisavam conhecer”, ou “marxistas”, como dizem os pais de alguns dos alunos,
observados pelas crianças que pouco compreendem o que está acontecendo. Como a
posição do padre McEnroe continua firme sobre manter os meninos no colégio, o
religioso logo sofre acusações de ser comunista, enquanto os garotos assistem
estarrecidos à confusão que se forma.
No decorrer do filme, as crianças voltam a participar de passeatas a favor e contra
o governo, mas agora já estão mais conscientes dos significados de tudo aquilo que está
29
acontecendo. Gonzalo chega a pisar em uma bandeira do Partido Socialista ao se dar conta
de que está em uma manifestação de direita. A partir deste episódio, os garotos começam
a perceber os obstáculos que a amizade terá que enfrentar, pois a mãe de Gonzalo está na
manifestação e briga, trocando agressões e insultos com a amiga dos meninos, Silvana,
enquanto eles assistem ao episódio. O filme começa a mostrar uma situação de extrema
violência e intolerância conforme a percepção dos garotos, que vai se aguçando a partir
de tudo que presenciam, das paráfrases que acumulam nas várias experiências vividas em
espaços públicos. Logo, a relação dos dois é afetada, pois passam a perceber que
pertencem a mundos diferentes, brigam entre si a ponto de um não querer mais ver o outro
e, portanto, não compartilham mais da mesma amizade que foi construída no decorrer da
história, justamente por compreender que são “forçados” a viver cercados – pela sua
criação, por seus pais, seu papel na sociedade, entre outros fatores – por ideologias
opostas.
É perceptível também a influência que o padre McEnroe projeta sobre os meninos,
pois desde o início do filme muitas das posições dos meninos se dão através de seus
ensinamentos sobre o respeito ao próximo e a importância da inclusão dos garotos pobres
na escola. Em determinado ponto da narrativa, chegam até mesmo a dizer que gostariam
de ser “padre” como ele, o que indicia, nesta altura, um lugar que é ponto de articulação
entre esses dois mundos.
Ao findar, o filme perde a cor enquanto Gonzalo assiste o assassinato de diversas
pessoas que moram na periferia, inclusive de sua amiga Silvana, e só é liberado pelos
militares quando percebem que ele usa o mesmo tênis Adidas que antes havia
impressionado o então amigo Machuca. Assim, tem início uma fase em que se tenta
apagar os indícios de que o país vive sob uma extrema violência, no lugar dos enunciados
relacionados ao comunismo antes observados por Gonzalo na escola, o enunciado que
aparece em uma das manchetes de destaque agora é “A FIFA informou ao mundo que a
vida no Chile está normal”. Porém, depois de presenciar tantos acontecimentos, Gonzalo,
agora sozinho, ganhou alguma compreensão do que se passa a sua volta.
3.3 Kamchatka
O filme argentino Kamchatka, foi dirigido por Marcelo Piñeyro e lançado em
2002. A história se passa no ano de 1976, com a ditadura já instaurada de forma
extremamente repressiva na Argentina. Aqui o menino Harry, que muda seu nome
30
seguindo a imposição de sua família em fuga, tem 10 anos e conta como foi ficar
escondido com seu irmão e seus pais enquanto o regime os persegue. Harry deixa de
frequentar a escola e passa a sentir falta de seus amigos e das formas de diversão que
costumava ter. Conhece, por meio de um livro encontrado por acaso, a história do
escapista Houdini, e então passa a admirá-lo e ver em seus atos um grande desafio, o que
se torna sua maior forma de entretenimento no decurso dos dias de isolamento. Essa
narrativa retrata a vida clandestina dos pais e das crianças, da perspectiva de Harry diante
daquilo que ele vê, mas não compreende, seu entendimento se expande à medida que a
história se desenrola. Percebemos que existem diversas semelhanças entre as duas
narrativas. A cena citada anteriormente, onde os pais de Mauro se deparam com o veículo
repleto de militares também se repete logo no início de Kamchatka, além de haver
similaridades principalmente com o filme O ano em que meus pais saíram de férias,
devido à maneira como os jogos são praticados pelos os pais com os meninos e os breves
ensinamentos. Apesar de muitos semas não se mostrarem compreendidos e cristalizados
para as crianças, toda a estrutura de compreensão fundamental da relação familiar e
contextual vai produzindo sentidos nas relações que se estabelecem entre certos modos
de dizer.
