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Maria da Gloria Bonelli Martha Diaz Villegas de Landa
(Orgs.)
SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL E NA ARGENTINA
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Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores. Maria da Gloria Bonelli & Martha Diaz Villegas de Landa [Orgs.)
Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina. São Carlos: Compacta Gráfica e Editora, 2013. 340p. ISBN 978‐85‐88533‐74‐5
1. Sociologia. 2. Mudança Social. 3. Mudança Social no Brasil. 4. Mudança Social na Argentina. I. Título.
CDD – 300 e 320 Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira Editor: José Marino Tradução do espanhol de Beatriz Medeiros de Melo e Deise Mugnaro.
Compacta Gráfica e Editora
São Carlos – SP 2013
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SUMÁRIO
Apresentação Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa
Parte I
Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das
experiências latino‐americanas Maximiliano Gaviglio
Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira
Valter Roberto Silvério O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil
André Ricardo de Souza, María Candelaria Sgró Ruata e Maximiliano Campana
Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi María Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano
Parte II
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes
demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina Richard Miskolci e Maximiliano Campana
A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e
diferença Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli
As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil
Camila de Pieri Benedito e Maria Eugenia Gastiazoro Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento
por júri María Inés Bergoglio
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135
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Parte III
Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e
na Argentina María Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo
A tradução contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços
públicos: o caso do Córdoba, Argentina Gerardo Avalle
Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil
contemporâneo Gabriel de Santis Feltran
Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente Rodrigo Constante Martins
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295
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Apresentação
Este livro resulta da cooperação internacional promovida pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior) e pela CONEAU (Comisión Nacional de Evaluatión y Acreditación Universitária), da Argentina, denominada Centros Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação, entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos e a Maestria em Sociología, da Universidad Nacional de Córdoba. Várias missões de trabalho e de estudo foram realizadas entre 2011‐2014 possibilitando o desenvolvimento de análises comparadas e da consolidação de grupos de pesquisa com participação de docentes e discentes brasileiros e argentinos.
Essas interlocuções se materializam nos capítulos deste volume, que abordam sociologicamente as mudanças sociais no Brasil e na Argentina contemporâneos. São doze trabalhos organizados em três unidades. A primeira delas “Cultura, diferença e desigualdade” reúne análises sobre as ressignificações do conceito de raça no contexto latino‐americano; sobre a biopolítica da monstruosidade e de corpos que fogem da norma; e sobre o ativismo cristão na Argentina e no Brasil.
A segunda unidade aglutina estudos que abordam as profissões jurídicas, seja sobre o impacto dessa formação na atuação dos advogados e do reconhecimento à diferença, seja sobre a participação das mulheres e da diversidade sexual nas carreiras jurídicas, seja sobre o sistema de jurado na Argentina, que introduz a participação popular visando a democratização do funcionamento da justiça.
A terceira parte focaliza os temas de políticas públicas, conflitualidade, desigualdade social e apropriação mercantilizada de recursos naturais e sociais. A partir das particularidades desta temática, os capítulos agrupados nesta parte se caracterizam por compreender a problemática que a envolve enquanto externalidades da lógica capitalista, que se revela nos diferentes processos de produção e reprodução social que têm lugar tanto na Argentina e no Brasil. Discute‐
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se, desse modo, as políticas de habitação popular no Brasil e na Argentina, as narrativas sobre a questão ambiental e os problemas relativos ao uso e acesso à agua, o controle do espaço público e os conflitos sociais por territórios e espaços urbanos e como tais questões expressam dinâmicas de inclusão/exclusão, segmentações socioespaciais e racionalizações próprias da, e compatíveis com a, lógica do mercado.
Abrindo a primeira unidade Maximiliano Gaviglio apresenta a discussão sobre o conceito de raça e o uso do termo na Argentina, com o intuito de destacar a complexidade semântica que este adquire no contexto latino‐americano, enfatizando não só o que há de comum, mas principalmente as especificidades das representações locais e regionais. Indo mais além das polêmicas em torno dos significados usuais e acadêmicos da palavra raça, e das classificações de corpos e sujeitos que ela produz, o autor soma‐se às abordagens que criticam a fundamentação genética e essencialista da ideia de raça. Ele entende o conceito como “uma construção social historicamente contingente cujo uso deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas que, desde o terreno do imaginário e o simbólico, aludem a processos mais amplos de construção de identidades sociais” (p. 24).
Gaviglio destaca que embora as representações sobre o cadinho de raças, o crisol de raças, a fábula das três raças nos contextos argentino e brasileiro pareçam semelhantes, tais fenômenos não são idênticos e precisam ser interpretados à luz de suas diferenças, já que tal percepção resulta de discursos hegemônicos de produção de identidades nacionais. No segundo capítulo Valter Roberto Silvério detém‐se no debate sobre racialização com o objetivo de vinculá‐lo às mudanças operadas na forma como a sociedade brasileira se auto‐representa. Da representação hegemônica que assimilava as raças pela democracia racial, a identificação no Brasil comportaria agora a diferença étnico‐racial. No argumento do autor, esse fenômeno é “decorrente do processo de luta política pela (res) significação / deslocamento do lugar do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva” (p. 49).
Na fundamentação de um conceito que se contraponha ao reino biológico, Silvério apóia‐se na construção teórica de Winant (1996) sobre
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a formação racial, enfatizando três determinações sociais no conceito de raça: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal. Com esta abordagem, mostra como o movimento negro atuou para que a visão do Brasil como uma comunidade imaginada homogeneamente desse lugar a uma comunidade que se imagina diversa culturalmente. Assim, analisa as políticas públicas de igualdade racial, de educação étnico‐racial, de relações globais sul ‐ sul e da política externa brasileira com a diáspora africana.
No terceiro capítulo, André Ricardo de Souza, María Candelária Sgró Ruata e Maximiliano Campana contrastam a conformação do campo religioso no Brasil e na Argentina, analisando o ativismo político cristão. O catolicismo tem peso demográfico e jurídico maior na Argentina, com 76,5%, preservando vínculos com o Estado, enquanto o protestantismo fica na casa dos 9%. No Brasil, o catolicismo segue retraindo sua porcentagem na população, com 64,6% enquanto os evangélicos crescem em ritmo acelerado representando 22,2%.
Os autores observam que “em ambos os países os segmentos católicos e evangélicos se posicionam no espaço público, mediante manifestações organizadas e militância político‐partidária tanto na defesa de seus interesses como de seus valores doutrinários” (p. 64). Eles demonstram como as questões de moral sexual estão atualmente na essência da mobilização do ativismo cristão, de católicos e evangélicos.
No quarto capítulo, Maria Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano tratam da biopolítica da monstruosidade sobre os corpos que se distanciam da normatividade, como aqueles classificados de obesidade epidêmica, na perspectiva biomédica, ou os zumbis, na ficção. O texto detalha como cada época engendra seus monstros, fenômeno que fala sobre as irregularidades imagináveis, expressando as transgressões da fronteira do propriamente humano. Os autores querem destacar como a análise do corpo obeso e do zumbi contrastam com os discursos tradicionais sobre a monstruosidade, que convertiam o monstro em alteridade absoluta do humano. Esse monstro atual é um “interior externalizado” do humano, que está en(tre) nós.
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“O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem sua forma humana, no primeiro caso, por descuido, no segundo, por decomposição; o obeso encarna a enfermidade do corpo constituindo‐se em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto que o zumbi perde toda possibilidade de redenção, seu corpo evoca um estigma do corpo corrompido e corruptor” (p. 95). A obesidade epidêmica indicaria a monstruosidade do corpo
humano e o zumbi representaria a humanidade do monstro, corpo humano em decomposição borrando as fronteiras entre o humano e o monstruoso.
O quinto capítulo, que abre a segunda parte do livro, é de autoria de Richard Miskolci e Maximiliano Campana. Eles analisam o impacto da formação tradicional em Direito sobre os litígios voltados para impulsionar mudanças sociais, como a agenda contemporânea pelo reconhecimento à diferença. O argumento dos autores é que as práticas que buscam nos tribunais a ampliação de direitos difusos e de equidade para minorias encontram barreiras nos próprios valores partilhados na socialização profissional jurídica, que se inicia no curso superior. Assim, analisam como as motivações por um ideal social e humanitário de justiça que impulsionam algumas das escolhas estudantis pela formação em Direito vão, ao longo da faculdade, dando lugar a uma concepção formal e instrumental de justiça, baseada no ideário da neutralidade que predomina no profissionalismo.
Neste sentido, destacam a distância entre a atuação e os valores da base do grupo profissional da advocacia com as decisões dos tribunais superiores, que têm impulsionado alguns dos direitos que reconhecem diferenças, como o do casamento homossexual na Argentina e o princípio constitucional que valida a ação afirmativa na modalidade cota no Brasil.
Apontando as possibilidades de transformação da formação acadêmica, voltando‐se a uma perspectiva educacional dialógica e reflexiva, Miskolci e Campana abordam como o reconhecimento à diferença amplia essa mudança superando as limitações que consideram persistir na concepção da diversidade.
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“Distinguir entre diferença e diversidade exige abandonar uma concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela para uma concepção horizontalizada de relações em que se afasta o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é algo incomensurável, mas potencialmente mais democrático e promissor. Uma perspectiva informada pelas diferenças pode questionar e até modificar hierarquias, colocar em diálogo os subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem que mantém e reproduz desigualdades” (p. 155‐156). No sexto capítulo, Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli
analisam as continuidades e as mudanças que vêm ocorrendo na advocacia paulista, no que diz respeito ao profissionalismo e à diferença. Focalizando a diversidade sexual, abordam situações de trabalho nas quais as intersecções entre a identidade profissional, de gênero e sexual se entrecruzam de formas distintas. Contrastam as experiências de atuação jurídica no Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual com a de advogados gays que exercem a advocacia em escritórios e sociedades de advogados. No primeiro caso, observam como a identidade homoafetiva cruza a profissionalização, resultando em redirecionamento para prática na especialidade dos direitos LGBT.
Segundo elas:
“A força da identificação sexual configura o caminho profissional, mostrando uma interseção na qual se busca reconhecimento para o valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos direitos homoafetivos” (p. 182). No segundo caso, registram como os advogados gays que não
fazem essa reconversão, atuando nos escritórios que lidam com as demais especialidades jurídicas, sentem o estigma e as pressões dos pares para manterem a sexualidade invisível.
“Os profissionais gays, envolvidos ou não em lutas contra a discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e a intimidade, mantendo no armário sua
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homossexualidade. Nestes casos, a intersecção entre identidades fica sujeita ao predomínio do status profissional perante o estigma da diferença sexual” (p. 182). No sétimo capítulo, Benedito e Gastiazoro realizam uma análise
comparada da inserção profissional de mulheres na magistratura brasileira e argentina, e das percepções sobre gênero nessas carreiras do Judiciário. Elas partem de abordagens teóricas distintas, mas chegam a conclusões que dialogam entre si, com semelhanças na estratificação marcada pelo gênero. No caso de Córdoba, embora a segregação horizontal tenha diminuído em relação ao passado recente, ainda existe alguma diferença nessa distribuição com maior participação de homens na área penal, o que diminui na área civil e comercial. Nas magistraturas estadual e federal paulistas não foram observadas segmentação de gênero, com juízes e juízas atuando na justiça civil e criminal. A justiça do trabalho que é mais feminina, não foi analisada nessa pesquisa.
Quanto à segregação vertical, observou‐se forte estratificação por gênero no judiciário estadual paulista, mas bem menos acentuada no judiciário federal de São Paulo. A explicação dada por elas é o maior insulamento da carreira decorrente da consolidação do profissionalismo antes do ingresso feminino na magistratura estadual, o que não se passou na justiça federal. Assim, o fechamento generificado teria sido maior no Tribunal de Justiça de São Paulo, do que no Tribunal Regional Federal. Na Argentina, a segregação vertical foi observada em todos os foros.
As autoras chegam à seguinte conclusão sobre a relação entre profissionalismo e gênero:
“A implementação de sistemas meritocráticos pode ter efeito positivo para a redução das desigualdades de gênero, porém tais sistemas são mais exigentes com as mulheres, inseridas numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças de gênero se estanquem no interior de uma profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior” (p. 211).
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O oitavo e último capítulo da segunda unidade é um estudo de Maria Inés Bergoglio sobre a implantação do sistema de júri na Argentina, com objetivo de ampliar a participação popular na justiça e a legitimidade judicial. A pergunta que a autora se coloca é se o objetivo de aumentar o reconhecimento popular de um judiciário marcado pela baixa confiança da população na justiça, foi alcançado com os ‘Julgamentos por júri’. Para tanto, ela pesquisa a participação leiga em tribunais mistos, que foram criados em Córdoba, a partir de 2005, na esfera penal, combinando a atuação profissional com a dos jurados. Para tanto, ela compara pesquisas de opinião pública realizadas entre 1993 e 2011, analisando as mudanças de atitude em relação aos juízes e aos jurados.
Em síntese, Bergoglio conclui que:
“Embora já exista evidência de que aqueles que têm atuado como jurados melhoram sua opinião sobre o funcionamento da justiça, por enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito fracos ainda.” (p. 215). A terceira parte do livro começa com uma análise comparativa
das políticas de habitação social implementadas na cidade de Córdoba‐Argentina e várias áreas urbanas do Brasil, no âmbito do programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, de caráter estadual no primeiro caso, e de âmbito nacional no segundo. As autoras Maria Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo esclarecem que, embora os respectivos programas tenham a mesma denominação em ambos os países, eles diferem no que respeita aos beneficiários aos quais os programas se dirigem, aos mecanismos de implementação e à extensão territorial de aplicação. O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no Brasil, quase uma década depois do programa homônimo implementado em Córdoba. O propósito das duas autoras é caracterizar tais programas, destacando semelhanças e diferenças e, sobretudo, reconhecer o impacto dessas políticas nas relações sociais e processos de subjetivação a que dão lugar. Este dado, já observado no caso argentino, por tratar‐se de um programa mais antigo, poderá replicar em um futuro próximo no Brasil – em função da própria lógica do programa brasileiro.
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O texto do capítulo nono está dividido em duas seções: a primeira sobre o caso de Córdoba‐Argentina, e, a segunda, sobre o caso brasileiro. Ambas as seções dedicam sua primeira parte à descrição das políticas habitacionais que incorporam os programas estudados, enquanto que a segunda parte se ocupa da análise crítica do produto de tais políticas e de seu impacto urbano e social.
A conclusão mais geral que as autoras destacam para cada caso se resume nos seguintes parágrafos:
(Programa Córdoba‐Argentina) “... favorece um tratamento ágil e focalizado dos problemas, em detrimento de uma ação integral que ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido, vale destacar a intensificação da segregação espacial. Isso ocorre porque o programa opera um deslocamento geográfico dos pobres para as margens da cidade, agravando outras situações de exclusão, como as de emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou transporte, etc. Consequentemente, criam‐se novos ou reforçam‐se velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade (p. 249). (Programa‐Brasil) “... não procura constituir propriamente uma política de habitação, que estaria centrada numa lógica universal dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública (...). Trata‐se, genericamente, de “um programa de crédito tanto ao consumidor quanto ao produtor”, (...). Portanto, os parâmetros financeiros e a solvabilidade do sistema importam muito mais do que o conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da cidade ‐ que requisitaria uma abordagem integrada entre política habitacional, política urbana, política fundiária e política social.” (p. 261‐262).
Gerardo Avalle introduz o décimo capítulo “A tradução
contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços públicos: o caso do Córdoba, Argentina”, sugerindo que essas expressões denunciam o pano de fundo de inclusão/exclusão que se manifesta em cada sociedade, bem como
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evidenciam as tensões que se escondem nas formas em que as demandas são processadas pelos dispositivos governamentais.
Através do percurso histórico‐político dos últimos 20 anos, de processos de demandas populares por emprego, alimentação e moradia na Argentina e particularmente em Córdoba, recuperado a partir do relato de atores dos setores populares, Avalle pretende testemunhar a afirmação de que ʺA gramática popular adverte sobre o avesso de uma política de (des)igualdade (p. 272)ʺ. Em outros termos, e utilizando novamente as palavras do autor, ʺa inscrição dos sujeitos nos espaços públicos e as demandas por maior igualdade enfrentam‐se com um risco permanente de desativação política e inclusão degradada na linguagem da cidadaniaʺ. (p. 272)
O capítulo está organizado em três seções. A primeira reconstrói, a partir da percepção dos setores populares, a dinâmica política argentina que, impulsionada pelo projeto neoliberal, atravessa os anos 90 para desembocar na crise de 2001. E se debruça, particularmente, sobre o projeto político emergente a partir de 2003. A segunda seção aponta para o surgimento de novos atores coletivos como consequência da crise de 2001. Por fim, analisa a ação do Estado e das organizações populares, focalizando seus desdobramentos na província de Córdoba.
O autor conclui, fundamentalmente, que, tomadas as políticas públicas a partir da perspectiva dos setores populares, uma dentre suas consequências, independentemente do objetivo que tais políticas perseguem, é a desativação da mobilização e iniciativa popular, já que estas representam um risco, uma ameaça ao controle que o governo busca exercer sobre essas populações. Empreende‐se, a partir do Estado, uma nova técnica de gestão, mais estável, mas que não necessariamente oferece maiores garantias de direitos.
“O cenário que se apresenta, então, é de uma dupla aprendizagem, onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de ferramentas e um estado de coisas que estabelece permanentemente novos pontos de partida e instâncias de demandas (...) que permitem (...), escapar à desativação (...) ʺ(p. 291).
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O décimo primeiro capítulo, de autoria de Gabriel de Santis Feltran, discute a relação paradoxal entre conflitividade social e as transformações sociais e econômicas induzidas pelo significativo desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas no Brasil. O objetivo deste ensaio é revelar questões analíticas, teóricas, metodológicas e políticas implicadas na gestão e compreensão contemporânea da existência e das práticas das populações marginais no Brasil urbano. O autor realiza tal discussão partindo de observações etnográficas de grupos urbanos composto por: i) adolescentes e jovens inscritos em atividades criminosas, moradores de bairros das periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas localizadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
As constatações tomadas de investigações já concluídas, que são a base do ensaio “Territórios e populações “marginais” em tempos de desenvolvimento”, e a revisão bibliográfica que as informam, orientam a revisão crítica dos três eixos tomados pelo estudo, bem como a observação e a formulação de políticas públicas relacionadas à marginalidade.
Um primeiro eixo, de caráter teórico‐metodológico, gira em torno do sentido atribuído às noções de marginalidade, e sua associação com termos tais como a pobreza, desordem, incivilidade, imoralidade, violência, marginalidade, criminalidade.
Uma segunda questão “... é aquela que percebe as dinâmicas sociais e políticas dos setores populares a partir da mudança, da transformação, registrada empiricamente pelos mais variados métodos – das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por trajetórias individuais às que procuram captar transformações estruturais no Estado ou na economia” (p. 305‐306).
Por fim, o ensaio problematiza a contradição que gera a própria presença do Estado nos territórios marginais, a qual contribui para a construção de uma série de bipolaridades sociais a partir das quais se reforçam a exclusão, o mascaramento e a reconfiguração da pluralidade que se expressa nos territórios marginais.
Encerra o conteúdo da terceira parte o trabalho “Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambienteʺ, de Rodrigo Constante Martins. O capítulo analisa as narrativas hegemônicas acerca do uso e
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acesso aos recursos hídricos, num contexto de narrativas em disputa sobre a explicação e as consequências da atual crise ambiental. O crescente interesse pela difusão e aplicação de instrumentos econômicos de gestão ambiental é uma preocupação emergente, nacional e internacional, por implementar estratégias eficazes para regular o consumo social da água.
O propósito do capítulo é interpretar criticamente a narrativa que subjaz e sustenta a confiança nas regulações e disposições contidas nos instrumentos econômicos de gestão ambiental. Na primeira parte do texto são descritas experiências nacionais de gestão da água, em particular a brasileira. Na segunda, se discute os pressupostos teóricos que justificam as narrativas produzidas pelos especialistas da economia da água. Aprofundando os aspectos críticos da narrativa hegemônica de regulação do uso e do acesso à água, baseada nos princípios de uma economia política fundada no neoclassicismo marginalista, o autor atenta, nas últimas duas partes do capítulo, para as noções de ʺofertaʺ, ʺescassezʺ e ʺgestãoʺ do recurso.
Martins conclui sua análise destacando que um dos pontos cruciais no tocante às orientações que adotam atualmente a gestão da água é que “... há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no código de recursos socialmente desejáveis” (p. 335)., e o fato de que a água, como recurso natural, é também um recurso simbólico no qual se condensam diversos sentidos – extrapolando sua redução excludente enquanto bem econômico – que variam de acordo com diferentes grupos e sociedades.
Os doze trabalhos que compõem este livro mostram como os diálogos entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar e a Maestria en Sociología da Universidad Nacional de Córdoba caminham na trilha do mútuo reconhecimento, para a consolidação da produção acadêmica latino‐americana e das relações institucionais sul – sul, o que no caso da Sociologia representa a pluralização do modelo hegemônico da internacionalização norte‐sul.
Outros colegas em São Carlos e em Córdoba participam do programa “Centros Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação”, colaborando para o avanço do conhecimento sociológico comparado sobre a mudança social no Brasil e na Argentina, mas não
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puderam participar deste volume. Agradecemos a eles e a elas as oportunidades de interlocução em outras atividades, como as missões de trabalho e estudo que resultaram em uma compreensão mais aprofundada das semelhanças e das especificidades regionais e locais.
Registramos nossos agradecimentos ao acolhimento das coordenadoras do PPGS e da Maestria en Sociología, bem como ao apoio das secretarias dessas unidades para que as missões se viabilizassem. Institucionalmente, a cooperação da Universidade Federal de São Carlos e da Universidad Nacional de Córdoba tornaram viável a realização do projeto, que só pode ser executado devido a essa recepção positiva. Contamos também com a pronta atenção dos técnicos da CAPES e da CONEAU no atendimento das várias solicitações, inclusive aquelas que viabilizaram a organização deste livro. Finalmente, agradecemos aos colegas que contribuíram com suas pesquisas e análises para dar vida a este volume, e aos profissionais que nos ajudaram com os trabalhos de tradução, revisão, e edição.
Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa
Coordenadoras do CAFP e organizadoras do livro
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PARTE I
Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das experiências latino‐americanas
Maximiliano Gaviglio1
ʺos animais são divididos em a] pertencentes ao imperador, b] embalsamados, c] treinados, d] leitões, e] sereias, f] fabulosos g] cães vadios, h] incluídos nesta classificação, i] que se agitam como loucos, j] inumeráveis, k] desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l] etcétera ʺ, m] que acabaram de quebrar o jarro, n] que de longe se parecem com moscas”. Jorge Luis Borges. ʺEl idioma analítico de John Wilkinsʺ, Otras inquisiciones, 1960.
No prefácio de ʺAs palavras e as coisasʺ Michel Foucault (1995)
admite que foi essa inverossímil e inquietante taxonomia que o inspirou a refletir sobre as possibilidades do conhecimento humano. Para além da simpatia que provoca o absurdo (e sem pretender cair nos excessos de um esteta), esta referência nos resulta verdadeiramente útil para iniciar uma reflexão sobre o tema que nos ocupamos: a categoria ʺraçaʺ como uma forma de classificação (de corpos e sujeitos) e suas representações na América Latina. 1. Introdução
Se tivéssemos que começar com uma pergunta, o mais sensato
seria questionar‐nos a respeito do que falamos quando falamos de
1 Licenciado em Comunicação Social (Escola de Ciências da Informação – Universidade Nacional de Córdoba); colaborador vinculado às cadeiras de ʺComunicação em Publicidade e Propagandaʺ e ʺWorkshop de Imagem Institucionalʺ do curso de Comunicação Social (ECI‐UNC). Atualmente está finalizando um mestrado em Sociologia no Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba.
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ʺraçaʺ? E estou seguro que, se a pergunta fosse realizada em um auditório, surgiria um sem‐número de acordos e desacordos parciais (ou, talvez, totais). Por evocar um universo de significação amplo, o termo ʺraçaʺ nos surge como um termo problemático que pode suscitar um sem‐número de leituras possíveis em relação direta com os contextos em que ele tem lugar: se trata de uma categoria contingente que, longe de ser concebida em termos essencialistas, manifesta‐se de modo distinto em discursos historicamente situados.
Para facilitar o desenvolvimento de meu argumento, abordarei alguns dos usos do termo, a fim de apresentar de maneira breve uma série de critérios e definições teóricas que nos permitem definir pautas (ou nós problemáticos) a partir dos quais seja possível analisar a complexidade semântica da ideia em questão em relação à experiência latino‐americana.
Para começar, podemos tomar uma série de definições formalizadas, tais como as estabelecidas pela Real Academia Espanhola: Raça (“raza”): (Do lat. *radĭa, de radĭus). 1. f. Casta ou qualidade de origem ou linhagem. 2. f. Cada um dos grupos nos quais se subdividem algumas espécies biológicas e cujas características diferenciais são perpetuadas por herança. 3. f. Fenda, rachadura. 4. f. Raio de luz que penetra por uma abertura. 5. f. Rachadura que às vezes se forma na parte superior do capacete das cavalarias. 6. f. Lista, em pano ou outra tela, em que o tecido está mais claro do que no resto. 7. f. Qualidade de algumas coisas, em relação a certas características que as definem2. Um dos usos ou acepções mais comum ou ao menos mais
reconhecida ‐ a definição número 2 ‐ é aquela que é utilizada pela biologia para designar grupos nos quais se subdividem algumas espécies biológicas a partir de uma série de características que são transmitidas por herança genética. Esta maneira de conceber a “raça”
2 Real Academia Española, http://buscon.rae.es/draeI/. Acessado em: 17/02/13.
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teve, na esteira das discussões da antropologia física (que tentou definir os critérios de conhecimento do social a partir do paradigma das ciências naturais), uma influência notável no pensamento social do século XIX, dando lugar a um sistema de classificação por meio do qual se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis ‐ fenotípicas e socioculturais ‐ da espécie humana. Como conceito analítico, essa ideia de ʺraçaʺ passou a obscurecer a diversidade cultural (que era diluída, reduzida ou, diretamente, ignorada) em detrimento das características biológicas ‐ e sobretudo as fenotípicas ‐, naturalizando a divisão de grupos sociais diferenciados sobre a base de critérios frequentemente estigmatizantes que se presumiam como condições invariáveis (como uma forma de sentença genética).
Se retomamos a ideia de contingência histórica e identificamos a ciência como uma leitura que emerge no e para o Ocidente, podemos dizer que a gênese do conceito de ʺraçaʺ, enquanto categoria socioanalítica, foi determinada pelo choque (encontro/desencontro) e relação entre o ocidental e o não‐ocidental (como transformação ou cristalização da tensão que, durante os diferentes períodos de conquista, se estabeleceu entre o europeu e o não‐europeu). Neste sentido, podemos definir uma interrogação ‐ Por que eles não são como nós? ‐ como forma de problematizar a diversidade humana enquanto conflito ou tensão entre a cultura ocidental e as culturas orientais, médio‐orientais, africanas e americanas (em toda a sua amplitude)3.
Mas o termo não foi gestado exclusivamente a partir do campo científico, a problematização da diferença e da diversidade constitui uma preocupação que vem se erguendo durante séculos. No Antigo Testamento – e em particular no livro do Gênesis ‐, por exemplo, é
3 Em princípio, esta preocupação teve seu desenvolvimento acadêmico mais acabado nos denominados países ʺcentraisʺ da Europa (estendendo‐se, posteriormente, para os Estados Unidos). Ou seja, naqueles países onde a ciência social como tal se gestou e se consolidou, originaram‐se diferentes tradições teóricas que, à luz de seus próprios paradigmas, se posicionavam como lugar central ‐ isto é, como espaço preferencial e legítimo do debate acadêmico científico. Não obstante, à luz de situações posteriores ‐ como os processos de descolonização na África e Ásia, que tiveram lugar em meados do século XX ‐, a inadequação dos esquemas tradicionais possibilitou que os progressos acadêmicos sofressem um descentramento que permitiu o posicionamento de estudos e investigações antes considerados periféricos (Slenes, 2010).
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atribuída aos três filhos de Noé ‐ Sem, Cam e Jafé – a descendência das raças branca, negra e amarela4. O conceito de raça, assim entendido, está vinculado à definição número 1 ‐ ʺcasta ou qualidade da origem ou linhagemʺ ‐, por meio da qual a comunidade dá forma a uma série de discursos de origem que permitem afirmar a identidade do coletivo, assumindo suas raízes comuns e suas diferenças em relação a outras comunidades. Mas a relação quantidade/qualidade também se manifesta de maneira explícita na definição número 7 ‐ ʺqualidade de algumas coisas, em relação a certas características que as definemʺ. Esta forma de identificar os atributos de raça de acordo com os critérios de valor (qualidades desejáveis versus qualidades indesejáveis), embora possa apelar ou não ao recurso de origem, nos permite definir a lógica de diferenciação tanto como lógica de hierarquização social, quanto como uma manifestação discursiva do estado de luta que caracteriza uma determinada ordem social ‐ definida, particularmente, pela distribuição de agentes posicionados ao redor de capitais e valores disputados e distribuídos de forma desigual.
Com base nesta discussão, podemos inferir que, para além dos significados acadêmico‐científicos, ʺraçaʺ é uma ideia cujo uso generalizado carrega uma série de conotações ‐ e efeitos de sentido que tem lugar na e pela experiência objetiva – que permitem pensar numa lógica mais ampla através da qual, a partir do ideológico, certos grupos pensam a si e aos outros, ou seja: outrificam (Segato, 2007). Será, portanto, necessário elucidar o significado desta categoria em relação a ordens de representação determinadas, que não apenas devem pôr em causa as condições que subjazem e dão suporte aos discursos vernáculos enquanto fundados na e para a prática5, mas que também deverão problematizar as categorias socioanalíticas construídas no interior do campo científico, posto que nenhum esquema de classificação pode ser esvaziado das lutas
4 “E tendo Noé quinhentos anos, gerou a Sem, a Cam e a Jafet”, Gênesis 5:32. A denominação “semita” evoca a origem hebraica enquanto descendência de Sem.
5 Por ʺcategorias da práticaʺ, na direção de Bourdieu, entendemos algo próximo ao que outros têm chamado categorias ʺnativasʺ, ʺfolclóricasʺ ou ʺcorrentesʺ: categorias da experiência social cotidiana, desenvolvidas pelos agentes sociais, e que se diferenciam das categorias da experiência distante, utilizadas pelos analistas sociais (Brubaker & Cooper, 2001).
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materiais e simbólicas que tem lugar entre aqueles que compartilham um ou outro modo de classificação6.
Figura 1. Classificação das raças utilizadas no Censo dos EUA de 2010, anexado às ʺNormas para a classificação dos dados federais sobre raça e etniaʺ emitidas pela OMB7.
6 A frequente invocação da autoridade científica ‐ que permite construir uma ordem de representações hegemônicas, na medida em que tem a possibilidade de ser reconhecida como fonte de legitimidade – transforma em realidade e em razão o recorte arbitrário que pretende impor (Bourdieu, 2006, p. 172). O ato de categorizar, em relação a seus efeitos performativos, quando é reconhecido enquanto autoridade passa a exercer poder por si mesmo e institui uma realidade: ʺo ato de magia social que consiste em produzir a existência da coisa nomeada, em fazê‐la existir no ato mesmo da enunciaçãoʺ.
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2. Representação, experiência e história Temos dito que uma vez rejeitada a ideia de ʺraçaʺ em sua
fundamentação genética ou essencialista, o conceito passa a ser entendido como construção social historicamente contingente, cujo uso deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas que, a partir do campo do imaginário e do simbólico, aludem a processos mais amplos de construção de identidades sociais. Como categoria histórica, é resultado das lutas passadas que conjugam no presente trajetórias e situações de exclusão prévias que, podendo atenuar‐se ou radicalizar‐se, atualizam a luta de classes em discursos culturalmente enraizados. Nas palavras de Segato (2007, p.23.)
“Raça não é necessariamente sinal de povo constituído, de grupo étnico, de comunidade outra, mas um traço, como rastros no corpo da marcha de uma história outrificadora que construiu ‘raça’ para construir ‘Europa’ como uma ideia epistêmica, econômica, tecnológica e jurídico‐moral, que distribui valor e significado em nosso mundo.” Por discurso, ao modo que a ele se refere Ernesto Laclau, não
devemos entender algo essencialmente restrito aos âmbitos da fala e da escrita, mas sim um complexo de elementos no qual as relações passam a assumir um papel constitutivo que, longe de reduzir os significantes ao campo da retórica superficial, definem os discursos como manifestação de uma racionalidade particular (Laclau, 2010).
Enquanto categoria nativa, ou seja, como uma categoria utilizada pelos sujeitos e cujo significado será associado a seu mundo prático e efetivo, se trata de um termo disposicional, que designa o que Brubaker e Cooper, evocando a idéia de ʺsentido práticoʺ de Bourdieu, chamam de uma ʺsubjetividade situadaʺ, que se assume como auto‐afirmação ‐ cognitiva e emocional ‐ do sentido de quem somente é alguém em relação à própria localização social (Brubaker & Cooper, 7 Neste quadro pode‐se notar que a definição de raça ʺbrancaʺ não manifesta sinais de diversidade, enquanto que as raças ʺnão‐brancasʺ se desdobram em oito categorias diferentes. Fonte: [http://www.whitehouse.gov/omb/fedreg/1997standards.html ʺRevisions to the Standards for the Classification of Federal Data on Race and Ethnicityʺ.
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2001). Portanto, a noção de raça não apenas passa a ser entendida como uma categoria que se refere ao âmbito do que é dito, mas também ao âmbito do vivido como experiência, uma vez que, tal como evidenciado por Avtar Brah (2011), os discursos que repousam na estigmatização das diferenças são baseados em relações de opressão que moldam a experiência dos sujeitos, não apenas na relação com o grupo (enquanto definições de identidades coletivas aceitas intersubjetivamente), mas também consigo mesmos (em virtude da influência de esquemas subjetivos de apropriação do eu).
Em referência às condições objetivas que fazem possível a emergência destes significantes, a definição de classificações raciais ‐ cuja dinâmica pode ser pensada como um processo de racialização – traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econômicas, políticas e culturais de dada sociedade8. Neste sentido, podemos perceber uma dupla dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações ideológicas que, mediante a afirmação dos princípios objetivos no plano simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam as oposições estruturais no plano discursivo. Além disso, retomando as contribuições de Pierre Bourdieu (2006), a investigação dos critérios ʺobjetivosʺ ‐ marcadores de diferença suscetíveis de funcionar como indicadores de identidades sociais (cor, dialeto, gênero, língua, sotaque, práticas étnico‐religiosas, etc) ‐ deve levar em consideração que na prática social tais critérios são susceptíveis de se manifestar de duas maneiras: como objetos de representações mentais, ou seja, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento, onde os agentes investem seus interesses e seus pressupostos; e como representações objetais, de coisas (emblemas, bandeiras, imagens, etc.) ou atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica, que visam determinar a representação (mental) que os outros podem construir acerca dessas propriedades e de seus portadores. Características percebidas e apreciadas (e descritas pelos
8 Se tomamos como exemplo as sociedades escravistas, a segregação racial sustentada por discursos racistas pode ser entendida como reflexo da ideologia hegemônica que, por extensão, põe em manifesto as situações de conflito entre as posições diferenciais que, no político, no econômico e no cultural, caracterizam as posições dos ʺsenhores brancosʺ e dos ʺescravosʺ.
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analistas) funcionam como sinais, emblemas ou estigmas. E, tal como define Segato (2007): a raça passa a ser concebida como signo.
Do mesmo modo como pode se manifestar em discursos hegemônicos (como é o caso dos discursos que, a partir do Estado, foram orientados para definir a constituição de uma identidade nacional), as situações de desigualdade e marginalidade estrutural têm a capacidade de unificar coletivos que, embora heterogêneos em relação à raça, cor ou etnia, podem estabelecer laços de solidariedade em torno de um estado de necessidade – em suma, uma experiência comum – que os une (Brah, 2011; Segato, 2007). Dito isto, a raça pode surgir associada a outros marcadores de diferenças, adquirindo um sentido e uma relevância particular em função do contexto em que ocorrem, o que implica desafios e riscos tanto para a análise da constituição das identidades sociais como para a definição de estratégias políticas que tentam ser articuladas pelos grupos envolvidos9. 3. Crisol de representações
A partir do referido anteriormente é possível entrever que uma
análise das representações de raça na experiência latino‐americana que tomasse em conta o tratamento adequado das complexidades que ela supõe poderia resultar excessiva para os limites desse artigo. Mas, além das limitações evidentes e, a fim de gerar possibilidades interessantes de definição de questões ou nós problemáticos, tentarei identificar um
9 A raça pode associar‐se distintivamente a outros significantes, sob diferentes gramáticas (Segato, 2007). Entendidos como o cenário dos processos de construção da identidade coletiva, um conjunto de significantes tem a capacidade de consolidar um imaginário compartilhado por meio do qual é possível fortalecer um vínculo de equivalência que contribui para que se estabeleça a definição de uma comunidade imaginada. Assim, a partir de uma dinâmica de inclusão/exclusão baseada na afirmação e negação de elementos particulares que definem o todo, a adoção de significantes em uma cadeia de equivalências permite instituir o pertencimento de certos sujeitos ao interior de um grupo, definindo, por consequência, a exclusão de outros sujeitos que não compartilham de tal vínculo. A ideia de ponto nodal na teoria de Zizek permite pensar que estes significantes não designam algo positivamente, mas possibilitam, em termos performativos, a unidade do campo: a palavra enquanto palavra unifica um campo determinado constituindo sua identidade.
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conjunto de condicionamentos que podem ser considerados ao se abordar esse crisol de representações.
Embora os países latino‐americanos compartilhem uma série de experiências (suas conformações e desenvolvimentos são marcados de modo particular pela experiência colonial e pela relação de tensão constante com os centros de poder ocidentais), e tenham alcançado êxitos no que se refere à integração regional, devemos considerar de todo modo as diferenças que persistem entre eles, levando em conta:
• A trajetória e constituição dos Estados‐Nação (que define uma comunidade nacional em seus limites, em função da mobilização de um discurso hegemônico reconhecido como legítimo);
• As condições geopolíticas e econômicas que marcaram a relação com as potências coloniais (Espanha, Brasil e Portugal), com as potências imperialistas do século XIX (Inglaterra, França), as do século XX (Rússia e EUA) e as relações (por vezes conflitantes e contraditórias) entre os países da região;
• A presença e o impacto de povos originários ou indígenas (de composição e características variáveis, impossíveis de serem reduzidas a um mesmo perfil analítico);
• O impacto da escravidão (que constitui fator essencial da composição demográfica de países como Brasil e daqueles que compõe a região do Caribe);
• O fator imigratório (no passado e no presente), a diversidade dos grupos imigrantes em relação aos países de origem e destino, as variações no desenvolvimento demográfico e as formas dissimiles de assentamento e integração populacionais;
• As características dos assentamentos rurais, urbanos e das zonas de fronteira (onde a coesão ou os limites do nacional podem parecer difusos, parcial ou totalmente transformados e resignificados a partir de uma experiência marcada pelo entrecruzamento);
• O contexto social, econômico e político de cada Estado, etc. Estas variáveis ‐ que não se pretendem exaustivas, mas que
definem um escopo de análise suficientemente complexo para não ser subestimado – permitem pensar que um estudo das representações
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associadas à ideia de ʺraçaʺ deveria partir de uma problematização local ou regional, posto que os agregados nacionais ou supranacionais podem colocar problemas no momento de explicar sua diversidade interna. Na Argentina, por exemplo, as associações entre raça, cor e classe podem variar de acordo com a região em questão:
• na região metropolitana do corredor Córdoba‐Rosario‐Buenos Aires, onde a imigração européia (sobretudo de italianos e espanhóis) teve um impacto notável e onde a hierarquização social se manifesta na delimitação de áreas de exclusão específicas, como é o caso das ʺvilas miseriasʺ (eufemisticamente chamadas de ʺvilas de emergênciaʺ), o racial pode ceder ou articular‐se com uma leitura de classe que associa a cor ʺnegraʺ como estigma ou marcador de diferença visível para o indivíduo de classe mais baixa (marcadores que podem associar distinções negativas, inclusive, a grupos de imigrantes de países da própria região, como é o caso das comunidades peruanas e bolivianas); • em contraste com o caso anterior, no literal argentino a articulação ʺcor negraʺ ‐ “classe baixa” perde força devido à presença de descendentes europeus em situação de pobreza; • nas regiões com presença de povos originários a discussão sobre as identidades sociais incorpora com mais força o componente étnico10;
10 De acordo com os relatórios do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI), na Argentina existem 18 povos indígenas que contabilizam um número estimado de 600.329 pessoas que se reconhecem pertencentes e/ou descendentes de primeira geração. A maioria da população se encontra na Região Noroeste (NOA), em 13 aldeias (Atacama, Ava Guarani, Chorote, Chulupi, Diaguita / Diaguita Calchaquí, Kolla, Omaguaca, Wichí, Quechua, Tapieté, Chané e Maimará), e concentram‐se nas províncias de Salta e Jujuy, seguindo a costa Nordeste (NEA‐Litoral) com 6 aldeias (Chulupi, Mbya Guaraní, Mocovi, Pilagá, Toba e Wichí) e nas províncias de Chaco, Formosa e Santa Fé; na região da Patagônia, com 4 aldeias (Tehuelche, Ona, Rankulche e Mapuche), concentram‐se nas províncias de Chubut, Santa Cruz e Tierra del Fuego; e na Região Central, com 5 aldeias (Guarani, Comechingón, Huarpe Sanavirón e Tupi Guarani) concentram‐se na Cidade de Buenos Aires e na Grande Buenos Aires.
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• menção à parte constitui o caso da herança africana: embora haja destaque para alguns grupos de afrodescendentes ‐ atualmente entre 12.000 e 15.000 descendentes de imigrantes de Cabo Verde residem em Ensenada, Dock Sud, San Nicolas e Rosário ‐, a invisibilidade do componente afro na cultura argentina11 contrasta com a realidade de países vizinhos, como o caso do Uruguai ou, particularmente, do Brasil. Estas assertivas evidenciam contextos distintos dentro de um
mesmo país. Embora seja possível e necessário realizar análises que tomem o Estado como unidade analítica privilegiada (especialmente quando se trata da análise de políticas e instituições formais), uma observação regionalizada pode possibilitar contextualizações mais precisas que permitam identificar as diferentes gramáticas (dimensionando elementos que não necessariamente estejam em conformidade com os parâmetros de formalização estatais). Estas considerações nos permitem argumentar a favor dos estudos comparativos (seja entre regiões de um mesmo país, entre países ou regiões supranacionais, seja entre as experiências de grupos específicos em cada um desses contextos), uma vez que a possibilidade de realizar uma reflexão abrangente das experiências latino‐americanas dependerá necessariamente da articulação de estudos dessa natureza.
Para concluir, nos interessa destacar que representações assumidas como semelhantes, como é o caso das ideias de ʺcrisol de razasʺ (Argentina), ʺmelting potʺ (EUA), ʺcadinho de raçasʺ ou ʺfábula das três raçasʺ (como se costuma fazer referência no Brasil), longe de querer representar fenômenos idênticos devem ser interpretadas à luz de suas diferenças, uma vez que, com frequência, essas manifestações – enquanto produções associadas a uma lógica discursiva hegemônica – recorrem a recursos homogeneizadores que, colocando o foco na integração das diversidades como componentes de uma identidade nacional única, permitem, em verdade, sustentar definições 11 No século XIX, a presença afroamericana era reconhecida e abertamente estigmatizada, ilustração disso encontramos na obra de Martín Fierro (livro emblemático da literatura argentina): Dos brancos fez Deus /dos mulatos, São Pedro/ dos negros fez o diabo/ para brasa do inferno (Capítulo 7).
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hierarquizadas na medida em que fazem desaparecer as visões opostas que muitos coletivos assumem como suas.
De todo modo, merecem atenção aquelas manifestações discursivas que, insistentemente, reproduzem estereótipos estigmatizantes, como no caso dos discursos publicitários ‐ que, fortalecidos por um sistema de produtos e serviços transnacionalizados, interpelam a um público de consumidores potenciais fomentando valores de consumo assumidos como globais. Conforme defende Segato (2007), qualquer análise deve procurar estabelecer uma crítica a um ʺmapa multicultural limitado e esquemático que projeta uma diversidade fixa no tempo, reificada em seus conteúdos e despojada das dialéticas que conferem historicidade, mobilidade e enraizamento local, regional e nacionalʺ. 4. À guisa de conclusão
A multiplicidade de contextos de uso da ideia de ʺraçaʺ como
termo classificatório pode suscitar confusões ou resultar, em alguma medida, bastante indeterminado. Mas é necessário considerar que esta indeterminação, ao invés de simplesmente aludir a uma forma de pobreza semântica, pode representar o resultado de uma lógica de significação específica que deve ser analisada em relação a contextos discursivos particulares.
Retomando aquela categorização impossível desenvolvida por Borges, podemos nos questionar (novamente ao modo de Foucault) acerca das condições a partir das quais era e é possível demarcar identidades fundadas na ʺraçaʺ, levando em consideração critérios de certeza que permitem assumir tais taxonomias ou gramáticas como algo pensável (susceptível de ser administrado e delimitado em campos de conhecimento específicos). Assumindo sua contingência, o questionamento acerca de um regime de representação exigirá determinar quais são as condições históricas que fizeram emergir o conceito enquanto definindo uma ordem, já que ele impõe, sob a forma de um discurso hegemônico, uma autoridade semântica capaz de tornar possível vislumbrar a instituição de uma diferença social cristalizada em situações de exclusão, instituição esta que encontra fundamento
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numa rede de relações que se estabelecem em um campo social estruturado e hierarquizado.
A análise discursiva que se articula com o estudo das práticas, problematiza, a partir do real, a representação do real (ou a luta pelas representações que buscam definir o real), ou seja: as lutas pelo monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer, de impor a visão legítima das divisões do mundo social (Bourdieu, 2006).
O estudo da diversidade de experiências pode enriquecer a integração real de nossos povos. Tal e como se refere Segato: ʺAfirmar a diferença das culturas em um sentido profundo é afirmar a possibilidade de que outros valores e outros fins orientem a convivência humana.ʺ Bibliografia BOURDIEU, Pierre. La identidad y la representación: elementos para una reflexión crítica de la idea de región. Ecuador Debate, nº 67 , 165‐184, 2006. BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora. Identidades en cuestión. Madrid: Traficantes de Sueños, 2011. BRUBAKER, Roger, & Cooper, Frederick.. Más allá de la identidad. Apuntes de investigación del CECYP, nº7 , 30‐67, 2001. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1995. LACLAU, Ernesto. La razón populista. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2010. SEGATO, Rita L. La Nación y sus Otros. Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. SLENES, Robert. A Importância da África para as Ciências Humanas. Historia Social, nº19, 2010.
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Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira
Valter Roberto Silvério1
“O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele”. (Frantz Fanon)
1. Introdução
O argumento desenvolvido no presente texto é de que o
deslocamento na forma como a sociedade brasileira se autorrepresentava é decorrente do processo de luta política pela (res)significação/deslocamento do lugar do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva. Com base nas conquistas do movimento negro é possível destacar alguns aspectos que permitem sustentar essa linha de raciocínio, a saber: 1) o tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para uma mudança significativa nos conteúdos curriculares nacionais, ao prescrever a obrigatoriedade de uma educação que possibilite a construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena. E, finalmente, a interação entre as mudanças internas e o papel que o Brasil passou a representar transnacionalmente nos últimos anos, não exclusivamente, mas em especial para os países da comunidade de língua portuguesa do continente africano.
Uma das preocupações centrais de Fanon foi demonstrar os efeitos do colonialismo sobre o colonizado, buscando entender as
1 Professor Associado do Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenador em exercício do Núcleo de Estudos Afro‐Brasileiros da mesma universidade.
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implicações para o desenvolvimento nacional depois do sucesso total da luta anti‐colonial. Neste sentido, fez um conjunto de comentários acerca da natureza do racismo em 1956. Três de suas observações têm sido mais amplamente articuladas recentemente. Na primeira, Fanon argumentou que racismo não é um fenômeno estático, mas sim constantemente renovado e transformado. No segundo comentário, observa que o racismo primitivo se afirmou no terreno da biologia correspondendo a uma fase do colonialismo, pois estes argumentos tinham sido desacreditados pelas consequências do fascismo na Alemanha. Finalmente, afirmou que racismo foi um aspecto central da dominação colonial, o qual, em conjunto com outros mecanismos, intencionava transformar a população colonizada em objetos usados para os propósitos do colonizador (Fanon, 1970: 41‐54).
Na perspectiva de Fanon, o racismo primitivo tem sido substituído por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser humano individual, mas uma certa “forma de existência” e que racismo é somente um elemento de uma vasta e sistematizada totalidade de opressão de um povo (1970: 43). Tal sugestão tem inspirado um conjunto de estudos nas sociedades com passado colonial ou sociedades racialmente estruturadas de acordo com Hall (Hall, 1980).
Esta substituição de um racismo primitivo (biológico) por um racismo cultural foi retida e tem sido fundamental para a análise dos desdobramentos da formação racial nos Estados Unidos, por exemplo, no período pós‐movimento dos direitos civis, na Europa, especialmente na Inglaterra, na definição do “New Racism”.
A palavra racismo deriva da ideia de que raça determina cultura e, como consequência, afirma a superioridade racial de alguns povos em relação a outros. Na atualidade, este significado original do termo nem sempre fica evidente pelo uso diversificado da palavra. No entanto, o conceito de racialização2, que foi utilizado pela primeira vez
2 A ideia contemporânea de “racialização” ou “formação de raça” se baseia no argumento de que a raça é uma construção social e categoria não universal ou essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político. O conceito de racialização refere‐se aos casos em que as relações sociais entre as
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por Frantz Fanon na discussão sobre as dificuldades enfrentadas pelos intelectuais africanos quando confrontados com os desafios da construção de uma “nova” cultura no pós‐colonialismo, pode nos auxiliar a compreender os novos sentidos do termo raça (Fanon, 1967: 170‐1). Para Banton, racialização está relacionada ao caminho através do qual as teorias científicas construíram tipologias raciais que foram utilizadas para categorizar populações (Banton, 1977: 18). Reeves distinguiu entre racialização “ideológica” e racialização “prática” usando a primeira em referência ao discurso sobre a raça e a última para se referir à formação de “grupos raciais” (Reeves, 1983: 173‐6).
O conceito de racialização, em Miles, focaliza o processo de atribuição de significados a características somáticas, isto é, um processo dialético de significação. Ao imputar uma real ou alegada característica biológica como meio de definir o Outro, o Eu se define pelo mesmo critério (Miles, 1989: 73‐7).
Para Webster, nenhuma das concepções sociológicas correntes de racialização identifica ou desafia seu principal elemento que é a afirmação de que raça é uma realidade social ou política. Assim, para Webster, o aspecto científico social da racialização incorpora uma organização de estudos das relações sociais passadas e presentes, em torno das classificações raciais que são apresentadas como reais e, então, justificadas como um objeto de estudo em termos de sua realidade. Racialização é, por isso, classificação racial construída com características de autoperpetuação (Webster, 1992: 26).