Logo no início do filme já compreendemos a relação muito próxima de Harry com
sua mãe, que vai buscá-lo na escola mais cedo e desperta a curiosidade do garoto sobre
os planos do dia, perguntando diversas coisas à sua mãe, mas obtendo curtas respostas e
explicações muito vagas sobre o que irá acontecer. Assim como Mauro no filme O ano
em que meus pais saíram de férias, Harry observa atentamente, também se mostrando
muito curioso ao se deparar com uma escolta militar fazendo vistorias em uma das vias
da cidade, enquanto sua mãe expressa um visível nervosismo, provocado pela situação
em que se encontra. Já na casa dos amigos de seus pais, Harry observa atentamente sua
mãe contando alguns ocorridos à sua amiga, expressa curiosidade mais uma vez,
justamente por acreditar que estavam sendo dadas as explicações que ele pediu
anteriormente, ou pelo menos pistas de algumas das respostas.
Enquanto constrói um diálogo com seu pai, Harry se mostra muito inocente, não
tem ideia do que se passa a sua volta. Apesar de entender, ouvindo a conversa de sua mãe,
o que aconteceu com um dos amigos dos pais que foi preso pelos militares, acredita que
seu pai irá solta-lo, pois ele é advogado. Pergunta então várias coisas sobre prisão, mas
não obtém resposta de seu pai, que apenas o tranquiliza dizendo que não será preso, mas
31
diz que a família irá se “afastar” até que “as coisas se acalmem”, assumindo que estão
com problemas.
Para explicar quais são as medidas de segurança que os meninos devem tomar se
houver alguma invasão dos militares ao sítio em que estão “afastados”, o pai dos garotos
lhes explica o que fazer a partir de associação com filmes, como se estivessem vivendo
uma grande aventura, assim, aguçando a imaginação e a percepção dos dois. As perguntas
aos pais ainda continuam presentes, mesmo que sem maiores explicações, pois todos
foram inseridos em lugares completamente novos e desconhecidos. Logo, Harry acha um
grande exemplo, o escapista Harry Houdini – talvez daí venha seu novo nome – que
“consegue sair das situações mais difíceis”, segundo o garoto. Algumas instruções são
dadas pelos pais, como não atender o telefone e não ligar para ninguém, não sem o
questionamento dos meninos, que não compreendem a razão de ficarem escondidos no
sítio, mas não há resposta, apenas aceitam a imposição. Por fim, são instruídos a mudar
seus nomes, provavelmente para não serem reconhecidos por ninguém. Conforme o
desenrolar da história, Harry e seu irmão vão captando algumas das expressões e palavras
ditas por seus pais e dando a elas o significado que lhes parece plausível. Em determinado
momento, o pai, agora chamado David, expõe que o governo deve “branquear os presos
políticos”. O irmão de Harry o prende com uma corda em uma cadeira e em seguida pinta
o rosto do garoto com uma tinta branca, alegando estar “branqueando o prisioneiro”. São
postas muitas cobranças e ideias sem maiores explicações, o que acaba criando uma
grande confusão para Harry e seu irmão. As mínimas explicações possíveis são dadas
pela mãe, que não fala sobre a situação em que vivem e sim sobre o escapismo, arte com
a qual Harry se encontra encantado, tem em Houdini sua grande distração.
A relação íntima de Harry com seu pai também é observada pelo jogo TEG, um
jogo de tabuleiro de estratégia, onde os adversários têm como objetivo conquistar ao
menos 30 dos 50 países que estão no jogo. Ao conquistá-los, o jogo termina. David e o
menino têm o costume de jogar um contra o outro. Os gestos de proximidade entre a
família ainda são mantidos, mesmo com as saídas constantes dos pais dos garotos e a
ausência de respostas e compreensão do mundo.
A chegada de Lucas, nome falso de um garoto que vai morar com a família,
provavelmente alguém que também está se escondendo dos militares, desperta ainda mais
a curiosidade dos meninos, que não encontram respostas para a presença do novo
morador. Lucas também esconde alguns aspectos fundamentais sobre a vida dos pais, se
32
esquivando das perguntas de Harry. Todas as respostas ainda são relacionadas às
aventuras e missões secretas, coisas que fazem parte do mundo das crianças.
Os garotos vivem cercados de surpresas, começam a frequentar uma nova escola,
comandada por padres, porém, sem qualquer tipo de registro que possa ser encontrado
pelos militares. Harry ganha mais um novo nome, Aroldo. Passam a viver em um mundo
cercado por medo e desconfiança, pois, pela ausência de explicações, são levados a
acreditar que serão abandonados e que não poderão mais viver na companhia de seus pais.
Apesar de parecer que as coisas não fazem mais sentido no mundo em que vivem,
Harry aos poucos compreende a maioria do que acontece a sua volta, conta ao avô tudo o
que está se passando em sua casa, com seus pais, com os empregos e com os amigos
deles. Ele apenas não compreende a fuga da ditadura, não entende que seus pais são
militantes. Percebemos que a maioria das falas sobre alguma reflexão, como sobre o jogo
TEG, o corpo humano e estrelas cadentes, ditas pelo protagonista estão necessariamente
ligadas aos ensinamentos de seus pais, como é exposto mais ao findar do filme:
Harry: As estrelas cadentes são rochas que entram em combustão ao entrar na
atmosfera. Mamãe estava certa sobre isso. Por alguma razão, as estrelas cadentes têm
relação direta com desejos. Papai tinha razão sobre isso.
A primeira situação de abandono é vivida quando o grande amigo, Lucas,
abandona o sítio após uma invasão dos militares. Mais uma vez, Harry busca respostas e
não as encontra. Encontramos explicação para o título do filme quando Harry e seu pai
estão em uma partida de TEG e o protagonista tenta ganhar a península de Kamchatka,
localizada na região oriental da Rússia. Harry tenta “rouba-la” de seu pai de todas as
maneiras, mas é derrotado em todos os seus ataques. A península também foi alvo de
bombardeios e testes durante a Guerra Fria, porém, sobrevive até os dias de hoje, ou seja,
é uma marca de resistência.
Conforme a situação se agrava e os amigos dos pais dos garotos são mortos, é
então tomada a decisão de deixá-los com os avós e seguir para um outro local. Sem
maiores explicações e uma despedida marcada apenas por palavras e amor e carinho, os
pais então seguem viagem, deixando as crianças para trás. Harry consegue compreender
algumas das ideias de resistência e luta passadas pelos seus pais, e após ser deixado por
eles, conclui:
33
Harry: Na última vez em que o vi, meu pai falou de Kamchatka. Dessa vez eu
entendi. E cada vez que joguei, meu pai estava comigo. Quando o jogo ficava difícil, eu
fazia como ele e sobrevivi. Porque Kamchatka é um lugar onde a gente pode resistir.
Considerando estas descrições das narrativas, entendemos que os enunciados
estão ligados ao modo como certos gestos e mesmo uma gestão dos corpos se articulam
produzindo sentidos. No próximo Relatório, refinaremos a coleta desses semas, de modo
a sistematizar as paráfrases que, junto ao que é calado, delineia uma semântica global em
cada narrativa fílmica e, segundo nossa hipótese, possivelmente produz uma semântica
que dá identidade aos desaparecimentos caraterísticos das ditaduras vividas no Cone Sul.
Para tanto, cremos que ainda é preciso considerar essa articulação de elementos
de diferentes semioses, por isso mobilizamos, ainda a noção de práticas Inter semióticas
tal como propõe Maingueneau na obra que assumimos aqui como base teórica destas
reflexões.
3.4 Práticas intersemióticas
Voltando aos conceitos colocados por Mainguenau em Gênese dos discursos
(2007), compreendemos que também é de grande importância que seja considerado o
caráter intersemiótico das narrativas fílmicas que entendemos aqui como textualizações
de discursos, pois
Limitar o universo discursivo unicamente aos objetos linguísticos
constitui sem dúvida alguma um meio de precaver-se contra os riscos
inerentes a qualquer tentativa “intesemiótica”, mas apresenta o
inconveniente de nos deixar muito aquém daquilo que todo mundo
sempre soube, a saber, que os diversos suportes intersemióticos não são
independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas
escanções históricas, às mesmas restrições temáticas etc....