Omi e Winant usam o conceito de racialização para realçar a extensão do significado de raça em relações, práticas sociais ou grupais não classificadas previamente como raciais. Deste modo, racialização é um processo lógico‐ideal, uma especificidade histórica (Omi e Winant, 1986: 64; Winant, 1996: 59). Para Winant, o exemplo deste processo nos Estados Unidos foi a consolidação da categoria black para os africanos que anteriormente se identificavam ou eram identificados como Mande, Akan, Ovimbundu ou Ibo, paralelamente à evolução do termo white como uma forma crucial de autoidentidade para os europeus que se
pessoas foram estruturadas pela significação de características biológicas humanas, de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas.
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autodenominavam, inicialmente, como cristãos, ingleses e livres (Winant, 1996: 59).
Pouca concordância há nestes vários usos do termo, entretanto, é possível identificar ao menos três sentidos distintos em que o conceito de racialização pode ser apreendido: em um primeiro uso, o conceito aparece com referência a um processo representacional através do qual o significado social é atribuído a certas características biológicas humanas (usualmente fenotípicas) que se constituem na base, a partir da qual aquelas pessoas que possuem tais características são designadas como uma coletividade distinta. O segundo uso do conceito se refere àquelas práticas científicas e político‐institucionais que perpetuam a competição entre raças e ou etnias. Por último a racialização aparece como um processo lógico‐ideal constitutivo da própria modernidade.
Nos dois primeiros usos do conceito, aparentemente, a racialização é uma característica erradicável das sociedades humanas, mas em seu último uso ela aparece como um processo que está nas origens da cultura ocidental moderna. As variações do conceito estão associadas ao modo através do qual os autores concebem raça.
A emergência e utilização da idéia de “raça” é uma fase histórica central da racialização, em termos de periodização, embora não seja seu solo de origem. De qualquer forma, desde o século XVIII, a população mundial tem sido classificada no pensamento europeu em “raças”. Miles usa o conceito de racialização para se referir ao processo dialético pelo qual significado é atribuido a características biológicas particulares dos seres humanos, resultando na possível alocação de indivíduos em categorias gerais de pessoas as quais reproduzem a si mesmas biologicamente. Ela é, portanto, um processo ideológico.
De outra perspectiva, Webster está preocupado em identificar e refutar o que ele chama de “teoria racial geral”. Segundo ele, há mais de dois séculos, os estudos sociais e as políticas públicas estão dominadas por esta teoria nos Estados Unidos. Focando menos os grupos ou pessoas e seus motivos políticos, a origem racial ou os atributos raciais, as definições de termos, as premissas e as implicações lógicas dos argumentos científicos presentes no debate, Webster se propõe a refutar a afirmação básica de que raça tem sido uma força formativa e propulsora da sociedade norte‐americana (Webster, 1992: 2).
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Winant, de uma outra perspectiva, argumenta que mais importante do que negar o estatuto científico da idéia e do conceito de raça é focalizar a continuidade de sua significância e as mudanças no seu significado. Neste sentido, este autor procura criticar quatro tendências presentes na discussão contemporânea em torno do significado da raça: a primeira tendência tenta demonstrar o caráter ilusório da natureza da raça; a segunda busca a transcendência da raça; a terceira assegura a morte do conceito de raça e a última simplesmente substitui a categoria raça por categorias supostamente mais objetivas, como etnicidade, nacionalidade ou classe. Para Winant, todas estas iniciativas são equivocadas e intelectualmente desonestas por considerarem raça uma construção ideológica ou uma condição objetiva (Winant, 1996: 14).
Winant observa que mesmo os autores considerados do mainstream (corrente principal) teorizam raça em termos de sua exiguidade e flexibilidade e de seu caráter contingente. Isto é, mesmo aqueles pensadores que inquestionavelmente rejeitam a teoria racial em seu formato biológico, não conseguem escapar de certo tipo de objetivismo. Daí, o surgimento de uma explicação modal nos escritos sobre raça:
“…as circunstâncias sociopolíticas mudam através do tempo histórico, os grupos racialmente definidos se adaptam ou falham em se adaptarem às mudanças, adquirem mobilidade ou permanecem na pobreza. O problema é que nesta lógica não há espaço para a (re) conceitualização da identidade grupal a partir das constantes alterações de parâmetros através dos quais raça é pensada, interesses de grupos são subscritos, status são atribuídos, agências são criadas e papéis sociais são desempenhados” (Winant, 1996: 17). Omi e Winant, afirmam que, nas últimas décadas, nós temos
testemunhado através do espectro político, a tentativa na vida institucional de, por um lado, definir um significado apropriado para raça e, por outro lado, estabelecer identidades raciais coerentes baseadas em tais significados. Na visão destes autores, estes objetivos foram e continuam a ser impossíveis, principalmente, porque raça é
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preeminentemente uma construção social que está inerentemente sujeita à contestação por seu significado intrinsicamente instável.
Assim, eles propõem que, no interior da perspectiva de uma formação racial, raça deve ser entendida como um complexo de significados sociais fluídos, instáveis e “descentrados”, constantemente transformados pelo conflito político (Omi e Winant, 1986).
Deste modo, a raça modela tanto a psique e os relacionamentos entre indivíduos de “cores” diferentes quanto fornece um componente irredutível das identidades coletivas e da estrutura social. Assim, é possível interpretar o significado de raça não em termos de definição, mas em termos de processos de formação racial. Entre os elementos principais destes processos está a construção de identidades raciais e os significados que Winant chama de racialização (Winant, 1996: 58‐59).
O argumento básico é que na sociedade contemporânea existe uma amplificação do conflito racial em termos globais. Sem assumir a existência de qualquer uniformidade neste rápido aumento de tensão e forte consciência em matéria racial, Winant está interessado em focar a interação entre estrutura social e significação, levando em consideração a grande variação entre ordens raciais locais. Para Winant, a dinâmica da significação racial é sempre relacional. Esta afirmação o diferencia de Miles, para quem um significado sobre o Outro é, aprioristicamente construído e, no momento posterior, incorporado pelo próprio Outro. Da mesma forma, o diferencia de Webster para quem o significado de raça é uma construção científica e política.
As dimensões globais da formação racial podem ser mais facilmente observadas através de fenômenos tais como o surgimento da “diáspora” negra, a criação de comunidades “pan‐étnicas”, formadas por latinos e asiáticos nos países do Reino Unido e nos Estados Unidos, os quais evidenciam uma derrubada de fronteiras tanto na Europa quanto na América do Norte. Tudo parece estar se hibridizando, se transculturando e se racializando nos grupos previamente nacionais, culturas e identidades. Em razão destas transformações, a comparação das ordens política e social local, baseadas na raça, se torna fundamental. Similarmente, pela primeira vez nós começamos a pensar nas variações na identidade racial, não como desviantes de uma norma supostamente modal (imperialista), mas como parte flexível de um
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contexto e repertório específico. Finalmente, a dissolução da transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, a crescente racialização dos brancos na Europa e nos Estados Unidos devem ser também reconhecidas como procedentes da crescente dimensão globalizada da raça (Winant, 1996: 118).
Desta forma, se raça não é algo natural ou inato ou uma ilusão, importa saber as razões e condições nas quais o discurso sobre raça é empregado na tentativa de rotular, constituir, excluir ou incluir subalternamente coletividades sociais. Segundo Winant, na perspectiva da formação racial, este percurso pode ser trilhado a partir de três determinações que devem ser incorporadas teoricamente ao conceito de raça, de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal. Com a introdução dessas determinações, o conceito teórico de raça seria removido definitivamente do reino biológico para ser alocado no reino social.
A dimensão política se refere às novas relações que surgiram, principalmente, onde alguns poderes contra‐hegemônicos e/ou pós‐coloniais estão presentes, propiciando a proliferação dos significados e das articulações políticas com base na raça. Três aspectos se destacam nesta dimensão: 1) a insuficiência do simples dualismo contido na ideia da “Europa e seus Outros”, captada pelo debate da ampliação e amplificação da subjetividade e identidade pós‐colonial, 2) a possibilidade de perpetuar a dominação racial sem qualquer referência explícita à raça por meio de significados raciais codificados subtextualmente ou da simples negação de sua continuidade da significação, 3) a possibilidade de resistir inteiramente, por novos caminhos, à dominação racial, particularmente pela limitação do alcance e penetração do sistema político na vida cotidiana, pela geração de novas identidades, novas coletividades, novas comunidades (imaginadas), relativamente menos permeáveis ao sistema hegemônico (Winant, 1996: 19).
A dimensão global comparativa é aquela referente ao contexto globalizante no qual raça opera. Isto é, a geografia racial se tornou mais complexa, tanto em termos do seu alcance imperial, colonial e migratório, quanto pela globalização do espaço racial que se torna
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acessível a um novo tipo de análise comparativa. Na perspectiva de Winant, chegamos a um ponto em que os ex‐sujeitos (neo)coloniais, agora redefinidos como “imigrantes”, desafiam o status dos grupos metropolitanos majoritários (os brancos, os europeus, os “americanos” ou “franceses” etc.). Ao mesmo tempo, surgem fenômenos tais como a diáspora negra, a criação de uma comunidade latina e de uma comunidade asiática “pan‐étnica” (no Reino Unido e nos Estados Unidos). Paralelamente, o fechamento de fronteiras na Europa e na América do Norte indica prévia racialização de políticas nacionais, culturas e identidades. O exemplo mais visível é a cultura popular que mundializa a consciência racial quase instantaneamente como faz o reggae, rap, samba e vários outros estilos pop africanos que transitam velozmente de um continente para outro (Winant, 1996: 19‐20).
Para este autor, esta conscientização não é mera reação ou simples negação do domínio teórico‐cultural “Ocidental”. Noções como consciência diaspórica ou epistemologias racialmente informadas ganham mais atenção como um esforço para expressar a globalização contemporânea do espaço racial e apontam para a construção de novas identidades raciais ou para a dinâmica da “panetnicidade”, agora, global. A dissolução da transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, isto é, a avançada racialização dos brancos na Europa e nos Estados Unidos deve também ser reconhecida como conduzindo a uma dimensão globalizada crescente da raça. Dito de outra forma, a “brancura” se torna uma matéria de ansiedade e preocupação (Winant, 1996: 20).
Quanto à dimensão histórico‐temporal, Winant observa que muitos dos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos, têm feito esforço para explicar o “Ocidente” ou o tempo colonial como um vasto projeto de demarcação das “diferenças” humanas ou mais globalmente, argumentando sobre a formação parcial de identidades coletivas, em termos de “Outros” externalizados como lembra Todorov (Todorov, 1985).
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Ao criticar o polêmico trabalho de Wilson3, Winant observa que a análise ali contida demonstra não a existência de uma subclasse em uma sociedade em que a significância da raça está em declínio, mas a continuidade da significância do racismo institucional ou o chamado “metaracismo”, como lembra Kovel (Kovel, 1984).
A justificativa sociopolítica e legal oferecida para uma política supostamente neutra do ponto de vista racial é uma reinterpretação conservadora e individualista das medidas igualitárias propostas pelo movimento dos direitos civis dos anos 60. Esta é a forma de racismo apropriada para o atual momento histórico, no qual o estado não organiza e força a supremacia branca, mas se esconde atrás de uma política oficial ‐ ou de fachada – de neutralidade racial. Racismo, no presente, toma a forma de supremacia branca ou metaracismo que tem consequências de classe.
Brasil, África do Sul e Estados Unidos são países em que a forma de colonização condicionou a estrutura da formação do Estado e da sociedade civil, bem como as inter‐relações entre estas duas esferas da vida social, especificamente, no tratamento da questão racial. Em que pese às diferenças em relação ao período no qual ocorreram os processos de conquista, colonização e independência, estes Estados foram marcados por formas de dominação racial e, atualmente em proporções diferenciadas e variáveis, comportam uma dinâmica em que a estrutura social é racialmente organizada o que, aparentemente, tem impedido a possibilidade do pleno exercício dos direitos fundamentais de cidadania a todos.
Marx observa que, “nos três casos, a ordem racial certamente refletiu e acelerou o desenvolvimento econômico, mas de forma complexa. O apartheid e Jim Crow diluíram a concorrência entre os brancos que ameaçava a estabilidade e o crescimento, embora o crescimento e a concorrência não tenham levado à aplicação de tais políticas no Brasil. O conflito de classe, real ou potencial, nos três casos, tinha de ser resolvido para assegurar a estabilidade, exigência mais
3 The Declining Significance of Race: Blacks and Changing American Institutions, University of Chicago Press, 1980.
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fundamental, tanto para o desenvolvimento econômico, como para a consolidação do estado nação” (Marx, 1996: 18‐19).
É na reconciliação entre ingleses e africânderes, após a guerra do Bôeres, que se encontra os termos para a segregação dos negros, que se tornaria um fator central na construção do Estado sul‐africano. Como demonstra Marx, através da fala de um alto comissário britânico sir Alfred Milner, em 1897:
“(…) para vencer os holandeses […] basta sacrificar absolutamente ‘os negros’ e o jogo fica fácil […] governo autônomo […] e lealdade colonial […] [exigiriam] o abandono das raças negras” (Lemay, 1965: 11‐2; citado em Marx, 1996: 20). O caso norte‐americano tem muita similaridade com o sul‐
africano, embora o conflito, na consolidação do Estado Nacional, não tenha sido entre dois fragmentos de grupos europeus, mas entre grupos regionais. A população indígena dos Estados Unidos foi quase totalmente exterminada, mas os escravos continuaram sendo numerosos e, portanto, o núcleo da discórdia regional. Um fato relevante indicativo da tensão regional foi a decisão denominada Dred Scott, de 1857, que considerou que as garantias formais do direito à igualdade e à cidadania eram inaplicáveis aos negros (Foner, 1970: 292‐3; Marx, 1996: 21).
Depois da Guerra Civil americana, a nação adotou três emendas constitucionais: a 13ª, em 1865, extinguia a escravidão; a 14ª, em 1868, tornava todos os negros cidadãos dos Estados Unidos e proibia leis estaduais que negassem igual proteção aos negros e a 15ª, em 1870, proibindo a discriminação racial em votações. No fundamental, a 14ª e a 15ª emendas não eram cumpridas em todo país, mas apresentavam maior visibilidade no sul.
Esses Estados geraram categorizações raciais distintas. Assim, nos Estados Unidos e na África do Sul, onde o preconceito enfatiza a origem, a identidade do indivíduo ou do grupo será construída com base na origem racial e ou étnica fundada no princípio de hipodescendência. No Brasil, a ênfase recai sobre marca ou na cor, combinando a miscigenação e a situação sociocultural dos indivíduos.
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Essa distinção implicou no desenvolvimento de dois tipos de racismo, o diferencialista e o assimilacionista.
Munanga, por exemplo, observa que o racismo diferencialista engendrou o antirracismo diferencialista e o racismo universalista (assimilacionista) engendrou o antirracismo universalista. “O anti‐racismo universalista busca a integração na sociedade nacional, baseando‐se nos valores universais da natureza humana, sem discriminação de cor, raça, sexo, cultura, religião, classe social, etc. É o chamado integracionismo fundamentado no indivíduo “universal”. De modo oposto, “o antirracismo diferencialista busca a construção de uma sociedade igualitária baseada no respeito das diferenças tidas como valores positivos e como riqueza da humanidade. Os quais pressupõem a construção de sociedades plurirraciais e pluriculturais; defende a coexistência no mesmo espaço geopolítico no mesmo pé de igualdade de direitos, de comunidades e culturas diversas” (Munanga, 1999: 115‐6).
No Brasil, de acordo com Guimarães, é somente a partir dos anos 1980 que o movimento negro passou a assumir um discurso racialista e multicultural. Assim, tanto o alvo da Frente Negra Brasileira (FNB), na década de 30, isto é, a luta contra a segregação e a discriminação racial, quanto o alvo do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 50, isto é, a luta pela recuperação da autoestima negra, passam a ser reinterpretadas pelo ideário multiculturalista em que se revaloriza a herança africana, procurando desvencilhá‐la das adaptações e dos sincretismos com a cultura nacional brasileira. O autor chama atenção para dois aspectos fundamentais: primeiro, é a neutralidade da agenda ou programa delineado nesta mobilização negra, permitindo a aceitação das mais diferentes tendências ideológicas do movimento negro por meio de um discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de uma identidade racial negra. Os três pontos básicos da agenda são:
“(a) recuperação da autoestima negra através da modificação de valores estéticos, da reapropriação de valores culturais, da recuperação de seu papel na história nacional, do avivamento do orgulho racial e cultural; (b) combate à discriminação racial através da universalização da garantia dos direitos e das liberdades individuais, incluindo os negros, os mestiços e os pobres; (c) combate às desigualdades raciais através de
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políticas públicas é o discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de uma identidade racial negra (Guimarães, (1999: 115). O segundo aspecto observado por Guimarães está relacionado às
dificuldades encontradas pelos grupos e instituições antirracistas para a mobilização coletiva dos negros. Para esse autor, estas dificuldades têm recebido dois tipos de diagnósticos: ou se trata o movimento negro como um movimento de classe média, distante do povo negro; ou se trata o movimento negro como presa ou vítima da ideologia. Ao discordar desses diagnósticos, Guimarães conclui que, diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul onde a identidade racial tem um efeito cumulativo natural, isto é, não se sobrepõe à família, no Brasil, a identidade racial continuará sua formação contornando as solidariedades familiares ou comunitárias. Em outros termos, se nos Estados Unidos e África do Sul, a identidade racial ou étnica serviu para a mobilização política, no Brasil tem sido útil, primordialmente, para reforçar a auto‐estima negra, embora não encontre a necessária ressonância no plano da mobilização política (Guimarães, 1999: 111).
Munanga observa que as dificuldades da mobilização da identidade racial negra no Brasil estariam relacionadas à categoria mestiço. Assim, se é verdade que a mestiçagem não conseguiu resolver os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de desigualdades raciais resultantes dessa hierarquização, também, é verdade que não constituem uma categoria estanque pelo fato de ser de cor e não de origem; portanto, dependendo do grau de mestiçagem e da condição socioeconômica, eles podem atravessar a linha de cor e reclassificar‐se no grupo branco (Munanga, 1999: 121).
Para esse autor, a proposta dos movimentos negros no Brasil esbarra na mestiçagem cultural, pois o espaço do jogo de todas as identidades não é nitidamente delimitado. Neste sentido, Munanga reconhece tanto os esforços dos movimentos negros na redefinição e a caminho de uma consciência política e uma identidade étnica mobilizadoras, contrariando a democracia racial, quanto à pequena efetividade das propostas racialistas que nascem do antirracismo diferencialista e sustentam as propostas multiculturalistas em um país de ideologia uniculturalista como o nosso (Munanga, 1999: 125‐126).
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Quanto aos Estados Unidos, o antirracismo (racialista) se depara com um discurso semelhante ao discurso sobre a raça existente no Brasil que, em poucas palavras, nega a persistência do racismo. Ao fazer isso, este discurso sinaliza para o fim das políticas de ação afirmativa, ao mesmo tempo, que afirma que as políticas públicas para serem antirracistas precisam ser universalista e “color blind” (Guimarães, 1999: 112). Em outros termos, o antirracismo racialista norte‐americano convive, atualmente, com o nascimento de um discurso universalista que tenta encobrir e ou esconder as desigualdades que persistem entre brancos e não‐brancos. Deste modo, ao discutir uma agenda integrada do antirracismo, Guimarães acredita que o fato do povo sul‐africano (multiétnico e multirracial) ter optado pela construção de um Estado não‐racialista pode nos ensinar alguma coisa. No momento de reconstrução da nação e do Estado, “a África do Sul não pode, por um lado, definir‐se como um prolongamento da Europa, como o Brasil e Estados Unidos fizeram, sob pena de alienar a grande maioria da população africana; mas não poderá também definir‐se segundo as tradições africanas mais provincianas, ignorando mais de três séculos de contato cultural” (Guimarães, 1999: 114). Assim, “é a África do Sul que poderá nos indicar um modelo de nação multicultural, multi‐étnica e não‐racialista para a agenda anti‐racialista no Brasil e nos Estados Unidos” (Guimarães, 1999: 114).
A agenda antirracista deve ser pensada em três dimensões: o Estado, a nação, os indivíduos. No plano do Estado, além de todas as garantias democráticas que já constam nas cartas constitucionais dos três países, o princípio do não‐racialismo não pode impedir a elaboração e execução de legislações especiais visando combater formas duradouras de opressão social. No plano da nação, para Guimarães, o desafio está na reconstrução das nacionalidades em bases pluriculturais e pluriétnicas. Os ideais de assimilação e de integração do Estado‐Nação terão que ser substituídos pela integração ao nível do Estado (dos direitos) (Guimarães, 1999: 114). Isto, por sua vez, pode conduzir à superação da equação “do século XIX (um Estado= uma nação= uma raça= uma cultura)” por uma equação em que teremos: “um Estado= várias heranças culturais= várias raças= várias etnias. Não que não se possa desenvolver uma cultura cívica particular, mas tal cultura não
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pode significar a negação das diversas heranças e tradições culturais que formam a nação” (Guimarães, 1999: 114).
No plano individual e das identidades grupais, “o antirracismo deve visar os estigmas raciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e cor nos Estados Unidos e de etnia, na África do Sul)” (Guimarães, 1999: 114).
Convém retomar Mandani e lembrar que a forma de “tribalização” ocorrida durante o período colonial persistiu após a queda do apartheid, constituindo‐se em um dos grandes obstáculos à democratização do país. Isto é, para se tornar multicultural, a África do Sul, aparentemente, tem que “destribalizar” a sociedade civil, possibilitando uma convivência democrática plural e criando a possibilidade de uma cidadania equitativa. A distinção entre pluricultural e multicultural pode desvendar melhor o que está por trás da oposição não‐racialismo/racialismo. Uma sociedade pluralista (racial e etnicamente) universalizante ou uma sociedade com projetos raciais e étnicos particularizantes em disputa por posições nas diferentes esferas da vida social. A escolha, entre uma ou outra forma de sociedade, implica em caminhos distintos rumo à consolidação do processo democrático em qualquer dos países estudados. Mas, o que se pode ter certeza é que a racialização do mundo tornou‐se uma realidade global. 2. Desdobramentos contemporâneos na sociedade brasileira
Ao se observar o preâmbulo da Constituição Federal de 1988,
tem‐se a impressão de que a concepção de “democracia racial” permanece presente. No entanto, ela contém uma série de desencontros e sinonímias decorrentes da pouca precisão na forma de termos como, por exemplo, “preconceito”, “prática de racismo”, “diferença de tratamento” e “discriminação” (Santos, 2010).
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem‐estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
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proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” (Brasil, 1998, Preâmbulo; grifo nosso). A tensão entre a visão de que somos uma comunidade
imaginada homogênea, fraterna e harmônica está em contradição com o próprio texto constitucional, e pode ser explicada pela erosão paulatina do discurso da “democracia racial” e pela emergência de um “novo” discurso, em tese mais representativo, das aspirações populares em se ver representada em suas diferenças de origem étnico‐racial, isto é, uma comunidade que se imagina diversa culturalmente. Do ponto de vista institucional, a criação, no primeiro governo do Presidente Lula da SEPPIR4 e da SECAD5, sinalizaram para um avanço na compreensão do Estado em relação ao problema racial presente na sociedade brasileira e, também, em relação a possíveis caminhos para equacioná‐lo em resposta à pressão dos setores organizados da população negra.
Nesse sentido, ao se revisitar o argumento de Anderson (2008) de que a identidade nacional é uma “comunidade imaginada” em suas consequências, nem sempre analisadas em nosso país, é possível uma nova compreensão das mudanças sociais em curso, em especial no que diz respeito à diversidade étnico‐racial brasileira, como segue: a primeira é que as culturas nacionais são compostas não somente de instituições culturais, mas de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – uma maneira de construir significados que influenciam e organizam tanto nossas ações, quanto nossas concepções sobre nós mesmos; a segunda é que tais culturas nacionais constroem identidades ao produzirem significados sobre a “nação” com os quais podemos nos
4 A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada pelo governo federal no dia 21 de março de 2003, no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, objetiva o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro brasileiro e o estabelecimento de iniciativas contra as desigualdades raciais no país.
5 A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC), oficialmente criada em julho de 2004, reúne temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnico‐racial, temas antes distribuídos em outras secretarias. A criação da Secad marcou a valorização da diversidade da população brasileira, por meio da formulação de políticas públicas e sociais como instrumento de cidadania.
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identificar. Estes significados estão contidos nas histórias que são contadas sobre ela, nas memórias que conectam seu presente com seu passado, e nas imagens que são construídas a propósito delas [nações].
De acordo com Bhabha (2010: 11), “as nações, como narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e somente percebem inteiramente seus horizontes nos olhos da mente”. Daí a importância de nos perguntarmos: Como a narrativa da cultura nacional é contada?
Segundo Hall, cinco aspectos importantes se destacam, dentre muitos, para uma resposta compreensível à questão:
1) A narrativa da nação, contada e recontada nas histórias e literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular, oferece um conjunto de histórias, imagens, paisagens, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que sustentam, ou representam, as experiências, as tristezas compartilhadas, os triunfos e desastres que dão sentido à nação;
2) Há ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na atemporalidade. A identidade nacional é representada como primordial. O essencial do caráter nacional permanece imutável através de todas as vicissitudes da história;
3) “(...) a tradição inventada [significa] um conjunto de práticas, (...) de uma natureza simbólica ou ritual que procuram inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição que automaticamente implica a continuidade de um passado histórico adequado” (Hobsbawn & Ranger, 1983: 1);
4) O mito fundante é uma história que localiza a origem da nação, as pessoas e suas características nacionais como tão antigas que elas estão perdidas na névoa do tempo, não “real”, mas mítico;
5) A identidade nacional é também, muitas vezes, baseada simbolicamente na ideia de um povo ou “folk” puro, original.
Desse modo, uma cultura nacional funciona como uma fonte de significados culturais, como um foco de identificação e como um sistema de representação. Em seu famoso ensaio sobre o assunto, Renan (2010) nos diz que três coisas constituem o princípio da unidade da nação: a posse comum de um legado de memória (memórias do passado); o desejo de viver conjuntamente (o desejo de vida em
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comum); a vontade de perpetuar a herança que se recebeu em uma forma indivisível (a perpetuação da herança).
Thimothy Brenan nos lembra que a palavra nação refere‐se “tanto ao Estado nacional moderno quanto a algo mais antigo e nebuloso – a natio –, uma comunidade local, domicílio, família, condição de pertença” (Brennan, 2010: 66). As identidades nacionais representavam precisamente o resultado da junção destas duas metades da equação nacional – oferecendo tanto a filiação política ao Estado nacional, quanto a identificação com a cultura nacional: “tornar cultura e política congruentes” e favorecer “as culturas razoavelmente homogêneas, cada qual com seu próprio teto político” (Gellner, 1983: 43).
De acordo com Santos, a representação da mestiçagem6 encarnou nos brasileiros, por meio do ideal da democracia racial, o não reconhecimento da existência e, consequentemente, da relevância das raças na formação e na dinâmica social brasileira, estas entendidas como cordiais e assimilacionistas. Este não reconhecimento das raças resultou na dedução da inexistência do racismo, ou melhor, confiaram que o antirracialismo promoveria o antirracismo no país. Entretanto, sorrateiramente, as práticas racistas permaneceram (e permanecem), marginalizando, simbólica e materialmente, os negros (Santos, 2010). No entanto, com base na perspectiva de Winant se verifica, a partir da agência do movimento social negro, a possibilidade de analisar o caso brasileiro com base na incorporação das três determinações de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem 6 O conceito de mestiçagem é uma construção que só adquire sentido quando considerada em relação com seu par, a noção de raça. Ele nos conduz a um paradoxo básico da ideia de mestiçagem. Um mestiço se forma a partir de duas ou mais raças. Assim, o paradigma dominante das ciências biológicas afirma veementemente que não existem raças, que só existe uma raça humana. De acordo com esta concepção foi se convencionando a noção de populações humanas como um substituto heurístico do conceito obsoleto de raça, de modo que nos permite continuar usando a ideia de mestiçagem. Contudo, a palavra mestiçagem encontra sua maior difusão no sentido ideológico de caracterizar alguns grupos humanos que se autodefinem estrategicamente, frente a outros considerados “puros” ou homogêneos racialmente, como mestiços. Esta ideologia da mestiçagem é especialmente importante na America Latina que se vê mestiça em oposição aos Estados Unidos da América e a África do Sul (durante o regime do Apartheid); nações que se definem como segregadas e, em consequência, não mestiças (Barañano et al., 2007).
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verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal.
A nossa hipótese é de que o deslocamento na forma como a sociedade brasileira se autorrepresentava é decorrente do processo de luta política pela (res)significação/deslocamento do lugar do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva.
No plano político, o questionamento ao ideário da democracia racial e a demonstração empírica da desigualdade de tratamento de brancos e não‐brancos no mercado de trabalho têm provocado uma rediscussão em torno da forma e conteúdo da presença das culturas africanas na formação social brasileira. É possível destacar alguns aspectos que permitem sustentar essa linha de raciocínio, a saber: 1) o tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para uma mudança significativa nos conteúdos curriculares nacionais, ao prescrever a obrigatoriedade de uma educação que possibilite a construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena.
De acordo com Silva Jr., a Constituição de 1988 representa, também, um marco no tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade racial, como um dos reflexos da atuação política do movimento negro. Para o autor, alguns aspectos merecem destaque:
1) A reconsideração do papel da África na formação da nacionalidade brasileira;
2) O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira como fundamento constitucional do currículo escolar;
3) O direito constitucional à identidade étnica como fundamento do currículo escolar;
4) A cultura negra como base do processo civilizatório nacional e como um eixo estruturante do currículo escolar.
Uma leitura possível das diretrizes e de seu plano nacional de implementação, verifica que estas, em suas questões introdutórias, procuram oferecer uma resposta na área de educação à demanda da população afrodescendente por políticas de ação afirmativa, entendida
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tanto na dimensão reparatória quanto na dimensão do reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. “Trata, ele, [o parecer], de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, com o objetivo explicito de combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros” (Diretrizes, 2004: 6). Para tanto, de forma propositiva, as diretrizes recomendam a divulgação e produção de conhecimentos; a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico‐racial; a criação de condições, no ambiente escolar, para que professores e alunos interajam na construção de uma nação democrática; e sugerem a consolidação/obtenção de direitos que garantam a valorização de sua identidade. No que diz respeito às metas, as diretrizes estabelecem as seguintes:
1) o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, manifestarem seus pensamentos com autonomia, individual e coletiva, e expressarem visões próprias de mundo; 2) o direito dos negros cursarem cada um dos níveis de ensino das diferentes áreas de conhecimento, com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações sensíveis e capazes de conduzir à reeducação das relações entre diferentes grupos étnico‐raciais. Em consonância com o debate sobre políticas de reparação, de
reconhecimento e valorização da população negra e, também, com o artigo 205 da Constituição Federal de 1988, as diretrizes acentuam o papel do Estado em promover e incentivar políticas de reparações. Quanto à educação das relações étnico‐raciais, elas sugerem a necessidade de reeducá‐las. Assim, as diretrizes enfatizam que, para reeducar as relações étnico‐raciais, impõe‐se à educação aprendizagens entre negros e brancos, trocas de conhecimento, quebra de desconfianças, projetos conjuntos para a construção de uma sociedade justa, igual, equânime. Para tanto, impõe‐se a necessidade de rever e atualizar o papel da escola, onde a formação para um tipo de cidadania regulada tem se tensionado com a construção/preservação da identidade particular dos afrodescendentes.
Em relação à formação de professores, as diretrizes orientam no sentido de se desfazer a mentalidade racista e discriminadora secular;
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para a necessidade de superar o etnocentrismo europeu; para a desalienação dos processos pedagógicos; para a construção de projetos pedagógicos, e pedagogias que desvendem os mecanismos racistas e discriminatórios com o objetivo de reeducar as relações étnico‐raciais. Nesse sentido, elas arrolam algumas providências a serem tomadas pelos gestores dos sistemas de ensino e autoridades responsáveis pela política pública educacional:
1) Ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira;
2) A autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor os projetos pedagógicos, no cumprimento ao exigido pelo artigo 26 da Lei n. 9.394/1996, permite que eles se valham da colaboração das comunidades a que a escola serve, do apoio direto ou indireto de estudiosos e do movimento negro;
3) Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação pedagógica dos estabelecimentos de ensino e aos professores, com base no Parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares;
4) Caberá aos administradores dos sistemas de ensino e das mantenedoras prover as escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais didáticos, relativos à educação das relações étnico‐raciais e do ensino de história e cultura afro‐brasileira e africana, além de acompanhar os trabalhos desenvolvidos tanto na formação inicial como continuada de professores.
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De acordo com as diretrizes7, bem como o plano nacional de sua implementação, tais condições são necessárias, tanto para a (des)racialização de uma sociedade que se utiliza da desvalorização da cultura de matriz africana e dos aspectos físicos herdados pelos descendentes de africanos, quanto para o processo de construção da identidade negra no Brasil, de forma condizente com o legado histórico das culturas africanas no país.
A História Geral da África (HGA), desde a publicação do primeiro dos oito volumes, pela Unesco de Paris, passou a inspirar jovens descendentes de africanos em diferentes regiões do globo e, especialmente, no Brasil. As denúncias sobre discriminação e racismo e a demonstração pública do conteúdo de uma leitura recriada das culturas africanas na diáspora, por exemplo, por meio dos blocos afros tais como o Olodum e o Ilê Ayê, são aspectos fundamentais do processo da luta política para construção de uma identidade negra que tem revelado menos a erosão e mais a resignificação do mito da democracia racial.
A junção entre cultura e política é constitutiva do tipo de ação das denominadas, por seus próprios membros, entidades ou organizações negras. Assim, a reivindicação por educação surge em consonância com o legado das gerações anteriores de militantes da causa negra, mesmo antes do processo de redemocratização do Estado brasileiro. A questão, a saber, é a seguinte: Há algo novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? A resposta é sim. E a novidade é decorrente da centralidade que a política pública educacional passou a adquirir, para o movimento negro
7 O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐Brasileira e Africana é o resultado das solicitações advindas dos anseios regionais, consubstanciadas pelo documento Contribuições para a Implementação da Lei n. 10.639/2003: Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐Brasileira e Africana, fruto de seis encontros denominados Diálogos Regionais sobre a Implementação da Lei n. 10.639/03, do conjunto de ações que o MEC desenvolve, principalmente a partir do surgimento da Secad, em 2004, documentos e textos legais sobre o assunto. Cabe aqui registrar a participação estratégica do Setor de Educação da Unesco do Brasil, do movimento negro, além de intelectuais e ativistas da causa antirracista.
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contemporâneo, como lugar de disputa da articulação de dois tipos de demandas que se tenta equacionar em seu interior. A primeira, em relação à qualidade da educação formal que é vista tanto como um direito, quanto como a forma por excelência de mobilidade ocupacional e social. A segunda é a luta política por mais e melhor educação a qual continua tendo como exigência o resgate da contribuição das culturas africanas para a formação social brasileira.
Dessa forma, a obrigatoriedade, em todo o sistema de ensino, de conteúdos que proporcionem o conhecimento de história e cultura afro‐brasileira e africana, em toda a educação básica, por um lado, exige mudanças no conteúdo curricular de todos os cursos superiores do país e, por outro lado, é uma oportunidade de uma ressignificação do país e de sua história, levando‐se em conta a perspectiva daqueles considerados como o “outro”.
Nesse aspecto, a comparação com os Estados Unidos e com a África do Sul é inevitável quando se considera a globalização do espaço racial; não é mais possível o simples contraste entre preconceito de origem (EUA e África do Sul) e preconceito de marca (Brasil). Novas pesquisas poderão desvendar como os movimentos de luta de libertação no continente africano, o movimento dos direitos civis nos EUA, a derrocada do apartheid na África do Sul, impactaram nas lutas dos afro‐brasileiros a partir da percepção de que a diferenciação dos processos de colonização não impediu que o elemento africano fosse racializado nos diferentes contextos. Ao mesmo, tais movimentos geraram novas formas de solidariedade e uma consciência renovada em termos da dimensão global da discriminação racial e do racismo.
Quando se considera o papel que o Brasil tem desempenhado como potencial ator global, em especial, na última década, no diálogo sul‐sul e com atenção à relação com o continente africano, as expectativas da União Africana em relação à sexta região8 e os sentidos
8 O Protocolo de Emendas ao Ato Constitutivo da União Africana, adotado pela Sessão Extraordinária da Primeira Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo em Addis Abeba, Etiópia, em Janeiro de 2003, e em particular o artigo 3º (q), que convida a diáspora africana a participar como um importante componente na construção da União Africana. O protocolo insiste na ideia de que os descendentes de africanos, em especial os residentes no continente americano, formariam a sexta região do continente.
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da ação do movimento negro brasileiro no que diz respeito à diáspora, é possível pensar a seguinte questão: o que o discurso sobre a diáspora, efetivamente, pode articular?
O discurso sobre a diáspora articula, a partir do simbolismo e de representações que ele emana, expectativas, ações, resultados práticos e dimensões institucionais distintas, a saber:
1) a União Africana se caracteriza como uma confederação de Estados nacionais, na qual têm assento 53 chefes de Estado. De acordo com seu ato constitutivo, foi inspirada nos ideais que nortearam os fundadores da organização continental e gerações de pan‐africanistas em sua determinação de promover a unidade, a solidariedade, coesão e cooperação entre os povos da África e os Estados africanos; posteriormente, foram acrescentados no ato constitutivo todos os afrodescendentes dispersos pelo mundo;
2) a partir da influência das culturas africanas que participaram da formação social brasileira e da presença de um grande contingente de população negra, o Estado operacionaliza um discurso pelo qual molda atitudes, representações e políticas. Estas se assentam, sobretudo, na crença da ausência de racismo, na harmonia social brasileira e nas virtudes da brasilidade. A ideia de diáspora africana, portanto, pode ser pensada como um dos sustentáculos da política externa brasileira para construção do país como ator global e como o principal elo comercial e econômico com os países africanos, além de possibilitar um discurso intranacional em resposta a setores do movimento negro;
3) o movimento negro não pode mais ser lido como unitário, em termos de sua perspectiva de ação a partir do conceito de diáspora; em particular, na perspectiva de Brah (1996), que propõe a distinção entre o conceito teórico de diáspora e a experiência de diáspora. Com tal distinção, a autora sugere que este conceito seja apreendido como “genealogias” historicamente contingentes, no sentido de Foucault, ou seja, como um conjunto de tecnologias de pesquisa que constroem a história das trajetórias das diferentes diásporas e analisam seus relacionamentos através dos campos sociais, da subjetividade e
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da identidade. Para a autora, o conceito de diáspora oferece uma crítica aos discursos que fazem exame preconcebido de determinadas origens imutáveis, tendo em conta o desejo de voltar para casa, que não é o mesmo que voltar à “pátria”. A distinção é importante porque nem todas as diásporas mantêm uma ideologia de “retorno”; mais ainda, Brah (op. cit.) afirma que o subtexto “lar”, que compreende o conceito de diáspora, permite a análise da problemática da posição do sujeito “autóctone” e sua precária relação com os discursos “nativistas”.
Em relação aos negros brasileiros, se não encontramos uma
ideologia de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos dois discursos distintos: um que dilui a origem africana na brasilidade; outro, no qual a origem africana é discursivamente constitutiva da identidade, daí a utilização recente de expressões como afrodescendente e afro‐brasileiro. A impossibilidade de voltar para a casa da mãe África em ambos os discursos permite observar lógicas distintas no uso do conceito de diáspora: uma que contigencia e restringe a origem africana a uma dinâmica nacional; outra na qual aquela origem é utilizada como elemento de crítica da posição do sujeito negro na sua relação com a sociedade que, ao racializar sua pertença étnica, o hierarquiza, podendo ele, no entanto, ao recriar sua origem para além da fronteira nacional numa perspectiva diaspórica, denunciar a forma como a diferença é transformada em desigualdade social no Brasil, e em vários Estados nacionais latino‐americanos.
Do ponto de vista de uma nova agenda de pesquisa sobre o negro no Brasil a dimensão histórico‐temporal, proposta por Winant, pode nos reorientar para uma aproximação teórica aos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos em especial aqueles que têm feito esforços para explicar o “Ocidente” ou o tempo colonial como um vasto projeto de demarcação das “diferenças” humanas, ou mais globalmente, argumentando sobre a formação parcial de identidades coletivas, em termos de “Outros” externalizados.
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O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil
André Ricardo de Souza1 María Candelaria Sgró Ruata2
Maximiliano Campana3 1. Introdução
Este texto apresenta dados e reflexões sobre alguns aspectos do cristianismo no Brasil e na Argentina4. Em ambos os países os segmentos católicos e evangélicos se posicionam no espaço público, mediante manifestações organizadas e militância político‐partidária, tanto na defesa de seus interesses como de seus valores doutrinários. Tentam e, às vezes, conseguem pressionar os governos instituídos, sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas cristãos, bastante identificados com as igrejas, chegam inclusive a ocupar cargos executivos relevantes.
A questão da moral sexual ocupa lugar de destaque em termos de mobilização de militantes católicos e evangélicos, exercendo influência também sobre os processos eleitorais. O texto traça um panorama religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.
1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
2 Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC‐Argentina). Mestranda em Sociologia e Doutoranda em Estudos Sociais da América Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.
3 Advogado. Universidade Nacional de Córdoba. Doutorando em Direito e Ciências Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS.
4 Por opção metodológica, uma importante vertente cristã foi deixada de lado neste texto: o espiritismo kardecista. Tal exclusão, evidentemente sociológica, e não teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio cristão da caridade em significativas obras de assistência social e em função da centralidade do culto a Jesus Cristo em seus preceitos doutrinários. (Arribas, 2010; Souza, 2012). Ainda que seja a terceira maior religião no Brasil (2%), sua expressão política e demográfica na Argentina é quase nula.
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Para isso este trabalho se divide em duas grandes sessões. Na primeira, são apresentadas algumas dimensões e características particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de dados sobre variáveis religiosas na população, se pretende configurar um panorama geral que servirá para levantar alguns elementos comparativos. Na segunda sessão, por meio de exemplos, são levantados debates sobre políticas de sexualidade e reprodução, em ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos ao redor da busca de definições da moral sexual. 2. O campo religioso 2.1 A demografia religiosa no Brasil
A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros
países, têm se debruçado principalmente ao cristianismo, caracterizando‐se como uma “Sociologia do catolicismo em queda” (Pierucci, 2004:19), fenômeno que origina uma ainda modesta diversificação religiosa. Em 1940, os católicos representavam 96,2% no primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) considerou a questão religiosa. Esta cifra chegou em 2010, ano do último censo com dados disponíveis, a 64,6%. Por outro lado, os protestantes, tanto os missionários ou históricos como os pentecostais, formavam naquele primeiro censo 2,6%, passando a compor sete décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.
Os dados mostram que em 1970 os ‘sem religião’ dobraram de tamanho e na década posterior tiveram um notável crescimento de quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento evangélico (73%), devido a uma explosão Pentecostal, provocada principalmente pela expansão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e 5 Fernandes e Pita (2006:131) apontam um dado curioso sobre os sem religião: 33,2% deles eram antes pentecostais, enquanto que 23,1% e 11,8%, respectivamente, eram católicos e protestantes históricos.
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do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico teve uma redução proporcionalmente maior que o crescimento evangélico (128%). Conclui‐se que, ao final do século XX, tornou‐se bastante mais fácil não ser católico e abraçar o protestantismo ou, inclusive, nenhum credo religioso.
Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010.
Ano Católicos Evangélicos Outras religiões
Sem religião
1940 95,2 2,6 1,9 0,2 1950 93,7 3,4 2,4 0,3 1960 93,1 4,3 2,4 0,5 1970 91,8 5,2 2,3 0,8 1980 89,0 6,6 2,5 1,6 1991 83,3 9,0 2,9 4,7 2000 73,9 15,6 3,5 7,4 2010 64,6 22,2 5,2 8,0
Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional). No universo católico existe certa diversidade, sendo ainda a
distinção básica aquela que se refere ao catolicismo nominal e ao internalizado. Os católicos nominais abrangem a versão tradicional, tanto rural como urbana (Camargo, 1973). No âmbito do catolicismo internalizado, as duas grandes vertentes são: a Renovação Carismática Católica e a Teologia da Libertação/Comunidades eclesiásticas de base (CEBs).
Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994.
Vertentes % Tradicionais ou Nominais 61,4 Identificados com a Renovação Carismática 3,8 Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base 1,8 Identificados com outros movimentos 7,9 Total 74,9 Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996).
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A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que havia 61,4% de católicos tradicionais ou nominais, 3,8% de católicos carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros movimentos internos da igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do catolicismo internalizado.
Em termos de protestantismo, a divisão básica ocorre entre as igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as históricas se encontram: a Batista, a Presbiteriana, a Luterana e a Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século XX (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus), pentecostais de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60 (Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor), e neopentecostais, formadas a partir da década de 1970. As principais denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial do Poder de Deus e Renascer em Cristo (Souza, 1969; Freston, 1993, Mariano, 1999). Em termos de tamanho, o pentecostalismo clássico aparece em primeiro lugar, seguido pelo neopentecostalismo. A IURD novamente se destaca em função da relação entre seu tamanho e seu tempo de existência. Enquanto as instituições que possuem mais adeptos que ela são, no mínimo, centenárias, esta instituição religiosa tem somente trinta e cinco anos de idade. Ou seja, conta com uma trajetória de expansão bastante acelerada.
2.2 O campo religioso na Argentina
Na Argentina6 a crença em Deus se encontra amplamente
enraizada, representando 91,1% da população. Entretanto, esta média varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9. 6 Nos censos populacionais realizados na Argentina, somente se revelaram dados relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os dados coletados pela “Primeira pesquisa sobre crenças e atitudes religiosas na Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008).
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Em relação às filiações religiosas, 76,5% das pessoas se consideram católicas, 9% evangélicas10, 1,2% testemunhas de Jeová, 0,9% mórmons, 1,2% professa outras religiões e 11,3% se consideram indiferentes11.
No entanto, embora 90% dos argentinos creiam em Deus, essa proporção diminui em relação ao ato de frequentar lugares de culto: quase 76% disseram que raramente ou nunca frequentam tais lugares (embora no caso dos evangélicos, mais de 60% disseram que frequentemente estão presentes). Neste sentido, é interessante também apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a igreja ou um templo, 76,3% acham que deveria ser permitido o casamento de padres católicos e 60,3% que deveria ser permitido o sacerdócio às mulheres.
Estes dados, entretanto, apresentam importantes disparidades segundo a região argentina tratada. Assim, o noroeste argentino, mais tradicional e conservador, possui os índices mais altos de católicos, representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro lado, é a menos católica (61,5%), e a que possui os índices mais altos de evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).
7 As mulheres creem mais em Deus que os homens, representando 93,6% e 88,3%, respectivamente.
8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram crentes 85,1%.
9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem estudos: 95,7%; com nível elementar completo: 93%; com nível médio: 88%; técnico: 83,1% e superior: 84,5%.
10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja Universal do Reino de Deus.
11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião.
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Vale destacar que atualmente a Argentina determina12 em sua constituição nacional (artigo segundo) que “O governo federal apoie o culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança) e a Igreja Católica são tomados como fundadores e garantidores da argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).
E, ademais, Esquivel (2010) lembra que
“[a]s iconografias católicas que decoram os organismos oficiais e a convocação para a realização do Tedeum não estão prescritas na legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza o indiscutido e naturalizado papel protagonista que a Igreja Católica detém no cenário público argentino. Se a relação entre o Estado e a Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto na Argentina, com exceção da Igreja Católica, devem promover sua inscrição e reconhecimento oficial, como condição prévia para sua atuação.” No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja
católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853 e até à atualidade, o artigo 14 dispõe que “Todos os habitantes da Confederação gozam dos seguintes direitos: (…) de professar
12 Apesar dos inúmeros processos de reforma constitucional, o artigo segundo de reconhecimento privilegiado da Igreja católica segue vigente. Vale mencionar que a constituição argentina foi reformada nos anos 1860, 1866, 1898, 1949 (embora esta reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994.
13 Apesar de negar a existência de um projeto de nação secular, impulsionado principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a] secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o modelo econômico de Londres e o modelo cultural de Paris, estava incompleta. As leis do ensino laico e do registro civil de nascimentos, matrimônios e mortes reduziram a influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ
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livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se celebrou o tratado de amizade, comércio e navegação com a Coroa Britânica, que concedia aos imigrantes ingleses a possibilidade de celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que logo constituiria o campo evangélico na Argentina. Em relação ao denominado “campo religioso evangélico”, Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no tempo: um primeiro, vinculado àqueles herdeiros da Reforma Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado por aqueles evangélicos afiliados às ideias da denominada “Reforma Radical” do século XVI, e que chegaram à Argentina através das missões conversionistas; e por último, um terceiro movimento, com características pentecostais, que se estabeleceu principalmente nos setores populares do país. Durante os anos noventa, os setores evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a se fortalecer como a primeira minoria religiosa do país (Frigerio e Wynarczyk, 2008).
Atualmente, na Argentina os evangélicos formam a minoria religiosa mais importante, cujo percentual varia de 5 a 10% da nação. Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes. Neste sentido, um dado interessante é que há divergências associadas aos níveis socioeconômicos. Em geral, se estima que o percentual de evangélicos nos setores populares urbanos pode alcançar ‐ e inclusive superar ‐ 20% da população (principalmente os pentecostais). Os percentuais diminuem quando se trata de setores com população de renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e 5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).
Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina, os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos matriculados nos registros da Secretaria de Culto da Nação (Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser um todo homogêneo, se apresenta como um campo complexo e fragmentado, com grandes igrejas e templos que possuem uma certa independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem são regidos pelos mesmos princípios doutrinários.
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3. Religião e política 3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária Em termos de engajamento com o mundo político, os católicos têm um envolvimento histórico através de seus intelectuais e instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas exerceriam um importante papel na resistência, abrigo e apoio aos ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia da Libertação perdeu forças, abrindo um grande espaço à Renovação Carismática Católica, por meio de um processo de despolitização (Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas particulares do catolicismo (Mianda, 1999; Mariz, 2001; Senna, 2008; Reis, 2011). O crescimento demográfico dos evangélicos no Brasil se traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso. Durante a maior parte do século XX, predominava uma postura evangélica dupla: aprovação dos governos e rejeição da política partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no Congresso foi relativamente pequena até a primeira metade dos anos 80, contando quase que exclusivamente com alguns parlamentares adeptos das igrejas protestantes missionárias. Em 1985, quando o país voltou a ter, com José Sarney, um presidente civil e viveu a expectativa das eleições de uma Assembleia Constituinte para o ano seguinte, os evangélicos pentecostais se lançaram efetivamente em direção a uma política partidária. Preocupados com um possível aumento de privilégios constitucionais para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa, e a perceber também, nas eleições de 1986, uma oportunidade para aumentar os lucros para as suas igrejas, principalmente na forma de concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993). Enquanto que em 1982 haviam sido eleitos 12 deputados federais evangélicos, sendo apenas dois pentecostais, nas eleições
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seguintes foram eleitos 32 parlamentares desse segmento, sendo 18 deles pentecostais. Com este significativo crescimento de 900% de representação pentecostal, a prevalência foi da Assembleia de Deus, com 13 deputados eleitos.
A representação evangélica nas eleições seguintes cresceria ainda mais, atingindo o número de 30 deputados em 1994 e 49 deputados quatro anos depois. Com parlamentares de diferentes partidos, mas, principalmente, do Partido Social Cristão (PSC), a Assembleia de Deus perdurou como a igreja com maior representação parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston, 2001; Fonseca, 2002:126).
Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões relacionadas à reprodução humana e à moral sexual, opondo‐se firmemente às reivindicações homoafetivas. Eles se destacam também na apresentação de emendas parlamentares do tipo assistencial, sendo algumas delas algo questionáveis. Desde 2003, existe a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), marcada pela heterogeneidade partidária e também denominacional, garantindo certa coesão nos temas que envolvem a moralidade cristã tradicional e nos interesses institucionais das igrejas.
No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998, sendo uma delas de Íris Rezende, do PMDB e da Comunidade Cristã Evangélica. A outra era de uma adepta da Assembleia de Deus e ex‐militante católica de CEBs e, portanto, do PT (Partido dos Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse segmento religioso, incluindo os suplentes que assumiram o cargo, chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os batistas Walter Pinheiro e Magno Malta. Destaca‐se o evangélico Marcelo Crivella, atualmente em licença e que será mencionado posteriormente neste texto. Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os evangélicos têm uma significativa presença também em outros parlamentos brasileiros. Um levantamento realizado no segundo semestre de 2012, utilizando portais de internet do PFE, das Assembleias Legislativas Estaduais, da Câmara do Distrito Federal e
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das câmaras municipais de todas as capitais brasileiras mostrou que nesses locais havia 238 parlamentares reconhecidamente evangélicos (10% do total).
No âmbito do Poder Executivo, os evangélicos também vêm exercendo uma forte influência, chegando inclusive a ocupar cargos importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em 1982, Rezende tornou‐se o primeiro governador evangélico. Em 1986, assumiu o Ministério da Agricultura durante o governo de Sarney. Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998. Outros governadores evangélicos foram eleitos no Rio de Janeiro: o casamento de Anthony Garotinho e Rosinha Matheus. Garotinho chegou a concorrer à presidência da República pelo Partido Socialista Brasileiro, em 2002. Sem sucesso na disputa presidencial, conseguiu ao menos que sua esposa Rosinha Matheus se tornasse governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno. Em 1989, os evangélicos tiveram uma participação significativa na primeira eleição presidencial direta após a reabertura democrática. Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento influenciou a disputa eleitoral. Os evangélicos rejeitavam o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, percebendo‐o como um defensor dos interesses católicos, dada a vinculação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que deveria ser fortemente combatido. Como resultado desse processo, os pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992). Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se contra Lula, apoiando enfaticamente o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD), Fernando Henrique Cardoso (Pierucci e Prandi, 1996). Os parlamentares evangélicos também votaram a favor da mudança constitucional, viabilizando assim a candidatura à reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na segunda campanha.
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Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral mais complexo. O desgaste da gestão de Cardoso fez com que parte deste segmento religioso não aderisse ao candidato do PSBD, o ex‐ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela Assembleia de Deus. Além disso, pela primeira vez, havia um candidato evangélico competitivo na disputa: Anthony Garotinho14. A transmissão do programa de rádio do então governador do Rio de Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas de outros estados, foram estratégias adotadas para aumentar sua popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002: 207‐214).
Garotinho conseguiu que 51,3% dos evangélicos votassem nele, sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar, dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que finalmente acabou entrando na disputa presidencial com apoio parcial do eleitorado Pentecostal: a IURD15. Naquela que foi a quarta disputa presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD.
No primeiro ano da presidência de Lula, houve mais uma mostra da força política evangélica no país: a participação no processo de regulamentação do novo Código Civil. Na versão de 1916, as organizações religiosas tinham privilégios no tratamento legal, mas, com a legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma vez, denunciando uma suposta perseguição ideológica, constitucionalmente proibida, os evangélicos se articularam com representantes católicos, conseguindo assim aprovar mudanças na redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil. A sanção presidencial para tal mudança foi destacada por Lula como um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).
14 O primeiro presidente protestante do Brasil foi o general luterano Ernesto Geisel, governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta.
15 Duas grandes igrejas pentecostais permaneceram sem envolver‐se na política partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”.
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A partir daquela penetração inicial no eleitorado pentecostal, Lula procurou estreitar relações, participando de eventos evangélicos, formando comitês, pedindo votos e orações e prometendo parcerias (Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição.
Outra líder política oriunda do universo evangélico emergia. Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a atuar no Partido Verde em 2009 para se tornar então candidata presidencial no ano seguinte. O terceiro lugar na disputa pelo Palácio do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a campanha mais laica entre os principais candidatos, uma vez que a presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa.
Mais uma vez candidato pelo PSBD, José Serra contava com o forte apoio da Convenção Nacional das Assembleias de Deus (CONAMAD), a maior agremiação da Assembleia de Deus. Teve também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas Malafaia, líder da Associação Vitória em Cristo (derivação da Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (NHDP III), lançado pelo Governo Federal em 2009. Parlamentares evangélicos e católicos se mobilizaram principalmente contra a proposta de descriminalização do aborto16. Os pentecostais também se opuseram firmemente contra o projeto de Lei nº 122 de 2006 (PL 122/2006), apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a criminalização da homofobia acabaram sendo usadas como armas eleitorais pelo candidato do PSDB.
Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado 16 Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou firmemente contra a III PNHD em um documento e recomendou aos fiéis que votassem em ʺpessoas comprometidas com o respeito incondicional à vidaʺ (Gold e Mariano, 2010:25).
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agnóstica em uma entrevista concedida à revista Época em 2007, mas que durante a carreira eleitoral participava de eventos religiosos e missas para mostrar‐se católica. Líderes e parlamentares evangélicos determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade religiosa e vetar, caso fosse eleita, qualquer projeto ʺcontra a vida e os valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união civil e adoção de crianças por parte de casais homossexuais, a regulamentação da atividade para aqueles trabalhadores do sexo e assuntos relacionados a estas temáticas. A campanha do PT se voltou fortemente em direção aos eleitores evangélicos, ressaltando que o III NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a favor da vida” e que, portanto, não tomaria nenhuma iniciativa de mudança na legislação a respeito do aborto, tampouco de questões relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29).
A campanha do PSBD, por outro lado, continuou com seu tom religioso conservador, utilizando a mídia religiosa (católicos e protestantes), as redes sociais e inclusive os cultos nas igrejas para ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional.
Sua esposa, Mônica Serra, que chegou a acusar Dilma de ser a favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada no jornal Folha de S. Paulo de 16 de outubro daquele ano. O jornal apresentava o relato de uma ex‐aluna da Sra. Serra, da Universidade Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto, o que foi confirmado por outra ex‐aluna. Devido a esses acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média e de setores intelectuais e liberais da população, perdendo assim sua segunda eleição presidencial. 3.2 Liderança política e moral sexual
Sobrinho do fundador e líder da IURD, Edir Macedo, o Bispo
Marcelo Crivella ganhou popularidade no meio evangélico com seus sucessos como cantor gospel. Crivella conquistou uma cadeira no Senado em 2002, sendo reeleito oito anos depois. Ajudou Dilma Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar
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ao governo petista que estava sendo instalado em 2011, o senador da IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.
Os parlamentares evangélicos conseguiram impedir, durante o primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐homofobia, rotulado de ʺkit gayʺ, que tinha sido encomendado pelo Ministério da Educação, com Fernando Haddad. Dilma Rousseff determinou a suspensão da medida educativa. Desde o início do governo, os representantes políticos dos pentecostais também mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga do PT Eleonora Menicucci para a Secretaria de Políticas para as Mulheres. A militante feminista, amiga de Dilma desde os tempos da guerrilha contra o regime militar, é uma reconhecida defensora da descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes.
Irritados com o governo Dilma, os parlamentares evangélicos exigiram e obtiveram em fevereiro de 2012 uma retratação pública do titular da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Ex‐seminarista católico e interlocutor do governo junto às igrejas e movimentos sociais, Carvalho havia encorajado os militantes presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria sob a hegemonia evangélica. Em resposta à indignação parlamentar Pentecostal com Carvalho, Dilma Rousseff nomeou Marcelo Crivella como Ministro da Pesca. Com a medida, a presidente tentou acalmar seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São Paulo, onde Fernando Haddad se apresentava como candidato a prefeito pelo PT. Crivella assumiu seu novo cargo ressaltando que era totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar uma trégua ao governo federal em relação a qualquer iniciativa favorável ao aborto e à união civil entre homossexuais. A presidente teve de tolerar a imposição evangélica e o ʺfogo amigo do fiel aliado evangélicoʺ.
Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a Prefeitura de São Paulo em 2012, Fernando Haddad já contava com a animosidade Pentecostal devido ao “kit gay”. Teria de enfrentar também um candidato representante dos interesses da IURD: Celso
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Russomanno. Ex‐apresentador de televisão, Russomanno era o candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de Crivella, tendo como braço direito o Bispo da IURD Marcos Pereira, presidente nacional desta linha e ex‐vice‐presidente da Rede Record, pertencente a Macedo.
Do outro lado da disputa, novamente, estava José Serra, que também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal devido à questão da homofobia. Serra continuava com o apoio da Assembleia de Deus CONAMAD e contava também com Valdemiro Santiago e a sua crescente Igreja Mundial do Poder de Deus. Lula e o candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de si, como principais obstáculos, o tradicional adversário do PSDB e o inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus.
No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel Ferreira, passou a apoiar José Serra devido ao famoso ʺkit gayʺ. O ataque a essa medida anti‐homofóbica, atribuída ao ex‐ministro da Educação e candidato do PT, Haddad, teria ressoado fortemente nos discursos de Silas Malafaia, que, mais uma vez, era uma espécie de porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já que foi outra vez derrotado.
Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável participação na vida político‐partidária do Brasil desde sua redemocratização. Se a eleição constituinte de 1934 levou o primeiro pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que os pentecostais se mobilizassem de maneira efetiva para eleger seus representantes, impulsionando o crescimento evangélico no Congresso Nacional e nos demais parlamentos brasileiros. Surgiam assim, no cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos. No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende, tornando‐se também ministros de estado, e este último o primeiro 17 O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.
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governador Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual vinculado explicitamente ao seu perfil evangélico foi Anthony Garotinho, que usaria isso também como uma estratégia para sua candidatura à presidência da República.
A maior denominação evangélica do Brasil, a Assembleia de Deus, foi também uma precursora na inserção Pentecostal na política partidária, tendo parlamentares em diferentes partidos, mas principalmente no PSC. Em segundo lugar, em termos demográficos, está a IURD, cujo braço político é o PRB. O bispo licenciado, e agora ministro de Pesca, Marcelo Crivella, personifica a força política da Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.
O chamado “kit gay” representou para as eleições de 2012 na cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB José Serra procurou tirar proveito do moralismo evangélico nas questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim como há uma barreira nas eleições majoritárias para um candidato fortemente identificado com um determinado segmento religioso, também no catolicismo hegemônico há um limite para o uso de bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a cargos executivos visitem bispos, pastores, missas, cultos e outras manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para ganhar as eleições.
Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário político brasileiro, sendo que os representantes oficiais ou “despachantes” das igrejas surgiram somente com a ascensão política Pentecostal (Campos, 2005). Em nome da liberdade religiosa, os interesses das igrejas são estrategicamente defendidos durante as campanhas eleitorais, as legislaturas e os mandatos do executivo. No caso da IURD, a representação parlamentar se combina com o poder midiático, exercido por meio de sua rede de televisão de canal aberto, levando a uma maior influência junto ao governo federal. Os evangélicos podem não ter força suficiente para decidir eleições em
18 Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola tinha sido metodista em sua juventude.
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favor seus candidatos religiosos ou apoiados por suas igrejas, mas provavelmente continuem a ser elogiados, cortejados e atendidos em algumas de suas exigências em “nome do Senhor”. 3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo
Diferentemente do caso brasileiro, o Congresso Nacional
argentino carece de blocos e/ou partidos que se relacionem a alguma instituição religiosa. Entretanto, a partir dos dados gerados por um estudo realizado por Esquivel e Vaggione (2011)19 é possível explorar algumas das maneiras com que as instituições religiosas se conectam com as decisões e/ou posições dos legisladores quando se discute políticas de sexualidade e reprodução.
Assim, este estudo nos permite reconhecer que 65% dos parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste sentido, 60% se dizem “católicos” e 46% se consideram “muito religiosos” enquanto que, ao contrário, 26% dizem “não ter religião”. Além disso, um fato interessante é que quase a totalidade dos/as deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera opiniões divergentes: 49% concordam com a influência das crenças religiosas nas tomadas de decisão, enquanto que 49% discordam (2% não opinaram).
Em relação aos projetos de lei ‐ que no momento da realização da pesquisa se mostravam controversos devido à manifesta oposição das confissões religiosas majoritárias (por estar vinculados ao avanço
19 Nesta seção vamos utilizar os dados gerados por Esquivel e Vaggione (2011) no âmbito do projeto PIP CONICET 359/08 “Disputas en el espacio público argentino. Dirigencia política, instituciones religiosas y organizaciones sociales pro‐derechos, frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”. Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem de erro de 5% ‐ para 95% de confiança ‐, e o período de levantamento de dados se estendeu de novembro de 2009 a maio de 2010. Essa pesquisa foi publicada pelo jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de janeiro).
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dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a favor da autonomia de decisão e liberdade de consciência. Assim, os projetos de fertilização assistida e identidade de gênero20 são os que registram maior grau de aprovação (84 e 75%, respectivamente). No mesmo sentido, uma parcela importante se manifestou a favor da descriminalização do aborto nas primeiras doze semanas de gestação (64%)21. Com menor peso ‐ ainda que superando 50% ‐ houve um acordo em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo22, à autorização para a criopreservação de embriões (56%), a eutanásia (52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).
20A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e por ampla maioria na Câmara dos Deputados, sendo promulgada em 9 de maio de 2012.
21O aborto tem sido (e continua sendo) um tema bastante polêmico na Argentina, por isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o aborto indicaram que a maioria (83%) acredita que ele deve ser permitido. No entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é que quase a metade deles atribui alguma conduta moral reprovável em relação às mulheres que abortam espontaneamente. Atualmente, o aborto é referido em vários artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à saúde ou à vida da mãe, em caso de estupros ou, finalmente, atentado ao pudor de uma mulher demente (art. 86 do Código Penal). No entanto, este artigo tem gerado fortes controvérsias doutrinárias dentro do campo jurídico entre os que lutam por uma aplicação restritiva e os que interpretam que deveria ser mais ampla. Por esta razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no final de 2012, esclareceu os limites e alcances das exceções. Apesar disso, as discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se no país.
22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção. Lembramos que a pesquisa referida foi realizada antes da aplicação e aprovação de tais alterações no Código civil.
23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede aos doentes terminais internados o direito a recusarem procedimentos de prolongamento da vida quando estes lhes causarem um sofrimento significativo, foi sancionada em 9 de maio (a mesma data em que se sancionou a lei de identidade de gênero, mencionada na nota 9).
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Além disso, é comum que os/as parlamentares se reúnam com diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais da metade declarou que se encontrou com um bispo e 45% com um padre católico no último ano.
Outro fato significativo é a opinião sobre a relação do Estado com os credos religiosos. Neste sentido, a maioria declara que todos devem ser tratados da mesma maneira e considera que o Estado não deveria apoiar economicamente os cultos25.
Esta pesquisa mostra que, embora as ideias religiosas estejam profundamente enraizadas nos senadores e deputados acessados pela pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas ideias e as decisões que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.
3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social
Em julho de 2010, na Argentina é sancionada a alteração do
código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).
Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo entra na agenda política (assim como outras políticas em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam
24Um fato interessante que surgiu foi que embora haja um amplo apoio aos projetos relacionados aos direitos civis, mais de 90% dos parlamentares entrevistados acreditam que outros parlamentares colocam em jogo suas convicções religiosas ao votarem as leis. Neste sentido, observa‐se um contraste entre o posicionamento individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da Igreja Católica.
25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação por parte dos/as representantes nacionais. Em relação à presença de símbolos religiosos nas escolas públicas, apenas 3 de cada 10 consideram que devem ser proibidos.
26Embora as pesquisas tivessem sido enviadas a todos/as os/as deputados/as e senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do total.
27Durante o debate sobre o denominado “casamento igualitário”, muitos/as parlamentares se consideravam católicos/as e se posicionaram contra o projeto. Veja Vaggione, Juan Marco (2011).
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como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais que procuram impedir as reformas28. Na Argentina, um dia antes (ou seja, 13 de julho de 2010) da votação definitiva do projeto, diferentes setores sociais convocaram uma marcha nacional na Praça do Congresso (na capital federal) para exigir dos senadores29 votos em “defesa do casamento e da família”.
Os organizadores foram o Departamento de Leigos da Conferência Episcopal da Argentina (DEPLAI), a Aliança Cristã das Igrejas Evangélicas da Argentina (ACIERA), a Federação Confraternidade Evangélica Pentecostal (FECEP) e as Famílias Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante pela associação de uma diversidade de atores pertencentes tanto a organizações civis como eclesiásticas.
ACIERA e FECEP30 são duas organizações que reúnem igrejas evangélicas pentecostais que integram o denominado “polo conservador bíblico” (Wynarczyk, 2009) e se posicionam como os
28Neste sentido, por exemplo, uma história interessante é a mobilização realizada na Espanha durante as discussões sobre o casamento em 2005, organizada pelo Fórum Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a frente de oposição no debate espanhol (Etxazarra, 2007). Vale mencionar que acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto de lei de casamento entre pessoas do mesmo sexo (La Nación, 2010, 14 de janeiro; Clarín, 2010, 12 de janeiro).
29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio. Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14 de julho de 2010.
30 A ACIERA foi fundada na Argentina na década de oitenta, no período de transição democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança entre “denominações, congregações locais e entidades livremente associadas a fins específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida em www.aciera.org). Enquanto que a segunda se difunde quase uma década antes, nos anos setenta, e era formada pelas “Igrejas locais, organizações e instituições pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida em www.fecep.org.ar)
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setores evangélicos mais visíveis na organização da marcha nacional e na sua militância contra a aprovação da lei.
Por sua vez, a DEPLAI é um organismo que pertence à Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações de apoio à comissão para a difusão dos princípios doutrinais. A DEPLAI se posiciona como o setor representante da igreja católica na organização da mobilização. Entretanto, um considerável número de bispos também participou na difusão da convocação, o que provocou um grande impacto na sua mediatização. Por exemplo, o então arcebispo de Buenos Aires, o Cardeal Mario Bergoglio, pediu publicamente aos párocos das igrejas do país que difundissem a convocação para a mobilização nacional:
“(...) [DEPLAI] organizou para a terça‐feira, 13 de julho, às 18:30 um ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja mais do que bandeiras argentinas ou valores positivos sobre o casamento homem‐mulher (...) peço que se informem sobre isso e facilitem a participação de teus fiéis, assim como que nas Missas de domingo, 11 de julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces haja intenções pela família. Também peço que concedam lugares aos leigos do DEPLAI que recolherão assinaturas. (...) (AICA, 2010, 22 de junho).
Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil
que se associam sob a denominação de “Famílias Argentinas Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo, a mobilização nacional tentou se instalar como uma manifestação “cidadã”, ativando uma série de elementos neste sentido, que
31 Segundo publicação da AICA (Agência de Informação Católica Argentina, 18 de junho de 2010) AxC é um espaço de associação entre diferentes classes sociais que buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC foi criado como uma página no Facebook, cujo objetivo é defender o casamento heterossexual e servir como instância de articulação para a geração de ações neste sentido.
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permitiram uma identificação não necessariamente ligada a uma igreja ou dogma religioso em particular.
Se por um lado os organizadores da marcha aglutinam e dão visibilidade a setores conservadores católicos e evangélicos, por outro também procuram agregar a ideia de “família” (em geral) como parte da ação. Para isso foram criados diferentes materiais que procuram destacar uma identificação desvinculada de discursos confessionais, e afirmar uma identificação política. Neste sentido, um dos elementos criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor alaranjada (Sgró, 2011; Rabbia e Iosa, 2010). Usando esta cor (e diferentes lemas, que todavia são coincidentes na defesa da família fundada em uma união heterossexual) se produziram uma multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se reproduziram pelas redes de comunicação digitais. O alaranjado também foi adotado como marca nacional da marcha, e nas chamadas era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.
Um exemplo significativo foi a adoção de um logo usado tanto por organizações envolvidas na difusão da convocação como usuárias/os para se identificarem com a recusa da reforma do código civil (ver Figura 1). Nesse sentido, a concentração na Praça do Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento = homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”, “Salvemos a família”, entre outros.
Figura 1:Logo Casamento
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No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político em relação às demandas dos setores reunidos na manifestação33. Os setores conservadores, ainda quando se mostravam visivelmente alinhados à igrejas católica e evangélica, insistiam em declarar no encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação cidadã, de uma maioria que “deve” ser escutada e representada no Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34 que “se fez escutar” é a que compõe a mobilização e reivindica o direito das crianças. Deste modo se explicita a condição de ativismo em defesa da vida e da família, significantes centrais do posicionamento das hierarquias religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e reprodução. 4. Considerações Finais
Muito além da questão do espiritismo kardecista, já
mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois países tratados neste texto. Na Argentina, o catolicismo tem um peso demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo com o Estado, enquanto que o protestantismo (9,0%) é relativamente pequeno. No Brasil, ao contrário, o catolicismo se encontra mais reduzido (64,6%) face a um acelerado crescimento evangélico (22,2%), duas vezes maior em relação ao país vizinho. Na Argentina há um pouco mais de pessoas sem religião que no Brasil, mas em contrapartida, a diversidade religiosa é menor.
Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o catolicismo exerce um papel significativo, ainda que na Argentina atualmente haja certo enfrentamento ao governo. No Brasil, onde a 32 Consultar http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488 [Último Acesso: 3 de abril de 2013]
33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador e afirmar o apelo aos legisladores que votariam no dia seguinte o casamento igualitário.
34 O Manifesto expressa: “...se fez ouvir a «maioria silenciosa». Esta voz deve ser escutada e respeitada por nossos representantes políticos”.
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Teologia da Libertação foi muito mais expressiva e ativa, a igreja exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais durante o enfrentamento com a ditadura militar. A relação com o regime é um aspecto bastante controverso do catolicismo argentino, debate que tem sido retomado em função da eleição do cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio para Papa. Ainda que o Papa Francisco seja coerente em termos de vida simples e proximidade com os pobres, não foi assim quando era bispo e defensor da Teologia da Libertação. Com relação a isso, ele recebe desde o início de seu pontificado o apoio explícito e entusiasmado do maior expoente dessa vertente católica, o teólogo e ex‐frade franciscano brasileiro: Leonardo Boff.
Do lado evangélico, a inserção na vida político‐partidária ganhou importância no Brasil na década de 1980, quando os pentecostais decidiram ocupar seu espaço na Assembleia Constituinte. Ainda que na Argentina a reinstauração da democracia ocorreu em 1983, a inserção político‐evangélica somente começou a ocorrer na década seguinte.
Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em torno da preservação de privilégios de organizações religiosas no Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e líderes católicos e evangélicos.
Em ambos os países, as questões de moral sexual estão atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil em 24 de março de 2013 no jornal Folha de S. Paulo permite a comparação com alguns dados da realidade argentina. Enquanto que 76,3% dos argentinos se mostram favoráveis à união matrimonial de sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma, 60,3% dos argentinos se mostram a favor do sacerdócio de mulheres, enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação ao polêmico tema do aborto, 64% da população argentina tolera em todos ou alguns casos sua prática, enquanto que no Brasil essa porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam
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um caráter mais liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E como consequência, tendem a ocorrer mais manifestações públicas e político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em torno dessas questões.
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Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi
María Inés Landa1 Jorge Leite Jr.2
Andrea Torrano3 1. Introdução
Cada época engendra seus monstros, os quais, a partir de
diferentes perspectivas, nos contam sobre as irregularidades imagináveis desta particular encruzilhada histórica. Aqui nos propomos abordar os monstros contemporâneos enquanto locus de significado pelos quais transita a inteligibilidade do presente, expressando aquilo que põe em causa o normal do humano.
Definir o que e quem é um monstro é uma tarefa que apresenta grandes dificuldades. Como assinala Kappler ʺnão existe uma definição de monstro, mas algumas tentativas de definir que variam segundo os autores e, sobretudo, segundo as épocas. Num sentido mais geral, o monstro é definido em relação à normaʺ (Kappler, 1993: 291. Grifos e tradução do autor).
O conceito “monstro”, mais exatamente, funciona como um ʺoperador conceitualʺ (Gil, 2012: 13), na medida em que representa o desenvolvimento de todas as irregularidades possíveis, e afronta ‐ ou coloca em questão – a norma do humano. Neste sentido, afirma Foucault, o monstro é ʺum princípio de inteligibilidadeʺ de todas as anomalias, e, ainda assim, é um ʺprincípio verdadeiramente tautológicoʺ, porque a propriedade do monstro consiste em se afirmar enquanto tal, “explicar em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja 1Investigadora asistente do CONICET, CIECS‐CONICET/UNC, Centro de Investigaciones y Estudios sobre la Cultura y la Sociedad (CIECS), Consejo Nacional de Investigaciones Ciéntificas y Técnicas (CONICET), Universidad Nacional de Córdoba (UNC) – Argentina.
2 Professor adjunto do Departamento de Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil .
3Professora assistente da Facultad de Direito e Ciências Sociais, UNC, bolsista doutoral IDH‐CONICET, Universidad Nacional de Córdoba – Argentina.
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em si mesmo inteligívelʺ (Foucault, 2000: 62‐63)4. Portanto, mais do que tentar definir o monstro em sentido afirmativo, se trata de mostrar seu sentido em função daquilo a que ele se opõe.
De nossa perspectiva, o monstro deve confrontar‐se com o que considera normativamente humano. Mas isso não significa que o monstro represente a alteridade absoluta, mas sim, nos termos de Agamben, ele é uma exclusão inclusiva, “uma forma extrema de relação que inclui qualquer coisa através de sua exclusão” (Agamben, 2003: 31). Ou seja, o humano e o monstro se encontram em uma tensão tal que um é o reverso e o complemento do outro. Neste sentido, embora se confronte com a norma do humano, o monstro não é ʺexterior e pura alteridade em relação ao homem, mas sim um ‘interior externalizado’ do ser humanoʺ (Giorgi, 2009: 325).
Desse modo, o monstro não apenas se confronta com a norma do humano, como se se tratasse exclusivamente de um desafio à ordem da vida, onde a monstruosidade é posta em jogo no campo da ʺnormatividade da vidaʺ5. Como expressa Canguilhem:
4No curso Os Anormais (1974‐1975), Foucault se refere ao ʺmonstro humanoʺ distinguindo dois momentos: o primeiro, desde a Idade Média até o século XVIII, onde o monstro é considerado um conceito jurídico‐biológico, uma mistura de reinos, de individualidades e de gêneros. E um segundo momento, entre o final do século XVIII e início do século XIX, quando ele é identificado com as más formações, que serão a explicação de determinadas condutas criminosas, é, portanto, um conceito jurídico moral. A primeira manifestação do monstro jurídico moral é o ʺmonstro políticoʺ, o criminoso político, aquele que está fora do pacto social. Esta monstruosidade é a do tirano, dos revolucionários e, ainda, do delinquente comum. Daí o autor conclui afirmando que, em finais do século XIX, o conceito de monstro é abandonado pelo de anormal. Isso ocorre porque a monstruosidade deixa de ser entendida como uma categoria jurídico‐política e se converte em uma noção fundamental da psiquiatria criminal.
5 De acordo com Canguilhem, viver significa aceitar algumas coisas e recusar outras, eliminar obstáculos, abandonar o que impede o pleno desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, aceitar e impulsionar aquilo que reafirma a possibilidade de viver. A vida significa, portanto, ʺpolaridade dinâmicaʺ traduzida em juízos de valor, em normas. Apenas o vivente tem a capacidade de produzir padrões biológicos, porque ʺao não se submeter ao meio ambiente, mas instituir seu próprio meio ambiente, ele mesmo atribui valores não apenas ao meio ambiente, mas também ao próprio organismoʺ (Canguilhem, 1976: 175). Essa atividade é chamada de ʺnormatividade biológicaʺ, ou seja, a capacidade de cada indivíduo de impor a si mesmo uma norma
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ʺdevemos, portanto, compreender na definição de monstro sua natureza viva. O monstro é o vivente de valor negativo. (...) o que faz dos viventes seres valorizados em relação ao modo de ser do seu ambiente físico é sua consistência específica (...). Assim, o monstro não é apenas um vivente de valor diminuído, ele é um vivente cujo valor é repelir (...) é a monstruosidade, e não a morte, o contravalor vitalʺ (Canguilhem, 1976: 202‐203).
Pelo contrário, a partir do momento que a vida do homem como
indivíduo biológico está imbricada na do homem como sujeito político, ou, nos termos de Foucault, se ʺo homem moderno é um animal em cuja política é posta em causa sua vida de ser viventeʺ (Foucault, 2002b: 173), a vida e a política entram em uma relação de implicação tal que se pode inferir uma biologização da política e uma politização da biologia (Esposito, 2008‐2009), em suma, uma biopolítica.
Assim, é possível afirmar que o monstro, ao irromper na ordem da vida, irrompe também na ordem da política. Como expressa Lucchese e Bove: ʺse a presença de monstros biológicos questiona a ordem da vida, o monstro também interpela necessariamente a ordem e as hierarquias no universo ético e político da históriaʺ (Del Lucchese, Bove, 2008: 21. Tradução dos autores). Consequentemente, o monstro impacta a ordem do biopolítico, é um conceito biopolítico.
Tal como advertia Foucault, os dispositivos de poder não podem funcionar senão mediante a formação e circulação de um saber: ʺo
biológica, diferente em relação ao ambiente em que vive. Portanto, somente em relação ao indivíduo é que se pode estabelecer o normal e o patológico ou, em outros termos, a saúde e a enfermidade. Isto significa que a fronteira entre o normal e o patológico apenas pode ser definida se se toma em conta sucessivamente um único indivíduo. Em condições determinadas, o normal pode converter‐se em patológico se estas condições mudam e o indivíduo permanece o mesmo. Mas esta delimitação entre o normal e o patológico não pode ser determinada para a totalidade dos indivíduos. Neste sentido, normalidade e a patologia seriam dois conceitos de valor não redutíveis quantitativamente. No entanto, esta normatividade biológica do indivíduo é convertida pela ciência em uma medida quantitativa. Assim, o normal vivente é substituído pelo normal científico. O homem de ciência encontra, no conceito de média um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal ou de norma. E como considera que a média tem uma significação mais objetiva, tenta reduzir a norma à média (Canguilhem, 1971: 115‐123).
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poder produz saber (...); poder e saber se implicam diretamente um sobre o outro; não existe relação de poder sem a constituição correlata de um campo de saber, nem de saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poderʺ (Foucault, 2002a: 34). Em nossas sociedades se produz um saber sobre a população humana, através de estatística e da probabilidade, que permite identificar suas regularidades (nascimento, mortalidade, saúde, expectativa de vida, etc.) e a partir daí é possível estabelecer a norma do humano. Ou seja, toma‐se os processos da vida para administrá‐los, controlá‐los e modificá‐los, em outras palavras, se utilizam os dados da realidade como suporte para influir sobre a realidade (Foucault, 2006).
Neste sentido, podemos dizer que os monstros não são excluídos, já que são parte da realidade que se quer administrar. Assim, eles não se encontram fora da distribuição do normal, mas são localizados mais ou menos distantes da norma. A monstruosidade pode ser estabelecida em termos de graus: o mais ou menos monstruoso é definido em função da distância em relação à norma. Consequentemente, a monstruosidade desafia a norma a partir de sua própria interioridade, é uma ameaça inerente à norma do humano.
A monstruosidade é algo que convive em(entre) nós e, como parte da realidade que habitamos, é algo que se deve administrar, já que é parte (ameaçadora) da população. Quando se assume esta concepção de monstruosidade como um mal necessário, a gestão da população considera que o monstro se apresenta como um risco que se deve controlar, prognosticar e prevenir (OʹMalley, 2006: 21). Portanto, a gestão da vida é exercida, em maior medida, sobre os chamados ʺgrupos produtores de riscoʺ, ou seja, sobre sujeitos sociais coletivos (De Giorgi, 2005: 39) que são considerados uma ameaça para a população que se pretende proteger6.
6 A categoria ʺgrupoʺ, como conjunto de indivíduos que apresentam certas características comuns e aos quais são atribuídos uma identidade, torna‐se o objeto e o objetivo do poder. A gestão não é exercida tanto sobre corpos individuais – o que Foucault denomina anatomopolítica ‐ nem sobre a totalidade da população ‐ a biopolítica (Foucault, 2002b: 168‐169), mas sim sobre os grupos caracterizados como perigosos.
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A partir desta consideração são implementadas estratégias que permitem identificar estes grupos e que possibilitam a intervenção das autoridades administrativas sobre eles de forma preventiva. O governo sobre a vida dos grupos de risco é realizado através da vigilância e do controle que, como adverte Deleuze, nas sociedades de controle (Deleuze, 1991) em que vivemos trata‐se inclusive de uma (auto)vigilância e (auto)controle.
Deste modo, a monstruosidade explicita como o “poder funciona diferentemente, tomando como alvo certas populações, administrando‐as, realizando a humanidade de sujeitos que poderiam constituir uma comunidade unida por leis comuns a todosʺ (Butler, 2006: 98). Isto significa que sobre o continuum da população são produzidos cortes entre a população que se quer defender (os que representam a norma) e os grupos de risco (aqueles que se desviam da norma) que podem ser caracterizados como monstros. Em outras palavras, sobre o plano neutro da população o poder distingue a ʺvida que não merece ser vivida (...) e a vida digna de ser vivida (ou viver)ʺ (Agamben, 2003: 173), entre vidas vivíveis com mortes lamentáveis e vidas inumanas que não ʺmerecem ser choradasʺ (Butler, 2010b: 13‐56), entre ʺcorpos que importamʺ e os corpos descartáveis (Butler, 2010a: 53‐94).
Assim, advertimos que o conceito monstro, enquanto ʺoperador conceitualʺ, permite compreender, por um lado, ʺa precariedade da identidade humanaʺ, e, por outro, a representaçãoda antítese da ordem social, enquanto um risco sempre ameaçador de romper com esta, e, por fim, como o elemento necessário para legitimar e justificar a implementação de estratégias de prevenção de riscos e de aumento do controle social (Neocleous, 2005: 5).
É nesta dupla dimensão da monstruosidade, enquanto questionamento de uma identidade humana normativa e como caracterização do risco que apresentam certos grupos populacionais, que encontramos neste conceito a possibilidade de uma aproximação analítica em relação às estruturas de poder tecno‐somáticas nas quais repousam as corporalidades do presente. O monstro desafia a norma do ʺhumanoʺ e sua aplicação, se instala no centro de uma política do vivente que deve distribuir os corpos segundo um regime específico de poder para sua utilização e descarte.
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Se, como adverte Haraway, assistimos na atualidade a uma ficção política (ciência política) na qual a definição do que é o corpo humano se torna cada vez mais problemática7, a obesidade epidêmica e os zumbis, sobre os quais refletiremos neste artigo, evidenciam, um a partir do discurso da ciência (biomédica), e outro, da ficção, manifestações de transgressões de fronteira do propriamente humano.
Do ponto de vista do enfoque biomédico a obesidade se configura tanto como fonte de enfermidades e de riscos (incluindo a manifestação de disposições subjetivas de marginalização social), quanto como ameaça somático‐política que atenta contra a crença sanitário‐empresarial da (auto)liderança individual e comunitária. A volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do corpo obeso se constituem em marcas somáticas que confessam, através do registro visual, a transgressão dos cidadãos biológicos, que se apresentam em sua condição de desvio radical entre os limites do humano/não‐humano.
O zumbi, ou morto‐vivo, é um corpo que se situa na zona que separa a vida da morte, sua presença não apenas manifesta um corpo decomposto, mas também põe em causa estas duas ordens diferenciadas. Desse modo, o zumbi representa tanto uma transgressão à constituição orgânica do corpo humano, como uma ameaça aos limites que separam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, em outras palavras, a vida humana da vida não‐humana. Como assinala Cortés‐Rocca ʺo zumbi define uma nova tipologia do monstruoso, na medida em que implica um perigo – como todo monstro – que todavia não se define a partir da simples diferença, tal como ocorre com os monstros clássicos como o dragão, o energúmeno ou o fantasma, mas a partir de uma deformação do humanoʺ (Cortés‐Rocca, 2009: 341‐342).
7 Haraway se apropria da noção de cyborg, organismo cibernético, enquanto criatura de realidade social e também de ficção, para representar as transgressões de fronteiras, as fusões poderosas e as possibilidades de resistência dos corpos em sua composição orgânico‐artificial. Em sua perspectiva, o cyborg reúne três rupturas cruciais: 1) a fronteira entre o humano eo animal, 2) a distinção entre os organismos (animais, humanos) e máquinas e 3) as fronteiras entre o físico e o não‐físico (Haraway, 1995: 256‐262).
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Precisamente o que queremos evidenciar através da análise do corpo obeso e do zumbi é que, ao contrário dos discursos tradicionais sobre a monstruosidade que transformam o monstro na alteridade absoluta do humano, o monstro é um ʺinterior externalizadoʺ do humano, está en(tre) nós.
O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem sua forma humana, no primeiro caso, por descuido, e no segundo, por decomposição; o obseso encarna a enfermidade do corpo, constituindo‐se em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto o zumbi perde qualquer possibilidade de redenção, seu corpo evoca um estigma do corpo corrompido e corruptor. 2. O governo do tamanho e do peso corporal: o dispositivo discursivo de obesidade (epidêmica)
Um dos discursos mais influentes nos modos de perceber o
próprio corpo e o dos outros na atualidade é o da obesidade epidêmica (Wright, 2009:1). No entanto, sua força e proliferação não podem ser compreendidas se não consideramos também as tecnologias de normalização corporal e de otimização de si, que supõe as políticas de consolidação de uma ʺcidadania biológicaʺ8 que redefine suas prioridades vitais e regimes subjetivos (Rose, 2012:270).
Um cenário comum em várias metrópoles de nossa contemporaneidade é o da coexistência de um discurso que promove um estilo de vida ativo e saudável, que se vincula com uma aparência
8 Para Rose (2012: 270) o conceito de cidadania biológica permite, por um lado, explorar a biologização da política a partir da perspectiva da cidadania e, por outro, analisar as reterritorializações da cidadania, em termos biológicos, nos cenários locais e transnacionais contemporâneos. Segundo este autor, na atualidade se estaria produzindo uma redefinição do valor humano como consequência do intenso desenvolvimento que têm se dado nas últimas décadas na biologia, na biotecnologia e na genômica. Esta redefinição supõe uma progressiva biologização da cidadania e, portanto, também da política e da sociedade. Entre outras práticas políticas e sociais, tais como as práticas de aborto seletivo ou de diagnóstico genético, Rose oferece o exemplo dos processos de implementação de políticas de saúde pública. As políticas preventivas da OMS para minimizar a epidemia da obesidade e a pandemia do vírus de gripe A são casos paradigmáticos deste tipo de políticas.
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harmônica e tonificada, e a propagação, por diversos meios, de narrativas em tom catastrófico sobre os perigos que representam a obesidade e o sobrepeso à saúde individual, comunitária e mundial.
Apesar da naturalização desses discursos, é necessário assinalar que a forma como percebemos a corpulência, que associamos à idéia de obesidade, é uma característica de nossa época. A não mais de um século atrás, a obesidade, longe de representar feiura ou enfermidade, augurava bonança e saúde promissora (Jutel, 2009: 60). Como observam Lebesco e Fraziel (2001:2), foi necessário construir uma cultura obcecada pelo peso e pela magreza para que os significantes gordura, sobrepeso, obesidade adquirissem o tom inquietante que apresentam na atualidade.
Nesta seção nos propomos a desembaraçar alguns dos fios que enlaçam as redes que configuram, na atualidade, o dispositivo discursivo da obesidade (epidêmica). Para tanto, em primeiro lugar analisamos o discurso que circula na e que é difundido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do sobrepeso e da obesidade quando incorpora a perspectiva biomédica sobre estes estados corporais particulares. Encontramos na invenção e no uso de um instrumento de medição, o índice de massa corporal (IMC), uma das condições de possibilidade para a construção, por parte de diversos organismos governamentais e sanitários, de um discurso que define a obesidade como uma epidemia do século XXI. Mostramos, finalmente, como através da circulação de um conjunto de biopedagogias, que operam tanto através de um registro prescritivo como de um registro escópico, se instala uma maquinaria moralizante que infunde na população aversão em relação à figura do obeso, de tal forma que ela é exibida como uma condição de anomalia e monstruosidade. 2.1. A patologização da obesidade no discurso virtuoso da OMS
Nas últimas trinta décadas a obesidade tem sido considerada,
em escala mundial, como um problema de saúde global que apresenta crescimento significativo (Flegal et. Al., 2011). Seu incremento não seria objeto de preocupação governamental e social não fosse a quantidade de efeitos adversos à saúde que a ela estão associados (Flegal, 2006).
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Uma das instituições que tem proposto intervenções a respeito da questão, a nível mundial, é a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A OMS é um dos organismos de referência em matéria de concepção e implementação de políticas de saúde pública a nível mundial. A partir dessa entidade se têm dirigido e coordenado ações sanitárias no sistema das Nações Unidas (WHO, 2013a). A função que esta cumpre, no tocante à saúde pública, é a de definir diretrizes em relação às questões sanitárias mundiais, configurar a agenda das investigações em saúde, fornecer apoio técnico aos países, estabelecer normas e supervisionar as tendências sanitárias mundiais (WHO, 2013b).
Para a OMS, a obesidade e o sobrepeso representam o quinto principal fator de risco de morte no mundo, e são definidos ʺcomo um acúmulo anormal ou excessivo de gordura que pode ser prejudicial à saúdeʺ (WHO, 2012. Grifos do autor). Conforme informações da página da instituição ʺmorrem a cada ano, pelo menos, 2,8 milhões de pessoas adultas como consequência de sobrepeso ou obesidade. Ademais, 44% dos casos de diabetes, 23% das cardiopatias isquêmicas e entre 7% e 41% da ocorrência de alguns tipos de câncer, podem ser atribuídos ao sobrepeso e à obesidadeʺ (WHO, 2012).
Nesta definição, o componente ruim é atribuído ao excesso de gordura. Este excesso é calculado por um instrumento de medição denominado índice de massa corporal (IMC), que é usado para a construção das categorias abaixo do peso, peso normal, sobrepeso e obesidade, e para a posterior identificação das mesmas na população. Consequentemente, a conceitualização desses estados para a OMS se completa incorporando um limiar numérico que padroniza as categorias e permite sua diferenciação entre um IMC igual ou superior a 25, enquanto que ao grupo classificado como obeso corresponde um IMC igual ou superior a 30. Daí se deduz uma relação linear e de graus entre um estado e outro.
O IMC deriva do índice de Quetelet desenvolvido entre 1830 e 1850 ecriado pelo estatístico Adolphe Quetelet para registrar a variação de peso e altura dos recrutas do serviço militar francês (Oliver, 2006; Halse, 2009: 46). Em suas observações, Quetelet percebe a existência de uma distribuição gaussiana (normal) dos níveis de peso e altura na
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população estudada, a partir do qual cria um índice para realizar uma descrição estatística do “homem tipo” (Oliver, 2006). Atualmente, o IMC é uma representação matemática que fornece uma estimativa da composição corporal, e é calculado dividindo o peso corporal em quilogramas pelo quadrado da altura do corpo em metros (Wilmore e Costill, 2001: 492).
A centralidade que adquire este índice nas definições de peso corporal cunhadas pela OMS responde ao que essa entidade necessita para cumprir sua função de proporcionar à comunidade de governos e agências internacionais de financiamento dados confiáveis sobre o problema da obesidade, a partir dos quais permite diferenciar os grupos normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim justificar a implementação de políticas de prevenção.
Neste sentido, o IMC supõe um índice que requer tão somente a aplicação de uma fórmula para realizar o cálculo, e desse modo confere aos estudos uma aura de objetividade e transparência que é sempre bem recebida pela comunidade de especialistas que atuam nesses organismos. Além disso, a padronização de pesos corporais a partir de um mesmo conceito e de uma mesma medida facilita, portanto, a realização de estudos estatísticos de tipo comparativo, uma vez que, ao homogeneizar as categorias e reduzir sua complexidade, ignora as diferenças conceituais e neutraliza as variações no interior das categorias estabelecidas.
Isso não tem passado despercebido por estudiosos da questão (Halse, 2009; Jutel, 2009; Stuart, 2013). Entre outras questões, Stuart (2013) argumenta que a redução da complexidade inerente às noções de obesidade e sobrepeso, o estabelecimento do sobrepeso como um estado de proto‐enfermidade e, fundamentalmente, a migração de descrições de tipo qualitativas sobre a obesidade em direção a outras definidas unilateralmente por medições de tipo estatísticas, tem catalisado a produção não apenas da obesidade epidêmica, mas também da pandemia.
Não obstante, e apesar dessas polêmicas e controvérsias, o IMC tem prevalecido como discurso virtuoso que classifica em normal e anormal, em saudável e patológico e em seguro e arriscado, os pesos e tamanhos corporais de populações e indivíduos.
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Um discurso virtuoso é constituído por um conjunto de valores, crenças, práticas e ações que estabelecem regimes de verdade destinados a moldar os sujeitos através da construção de determinados comportamentos como valiosos, desejáveis e saudáveis (Halse, 2009: 47). O que distingue um discurso virtuoso de outros discursos é que o virtuosismo se configura como um estado cuja dinâmica de comportamento é assintótica. Isso significa que não há limite nas ações que se pode empreender para alcançar o ideal normativo imposto por aquilo que o ICM postula como o peso normal. Isso se torna evidente na oferta de um sem‐número de produtos e serviços que são colocados à disposição dos consumidores e usuários que desejam se aproximar do dito corpo ideal.
Se googleamos as palavras peso ideal e IMC o instrumento de busca levantará cerca de 100.000 páginas dentre as quais uma porcentagem considerável corresponde a empresas ou profissionais liberais (nutricionistas, personal trainers, cirurgiões estéticos, entre outros) que oferecem programas de nutrição e de atividades físicas, entre outros produtos, para reduzir o peso corporal e a massa de gordura. Escolhendo uma página ao acaso encontramos um teste que o próprio internauta pode realizar para saber se seu peso está adequado para sua altura. Note‐se a menção à OMS enquanto entidade que legitima a informação que é publicada no site.
Peso Ideal ‐ Calcule seu peso ideal de acordo com sua altura “O peso está diretamente relacionado ao nosso bem‐estar. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Espanhola para o Estudo da Obesidade (seedo) recomendam controlá‐lo e mantê‐lo em equilíbrio. [...] Com esta ferramenta você poderá saber o seu peso ideal em segundos, preenchendo os campos abaixo. No resultado você obterá o seu Índice de Massa Corporal (IMC) [...]” (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado em “Dietas a tu medida”, 2011).
Apesar de se ter afirmado, em diferentes lugares, que o IMC não
é válido como ferramenta para o diagnóstico clínico, e muito menos
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para o auto‐diagnóstico (Kuczmarski e Flegal, 2000)9, esta medida se está enraizando no tecido social como parâmetro normativo.
“Se seu resultado é o “normopeso”, você está em uma forma ideal [...] Por outro lado, quando você tem mais quilos do que é aconselhado em função de sua altura e data de nascimento, as opções apresentadas são duas: sobrepeso (de grau I ou II), dado que mostra que deve se cuidar um pouco, mas sua saúde não se encontra em risco grave; ou obesidade (de tipo I, tipo II, tipo III ou mórbida, e tipo IV ou extrema). [...] Se seu resultado é este, você deve procurar por um nutricionista, depois de consultar seu médico generalista, pois sua saúde pode estar em perigo...” (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado em “Dietas a tu medida”, 2011)
O IMC, por ser um índice que pode ser aferido por qualquer
pessoa que tenha conhecimentos mínimos de matemática, tem sido amplamente adotado tanto pelos órgãos de saúde pública, nacionais e internacionais, como por empresas que oferecem produtos e serviços para o emagrecimento. Portanto, esta medida não apenas se torna um ideal dificilmente realizável, mas também se ajusta a uma norma
9 Os conceitos de obesidade e sobrepeso cunhados pela OMS remetem a um excesso de gordura no corpo humano. Uma das críticas centrais que tem sido feito ao ICM é que ele não é um método adequado para medir massa magra, mas que o que ele efetivamente mede é a massa corporal. A variável “peso do corpo” medida em quilogramas compreende a massa magra, mas também se correlaciona com a densidade óssea do corpo e, especificamente, a massa corporal (Finer, 2012, apud Stuart 2013). Métodos como medição de dobrascutâneas, pletismografia corporal ou a obsorciometria de raio‐X e de energia dupla (DEXA) seriam, em todos os casos, os métodos apropriados para medir a massa magra do corpo em nível individual (e, possivelmente, também seriam mais confiáveis do que o ICM em nível populacional). Todavia sua implementação supõe um custo mais elevado que o ICM. Ademais, o ICM foi criado, nas suas origens (índice de Quetelet), com a finalidade de determinar médias em uma população, e não para ser aplicado em nível individual, e muito menos em contextos clínicos.
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estratégica no marco de um discurso altamente moralizante que opera sobre a base de uma noção alargada de saúde10.
“O índice de massa corporal (IMC) é um indicador simples da relação entre o peso e a altura, que é comumente usado para identificar o sobrepeso e a obesidade em adultos. [...] O IMC fornece a medida mais útil do sobrepeso e da obesidade na população, uma vez que ela é a mesma para ambos os sexos, e para adultos de todas as idades.” (WHO, 2012) O ICM, ao classificar pesos corporais, também classifica pessoas.
Por exemplo, a valoração geral de pessoas em condição normal ou patológica contribui para a geração de estereótipos em um sentido estigmatizante, como acontece com a conhecida associação entre a obesidade, a gordura e termos como doença, preguiça, passividade, gula, lerdeza, falta de autoestima, entre outros.
O ICM invoca e se baseia em uma lógica binária e normalizadora na qual aqueles que se aproximam do ideal, do peso normal, estão a salvo das enfermidades e dos riscos associados aos estados (potencialmente) patológicos, que são aqueles que se desviam, por excesso ou déficit, dos valores definidos como ʺnormaisʺ.