(MAINGUENEAU, 2007, p. 145)
Ou seja, assim como no conceito de semântica global, em que são propostos
planos de estudo que mantêm uma relação indissociável entre si, aqui também é proposto
que analisemos os discursos como uma prática que vai além do dizer, relaciona-se à
maneira como ele será apresentado (encenado, segundo desdobramentos futuros, no
próximo Relatório) e por meio de quais instrumentos ou dispositivos enunciativos. O
texto – “capacidade comum de ser investido por um mesmo sistema semântico”
34
(MAINGUENEAU, 2007, p. 147) – pode ser atualizado de diversas maneiras,
delimitando-se, assim, uma coexistência entre os elementos que o constituem como
discurso, é o caso, por exemplo, da relação entre literatura e pintura. Para analisarmos
como é construída a relação de um discurso com o que se coloca a partir dele, seja por
meio da música, da pintura, da literatura, etc., Maingueneau propõe que analisemos os
critérios que fazem a análise ser pertinente, utiliza, para tanto, exemplos de duas pinturas
procurando relatar as relações entre o modo como são produzidas e o discurso que as
“funda” (ou fundamenta).
Nos filmes aqui postos em exame, podemos compreender alguns elementos
intersemióticos que se relacionam com a temática abordada pelos mesmos. O ano em que
meus pais saíram de férias e Machuca são filmados em cores frias, quase não se vê a
presença de cores quentes no decorrer da história. O fato de Machuca perder um pouco
de sua cor ao findar, mostra-nos que, a partir da percepção de Gonzalo, não se vive mais
em um mundo “normal”, como aparece no enunciado da FIFA, pois ele perde a amizade
do amigo que o acompanhou nas descobertas não só sobre aquilo que era relacionado à
ditadura, como também sobre a própria vida, e presencia cenas de morte, agressão. O
próprio comportamento das crianças também se torna de extrema importância para a
análise, pois buscam afeto a todo momento, sendo por meio de seus pais, em Kamchatka
e Machuca, ou por meio daqueles que lhes são queridos como O ano em que meus pais
saíram de férias. Mauro, Machuca e Harry são aparentemente dependentes de abraços,
demonstrações de afeto e de diálogos, afirmações de que está tudo em paz, mesmo que
eles vejam outra realidade pelas ruas.
A composição das cenas será esmiuçada futuramente, à luz das noções de cenas
da enunciação desenvolvidas por Dominique Maingueneau em Cenas da enunciação,
2008 e em Análise de textos de comunicação, 2005, nas quais as várias semioses
compõem totalidades.
4. Análises parciais
Como foi exposto acima, no decorrer das narrativas fílimcas podemos perceber
que as crianças só conseguem construir sentidos para o mundo em que vivem a partir de
três principais maneiras de interações: i) uma delas sendo com os pais ou adultos, ii) outra
se dá quando voltam sua atenção às palavras que são ditas iii) ou então através dos
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silêncios produzidos por aqueles que os cercam, como veremos em três cenas
selecionadas de cada um dos filmes, nas quais os meninos constroem sentidos ou reagem
de acordo com aquilo que já foi compreendido por eles sobre tudo o que estão vivendo..
Em O ano em que meus pais saíram de férias, selecionamos um trecho que
acontece aos 45 minutos de projeção. Mauro já está vivendo com o judeu Shlomo e vai
brincar com as crianças da rua em que está morando e, após o passeio, para em um bar
para assistir televisão. Ali, troca breves palavras com as pessoas e, ao dizer que era neto
de Mótel, é reconhecido por um dos amigos de seu pai, Ítalo.
No trecho acima, percebemos como a palavra “férias” acaba realmente ganhando
algum sentido para Mauro e observamos como ele passa a saber usá-la nas situações em
que seus pais gostariam e pediram para que fosse usada, como que para protegê-los. É um
termo com o qual Mauro se potencializa e, assim, participa do que quer que seja que seus
pais estejam fazendo.
36
Nesse ponto do filme, o garoto já estava curioso, observando tudo o que acontecia
a sua volta e percebendo que não estava mais vivendo em uma situação normal de vida,
como ele estava acostumado antes de seus pais “saírem de férias” sem ele. As
experiências que são vividas fazem Mauro compreender que não deve ter uma conversa
espontânea e tranquila, contando o que havia se passado, dizendo que não sabia o motivo
do “desaparecimento” dos seus pais, mesmo que o interessado seja um “amigo” deles. A
própria palavra “amigo” se pacifica. Aqui então, já vemos se formar claramente uma
competência discursiva que faz com que Mauro seja capaz de compreender e reconhecer
que Ítalo, ao enunciar, se mostrava interessado em construir um diálogo sobre a vida de
Daniel, mas que ele não deve falar que eles estão sumidos e que não há notícias.
Percebemos que o menino nem ao menos tira um tempo para pensar na resposta, já
responde de imediato, e isso também é uma característica da formação da competência
discursiva, pois ele já é capaz de reproduzir aquilo que ele acha dever fazer, depois de
tantas recomendações dos pais dele antes de irem embora e diante de tudo o que vem
sendo vivido no lugar que ele está. Portanto, percebemos que a partir desse episódio, a
palavra “férias” já contém um novo sentido para a criança, significa que ele não pode
dizer o que aconteceu com seus pais, pois, apesar de ele mesmo não saber ao certo,
poderia contar que ambos foram embora já havia um tempo e perguntar se o “amigo”
tinha alguma notícia, mas ele prefere responder assim como foi instruído. Além disso,
estavam em um bar com algumas pessoas, mais adiante na narrativa, Mauro e Ítalo
constroem uma relação, mas não era possível que o garoto perguntasse por notícias no
meio de tantas pessoas, e ele mesmo reconhece isso.
Em certo ponto do filme, a polícia vai atrás de Ítalo, que é encoberto por Mauro e
acaba dizendo ao garoto que também irá tirar férias. Ou seja, o uso recorrente dessa
unidade lexical nos discursos que os pais dos meninos faziam sempre antes de sair acabou
por marcar aquilo que devia ser dito apenas para encobri-los, o menino não demorou
muito para perceber que a palavra não era usada em seu sentido literal.
Também é importante que seja levado em consideração o modo como Mauro
enuncia, pois ele se mantém sentado, observando as palavras de Ítalo e respondendo
claramente e sem ponderar, pois já compreende o que pode e deve ser dito, sabe que não
deve fazer perguntas ou dizer algo de diferente sobre aquela situação, para que seus pais
não sejam prejudicados. As respostas são claras, rápidas e categóricas.
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Além disso, percebemos que o menino enuncia a partir do lugar de filho do casal
e compreendemos isso também como um fator importante, porque não há motivos para a
criança querer o mal para Bia e Daniel, pelo contrário, ele sente falta dos pais e quer que
eles voltem logo, portanto, quanto menos ele disser sobre o sumiço dos dois, menos ele
irá prejudicá-los, pois mesmo que o enunciatário, Ítalo, diga ser amigo de seu pai e uma
pessoa em que ele possa confiar, nessa situação eles estão cercados por pessoas
desconhecidas que podem prejudicar os militantes.
Em Machuca, selecionamos uma cena que mostra a importância da posição dos
pais das crianças para constituir aquilo que pensam e como devem se comportar e se
posicionar diante de determinadas situações. Acontece a 1 hora e 13 minutos de filme,
um momento em que o padre McEnroe convoca os alunos e os pais para conversar sobre
o que está acontecendo na escola, a relação conflituosa entre as crianças ricas e as pobres.
O padre diz que aqueles que não estão contentes com o colégio devem se retirar e recebe
a resposta de que quem deve sair é ele, como vemos abaixo.
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Quando a mulher, que se parece muito com a mãe de Gonzalo Infante, devido às
roupas que usa, enuncia chamando o padre de “comunista”, as crianças imediatamente se
olham preocupadas com o conflito que está se formando e percebendo cada vez mais que
pertencem a mundos diferentes, enquanto a mãe de Gonzalo está entre as que acham um
absurdo seus filhos terem que conviver com “marxistas”, a mãe de Machuca está entre as
pessoas de passado triste, cercado de miséria e trabalho e que precisam da oportunidade
para que seus filhos possam estudar.