“Um IMC elevado é um importante fator de risco para enfermidades não transmissíveis, como: diabetes, transtornos do aparato locomotor (especialmente a osteoartrite), doenças cardiovasculares (principalmente cardiopatia e acidente vascular cerebral). [...] O risco de contrair estas doenças não transmissíveis cresce com o aumento do IMC.” (WHO, 2012)
10 Saúde, para a OMS, já não significa ausência de doença, mas estende seu significado a uma idéia ambivalente, subjetiva, de bem‐estar individual. Esta redefinição do termo inagura uma nova episteme em saúde, na qual o processo de medicalização indefinida, tão lucidamente descrito por Foucault (1996: 75‐80), move‐se de um paradigma centrado na doença, e em seu diagnóstico, em direção a outro que amplifica o mecanismo da vigilância, incorporando as funções orgânicas em equilíbrio, a vitalidade física e a disposição sócio‐mental dos cidadãos: ʺA saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou enfermidadesʺ (OMS, 1948).
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As crônicas do risco ganham peso político‐sanitário por meio de uma narrativa de matiz epidemiológica que correlaciona a prática de estilos de vida específicos com a probabilidade de desenvolver determinadas doenças degenerativas. O sedentarismo e uma dieta desequilibrada (rica em gorduras) aparecem, nos marcos de tal narrativa, como os principais fatores de risco que contribuem para elevar as taxas de morbidade e mortalidade por doenças não transmissíveis em todo o mundo.
Este epidemiologiado risco legitima a promoção de um estilo de vida ativo, apontando que tipo de condutas são prejudiciais à saúde, ao mesmo tempo em que adverte a população acerca do tipo de precauções que devem ser tomadas para se ter uma vida livre de tais enfermidades (Lupton , 1999, citado em Fraga, 2005: 81).
“O sobrepeso e a obesidade, assim como seus males associados não transmissíveis, são em grande parte preveníveis. Para apoiar as pessoas no processo de fazer escolhas, de modo que a opção mais fácil seja a mais saudável em matéria de alimentação e atividade física periódica, e, em consequência, de prevenção da obesidade, são fundamentais as comunidades e os contextos favoráveis.” (WHO, 2012)
Isso envolve o estabelecimento de territórios de fronteira onde
os sujeitos são categorizados em ir/responsáveis, a/normais, e saudáveis ou doentes. Estas narrativas colocam nas mãos dos cidadãos a responsabilidade por suas escolhas vitais e pelas consequências des/favorável que resultam delas.
“No nível individual, as pessoas podem: ‐ limitar a ingestão energética procedente da quantidade de gordura total; ‐ aumentar o consumo de frutas e verduras, bem como legumes, cereais integrais e frutas secas; ‐ limitar a ingestão de açúcares; ‐ realizar uma atividade física períodica, e ‐ atingir o equilíbrio energético e um peso saudável.” (WHO, 2012)
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É traçada, desta forma, uma cartografia dos novos marginais, identificados como ameaças ao bem‐estar nacional e mundial. O obeso e a obesa integram esta extensa lista.
“Muitos países de baixa e média renda atualmente estão enfrentando uma ʺdupla cargaʺ da morbidade. [...] Enquanto continuam lidando com os problemas de doenças infecciosas e desnutrição, estes países estão experimentando um aumento brusco nos fatores de risco para doenças não transmissíveis, como a obesidade eo sobrepeso, especialmente em ambientes urbanos.” (WHO, 2012).
Em torno desta topografia moral se ergue um aparato político‐pedagógico que organiza e dissemina um conjunto de saberes e técnicas de autogestão que o coletivo social deve interiorizar e incorporar se deseja alcançar esse respeitado estado saudável. Tal como Hardwood (2008:15‐30), denominaremos esse conjunto de práticas de ʺbiopedagogiasʺ. As biopedagogias operam sobre a base de uma concepção neoliberal de ʺindivíduoʺ, capaz de gerir sua própria saúde e controlar os riscos que a cercam. É depositada, assim, total confiança em sua ação empreendedora e em sua capacidade de (auto)transformação, (auto)correção e adaptação. A implementação de dispositivos discursivos moralizantes que estimulam as pessoas a adotar práticas de (auto)controle e (auto)viligância, alguns dos quais apresentamos neste artigo, são baseados neste paradigma.
“A responsabilidade individual só terá eficácia plena quando as pessoas tiverem acesso a um estilo de vida saudável. Portanto, em matéria social é importante: ‐ Apoiar as pessoas no cumprimento das recomendações acima, mediante um compromisso político sustentado e a colaboração das múltiplas partes interessadas, públicas e privadas, e ‐ Fazer com que a atividade física regular e os hábitos alimentares saudáveis sejam economicamente acessíveis e inteligíveis por todos, especialmente os mais pobres. (WHO, 2012)
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Aquilo que se tem chamado de obesidade epidêmica11 tem dado origem a novas modalidades de disciplinamento e controle, em outras palavras, biopedagogias. Estas se organizam como práticas de governo orientadas para a gestão dos corpos com o propósito explícito de reduzir a porcentagem de população obesa, assinalando os riscos implicados em tal condição.
A OMS estabeleceu o Plano de Acção 2008‐2013 para a estratégia mundial de prevenção e controle de doenças não transmissíveis, a fim de ajudar os milhões de pessoas que já estão afetadas por estas doenças, que passam toda a vida enfrentando e prevenindo suas complicações secundárias. O Plano de Acção se baseia na Convenção‐Quadro da OMS para o Controle do Tabaco e na Estratégia mundial da OMS sobre dieta alimentar, atividade física e saúde, e fornece um roteiro para a criação e fortalecimento de iniciativas de vigilância, prevenção e tratamento das doenças não transmissíveis. (WHO, 2012)
Neste deslizamento do poder se instaura uma biopolítica que,
em articulação com as formações disciplinares, funciona como um controle aberto e contínuo, sancionando, desta maneira, uma nova educação corporal e sanitária (Fraga, 2005: 77; Deleuze, 1991).
Neste regime os indivíduos não estão apenas submetidos a condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias, mas também pressionados a realizar automonitoramentos constantes através de saberes (conhecimentos científicos) que os orientam sobre como comer de modo saudável e manter‐se ativo, ao mesmo tempo em que informam sobre a obesidade e seus riscos associados.
O estilo de vida ativo que a OMS promove glorifica a vida ativa e demoniza a obesidade e os desvios que a ela são atribuídos (Fraga, 2005; Rail et.al., 2010). Este paradigma opera sobre a base de: a) uma ideia de perigo vinculada à existência de formas de vida classificadas como arriscadas: sedentarismo, alcoolismo, consumo de tabaco, etc. (Rail et
11Vale destacar o terreno escorregadio sobre o qual respousa o conceito de epidemia da obesidade, já que esta não é uma doença contagiosa (não se espalha através do contato entre as pessoas) e é difícil pensar que se poderá fazer um antídoto para sua redução na população global.
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al., 2010); b) o mito de que atividade física é saúde12, e que sua prática sistemática pode impactar positivamente na prevenção dos riscos relacionados à obesidade (Carvalho de 1998, Fraga, 2005); c) uma perspectiva sobre o saudável representada por uma forma/composição corporal/muscular mensurável, que identifica no acúmulo de gordura o agente do perigo; d) uma noção neoliberal de pessoa entendida como um indivíduo responsável por si e por suas ações, capaz de modificar seus hábitos e estilos de vida através da incorporação de técnicas de (auto)disciplinamento (Vazquez Garcia, 2005); e, finalmente, e) uma política de prevenção que valoriza a divulgação como forma de educar quanto aos benefícios da prática regular de atividade física para a saúde, por um lado, e por outro como meio de informar sobre as novidades, em matéria de riscos, que os diferentes estilos de vida identificados como prejudiciais à saúde representam para a vida individual e coletiva (Fraga, 2005).
Em resumo, o estilo de vida ativo, e a consequente estigmatização do sedentarismo e da obesidade, operamsobre a base de
12 A noção de mito é tomada da investigação realizada por Yara Maria Carvalho intitulada ʺEl ʹMitoʹ de la Actividad Físicaʺ, no qual se correlaciona a noção de mito com a crença generalizada de que atividade física é saúde. A autora adverte que, para além da validade de certas hipóteses sobre a questão da saúde e da prática sistemática de atividades físicas, de rituais e de relações repetitivas que os sujeitos contemporâneos estabelecem em torno desta crença, em grande parte impulsionada pelos meios de comunicação, naturalizam os saberes científicos da medicina e da fisiologia do exercício como verdades últimas. Neste sentido, é importante resgatar também o trabalho de Eric Oliver Fat Politics The Real Story Behind America’s Obesity Epidemia no qual se discute alguns discursos extremistas que associam a obesidade com riscos de morbilidade e mortalidade na população norteamericana. Ademais, inversamente, há uma infinidade de exemplos que mostram que a atividade física pode ou não ser saudável, e que isso é condicionado por quem, quando, onde e como se praticam as atividades esportivas e a ginástica. Em resumo: o mito é um discurso que se converte em uma crença concebida como verdade inquestionável, e em torno da qual se organizam rituais e práticas que são naturalizados na esfera do social e do religioso. A partir desta perspectiva, a equação atividade física e saúde transforma‐se num mito na sociedade contemporânea, na medida em que é incorporada na vida familiar e comunitária, naturalizando (ou seja, ritualizando) a relação entre os sujeitos, as tecnologias corporais, a medicina e os corpos, e reproduzindo dispositivos de saber‐poder e de espe(ta)cularização que sacralizam as associações entre beleza, saúde e cuidado do corpo como formas universais.
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um conjunto de estratégias biopedagógicas que ensinam/orientam as pessoas a respeito de como e o que é ser um bom biocidadão (Halse de 2009; Harwood, 2009). 2.2. As confissões carnais de obesidade do corpo
Os biopedagogías sobre as quais fizemos menção na seção anterior operam na base de dois registros: um prescritivo e outro escópico.
O registro prescritivo coloca em circulação saberes e narrativas tendentes a inscrever os corpos no conceito amplo de saúde e bem‐estar. Para isso, usa uma retórica que pode transitar entre um tom informativo ou de conselho, a outro entusiasta e amigável. Pode ainda adotar um estilo intimidante que beira o terror.
O regime escópico ativa uma dinânima de produção de imagens que operam a partir da criação de figuras dicotômicas tais como a/normal e in/desejável, associadas à lógica de operação binária do ICM e do par ʺmodelo (exemplo)/estigmaʺ (Barthes, 1974: 48, Goffman, 2003).
É interessante observar como são apresentadas, em diferentes meios de comunicação de massa, a idéia de beleza, cuja imagem está em acordo com o estabelecido pelo regime prescritivo e, por sua vez, com a perspectiva hegemonizante do discurso sanitário. Por exemplo, a obsessão paranóica por reduzir os excedentes abdominais até a conquista da pureza muscular parece enraizada no diagnóstico mítico da chamada obesidade andróide, ʺo padrão típico de acúmulo de gordura em um homem, no qual a gordura se deposita principalmente na parte superior do corpo, especialmente no abdômenʺ (Wilmore e Costill, 2001: 541). O mesmo ocorre com a obesidade ginóide, tipicamente feminina, cuja concentração de gordura e volume se concentrado na região dos glúteos, quadris e coxas, ou seja, os mesmos locais do corpo que constituem o foco da preocupação estética de diversos produtos e técnicas de emagrecimento (Wilmore e Costill, 2001: 541).
Do mesmo modo como um abdômen magro, fibroso, musculoso em um homem é um sinal de sensualidade e vitalidade, uma barriga proeminente de cerveja é percebida, pelo contrário, não apenas como um desagradável fator estético, mas, principalmente, como um fiel indicador de desvios em sua forma corporal.
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Figura 2. Imagen exibida no artigo “As gorduras são imprescindíveis para a vida?” Publicado em Revista Muy Interesante (8/1995: 8).
A gordura que se acumula na região central do corpo é
anunciada metabolicamente como a mais perigosa para a saúde. Os fatores que são reconhecidos como responsáveis por sua produção são, em maioria, aqueles associados a um estilo de vida sedentário e degenerado. Daí se conclui que sua redução ou aumento estão relacionados às práticas in/sanas do indivíduo afetado pelo nocivo excedente corporal. Se este persiste na forma insana, diz‐se que o indivíduo é merecedor dos riscos auto‐degenerativos.
O peso moral que regula o entendimento social é organizado em torno do princípio normativo neocapitalista que clama a que cada um se responsabilize por seu próprio bem‐estar. Seu des/cumprimento se evidencia por meio da (própria) ʺapresentação pessoalʺ (Goffman, 1989).
Metafórica e conceitualmente, e a partir de um registro quase religioso, a obesidade é tratada pelo dispositivo da saúde e do bem‐estar como um pecado contra o credo sanitário‐empresarial da (auto)liderança individual e, portanto, da (auto)gestão corporal e pessoal. O obeso e o sedentário representam, desse modo, o fora do
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ideal, que regula a performatização dos corpos saudáveis, bonitos e produtivos (Fuss, 1999). É demarcada, assim, uma ordem moral que se polariza em uma série de dicotomias, onde o primeiro elemento do par converge com o ideal empresarial enquanto o segundo, sustentando seu oposto, condena o desvio de maior visibilidade. O pecador é representado, então, como o sujeito irresponsável, incapaz de autocontrole, desorganizado, passional, impulsivo, cuja compulsão o leva ao caminho da ruína, do vício e da consequente destruição.
Figura 3. Fotografia exibida no artigo “É verdade que se sou obeso terei disfunção erétil?” (Gómez, 2008) publicado na Revista Men’s Health (2/2008: 8).
O corpo do obeso ingressa em uma trama confessando sua transgressão. Sua volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa não fazem mais que narrar o conglomerado de faltas que este mortal comete em seu dia a dia. Tal diagnóstico clínico e governamental implica em um conjunto de práticas visuais: a observação social, a espionagem em torno das formas corporais dos
ʺoutrosʺ e até mesmo a confissão dos ʺtrangressoresʺ, são fruto de um olhar estigmatizante e inquisitor (Scholz, 2009).
O obeso é situado neste imaginário nos limites do humano/ não‐humano e do bárbaro/ civilizado, a partir de um repertório de figurações que vão desde o grotesco e o monstruoso até o alienígena, assexuado e infantil. Os obesos, pecadores por terem se distanciado das normas de sua sociedade, tornam‐se espetáculo cujo castigo é posto no duplo efeito de sua aparência: da perspectiva estética, seus excessos comunicam monstruosidade física, enquanto que a partir da abordagem santitária,
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os mesmos são tidos como enfermidades, riscos e até mesmo tomados como fatores subjetivos de marginalização social.
Figura 4. Empresa: Del Mar ‐ Medical Spa Empresa, especialista em programas de perda de peso. (Mercado Fitness, 5,6/2010: 82).
Figura 5. Imagen de uma campanha de 2009 do Ministério de Saúde de Portugal. Texto: Os sedentários nao conseguem escapar das doenças. Faça exercício. (Mercado Fitness, 5, 6/2010: 83)
A exposição ridicularizada
destes sujeitos pelos diversos meios de comunicação opera como um biopedagogia que mostra o que pode acontecer com quem se afasta da regra compulsória da vida saudável e ativa. Como reflete Prosa (2010, s. p.):
Os super‐heróis da gula, de Gargantúa até Diamond Jim Brady, têm sido relegados a um passado distante, ignorante e atrasado. Seus
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herdeiros – os grandes comilões de hoje – são costumeiramente considerados seres anormais ou sociopatas ou, ainda mais comumente, perdedores medíocres, desajustados ou espécimes humanos desgraçados. Ocasionalmente, pessoas extremamente obesas (nais quais talvez vejamos imagens aterradoras do que pode nos acontecer se ignoramos os escrúpulos de controle social e nossos próprios superegos vacilantes) aparecem no noticiário do jornal da noite ou nos programas com testemunhos de violência em horário nobre.
O bom, a massa magra, e o ruim, a massa gorda, se enfrentam,
como num território de batalha, na própria corporalidade. Assim, corpos obesos convertem‐se em textos nos quais se pode ler a diferença, a enfermidade, a dis/funcionalidade, a in/docilidade e a monstruosidade (Torras, 2007:17). Esta textualidade pode ser reescrita, corrigida, adaptada, ou ao menos simular normalidade, em uma aparência espe(ta)cular e/ou em um organismo que se move, produz, figura, opera segundo a norma de uma forma‐função normalizada.
Portanto, o discurso do saudável, cuja finalidade é sustentar a ficção do sujeito empreendedor e a representação positiva de si mesmo (também fictícia em si), deve se estruturar como dialeticamente polissêmico/a e ambivalente para que possa nomear, apropriando‐se e suprimindo todos os possíveis comportamentos dos outros, toda a multiplicidade subversiva derivada de um excesso simbólico que pode vir a afrontar a hegemonia sanitária da cultura ativa (Figari, 2009: 225; Boltanski, 2002: 167). 3. O (des)governo dos zumbis
Através da figura do morto‐vivo, este ser que trai um dos tabus sociais mais antigos e firmemente estabelecidos, uma série de valores, medos e conflitos históricos socialmente delimitados podem ser analisados. Este parece o caso dos zumbis contemporâneos, personagens da cultura do entretenimento que, de origem colonial e religiosa, alcançaram no início do século XXI o status midiático de uma das principais metáforas do caos social (Drezner, 2011), conforme exemplifica o
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Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo estadunidense13 em sua campanha Prontidão zumbi, criada para explicar como a população deste país deve agir caso aconteça um ataque destes seres: se você está bem equipado para lidar com um apocalipse zumbi, você estará preparado para um furacão, uma pandemia, um terremoto ou um ataque terrorista14.
No mundo do entretenimento contemporâneo, seja em filmes, livros, quadrinhos ou videogames (Russel, 2010), os zumbis predominam como o principal exemplo fantástico e ficcional de um inimigo instintivamente agressivo, numericamente superior, absolutamente sem compaixão (porque não possui nenhum tipo de emoção), irracionalmente eficaz, devorador literal de vidas e cuja origem é misteriosa e confusa. Este último fator é, inclusive, um dos elementos característicos deste morto‐vivo pós‐moderno: sua procedência tem versões distintas nas mais variadas narrativas, indo desde um efeito desconhecido da radiação nuclear15 (que causa a “ressurreição” dos cadáveres) à manipulação genética de vírus desenvolvidos para guerras bacteriológicas e que fogem ao controle16 (causando a agressividade, a decomposição dos corpos e a urgente necessidade de se alimentarem de carne humana). Para este artigo, a origem histórica deste monstro tão recente e ocidental quanto internacionalmente expressivo17 é fundamental. 3.1. Cadáveres famintos
Conforme Mary Del Priore, em seu estudo sobre monstros,
durante o século XVII na região dos Balcãs, na Grécia, na parte oriental do Império Austro‐Húngaro e na Rússia, houve uma grande
13Center for Disease Control and Prevention – CDC ‐ http://www.cdc.gov/ 14Zombie preparedness. Disponível em: http://www.cdc.gov/phpr/zombies.htm. Acesso em: 05/03/2013. Todas as traduções são dos autores.
15 Como no filme fundador da figura do zumbi contemporâneo, A noite dos mortos vivos (Night of the living dead, dir: George Romero, EUA, 1968).
16 Como no filme Extermínio (28 days later, dir: Danny Boyle, Reino Unido, 2002). 17 Existem filmes de zumbis produzidos em vários países do mundo, com culturas políticas e temores sociais tão distintos quanto África do Sul, Bélgica, Brasil, Canadá, Coréia do Sul, Cuba, Filipinas, Haiti, Itália, Japão, México, Nigéria, Nova Zelândia e Romênia, entre outros (Russel, 2010).
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propagação de ideias a respeito de mortos‐vivos, pessoas que por castigo divino ou ligações com demônios, depois de mortas “mastigavam” em seus túmulos e podiam sair para sugar o sangue (ou carne) de outras pessoas (Del Priore, 2000). Estes seres conhecidos na Grécia como vrykolakas, se tornaram política e popularmente importantes durante as epidemias de vários tipos de pestes que ocorreram no início do século XVIII em grandes regiões do leste europeu e em parte da Europa ocidental, deixando centenas de doentes e cadáveres insepultos pelas vilas e estradas.
Ainda conforme a autora, um caso de repercussão internacional no período foi o de Arnaldo Paole acusado, depois de sua morte, do desaparecimento de várias pessoas da cidade de Medwegya, na Hungria. Após as autoridades investigarem o caso e colherem depoimentos de policiais e médicos, um relatório oficial escrito em alemão foi publicado em 1732 e, no mesmo ano, divulgado em jornais e revistas de língua francesa e inglesa. É graças a este relatório e suas traduções que aparece escrita pela primeira vez, com diferença nas grafias regionais, a palavra “vampiro” (Del Priore, 2000: 108).
Este é um dado extremamente importante: os primeiros relatos modernos ocidentais sobre mortos que saem de suas tumbas procurando devorar pessoas e transformando suas vítimas também em mortos‐vivos, vão se desenvolver na personagem do vampiro18 que, até a metade da década de 80 do século XX, era o representante do mal, da luxúria e da desumanização antropofágica na cultura de massas. A partir desse período, a grande maioria das personagens vampiros tornam‐se cada dez mais sentimentais, envolvidas em crises de identidade e em profundo conflito entre sua natureza assassina e o amor‐paixão romântico burguês.
18 Na passagem do século XIX para o XX, a figura da múmia também vai contribuir para o imaginário sobre mortos que saem de suas tumbas (Loudermilk, 2003). Mas, apesar de intimamente associado ao colonialismo europeu e de seu caráter de realeza da Antiguidade, este morto‐vivo de inspiração egípcia não se desenvolveu com a mesma vitalidade que o vampiro. Talvez tenha contribuído para isso a sua falta de sensualidade e o completo distanciamento do universo erótico, tão importante para a literatura de horror da época.
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Em exata oposição aos tradicionais defuntos mastigadores dos relatos oitocentistas ou aos clássicos e sensuais bebedores de sangue inspirados em Drácula, na primeira década do século XXI os vampiros que fazem sucesso na literatura e no cinema são adolescentes que desejam, mais do que tudo, casar virgens e não lembram em nada um cadáver ambulante19. Com o crepúsculo dos aristocráticos e erotizados mortos‐vivos vampiros, vem o amanhecer das massas putrefatas de mortos‐vivos zumbis. 3.2. O espírito colonial
Conforme Kyle Bishop (2008), a primeira vez que o termo
“zombie” aparece escrito é em 1792, no texto do francês Moreau de Saint‐Méry, definindo‐o como “palavra criola que significa espírito, aparição” (apud Bishop, 2008; 143) e, no século XIX, este mesmo termo aparece associado ao nome do revolucionário haitiano Jean‐Jacques Dessalines, também conhecido como Jean Zombie (Bishop, 2008). Ele foi um dos principais atores da sangrenta revolta de escravos que, em 1794, levou este país a ser o primeiro a abolir a escravidão e, expulsando as tropas dos colonizadores franceses em 1804, declarar‐se independente, tornando‐se também a primeira república governada por negros.
Já para Jamie Russel, o termo zumbi aparece no mundo anglo‐saxão em 1889 em um artigo no Harper´s Magazine do jornalista Lafcadio Hern sobre o Haiti intitulado “A terra dos que voltam” (Russel, 2010: 23). Em 1819 a palavra aparece no Oxford English Dictionary, afirmando que foi escrita pela primeira vez na língua inglesa em uma obra do mesmo ano chamada História do Brasil, de Robert Southey, e ressaltando que zumbi era sinônimo de diabo (Russel, 2010: 23).
Segundo o dicionário brasileiro Aurélio,
“Zumbi. [Do quimb. nzumbi, ‘duende’.] S. m. 1. Bras. O chefe do quilombo dos Palmares, na sua fase final; zambi. 2. Bras. Fantasma que, segundo a crença popular afro‐brasileira, vaga pela noite morta;
19 Como na saga literária “Crepúsculo” de autoria da norte‐americana Stephanie Meyer e suas continuações, todas transformadas em uma série homônima de cinema pela Paris Filmes.
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cazumbi. 3. Bras. Indivíduo que só sai à noite. 4. Bras., Al. Designação dada no interior, à alma de certos animais, como, p. ex. O cavalo e o boi. 5. Bras. Lugar deserto no sertão” (Ferreira, 2004: 2097). Não podemos nos esquecer que o último e mais famoso líder do
maior quilombo que o Brasil teve, o de Palmares, no século XVII, também era conhecido como Zumbi ‐ conforme lembra o primeiro significado deste dicionário20. Sua fama de guerreiro chegou até Portugal e, como a etimologia de seu nome parece indicar, evocava o medo provocado por uma figura valente, inteligente, espectral e que lutava ferozmente contra a ordem escravocrata estabelecida. Sua inspiração libertária não se restringiu a seu período histórico, sendo resgatada no fim do século XX pelos movimentos sociais negros e transformando a data de sua morte, 20 de novembro, no Dia da Consciência Negra no Brasil.
Se Jamie Russel (2010) estiver correto e a primeira vez que o termo zumbi aparece em língua inglesa é num livro do século XIX sobre a história do Brasil, podemos perceber o quanto este nome já amedrontava o poder colonial nas Américas provavelmente há alguns séculos, evocando em uma mesma palavra insinuações de rebelião política e forças sobrenaturais. Zumbi dos Palmares e Jean Zombi corporificaram o espírito que assombrou o colonialismo de suas respectivas épocas históricas e culturas locais nas quais, não por caso, tal espírito foi interpretado como força maligna e demoníaca. Ao contrário dos dois líderes negros, o termo zumbi vai se desenvolver não como inspirador de coragem e rebeldia contra as injustiças sociais, mas como sinônimo de um escravo sem vontade e autonomia – e depois como um monstro irracional e desumano ‐ mostrando o quanto a opressão colonial e o medo do colonizador ajudou a formar o imaginário deste ser.
Mas é apenas em 1929 que a figura do zumbi chegou à cultura de massas norte‐americana, alcançando pela primeira vez pessoas que não viviam nas colônias caribenhas nem estavam ligadas nos assuntos de administração colonial ou política internacional. Depois de um 20 Russel (2010) e Bishop (2008) mostram como existe uma controvérsia entre vários pesquisadores sobre a origem etimológica da palavra zumbi.
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grande período interno de instabilidade política e econômica, em 1915 os Estados Unidos invadem o Haiti sob o pretexto de pacificar os conflitos e reorganizar a economia local, controlando política e militarmente o país21 (Russel, 2010). Neste contexto, o aventureiro e jornalista William Seabrook chegou a esta terra em 1928 e, um ano depois, lançou o livro “A ilha da magia” (Seabrook, sem data).
É este livro que vai divulgar massivamente para um público que se considerava moderno, racionalista, urbano e ávido por novidades exóticas, a religião vodu como algo primitivo e a figura do zumbi como sendo um infeliz escravo rural morto‐vivo (Bishop, 2008; Russel, 2010). O texto tornou‐se um sucesso imediato em vários países ocidentais e iniciou uma crescente busca no mundo do entretenimento22 por pessoas mortas de culturas e nações subalternas que, através de poderes mágicos e sobrenaturais, permaneciam vivas e mortas ao mesmo tempo. Hoje, essa imagem parece ser uma excelente metáfora para a situação de tantos povos que viviam sob o domínio de nações estrangeiras e sua brutal e desumanizante maneira de lidar com as populações e culturas nativas mas, na época, tal imagem foi compreendida como um sinal inequívoco da barbárie, ignorância e depravação sexual em que viviam os negros quando deixados a seu autogoverno, justificando a invasão militar e a política segregacionista.
Curiosamente, o encontro deste aventureiro com um zumbi é apenas uma breve – e impactante ‐ passagem do livro. Ao narrar suas conversas com Polynice, um fazendeiro da região que não acreditava nas crenças nativas, o autor se surpreende com a crença nos zumbis por parte deste poderoso senhor. Ressaltando a ligação fundamental encontrada na lenda entre o zumbi e o trabalho escravo, Seabrook narra seu encontro com esses trabalhadores amaldiçoados e infelizes em uma das passagens mais impactantes do livro:
“Minha primeira impressão dos três zumbis, que continuavam a trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho.
21 As tropas norte‐americanas se retiram apenas em 1934. 22 Inicialmente o entretenimento literário não ficcional, depois o cinematográfico e, daí em diante, adquirindo formas em todos os tipos de produções culturais: games, televisão, quadrinhos, literatura, música etc.
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Seus gestos eram de autômatos. Não podia ver seus rostos, por estarem próximos ao chão, mas Polynice segurou um deles pelos ombros e pediu que endireitasse os ombros. Dócil como um animal, o homem levantou‐se e o que vi então causou‐me um choque desagradável. O mais horrível era o olhar, ou melhor, a ausência de olhar. Os olhos estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não eram olhos de um cego, mas de um morto. Todo o semblante era inexpressivo, incapaz de expressar‐se” (Seabrook, sem data: 84). Procurando justificar o que vira através de causas naturais para
este estado humano, como a letargia23, o autor vai concluir que o zumbi é um dos grandes mistérios do Haiti, terra onde a razão ocidental encontra seu limite operacional.
Outro trabalho extremamente importante sobre o tema dos zumbis haitianos foram os livros do antropólogo e etnobiologista canadense Wade Davis, chamados “A serpente o e arco‐íris”, lançado em 198524 e “Passage of darkness: the ethnobiology of the haitian zombie”, de 1988. Nestes relatos, o autor narra sua pesquisa no Haiti patrocinada por médicos americanos em busca de explicações químicas e científicas para o processo de zumbificação. O tema estava novamente na mídia internacional decorrente dos conflitos políticos que estavam ocorrendo naquele país, com o auge da crise do governo ditatorial de Jean Claude Duvalier, o Baby doc, e que culminaria em sua deposição por um golpe militar.
Além disso, o Haiti se tornaria na década de 80 o país mais pobre da América Latina. Como se não bastasse, os Estados Unidos nesse período o culpam pela epidemia de AIDS (através de sangue contaminado usado para transfusões), mais uma vez associando o desregramento sexual dos negros à catástrofe e consequente ruína da 23 Este hipótese será pesquisada apenas na década de 80 do século XX, nos estudos de Wade Davis.
24 Fazendo tanto sucesso quanto a obra de Seabrook, rapidamente este livro foi adaptado para o cinema e lançado em 1988 com o mesmo título. No filme, a aventura do pesquisador e o interessante debate conceitual sobre religião e ciência expostos no início da película rapidamente dão lugar a um terror simplório e incapaz de desenvolver a importante questão de fundo que a própria obra apresenta: a relação entre política e a religião vodu no Haiti, especialmente no período Duvalier. No Brasil o filme foi lançado com o assombroso título “A maldição dos mortos‐vivos” (The serpent and the rainbow, dir: Wes Craven, EUA, 1988).
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civilização branca. Apenas depois de protestos diplomáticos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças25 reviu sua posição desresponsabilizando as pessoas negras haitianas pelo avanço da doença nos EUA (Parker e Aggleton, 2001). Mesmo assim, ficou reforçada a íntima relação entre o Haiti e o perigo do contágio de doenças altamente mortais, sendo este último elemento fundamental para o imaginário do zumbi contemporâneo. Em busca do poderoso veneno/ anestésico encontrado no baiacu e que seria o elemento principal de uma poção que transformaria pessoas vivas em mortas‐vivas, Davis percebeu o quanto a crença neste seres era um dos elementos mais importantes de controle social através da religião. Nas muitas sociedades secretas voduistas que se espalhavam por um Haiti predominantemente rural, ser transformado em zumbi, ou seja, alguém cujo destino após o túmulo seria tornar‐se um escravo sem vontade ou autonomia, era visto como a mais terrível punição contra os inimigos sociais. Conforme entrevista recente com o autor,
“[Na lenda] um zumbi é alguém que teve sua alma roubada por um feitiço e que fica capturado em um estado de purgatório perpétuo e que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações. Hoje sabemos que não há nenhum tipo de incentivo para criar uma força de escravos‐zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de ter uma morte digna para o vuduista ‐, tornar‐se um zumbi é um destino pior do que a morte. É por isso que no Haiti não se teme os zumbis, mas se tornar um zumbi” (Assis, 2010).
Outro elemento fundamental dos trabalhos de Davis foi mostrar
a morte como um dado muito mais cultural e social do que biológico. Ao passar pelos rituais de velório e sepultamento, o indivíduo é considerado morto pela comunidade, independente de seu funcionamento biológico. Desta forma, uma pessoa que foi velada e
25 O mesmo órgão governamental que em 2012, como vimos, vai lançar a “Prontidão zumbi”.
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enterrada, se for reencontrada novamente andando ou trabalhando, não será vista como alguém vivo como antes, mas sim como um morto‐vivo.
Desta forma, podemos perceber o quanto o zumbi “tradicional”, ou “haitiano” era associado a um imaginário colonial e religioso. Sua figura evocava o trágico destino de uma morte sem descanso, tornando a pessoa zumbificada um eterno trabalhador escravo, sempre à serviço de seu mestre e senhor, sem desejos, esperanças ou qualquer grau de liberdade. O zumbi representava, entre outras coisas, um conflito entre a tradicional ordem escravocrata e o moderno sistema capitalista, cuja solução provisória era apoiada e consagrada pelo discurso religioso. Seja política, econômica ou espiritualmente, o zumbi das colônias era o grande paradoxo e pesadelo do sonho liberal: a liberdade econômica de um capitalismo que escraviza. No cinema da primeira metade do século XX, foram dois os principais filmes que trataram do zumbi haitiano: White zombie26, de 1931 e I walked with a zombie27, de 1943 (Russel, 2010). Ambos os filmes (mas principalmente o primeiro) espetacularizaram para as grandes audiências cinematográficas um monstro originado dos países colonizados do Novo Mundo, insinuando que a “barbárie nativa” dos povos subalternizados era uma ameaça real e constante. Em seu artigo sobre White zombie, Bishop (2008: 141) afirma: em outras palavras, o verdadeiro horror nestes filmes está na perspectiva de um ocidental tornando‐se dominado, subjugado e efetivamente “colonizado” por um nativo pagão.
Depois de algumas décadas de filmes com baixo orçamento, originados de vários países, apresentando mortos quase vivos assombrando vivos quase mortos e misturando magia, extraterrestres e terror psicológico, é o cinema norteamericano independente que vai criar a figura do zumbi contemporâneo e iniciar o contágio deste tema em todo o universo do entretenimento.
26White zombie, dir: Victor Halperin, EUA, 1931. 27I walked with a zombie, dir: Jacques Tourneur, EUA, 1943
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3.3. O zumbi contemporâneo
Em 1968, George Romero lança o filme “A noite dos mortos‐vivos”. Causando um choque na época, este filme de baixo orçamento e imagens consideradas extremamente violentas, vai originar a figura do zumbi contemporâneo: um morto que retorna à vida sem consciência, comumente atacando em grupo e cujo único objetivo é devorar os humanos vivos, transformando aqueles que foram mordidos em novos zumbis.
Neste filme em preto e branco, um grupo de pessoas que não se conhecem é encurralado dentro de uma casa abandonada e cercada por estas criaturas, cuja origem ninguém compreende – embora as notícias da televisão digam que os mortos vivos devem ter alguma ligação com a radiação atômica. Liderados por um homem negro, o grupo tenta sobreviver e descobrir o que está acontecendo, enquanto os vários conflitos entre eles apenas pioram a situação e aceleram seu final trágico. “A noite dos mortos vivos” foi considerado subversivo28 sob vários aspectos: imagens explícitas29 de violência; a completa ausência de confiança nas forças estatais e nas instituições públicas (como a polícia e o próprio governo); a descrença na solidariedade e capacidade de ajuda mútua entre as pessoas e, principalmente, colocar um homem negro não como um zumbi (igual aos zumbis do colonialismo), mas como a personagem principal e líder da “resistência”, mostrando‐se o único sensato e altruísta naquele grupo. Conforme Russel (2010: 112): “o que torna a visão apocalíptica de Romero tão desconcertante é o niilismo que a anima. O levante dos mortos contra os vivos é representado por um ataque repetido contra toda a verdade, valor e conforto que a civilização se apega”.
28 Conforme Russel (2010) a quase totalidade da crítica do período viu no filme apenas o exemplo de um enredo fraco e solto que servia de desculpa para cenas de violência desmedida e gratuita.
29 Revivendo a tradição do Grand‐guinol europeu (Hand e Wilson, 2002) e ajudando a iniciar o chamado cinema “gore” ou “splatter”, com imagens exageradas e das mais realistas até então realizadas, apresentando cenas de sangue, mortes, mutilações e violências físicas.
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Entre todos os autores pesquisados, é unânime a ideia de que esta película é um marco do cinema de horror e a obra que criou a figura contemporânea do zumbi, estabelecendo inclusive os principais elementos narrativos que formarão este gênero de filme30. Podemos citar em primeiro lugar as imagens diretas e explícitas de mutilação e morte, onde o corpo humano é apresentado em detalhes apenas para realçar o efeito causado pelas imagens de sua violenta destruição.
As pessoas sendo perseguidas e encurraladas como uma caça também é outra constante destas produções. Seja cercadas em uma casa, presas em uma ilha, isoladas em um bunker ou shopping Center, a sensação de clausura e muitas vezes de claustrofobia está sempre presente31. Outro elemento importante, normalmente surgido como consequência do acossamento é o convívio forçado entre sujeitos totalmente distintos em vários níveis: social, econômico, cultural e moral. Disto resultam conflitos internos muitas vezes emocionalmente tão violentos quanto os ataques dos zumbis. No universo destas produções, o bom convívio humano é um ideal tão ilusório quanto destrutivo.
A origem dos zumbis e a causa de sua necessidade de exterminar os vivos também nunca é clara, ajudando a construir o 30 Não queremos com isso dizer que todos os filmes de zumbis sigam à risca estes elementos; apenas sugerimos que eles são os mais comuns e que os filmes mais criativos e originais sobre este tema justamente são os que conseguem subverter estes elementos‐chave que caracterizam as narrativas e o “gênero” sobre zumbis.
31 A ideia de um grupo de humanos cercado por inimigos não humanos representando o colapso da vida social e da civilização remete ao final de um dos clássicos da ficção científica, a peça “R.U.R.”, do tcheco Karel Tchápek (lançada no Brasil como “A fábrica de robôs”). Escrita em 1920 e encenada em 1921, ela narra a estória de uma empresa que constrói empregados‐escravos meio‐mecânicos meio‐orgânicos para trabalharem em fábricas, que revoltam‐se contra seus empregadores humanos. Foi esta obra que criou o termo robô, originado do tcheco, significando “servidão, trabalho forçado”. Cansados de serem explorados, os robôs se unem para destruir seus opressores. Escrita como clara referência ao socialismo e sua crítica ao capitalismo, o texto trabalhava a tomada de consciência dos trabalhadores robôs escravos e a derrocada capitalista pela organização e ascensão desta nova classe social. Da ficção científica do início do século XX ao terror fisiológico do fim deste, uma mudança parece clara: o capitalismo atual não teme mais a tomada da consciência de classe pelos organizados e politizados trabalhadores, mas a revolta daqueles que já são considerados “mortos” por este modelo.
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ambiente de insegurança e desconfiança presente nestas obras. Da mesma forma, a multidão de zumbis é fundamental: eles são inúmeros e sua quantidade cresce na mesma proporção em que fazem vítimas. Os zumbis nunca estão sozinhos, mas sempre em grupos. Mais que inteligência ou habilidade física, os zumbis representam uma ameaça pela sua incontrolável e crescente quantidade.
Mas os elementos mais inovadores criados por Romero e que definitivamente rompem a continuidade do zumbi contemporâneo com seu homônimo haitiano são o canibalismo e o contágio. A partir de “A noite dos mortos vivos”, os zumbis se desenvolveram como seres que perseguem as pessoas para devorá‐las e que, tendo contato com as secreções, mordidas ou arranhões deles, os humanos estão fatalmente condenados à tornarem‐se também um cadáver faminto32.
Ora, o zumbi haitiano não era canibal. Seabrook inclusive fala das lendas a respeito de sua alimentação, que deveria ser completamente sem sal, pois este tempero poderia trazer da volta sua consciência adormecida. A dieta deste resignado monstro colonial era estritamente regulada, enquanto que a do monstro contemporâneo e globalizado é descontrolada e insaciável, na mesma proporção em que o outro monstro analisado neste artigo – o obeso – deve controlar seu apetite.
Como vimos, o zumbi caribenho era principalmente um escravo, indissociável de um senhor e de uma relação de servidão, encarnando uma punição contra aqueles que desafiavam o poder estabelecido e assombrando o imaginário colonial. Já o zumbi contemporâneo pertence a um imaginário global e apocalíptico, onde imperam o caos e a desordem. O primeiro inspirava medo por sua evocação à manutenção aterrorizantemente imposta da ordem social; o segundo provoca medo por sua referência violenta à falta de qualquer ordem social.
Se no Haiti rural os inimigos sócio‐políticos eram as vítimas preferidas da zumbificação, no imaginário do mundo globalizado qualquer pessoa pode vir a se tornar um zumbi. Para isso, não é necessário ser encarada como uma ameaça política, mas simplesmente 32 Curiosamente, em nenhum momento desta película fundante, a palavra “zumbi(s)” é proferida. O termo usado é sempre “mortos vivos” ou, mais comumente, apenas “mortos”. Talvez com isso o diretor já quisesse deixar claro a não relação entre o zumbi haitiano e os defuntos ambulantes contemporáneos.
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ser vitima de um contágio. O trágico zumbi haitiano era um miserável físico e um amaldiçoado espiritual, enquanto o agressivo zumbi contemporâneo é um contagioso cadáver decomposto, afastado de qualquer referencial transcendente ou sagrado. Ao perder a relação com a magia e a religião (Filho e Suppia, 2011), o morto vivo atual se biologizou e se medicalizou33. Sua principal característica não é mais a alma aprisionada e abatida, mas o corpo putrefato e sempre pronto para contaminar e corromper os ideais de saúde física e social.
A corporeidade do zumbi contemporâneo é um de seus traços definidores. Enquanto estes seres haitianos possuíam estrutura física intacta, machucada pela rudeza da vida escrava, mas viva o suficiente para trabalhar, os mortos vivos contemporâneos são cadáveres decompostos. O locus da morte do zumbi caribenho estava na alma e se manifestava espiritualmente. O do zumbi contemporâneo está no plano biofisiológico, manifesto no apodrecimento explícito de sua carne e órgãos. Ora, a visão da interioridade do corpo humano é justamente uma das características da cultura visual de nossa época. Seja na ciência, com os avanços das tecnologias médicas; na arte, com o cinema de vísceras expostas ou na mídia em geral – que apresenta imagens que vão de exames clínicos dos órgãos internos ao cadáver despedaçado de uma vítima de violencia ‐ a imagem do corpo aberto, fragmentado, desmembrado e expondo seu interior é uma constante (Moraes, 2010, Ortega, 2013).
“Numa cultura na qual a intimidade deixou de ser valorizada e protegida, passando a ser exposta nos mais ínfimos detalhes em realityshows, programas de auditório, diários na Internet e outros teatros do eu contemporâneos, a interioridade visceral revelada pelas novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de essas imagens serem tão pessoais e ‘íntimas’ por pressagiar de maneira tão eficaz nossa condição mortal, estamos nos acostumando à sua difusão e reprodutibilidade.” (Ortega, 2013: 91).
33 Entre os filmes que pretendem explicar a origem dos zumbis, o argumento de um vírus ou de uma experiência laboratorial mal‐sucedida é uma constante.
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Assim, a figura do zumbi apresenta a maneira como estamos nos adaptando a ver o corpo humano: um agrupamento de vísceras, ossos e secreções cada vez mais expostas. Nesta nova maneira de apresentar e representar o corpo, a pele perde sua função de velar pelo encobrimento de seu interior, acabando com o “pudor orgânico”. A função primeira da carne nestas imagens passa ser a de demonstrar sua fragilidade e declarar que não existem mais segredos fisiológicos escondidos. 3.4 A precariedade da vida zumbificada
Como vimos, este específico morto vivo ameaça não apenas por sua fome insaciável de carne humana e do elemento contagioso de sua condição, mas por estar sempre associado a um colapso civilizacional. Não por acaso, o termo “apocalipse zumbi” é constante em tais obras. Assim, podemos afirmar que o zumbi contemporâneo representa primeiramente o inumano ou, melhor dizendo, um ser humano que já não é mais humano.
Este é um elemento extremamente importante, principalmente nos filmes: o constante aviso que os zumbis já foram humanos, mas não o são mais. Parentes, amigos, vizinhos, amantes ou filhos, todas aquelas pessoas que antes possuíam um forte laço afetivo e constituíam uma rede de solidariedade, após o “contágio” passam a ser vistas como inimigas, ameaças que devem ser unicamente exterminadas sem o menor traço de afeto ou compaixão. Os zumbis parecem legitimar a noção de que ser reconhecido como humano é um privilégio de poucos – privilégio esse que pode ser retirado a qualquer momento.
O tema do reconhecimento do Outro como humano e a fragilidade deste vínculo é um dos temas trabalhados pela filósofa estadunidense Judith Butler. Em muitos de seus trabalhos (Butler, 2006; 2010; 2011), esta autora analisa o que chama de “vida precária”, ou seja, o caráter contingente e vulnerável da própria noção do que pode ser considerado como “vida humana” e, assim, conferir a determinadas pessoas ou grupos o status de humanos, merecedores de afetos, cuidados, proteção e inteligibilidade.
Para a autora, a “vida” não é pensada como um dado natural e biológico, mas como uma relação de forças sociais, simbólicas e
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biopolíticas que legitimam determinadas “vidas” a serem vistas como importantes e merecedoras de reconhecimento enquanto outras são encaradas como supérfulas, desnecessárias e incovenientes.
Refletindo sobre a guerra – especialmente a “guerra ao terror” estadunidense ‐ e sua lógica de desumanizar o inimigo, em um esforço que envolve não apenas propaganda e campanhas militares mas necessita da cumplicidade e apoio da mídia, Butler nos mostra como, nestas relações de poder, determinados grupos ou pessoas não são compreendidos como totalmente humanos. Sendo assim, essas vidas podem ser arruinadas, tornadas miseráveis ou mesmo destruídas sem que isso venha a abalar aqueles que as destroem ou mesmo os que apenas “se informam” sobre tais acontecimentos. Conforme a autora (2006: 58): “certas vidas estão altamente protegidas e o atentado contra sua santidade basta para mobilizar as forças da guerra. Outras vidas não gozam de um apoio tão imediato e furioso e não se qualificam inclusive como vidas que ‘valham a pena’”.
Ora, como vimos, a figura do zumbi contemporâneo parece se encaixar perfeita e literalmente neste modelo de vidas que não são mais reconhecidas como vidas, tornando seus sujeitos não‐humanos. Seguindo a lógica da guerra, as obras sobre zumbis parecem proclamar que existem pessoas ou grupos que não são humanos (mesmo que já tenham sido algum dia) e que seu extermínio é necessário, não devendo ser pensado como algo cruel ou “desumano”. Ainda conforme Butler (2010, 54), “por isso, quando tais vidas se perdem elas não são objeto de dor, pois na retorcida lógica que racionaliza sua morte, a perda de tais populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”. Exatamente o mesmo discurso usado nas obras com zumbis.
Assim, visto como uma relação política de legitimação de determinados grupos, valores e ideias sobre outros, a figura do zumbi contemporâneo com sua ameaça civilizacional pode ser pensada não apenas como metáfora do caos social internacional que se instalaria com um ataque destes seres (Drezner, 2011), mas como o incontável números de pessoas e vidas em todo o planeta que são encaradas como perigosas, repugnantes e desimportantes. Como os zumbis, muitas vezes o fim destes seres que não são mais vistos como humanos é o
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extermínio, sem direito ao luto ou mesmo ao reconhecimento de sua humanidade.
Neste sentido, o zumbi globalizado contemporâneo é igual ao seu antecessor caribenho e colonizado: ambos são monstros por não conseguirem ser pensados como humanos. Suas “vidas mortas” representam nem tanto o questionamento dos limites culturais entre a vida e a morte, mas principalmente um jogo de poder político que determina quem deve ser visto como um morto, uma ameaça impura e, consequentemente, ser descartado como uma vida que não vale a pena ser vivida.
“São vidas nas quais não cabe nenhum pesar porque já estavam perdidas para sempre ou porque na verdade nunca o “foram”, e devem ser eliminadas desde o momento em que parecem viver obstinadamente nesse estado moribundo. A violência se renova frente ao caráter aparentemente inesgotável de seu objeto. A desrealização do ʺOutroʺ quer dizer que ele não está vivo nem morto, mas em uma interminável condição de espectro”. (Butler, 2006: 60).
Em um mundo em que, apesar dos esforços em contrário, o
racismo, o sexismo, as discriminações por etnias, sexos, gêneros, classe, nação, cultura ou traços físicos, entre outras, não apenas continuam vivas mas renascem quando acreditava‐se que elas não existissem mais, uma questão fica no ar: se ideias que já deveriam estar mortas e enterradas continuam saindo de suas tumbas e encontrando abrigo em nossas mentes e atitudes, talvez os zumbis não sejam apenas uma personagem de ficção. Talvez zumbis sejamos nós. 4. Reflexões finais
Tal como aponta Foucault, desde o alvorecer do século XVIII, o corpo e a vida foram convertidos nos objetos e objetivos do poder (cf. Foucault, 2002a, 2002b). Quando a vida do homem biológico está imbricada na do homem político, se assiste a uma reconfiguração da política. A política se converte em vigilância e gestão de corpos e da vida.
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O corpo perde sua caracterização naturalista e essencialista, e passa a ser compreendido como uma configuração do poder. Como expressa Haraway ʺos corpos (...) não nascem, eles são fabricados. Eles foram completamente desnaturalizados enquanto símbolo, contexto e tempoʺ (Haraway, 1995: 357). O corpo e a vida não são um fato biológico, mas um complexo campo de inscrição de códigos socioculturais que devem ser decifrados.
Neste contexto, podemos dizer que tanto o corpo monstruoso do obeso como a vida monstruosa do zumbi – questões sobre as quais nos detivemos nesse artigo ‐, são duas imagens da monstruosidade que devem ser decifradas a partir deste horizonte biopolítico. O monstro é um conceito biopolítico, definido na identidade entre vida e política.
Enquanto operador conceitual, o monstro se opõe à norma do humano. O monstro é uma figura transgressora das categorias estéticas, epistêmicas, jurídicas e políticas a partir das quais se reconhece o humano. O monstro encarna o limite entre o bonito e o feio, o saudável e o enfermo, o humano e o inumano, o vivo e o morto, o natural e o artificial. Representa uma figura específica do poder que ameaça o que é definido como humano. Portanto, o monstro tensiona a pretensão classificatória e normalizadora do biopoder.
Embora os limites do humano e do monstruoso pareçam estar delimitados e fixados, a presença de corpos monstruosos e vidas monstruosas problematiza tais demarcações e aponta uma zona onde esses limites tendem a se confundir. A obesidade epidêmica e os zumbis, do ponto de vista do discurso da ciência (biomédica) e da ficção, questionam as definições sobre o que é um corpo e uma vida propriamente humanos.