“Comunista” é uma palavra que já faz sentido há algum tempo para os garotos e
que fica cada vez mais demarcada pela diferença social entre eles, pois Machuca estaria
vivendo junto aos “comunistas”, enquanto Gonzalo estaria participando dos que se
denominam “direitistas”, os apoiadores do governo. Aqui percebemos a importância da
posição dos pais dos garotos e das posições em que vivem, o que faz com que eles também
sejam inseridos em determinada ideologia, mesmo que não compreendam nem tenham
poder de escolha. Os pais de Gonzalo estão claramente a favor do governo, mas a mãe de
Machuca não se posiciona, apenas está em busca de melhores oportunidades.
É interessante repararmos a preocupação estampada no rosto dos meninos. Nessa
fase do filme, eles já compreendem que algo grave está acontecendo, pois estão vivendo
em uma sociedade cercada de violência por todos os lados. Machuca já compreende que
a amizade entre os dois é praticamente impossível de se manter e decide se afastar em
seguida. Mesmo no silêncio do olhar, eles conseguem construir um sentido para aquilo
que os cerca e para as posições e decisões a serem tomadas a partir dali.
Acreditamos ser importante também acrescentar que a pessoa em que os meninos
se espelham é o padre McEnroe, não seus pais nem os amigos que os cercam. Justamente
pelo padre incentivar o contato entre as crianças, a amizade e a compreensão. Em certo
ponto do filme, Machuca diz querer ser “padre” assim como McEnroe, para poder ajudar
as pessoas e principalmente aos pobres, Gonzalo concorda com o amigo e diz que vai
pensar em ser “padre” também. Portanto, no jogo de paráfrases que há nessa narrativa, se
as crianças seguem aquilo que o padre diz e compartilham da mesma ideologia igualitária
que ele propõe, provavelmente também seriam considerados “comunistas” pela sociedade
em que vivem. No entanto, nesse ponto do filme, não é algo que os preocupa muito. Se a
mãe de Machuca e os amigos da família que o cercam não se posicionam politicamente,
apenas vivem em uma classe social inferior, ele não ia ter de onde tirar uma posição X ou
Y, portanto se espelha nas opiniões e posições do padre. Já Gonzalo podia compartilhar
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da posição de seus pais, porém, como preza sua amizade, prefere acreditar e viver aquilo
que o padre prega em seu colégio. Aqui, então, o que faz sentido para as crianças é o que
é passado por aquele em que eles acreditam e admiram, padre McEnroe.
Como proposto por Maingueneau, conforme resenhas acima, também é
importante percebermos que o Outro sempre influenciará o pensamento do Mesmo, e sua
posição é sempre válida e tem uma grande importância sobre o outro discurso, sendo ele
contrário ou não. Portanto, se é proferido que o padre é um comunista porque pensa em
uma visão igualitária de direitos, alguma parte da sociedade irá acatar esse discurso e fará
com que seja válido, tanto prova que ao findar do filme, o padre é preso pelos militares.
Logo, mesmo que ele não se coloque por si mesmo como um comunista ou alguém que
está contra o governo, aqueles que determinam a ele essa posição, acabam por fazer com
que ela valha, e não qualquer outra que o religioso queira demonstrar.
Já em Kamchatcka, decidimos observar uma cena em que algumas coisas são
inferidas através do silencio. Logo no início do filme, aos 6 minutos, Harry conversa com
seu pai sobre um amigo dele, Roberto, que foi morto pelos militares e que também era
advogado, assim como seu pai.
Percebemos que a criança faz diversas afirmações e perguntas, mas só obtém
resposta na sua última fala, quando pergunta de o pai não vai ser levado assim como o
amigo. David responde apenas para tranquiliza-lo, já que não sabe ao certo o que irá
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acontecer com a família, então apenas responde que não vai acontecer nada para que o
menino não pense que ele irá ser preso ou desaparecerá.
A primeira afirmação tem efeito de pergunta, pois o garoto espera uma resposta
afirmativa de seu pai, uma concordância. Diante da falta de respostas, continua expondo
suas reflexões. Em seguida, o garoto diz que o amigo dos pais era advogado também, e
assim percebe que seu pai não poderá soltá-lo, já que eles têm a mesma profissão e que,
se um foi levado, o outro também pode ser. A terceira fala, a pergunta sobre os advogados
também serem levados, já tem uma resposta certa para Harry, pois ele já entendeu que,
se o amigo do pai foi levado, os advogados são levados, sim, porém, pode-se perceber
que ele enuncia esperando receber uma resposta do pai que o tranquilize, o que não
acontece. A construção de sentidos se produz na relação das colocações do garoto com o
silêncio do pai diante das preocupações colocadas.