Por um lado, a obsesidade epidêmica aponta para a monstruosidade do corpo humano, a monstruosidade (a gordura) que assombra o corpo a partir de seu interior até apoderar‐se dele. A obesidade é a manifestação, transcrita no corpo, da monstruosidade que está no humano, é um humano convertido em monstro. A volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do corpo são marcas somáticas que confessam, em seu corpo, a transgressão dos limites entre o humano (saudável e belo) e o não‐humano (enfermo e feio).
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Por outro lado, o zumbi representa a desumanidade do monstro, é um corpo humano em decomposição, um morto‐vivo que perdeu certas manifestações humanas: rosto, linguagem, afetividade. O zumbi é também um humano convertido em monstro, portador de uma vida menos que vida, de uma vida que conduz à própria morte.
Ambas as imagens da monstruosidade informam que, apesar de sua constituição em oposição à norma do humano, não se trata de uma alteridade radical com relação ao humano, mas de uma ʺexclusão inclusivaʺ (Agamben, 2005), uma exteriorização do monstro que habita, que está incluído, no humano. A monstruosidade desafia a norma a partir de sua própria interioridade, é um perigo inerente à norma do humano.
Os critérios normativos sobre os quais se estabelece ʺo humanoʺ permitem uma gestão desigual sobre a população considerada ʺhumanaʺ e aquela que se tem desumanizado. O monstro, como perda de humanidade, seja por portar um corpo monstruoso – o obeso –, seja por levar uma vida monstruosa – o zumbi –, é objeto de uma gestão política que o define como um ser carente de valor. Consequentemente, sobre o continuum da população se produzem cortes entre a população que se quer defender (os que representem a norma) e os monstros (os que se desviam dela), ou, em outros termos, entre os ʺcorpos que importamʺ e ʺas vidas dignas de serem vividasʺ, e os ʺcorpos descartáveisʺ e as ʺvidas que não merecem ser vividasʺ.
A monstruosidade se lança em uma economia política da vida, na qual se decide o que constitui e o que não constitui uma forma de vida humana. Produz uma vida qualificada positivamente, uma vida que deve ser protegida, e uma vida qualificada negativamente, em termos de monstruosidade.
O monstro não é apenas um ser sem valor, mas, como expressa Canguilhem, é um vivente com valor negativo cuja função é repelir. Neste sentido, o monstro é portador de um corpo e de uma vida que é considerada como uma ameaça, uma vida que é excluída do que é considerado vida ʺnormalʺ ou ʺvivívelʺ, uma vida com valor negativo.
Isso coloca em evidência o sentido moralizante que se esconde por detrás da identificação do monstro. O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perderam sua forma humana em função
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do desvio de seu comportamento. O obeso não apenas apresentaria um corpo doente, mas também um estado vital atribuído ao abandono, à falta de vontade e autoestima. É um corpo que foi monstrificado por descuido e se apresenta como um perigo para os princípios sanitário‐empresariais. Por outro lado, o zumbi é um corpo em decomposição, que perdeu toda a possibilidade de redenção, que evoca um símbolo do corpo corrompido e de uma vida corruptora.
As figuras da obesidade epidêmica e do zumbi permitem compreender a instabilidade da norma do humano e, por outro lado, a oposição à ordem social que a caracteriza. Os monstros são uma epidemia que ameaça, a partir da interioridade, a ordem normativa do humano. Os monstros irrompem no campo da biopolítica para nos mostrar a fragilidade do humano, para nos ensinar que a humanidade monstrifica, que somos monstros. Bibliografia AGAMBEN, G. Homo sacer. Poder soberano y vida desnuda. Valencia: Pre‐Textos, 2003. ASSIS, Diego. Cientista defende verdades por trás do mito dos zumbis – entrevista com Wade Davis. Portal G1, 28/01/2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/ Noticias/PopArte/0,,MUL1466802‐7084,00‐CIENTISTA+DEFENDE+ VERDADES+POR+TRAS+DO+MITO+DOS+ZUMBIS.html>. Acessado em: 15/03/2013 BARTHES, Roland. Mitologías. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980. BISHOP, Kyle. The sub‐subaltern monster: imperialist hegemony and the cinematic voodoo zombie. In:The Journal of American Culture,Volume 31, Issue 2, 12 may 2008. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. El nuevo espíritu del capitalismo. Madrid: Akal, 2002. BUTLER, Judith. Vida precária. In: Contemporânea – Revista de sociologia da UFSCar, São Carlos, Departamento de Programa de Pós‐Graduação em sociologia da UFSCar, 2011, n.1, disponível em: http://www.contemporanea. ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18/3 BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010
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PARTE II
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas
de reconhecimento no Brasil e na Argentina
Richard Miskolci1 Maximiliano Campana2
1. Introdução
Martha Minow, ao escrever sobre a relação entre direito e mudança social começa expressando o seguinte:
“Penso que existem duas classes de pessoas quando se trata do tema do direito e mudança social: aquelas que pensam que o direito é um importante instrumento de mudança social e aquelas que não creem que seja. […] Quando se trata das relações entre direito e mudança social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1).
Essa reflexão parece‐nos interessante como um pontapé inicial para realizar algumas considerações em torno da utilização do litígio como instrumento de mudança social nas demandas por reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que se mobiliza o direito, é interessante primeiro adentrar no processo de formação e socialização profissional dos/as estudantes de advocacia para seu futuro exercício profissional.
1 Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar e pesquisador do CNPq. Tem publicações na área de sexualidade, gênero e direitos humanos.
2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e Ciências Sociais (UNC), coordenador do Programa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito (UNC) e coordenador da área de litígio estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba.
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A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de quem se sente vinculado/a às demandas por justiça. Não é incomum ouvir jovens às vésperas de entrar na universidade refletindo sobre a advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de fazer valer a igualdade de todos perante a lei e contribuir para uma sociedade mais justa. No entanto, pesquisas em vários contextos nacionais indicam que se o impulso inicial para a carreira pode ser a busca por justiça, a estrutura formativa no Direito tende a frustrá‐la e até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3 Neste artigo, buscamos discutir como a formação de advogados/as poderia ser vinculada proficuamente a um comprometimento com a justiça e a igualdade. O compromisso (commitment) com esses valores poderia ter um efeito positivo de democratização de sociedades com uma história marcada por desigualdades, injustiças e autoritarismos. Em especial, nos casos brasileiro e argentino, essas três chagas culturais demandam que a atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o fim de suas últimas ditaturas militares.
2. Formação jurídica e socialização dos advogados
Voltemo‐nos para a formação de advogados/as. Para
compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe pelo currículo, a pedagogia e a avaliação:
“Ao aplicar a ideia de código à transmissão educativa que tem lugar nas escolas, Bernstein trata de demostrar que a organização, a transmissão e a avaliação do conhecimento (ou seja, o currículo, a pedagogia e a avaliação respectivamente) estão intimamente
3 Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de Boaventura de Souza Santos (2012) em Portugal. No Brasil, há várias investigações sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).
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relacionadas com os padrões de autoridade e de controle social vigentes na sociedade. […] Enfim, o código educativo explica a estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição” (Brígido, 2006a, p.45). Dessa maneira, aquele/as alunos/as que tenham internalizado o
“código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta, terão assegurado o êxito na carreira educativa e universitária. Desse modo, o triunfo e a imposição de determinados “códigos” nas faculdades de direito redundará em determinadas concepções de justiça, equidade, liberdade e direitos, concepções que atualmente se caracterizam por serem conservadoras e individualistas. Essa questão não deixa de ser relevante ao levar em conta que em países como a Argentina, o acesso à justiça só é possível pela mão de um/a advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em profissionais que finalmente custodiariam a liberdade individual e a propriedade privada, dois valores sumamente importantes na sociedade argentina.4
Diante desse panorama, quais são as motivações dos/as estudantes no momento de escolher a carreira de advocacia e quando devem inserir‐se no mercado de trabalho?
Para responder essa pergunta, Tessio Conca (2006) nos adverte que existe uma importante variação na resposta dos/as estudantes. Em geral, essas motivações podem se enquadrar em quatro grupos5: o primeiro deles se vincula com a influência de um círculo próximo, constituído por familiares e amigos/as advogados/as, que influenciam na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a profissão por sentir certa inclinação por disciplinas vinculadas às ciências sociais e, depois de ter considerado opções como ciência
4 A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes de justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos públicos, em particular para ser juiz em qualquer instância do sistema de justiça. É por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio” do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.
5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por não saber o que estudar ou não ter podido ingressar em outras carreiras de seu agrado.
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política, serviço social ou sociologia, escolhem a advocacia por considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao que também incluem a posição de prestígio e poder que ela permite alcançar. O terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma carreira que abra as portas de uma profissão tradicional, prestigiosa e economicamente rentável. Finalmente, encontramos como principal motivação da escolha da carreira a necessidade de dar resposta a um ideal social e humanitário.
No caso desses ideais, os/as estudantes manifestam que sua verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…] o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis e as constituições” (apud Tessio Conca, 2006, p.63) Com essa resposta, um estudante se associa claramente com esse último grupo de alternativas. Com certeza, a autora adverte que:
“Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam a se ver contrariadas. A própria estrutura da agência educativa, os conteúdos que se transmitem e as metodologias de ensino vão defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que têm o advogado para mudar situações de injustiça” (Tessio Conca, 2006, p.63). Desse modo, os/as alunos/as que alguma vez acreditaram na
possibilidade de satisfazer seu desejo por uma sociedade mais justa como advogados/as terminam convencendo‐se de que o papel verdadeiro do/advogado/a se centra principalmente em “litigar e ganhar” e que aqueles valores vinculados à proteção de direitos de pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional.
Isso se deve, principalmente, ao modo em que se estrutura a educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que
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a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se encontram dois núcleos temáticos claros: um central que se vincula ao direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais periférico, formado por disciplinas consideradas auxiliares ou meramente informativas (entre as quais se encontram a história, a economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos e debates que fomentem nos/as estudantes perspectivas críticas que discutam com os discursos jurídicos dominantes. A consequência de tudo isso é que as carreiras de advocacia acabam promovendo uma identidade profissional pouco comprometida socialmente, carente de crítica diante dos discursos sócio‐jurídicos tradicionais e altamente individualistas, onde os futuros advogados e advogadas se limitam a reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b). Segundo Lista (2011), a predominância de uma concepção formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na Argentina faz com que eles/as não percebam ou reconheçam a existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a impedisse de reconhecer desigualdades e, principalmente, diferenças. Denominamos desigualdade o contraste relacional entre sujeitos detentores de condições econômicas, culturais e mesmo de acesso privilegiado à justiça e aqueles/as que não detém essas condições no mesmo nível. Diferenças, por sua vez, referem‐se à forma como cada sociedade distingue/marca as pessoas com relação ao gênero, à sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.
Se em relação às desigualdades socioeconômicas a esfera jurídica até busca fazer frente ainda é menor o reconhecimento das diferenças como também engendrando desigualdades, as quais não se resumem à renda ou classe social, antes a experiências sociais de discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.
6 De qualquer forma, nos últimos 28 anos de transição democrática argentina experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um núcleo de formação prática, a associação do segundo núcleo temático com matérias interdisciplinares que flexibilizariam o currículo, também a diminuição dos anos de curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos esses objetivos foram alcançados e a implementação dessas reformas ainda está em execução.
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Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista como a predominância da transmissão de conhecimento sobre o desenvolvimento de habilidades que combina três aspectos: “a centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte classificação e hierarquização do conhecimento e a reprodução da abordagem legal positivista e formalista como modelo hegemônico” (2011, p.5).
Nesse modelo de ensino e aprendizado, o Direito tende a ser isolado de suas origens sociais e políticas, portanto apagando sua contingência de forma a reproduzir violências simbólicas típicas da sociedade em que ele se estabeleceu. O passado autoritário e classista em que o acesso à justiça foi mantido um privilégio das elites dominantes é ignorado de forma a preservar intocadas as estruturas legais e culturais que as beneficiam até hoje. Assim, não é de se estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os ideais com os quais estudantes ingressam nos cursos e o pragmatismo desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da adoção de um apoliticismo alienante. Afinal, a neutralidade da justiça não pode ser confundida com cegueira com relação às condições de desigualdade em que ela é aplicada ou, inclusive, não é aplicada, mantendo boa parte da população apartada de seus direitos e do reconhecimento de sua cidadania.
Em parte, isso se passa porque o sociológico e o histórico tendem a ser mantidos fora ou apenas parcialmente incorporados na formação legal, por meio, por exemplo, da filtragem das reflexões de cunho sociológico e político pela perspectiva do direito. É clara a tendência dos cursos brasileiros a priorizarem a contratação de advogados para oferecerem disciplinas que permitiriam maior permeabilidade da formação às discussões históricas, sociológicas, antropológicas e políticas. Buscando evitar esses contatos e trocas, os cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo o reforço ‐ de um hermetismo do direito, o que contribui para que estudantes passem a ver com desconfiança fontes que poderiam problematizar conteúdos apresentados como doutrinas e/ou verdades inquestionáveis.
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No Brasil, como analisado por Lista na Argentina, o discurso pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica: a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença dos estudantes, o estilo ritualístico e dogmático do ensino e a arbitrariedade e o antagonismo nas discussões (Cf. Lista, 2011, p.8). Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas também de sociedades latino‐americanas que vivenciaram uma história comum marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como privilégio das elites.
Nossas sociedades mudaram e se democratizaram nas últimas décadas e análises críticas como esta ou a de Lista são produtos dessa nova realidade político‐institucional, a qual, infelizmente ainda não interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito. Segundo Boaventura de Souza Santos:
“O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema de justiça, incluindo o sistema de ensino e formação, não foi criado para responder a um novo tipo de sociedade e a um novo tipo de funções. O sistema foi criado, não para um processo de inovação, de ruptura, mas para um processo de continuidade para fazer melhor o que sempre tinha feito” (2012, p.81). Estudantes de Direito formam um contingente grande e
potencialmente poderoso de profissionais que poderia auxiliar no aprofundamento da democracia em nossos países. Infelizmente, sua potencialidade democrática mantém‐se controlada por valores historicamente arraigados e que tendem mais a frear processos de mudança social do que os aprofundar. É paradoxal que as recentes conquistas no Supremo Tribunal Federal brasileiro, como o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo e a constitucionalidade das cotas raciais,7 se deem em um país em que a graduação em Direito mantém um perfil dogmático e conservador. Qual a origem desse descompasso?
7 A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012) e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012).
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Estudos como os de Bonelli (2008; 2011) demonstram que as carreiras jurídicas brasileiras, marcadas por alta competitividade, tendem a inculcar nos jovens profissionais discursos universalistas que apagam as problemáticas das diferenças. Quem quer conseguir e manter um emprego como advogado é induzido a adotar estratégias e discursos em que o profissionalismo se confunde com neutralidade. Bonelli et alli (2008) mostra como isso se passa com mulheres advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área de atuação majoritariamente masculina. Compreensivelmente, depois de ascender profissionalmente o discurso ganha nuances e muitas mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas para serem reconhecidas como boas profissionais em contextos historicamente masculinos.8
Assim, o paradoxo entre as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro e os discursos predominantes na base profissional – em especial na esfera de formação – se torna mais compreensível. A lógica de entrada na área de trabalho ainda é a da adoção, o mais irrestrita possível, das concepções mais tradicionais e arraigadas do que é o Direito, a profissão de advogado/a, do que é passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais, das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase um privilégio de quem conseguiu um emprego e certa estabilidade profissional.
3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o poder conservador dos movimentos contra o aborto
Em contraste com o cenário brasileiro mencionado no item anterior, vale a pena conhecer uma particularidade argentina. Conforme alguns teóricos (Lista, 2012, Manzo, 2011, Vecchioli, 2006), uma nova classe de advogados/as litigantes estaria emergindo no país, fundamentalmente por meio das transformações sociopolíticas e
8 Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país.
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jurídicas que se deram desde a reinstauração da democracia. Esses novos profissionais poderiam ser chamados de “ativistas” e se caracterizam por estarem vinculados a movimentos sociais e/ou organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode ser entendido também como uma ferramenta de mudança e transformação social e que o acesso à justiça não pode ser considerado apenas de um ponto de vista formal, antes ser plenamente exercido pelos/as afetados/as. Em relação a isso, e ao referir‐se aos/às advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete:
“Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla, dinâmica e com base substantiva […] tende a conceber a politização dos conflitos sociais como uma estratégia jurídica na demanda e na defesa dos direitos dos peticionantes. Por sua vez, ao promover a participação e a incorporação dos setores mais desprotegidos nas relações de desigualdade social, tendem a reforçar o poder de tais setores e fortalecer sua autonomia”. A origem desses novos “ativistas” foi favorecida por diversos
fatores, entre os quais se destacam a reforma constitucional de 19949, um maior nível de mobilização de organizações não‐governamentais em defesa dos direitos de incidência coletiva10, uma situação política favorável para a mobilização do direito, a incorporação por parte dos movimentos sociais de profissionais legais em suas fileiras, a adoção por parte desses movimentos de um discurso de direitos humanos e fundamentalmente pelas ajudas econômicas recebidas por parte de organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas
9 Tal reforma implicou a incorporação do reconhecimento de direitos de incidência coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o amparo coletivo e a ação de habeas data.
10 Por “direitos de incidência coletiva” entendemos aqueles direitos que possuem um número indeterminado de indivíduos, os quais podem ver‐se afetados diante de determinadas ações ou medidas tanto do Estado como de outros indivíduos. Se incluem nos direitos de usuários e consumidores, direitos a um ambiente sadio, direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.
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a serem implementadas deviam se desenhar estratégias de litígio de interesse público.11
Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na Argentina (incentivadas pelo financiamento externo e aplicando um modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um século depois) que pretendiam ser espaços de reflexão e formação de futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional do direito em dois sentidos: por um lado, educando advogados/as diferentes, com maior sensibilidade social em defesa dos direitos dos mais desprotegidos, bem treinados em questões de interpretação e crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o direito fosse mobilizado como uma verdadeira arma de transformação social, diminuindo as desigualdades sociais e protegendo direitos historicamente postergados (Puga, 2002).
Desde então, advogados e advogadas comprometidos/as com causas de interesse público ou com a defesa de interesses de movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas, proteção a usuários e consumidores, discriminação racial ou por motivos de gênero, sexualidade, direitos de propriedade dos povos originários, entre muitos outros. E apesar do incômodo e da reticência que essas demandas causaram (e ainda causam) nos distintos órgãos judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou a utilização estratégica do direito por parte desses/as novos/as profissionais.
Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, diversos grupos vinculados ao movimento da diversidade sexual12
11Por litígio de interesse público entendemos a estratégia de judicializar diversos casos com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais ou impactar nas políticas de governo. Em relação à ajuda econômica recebida por parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008)
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tiveram um grande êxito no momento de obter respostas às suas demandas. Essas se vincularam fundamentalmente ao reconhecimento de direitos, por parte do Estado, para conseguir o matrimônio em condições iguais às dos casais heterossexuais e, posteriormente, para que fosse reconhecida a identidade de gênero autoconferida de toda pessoa que assim o deseje. Durante as campanhas desenvolvidas, se desenharam estratégias judiciais e políticas tendentes a obter respostas judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É por isso que se deve considerar que esse movimento soube mobilizar com grande efetividade o direito (Manzo, 2011).
No caso das estratégias para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando o mesmo modelo que tinha demonstrado êxito na Espanha). Assim, surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales y Trans14. Um ano mais tarde, essa federação lançou a campanha pelo reconhecimento do direito ao casamento para casais formados por pessoas do mesmo sexo (denominada “Campanha pelo Casamento Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia não consistia tanto em obter uma sentença judicial favorável, antes o
12 Cabe esclarecer que o movimento pela diversidade sexual na Argentina não é um bloco unitário e homogêneo. Ao contrário, existem diversas e importantes divisões dentro dele (Meccia, 2006). O mesmo se passa no Brasil, país em que não se dá unificação similar à observada na Argentina. A ABGLT, com sede em Curitiba, não foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco tem um discurso e/ou metas partilhados com elas. Em outras palavras, no Brasil há mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de diversidade sexual.
13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”. 14 Em relação a isso, Litardo (2009:171) menciona que a FALGBT surge como consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas, gais, bisexuales y trans ‐ (…) a que possibilitou a reforma do código civil espanhol para o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo” no ano de 2005 e que a federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma nacionalização da questão GLTTTBI em todo território argentino. A Federación se instalou como um espaço de integração regional em busca de uma articulação em nível federal como estratégia de integração na luta e demanda por direitos civis e políticos da comunidade GLTTTBI”.
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que se buscava era instalar o debate sobre a reforma do casamento na agenda pública de então. Foi por isso que, alguns meses mais tarde, diversos deputados apresentaram na Câmara um projeto de lei de “casamento igualitário” no marco da mesma campanha.
De maneira surpreendente, a estratégia judicial funcionou e, no dia 10 de novembro de 2009, uma juíza da cidade de Buenos Aires resolveu o caso declarando a inconstitucionalidade dos artigos do Código Civil que regulavam o matrimônio, classificando‐a de discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos juízes reconheceram novamente esse direito, gerando uma importante jurisprudência vinculada ao reconhecimento dessas demandas. Com esses precedentes favoráveis, a FALGBT anunciou que lançaria uma “campanha judicial em todo o território nacional” com a finalidade de obter novas sentenças desse tipo em lugares diferentes do país. As representações se fariam por parte de advogados e advogadas da Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI) (Campana, 2011). As respostas a essas novas demandas não foram favoráveis e a questão caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.
Não foi necessário que o órgão máximo judicial do país resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava as modificações no Código Civil15, permitindo o acesso ao casamento para os/as homossexuais.
Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e, com ela, o reconhecimento da identidade de gênero se convertia na nova demanda do movimento pela diversidade sexual na Argentina. Nesse caso, a estratégia seguida foi a mesma: pressionar tanto no âmbito legislativo quanto no judicial. No primeiro, se apresentaram vários projetos de lei e, em novembro de 2011, as comissões de “Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e aprovaram um deles16, começando assim o processo legislativo. No 15 Lei nacional número 26.618. 16 Veja “Un paso hacia la identidad de género”. Disponível em http://www. pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html. (último acesso: 30 de novembro de 2011).
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âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes nos documentos públicos. A novidade dessas solicitações foram que os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que deveria se levar em conta no momento de resolver, e não o fato de terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas, psicológicas ou psiquiátricas.17 Essas demandas obtiveram uma recepção favorável nos mesmos tribunais de Buenos Aires que consideraram que a instituição civil do matrimônio compreendido apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que, nos tribunais do resto do país, diante da mesma demanda, a resposta era muito diferente), autorizando aos demandantes a mudarem suas identidades sem obrigá‐los/as a submeterem‐se a perícias médicas ou psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem demandava. Essa demanda também se resolveu no âmbito legislativo, com a lei nacional 26.743, a qual reconhece a identidade de gênero de todas as pessoas do país.
Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de um processo de transformações em diferentes instituições estatais (nas quais se incluem a justiça) que já havia começado.18
17 É importante sublinhar que até o momento, os pedidos de reconhecimento de identidade de gênero para realizar intervenções cirúrgicas de mudança de sexo ou retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por: 1. Outorgar uma grande relevância às distintas perícias a que as pessoas trans deveriam submeter‐se e os informes de experts (médicos forenses, psiquiatras, psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam. 2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas trans que já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida, caracterizadas pelo sofrimento constante e a discriminação permanente, logravam convencer ao juíz sobre a necessidade de intervenção cirúrgica e/ou retificação dos registros documentais.
18 Já existia o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans em distintas repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo, na província de Córdoba, no ano de 2011, o Ministério da Saúde reconheceu a identidade de gênero de travestis e transsexuais que foram atendidas em hospitais públicos da Província (Resol. Ministerial 146/2001). A Universidade Nacional de
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Quando se faz referência ao uso estratégico do direito na Argentina, em geral os teóricos têm uma perspectiva otimista, e entendem que a mobilização do direito pode ser entendida como uma ferramenta capaz de conseguir mudanças sociais significativas no reconhecimento de direitos por meio de vitórias em campos judiciais (Böhmer, 1997; Courtis, 2003; CELS, 2008). Inclusive quando as respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de ter utilizado os tribunais produz “efeitos indiretos” benéficos, pois em alguns casos as demandas se instalaram na opinião pública, nos meios de comunicação e nos setores políticos e acadêmicos. Dessa maneira, mantém‐se justificada a estratégia jurídica. Essa postura se baseia na visão estadunidense exposta por Michael W. McCann, o qual, em sua obra Rights at Work (1994), considera que o direito pode participar diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem estabelecida. Como sublinha esse autor em um artigo mais recente, o direito proporciona “simultaneamente princípios normativos e estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508).
Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte importante do movimento da diversidade sexual optou por uma inclusão de estratégias judiciais em suas campanhas pelo reconhecimento de direitos. Além disso, nos permitiria justificar como as decisões da justiça asseguraram direta e indiretamente o êxito das campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte do movimento LGBT seria um claro exemplo de quanto os tribunais podem contribuir à mudança social.
Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos os casos, as demandas se resolveram definitivamente no Congresso Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos diretos entre essas sentenças que reconheciam direitos e a decisão do
Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na Argentina que legislou sobre esse assunto, garantindo o respeito à identidade de gênero autopercebida de seus membros (Ord. HCS 9/11), e, posteriormente, viria a resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las personas trans deberán ser reconocidas por la identidad de género adecuada a su percepción, tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al interior de las Fuerzas”.
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Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se ditaram fora da cidade de Buenos Aires não reconheciam os direitos que o movimento demandava. Assim mesmo, a maior parte da imprensa escrita se centrou no debate parlamentar e houve, comparativamente, uma escassa cobertura dos fatos judiciais (Sgró Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que tiveram realmente as estratégias judiciais empregadas pelo movimento e quanto essas estratégias trouxeram para suas lutas por reconhecimento.
Ainda que não possamos concluir que o movimento pela diversidade sexual tenha sido exitoso pelo emprego de estratégias judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos “pró vida” têm uma grande eficácia no momento de usar os tribunais argentinos. Esses setores se caracterizam por serem marcadamente conservadores, estarem relacionados com instituições católicas, manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual vinculam exclusivamente com seu papel reprodutivo) e expressar que seu principal objetivo é a defesa da vida desde a concepção. Ademais, esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena judicial para impedir o avanço em matéria de sexualidade e (não) reprodução. De fato, atualmente, o Ministerio de Salud de la Nación enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009).
De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O caso se originou quando um laboratório farmacêutico obteve uma autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de Belén” se apresentasse diante da justiça argumentando que tais pílulas atentavam contra a vida das crianças por nascer, e solicitou que se tirasse sua autorização e se proibisse sua fabricação, distribuição e comercialização em todo país. A Corte Suprema de Justicia de la Nación aceitou a demanda considerando que a vida humana começa desde a 19 Lei 25.673 20 Caso “Portal de Belén Asociación Civil sin fines de lucro c/Ministerio de Salud y Acción Social de la Nación s/Amparo”.
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concepção e tal fármaco devia ser considerado abortivo e, em consequência, ilegal.
Os casos não se esgotam aqui. Esses grupos obtiveram resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos permitidos pela lei, o ensino de educação sexual nas escolas, a distribuição de métodos contraceptivos em hospitais públicos e, inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo sexo a que fizemos referência anteriormente (Campana, 2011). Se a maioria desses casos se caracteriza por utilizar o sistema judicial para impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados importantes quando se disputam essas questões.
O caso dos avanços alcançados pelas demandas de direitos LGBT argentinos e a manutenção de uma visão negativa do aborto podem ser pensados dentro da dinâmica maior em que se enquadram essas disputas judiciais no período democrático recente: uma rediscussão do que é a nação argentina. De forma paralela, o mesmo tem se passado no Brasil, no qual não apenas o aborto continua criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente. É perceptível que a partir do Governo Dilma Rousseff a agenda geral dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.
De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade étnico‐cultural, em especial o reconhecimento da constitucionalidade das cotas nas universidades pelo Supremo Tribunal Federal. Compreensivelmente, devido às diferentes composições populacionais e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que (ainda) se vê de forma mais homogênea enquanto no Brasil a problemática de uma sociedade multirracial se impõe.
A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um processo democrático de reavaliação do que se compreende como a nação argentina ou brasileira. A seguir refletimos preliminarmente como essa transformação da forma como compreendemos quem faz
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parte de nossas respectivas nações tem se dado a partir de um enquadramento multiculturalista, o qual tem marcas das sociedades que criaram a noção de diversidade e podem limitar os avanços e as conquistas em dois países do Sul Global. 4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações?
Em relação ao caso argentino e suas conquistas recentes, a
sociedade brasileira e seu legado cultural autoritário parece amortecer as conquistas democráticas recentes em uma das esferas em que elas mais poderiam florescer. Afinal, como já observamos, entre as motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram ideais como o de prestar um serviço à sociedade e aos que mais precisam.
Trata‐se de algo similar ao que se passa em outras esferas profissionais e políticas que mantém esses compromissos vinculados a vertentes de reflexão sobre diversidade e multiculturalismo. As melhores das intenções terminam por traduzir demandas de transformação das relações de poder e diminuição das desigualdades sociais em discursos que apelam à retórica da tolerância e da incorporação de grupos sociais minoritários sem modificar os privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os mais numerosos, antes os que detém o poder regulador da ordem social.
O fato acima é perceptível no contrassenso de chamar as mulheres ou os negros de minorais em uma sociedade como a brasileira, em que eles/as são metade ou mais da população. Na verdade, minorias, diversidade e multiculturalismo formam um vocabulário tímido e conservador para lidar com desigualdades e injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu na América do Norte em meio à preocupação com conflitos étnico‐raciais, e mesmo culturais, entre a década de 80 e a de 90 do século passado. Nesse período, havia, por exemplo, desde conflitos culturais entre diferentes comunidades de imigrantes de ex‐colônias na Inglaterra, na França e na Holanda até, na América do Norte, a rivalidade entre as partes de fala francesa e inglesa no Canadá que
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levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos Estados Unidos, no início da década de 1990, entraram para a história episódios de conflitos raciais entre negros e brancos como os que se passaram em Los Angeles.
É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge a demanda por reflexões acadêmicas e políticas apaziguadoras e conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa parte do que foi produzido daí por diante sobre diversidade, tanto em termos acadêmicos como na forma de políticas sociais. A noção de diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais, mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto institucional universalista.
O universalismo se revela intransigente e incapaz de lidar com transformações históricas e sociais em que o apelo à igualdade se sobrepõe ao reconhecimento das injustiças sobre o qual sua tradição intelectual, social e legal se assentou desde ao menos o final do século XVIII (cf. Miskolci, 2010). O multiculturalismo, por sua vez, menos do que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade contemporânea, em particular das nações mais heterogêneas ou – melhor dizendo – mais abertas ao reconhecimento de sua diversidade interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.
No Brasil, um país marcado por séculos de colonização exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e letradas. Desde então predominou o discurso universalista e os ideais de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a
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manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura militar (1964‐1985) é que surgiram condições políticas abertas a demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou violentamente negadas.
A Assembleia Constituinte de meados da década de 1980 foi um marco ao impulsionar debates democráticos sobre nossa sociedade e seu resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda de igualdade de direitos por parte de homossexuais, a luta dos movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.
Na Argentina, a situação não é muito diferente. O modelo agroexportador, desenhado no final do século XIX, por uma elite capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal e legalmente, a cidadania plena se alcançou em 1947, quando se reconheceu o direito ao voto feminino, e os movimentos operários e sindicais estavam bem estabelecidos, não foi antes de 1983, com a reinstauração da democracia, que os diversos movimentos sociais e atores coletivos começaram a ter participação na vida política e institucional do país.
A crescente importância política e institucional que começou a cobrar a sociedade civil na arena política foi juridicamente respaldada pela reforma constitucional de 1994. Essa reforma implicou uma importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de novos direitos e instrumentos jurídicos tendentes a garantir o exercício efetivo deles. Mas, além disso, durante a década de 1990 se produziu uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações políticas e sociais tendentes a suprir esse vazio. Dentro desse contexto político e institucional favorável é que floresceram diversas das demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças. 21 Sobre essa profícua linha de reflexão sobre os aparentes paradoxos brasileiros consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar” (2000).
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Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de constitutional law e que podemos traduzir por Estado de Direito podemos debater os termos de convivência em uma sociedade que pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também fundamentais conquistas das eleições diretas, do voto universal, a democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando ampliá‐la para aqueles e aquelas que não têm reconhecida sua humanidade, seus direitos, sua igualdade jurídica e social. Apenas depois dos anos oitenta que as sociedades brasileira e argentina passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.
Quando alguém se pergunta por que ainda vivemos em uma sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são muito pouco tempo dentro desses séculos de experiência histórica colonial, escravagista e mesmo imperial ou republicana dentro dos quais se forjou uma sociedade altamente desigual não apenas em termos econômicos, mas também em outros aspectos não menos importantes como raça/etnia, gênero, sexualidade, etc. De qualquer forma, o Brasil conquistou muito neste quarto de século e avançou a passos largos em comparação com muitas outras nações com histórias similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima democrático profícuo para as transformações que, quiçá, possam vir a nos tornar uma sociedade plenamente democrática e com justiça para todos/as.
No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade das instituições políticas, a alternância entre regimes ditatoriais e democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas e importação de manufaturas e a dependência econômica das grandes potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.
É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a surgir uma nova forma de compreensão da nação e do acesso à cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer
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frente a este novo cenário cultural e político tão recente quanto imprevisível. Não é de se estranhar que em sociedades marcadas pelo comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de perda de sua posição de comando22 busquem, ao menos inicialmente, fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por meio do filtro político que as traduz na linguagem da tolerância da diversidade.
Tolerar é muito diferente de reconhecer alteridades, de valorizá‐las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de uma concepção estática de cultura que advoga a tolerância dos “diferentes”, mas mantendo a cultura dominante intocada por esses “Outros” sociais. É como se da ignorância ou do apagamento das diferenças sociais passássemos apenas a reconhecê‐las recusando nos relacionarmos/transformarmos pelo contato com elas. A retórica da diversidade busca manter intocada a cultura dominante criando apenas condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento de um regime atualizado das antigas formas de segregação que caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.
A retórica da diversidade tem forte apelo, e não apenas no Brasil, na Argentina ou na esfera da política, pois apresenta o mundo como podendo ser diverso sem modificar hierarquias ou relações de poder. Alguns falam de diversidade por meio do termo multiculturalismo, essa utopia euro‐norte‐americana da convivência com imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir de uma perspectiva que mal encobre sua origem branca, cristã, ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder branco colonial, na qual as diferenças seriam toleradas sem modificar profundamente os valores e os privilégios dos grupos sociais dominantes. 22 Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou o medo dos negros no Brasil, Miskolci por sua vez analisa como esse temor dos negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República.
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Distinguir entre diferença e diversidade exige abandonar uma concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela para uma concepção horizontalizada de relações em que se afasta o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é algo incomensurável, mas potencialmente mais democrático e promissor. Uma perspectiva informada pelas diferenças pode questionar e até modificar hierarquias, colocar em diálogo os subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem que mantém e reproduz desigualdades.
Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser reconhecido sem modificar as concepções hegemônicas de justiça e igualdade. Ou seja, demandas de reconhecimento e igualdade a partir da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário, normativo, violento. Podemos reavaliá‐lo de forma que, ao invés de homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por meio das diferenças possamos modificá‐lo e atualizá‐lo de forma a mudar sua histórica conformação aos interesses dos grupos dominantes.
Nas sábias palavras de Adriana Vianna: “Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo em universos políticos mais amplos, dotados de uma suposta “unidade”, como se dá nos Estados‐nação modernos. Mais do que apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso equivale a defendê‐la como algo relevante na constituição da especificidade de indivíduos e coletividades que não desejam negá‐la para serem reconhecidos como participantes legítimos de unidades abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205).
Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a nação, pode ser repensado e adquirir uma acepção mais inclusiva e democrática. A noção de diversidade busca amortecer as críticas e incorporar de forma controlada e/ou subalterna grupos sociais cuja
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história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida como trazendo consigo necessariamente o conflito e a discórdia, interpretação dos estabelecidos sociais que deixa de reconhecer as alteridades internas à sociedade brasileira ou argentina como interlocutoras em nível de igualdade.
As diferenças podem incitar o debate, fazer com que as divergências se traduzam em diálogos e negociações. Talvez o maior desafio de nossas democracias seja o de deixar para trás os temores elitistas sobre o povo ou as demandas subalternas como ameaças à ordem. Superar este medo dos grupos sociais injustamente mantidos à margem do reconhecimento, do respeito e da justiça exige modificar a histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às divergências ou ao conflito. Em um contexto plenamente democrático todos/as – e especialmente cada um/a – tem o direito de divergir ao mesmo tempo que demanda seu reconhecimento como parte da coletividade.
É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e das advogadas, na Argentina e no Brasil, cumpre um papel central. Concepções jus‐naturalistas, arcaicas, positivistas e conservadoras continuam dominando o currículo quando se tratam de profissões jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que não podem ser colocados em dúvida tampouco discutir, são formados sem ferramentas críticas e, em sua maioria, carecem de compromisso social e ideal de justiça. Desse modo, se formam operadores jurídicos cujo papel é reproduzir a ordem existente.
No caso argentino, os/as advogados/as ativistas têm pouca margem para produzir mudanças significativas no que se refere ao reconhecimento de direitos. Nesse mesmo contexto, aqueles/as advogados/as que se oponham ao avanço dos direitos encontram na justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito e a mudança social parecem não se dar bem.
Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐vinda contribuição para o aprofundamento de nossas democracias. A transformação poderia começar pela incorporação de uma perspectiva
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educacional dialógica, o incentivo ao debate em sala de aula e a incorporação de fontes históricas e sociológicas que tensionam, mas também enriquecem, o aprendizado legal por meio do incentivo à reflexão e a contextualização da prática profissional. Dessa maneira, o próprio Direito passaria a incorporar as diferenças reconhecendo seu papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido, mas também de veículo de transformação social.
A prática profissional pode adaptar‐se às demandas atuais por maior acesso à justiça, reconhecimento de diferenças historicamente ignoradas ou negadas pela ordem jurídica herdada de nosso passado autoritário. Em suma, o Direto pode manter seu compromisso com a ordem sem deixar de incorporar as demandas que apontam para a construção de uma sociedade mais justa, a qual não alcançará seus ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica. Bibliografia AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do XIX. São Paulo, Paz e Terra, 1987. BERNSTEIN, Basil. “Class, codes and control”. Londres. Routledge & Keegan Paul, 1977. BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. In: Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, pp. 103‐123, 2011. BONELLI, Maria da Gloria; CUNHA, Luciana G.; OLIVEIRA, Fabiana L. De; SILVEIRA, M. Natália B. da. Profissionalização por gênero em escritórios paulistas de advocacia In: Tempo Social‐ Revista de Sociologia da USP. São Paulo: PPGS‐USP, v. 20, n.1, pp. 265‐290, 2008. BOHMER, Martín F. “Sobre la inexistencia del derecho de interés público en Argentina”. En Revista Jurídica de la Universidad de Palermo. Buenos Aires, 1997. BRÍGIDO, Ana María. “Claves teóricas para interpretar el proceso de socialización profesional de los futuros abogados”. En La socialización de los estudiantes de abogacía. Crónica de una metamorfosis. Brígido, Ana María et al. Córdoba. Hispania Editorial, 2006a.
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A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e diferença
Dafne Araújo1 Maria da Gloria Bonelli2
1. Introdução
Este texto procura mostrar as continuidades e as mudanças que
vêm ocorrendo na advocacia no que diz respeito à diversidade sexual3 no exercício profissional. Introduzindo novas questões para reflexão acerca da homossexualidade, identidade e diferença, visa ampliar a perspectiva binária heterossexual que predomina nos estudos sobre gênero nas profissões jurídicas, centrada numa dimensão relacional restrita ao masculino e feminino. Complementando a investigação sobre profissionalismo e diferença no mundo do Direito, este estudo focaliza advogados e advogadas na cidade de São Paulo, que se identificam ou não como homoafetivos e que trabalham com a problemática da diversidade, em especial na defesa de vítimas de discriminação sexual.
A abertura para a diversidade dentro das carreiras jurídicas é fruto de várias transformações que tiveram origem na década de 1990, no Brasil. Até essa data, a advocacia era exercida em escritórios de pequeno e médio porte. Posteriormente, os escritórios foram crescendo de acordo com o cenário da globalização e efervescência econômica. Essas grandes mudanças no mundo jurídico se deram principalmente pela privatização das grandes empresas públicas naquele contexto. A demanda por operadores(as) de direito cresceu e houve um aumento 1 Dafne Araújo é mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, da UFSCar.
2 Maria da Gloria Bonelli é professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o grupo de pesquisa Sociologia das Profissões, que conta com apoio do CNPq.
3 Mantivemos o uso da expressão diversidade sexual, embora trabalhemos com a abordagem da diferença, pela opção de manter a forma como o grupo estudado se nomeia.
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significativo na oferta de cursos superiores. Como consequência, a participação feminina na carreira se ampliou.4
Além da feminização das carreiras jurídicas, a visibilidade de gays no mercado de trabalho também é fruto de transformações culturais e comportamentais que foram atribuídas às situações de trabalho e, ass do im, reduziram as oposições às mudanças na forma tradicional de se exercer a profissão no Brasil. Este capítulo discute as diferentes dinâmicas que ocorrem na situação de trabalho dos advogados que assumem sua homossexualidade.
O estudo se destinou a desenvolver os seguintes aspectos: a investigação a respeito das mudanças ocorridas entre operadores e operadoras do direito sobre a diversidade sexual e a visibilidade dos homossexuais no mercado de trabalho jurídico; e como os entrevistados equacionam os possíveis conflitos entre a visibilidade homoafetiva e o ideário da neutralidade profissional.
Para compreender melhor essas mudanças, procurou‐se captar como se dá a inserção de advogados e advogadas no mercado de trabalho, articulando‐a com as abordagens teóricas referentes a gênero que fornecem fundamentação para análise. Essa bibliografia trata as diferenças na profissionalização segundo o gênero que se desloca do binarismo e do determinismo biológico. Dessa maneira, aponta como o gênero é produto de uma construção social que fixa identidades a partir de diferenças percebidas entre os sexos.
A pesquisa de campo ocorreu em dois momentos: inicialmente, a equipe do projeto Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas entrevistou quatorze advogados atuantes em escritórios e sociedades de advogados da capital e do interior, abordando a questão da diferença de gênero e sexualidade na prática jurídica. Depois focamos exclusivamente o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual – GADvS, na cidade de São Paulo. Para compor esta parte do estudo, realizamos cinco entrevistas, sendo três com advogados gays militantes da causa LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais); houve também o acompanhamento de eventos no GADvS, o levantamento de notícias e artigos através de redes sociais e do site da
4 Bonelli, et. al., 2008.
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Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo (OAB – SP). Procuramos delinear e comparar suas trajetórias profissionais, compreendendo as formas como percebem e vivenciam a homossexualidade na profissão. 2. O profissionalismo e as mudanças na advocacia brasileira
Ao pensar profissões, articulamos a abordagem de Freidson
(2001) ‐ que aponta as limitações do foco nos processos de profissionalização e direciona a análise para o profissionalismo ‐ com a proposta de Evetts (2011), que critica a tipologia sugerida por esse autor, incorporando a ela negociações de significados que os próprios profissionais realizam em torno de tal conceito.
Para Freidson5, o profissionalismo é uma das formas de se estabelecer relações no mundo do trabalho e concorre com outras duas formas pela legitimação na sociedade: a de mercado e a burocrática. A forma de organização do trabalho pelo profissionalismo é um modelo que valoriza o saber especializado (o saber abstrato), obtido em instituição de ensino superior. É acompanhada da regulação de seus membros pelos pares através do credenciamento e do controle do ingresso no mercado, sendo longa a permanência na atividade. A ideologia que sustenta essa terceira lógica é a da especialização discricionária para a prestação de serviços de qualidade, da autonomia da expertise frente aos interesses específicos dos clientes, do Estado e do mercado. A ênfase na neutralidade do profissionalismo fundamenta o privilégio dessa autonomia e do monopólio.
Na lógica de mercado, o treinamento costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho, havendo baixa permanência na mesma ocupação, já que o ingresso na atividade é aberto e a especialização é do cotidiano. A ideologia da livre‐concorrência prioriza o conhecimento generalizado ao especializado, a livre escolha do consumidor em vez do controle do mercado. A lógica burocrática por sua vez estrutura‐se a partir de uma relação hierárquica de comando, a porta de entrada é controlada pelo setor de recursos humanos, sendo médio o tempo de
5 Freidson, 2001.
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permanência na ocupação, ascendendo‐se no interior da organização. Ideologicamente, ela se embasada na valorização do caráter administrativo, da produtividade da especialização mecânica e da eficiência.
O controle do ingresso nas atividades exclusivas da profissão são garantidas por jurisdições, que reservam esse mercado de trabalho especializado aos habilitados, protegendo‐o da concorrência dos leigos. Além desse fechamento, a construção de carreiras controladas pelos pares, que avaliam a expertise daqueles que progridem nesse percurso, é a forma de insular a profissão em relação às influências políticas. O insulamento das carreiras jurídicas públicas dá a dimensão da autonomia profissional e da independência das instituições da justiça. O fechamento estabelece quem pode tentar ingressar na carreira, exigindo‐se requisitos para o recrutamento que antecedem a aprovação nos concursos, como possuir a formação superior em Direito, a credencial da OAB, a experiência anterior na advocacia. O insulamento é a garantia dos membros que ingressaram na carreira de que os critérios de promoção serão definidos pelos pares, sem ingerências externas. Instituições públicas se organizam principalmente na forma burocrática e na profissional. O avanço desta última sobre aquela depende das conquistas de seus membros nas relações com o Estado.
Contemporaneamente, estudiosos das profissões têm questionado a persistência das fronteiras entre o tipo ocupacional, o burocrático e o do mercado, com o surgimento de hibridismos que põe em xeque essa terceira lógica. Evetts6 segue nessa direção, detendo‐se na análise das mudanças que vêm ocorrendo no profissionalismo devido ao trabalho dos profissionais nas grandes empresas e corporações internacionais. Ela identifica duas maneiras de se conceber o profissionalismo: como valor ocupacional e como discurso. Na primeira – profissionalismo ocupacional – o apelo a esse valor é iniciativa do próprio grupo, dando ênfase às relações entre os pares, à construção de uma identificação comum, à discricionariedade e a confiança. A segunda maneira – profissionalismo organizacional – é imposta de fora do grupo, vindo de
6 Evetts, 2011, p.407.
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cima, principalmente dos chefes e patrões; esta prioriza o gerencialismo, a burocracia, a padronização e o desempenho.
Para a autora, o profissionalismo como valor ocupacional tem predominado na literatura especializada, sendo visto como sistema de valores normativo e como ideologia. O primeiro sentido reflete uma visão otimista das contribuições do profissionalismo para a coesão e ordem social. O segundo sentido é crítico desse primeiro, percebendo negativamente o profissionalismo como ideologia que sustenta o fechamento do mercado aos não credenciados e o monopólio do controle do trabalho.
Evetts7 aponta o surgimento mais recente de uma terceira interpretação do profissionalismo como valor ocupacional: aquela que analisa o discurso administrativo, característico do profissionalismo organizacional, que visa impulsionar a racionalização e a disciplina, reorganizando e controlando o trabalho. Tal discurso surge fora do grupo, geralmente nas organizações privadas e no Estado descaracterizando o sentido da autonomia profissional e do controle do trabalho pelos pares. A ênfase recai no controle dos praticantes pelos gerentes e supervisores, na competitividade e no individualismo, em substituição às relações colegiadas e à competição jurisdicional para garantir o monopólio da atividade. No Estado, tal profissionalismo adquire o sentido de eficiência administrativa e produtivismo.
Sobre esse apelo, Evetts considera que:
“é necessário tentar compreender de que forma o profissionalismo como sistema normativo de valores e como ideologia agora está sendo crescentemente usado nas modernas organizações, e outras instituições e lugares de trabalho, como um mecanismo para facilitar e promover a mudança ocupacional.”8
O modelo híbrido que transpõe fronteiras foi situado por Evetts
(2011) como externo ao grupo profissional, vindo de cima. A abordagem da autora vincula os valores manifestos nos discursos do profissionalismo aos interesses conflitantes da profissão, do Estado e do mercado.
7 Evetts, 2011, p.410. 8 Evetts, 2011, p.407. Tradução livre.
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As mudanças que vêm ocorrendo na advocacia brasileira são acompanhadas da passagem do predomínio do profissionalismo como valor ocupacional normativo, quando a prática jurídica era solo ou partilhada por colegas, para o crescimento do discurso do profissionalismo organizacional, com a proximidade dos sócios das grandes sociedades de advogados em relação a seus clientes corporativos.
A advocacia diversificou suas formas de atuação, combinando o exercício liberal em escritórios de pequeno porte atendendo principalmente clientes individuais, com a expansão das médias e grandes sociedades de advogados, que estratificaram a profissão. Os sócios dessas firmas contratam advogados associados para dar conta dos serviços jurídicos demandados principalmente pelos clientes empresariais.
Houve também o aumento expressivo na oferta de cursos de ensino superior de direito, com a ampliação do número de ingressantes no mercado de trabalho. Em 2001, o Brasil tinha 380 cursos de direito e em 2011 havia saltado para 1.210. Em julho de 2013, a OAB nacional contava com 773.908 advogados, sendo 45.6% de mulheres. A maior oferta dos cursos superiores contribuiu para mudar as formas de exercer a profissão no Brasil. Além de representar um expressivo aumento da participação feminina na carreira, observou‐se a estratificação do tamanho dos escritórios e da posição dos advogados neles, seja como sócios ou associados. O crescimento das sociedades de advogados que lidavam com as especializações na área de negócios e no direito empresarial foi outra mudança observada na prática jurídica, a partir das grandes privatizações de empresas públicas, no final dos anos 1990. A globalização econômica também foi responsável por parte dessas mudanças, com a atuação direta dos Estados Unidos em transferências de modelos de instituições e adaptação de cultura jurídica.9
Junto com a clientela corporativa veio, além da especialização criteriosa, a demanda por trabalhos de caráter rotineiro e repetitivo, como as milhares de ações de consumidores contra grandes empresas de telefonia, bancos, entre outras.
Portanto, a organização do trabalho jurídico foi perdendo suas características homogêneas como profissão: o predomínio da advocacia
9 Bonelli, et. al., 2008.
167
solo ou em escritórios pequenos combinou‐se com as sociedades de advogados médias e grandes; a advocacia generalista foi diversificada pela expertise em áreas de elevada especialização e, pelo seu oposto , o trabalho jurídico repetitivo.
Resultado da internacionalização da profissão, o modelo de sociedades de advogados trouxe consigo o intercâmbio de conhecimento especializado entre países, através da padronização transnacional de serviços jurídicos. Para que isso seja possível, é necessário que o profissional domine línguas estrangeiras, em especial o inglês, além ter experiência de cursos ou estágios no exterior. Um dos advogados entrevistados teve a oportunidade de fazer um curso nos Estados Unidos e gerenciar a filial de um escritório paulista em Nova York. Na mesma sociedade de advogados encontra‐se a elite dos profissionais internacionalizados e os associados que assumem as tarefas desvalorizadas. O processo de estratificação da profissão é acompanhado de sua generificação, com homens predominando nas áreas mais especializadas e mulheres concentradas nos trabalhos jurídicos rotineiros.
A visibilidade do gênero na carreira pode, portanto, associar‐se à estratificação do grupo e às maiores ou menores chances de sucesso profissional. Por esta razão, conhecida nos escritórios, várias advogadas atuam para que as marcas de gênero não venham para o primeiro plano na prática profissional, procurando deixá‐las restrita ao âmbito privado. Se esse padrão é conhecido para a recepção à diferença de gênero na advocacia, nos perguntamos neste capítulo como a homoafetividade repercute nas carreiras dos advogados? Ela produz o tipo de estratificação observada para as mulheres? Como se busca dar visibilidade ou apagar as marcas da sexualidade na advocacia? 3. Conceituando gênero e sexualidade
Scott (1990) tratou o gênero como categoria analítica e
desconstruiu a concepção biologizada, abordando como a diferença sexual é socialmente construída. A segregação no mercado de trabalho é, para a autora, parte do processo de construção binária do gênero e das relações de poder que engendram.
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Sendo assim, gênero não é característica essencial fixa e imutável do ser. As diferenças anatômicas foram essencializadas em contextos históricos e culturais específicos. Segundo Butler (2003), a cultura é a forma de distinguir sexo e gênero. A autora contrasta sexo como diferença biológica entre macho e fêmea, e gênero como construção social, cultural e psicológica. A partir desse pressuposto, identidades fixas e essencializadas em “homens” e “mulheres” puderam ser discutidas. Desse modo, Butler concebe o gênero como gradiente que combina masculino e feminino com heterossexualidade e homossexualidade, sem oposições entre eles. Segundo ela, o gênero que o corpo expressa é resultado de atos e gestos performáticos que fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas do mito da feminilidade e da masculinidade.
Segundo Barbalho (2008, p.46) “as pessoas tendem a pensar de maneira heteronormativa, de forma que ao pensar nas identidades a primeira noção de classificação é binária, ou seja, homem ou mulher, masculino ou feminino.”.
Não só o gênero é culturalmente construído, mas o sexo também, superando o binarismo sexo‐natureza, gênero‐cultura. A partir dessa perspectiva, gênero deixa de se referir ao masculino e ao feminino, e passa a apresentar múltiplas possibilidades de identificações que não estão essencializadas em formas duais de diferença sexual e de gênero. Scott (1990) criticou a visão hegemônica de que a dominação masculina se justificava por diferenças biológicas, entre homens e mulheres. Scott adota uma visão foucaultiana ao encarar que o poder circula em uma perspectiva relacional, possibilitando assim o acesso feminino ao poder, mesmo que este seja desigual ao dos homens.
Para Butler (2003), tanto o sexo (que se refere às diferenças biológicas), quanto o gênero (que envolve as diferenças culturais, sociais, e psicológicas) são produzidos culturalmente e historicamente. De acordo com essa visão, o gênero deixa de se limitar ao masculino e ao feminino, possibilitando assim diversas identificações que não seguem necessariamente o padrão dual de diferenciação sexual.
Essa autora ainda afirma que o gênero carrega consigo as relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré‐discursivo, este que é construído culturalmente. Essas relações sociais de poder
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desenvolvem‐se em contextos específicos, não sendo permanentes. A discriminação e a desigualdade entre os sexos e os gêneros resultam de relações de dominação que podem ser mudadas.
O preconceito em relação à diversidade sexual é uma dessas relações de dominação. A percepção da homossexualidade no ambiente de trabalho das carreiras jurídicas desnuda os limites da neutralidade da expertise e do mérito nesta dimensão. A ideologia do profissionalismo carrega consigo o apagamento dos processos de construção social das diferenças de gênero, que são realimentados pela essencialização à medida que elas são usadas para reafirmar qualidades profissionais femininas e masculinas.
A visibilidade da diferença sexual está engendrada à lógica do armário abordada por Segdwick (1990), que se impõe ao homossexual e também aos heterossexuais já que os profissionais, em sua maioria, declaram não ter preconceito em relação à diferença sexual, mas ela tem de ser mantida sob discrição, para não interferir na carreira. Para Segdwick, todos, homens e mulheres, hetero ou homo‐orientados, estão dispostos dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas vidas a partir da sexualidade.
Apesar disso, hoje é possível perceber maior visibilidade homoafetiva nas carreiras jurídicas. Isso decorre de mudanças culturais que se processam nas grandes firmas de advocacia globalizadas e se refletem nas sociedades de advogados brasileiras. Elas se empenham em ter como modelo as sociedades norte‐americanas, visando ampliar a circulação internacional e as parcerias nessas redes, que tratam as políticas de diversidade como diferencial positivo.
A diversidade sexual vem sendo discutida no âmbito dos direitos como reconhecimento à diferença nas identidades pessoais e sociais. O olhar crítico sobre a construção heteronormativa permite perceber as barreiras à expressão livre da identificação homoafetiva e a produção de desigualdades no exercício do desejo e da sexualidade.
4. A identidade homosexual na profissão do(a) advogado(a)
Em 22 de março de 2011 foi criada, no âmbito do Conselho
Federal da OAB, a Comissão da Diversidade Sexual e Combate à
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Homofobia, destinada a discutir e coordenar as matérias, projetos e ações da entidade nessa área. Representando uma importante mudança no cenário jurídico nacional, o apoio da comunidade jurídica tornou‐se importante para a visibilidade de homossexuais em uma profissão já consolidada.
As conquistas dos homossexuais que estão sendo concretizadas nos tribunais, têm contado com o apoio da comunidade de advogados que vem se mobilizando para defender os direitos homoafetivos. Em 28 de fevereiro de 2010, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo10 fechou parceria com o Escritório Lessi e Advogados Associados. O acordo visa atender de forma gratuita os associados da APOLGBT e demais pessoas que procuram pelos serviços da associação. Segundo notícias veiculadas na época, a iniciativa partiu do presidente do escritório, Pedro Lessi, que representa vários casos de discriminação por orientação sexual. Para ele, o respeito à orientação sexual é um direito fundamental e todo indivíduo deve ter esse direito garantido nos tribunais, já que não são garantidos pelo Legislativo. Desde então, desde questões contratuais menores, como desrespeito ao uso da logomarca da APOLGBT, até questões de repercussão nacional, como ofensas públicas à população LGBT, podem ser objeto de representação jurídica.
Inicialmente, a pesquisa teve a intenção de articular sexualidade e profissionalismo, partindo da hipótese de que operadores e operadoras do direito não revelassem a homossexualidade, mantendo‐a na intimidade sob a lógica oculta do armário, com discrição para não afetar de forma negativa sua carreira. Priorizariam assim sua identificação profissional perante sua identificação sexual. Entrevistamos alguns advogados gays que são bem sucedidos na sua atuação em sociedades de advogados, e observamos a confirmação do apagamento da visibilidade da sexualidade, para superar barreiras à
10A Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo é uma entidade civil, de direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1º de fevereiro de 1999, tendo como missão a garantia da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, assim como a promoção da visibilidade e autoestima desta população e a educação da sociedade para o fim da discriminação, preconceito e violência homofóbica. (Fonte: http://www.paradasp.org.br/ associacao.php)
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progressão. No entanto, além desse tipo de conduta, o trabalho de campo permitiu localizar outro comportamento entre os profissionais. Foi possível encontrar advogados e advogadas que assumissem publicamente sua homossexualidade, que se apresentam como figuras públicas do Direito, e como militantes da causa homoafetiva na cidade de São Paulo e em outras grandes cidades do país. A pesquisa de campo permitiu tomar conhecimento de um grupo de profissionais do Direito que, além de reconhecer publicamente sua identidade homossexual, luta por direitos e trabalha com causas relacionadas à sexualidade contra‐hegemônica. Eles também trabalham com clientes empresariais, nas sociedades de advogados, nos escritórios que lidam com outras especialidades, além da defesa contra a discriminação sexual. Trata‐se de um grupo ativo nas causas acerca do direito homoafetivo e para o respeito de operadores e operadoras do direito homossexuais: o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual.
Formado por operadores do Direito, o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual – GADvS é uma entidade privada que tem como objetivo principal garantir os direitos de cidadania da população homossexual. Além de advogados e advogadas, o grupo conta com a atuação de profissionais de diversas áreas, numa perspectiva multidisciplinar na luta pelos direitos LGBTs. Com dois anos de existência, o grupo luta em prol do respeito à diversidade sexual, juntamente com a atuação no judiciário, e é referência em casos de sucesso. Seus membros se sentem preparados para dar suporte jurídico e orientação a qualquer cidadão, principalmente os de orientação homoafetiva.
Para eles, o desafio é declarar e tornar legítimo o direito de gays ao casamento e às uniões estáveis, além do reconhecimento que a homofobia é uma conduta criminosa, assim como o racismo. O grupo destaca a premissa básica de que todos são iguais perante a lei, se colocando o objetivo de reduzir a violência moral e física que a população LGBT vem sofrendo. Para o diretor do GADvS (advogado, gay, militante da causa LGBT), o avanço dos direitos da comunidade gay não é um modismo, mas um processo histórico. Apesar de alguns projetos de leis tramitarem por mais de uma década (como o caso de
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parceria civil e criminalização de homofobia), ainda não existem leis federais protetivas.
Os valores normativos predominante no profissionalismo enfatizam a neutralidade da expertise, mas a agenda da diversidade sexual que é encampada pelo GADvS dá visibilidade a essa diferença. As identificações profissionais, embora coletivas aos advogados, não são fixas e vivenciadas da mesma forma pelos pares. As interseções com as marcas das diferenças pluralizam esses processos identitários, podem ganhar ou não visibilidade. As lutas simbólicas em torno desse ideário profissional foram observadas nas entrevistas realizadas pela equipe da pesquisa. Encontramos advogados e advogadas que foram bastante firmes em se apresentar como pessoas não preconceituosas em relação ao profissional gay, mas pouco dispostas a aceitar a visibilidade dessa diferença, como na fala a seguir:
“O [nome do advogado] está saindo do armário agora, ele ainda não falou para nós, isso não é problema, a atitude dele tem que ser diferente, o problema dele são os pais, desde a contratação eu já percebi. (...) Não; isso não é problema não, a atitude dele tem que ser diferente, desde que não ofenda ninguém, ele só não pode é chegar aqui de Maria Chiquinha etc, etc, porque não condiz com o ambiente, ele tem que se comportar de acordo com o ambiente. Se eu chego num ambiente gls eu não posso ficar assim, né?(fez trejeitos com as mãos), como uma pessoa homossexual chega num ambiente ele tem que respeitar o ambiente onde ele está, um casal que vai num boteco ele não vai ficar se agarrando, se beijando, não vai ficar sentando no colo do outro em público, isso depende da postura da pessoa, não da opção.” (Joyce, advogada sócia, escritório familiar no interior, 46‐50 anos, divorciada, com filhos)
Alguns dos advogados gays entrevistados também reforçaram a neutralidade do profissionalismo, para evitar que as marcas da homoafetividade abalem o status conquistado na carreira. A passagem abaixo aborda a questão da “postura profissional neutra”, na visão de um deles.
“Eu acho o seguinte, a questão do trejeito, de ser afeminado ou não, eu acho que isso implica numa postura de confiança que eu acho que o
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senso geral da sociedade tem, por exemplo, eu acho que você vai se sentir mais confortável sendo atendido por um profissional se ele mantém uma linha reta, não é pra ser o machão, grosseiro, aquele típico macho, entendeu, homem, e também não é pra ser uma pessoa que é homem e quer ser mulher entendeu. Eu acho que isso acaba criando um problema de, talvez confiabilidade no profissional, a pessoa acha meio estranho. Eu não tenho preconceito com isso, eu acho que tanto faz, mas eu acho que em geral as pessoas têm essa percepção. (...) Eu acho que pra parar com questão de preconceito eu acho que tem que parar de participar às pessoas se é gay, se é lésbica, se é isso ou aquele outro. Você não é nada, você é você, uma pessoa, um ser humano que trabalha. Pronto, ponto final. ” (Jonas, advogado sócio de renda, 26‐30 anos, solteiro, sem filhos)
O apagamento das marcas visíveis da diferença quanto à sexualidade realizada por esse entrevistado é acompanhado da ênfase na identificação com a profissão, que se sobrepõe ao pertencimento a outra comunidade, como a homoafetiva. O profissionalismo repõe o status social negado às pessoas gays na sociedade e traz recompensas através do reconhecimento obtido pelo domínio da expertise. Rumens e Kerfoot (2009) analisaram homens gays no trabalho em organizações receptivas à inclusão. Eles sugerem que mesmo nesses ambientes, os homens gays atuam sobre o self para se identificarem como profissionais, vivendo empoderamento. Dessa forma, não deixam de ser afetados pelas normas que tratam a sexualidade e o profissionalismo como polos opostos.
Em contraste com essa forma de lidar com a diferença na profissão, temos entre os profissionais do GADvS aqueles que vivenciam a interseção entre a identificação profissional e homoafetiva de forma pública. Nosso interesse neste aspecto é registrar as dinâmicas nas situações de trabalho dos advogados que assumem abertamente sua sexualidade em comparação com aqueles que não o fazem, ou que entendem que a sexualidade é assunto da intimidade, restrito ao privado.
As lutas concorrenciais entre o apagamento da diferença, com a política do armário e a visibilidade da identificação profissional e sexual
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apontam oportunidades de mudanças nessas relações, ao se questionar a hegemonia da neutralidade. Jovens advogados formados em 2009 já presenciavam em suas universidades maior abertura para a diversidade sexual, seja na carreira, seja no preparo para casos e clientes. Segundo o advogado João, a faculdade em que cursou direito sempre foi ativa na defesa da não discriminação sexual.
ʺhavendo inclusive cadeiras de Psicologia e Sociologia dentro do Direito, visando promover debates para que a comunidade aceitasse os ʺgaysʺ. Tive até mesmo uma professora homossexual não assumida, mas que levantava a bandeira. Notei receio com tal tema somente com relação àqueles alunos mais velhos, de outra época. Os mais jovens têm aceitado a diversidade sexual sem problemasʺ. (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido) Advogados do GADvS também compartilham da opinião e
afirmam que existe hoje a possibilidade de assumir e afirmar a identidade gay já na faculdade. Para eles, a geração de advogados que se formou na década de 90, e hoje tem entre 35 e 40 anos, só pode assumir sua sexualidade após chegar ao topo da carreira. Assim aconteceu com Joaquim, que só “saiu do armário” após se tornar sócio de um importante escritório de São Paulo.
Para o entrevistado Jorge, estudante de direito, existe a
“certeza que está havendo uma abertura para mais homossexuais se assumirem, não que deixou de existir a discriminação, porém a abertura para se falar no tema e se assumir atualmente está sendo mais aceita, na faculdade de Direito existe muitos homossexuais assumidos, na minha própria faculdade existe uma trans que está no 3º ano da faculdade, o fator formal na formação do Bacharel em Direito está bem mais informal, tal informalidade possibilita o que chamamos de diversidade ser mais perceptível e difundida, o que ajuda também com a extinção de estereótipos, como de que todo homossexual é cabeleireiro. Grupos de diversidade sexual estão presentes em apenas Universidades Públicas (pelo menos é até onde sei), não existe (ou não conheço) um grupo dentro de uma faculdade de Direito especificamente, mais sim grupos interdisciplinares”. (Jorge, 20 anos, estudante de direito, solteiro, gay não assumido)
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Em contrapartida, João vê como algo negativo para a carreira de um advogado caso ele, segundo suas palavras, ‘levante a bandeira’ e demonstre a sua opção sexual para a sociedade. Diz não ser preconceituoso, mas não vê motivos para que a sexualidade e a opção sexual de cada um sejam declaradas e divulgadas, visto que não necessita disso para exercer sua profissão, e acrescenta: ʺé algo que deve ser mais fechado, não necessitando de publicização até mesmo para evitar preconceitos. Há colegas gays que não divulgam sua opção sexual, e apenas exercem suas profissões como se heterossexuais fossem.ʺ
No que se refere ao ambiente de trabalho e a relação com os clientes, João acredita que
ʺA marca da sexualidade não implica na não escolha do advogado pelo cliente, entretanto, desde que este advogado se porte como um advogado e não como um “advogado gay”. Quero dizer, ele não precisa a todo instante demonstrar sua opção sexual e fazer questão de que ela seja exposta, pois neste caso enfrentará preconceito de uma sociedade que ainda não está preparada para enfrentar tal tipo de situação.ʺ (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido) A ideia de que o advogado, independente de sua sexualidade,
deve se portar como “macho” está presente em todas as falas desses entrevistados. Tanto para eles quanto para outros advogados e outras advogadas entrevistados, é necessário que se mantenha uma postura profissional para não sofrer preconceitos na carreira. Ao questionar como seria tal postura, as respostas eram sempre em relação ao modo de se vestir, de falar, de andar. O ideal é que um advogado que se assuma gay não seja afeminado.
Para Jorge, o advogado homossexual tem grandes chances de subir na carreira, desde que seja ou pareça homem hetero, branco, casado e pai de família. O homossexual terá sua ascensão profissional garantida ao não se mostrar afeminado. Além disso, afirma que ser homem no mundo jurídico é fácil: “a maior facilidade em relação homem versus mulher seria a de que no mundo jurídico, os homens são predominantes, mais não conheço mulheres que tiveram dificuldades em subir na sua carreira profissional”. No entanto, existe a ideia de que aqueles que se assumem gays teriam que se qualificar mais que os
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outros. Assim como as mulheres, que acreditam estar em desvantagem na carreira em relação aos homens, os advogados que assumem sua opção sexual estudam e se dedicam mais ao trabalho para não dar brechas para a discriminação.
“Eu acho que a minha opção sexual sempre me fez dar mais duro, mais duro porque eu acho que o medo de ser discriminado e tudo mais, você acaba buscando uma proteção para seu sucesso profissional. Se você tem sucesso profissional é mais difícil a pessoa sobrepujar isso com você” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay assumido).
O que nossa pesquisa indica é que não podemos falar de
profissionalismo como se seu sentido fosse único e coeso, já que a neutralidade e o apagamento das diferenças estão sujeitos a questionamentos, bem como a reafirmações. A visibilidade da homoafetividade desses profissionais é algo que está sendo construído e produzido historicamente. Tais mudanças estão intimamente relacionadas à fragmentação da ordem tradicional que deu origem ao modelo das profissões no século XIX, e é hoje acompanhada da pluralização dos valores na sociedade contemporânea, como também dos embates em torno do ideário do profissionalismo.
Tal como ocorre com o gênero, os papéis sexuais são forjados socialmente e, por esse motivo, criam‐se expectativas e comportamentos apropriados para homens e mulheres. Quando tratamos do ambiente de trabalho, que se construiu em contraste com o da casa, espera‐se uma conduta que demarque fronteiras difíceis de serem mantidas, como as do jogo das identidades no público e no privado. O profissionalismo foi um aliado para se constituir essas fronteiras fixas, mas elas estão sujeitas a deslocamentos e às disputas discursivas sobre seu significado.
O depoimento abaixo revela os custos do cruzamento das fronteiras entre público e privado na visibilidade da homossexualidade. As diferenças de comportamento, a forma de se vestir, de falar produzem estereótipos que estigmatizam o profissional no ambiente de trabalho com os pares e no relacionamento com clientes.
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Eu acho que talvez pelo fato dele ser um pouco mais afeminado, que pode ter originado esse tipo de preconceito, isso é uma coisa que eu realmente vejo nas pessoas, eu acho que hoje em dia a opção sexual é muito menos tabu, mas ela é menos tabu com as pessoas que não tem os trejeitos, marcas visíveis, o que é muito triste. E qual é o problema? Eu realmente me considero uma pessoa totalmente desprovida de preconceito. (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay assumido) Como os estereótipos produzem padrões de comportamento
homossexual no qual o homem age de forma mais afeminada e a mulher mais masculinizada, quando uma advogada é considerada mais dura e firme em seu trabalho, rumores acerca da sua sexualidade entram em pautas veladas nos corredores dos escritórios de advocacia.
A hipótese inicial a respeito da maior abertura na cidade de São Paulo foi confirmada pelos entrevistados. Quando perguntados se há diferença entre a visibilidade homoafetiva em São Paulo e em cidades do interior ou outras regiões do país:
“Na cidade onde moro, que é São Paulo, a abertura profissional para profissionais homossexuais é bem aceita, porém em cidades menores existe um tabu muito grande.” (Jorge, 20 anos, estudante de direito, solteiro, gay não assumido) “Por estarmos em São Paulo, eu acho que é um lugar onde você tem mais contato em relação a isso, as pessoas são mais abertas pra esse tipo de coisa” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay assumido).
5. A diferença sexual e identificação homossexual no Brasil
Os advogados homossexuais dizem que não devem se portar como tal, mas existe uma única maneira de representar e praticar a homossexualidade? O que é ser um homossexual na carreira? O que isso representa? Quais são as implicações em assumir tal identidade na profissão? Abordaremos agora essas questões.
Os movimentos homossexuais surgiram no Brasil no final da década de 1970. De acordo com Fry e Macrae (1983), em um pequeno ensaio sobre a história da construção médico‐legal da
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homossexualidade e as suas manifestações no Brasil, os movimentos sexuais surgiram com o propósito de repensar a identidade homossexual e combater as manifestações do preconceito. Além disso, proporcionou maior visibilidade da homossexualidade para o público como um todo. A imprensa passou a dedicar mais espaço ao assunto, além da televisão que, apesar de representar uma identidade sempre caricata para o homossexual, tornou possível a visibilidade social desse grupo de pessoas que antes viviam no anonimato e nos guetos sociais.
Tais mudanças criaram condições sociais mais favoráveis para que profissionais viessem a assumir sua homossexualidade dentro do ambiente de trabalho. Não é possível dizer que a homossexualidade aumentou, não existem dados que comprovem isso, mas os processos de luta para a redução do estigma social garantiram maior visibilidade aos homossexuais do que antes disso.
A visibilidade da identidade homoafetiva entre operadores e operadoras de direito se ampliou, e é possível verificar essas mudanças no cenário atual da cidade de São Paulo. Importante ressaltar nessa análise, os advogados entrevistados e também aqueles com os quais pudemos entrar em contato, apesar de ocuparem um lugar subalterno, enquanto homossexuais são parte dos segmentos favorecidos da população, muitos deles em posições dominantes na hierarquia social.
Além disso, como vimos acima, no mundo do Direito, a ideologia predominante no profissionalismo é baseada na neutralidade afetiva. Dessa maneira, aqueles que se enquadram no perfil do profissional sério, competente e que se adequam às construções sociais de feminino e masculino tendem a prevalecer diante daqueles que fogem do padrão.
“Os que são suspeitos de não virem a se dedicar totalmente à carreira (cuidados com a família), ou aqueles que corporificam uma imagem de si percebida como a antítese do neutro (a sexualidade visível, a emotividade, a politização, o trajar diferente do ‘terno‐terninho’) perdem a pressuposição de sua competência, atestada pelo mérito da proveniência do diploma, da credencial da OAB e do currículo.” (Bonelli e Barbalho, 2008, p.286)
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Como os profissionais do direito lidam então com a identidade profissional e a identidade homoafetiva? Elas entram em conflito? Segundo Hall (2003), resultado de mudanças estruturais e institucionais, o sujeito passa a ser composto de várias identidades, sendo elas algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. A identidade torna‐se algo em contínua transformação, definida histórica e culturalmente, não mais biologicamente. As várias identidades não unificadas no self resultam em uma identificação constantemente deslocada.
A contemporaneidade apresenta múltiplas identidades culturais com as quais o indivíduo pode se identificar, fazendo‐o possuir uma multiplicidade de identidades possíveis. Hall argumenta que a modernidade tardia pode ser caracterizada pela diferença que produz múltiplas posições de sujeitos, isto é, diferentes identidades.
Se antes dessa modernidade o que prevalecia eram as identidades de classe e/ou gênero, agora as categorias gênero, sexualidade, raça, classe, nacionalidade, entre outras, que podem entrar em conflito, constituem uma totalidade de identidades através das narrativas do self. A representação torna‐se elemento importante para que identidades formadas e transformadas culturalmente possam se cruzar.
No final da década de 1990, o debate mudou de direção e os teóricos passaram a aludir suas análises à emergência de categorias que se referiam à multiplicidade de diferenciações que se articulavam ao gênero. Tais categorias são chamadas de categorias de articulação e de interseccionalidades. Os questionamentos passaram a ser realizados em torno do deslocamento nos referenciais teóricos utilizados e de abordagens desconstrutivistas.
Se os indivíduos são formados por diversas noções de identidades, é necessário mais de uma categoria para compreendê‐lo como um todo. Interseccionalidades e/ou categorias de articulação oferecem ferramentas analíticas para a compreensão e articulação das múltiplas diferenças e desigualdades.
“É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo para dar cabo às interações entre possíveis diferenças presentes em contextos específicos.” (Piscitelli, 2008, p.266)
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Ao debater as categorias de articulação e intersseccionalidades, Piscitelli critica as identidades fixas dentro das teorias de gênero. Para a autora, o gênero deve ser problematizado e não mais visto sob modelos teóricos totalizantes e universalizantes.
Piscitelli (2008), assim como Avtar Brah rejeita o conceito de patriarcado como algo universal. Brah (2006) abordou o debate da articulação entre gênero, raça, etnicidade e sexualidade, no feminismo negro, na Inglaterra. A proposta de Brah era trabalhar diferença como categoria analítica, pensando na diferença como experiência, como relação social, como subjetividade e como identidade.
“A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como o racismo, que traçam limites fixos. Entretanto, outras diferenças podem ser apresentadas como relacionais, contingentes. Como a diferença nem sempre é um marcador de hierarquia nem de opressão, uma pergunta a ser constantemente feita é se a diferença remete à desigualdade, opressão, exploração. Ou, ao contrário, se a diferença remete a igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas de agência política”. (Piscitelli, 2008, p.269) Essa linha de pensamento que intersecciona as diferenciações,
pode ser usada para se pensar em como as construções de diferença e distribuições de poder contribuem para o posicionamento desigual dos sujeitos no âmbito global. Para melhor compreensão, é necessário pensar como Scott (1998) em que os sujeitos são constituídos mediante a experiência. Por esse motivo, a sua identidade vai estar relacionada com o lugar e tempo em que se situa. Uma mulher brasileira, branca, estudante e de classe média é vista de maneira diferente dependendo do país em que se situa. Na Europa pode ser vista como migrante, latina e outras posições que não teria se estivesse em seu país de origem.
As identidades são construídas dentro dos discursos e emergem em um jogo específico de poder e por isso são produtos da marcação da diferença e da exclusão11 . O autor usa o termo “identificação” de Homi Bhabha por ser menos ardiloso que o de identidade, pois ambos são conceitos não muito bem desenvolvidos da teoria social.
11 Hall, 2001.
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A identificação é uma constante construção, um processo nunca completado. Ela é um processo de articulação e suturação porque está sujeita a historicização, estando constantemente em processo de mudança e transformação. Além disso, as identidades são constituídas por meio da diferença e não fora dela. Avtar Brah já se questionava de que forma era possível teorizar o vínculo entre a realidade social e a realidade psíquica, para assim teorizar o sujeito pós‐colonial em suas diferentes identidades.
Stuart Hall (2000) concentra‐se em uma discussão da problemática da formação da identidade e da subjetividade, colocando‐se a importante pergunta: por que acabamos preenchendo as posições‐de‐sujeito para as quais somos convocados?
Como já dito anteriormente, Hall salienta que está acontecendo uma desconstrução das visões sobre a identidade em diversas disciplinas, as quais põem em crise a noção de uma identidade integral, originária e unificada. Um conceito‐chave é o de “agência”, que expressa a identificação como uma construção, como um processo nunca terminado. A identificação é, portanto, um processo de articulação. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”, mas nunca um ajuste total. Mas o conceito principal é o de identidade, que não é, em Stuart Hall, uma noção essencialista, mas um conceito estratégico e posicional, ou seja, as identidades jamais são unas. Em suma, as identidades operam através da exclusão, da construção discursiva de uma exterioridade constitutiva e da produção de sujeitos marginalizados, na superfície exilados do universo simbólico ou do representável.
A compreensão de identidades aos olhos de autores pós‐coloniais mostra desde a produção de novos sujeitos devido à nova ordem global, até a difusão das interseccionalidades e categorias de articulação para abordar as diferenças. O que se pode concluir é que as identidades foram percebidas como um conjunto de diferenças que caracterizam os indivíduos e os identifica dentro das práticas discursivas e psicanalíticas. As identificações, por pertencerem ao imaginário, sempre são reafirmadas pelos próprios sujeitos que desejam se inserir na dinâmica das estruturas de poder.
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6. Conclusões A pesquisa seguiu um percurso que mostrou o recorte da
visibilidade de advogados que lidam com a identidade profissional e homoafetiva e acabam seguindo para a militância LGBT. O enfoque que foi dado ao GADvS e aos advogados militantes serviu de base para argumentação de como a homoafetividade irá interferir na profissão, dando outros rumos a partir da militância no movimento LGBT. A força da identificação sexual configura o caminho profissional, mostrando uma interseção na qual se busca reconhecimento para o valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos direitos homoafetivos.
Quando os profissionais não fazem essa reconversão, os custos dos estigmas são pesados. Os pares profissionais produzem as invisibilidades ao partilharem o ideário da neutralidade do profissionalismo como fundamental para o exercício da advocacia. Os profissionais gays, envolvidos ou não em lutas contra a discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e a intimidade, mantendo no armário sua homossexualidade. Nestes casos, a intersecção entre identidades fica sujeita ao predomínio do status profissional perante o estigma da diferença sexual.
Por fim, a análise dessas trajetórias profissionais permitiu compreender os processos de mudança que estão ocorrendo na advocacia paulista e os novos arranjos institucionais, visando a diversidade sexual, desde as instâncias da OAB‐ SP, como a Comissão da Diversidade Sexual e Combate a Homofobia até as sociedades de advogados que vêem na diversidade a possibilidade de ampliar suas redes nas grandes firmas internacionais.
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As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil
Camila de Pieri Benedito1 Maria Eugenia Gastiazoro2
1. Introdução A proposta deste capítulo é a análise comparativa sobre as
diferentes formas de inserção profissional, como também sobre percepções de gênero, no judiciário argentino (Córdoba) e brasileiro (estado de São Paulo). Comparam‐se dados qualitativos de entrevistas realizadas com magistradas para discutir questões teóricas sobre gênero e profissão jurídica.
Como reconstitui a pesquisadora Margareth Rago (2001), a exclusão das mulheres por um largo período das funções públicas na política, nas ciências e na filosofia, são consequências de um contexto histórico e social que se refletiu nas ciências – como a medicina – que retratavam a mulher como diferente dos homens, sendo estas consideradas inferiores intelectualmente, fisicamente e moralmente.
A constituição do direito e de suas instituições entrelaçou‐se com este contexto tornando sua presença, em relação a dos homens, inferior quantitativamente. Em suas origens, o judiciário brasileiro e argentino foi composto unicamente por homens brancos e da elite política (Coelho, 1999; Kohen, 2008) assim como o corpo estudantil das universidades de direito. As primeiras mulheres advogadas também demoraram a surgir (Argentina: Bergoglio, 2007, Sánchez, 2005, Kohen, 2005, Bergallo, 2005, Gastiazoro, 2008; Brasil: Junqueira, 2007, Bonelli, 2012).
Além das lutas feministas que impactam sobre o papel da mulher em nossa sociedade, auxiliando seu maior ingresso em cursos
1 Mestre em Sociologia. Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos. Pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, UFSCar.
2 María Eugenia Gastiazoro: Mestre em Sociologia (Centro de Estudos Avançados, UNC) e Advogada (Universidad Nacional de Córdoba). Auxiliar Docente na Cátedra Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UNC.
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universitários e na vida pública, outros movimentos ocorrem tanto no Brasil como na Argentina refletindo na feminização das carreiras jurídicas: a organização empresarial dos escritórios jurídicos intensificou‐se no contexto da internacionalização da economia nos anos 90. Ambos os países reformaram seus sistemas judiciários no sentido de modernizar e racionalizar o seu funcionamento, muitas vezes sob a direção de organismos internacionais. Por sua vez os processos de democratização da educação trouxeram um aumento do número de profissionais do direito, sendo destacado o ingresso qualitativo de mulheres na profissão (Bergoglio, 2007; Junqueira, 1998).
Na Argentina, a tendência à organização empresarial do trabalho dos advogados significou um aumento no tamanho dos escritórios, bem como um aprofundamento da divisão do trabalho jurídico e um aumento da especialização. O surgimento de grandes empresas jurídicas – escritórios com mais de cinquenta advogados – ao lado dos pequenos e médios escritórios de advocacia, expressa claramente estas transformações (Bergoglio, 2005).
No caso do Brasil, Junqueira (1999, 1998) analisa este processo iniciado pelo contexto de privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso e se estende sobre o maior ingresso de mulheres. Sobre as diferenças entre advogados e advogadas, a autora retoma o conceito de glass ceiling3 – ou teto de vidro – que corresponde a uma barreira invisível que impede que homens e mulheres ocupem com a mesma facilidade os espaços de maior prestígio, pois para que possam alcançar estes postos precisam se esforçar mais que os homens que são colocados nas posições mais prestigiadas enquanto elas permanecem nos trabalhos burocráticos e de menores privilégios.
Na Argentina, a reforma da administração judiciária e sua modernização implicaram uma série de mudanças que ampliaram a oferta de trabalho no setor público. Embora a feminização do poder judiciário não seja um processo recente, a possibilidade que existe hoje de prestar concursos abertos influi na crescente inserção de mulheres neste campo de trabalho. Entretanto, vários estudos mostram que elas
3 Junqueira utiliza‐se do conceito de glass ceiling cunhado por Margareth Thornton no texto Dissonance and Distrust: Women in the Legal Profession (1996).
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estão sub‐representadas nos postos de maior hierarquia, ao passo que são sobre‐representadas em posições de menor poder e decisão (Mackinson e Goldstein, 1988; Gastron, 1991; Bergallo, 2005; Kohen, 2008; Gastiazoro, 2010). De modo semelhante, no Brasil a participação feminina nas carreiras jurídicas públicas se intensificou a partir do momento em que as provas objetivas passaram a manter a identidade de candidatos e candidatas anônima (Bonelli, 2011) apesar de haver ainda o peso do gênero durante a parte subjetiva, de entrevistas.
Estas variáveis, brevemente elucidadas, ilustram como a questão da equidade na participação feminina e masculina nas carreiras jurídicas não pode ser considerada somente a partir da questão temporal. Neste artigo, são resgatadas as perspectivas de mulheres que trabalham no poder judiciário de Córdoba e também de juízas estaduais e federais paulistas no Brasil. A ideia é comparar como operadoras do direito no Brasil e na Argentina têm observado a questão da participação das mulheres no direito para então discutirmos questões teóricas sobre diferença de gênero e carreiras jurídicas.
Na próxima seção do artigo serão destacadas as bases teórico‐metodológicas das duas análises para que seja possível realizar a explanação mais detalhada das pesquisas nos dois países. No trecho A inserção das mulheres no poder judicial em Cordoba, será posto em destaque a pesquisa de Gastiazoro enquanto na seção A percepção de gênero entre juízas estaduais e juízas federais no interior do estado de São Paulo será exposta a de Benedito no Brasil. 2. Aspectos teóricos e metodológicos da investigação
A investigação na Argentina foi realizada sobre o Poder
Judiciário da Província de Córdoba e a Justiça Federal de Córdoba. Depois da análise de dados quantitativos que dão conta de processos de segregação vertical e horizontal nos poderes judiciários considerados, foram feitas entrevistas com mulheres que lá trabalham para compreender as desigualdades de gênero. Neste presente artigo foram analisadas entrevistas tomadas a mulheres juízas de diferentes níveis, ademais do caso de uma secretária da Justiça Federal.
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Embora se venham produzindo transformações tanto no mundo do trabalho como na vida, a divisão sexual do trabalho ainda é uma estrutura que afeta as atividades das mulheres, e a gestão de seu tempo, tanto no campo do privado como do público, elemento cuja repercussão ultrapassa aquilo que elas são capazes de ʺnegociarʺ ou ʺrenegociarʺ na esfera privada. Ademais, persiste nos agentes um olhar que percebe e valoriza as diferenças de gênero dentro de uma visão binária que incide de maneira negativa sobre as próprias mulheres. Essa situação se reproduz através da violência simbólica presente nas relações sociais, o que impõe uma construção social arbitrária do biológico, e em especial do corpo (Bourdieu, 2005). Neste sentido, as desigualdades de gênero dentro da profissão jurídica se sustentam em arbitrariedades culturais que se evidenciam como naturais.
Entre os modelos teóricos explicativos das desigualdades de gênero apresentados por Hull e Nelson (2000), aquele das escolhas dos atores postula que são as próprias mulheres que incidem na configuração das desigualdades de gênero. A partir desta perspectiva, argumenta‐se – segundo a teoria do capital humano de Gary Becker (1985) – que as diferenças de gênero são consequência dos investimentos individuais em educação, mas também em experiência e treinamento profissional que homens e mulheres investem em si. Enquanto as mulheres fazem escolhas que privilegiam as responsabilidades familiares contra o próprio crescimento na carreira profissional, os homens concentram sua atenção em sua formação e especialização profissional. Esta explicação resulta criticável porque coloca o foco no individual sem levar em conta as barreiras estruturais, a discriminação e orientação institucional de gênero. Investigações sobre o tema observaram que, por mais que as mulheres tenham a mesma formação e experiência de trabalho que os homens, tais características não são efetivamente valorizadas da mesma forma quando se trata de obter promoções (Fiona e Hagan, 1999; Rhode, 2003). Além disso, as pautas de trabalho nas empresas jurídicas, como a extensa jornada de trabalho e a consequente sobreposição crescente da vida com o trabalho são barreiras que potencializam as desigualdades em detrimento das mulheres, sustentadas pela divisão sexual do trabalho (Bergoglio, 2007a). Nesse sentido:
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“... os níveis concretos de autonomia e autodeterminação efetivamente alcançados pelas pessoas não depende apenas de suas aspirações e esforços pessoais, mas também do gênero, da idade, etnia e setor socioeconômico em que eles estão situados... a individualização está sempre inscrita em um campo de lutas... que determinarão quais sujeitos efetivamente possuem autonomia”. (Stecher Godoy e Diaz, 2005:94) A teoria de Bourdieu (2005:105) permite adentrarmos na
ʺ(re)construção social, sempre reproduzida, dos princípios de visão e divisão geradores dos gênerosʺ, que ocorre dentro das estruturas institucionais que, por sua vez, são sustentadas por meio das estratégias que os agentes colocam em marcha. A lógica do modelo da divisão entre o masculino e o feminino se instaura e reinstaura por meio de um trabalho constante de diferenciação a que os agentes não deixam de ser submetidos e que os leva a distinguir‐se por meio de processos de masculinização ou feminização.
É certo que:
“as mudanças provadas pela globalização enfraqueceram os costumes e o senso comum tradicionais: o paradigma de gênero mudou, já não se baseia mais no modelo capitalista anterior do homem provedor e das mulheres no espaço doméstico, alcançando também a recuperação de uma perspectiva mais complexa de gênero, superando a perspectiva reducionista que o coloca como oposição binária entre mulheres e homens. No entanto, estes avanços deixaram basicamente intocada a divisão sexual do trabalho como forma organizativa da sociedade, tornando muito mais opressora suas múltiplas jornadas e convertendo o tempo – sua escassez – em um lugar de sujeiçãoʺ (Manifesto dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2006:8). Sendo, então, a solução culturalmente institucionalizada na vida
cotidiana que:
“as estratégias de conciliação do trabalho, do doméstico‐familiar e do pessoal são uma questão de caráter privado, sendo as mulheres os agentes que protagonizam estas estratégias privadasʺ (Missa e Unceta, 2008).
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Neste sentido, as relações estabelecidas entre os espaços e tempos do produtivo e reprodutivo, do privado e do público, do familiar e do trabalho são aqui fundamentais.
No caso do trabalho de Benedito, foram selecionadas para a análise duas carreiras jurídicas públicas brasileiras: a magistratura estadual e a magistratura federal paulistas, analisando desta forma a presença das mulheres no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). A pesquisa e a análise dividem‐se em duas partes: a primeira, quantitativa, relaciona o conceito de profissionalismo com a maior ou menor presença feminina nestas carreiras como também a abertura mais ou menos flexível para a presença destas nas instituições. A segunda parte, qualitativa, é a análise dos discursos de juízas federais e estaduais de onde são resgatadas suas percepções sobre a presença feminina nas instituições.
O conceito chave na análise é o profissionalismo, tanto em seu aspecto institucional pelas contribuições de Freidson (1996) como o definido em forma de discurso a partir de Evetts (2003). Freidson constrói as variáveis do profissionalismo como um tipo ideal4, segundo o autor o trabalho organizado pela lógica do profissionalismo se distingue de outras formas de trabalho5 em três pontos essenciais: em primeiro lugar diferencia‐se do trabalho realizado pelas ocupações que são uma especialização mecânica, sendo então uma especialização criteriosa, ou seja, que demanda um estudo especializado e aprofundado realizado na universidade. Este saber é abstrato, característica que compõe o segundo elemento do profissionalismo e
4 O tipo ideal de Freidson é distinto daquele concebido por Weber. Neste caso, o tipo ideal se constrói em um conceito mutável a partir das diferentes variáveis com as quais se encontra como organização estatal e condições históricas e geográficas.
5 Freidson coloca que o profissionalismo concorre com outras duas formas de organização do trabalho em nossa sociedade: a lógica de mercado e a lógica burocrática. A lógica de mercado se contrapõe ao profissionalismo ao criticar seu caráter monopolista em relação ao mercado de trabalho e o credencialismo ‐ obrigatoriedade de diploma. Desta forma, nesta lógica o treinamento dos ingressantes costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho e seus membros são transitórios. Já a lógica burocrática compreende um Estado controlador e hierárquico, sendo uma organização ideologicamente embasada pela valorização do caráter administrativo e de eficiência.
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funciona como um mecanismo de reserva de mercado e construção de credenciais – os diplomas, terceiro elemento – que permitem somente aos iniciados o ingresso nos grupos profissionais.
As carreiras jurídicas podem ser consideradas profissões por serem concebidas nestes moldes. Somente indivíduos com o título de bacharel em direito podem fazer parte destas instituições que ainda demandam processos de seleção individuais, ou seja, provas e concursos especiais para que os(as) bacharéis possam se tornar advogados(as), juízes(as), promotores(as) de justiça, dentre outros tantos profissionais do mundo jurídico. A história de cada uma destas carreiras e a forma como constituíram sua autonomia e profissionalismo – como descrito nos moldes de Freidson – variam entre si, existindo carreiras mais e outras menos consolidadas6.
A hipótese, que é inclusive confirmada pelos dados, coloca que as carreiras mais antigas e prestigiadas são também as que possuem um menor número de mulheres e menor flexibilidade para o crescimento quantitativo de seu ingresso como também sua presença nos cargos mais altos. Em dados de 2010 (Benedito, 2011) na primeira instância da magistratura federal havia 37,01% de mulheres, número que sobe para 46,15% na segunda instância. No caso do TJSP em primeira instância o número é próximo do TRF com 36,70% mulheres, mas cai dramaticamente para 3,98% na segunda instância.
Como colocado em Bonelli (2011), o TJSP é uma das mais prestigiadas instituições jurídicas do país e que mais cedo estabeleceu sua autonomia e espaço no mundo do direito. Com uma composição inicial estritamente masculina, branca e elitizada, estes patamares permanecem ainda hoje na carreira com uma criteriosa seleção de
6 A legitimação das carreiras frente a sociedade também se compõe por um processo mais complexo e em constante transformação que ocorre desde o surgimento das carreiras aos dias atuais, havendo um constante diálogo entre as instituições e entre as instituições e a sociedade. A definição de Andrew Abbott (apud Rodrigues, 1997) sobre o profissionalismo o descreve como o equilíbrio de um sistema sempre dinâmico que absorve e regula transformações internas e externas. As profissões detém o monopólio de um serviço prestado (por exemplo a medicina pelo cuidado da saúde humana) que Abbott descreve como jurisdição, disputas entre as profissões pelo monopólio de áreas de conhecimento e atuação. Estas disputas ocorrem simultaneamente de forma intra e interprofissional (Rodrigues, 1997).
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membros. Sua capacidade de definição dos patamares de seleção e promoção explicam a fraca presença feminina, em especial na segunda instância.
Já no caso da magistratura federal, um processo histórico distinto com o impacto do executivo sobre ela – a extinguindo durante o governo Vargas, ressurgindo apenas durante a ditadura militar –, pelas novas atribuições e transformações a partir da Constituição de 1988 e um processo de seleção para a segunda instância não autônomo que se realiza conjuntamente ao executivo, transformam sua composição:
“A maior feminização na segunda instância da Justiça Federal tem então a ver com a sua menor autonomia de promoções e de controle de seus membros, resultado tanto de sua dependência do executivo para as promoções como pela sua tardia consolidação como profissão. Assim, foi mais fácil a entrada da mulher na segunda instância da carreira pelo fato de a carreira ter se iniciado em um momento que as mulheres estavam começando a aumentar de número nos cursos de graduação e intensificando sua entrada no mercado de trabalho”. (Benedito, 2011, p.55).
Além do âmbito quantitativo da feminização das carreiras
jurídicas é possível, a partir da construção teórica de Julia Evetts, aprofundar a análise sobre as construções subjetivas das mulheres no TJSP e na Magistratura Federal. Para Evetts o profissionalismo se constitui e se legitima frente a sociedade como um discurso de competência e altruísmo, delimitando seu espaço como detentor do monopólio daquele saber e do serviço prestado. Analisando o uso do termo do profissionalismo no âmbito privado, a autora percebeu como este tem sido utilizado como disciplina7, definindo e moldando perfis e corpos desejáveis dentro das instituições.
Sob a perspectiva foucaultiana, os corpos podem ser entendidos como resultados de um processo histórico e dinâmico que incide sobre
7 “O uso do discurso do profissionalismo em uma grande empresa privada de serviços, pela gerência, serve para orientar identidades de trabalho, condutas e práticas ‘apropriadas’” (Evetts, 2006, p. 525).
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eles um efeito de poder8. Conjuntamente aos discursos do gênero, pode se considerar que as construções identitárias das magistradas articulam os discursos do profissionalismo com os de gênero que é entendido aqui a partir das contribuições de Judith Butler que foge de uma análise que parte do sexo natural onde se impõe uma história de gênero masculina e feminina e passa a compreendê‐lo como uma identidade construída e performática em que “a platéia social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo‐a sob a forma de uma crença” (Butler, 2003, p. 200).
O gênero e o profissionalismo se encontram na construção de uma corporalidade adequada ao mundo jurídico. A ideia é de que sendo profissões constituídas a partir do masculino, existe um processo de negociação da diferença que ora busca uma essencialização positiva de atributos naturalizados como femininos ora os invisibiliza e, dessa forma, as posturas reservadas e as roupas despidas de qualquer conotação sexualizada demonstram um processo de invisibilização da diferença enquanto que a relevância dada às qualidades femininas e o ganho das carreiras jurídicas com elas realiza uma essencialização positiva. 3. A inserção das mulheres no Poder Judiciário em Córdoba.
3.1 O tratamento diferenciado
A profissão jurídica foi um campo masculino até princípios do
século XX. Apesar das dificuldades, a presença das mulheres nesta profissão foi aumentando ao longo do século, sendo hoje significativa a percentagem de mulheres tanto ingressando na carreira como no exercício profissional (Kohen, 2005; Bergoglio, 2005).
8 A analítica do poder é um recurso teórico empenhado por Foucault que se distingue daquela denominada pelo autor como teoria do poder na qual este é proposto como soberano e fonte da dominação. Na analítica do poder, não sendo concebido como algo que possui dono ou que pode ser repassado, que possui origem, meio e fim, entendido a partir como relações que emergem historicamente em meio a negociações e lutas que se expandem pela sociedade como regimes de verdade que constroem e moldam os corpos (Foucault, 2003).
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O ingresso crescente de mulheres no poder judiciário da província de Córdoba é destacado pelas entrevistadas como um processo que era evidente já nos anos 80, e cujos obstáculos expressos as mulheres deveriam superar. Havia certas resistências quanto ao ingresso massivo das mulheres, e a elas eram exigidos, para serem admitidas, maiores atributos em comparação com os homens.
Uma depoente conta‐nos que algumas vezes, nos escritórios jurídicos, a atacavam por se mulher, e esclarece que nem sequer se costumava dizer: ʺsenhora juízaʺ. Apesar de seu sexo, a estrutura a identificava como um juiz – homem –, igualando‐a à retórica masculina e conta, inclusive, que isso estava estampado no próprio carimbo que ela utilizava:
“Nas palavras escritas me atacavam por ser uma mulher, mas eu nunca lia essas coisas. Em outras palavras, diziam: ʺVocê, juiz, eu a rejeitoʺ. Porque nem sequer se usava ʺsenhora juízaʺ. Desde 85 que eu era juiz, eu era ʺsenhor juizʺ... meu carimbo dizia: ʺDoutora ...ʺ e abaixo dizia ʺsenhor juizʺ, não dizia ʺsenhora juízaʺ oficialmente. Isso ninguém se lembra, mas eu o tenho muito presente” [Vogal, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
Esta situação dá conta de elementos da estrutura ocupacional que formalmente impunham a forma masculina nas práticas de todos os agentes implicados na justiça, independentemente de seu gênero, já que tradicionalmente essa era uma profissão masculina.
Outra entrevistada, que foi juíza de um tribunal de foro múltiplo no interior de Córdoba, relatou como foi posta à prova por sua condição de mulher, sobretudo nos casos que requeriam a atuação da polícia:
“Foi difícil minha tarefa porque, sobretudo quando eu tinha que lidar com a polícia, aí sim eu reconheço que tornavam a questão difícil pra mim. Porque, por exemplo, eu tinha uma violação e desde o médico legista, que escrevia os relatórios em termos vulgares... Então o que eles queriam era... Ainda por cima, se eles me viam andando com um vestidinho branco nessa época, digamos... era como um desgaste, um jogo de provocações, que queriam não sei... Eu sempre tive um caráter muito forte, não sou uma pessoa autoritária, mas eu sempre fui muito firme, e para a população isso lhes oferecia muita segurança” [Múltiplo, Juiz Jurisdição, PJ Córdoba].
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O tratamento dados às mulheres se assemelha ao analisado por Boigeol (2005) na França. A investigadora argumenta que lá, um primeiro acesso das mulheres à magistratura, sobretudo nos postos mais altos do poder judiciário, foi entendido como um atentado ao modelo tradicional familiar e aos atributos constitutivos da profissão, bem como uma concorrência em relação à qual os juízes estavam plenamente conscientes de sua fragilidade. Embora todos os casos expostos sejam de mulheres com mais de 50 anos de idade, também algumas mais jovens, cuja idade gira em torno dos 30 anos, percebem que as mulheres continuam sofrendo algum preconceito de gênero em relação ao tratamento dado a elas por seus chefes.