No que se relaciona à competência discursiva, percebemos que ela está sendo
formada aos poucos nas indagações e no silêncio do próprio Harry, que sabe as respostas
de suas perguntas mas prefere interiorizá-las para que seu pai possa dizer um algo
diferente do que aquilo que ele parece ir percebendo ser verdade, um discurso que
concorda que os advogados não podem soltar os presos, que os militares levam os
advogados também como e que pode, sim, acontecer algo com seus pais. Esse discurso é
“suprimido” e são colocadas as perguntas para que o pai discorde dele e o tranquilize, o
que acontece apenas no findar do diálogo. Não só na cena selecionada pra estas análises
preliminares, mas percebemos que, no decorrer da narrativa fílmica, mesmo com a
ausência de explicações claras, o garoto percebe que não se vive mais em uma “situação
de paz”, percebe que os assuntos dos pais são sobre mortes e desaparecimentos, não
obtém respostas claras de seu pai e tudo isso coopera para que ele faça sua própria
construção de mundo, pela observação do mundo em que está inserido, a ação dos
militares pelas ruas, as notícias que passam na televisão e os discursos de políticos e
militantes a que ele e seu irmão assistem na companhia de seu pai.
Aqui também percebemos a importância que o pai exerce para o menino, pois a
resposta dada à sua última pergunta não é necessariamente uma verdade, já que ele não
tem como saber se será levado ou não, e mesmo que Harry já tenha entendido que o pai
pode, sim, ser levado a qualquer momento, o papel de David nesse diálogo é tranquilizar
o filho, que aceita sua resposta como um momento em que deve deixar de perguntar sobre
as diversas dúvidas que tem.
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De acordo com as cenas aqui descritas, das quais levantamos traços semânticos
fundamentais, podemos perceber que os sentidos vão se construindo através de relações
e associações feitas pelos próprios garotos conforme o conhecimento de mundo deles vai
se expandindo, na experiência vivida. Isso é feito basicamente por meio de três tipos de
interações, como expusemos acima: i) através dos semas que se mostram realmente
definidores de um pensamento ou posição, como o caso da palavra “férias” em O ano em
que meus pais saíram de férias, ii) através das pessoas nas quais os garotos se espelham
ou de sua família, como é o caso de Machuca, onde as crianças não têm uma posição
demarcada, mas são inseridas em ideologias contrárias por viverem em lugares sociais (e
de poder financeiro) distintos, apesar de seu real posicionamento ser definido pelo padre
e, por fim, iii) a interação com o silêncio, que é responsável, por exemplo, por ser o lugar
onde Harry constrói os sentidos no filme Kamchatka, diante da ausência de respostas de
seus pais e de todos que o cercam.
Em Relatório futuro, voltaremos a estas descrições analíticas com vistas a abordar
as categorias propostas para o entendimento da semântica global, tal como exposto acima,
procurando mostrar o funcionamento das textualizações sob o primado do interdiscurso
e, então, apresentar os levantamentos que possivelmente nos permitem falar em uma
semântica do desaparecimento no Cone Sul.
5. Cronograma de trabalho
Janeiro: Análise dos dados e documentos publicados pela Comissão Nacional da
Verdade;
Fevereiro: Análise de cenas dos filmes com base nas cenas da enunciação propostas por
Dominique Maingueneau em Cenas da enunciação e em Análise de textos de
comunicação;
Março: Estudo da relação dos silêncios e não ditos com as paráfrases presentes nos filmes;
Abril: Levantamento dos dados que possibilitam a construção de uma semântica global
relacionada aos desaparecimentos;
Maio: Participação em eventos;
Junho: Entrega do Relatório Final.
42
6. Bibliografia citada
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. –
Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014. 976 p.
GREGOLIN, Maria do Rosario Valencise. Sentido, sujeito e memória: com o que sonha
nossa vã autoria? In: GREGOLIN, Maria do Rosario Valencise Gregolin. & BARONAS,
Roberto. (orgs.) Análise do discurso: as materialidades do sentido. São Carlos (SP):
Claraluz. 2001. p.60-80.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. – Curitiba: Criar edições, 2007.
189p.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.
______. Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1975; 1988.
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