O tratamento diferenciado dado às mulheres também foi observado em tribunais federais de Córdoba, e uma das entrevistadas relatou como, no momento de investigar as causas de direitos humanos, foram subestimados por sua condição de mulheres, o que não significou que não persistiram com seu trabalho.
3.2 Regime de trabalho e práticas que consolidam as marcas de gênero
As mulheres destacam que a administração judiciária tem uma estrutura profissional que lhes permite conciliar as exigências do trabalho com as da vida familiar, algo distinto do que acontece no campo do exercício da advocacia. Nos tribunais, as mulheres encontram um horário fixo que oscila entre 6 a 8 horas diárias, conforme sejam contratadas ou funcionárias públicas, respectivamente, ademais há regime de licenças, férias, o que incentiva a inserção das mulheres nesse campo. Assim o percebem as próprias entrevistadas:
“As empregadas contratadas que começam a trabalhar valorizam muito poder levar, digamos, adiante um projeto de família com filhos, gravidez, com um horário que é bastante acessível para as mulheres, porque as duas da tarde as contratadas já podem ir para sua casa (as funcionárias públicas, as 4 da tarde), elas tem 3 meses de licença maternidade, tem duas férias por ano, têm todo o mês de janeiro livre, oito dias úteis em julho, tem licença para amamentação, e também 20 dias ao ano por adoecimento familiar, ou seja, tudo isso elas tem, e é
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muito respeitado, se respeita muito a licença maternidade” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
Mas, embora a estrutura ocupacional da administração
judiciária leve a que as mulheres busquem inserir‐se neste campo de trabalho, o sistema de licenças muitas vezes age contra elas, já que alguns juízes veem isso como um problema para o desenvolvimento do trabalho dos tribunais.
“a licença maternidade e a licença amamentação causam um impacto muito grande no tribunal, porque não se cobrem as licença de maternidade, então comigo aconteceu, por exemplo, no final do ano passado, desde outubro e novembro até o começo de março deste ano, ter duas pessoas a menos para trabalhar... Isso é muito problemático e pode levar, indiretamente, à discriminação de juízes que não querem empregar mulheres” [Juiz, civil e comercial, PJ Córdoba].
Por exemplo, esta mesma juíza conta o caso de uma empregada
que é uma mãe solteira com um filho, que não conta com uma rede social familiar em Córdoba porque é de outra província. Ela teve que sair de um tribunal do qual pediu transferência porque sua chefa se incomodava cada vez que ela faltava quando seu filho estava doente.
Por outro lado, as entrevistadas notam que, em geral, os homens tendem a ser cada vez menos contratados; observam que, como contratados, os homens são muito poucos. As mulheres que trabalham nos tribunais da província relatam que a pouca presença de homens faz com que, muitas vezes, eles sejam mais solicitados do que as mulheres, inclusive há casos em que são solicitados especificamente homens.
“Há muitos tribunais civis onde toda a equipe, desde a secretária até o escrevente, são todas mulheres. Nós aqui temos um assistente‐secretário homem, contratados nós temos um empregado efetivo, e dois estagiários homens... somos o tribunal que mais homens tem. Sei de um tribunal no qual o juiz é homem, e que dizem, extra‐oficialmente, as pessoas têm dito que ele quer que seu tribunal venha a ser integralmente composto por homen” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
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3.3 Diferenciação do trabalho por gênero
A segregação horizontal é um processo que tem a sua história. Se rastreamos o que contam as mulheres que ingressaram em tribunais da província há mais de 20 anos, observamos que havia obstáculos explícitos para o acesso a determinadas foros. Em geral, as mulheres não eram nem admitidas nem desejadas no âmbito do direito penal ou do trabalho, essas eram matérias reservadas aos homens. Eram muito poucas as que entravam ali. Havia uma segregação horizontal que vedava às mulheres trabalhar no campo da justiça penal, o que por sua vez incidia em uma segregação vertical, como se deduz da citação acima. Assim, por seu gênero as mulheres eram excluídas dos âmbitos de trabalho considerados não adequados para elas. Um desses espaços eram os tribunais criminais, onde se exerce um poder muito importante, o exercício da coerção física sobre os cidadãos. As justificativas apresentadas eram que ali não colocavam mulheres em função do tipo de crimes que tratava, principalmente os que afetavam a integridade sexual. Isto significa que os delitos nos quais as vítimas geralmente eram mulheres ficavam nas mãos dos homens, sob sua decisão, sendo as mulheres excluídas desse âmbito do poder.
Algumas mulheres que ingressaram em foros específicos como civil ou de menores, enviadas a eles apesar de seu interesse por outros ramos, em geral permaneceram ali, porque começaram a se interessar ou a gostar. Além do mais, ter trajetória num mesmo foro é conveniente, já que é um antecedente pra ascender dentro dele. Embora hoje não haja restrições institucionais para que as mulheres ingressem no foro penal, a percentagem de homens neste foro ainda é maior, sobretudo nos cargos de magistrados e funcionários. Este limite explícito que existia, já não existe na estrutura institucional, inclusive quando há vagas no foro penal é muito possível que elas as ocupem. Os concursos para ingressar na polícia judiciária têm permitido e permitem que muitas mulheres entrem nesse setor. Todavia, as entrevistadas apontam que trabalhar na penal continua sendo mais difícil para as mulheres em função das condições de trabalho e, em alguns casos, isso implica que as mulheres peçam transferência para outras jurisdições.
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Como vemos hoje, as mulheres participam cada vez mais em foros tradicionalmente masculinos. Mas se observa ainda uma segregação horizontal acentuada entre os âmbitos de civil e comercial por um lado, e penal de outro. Os tribunais do trabalho, embora tenham sido um espaço de acesso restrito para as mulheres, hoje são um foro que se destaca pela forte presença delas.
Outra questão que surge no relato das entrevistadas se refere à diversidade de condições de trabalho que existem nos diferentes foros dentro dos tribunais. Ao comparar os foros de civil com os de penal, observam que os de civil são mais precários e hostis a elas que os de penal.
“as condições de trabalho na civil são muito duras, porque a carga de trabalho é significativamente mais pesada que em qualquer outro foro, é impressionante a quantidade de causas que se movem por dia, é necessário um trabalho muito mais dedicado, as condições de infraestrutura dos tribunais civis são espantosas em relação aos tribunais penais, que têm muita comodidade, tem ar condicionado, cada funcionário tem um computador, um telefone, um escritório, um espaço próprio que aqui não tem... aqui às vezes não tem um lugar onde colocar um estagiário, aqui todo mundo fica amontoado, eu tenho um escritório muito pequeno, às vezes juízes têm um escritório maior, ás vezes tem dois funcionários trabalhando no escritório do juiz porque não tem espaço” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
Por outro lado, o tratamento entre empregados e advogados é
muito diferente na civil e na penal. Alguns entrevistados apontam como isso parece influenciar os funcionários do sexo masculino, que preferem migrar para a penal, por exemplo, porque não suportam os maus tratos, enquanto as mulheres tendem a ficar.
Ademais encontramos os típicos argumentos que apontam para a inserção diferenciada de homens e mulheres dentro do poder judiciário em função de uma questão de afinidades distintas, quase natural entre os sexos. Essa afinidade é expressa por outra das entrevistadas que, embora observe que as mulheres hoje estão em todos os âmbitos do poder judiciário, em sua opinião a penal é para os
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homens, já que as mulheres, por sua sensibilidade costumam ficar mais expostas nesse lugar.
Também nos tribunais federais de Córdoba a diferenciação por foro persiste, embora sua marca não seja tão profunda como era há vinte anos atrás. Uma das entrevistadas conta o caso específico de sua corte, onde a juíza é mulher, o que permitiu que as mulheres ingressassem no tribunal e estivessem claramente representadas em todos os foros.
“desde quando eu entrei já eram todas mulheres na Civil e, em Penal eram todos homens, há 20 anos. E em alguns tribunais isso têm se mantido, ou têm ingressado mulheres mas continua tendo mais homens que mulheres. Agora, em um fórum, a partir do momento que a juíza é mulher, que é desde... de 91, ou seja... bem, aí se tem invertido e cada vez mais mulheres são empregadas. Aqui na Secretaria Penal predominam mulheres e em todo o fórum predominam mulheres” [Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba].
Como sucede nos tribunais provinciais, aponta que as condições de trabalho na penal podem incidir numa maior presença de homens, já que requer mais dedicação ou disponibilidade de tempo. Mas, para elas, as diferenças de gênero em penal não se expressam como nos juizados provinciais em função do tipo de delitos que tratam.
“Sim, mas na parte federal nem tanto. Talvez a questão de existir mais homens na penal seja porque eles têm que trabalhar no período da tarde, às vezes, na penal. Porque na província, na penal, chegam alguns assuntos, alguns crimes, que a mulher mesmo trata de... evitar. Veja, por exemplo, estupros, homicídios, você tem todos esses arquivos com fotos, e muitas mulheres por aí dizem... Não, não tenho vontade de me meter a investigar esse tipo de coisa, ou lidar com a polícia e tudo isso, que é bem... por isso que as mulheres tratam de, de se afastar. Aqui já não é tão duro, porque as causas que nós temos são por drogas, vem os consumidores, não, não é... ou fraudes contra o Estado nacional, ou por... adulteração de documentos...” [Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba].
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3.4 Diferenciação de gênero nos níveis de ocupação A distribuição por gênero nos diferentes níveis do sistema
judiciário é observada pelas entrevistadas, embora nem todas o percebam como um processo produtor de desigualdades. O caso a seguir põe em manifesto a diferenciação por gênero em termos de níveis de ocupação:
“Agora, o que eu posso te dizer, o que eu percebo, por exemplo, nos foros civis, há tribunais que têm maioria de empregadas mulheres, poucos homens, mas há homens... há uma maioria de mulheres empregadas, mas a nível de decisão, digamos, no nível hierárquico há mais homens do que mulheres. Ou tantos homens quanto mulheres. Ou seja, também poderíamos interpretar que nas posições de decisão e de responsabilidade existem mais possibilidades para os homens do que para as mulheres, porque não se mantém o mesmo percentual das categorias mais baixas nas mais elevadas” [Juiz, Civil e comercial, PJ Córdoba]. Por outro lado, o grau de segregação vertical tem relação com o
tipo de foro, o que quer dizer que se intersecta com a segregação horizontal. Assim, na esfera penal, são muito poucas as mulheres ocupando o lugar de representantes de Câmara, enquanto que uma representante do foro de família observa o contrário em seu campo:
“Mas veja nas câmaras como está equiparado, nesta câmara são duas mulheres e um homem, e na câmara superior são dois homens e uma mulher. E nos tribunais não, nos tribunais há mais mulheres, havia um homem que se foi, e agora vem outro e o outro que estava era meu companheiro. Mas se nos Tribunais de Família há uma marcada predominância feminina, o notável é que nas câmaras estamos empatados” [Família, Vogal, PJ P. J. Córdoba]. As mulheres que dizem não perceber segregação vertical
costumam citar quase sempre o caso de mulheres que hoje são membros do Tribunal Superior de Justiça como um paradigma da igualdade e prova do acesso das mulheres aos postos mais altos do poder judiciário. O acesso das mulheres aos tribunais superiores é uma imagem forte,
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que impõe uma percepção de igualdade para todos os escalões do poder judiciário, quando na realidade isso não ocorre, já que persistem os processos de segregação vertical.
Se tomarmos a profissão jurídica como um todo, na qual se distinguem dois âmbitos – o poder judiciário, por um lado, e o exercício da profissão, de outro – observamos que a retórica – ligada ao poder simbólico de definir as coisas – tem força na definição dos locais de trabalho que por um lado devem ocupar as mulheres e que, por outro, elas decidem ocupar, que são sobretudo lugares compatíveis com a divisão sexual do trabalho. Nesse sentido os tribunais se apresentam como um campo de trabalho específico desta retórica, cada vez mais acessíveis através do sistema de concursos, como é o caso dos tribunais de Córdoba. É muito destacado o discurso de que as mulheres vão para o Judiciário porque deste modo lhes é possível ter uma família. Isso mostra a persistência da tradicional divisão sexual do trabalho que repercute tanto na construção da identidade profissional e de gênero das mulheres como na estrutura da divisão dual do trabalho jurídico.
Seguimos notando os processos de diferenciação que, apesar das mudanças, tornam a se reproduzir. Hoje, embora nos campos do poder judiciário e penal haja mais mulheres, não significa que a diferenciação se desvaneça em prol da equidade, mas que há novos processos de diferenciação. Consequentemente, o Judiciário se feminiza, e ademais o peso recai sobre as mulheres, já que os homens começam a ganhar vantagens por serem cada vez mais escassos e, em consequência, mais solicitados dentro do espaço dos tribunais.
O profissional se identifica com a abstração, a igualdade e neutralidade no campo do trabalho sem aperceber‐se dos vieses de gênero que se evidenciam nos dados quantitativos que enfatizam a segregação. Este viés de gênero mostra que a direção que homens e mulheres dão a suas carreiras profissionais e a seus interesses e compromissos profissionais está condicionada pela divisão sexual do trabalho, tanto no âmbito da profissional como da vida privada.
Em uma sociedade na qual se põe ênfase no indivíduo, mas onde as transformações econômicas estruturam o mundo do trabalho, as estratégias dos agentes assumem diferentes expressões. Temos hoje uma profissão jurídica que está incorporada no mundo do trabalho
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mais amplo no qual se registra uma desigualdade de gênero nos rendimentos auferidos, ademais do impacto negativo que as condições informais de trabalho têm sobre as mulheres, e o campo da profissão não é alheio a essas vicissitudes. Especificamente, tanto as mudanças estruturais da economia como as reformas do poder judiciário ocorridas nas últimas décadas implicaram uma reorganização do trabalho jurídico (Bergoglio, 2005). O impacto dessas mudanças significou o progressivo assalariamento da profissão e, nesse sentido, muitos profissionais são absorvidos pela administração judiciária, e muitos outros pelas empresas jurídicas (Bergoglio, 2005; Sanchez, 2005). Neste contexto, as mulheres valorizam, no momento de tomar decisões chaves em sua carreira, a necessidade de segurança e a importância de um salário fixo ou de licenças que sejam respeitadas. Estas escolhas impactam diferencialmente sobre as mulheres: aquelas incorporadas pela justiça destacam a importância do salário fixo, enquanto que no campo do exercício da profissão afirma‐se que os rendimentos podem ser muito mais altos.
4. A percepção do gênero entre juízas estaduais e juízas federais no interior do estado de São Paulo
Para a análise das percepções subjetivas por parte das
operadoras do direito brasileiras, foram selecionadas entrevistas com magistradas no interior de São Paulo. Os depoimentos são de três juízas federais (TRF3), Ana Alice, Mariana e Carolina e duas juízas estaduais do TJSP, Juliana e Marcela. As magistradas atuam nos municípios de Laranjeiras, Rio das Pedras e Água Vermelha, todos localizados na região central do estado9. As entrevistas se focaram na percepção destas magistradas sobre a participação das mulheres nas carreiras e nas principais barreiras que estas podem vir a enfrentar por serem mulheres e ocuparem uma posição de poder e prestígio. Nas respostas é possível observar: o impacto da maternidade e dos cuidados com a família na articulação entre a vida pessoal e a vida profissional, a separação do
9 Com o compromisso de manter a identidade das entrevistadas preservadas, seus nomes e os nomes das cidades são fictícios.
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preconceito sofrido pelas mulheres na carreira do que ocorre na sociedade como um todo e a essencialização de características masculinas e femininas que afloram na atuação profissional.
Das cinco entrevistadas três são mães, porém a maternidade aparece na fala de todas como a principal dificuldade enfrentada pelas mulheres na magistratura. Nos discursos é possível resgatar esta questão a partir de três falas: a primeira que se coloca a partir da intensa tarefa em articular as longas jornadas de trabalho com o cuidado da família, a segunda que resgata a necessidade de uma vida social mais restrita e, por fim, o impacto da maternidade como um empecilho que dificulta promoções e o aprofundamento dos estudos.
Ana Alice é juíza federal e na época da entrevista estava com 44 anos, é mãe de duas filhas e sua primeira formação é como engenheira. Para ela, articular trabalho, maternidade e estudos foi sem dúvida seu maior enfrentamento como magistrada e atualmente com doutorado na área do direito, um livro publicado e a consequente estabilidade profissional, cumpriu grande parte de suas expectativas, mas ainda assim entende como o maior impedimento à ascensão na magistratura a maternidade:
“Chega um determinado nível, vamos dizer, quando você já é juiz titular, as perspectivas são um pouco limitadas, porque o acesso aos Tribunais é bem difícil, tem o componente de certa forma político, e também tem que conciliar o trabalho com a ascensão profissional, de modo que tudo isso é muito dificultoso no dia a dia, porque se você se concentra no trabalho e na família, de uma certa forma, sobra pouco tempo para você, vamos dizer, se dedicar a algumas atividades que talvez sejam necessárias para você subir na carreira, como fazer outros cursos que isso seria interessante, só que não há tempo muitas vezes suficiente para tudo isso” [Entrevista com Ana Alice, magistrada federal]. Juliana é uma magistrada estadual que desde a infância, por
influência do pai também juiz do TJSP, sonhava em ser juíza e, para tanto, organizou toda a sua vida em direção ao direito e mais especificamente ao tribunal. Atualmente com 42 anos, é juíza cível, diretora do fórum e mãe de um garoto de dois anos, o que torna sua
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vida bastante atribulada. Sobre a questão das dificuldades na carreira, aponta a maternidade da seguinte forma:
“Eu tenho um filho pequeno, até retardei muito a minha, o meu ingresso na vida materna, por conta da profissão, né? Depois de quinze anos de magistratura que eu tomei coragem e engravidei, até porque havia uma questão biológica na minha vida... eu tava com quarenta anos e eu não tinha mais tempo para retardar a maternidade (...). A gente, mulher ainda, a questão complica bastante... você é profissional, você é mãe, você é esposa, você tem funcionários para administrar, você tem uma casa pra administrar, por mais que você tenha pessoas que te ajudem o encargo fica todo sobre a gente, né?” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].
Da mesma forma esta questão aparece no depoimento de
Marcela, magistrada estadual e mãe de dois filhos. A maternidade é também colocada como um trabalho a mais e especialmente feminino:
“Dentro da carreira em si, dentro da magistratura em si, eu nunca enfrentei nenhuma dificuldade pelo fato de ser mulher, eu acho que a condição de mulher nos traz dificuldades em relação à administração do seu tempo pessoal, que eu vejo os colegas homens, eles muitas vezes deixam toda a administração doméstica e os cuidados com os filhos exclusivamente com a esposa, e por mais que o meu marido divida comigo todas essas atribuições, muitas vezes as crianças até por um apego decorrente da gestação, da amamentação, eles querem muito mais a mãe do que o pai, a criança muitas vezes quando chora quer a mãe e tudo isso traz uma sobrecarga pessoal significativa” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. Carolina, na época recém ingressa na magistratura federal e com
apenas 29 anos, era casada e não tinha filhos, uma escolha tomada justamente pela dificuldade de articular a maternidade com a longa jornada de estudos para o ingresso no judiciário e depois por conta da alta movimentação dos recém‐ingressos:
“... quanto mais qualificada é a mulher mais difícil fica para ela ter filhos, principalmente antes dos trinta anos, mas do meu concurso só
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tem uma mulher com filhos, tem uma outra que engravidou agora o bebê nasce acho que até agora novembro, dezembro, mas a maioria acaba tendo filhos mais tarde. A dificuldade para entrar na carreira é um dos fatores, não existe, é muito complicado estudar o necessário para passar e ficar grávida ou cuidar de uma criança, isso é muito complicado. O fato de ter que mudar, ou seja, você vai, tem gente que foi para Ponta Porã, para Corumbá, para Dourados, para Jales e a família não. Então isso é uma outra dificuldade, mas não é um fator impeditivo, no máximo o projeto fica um pouco adiado” [Entrevista com Carolina, magistrada federal].
Para Mariana, que é divorciada, a maternidade aparece como
uma escolha delicada. Escolheu não ter filhos e pesando diversos fatores concluiu ter tomado a melhor decisão.
Nos estudos que relacionam trabalho e gênero no Brasil e internacionalmente, a relação entre o papel social da mulher sobre os cuidados da família e a consequente pressão no ambiente de trabalho são postos em análise. Hochschild (apud Bonelli, 2004) mostra como as mulheres sofrem não uma dupla jornada de trabalho na casa e no trabalho, mas tripla. A primeira jornada de trabalho seria aquela realizada no escritório em que deve haver uma dedicação máxima para a realização de um serviço bem feito, a segunda seria feita em casa onde se deve demonstrar ser uma boa mãe, esposa e dona‐de‐casa enquanto a terceira e última jornada de trabalho se compõe pelo trabalho emocional que conecta subjetivamente as duas primeiras e constrói um sentimento de satisfação.
“O trabalho das emoções feito principalmente pela mulher para lidar com a dupla jornada de trabalho, e o custo emocional que ele representa tanto na negação do problema quanto nas separações conjugais que causam, tornam‐se uma terceira jornada de trabalho na vida cotidiana” (Bonelli, 2004, p. 362).
O controle da vida pessoal pelas magistradas se intercala com
estas questões indo até a necessidade de uma vida menos movimentada. Isso se relaciona tanto com a necessidade da própria
206
carreira que as coloca no patamar de figuras públicas10 como pelos compromissos da maternidade.
“Quando meu filho dorme é onze horas da noite e eu tô morta e eu quero dormir (risos) e aqui no fórum não dá tempo de nada a gente realmente é uma constante, a gente observa que a maioria dos juízes não tem, não conseguem ter uma vida social muito intensa e é assim comigo também” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].
O profissionalismo como um discurso, no sentido de Evetts, serve
para analisar como condutas e corpos são moldados nas instituições. Isso se inicia desde os bancos escolares, se aprofunda nos processos de seleção que separam os adequados daqueles que não o são, vai até o cotidiano do trabalho com as demandas sobre posturas sóbrias, atitude reservada e vestimentas formais. As origens do judiciário como homogeneamente branco, masculino e de elite repercute até os dias atuais com uma presença feminina de origens privilegiadas – como é o caso das entrevistadas – e as roupas que excluem qualquer possibilidade de sensualidade desloca seus corpos para o âmbito masculino.
Como operadoras do direito são sujeitos ativos e as vestimentas sóbrias que encobrem os corpos a partir do corte “correto” das saias e dos decotes conservadores e dos tecidos sem transparências e largos o suficiente para não marcarem os corpos realizam esse deslizamento entre o passivo e o ativo. Como Butler coloca, o gênero existe em sua corporalidade pela performance, sendo possível se observar nos corpos como as negociações da presença feminina nas carreiras jurídicas ocorrem.
Além dessas questões ainda existem processos de essencialização positiva de características naturalizadas como femininas como é possível ver nos seguintes depoimentos:
“...acho que nessa carreira não tem diferença entre homem ou a mulher. Tem que ter esse perfil de isolamento, de gostar de leitura, e ficar sozinho, muito tempo de concentração lendo, não sei se isso é
10 O discurso é de que ao fazerem parte do judiciário tornam‐se algo como modelos de conduta tanto pelo respeito à instituição da qual fazem parte como pela posição que ocupam de julgar sobre a lei.
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uma característica que predomina em mulheres, talvez outras características não existam tanto em mulher... essa coisa da agressividade policial de investigar, mas é mais fácil encontrar indivíduos que tenham esse perfil, homens, mas aqui não sei se mais mulheres gostam disso, eu acho que tanto faz se é homem ou mulher não dá diferença nenhuma” [Entrevista com Mariana, magistrada].
“Na verdade a gente ouve muito elogio até, falando que as mulheres que são da magistratura, elas são mais humanas, elas são mais cuidadosas, são bem mais cautelosas, mais decididas, a gente sempre ouve isso, pelo menos eu sempre ouço isso como um elogio e nunca senti preconceito e assim nunca eu acho que às vezes o preconceito a gente que cria do outro para com você né? Eu acho que tem muito disso, uma coisa que eu não fico puxando “Ah, então é porque eu sou mulher, por isso que o senhor não gostou da minha sentença?” Entendeu? Sabe, não tinha isso na cabeça, então eu nunca senti diferença. Eu acho... que a gente também não é homem, mas eu sempre recebi assim, muitos elogios, dos advogados e, hoje o universo tá muito feminino e então é, bastante comum ter uma juíza, duas advogadas e às vezes duas mulheres como parte, então hoje tá muito comum isso já” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual]. “Eu acredito que a sensibilidade feminina realmente a diferencia do trabalho, eu vejo que os homens na carreira jurídica eles entendem, tomam decisões e atuam de uma forma muito mais fria e prática do que a mulher, resolvendo aquele problema que se propõe naquele momento, isso a maioria, enquanto que a mulher muitas vezes procura ver o que tem por trás, principalmente nas questões de família” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual].
Para finalizar, outra fala que se repete é sobre a não existência de
qualquer tipo de preconceito dentro das instituições, a partir do argumento de ser uma instituição intelectualizada que demanda de seus membros o nível universitário. Sobre isso a seguinte fala é um exemplo:
“... acho muito proveitosa que seja objeto de estudo todo esse desenvolvimento da mulher na carreira [no caso as carreiras jurídicas] porque, embora eu acredite que, que nem eu disse, que não é objeto de preconceito o trabalho da mulher na carreira jurídica, eu acredito
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também que isso não exista na maior parte das outras áreas, a mulher ainda hoje é vítima de muito preconceito na sociedade (...) tudo isso demonstra o quanto nossa sociedade ainda precisa se desenvolver muito, para oferecer a mulher a dignidade que merece na sociedade” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. Deve se levar em consideração como a participação das
mulheres nas carreiras jurídicas é sutilmente negociada no cotidiano do fórum de justiça e na vida pessoal e profissional dos membros destas carreiras. A palavra sutil é aqui utilizada, pois remete ao fato de as percepções de gênero, da participação feminina, da existência ou não de preconceitos e mesmo na definição do que significa ser um bom ou uma boa profissional estão profundamente entrelaçadas com ideias naturalizadas sobre quem são os homens e quem são as mulheres, o que fazem, como sentem e como trabalham.
A presença feminina pode ser tanto vista como um ganho para o mundo jurídico a partir de uma essencialização positiva de características femininas dadas como naturais como também pode ser apagada a partir dos trajes escolhidos que escondem qualquer sinal de passividade, fragilidade ou sexo, que se encontram culturalmente imbricados ao feminino. O discurso do profissionalismo permeia estas negociações construindo e negociando, constantemente, performances de gênero e construindo subjetividades que remetem ao sucesso e que, por conta de uma origem exclusivamente masculina, acabam por serem constituídas a partir de características também tipicamente colocadas como masculinas, como a força e a capacidade de decisão.
“Então você ser uma boa juíza sem deixar de ser mulher, porque a questão é essa, vamos dizer, não confundir os papeis, porque na verdade um papel é um papel profissional com o outro lado seu pessoal, e há quem confunda ou que exagere muitas vezes. Então tradicionalmente talvez uma vocação mais masculina. Acho que assim, nesse sentido sim, porque justamente o homem que está mais acostumado a tomar certas decisões que causam impacto, ou que ele mesmo decide do modo dele, enfim, então essa dificuldade ela existe, não vou dizer que não exista, mas você se acostuma a lidar com isso, você se acostuma a decidir, a ter que tomar decisão, muitas vezes que
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contraria interesses. Então você sabe que não dá para agradar todo mundo, então é uma questão também de costume, de experiência” [Entrevista com Ana Alice, magistrada federal].
Em seu trabalho sobre as mulheres nos esportes equestres,
Miriam Adelman (2011) se depara com uma situação semelhante em que mulheres passam a integrar esportes de origens exclusivamente masculinas, nos quais o sucesso se baseia em características como a força e o vigor físico. Como coloca no texto, a partir da revisão bibliográfica sobre o tema e sua articulação com o objeto de pesquisa, “a atividade esportiva feminina era inicialmente terreno para a expressão de sujeitos femininos rebeldes e desobedientes” (Adelman, p. 936), demonstrando o impacto da chegada de sujeitos vistos culturalmente como frágeis, delicados em um mundo onde a força e mesmo a agressividade são dados como necessários.
Utilizando‐se do conceito de Sedgwick (apud Adelman, 2011) de homossociabilidade, a autora coloca como as identidades são negociadas em contextos de sociabilidade masculina. Intercalado a esses espaços de sociabilidade vêm a tona noções arraigadas de feminilidade relacionadas ao frágil e aos cuidados do lar que afastam as mulheres destes espaços, vistos como incompatíveis com suas naturezas. A sociabilidade nestes esportes é permeada por formas de interação masculinas em que existe certa dificuldade e uma constante necessidade de prova das mulheres que pretendem fazer parte deste circuito.
No caso das mulheres nas carreiras jurídicas públicas o impacto de sua presença no direito já parece ter passado deste estágio inicial, que é possível ser analisado como tendo ocorrido ainda no século XX. Porém, atualmente, ainda é possível perceber como a presença feminina é ainda motivo de conflitos e necessita ser interpretada e negociada pelos membros das instituições, tanto homens como mulheres. Além das manifestações discursivas é possível perceber como os trajes funcionam como uma ferramenta subjetiva assim como também a essencialização positiva que busca adequar as mulheres ao que se compõe como uma atuação profissional de excelência.
210
5. Considerações finais As abordagens teórico‐metodológicas escolhidas pelas
pesquisadoras para a análise dos dois contextos – o argentino e o brasileiro – são entre si distintas mas é possível ainda assim perceber aproximações entre os dois trabalhos. Nos dois casos a questão da maternidade e dos cuidados da família aparece como um dado de grande relevância sobre a participação da mulher nas carreiras jurídicas. Culturalmente associadas aos cuidados domésticos, como profissionais no direito acabam por acumular o trabalho profissional com aquele realizado em casa. Tanto no caso do Brasil como no da Argentina, as carreiras públicas aparecem como uma escolha empregatícia mais adequada àquelas que buscam constituir família por se estabelecer em horários determinados e pela possibilidade de licenças.
No caso da segregação horizontal, observou‐se em Córdoba que, até cerca de vinte anos atrás, determinados espaços de trabalho estavam restringidos e outros eram criados para as mulheres, por decisões provenientes da própria instituição do poder judiciário. Atualmente, se registra maior participação das mulheres em matérias que eram tradicionalmente masculinas, ainda que subsista marcada segregação horizontal entre os âmbitos de civil e comercial, por um lado, e penal por outro. Embora possam aceder aos espaços vinculados à administração de penas, ainda se evidenciam alguns obstáculos que incidem no desempenho das mulheres nestes espaços. Já no trabalho de Benedito no Brasil esta questão não aparece com grande visibilidade principalmente por conta do foco escolhido para as entrevistas com magistradas da justiça federal e da justiça estadual. Talvez se houvesse uma pesquisa no caso da advocacia a situação poderia ter sido diferente.
No caso da segregação vertical, o trabalho de Benedito demonstra uma inequidade bastante dramática no número de homens e mulheres nos níveis mais altos das magistraturas em foco, que, em sua pesquisa, é explicada pelo insulamento institucional dessas carreiras que acabaram por construir um perfil homogêneo de membros que ainda hoje se faz presente – apesar de estar se transformando. A segregação vertical por gênero se apresenta em todos os foros
211
analisados na Argentina. A implementação de sistemas meritocráticos pode ter efeito positivo para a redução das desigualdades de gênero, porém tais sistemas são mais exigentes com as mulheres, inseridas numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças de gênero se estanquem no interior de uma profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior.
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Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento por júri
María Inés Bergoglio1
1. Introdução
Como destacou Tocqueville, os países que têm chamado os cidadãos comuns para compartilhar as responsabilidades judiciais, se caracterizam pelo alto reconhecimento popular da magistratura. Resta‐nos perguntar, entretanto, até onde estes efeitos são registrados nas nações que, em contextos marcados pela insatisfação com o trabalho judicial, têm incorporado recentemente a participação leiga na justiça.
Este artigo explora as relações entre a participação leiga na administração da justiça e legitimidade judicial em Córdoba, na Argentina, onde os tribunais mistos têm sido implantados desde 2005 para o julgamento de alguns crimes aberrantes. Para isso são empregadas diversas fontes empíricas, dentre as quais se destacam os dados de pesquisa da população geral obtidos em Córdoba em 1993 e 2011.
Embora já exista evidências de que aqueles que têm atuado como jurados melhoram suas opiniões sobre o funcionamento da justiça, por enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito fracos ainda.
Nos últimos anos, diversos países ‐ Japão, Coreia, Espanha, Croácia, Rússia, Argentina ‐ têm introduzido a participação de leigos em seus sistemas judiciais, muitas vezes no contexto de reformas orientadas para aprofundar os processos de democratização. É necessário interrogarmo‐nos sobre as consequências destas inovações institucionais, já que a presença dos cidadãos comuns entre aqueles que
1 Faculdade de Direito, Universidade Nacional de Córdoba. Agradecimentos ao apoio para este projeto outorgados pela Secretaria de Ciência e Técnica ‐ Universidade Nacional de Córdoba
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tomam decisões legais significativas pode afetar o sistema legal como um todo.
A contribuição dos sistemas de júri à consolidação das formas democráticas de governo tem sido extensamente discutida2. Em primeiro lugar, foi salientado que constitui uma forma de participação cívica. O júri provê uma oportunidade institucionalizada para que os cidadãos se reúnam, deliberem e tomem decisões legalmente significativas. Transfere abertamente poder aos cidadãos e destaca o lugar que ocupam no Estado.
Aqueles que promovem a participação dos cidadãos comuns nos procedimentos penais destacam também que a instituição cumpre uma função global de controle. A presença dos leigos nos tribunais penais contribui para garantir que os veredictos sejam consistentes com as ideias de moralidade e justiça vigentes na comunidade, e promove a equidade dos procedimentos (Machura, 2003). Lempert (2007) destaca que, de todo modo, há uma melhora na transparência das ações dos juízes.
De fato, várias iniciativas recentes para instaurar o julgamento por júri são registradas em contextos marcados pela desconfiança na justiça. Assim, Klijn & Croes (2007) informam sobre uma iniciativa para incorporar a participação cidadã nas decisões cidadãs, que surgiu na Holanda em meio a um clima de descontentamento popular pela excessiva clemência dos juízes. Enquanto isso, Fukurai e Krooth (2010) relatam uma proposta para instaurar o júri popular no México, inserida num conjunto de medidas para reformular a administração da justiça, considerada vulnerável à corrupção relacionada ao tráfico de drogas. A experiência de tribunais mistos em Córdoba, Argentina, começou também num contexto de insatisfação com o trabalho judicial3. Estas iniciativas têm em comum o fato de que a participação dos leigos é concebida como uma forma de controlar o poder dos juízes, no contexto de uma situação caracterizada pela insatisfação com o trabalho judicial ou a falta de confiança na justiça. 2 Para uma revisão detalhada dos efeitos esperados do julgamento por júri, ver (Hans 2008; Voigt 2008).
3 Na sessão 5 se explica com maiores detalhes a introdução do julgamento por júri em Córdoba, Argentina.
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Tem‐se sustentado, ainda, que esta instituição contribui para a legitimação do poder judicial. Tocqueville já havia observado o impacto positivo que a interação entre os juízes e cidadãos comuns tem sobre o prestígio dos juízes: ʺO júri, que parece diminuir os direitos da magistratura, funda, na verdade, o seu próprio império, e não há países onde os juízes sejam tão poderosos quanto naqueles onde o povo participa da distribuição de privilégiosʺ (2001; e.o. 1840, p. 138). A partir de pesquisa sócio‐jurídica, Machura (2003) e Marder (2005) revelaram os efeitos positivos da participação cidadã na administração da justiça sobre a confiança nos juízes. Voigt (2008) relata correlações positivas entre a confiança no sistema legal e a incorporação da participação dos leigos.
Na teorização contemporânea sobre a democracia, se destaca a contribuição da deliberação pública para a construção da legitimidade de ordem política. Os pesquisadores que trabalham com este marco de referência têm destacado que a sala do júri se parece com a situação da fala ideal habermasiana, pois oferece um espaço para o debate racional entre iguais, governado pela força do melhor argumento (Iontcheva, 2003; Gastil & Weiser, 2006).
Resta‐nos questionar, entretanto, até que ponto a introdução dos tribunais por júri seria eficaz no sentido de melhorar a legitimidade da administração da justiça. Trata‐se de uma questão para a qual é difícil obter evidência empírica, já que requer comparações internacionais4 ou estudos de séries históricas. A questão é particularmente interessante desde uma perspectiva latino‐americana, uma vez que na região os baixos níveis de confiança na justiça são crônicos.
Com o objetivo de fornecer alguns elementos para o avanço da discussão desta questão, o trabalho revisa a evolução da confiança na justiça em Córdoba, Argentina, onde foi introduzida a participação dos leigos no campo penal em 2005. Através de dados de pesquisas de opinião pública, analisamos as mudanças nas atitudes em relação aos juízes e júris, na população em geral, entre 1993 e 2011.
4 Ver por exemplo a tentativa de Voigt (2009) de comparar mais de 80 países, classificados segundo o tipo de participação leiga que implementa.
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2. Legitimidade e confiança na justiça: questões teóricas O trabalho de Weber continua sendo o mais influente na análise
contemporânea sobre a legitimidade. A partir de sua perspectiva, a legitimidade é entendida como a qualidade de uma autoridade ou instituição que leva as pessoas a se sentirem obrigadas a seguir suas regras ou decisões. Todos os poderes desejam, por isso, alimentar a crença em sua legitimidade, e só é possível analisar essa legitimidade a partir de uma abordagem relacional.
Sua tipologia sobre as formas de dominação legítima tem sido utilizada por décadas na investigação sociojurídica. Recentemente, têm‐se observado que a utilidade dessa classificação tende a se reduzir no mundo contemporâneo, enquanto que a grande maioria dos regimes legítimos corresponde ao tipo racional‐legal (Dogan, 2010). Esta crítica parece menos justificada a partir da perspectiva latino‐americana, uma vez que na região o enfraquecimento dos partidos tradicionais acompanha a crescente personalização da política. (Cheresky, 2010).
Rosanvallon (2009) apontou também que, nas sociedades contemporâneas, onde a expressão eleitoral perde sua centralidade, surgem novas formas de aproximação da ideia de interesse público, o que dá origem a novas formas de legitimação, que entendem por legitimidade a imparcialidade, a reflexividade e a proximidade. Ao contrário da legitimidade tradicional de estabelecimento, obtida pelos governos democráticos através do mecanismo eleitoral, esses modos de legitimação apontam para as qualidades da relação entre os que exercem o poder e os cidadãos. Essas qualidades nunca são definitivas, por isso as autoridades necessitam se relegitimar continuamente.
A perspectiva relacional é hoje o principal legado weberiano presente neste campo de pesquisa. Como destaca Lembcke (2008), tal perspectiva está presente entre os que adotam um enfoque top‐down e se concentram em descrever os esforços dos poderosos ou das instituições para que suas pretensões de legitimidade sejam aceitas. O enfoque relacional também se encontra entre os que definem a legitimidade como a crença na correção de tais pretensões por parte daqueles que estão sujeitos a um sistema de dominação. Neste caso, o foco não se
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dirige tanto para os esforços do poder para validar sua dominação, mas para os motivos de concordância com as demandas de poder.
Esta segunda abordagem, do tipo bottom‐up, é adotada neste trabalho, que analisa a legitimidade a partir das convicções subjetivas dos cidadãos. A partir desta perspectiva, é possível fazer afirmações, empiricamente fundamentadas, sobre a extensão da aprovação que recebe um sistema de dominação, ou descrever dinamicamente sua evolução.
Na análise empírica da legitimidade dos tribunais se utiliza frequentemente a noção de apoio difuso, inicialmente desenvolvida por Easton (1965). O apoio específico se refere ao consentimento a uma decisão em particular. Mas a autoridade seria frágil se tivesse que depender inteiramente de tais acordos, já que a tomada de decisões ‐ especialmente nos tribunais ‐ sempre favorece alguns e prejudica outros. A autoridade sobrevive graças a um ambiente de apoio geral, que não está relacionado a uma medida específica, mas que é difuso, e que lhe permite decidir à discrição.
O apoio difuso pode ser entendido como um reservatório de boa vontade, e implica que as pessoas têm confiança na capacidade de certas instituições de fazer políticas desejáveis em longo prazo. Supõe certa lealdade à autoridade, e implica que o fracasso ao realizar políticas desejáveis a curto prazo não prejudica o compromisso básico das pessoas com a instituição. Esta noção de apoio difuso tem sido utilizada para estudar empiricamente a legitimidade judicial (JL Gibson, Caldeira e Spence, 2005; J. Gibson, 2007) entendida como a confiança no sistema judicial, e é empregada da mesma forma nesta investigação. 3. A confiança na justiça: questões metodológicas
Na América Latina, a pesquisa empírica sobre a legitimidade
institucional tem utilizado dados de pesquisas de opinião provenientes de duas fontes de dados comparativos em nível regional ‐ Gallup e Latinobarómetro ‐ que utilizam as clássicas perguntas sobre o grau de
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confiança em diferentes instituições5. A principal utilidade destas medidas é a possibilidade de realizar análises comparativas entre diversos países, assim como de seguir a evolução no tempo dos níveis de legitimidade. Ao que se refere à Argentina, Turner & Carballo (2010) publicaram dados sobre a confiança na justiça para várias datas, começando por 1984. Por outro lado, a série Latinobarómetro oferece medições anuais desde 1995.
Tem‐se destacado, entretanto, que uma medida adequada da legitimidade deve incluir tanto itens atitudinais ‐ como a confiança nas instituições ‐ como itens condutuais6, que permitam observar o grau de obediência à autoridade, ou a disposição para cumprir com seus mandatos. A crítica é digna de consideração, especialmente em uma região onde a baixa legitimidade das instituições judiciais não impediu a crescente judicialização da política (Sieder, Schjolden e Angell, 2005). A observação é particularmente importante em um país como a Argentina, onde são registrados, ao mesmo tempo, baixos níveis de legitimidade das instituições judiciais e consideráveis taxas de litigiosidade.
Em nosso país, o índice de confiança na justiça elaborado pela equipe da Universidade Di Tella considera tanto os indicadores condutuais como atitudinais. Entre os primeiros se incluem os itens relacionados à disposição para recorrer à justiça em conflitos patrimoniais, de trabalho e familiares; entre os segundos se encontram as questões de opinião sobre a imparcialidade, eficiência e integridade da justiça. A série, iniciada em 2004, mostra sistematicamente valores mais elevados nos itens condutuais do que nos atitudinais 7.
Neste projeto foram utilizadas duas medidas diferentes de confiança na justiça, ambas destinadas a detectar as atitudes em direção aos magistrados. A primeira delas está centrada na figura pessoal do
5 A formulação da questão é a seguinte: Por favor, diga, para cada um dos grupos, instituições ou pessoas mencionadas na lista, quanta confiança você tem neles: muita (1), alguma (2), pouca (3) ou nenhuma (4) confiança em...? O Congresso Nacional, o Poder Judiciário, os partidos políticos, as Forças Armadas, a Igreja, os Meios de comunicação, etc.
6 Para mais detalhes sobre tal classificação de indicadores ver Power e Cyr (2010). 7 Ver em http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=521&id_item_menu =1601 maiores detalhes sobre a construção deste índice e os resultados alcançados.
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juiz, e é resultado da resposta mais simples para o público em geral (Você acha que o juiz inspira muita, bastante ou pouca confiança e sensação de proteção). A segunda utiliza a medida tradicional de confiança nas instituições, usada na pesquisa comparativa internacional, mencionada acima.
Foram utilizados os dados de duas pesquisas de opinião pública, realizadas na cidade de Córdoba por esta equipe de pesquisa. A primeira delas incluiu 400 casos, e ocorreu muito antes da introdução da participação dos leigos, em 1993. Nesta foi medida a confiança na figura do juiz como pessoa, e foram obtidas opiniões com relação a temas como a independência, a imparcialidade, a eficiência e a honestidade da justiça.
O segundo estudo foi realizado em 2011, quando os tribunais mistos já funcionavam há seis anos, e foram realizadas 434 entrevistas. Além da confiança na figura pessoal do juiz foi medida a confiança no poder judiciário. Isso permitiu observar que a correlação (R de Pearson) entre ambas as medidas é de 0,443, com um nível de significância de 0,000. As opiniões relativas à avaliação da justiça foram recolhidas da mesma forma que no projeto anterior.
Também foram utilizadas as bases de dados do Latinobarômetro para o período de 1995‐2010 para a descrição da situação argentina dentro do contexto regional. 4. A confiança na justiça na Argentina
Na Argentina, as pesquisas de opinião revelam níveis
relativamente baixos de confiança nas instituições, entre elas, no poder judiciário. Os dados do Latinobarômetro indicam que somente um em cada três cidadãos (34,5%) declarou ter muita ou alguma confiança nos tribunais em 2010. A informação comparativa permite contextualizar esta cifra.
Como pode ser visto na Tabela 1, na União Europeia os dados recolhidos pelo Eurobarômetro indicam um valor de 47% para a mesma data. Além da homogeneidade das médias, as diferenças entre os países europeus são destacadas. Na área germano‐escandinava a proporção de cidadãos que confiam no Judiciário está acima de 60%. No Reino Unido,
222
a confiança nos tribunais também é maioritária, enquanto que os valores diminuem nos países que recentemente aderiram à democracia, como a Espanha, ou se caracterizam pela frequência de crises políticas, como a Itália. As recentes democracias da Croácia ou da Letônia registraram valores semelhantes aos argentinos.
Esta conexão entre a solidez da democracia e a confiança na justiça é igualmente visível quando observamos os dados norte‐americanos8. Enquanto no espaço europeu quase metade dos cidadãos confia na justiça, na América Latina a proporção regional atinge 32%. Na região, os países com maior tradição democrática, como o Uruguai ou a Costa Rica, ultrapassam claramente a média regional. Também é importante notar que o Brasil ‐ o país latino‐americano com a mais longa tradição de júri, cuja participação dos leigos na administração da justiça funciona desde 1822 (Amietta, 2010) ‐ registra níveis de confiança na justiça significativamente maiores que a média da área.
A capacidade das instituições para responder às demandas socioeconômicas dos cidadãos também influencia os níveis de legitimidade institucional. Como mostram os estudos comparativos de Gilley (2006) e Power e Cyr (2010), não é de se estranhar que os países latino‐americanos com maiores níveis de desenvolvimento humano contem instituições de maior respaldo social.
Esses dados permitem observar que a confiança no poder judiciário registrada na Argentina apresenta valores próximos à média regional. É um pouco maior do que encontramos em países com significativas desigualdades étnicas, como Peru, Bolívia e México, cujo sistema judicial formal concorre com práticas judiciais dos povos originários, o que acaba por enfraquecer ainda mais a confiança nas instituições do Estado. (Power e Cyr, 2010).
Esta revisão da informação disponível sobre os níveis de legitimidade institucional, em nível regional, indica que vários fatores influenciam a confiança na justiça, tais como: a tradição democrática, a capacidade das instituições de responder às demandas socioeconômicas dos cidadãos ou as desigualdades étnicas. 8 Para uma discussão detalhada, empiricamente fundamentada, da relação entre a experiência democrática e os níveis de legitimidade na América Latina, ver Power e Cyr (2010).
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Tabela 1 ‐ Confiança no Poder Judiciário, 2010.
América Latina Muita/alguma confiança
Pouca/nenhuma confiança
Não sabe /não respondeu
Uruguay 58,1% 38,5% 3,4% Brasil 51,1% 45,4% 3,6% Costa Rica 46% 49,9% 4,1% Venezuela 37,8% 58,1% 4,1% Chile 36,9% 61,5% 1,6% Argentina 34,5% 63,6% 2% Colômbia 34% 59,4% 6,6% Panamá 33,6% 61,3% 5,1% México 27,5% 67,7% 4,8% Paraguai 27% 69,8% 3,3% Bolivia 23,5% 68,3% 8,2% Peru 14,7% 82,7% 2,6% Média 32,4% 63,2% 4,3%
Europa Muita/alguma confiança
Pouca/nenhuma confiança
Não sabe /não respondeu
Dinamarca 84% 14% 2% Suécia 73% 25% 2% Áustria 71% 26% 3% Alemanha 60% 34% 6% Reino Unido 50% 45% 5% França 45% 50% 5% Espanha 44% 51% 5% Itália 42% 52% 6% Letônia 36% 54% 10% Croácia 20% 76% 4% União Européia 47% 48% 5% Fonte: Para América Latina, Latinobarômetro (www.latinobarometro.org). Para Europa, Eurobarômetro (http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm). Dados processados para este projeto.
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Tabela 2 ‐ Confiança no Poder Judiciário – Argentina, 1995 ‐2010. Ano N Muita/alguma
confiança Pouca/nenhuma confiança
Não sabe/ não respondeu
1995 1200 (100%) 33,6% 62,1% 4,4% 1996 1199 (100%) 23,1% 72,4% 4,5% 1997 1196 (100%) 20,5% 75,1% 4,2% 1998 1264 (100%) 19,6% 78,5% 1,9% 2000 1200 (100%) 27,5% 68% 4,5% 2001 1200 (100%) 20,5% 77% 2,5% 2002 1200 (100%) 8,6% 90,4% 0,9% 2003 1200 (100%) 16,2% 81,2% 2,6% 2004 1200 (100%) 26,2% 72,4% 1,4% 2005 1200 (100%) 26,1% 71,7% 2,3% 2006 1200 (100%) 31,9% 66,9% 1,3% 2007 1200 (100%) 22,7% 74,5% 2,8% 2008 1200 (100%) 24,6% 74,1% 1,3% 2009 1200 (100%) 24,5% 73,3% 2,1% 2010 1200 (100%) 34,5% 63,6% 2% Fonte: Latinobarômetro, (www.latinobarometro.org). Dados processados para este projeto.
A análise dos dados históricos sobre a legitimidade da justiça na
Argentina mostra variações consideráveis desde a restauração da democracia. Analisando a evolução da confiança nas instituições no período de 1984‐2006, Turner e Carballo (2010) destacaram a deterioração da legitimidade tanto do poder legislativo como do judiciário, ocorrida desde o retorno da democracia. Usando dados do Gallup, demonstraram que em 2006 os níveis de confiança na justiça chegaram a 20%, praticamente um terço dos níveis registrados em 1984, momento que se segue à recuperação da democracia (58%). Tal análise vincula a queda nos níveis de legitimidade à baixa capacidade das instituições em atender as expectativas econômicas dos cidadãos, e salienta que a perda de confiança nas instituições não se limita ao poder judiciário, mas se estende a outros poderes do Estado.
A série de dados do Latinobarômetro, iniciada em 1995, permite acompanhar a recente evolução dos níveis de legitimidade na justiça.
225
Além das oscilações anuais, nota‐se que a crise do corralito e do “que se vayan todos” colocou a legitimidade da justiça em seu mínimo histórico. Naquele momento, menos de um em cada dez argentinos confiava nos juízes. A posterior recuperação, provavelmente vinculada às mudanças no mecanismo de nomeação dos juízes do Supremo Tribunal assim como nos esforços para melhorar a difusão da atividade judicial9, foi relativamente rápida, colocando os níveis de confiança em números semelhantes aos de 1995: em 2010 cerca de um terço dos argentinos confiava na justiça.
O exposto até então é suficiente para indicar que, como pode ser previsto a partir de uma abordagem relacional de legitimidade, a confiança na justiça é uma variável complexa, sujeita a diversas influências. Por isso, a revisão de sua relação com a participação dos leigos na administração da justiça, que será realizada a seguir, tem caráter tão somente exploratório. 5. A experiência cordobesa de tribunais mistos
Ainda que sua implementação seja recente, a instituição do júri tem
na Argentina profundas raízes históricas. Entendida como garantia contra o abuso do poder do Estado, é encontrada em projetos elaborados em 1813, assim como nas Constituições de 1819 e 182610. A Constituição Nacional de 1853 a prescreve, em seus artigos 24, 64 inc. 11 e 9911. A longa presença dos projetos de julgamento por júri é um bom indicador da profunda aspiração democrática dos argentinos, assim como de sua ampla tolerância à brecha entre o texto da lei e as práticas sociais. Atualmente, os julgamentos por júri vigoram somente na província de Córdoba. 9 Para uma descrição dos esforços realizados para restaurar a legitimidade do Tribunal após a crise, ver Ruibal (2010). O lançamento do canal jurídico de CIJ TV, canal de notícias de transmissão ao vivo pela Internet de todo o Poder Judicial, feito pela Suprema Corte de Justiça, em agosto de 2011, foi um marco significativo dessas estratégias.
10 Para uma revisão histórica da presença dos julgamentos por júri na normativa argentina, ver Cavallero e Hendler (1988) e Jorge (2004).
11 Estas prescrições se mantiveram após a reforma de 1994, ainda que a numeração dos artigos agora seja 24, 75 inc. 12 e 118.
226
Nesta província, a participação dos cidadãos nos processos penais foi ordenada pela Constituição de 198712. Foi colocada em prática pela primeira vez em 1998, sob a forma de um tribunal misto, composto por três juízes profissionais e dois cidadãos comuns ‐ escabino ‐, chamado a intervir em crimes graves, quando o advogado, promotor ou a vítima assim o solicitam. A participação cidadã alcançada foi bastante limitada: apenas trinta e três casos foram decididos por meio da intervenção leiga entre 1998 e 2004 (Vilanova, 2004). Desde 2004, a província de Córdoba ampliou a participação cidadã nas decisões penais mediante a lei 9.182. A lei foi aprovada no contexto de um debate nacional sobre as medidas para combater a insegurança, impulsionado por Juan Carlos Blumberg13. Assessorado pelo Manhattan Institute, de Nova York14, Blumberg reclamava o endurecimento penal e a reforma judicial como meios para melhorar a segurança urbana, assim como a inclusão do julgamento por júri segundo o clássico modelo anglo‐saxão.
A concorrência multitudinária das marchas de Blumberg levou à sanção da lei provincial 9.182, que ampliava a experiência de participação popular nos tribunais criminais. A lei criou um tribunal misto, com maioria leiga, composto por oito cidadãos comuns e três juízes profissionais, que decide por maioria simples em casos de crimes hediondos e de corrupção.
Durante o debate parlamentar ficou evidente que esta iniciativa também havia sido impulsionada pelo interesse em recuperar a confiança na Justiça. O membro que representava a maioria expressou o principal objetivo da lei nos seguintes termos:
“... o povo argentino pediu justiça porque sentiu que não tinha; o povo argentino pediu segurança, porque não tinha; o povo argentino pediu para acreditar em suas instituições porque já não acreditava. Então,
12 Constituição da província de Córdoba, Artigo 162. La ley puede determinar los casos en que los Tribunales colegiados son también integrados por jurados.
13 Para uma análise mais detalhada do discurso deste movimento social consultar Pegoraro (2004) e Tufró (2007).
14 Blumberg. Se Reunió con Policías en Nueva York, La Nación, Jun. 6, 2004. Disponível em: http://buscador.lanacion.com.ar/Nota.asp?nota_id=607975&high=Manhattan%20Institute.
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nós, os legisladores de Córdoba, devemos responder ao apelo popular e criar as instituições que nos permitam repor um pacto social que estava perdido, para criar uma ponte entre o povo e seus líderes, para gerar aquela crença que se perdeu no tempo. Temos de reconstruir o contrato social. Para isso, são necessários os julgamentos por júri, pois esse é um instrumento que nos leva ao objetivo já mencionadoʺ (texto do debate transcrito em Ferrer e Grundy, 2005, p.101).
O objetivo de relegitimar o poder judiciário por esta via também
era compartilhado naquele momento por outros atores sociais. Assim, o presidente da Associação de Magistrados, Víctor Vélez, convocado à Legislatura para discutir a iniciativa, expressou [em relação à ampliação do número de júris]: “é uma porta que se abre, por onde entra um saudável sentimento de equidade natural, e por onde sai uma boa ideia sobre o funcionamento da justiça”15.
As principais resistências à iniciativa procederam da profissão jurídica. O temor de que, num contexto dominado pelo medo diante do delito, a participação dos leigos levasse a um endurecimento das penas, estimulou a oposição dos advogados. O forte apoio oferecido pelo Tribunal Superior de Justiça contribuiu para a aceitação do novo sistema, que após sete anos de aplicação contínua, pode ser considerado em vias de consolidação16.
Em particular, a sua aceitação por aqueles que tiveram a oportunidade de participar como jurados é alta, como mostram as pesquisas realizadas pela própria Administração da Justiça, em 2006 e 2010. Esses estudos também mostraram um aumento significativo da boa imagem da justiça penal após a experiência participativa17.
É importante observar, entretanto, que a limitada competência atribuída aos tribunais mistos cordobeses é representada pelo registro
15 Publicado em La Voz del Interior, 7/08/2004. Acesso em: http://buscador.lavoz.com.ar/ 16 Para uma análise detalhada do processo de aceitação desta inovação institucional, ver Bergoglio (2010).
17 Andruet, Ferrer e Croccia (2007) relatam que o percentual dos que tinham uma imagem boa ou muito boa da justiça penal passou de 44% para 98% após a experiência participativa. A repetição da mesma pesquisa em 2010 mostrou que a proporção aumentou de 52,3% para 97,7%. (Ver este último relatório em http://www.justiciacordoba.gob.ar/justiciacordoba/indexDetalle.aspx?id = 110).
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de apenas 150 processos no período de 2005‐2010. Durante esses seis anos, apenas mil e duzentas pessoas comuns tiveram oportunidade de participar das decisões penais. Por enquanto, estes dados sugerem que os efeitos da participação leiga sobre a confiança que os cidadãos comuns depositam nas instituições judiciais podem ser ainda muito débeis.
6. A confiança na justiça em Córdoba
Os dados disponíveis para este projeto permitem comparar a
evolução da confiança na justiça entre 1993 e 2011, assim como permitem analisar algumas das dimensões dessas mudanças. Tal como se observa na tabela abaixo, a confiança na justiça tem experimentado uma leve melhora nestes dezoito anos. Embora o aumento dos que declaram que a figura do juiz lhes inspira muita ou bastante confiança seja modesto, as opiniões negativas têm diminuído consideravelmente. Os que mostravam ter pouca ou muito pouca confiança superavam 50%, e atualmente representam 40%. Tabela 3. Confiança na figura do juiz, 1993‐2011.
Ano O juiz inspira 1993 2011 Muita confiança 3,6% 3,7% Bastante confiança 14,5% 16,6% Confiança regular 28,7% 39,4% Pouca confiança 38,1% 23,7% Muito pouca confiança 15,2% 16,6% Total 100,0% 100,0% Relação estatisticamente significativa – Qui Quadrado = 21,663 significativo para p<.000 Fonte: Pesquisas de população geral, Córdoba capital, 1993 e 2011.
Entender estas mudanças requer também entender as modificações
experimentadas nos pontos de vista sobre os diversos aspectos da administração da justiça, que são avaliados pelos cidadãos na construção de suas opiniões. Para este projeto foi selecionado um
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conjunto de dimensões conectadas com valores democráticos centrais, tal como a independência do poder político, a imparcialidade diante dos interesses econômicos, e a igualdade de tratamento a todos os cidadãos, sem importar sua condição. Também foram incorporadas outras: como a honestidade dos magistrados (entendida coletivamente), e sua eficácia no desenvolvimento de tarefas específicas, incluindo aqui um nível de castigo penal suficiente, desde a perspectiva do cidadão comum.
Ao revisar as modificações da opinião cidadã nestes aspectos, importa considerar que a experiência direta com a administração de justiça se tornou mais frequente: a porcentagem da população que tinha contato com tribunais passou de 33% a 45% nos últimos dezoito anos. O dado fornece uma representação empírica da tendência à legalização da vida, destacada por Habermas.
É interessante observar que a percepção do cidadão sobre a independência dos tribunais com relação ao governo parece menos negativa; a diferença, relativamente baixa, alcança uma significância estatística18. O mesmo ocorre com a avaliação cidadã da honestidade dos magistrados, onde as observações críticas têm diminuído. No período transcorrido também tem melhorado a opinião sobre a eficiência dos tribunais no cumprimento de suas tarefas específicas. Estas mudanças, estatisticamente significativas, podem estar relacionadas com a maior transparência da função judicial promovida pela participação leiga no processo penal.
A Tabela 4 informa, da mesma forma, que a proporção de cidadãos que pensam que o delito recebe um nível suficiente de castigo penal tem aumentado, relação que alcança significância estatística. É interessante observar que a maior satisfação com os resultados do processo penal não procede de um endurecimento das penas, pois a análise pormenorizada das sentenças emitidas pelos tribunais mistos indica que isso não ocorreu (Bergoglio e Amietta, 2010). Este resultado sugere que a participação leiga melhora a legitimação das decisões penais, moderando as críticas em direção aos resultados dos processos (Park, 2010). 18 Deve‐se observar que a melhoria na imagem da independência judicial no período de 1993‐2011 também pode se conectar às mudanças no processo de designação dos magistrados, iniciadas em 2000 com a criação do Conselho de Magistratura.
230
Tabela 4 – Opiniões sobre a justiça, 1993 – 2011.
Ano 1993 2011
Qui‐quadrado
Muito alta 5,8% 6,2% Bastante alta 13,7% 19,9% Bastante baixa 32,0% 40,7%
Independência dos tribunais com relação ao governo
Baixa 48,5% 33,3% Total 100,0% 100,0%
18,19 significativo para p <,000
Concordo 31,9% 30,5% Imparcialidade nos julgamentos penais
Discordo 68,1% 69,5%
Total 100,0% 100,0%
0, 18 Não significativo
Concordo 20,8% 26,0% Imparcialidade nos processos econômicos
Discordo 79,2% 74,0%
Total 100,0% 100,0%
2,95 Não significativo
É dado o mesmo tratamento a todos
7,1% 8,3% Na aplicação das leis penais
Se faz diferença de acordo com quem se trata
92,9% 91,7%
Total 100,0% 100,0%
0,46 Não significativo
Sim 10,0% 15,4% Pune‐se suficientemente a delito
Não 90,0% 84,6%
Total 100,0% 100,0%
5,42 significativo para p < ,02
Muitos 23,5% 20,9% Bastante 42,5% 33,9% Poucos 28,9% 41,4%
Casos de corrupção entre os juízes
Nenhum 5,1% 3,8% Total 100,0% 100,0%
12,17 significativo para p <,007
Muito bom/bom 16,0% 27,7% Regular 62,5% 55,2%
Funcionamento dos tribunais
Mal/Muito mal 21,5% 17,1% Total 100,0% 100,0%
26,39 significativo para p <,000
Fonte: Pesquisas de opinião da população, Córdoba capital, 1993 e 2011.
231
A tabela mostra também que as opiniões sobre a capacidade dos juízes em tomar decisões independentes de pressões econômicas, tanto em matéria penal como em outros assuntos, praticamente não se alterou. Tanto em 1993 como em 2011, mais de dois terços dos entrevistados questionaram a imparcialidade dos juízes; a proporção não sofreu diferenças estatisticamente significativas no período considerado. Da mesma forma, a observação acerca do tratamento dispensado pelos juízes aos cidadãos reflete que as diferenças sociais e econômicas se mantiveram em níveis semelhantes aos de 1993. Estes dados sugerem que ainda são necessários maiores esforços no sentido de promover a realização dos ideais de igualdade perante a lei em vários aspectos do contato dos cidadãos com a administração da justiça. As mudanças no modo como os cidadãos avaliam a independência e a honestidade dos magistrados, assim como o modo que funcionam os tribunais em geral, e particularmente os penais, permite explicar a ligeira melhora na confiança na justiça experimentada em Córdoba no período de 1993‐2011. Como mostra a Tabela 5 todas estas dimensões se relacionam significativamente com a confiança na justiça. O quadro mostra, da mesma forma, que a opinião sobre a imparcialidade dos juízes e sua capacidade de proporcionar aos cidadãos igualdade de tratamento ‐ dimensões em que a avaliação cidadã é negativa para ambas as datas ‐, também estão associadas à confiança na justiça. Isso provavelmente explica o modesto aumento de confiança na justiça registrado no período considerado e sugere possíveis rumos para a futura ação orientada a melhorar a relação entre judiciáveis e juízes.
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Tabela 5 – Correlações entre a avaliação da ação judicial e a confiança na justiça. Dimensão 1993 2011
Correlação de Pearson 1 1 Sig. (bilateral) . . O juiz inspira confiança N 394 434 Correlação de Pearson ,180(**) ,128(*) Sig. (bilateral) ,000 ,010
Independência dos tribunais em relação ao governo
N 394 401 Correlação de Pearson ,246(**) ,235(**) Sig. (bilateral) ,000 ,000
Imparcialidade nos julgamentos penais
N 381 415 Correlação de Pearson ,263(**) ,299(**) Sig. (bilateral) ,000 ,000
Imparcialidade em processos econômicos
N 375 415 Correlação de Pearson ,233(**) ,192(**) Sig. (bilateral) ,000 ,000
Tratamento na aplicação das leis penais
N 391 426 Correlação de Pearson ,370(**) ,356(**) Sig. (bilateral) ,000 ,000 Funcionamento dos tribunais N 372 394 Correlação de Pearson ‐,305(**) ‐,324(**) Sig. (bilateral) ,000 ,000 Casos de corrupção entre os juízesN 309 420 Correlação de Pearson ,160(**) ,152(**) Sig. (bilateral) ,002 ,002 Pune‐se suficientemente o delito N 387 416
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). ** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral). 7. A opinião sobre o julgamento por júri
Os dados coletados também permitem analisar como o apoio ao
julgamento por júri evoluiu entre 1993 e 2011. Duas perguntas foram utilizadas para analisar a opinião diante da participação pública na
233
justiça penal, utilizando uma formulação geral e outra personalizada19. Como se pode ver na Tabela 6, em ambas as datas o apoio à intervenção dos leigos nos processos penais é claramente maioritária. Também é possível observar que é baixa a proporção dos que se opõem abertamente ao sistema.
É interessante observar, entretanto, que a implementação da instituição não representou grandes mudanças na atitude dos cidadãos em relação ao julgamento por júri. Foi registrado um pequeno aumento da opinião favorável (não significativo), alcançado especialmente por aqueles que não expressaram opinião em 1993. A desagregação dos dados indica que esse avanço na adesão à instituição é registrado principalmente entre as pessoas com baixo nível de escolaridade. Tabela 6 – Evolução da opinião sobre o julgamento por júri.
Ano 1993 2011
Qui Quadrado
A favor 58,9% 62,3% Nem a favor nem contra 25,3% 21,9%
Opinião sobre o julgamento por júri
Contra 15,8% 15,8% Total 100,0% 100,0%
1,43 Não significativo
Os juizes 33,8% 38,0% Se você fosse acusado, preferiria que decidissem
Um júri formado por pessoas comuns
66,2% 62,0%
Total 100,0% 100,0%
1,51 Não significativo
Fonte: Pesquisas de opinião da população em geral, Córdoba capital, 1993 e 2011.
As pesquisas empíricas têm demonstrado que é comum que a imagem dos júris seja mais favorável que a dos juízes nos países do Common Law, como ocorre na Inglaterra e no País de Gales, na Nova
19 A formulação utilizada foi: Como você sabe, em Córdoba um júri de cidadãos comuns escolhidos por sorteio atua, juntamente com juízes, em julgamentos criminais graves, para decidir se o acusado é culpado ou não do crime de que é acusado. No geral, qual é sua opinião sobre este sistema? E se você fosse o réu, quem você preferiria que decidisse se ele é culpado ou inocente?
234
Zelândia e nos Estados Unidos. Por outro lado, as pesquisas realizadas nos países de tradição civilista mostram uma variedade de situações. (Roberts e Hough, 2009).
Os dados disponíveis também permitem observar a relação entre a atitude em direção ao julgamento por júri e a confiança na justiça (Tabela 7). Em 1993, quando a instituição não estava em vigor, a adesão a essa forma de julgamento penal parecia mais frequente entre aqueles que confiavam pouco na justiça. Esta relação se fazia visível no que diz respeito ao apoio em geral, como o recolhido de modo pessoal, e alcançava também significância estatística. Tal como foi mencionado acima, o interesse em implementar a participação dos leigos foi maior entre aqueles que tinham uma opinião negativa dos magistrados.
Por outro lado, em 2011, esta ligação do apelo da participação popular nas decisões penais com a desconfiança na justiça desapareceu. O apoio geral para o julgamento por júri não foi influenciado pelo nível de confiança na justiça. Trata‐se de um traço interessante, que indica a aceitação paulatina da instituição entre os cidadãos comuns. Tabela 7 – Confiança na justiça e a opinião sobre o julgamento por júri.
1993 2011
Confiança nos juízes Confiança nos juízes
Muita /bastante Regular
Pouca/ muito pouca
Muita /bastante Regular
Pouca/ muito pouca
A favor 47,0% 55,0% 66,0% 63,6% 59,5% 63,6% Nem a favor nem contra
28,8% 29,4% 21,4% 22,7% 22,7% 20,8%
Contra 24,2% 15,6% 12,6% 13,6% 17,8% 15,6% Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Opinião do julgamento por júri
R de Pearson
‐0,158(**), significativa para p < 0,002
0,010, não significativa
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). ** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral).
Esta interpretação é reforçada pelo vínculo entre a disposição para atuar como jurado e a confiança na justiça, já que os que confiam na
235
justiça mostram maior disponibilidade em assumir as responsabilidades nas decisões penais. 8. Considerações finais
Tal como foi destacado na introdução, a relação entre o julgamento
por júri e a confiança nos magistrados é complexa. A experiência comparada mostra que o apelo de participação popular na administração da justiça surge habitualmente em condições de crises na relação entre os juízes e os judiciáveis, quando a confiança cidadã no modo em que os magistrados cumprem suas responsabilidades se debilita. Entretanto, em longo prazo, a participação leiga na administração da justiça tem efeitos positivos sobre a confiança na justiça, uma vez que consegue consolidar o prestígio dos magistrados.
Os mecanismos que contribuem para este resultado são variados. Em primeiro lugar, tal como destaca Park (2010) analisando o caso coreano, a simples presença dos cidadãos comuns modera as críticas nas decisões penais. Este resultado é mais provável quando os processos penais recebem uma cobertura ampla da mídia.
Em segundo lugar, tal como observou Tocqueville, na interação entre os juízes e jurados as diferenças de conhecimentos entre leigos e letrados são evidentes, o que permite consolidar o prestígio dos magistrados. Nos tribunais mistos, onde a deliberação é conjunta, há muitas oportunidades para este tipo de interação.
Por outro lado, espera‐se que aqueles que participaram como jurados avaliem positivamente sua experiência e a compartilhem nas várias redes sociais nas quais participam. O fato de que as pessoas comuns discutam seus encontros positivos com a administração da justiça beneficia a legitimidade do sistema como um todo.
Em Córdoba, o contexto em que surgiu a lei 9.182 foi marcado pela débil legitimidade da administração da justiça. Os dados coletados em 1993 confirmam a associação entre a desconfiança nos magistrados e a adesão ao julgamento por júri, uma relação que apareceu também nos debates parlamentares da lei 9.182, em 2004.
As pesquisas de opinião realizadas entre os cidadãos comuns após seis anos de aplicação contínua dos tribunais mistos revelam uma
236
melhoria da confiança na justiça, pequena, mas estatisticamente significativa. Para interpretar essas mudanças, é necessário observar se os mecanismos que explicam a ligação entre a participação leiga e a legitimidade da justiça também estão presentes.
De fato, desde a incorporação do sistema, a cobertura da mídia dos processos com intervenção leiga tem sido intensa20, por isso é possível esperar o efeito anunciado por Park, no sentido de que a presença dos cidadãos comuns reduz as críticas externas nas decisões penais. Na verdade, nos dados coletados em 2011, se observa que a satisfação cidadã com o nível de punição criminal melhorou, conforme relatado acima.
Por outro lado, como foi relatada em estudos que incluíam dados qualitativos, a interação entre os juízes e jurados no âmbito dos tribunais mistos cordobeses se desenrola geralmente como uma relação pedagógica, na qual os juízes se posicionam como professores permanentemente disponíveis para ajudar com seus conhecimentos os cidadãos comuns e responder as suas perguntas21. Da mesma forma, aqueles que prestaram serviço como jurados estão satisfeitos com sua experiência e melhoraram suas opiniões sobre a administração da justiça22.
Dadas estas condições favoráveis para que o efeito esperado seja registrado, cabe questionar por que este resulta relativamente modesto. É necessário levar em conta que a experiência cordobesa de tribunais mistos é bastante limitada: apenas 150 processos ao longo de um período de seis anos. Neste sentido, mesmo que a experiência tenha sido favorável, o número de pessoas comuns envolvidas é baixo em comparação à população23.
20 O mais importante jornal da província, La Voz del Interior, publicou 162 notas sobre estas questões durante o ano de 2007 e 178 notas em 2008. Em cidades pequenas, a intensidade da cobertura da mídia provocou reclamações dos jurados entrevistados para este projeto. (Bergoglio, 2011).
21 Ver Bergoglio e Amietta (2010) e Amietta (2011). 22 Ver referências na nota 17. 23 A comparação internacional do número de convocações para o serviço de jurado a cada ano ilustra este ponto. Park (2010) estima que nos Estados Unidos foram distribuídos aproximadamente 2.000.000 de convocações para o serviço de júri a cada
237
Deve‐se considerar também que a experiência cordobesa em julgamentos por júri ocorreu durante um período marcado pela tendência a uma certa melhoria na imagem da administração da justiça no país (ver Tabela 2). No entanto, um estudo recente que compara as avaliações sobre o funcionamento da justiça em diferentes regiões descobriu que as opiniões positivas são ligeiramente maiores na província de Córdoba, em comparação ao resto do país, onde não foi implementada a intervenção leiga na administração da justiça24.
Estes dados sugerem que a implementação dos julgamentos por júri poderia ter ‐ a longo prazo ‐ efeitos positivos sobre a imagem dos magistrados, como sugerido teoricamente e observado nos dados coletados de cidadãos com experiência em participação em julgamentos por júri. Neste sentido, caberia esperar que, no futuro, a consolidação da experiência de julgamentos por júri em Córdoba melhore significativamente a legitimidade do poder judiciário. Bibliografia AMIETTA, Santiago. “Tendencias en Juicios por Jurados en Latinoamérica” chapter in Bergoglio M.I. (Ed.) Subiendo al Estrado, La Experiencia Cordobesa de Juicios por Jurados, Advocatus, Córdoba, 2010, pp. 37‐51. AMIETTA, Santiago, Governance in Córdoba’s Mixed Tribunal: A Study on Microphysics of Power. Oñati Socio‐Legal Series, Vol. 1, No. 1, 2011. Disponible en SSRN: http://ssrn.com/abstract=1735502 AMIETTA, Santiago. “Poder y Saber en la experiencia de juicios con jurados en Córdoba, Argentina. Un estudio sobre la microfísica del poder.” en XII Congreso nacional de Sociología Jurídica. Santa Rosa de La Pampa, Argentina, pp. 1‐18, 2011. ANDRUET, Armando, Carlos Francisco Ferrer y Laura Croccia, “Jurados populares” en Gestión del sistema de Administración de Justicia y su impacto social”, ano, o que representa 1 a cada 154 pessoas. Em Córdoba se distribuíram 4822 convocações em 2009, ou seja, 1 por 686 habitantes.
24 O estudo, realizado pela Universidad Siglo 21 em 2011 a nível nacional, registrou que 16% dos inquiridos considerou que em Córdoba a justiça funciona bem ou muito bem. Essa mesma proporção foi de 12% a nível nacional. Mais detalhes sobre esta investigação em http://www.21.edu.ar/institucional‐investigacion‐proyectos.html
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Colección Investigaciones y Ensayos, Centro de Perfeccionamiento Ricardo Núñez, Córdoba, Argentina, sin mención de editor, 2007. BERGOGLIO, María Inés y AMIETTA, Santiago, “La dureza del castigo penal según legos y letrados”, capítulo en Bergoglio, María Inés (Editora) Subiendo al estrado: La experiencia cordobesa de juicio por jurados, Ed. Advocatus, Córdoba, 2010, pp. 129‐152. CAVALLERO, Ricardo y HENDLER, Edmundo. Justicia y participación – El Juicio por Jurados en materia Penal, Buenos Aires: Ed. Universidad, 1988. CHERESKY Isidoro. Ciudadanos y política en los albores del siglo XXI, Manantial, Buenos Aires, 2010. DOGAN, Mattei. “Political legitimacy: new criteria and anachronistic theories.” International Social Science Journal 60(196):195‐210. 2010. Retrieved April 12, 2012 (http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468‐2451.2010.01722.x/full). EASTON, David. A framework for political analysis Englewood cliffs: Prentice‐Hale (1965). FERRER, Carlos F. y Grundy, Celia. El nuevo juicio penal con jurados en la Provincia de Córdoba, Córdoba: Ed. Mediterránea, 2005. FUKURAI, Hiroshi, and Richard Krooth. “The Establishment of All‐Citizen Juries as a Key Component of Mexico’s Judicial Reform:” Texas Hispanic Journal of Law and Policy 16(51):52‐100, 2010. GASTIL, John, and Phillip Weiser. “Jury Service as an Invitation To Citizenship: Assessing the Civic Value of Institutionalized Deliberation.” The Policy Studies Journal 34(4):605‐627, 2006. GIBSON, J. L., G. a. Caldeira, and L. K. Spence. “Why Do People Accept Public Policies They Oppose? Testing Legitimacy Theory with a Survey‐Based Experiment.” Political Research Quarterly 58(2):187‐201, 2005. GIBSON, James. “The Legitimacy of the U.S. Supreme Court in a Polarized Polity.” Journal of Empirical Legal Studies 4(3):507‐538, 2007. GILLEY, B. ‘‘The meaning and measure of state legitimacy: results for 72 countries’’, European Journal of Political Research, 49, 499–525, 2006. HANS, Valerie P. “Jury Systems Around the World.” Annual Review of Law and Social Science 4(1):275‐297, 2008. IONTCHEVA, Jenia. “Jury Sentencing As Democratic Practice.” Virginia Law Review, Vol. 88, April 2003. Available at SSRN: http://ssrn.com/ abstract=368124 JORGE A. Informe preliminar juicio por jurados. Experiencia comparada. Unidos por la Justicia. 2004. Accesible en http://www.unidosjusticia.org.ar KLIJN, Albert, and Marnix Croes.“Public opinion on lay participation in the criminal justice system of the Netherlands. Some tentative findings from a panel survey.” Utrecht Law Review 3(2):157‐168, 2007.
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PARTE III Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e na Argentina
María Alejandra Ciuffolini1
Lúcia Zanin Shimbo2 1. Introdução
A marginalização social, econômica e política de porções
significativas da população na América Latina conflui – na maior parte dos países – com um constante processo de segregação espacial. Estas circunstâncias de segregação sócio‐espacial são resultado de um conjunto de processos políticos‐institucionais e econômicos3 mais amplos e de longa data, que têm limitado o acesso aos recursos sociais para parcelas cada vez mais significativas da população.
No que diz respeito às condições de habitabilidade urbana, se registra uma dinâmica de isolamento espacial especialmente dirigida aos segmentos mais pobres da sociedade, sendo, como diz Katzman (2000), o caso paradigmático de exclusão social hoje.
1 Pós‐Graduação em Relações Internacionais (UCC), Mestre em Administração Pública (UNC), doutora em Ciências Sociais (UBA). Professora e pesquisadora da Universidade Nacional de Córdoba e Universidade Católica de Córdoba. Diretora da Equipe de Pesquisa “El llano en llamasʺ. Linha de pesquisa: políticas públicas, lutas e conflitos sociais.
2 Graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), mestrado, doutorado em Arquitetura e Urbanismo (EESC/USP) e pós‐doutorado no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB ‐ FAU/USP). Docente e pesquisadora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo (IAU/USP). Linha de pesquisa: política habitacional, mercado imobiliário e trabalho no canteiro de obras.
3 Um tratamento mais detalhado destas questões foi desenvolvido em Ciuffolini (2010a).
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Esta tendência é observada tanto na Argentina como no Brasil, a partir de programas e experiências diferentes, mas que paradoxalmente são nomeados da mesma forma. Os programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, têm um desenho, um alcance e uma implementação completamente distintos no caso do Brasil e de Córdoba‐Argentina. Este artigo se propõe a realizar tanto uma análise desses programas, pontuando suas semelhanças e diferenças, quanto tomar o caso argentino, por ser mais antigo, como referência analítica e como um anúncio de um problema empírico de larga escala para o caso do Brasil, em relação ao impacto sobre as relações sociais e os processos de subjetivação a que dão lugar.
Dessa forma, o artigo está organizado em duas grandes seções que abordam cada um dos casos: Córdoba‐Argentina e Brasil. A primeira, que trata do caso de Córdoba, está organizada em duas partes: a primeira é uma descrição do ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ (PMCMV) e a segunda analisa o espaço a partir da lógica de valor, circulação e significação. A segunda seção aborda o caso do Brasil, estruturada em duas partes: a primeira refere‐se à descrição do programa, e a segunda trata das questões relacionadas à produção da habitação e às tensões entre política habitacional e o PMCMV. Finalmente, na conclusão, se oferece um conjunto de reflexões sobre os mecanismos dos programas analisados e seus efeitos, não apenas habitacionais, mas também sociais e urbanos, a partir de uma perspectiva comparativa das duas experiências. 2. ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, Córdoba‐Argentina
Um ponto de partida comum tem sido o de entender que a
habitação não é um elemento neutro, mas que possui uma importante carga de condicionamento e controle; ao mesmo tempo que reflete um mundo de signos, desejos e frustrações. Essa condição da casa, não apenas material, mas também simbólica e ideologicamente constituída, a coloca em conexão direta com a estrutura social e espacial.
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É por isso que, em nossa investigação4, o programa – PMCMV – de relocalização de populações em situação de risco ambiental e/ou social, implica uma análise do processo de deslocalização/ deslocamento, a partir de um marco que entende o espaço como um recurso organizacional e como uma força de produção do capitalismo (Lefebvre, 1974; Smith, 1990; Harvey, 2008). Essa abordagem também exige uma compreensão do espaço como aquele que resulta das lutas desencadeadas pelo controle e posse de recursos sociais. Em consequência, solicita uma análise sobre o imaginário social, as relações de poder e as formas de dominação e resistência que nele se organizam5.
O processo de deslocalização/deslocamento que o programa oferece, está guiado pelos imperativos de uma racionalidade técnica, uma compreensão do urbanismo e da intervenção pública que prioriza a constituição de um espaço e de uma ordem abstratos e homogêneos: ʺpaisagem anódina e repetida, cubos replicados...ʺ, no dizer de Gómez Luque (2010), ʺcidades outrasʺ6.
Da investigação realizada se depreende que, embora as melhorias habitacionais, de serviços e de equipamentos urbanos7 sejam 4 A pesquisa foi realizada graças ao apoio oferecido pela Secretaria de Ciência e Técnica e pelo Centro de Investigações Jurídicas e Sociais da F. de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba.
5 Situados a partir de uma episteme interpretativa que permite explorar as experiências de relocalização e suas implicações na subjetividade política, se realizou um dedicado trabalho de campo em 6 bairros da cidade de Córdoba ao longo de um ano (setembro de 2008 a novembro de 2009). Foram realizadas um total de 96 entrevistas nos bairros: Bairro Ciudad de Mis Sueños (18 entrevistas), Bairro Ciudad Obispo Angelelli (19 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Ferreyra (23 entrevistas), Bairro Ciudad de los Niños (5 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Cabildo (23 entrevistas), Ciudad Sol Naciente (8 entrevistas). O estudo precedente de documentos governamentais e dados secundários governamentais se serve de de estatísticas oficiais.
6 Gomez Luque, M. “La casa o la ciudad, la arquitectura de los barrios ciudades”. En Scarponetti, P. y Ciuffolini, M.A. (comps. 2010) Ojos que no ven, corazón que no siente. Relocalización territorial y conflicto vidad social: un estudio sobre los Barrios Ciudades de Córdoba. Buenos Aires: Nobuko
7 Os ʺbairros cidadesʺ possuem os serviços básicos (água corrente, energia elétrica, iluminação pública) e de equipamentos de saúde, ensino fundamental, creches e posto policial. As casas são unidades iguais, que constam de uma cozinha, banheiro e dois quartos, em lotes autônomos com cercas e sem muros de divisão (42 m2 de área
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inegáveis, como também o é a envergadura do plano, é igualmente certo que a remoção e a relocalização de numerosos assentamentos em direção aos “bairros cidades” têm gerado um complexo leque de novos problemas e, também, novas formas de precariedade e desigualdade. 2.1. Descrição do Programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, em Córdoba
O PMCMV merece uma análise destacada na trajetória das
políticas estaduais de habitação tanto por seu impacto, relativamente maior, em comparação com outras políticas habitacionais que foram aplicadas simultaneamente na cidade8, como por apresentar características singulares e inovadoras para estas latitudes.
Em primeiro lugar, em termos de recursos aplicados, o programa significou o maior dos investimentos na cidade de Córdoba em matéria de política habitacional para os assentamentos precários e para as favelas. Esta escala de aplicação foi possível graças aos recursos provenientes de crédito do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)9, o que solicitou uma adaptação das políticas às orientações e condições que tal instituição requeria para o outorgamento dos créditos10.
construída e aproximadamente 300 m2 de terreno). Se pensarmos na família típica, com média de seis pessoas ou mais, estas medidas condenam a uma intensa aglomeração; ao que parece, do ponto de vista das políticas públicas, essas consequências parecem não ter sido levadas em conta no momento de se projetar os conjuntos habitacionais.
8 Exemplos destes são: 1) O Programa Nacional PROMEBA (Programa Melhoramento de Bairros), que na cidade de Córdoba tinha conseguido urbanizar apenas três assentamentos, que reuniu cerca de 700 famílias até o ano de 2007 (Buthet et. all, 2007). 2) A prefeitura da cidade, sob a direção de Luis Juez entre 2004 e 2007, também foi responsável por urbanizar alguns assentamentos, mas sem muito resultado sobre o total da população que vive nas vilas.
9 Por outro lado, o orçamento que recebia há anos atrás a Mesa de Concertación provinha do cálculo de fundos provinciais e nacionais, não de financiamento externo.
10 Ademais das condições gerais de concessão de empréstimos, a proposta de utilização dos mesmos deve ser compatível com as políticas do BID sobre ʺDesastres Naturais e Inesperadosʺ (OP‐704), ʺReassentamentos Involuntáriosʺ (OP‐710), ʺDesenvolvimento urbano e habitaçãoʺ (OP‐751) “Meio Ambienteʺ (OP‐703).
245
A aplicação do plano implicou a relocalização de pouco mais de 35 assentamentos dos 158 que existiam em 2001 (Buthet et.al., 2007). Isso teve um impacto direto sobre os levantamentos e censos que foram realizados após sua implementação, que registraram uma diminuição tanto da quantidade de pessoas que viviam em “favelas de emergência” como do número de favelas registradas na cidade.
Por sua vez, as condições de administração do PMCMV também foram inovadoras. Em primeiro lugar, o plano estava enquadrado em uma nova constelação administrativa que organizava o aparato burocrático do Estado Provincial em ʺAgênciasʺ, em conformidade com as propostas de modernização e reforma do Estado11. Isso anunciava uma nova perspectiva para articular atores privados e públicos no campo das políticas públicas e realizar mudanças nas modalidades de projeto e execução12. Em segundo lugar, o plano fez convergir, em sua estratégia, três unidades administrativas diferentes: o Departamento Provincial da Habitação do Ministério de Obras e Serviços Públicos, e a ex‐Agência Córdoba Solidária (antigo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social e atual Ministério da Solidariedade) e a Agência Córdoba Ambiente.
O PMCMV foi destinado para os grupos vulneráveis que habitavam zonas inundáveis13 da cidade de Córdoba, com necessidades básicas insatisfeitas (NBI). Ele envolveu a relocalização de favelas e assentamentos de emergência em novos bairros, longe das regiões de origem. Também contemplou a construção de pequenos assentamentos com menores dimensões do que os “bairros cidades”.
O programa previa a construção de 12.000 unidades habitacionais, das quais 8.537 foram realizadas. Estas casas estão incluídas no Programa de Regularização de Habitações Sociais (Programa Escrituração de Vivendas Sociales) do Ministério do Desenvolvimento Social, que concede a escritura gratuita às famílias
11 Leis provinciais de Reforma do Estado: Lei de 8835 (ʺCarta ao cidadãoʺ), Lei 8.836 (ʺModernização do Estadoʺ), Lei 8837 (ʺIncorporação de capital privado ao setor públicoʺ).
12 Ver Boito et. al (2009), Nallino (2003). 13 Em seguida, se estendeu à população em risco social.
246
beneficiárias, completando o que previa o PMCMV em relação à regularização de posse.
O programa previu a entrega às famílias de módulos habitacionais que compreendiam dois quartos, cozinha e banheiro, com uma área de 42 metros quadrados. Além disso, os “bairros cidades” foram equipados com escolas de nível inicial e primário, posto policial, posto de saúde, áreas comerciais e área de esportes, contando, em alguns casos, com um centro de capacitação – O Conselho Territorial. Ademais, eles foram equipados com infraestrutura de rede de água potável, energia elétrica, iluminação pública, calçadas, pavimentação e rede de esgoto com estação de tratamento da água.
Para levar adiante este Programa, uma equipe da área de Habitação Social do Ministério da Solidariedade realizou censos com os beneficiários, anunciando o futuro remanejamento. Posteriormente, promoveram oficinas para capacitar os novos proprietários quanto ao manejo adequado da infraestrutura habitacional antes da transferência.
A transferência foi realizada pela Guarda Nacional, forças policiais e uma equipe do Ministério do Desenvolvimento Social. As casas desocupadas eram demolidas por tratores presentes no local para evitar a ocupação das mesmas por outras pessoas, e para realizar a reabilitação ambiental dessas áreas, conforme estipulava o convênio com o BID.
O PMCMV foi financiado pelo BID, juntamente com uma contrapartida da província. O primeiro empréstimo se concretizou em 2000 – empréstimo 1287/OC‐AR – através do qual o BID avalizou o ʺPlano de Apoio à Modernização do Estadoʺ (Programa de Apoyo a la Modernización del Estado ‐ PAME)14. Dentro do marco deste programa tomam corpo o ʺProjeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional dos Grupos Vulneráveis Afetados pelas Inundações na Cidade de
14 BID empréstimo 1287/OC‐AR. Montante total aprovado pelo BID: USD 215.000.000 (USD 93.282.000 corresponderam ao componente de emergência habitacional). Financiamento: 20 anos, 7,03% de juros anuais. Montante total de contrapartida local (Província): USD 215.000.000. Data de Aprovação: 2000. Data de finalização do projeto: 2007. Avalista: Governo Nacional. Além do empréstimo obtido com o BID, tomadas para este fim de modernização, a Província conseguiu a aprovação de outro empréstimo pelo Banco Mundial (Córdoba Provincial Reform Loan, 4585‐AR).
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Córdobaʺ (Proyecto de Emergencia para la Rehabilitación Habitacional de los Grupos Vulnerables Afectados por las Inundaciones en la Ciudad de Córdoba) e o programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ (PMCMV). Em 2006, este programa recebe outra ajuda como parte de um segundo empréstimo concedido também pelo BID à Província de Córdoba: o empréstimo 1765/OC‐AR, conhecido como ʺPrograma de Desenvolvimento Social na Província de Córdobaʺ (Programa de Desarrollo Social en la Provincia de Córdoba)15.
Os objetivos do PMCMV eram: contribuir para o melhoramento integral da moradia e das condições de vida das famílias beneficiárias; apoiar os processos de organização social, promoção comunitária e desenvolvimento auto‐sustentável dos grupos que foram afetados pelas inundações do Rio Suquía, seus afluentes e canais, e as áreas de risco antrópicas, especialmente aquelas relacionadas às situações de pobreza e de vulnerabilidade social; relocalizar em um Novo Bairro as famílias beneficiárias, dando‐lhes uma moradia com serviços básicos e escritura individual; prover as novas localizações de equipamentos e infraestrutura social, possibilitando o acesso aos serviços de educação e saúde; fortalecer os processos de organização social e as redes comunitárias da população beneficiária; promover a participação das famílias na gestão do projeto16.
Alguns dos “bairros cidades” criados pelo PMCMV são: Ciudad de Mis Sueños (565 casas); Ciudad Obispo Angelelli (564); Ciudad Evita (574); Barrio 29 de Mayo‐Ciudad de los Cuartetos (480); Ciudad de los Niños (412); Ciudad Juan Pablo II (359); Ampliación Ferreyra (460); Ciudad Villa Retiro (264); Ciudad Parque Las Rosas‐Matienzo (312); Ampliación Cabildo (570); Ciudad Esperanza (380) e Ciudad Sol Naciente (638). Outros bairros incluídos no PMCMV: Barrio Renacimiento (233); Barrio San Lucas (230); Zepa (380), Villa Bustos (197), Los Boulevares (98), Parque Liceo (25), El Quebracho Anexo (230),
15 BID empréstimo 1765/OC‐AR. Montante total aprovado pelo BID: USD 180.000.000. Financiamento: 25 anos, a juros baseados na LIBOR. Montante total de contrapartida local (Província): USD 35.000.000. Data de Aprovação: 2006. Avalista: Governo Nacional.
16 Projeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional dos Grupos Vulneráveis Afetados pelas Inundações na cidade de Córdoba.
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Villa Azalais (359) Argüello Anexo (147 casas), San Lorenzo (574), La Esperanza (80), Chachapoyas (202), Los Álamos (178), Yapeyú (138), Villa Boedo (128), Jardín del Pilar (312), Las Lilas (81), Los Chingolos (266), Santa Isabel (54), San Antonio (188), Inaudi Anexo (60); e na Grande Córdoba: Malvinas Argentinas (131, nos planos 1 e 2) y Juárez Celman (412), e o bairro de Alta Gracia denominado Cafferata (76).
A estas características que concedem singularidades ao PMCMV se acrescenta outra: certa retórica da emergência e da urgência em sua concepção e justificativa. Trata‐se de um argumento no qual a ʺemergênciaʺ está associada a uma situação de risco que, enquanto tal, não pode ser enfrentada com os meios ordinários, e cujo perigo latente exige um tratamento urgente, diante do qual se requer uma ação imediata do Estado. Consequentemente, se suspende o tratamento legislativo que tais medidas implicariam, dando lugar ao uso de faculdades puras do poder executivo, como o decreto17. Neste caso, ademais, a agilidade nas ações é uma exigência da agência financiadora18 – BID –, já que a situação de emergência impõe uma dinâmica de flexibilidade jurídica, na qual as normas têm a particularidade de ser pragmaticamente adaptáveis às circunstância cambiantes.
Em outras palavras, a emergência torna‐se a base para um novo ʺpacto socialʺ entre os indivíduos e a estatalidade. Como explicou Murillo (2008), essa nova relação já não se assenta na ideia de direitos sociais universais, mas sim em uma espécie de novo humanismo que reduz a questão social à atenção a um mínimo biológico: ʺas necessidades básicasʺ. A política social tem assim seu eixo em uma visão ʺminimizadoraʺ das necessidades humanas que tende, por um lado, a se mostrar com certa aparência de intervenção voluntária ou moral das políticas de Estado e, por outro lado, digna‐se a legitimar a
17 Esta situação foi formalizada pelo Decreto de Necessidade e Urgência Provincial N º 2565/01 que declara ʺo estado de emergência hídrica e social na capital da província, em tudo o que ocorre às imediações e margens do Rio Suquía, canais de irrigação, margens de leite de rios e em áreas sujeitas a inundaçõesʺ.
18 De acordo com o Regulamento Operacional do BID OP 704: ʺPara obter assistência imediata em caso de desastre, o país mutuário deve declarar um estado de emergência e solicitar assistência do Banco em função da sequela do desastreʺ.
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existência de limiares de cidadania ou de diferentes níveis de cidadania (Ciuffolini e Vega, de 2009; de la Vega, 2010) que negam qualquer caráter igualitário de direitos.
Esse desenho de intervenção estatal favorece um tratamento ágil e focalizado dos problemas, em detrimento de uma ação integral que ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido, vale destacar a intensificação da segregação espacial. Isso ocorre porque o programa opera um deslocamento geográfico dos pobres para as margens da cidade, agravando outras situações de exclusão, como as de emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou transporte, etc. Consequentemente, criam‐se novos ou reforçam‐se velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade.
O deslocamento massivo e a relocalização de tantos assentamentos para os ʺbairros cidadesʺ têm ʺliberadoʺ importantes espaços na área central para empreendimentos privados e públicos, revalorizando a terra e tornando‐a inacessível aos segmentos de mais baixa renda. Isso leva a um processo de ʺsuburbanizaçãoʺ, porque a população se estabelece cada vez mais longe dos núcleos centrais, e produz uma menor densidade habitacional na cidade. Assim, a área destinada ao uso urbano aumentou, entre 1991 e 2001, em 320% para além do crescimento populacional, produto tanto do mercado imobiliário quanto dos planos estatais de habitação e, ainda, das famílias que se veem obrigadas a afastar‐se cada vez mais em busca de terrenos acessíveis. 2.2 O espaço: lógicas de circulação, significação e valor
A estrutura da economia capitalista funciona assumindo todo
aquele conteúdo do qual deseja se proteger. O que ameaça o capital não é a violência, mas o seu exterior: que exista algo fora dele. Por esta razão, sua dinâmica é a de um processo constante de reintrodução de tudo aquilo que lhe é alheio. Este processo de mercantilização permanente da lógica econômico‐política é o mecanismo através do qual se administra e promove a reprodução das relações sociais capitalistas.
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Nesta reprodução intervém – algumas vezes, por momentos solidários, em outros, competitivos ou conflitantes – o Estado e o capital privado. O jogo que se estabelece entre ambos reorganiza, redefine ou mesmo reconfigura o uso do espaço e as significações sociais que são tecidas sobre ele. Assim, “toda intervenção urbana é acompanhada de transformações das atividades e dos valores da sociedade considerada, assim como de transformações efetivas dos indivíduos e dos objetos sociaisʺ (Castoriadis, 1989:21).
A infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e significado, se mostra, parafraseando a Gonzales Ordovaz (1998) também, como um mundo de signos, desejos, frustrações, restrições evidentes de oportunidades de inserção social. Neste sentido, a habitação, sua localização e sua relação espacial com o centro da cidade e com os centros de consumo e de trabalho, etc., permitem perceber com toda clareza a simbologia e a ideologia urbana.
Nesse sentido, o funcionamento do PMCMV se orientou principalmente a retirar, da zona central e do interior do anel viário que circunda a cidade, as favelas de emergência e dos pobres. ʺValiososʺ terrenos foram desocupados para uso público ou para empreendimentos privados, configurando um novo mapa espacial e social no qual a pobreza está confinada às periferias da cidade. Essas dinâmicas do Estado no uso e na valorização de espaços e populações através de políticas públicas, e a forma como o mercado define algumas áreas como de boa qualidade e, portanto, de seu interesse, implicam toda uma engenharia do urbano na qual a população se reacomoda e se distribui de acordo com as possibilidades financeiras para consumir e com as oportunidades de trabalhar e de produzir (Cravino, et.al., 2009).
A população recategorizada socialmente leva a constituição de uma cidade dual: por um lado, a cidade da população produtora, proprietária, que consome e trabalha; e por outro, a cidade dos assistidos, desapropriados, trabalhadores precários e consumidores intermitentes. Nesses dois espaços se entrelaçam, de maneira diferenciada, a reprodução capitalista das relações sociais e a cotidianidade.
É a interconexão, as articulações e as tensões reais ou potenciais entre esses espaços, que dão origem às relações de classe específicas que
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são produzidas pelos processos históricos – ou seja, em um espaço‐tempo particular – de posicionamento e espacialização do trabalho, das relações sociais e das interações face‐a‐face.
Visto desta forma, o espaço compreende as barreiras no mapa (arquitetônica e socialmente delimitadas) e nos horizontes da vida social. A divisão espacial oferece uma série de possibilidades estrategicamente seletivas, no sentido de desenvolver relações sociais através do tempo e do espaço (Jessop, 2007:33). Precisamente, o que queremos dizer é que o espaço, o lugar, o tempo e a interação favorecem ou não uma conjuntura de insurgência e resistência. Por outro lado, os deslocamentos e relocalizações implicam destruição de redes de interação, de solidariedades tecidas no tempo e no espaço (Hernandez, Mestres e Liberal Ibáñez, 2010).
O movimento massivo de população pobre que implicou o PMCMV teve como consequência não só o desenraizamento, mas também o desmantelamento das estratégias de sobrevivência que os pobres haviam constituído ao longo do tempo, as quais implicavam redes de controle e solidariedade tanto entre os sujeitos como em relação à comunidade. Especialmente problemático foi o impacto sobre as relações de trabalho, já que em suas antigas localizações tinham acesso fácil e próximo a oportunidades de emprego – quer fossem trabalhos precários e temporários, quer fossem serviços domésticos ou trabalhos domiciliares, como costura, carpintaria, etc. –, e o distanciamento que a erradicação implicou em relação aos demais setores sociais os colocou à margem do trabalho e, inclusive, de outras instâncias de integração, como escolas e serviço de saúde.
Além disso, e concomitantemente com a política de erradicação de favelas, ocorre em Córdoba a implantação de uma política de segurança que reforça ainda mais a exclusão. Ela consiste em limitar e/ou controlar a circulação da população pobre – especialmente jovens do sexo masculino – para além das fronteiras que delimitam os bairros. Assim, a mobilidade dos segmentos populares pela cidade é regulada pela força policial e sua política estigmatizante, que atribui à pobreza – assim, em geral – as práticas da delinquência e do crime.
Essa concomitância de políticas de habitação para setores populares e políticas de segurança agudizam as práticas de exclusão,
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confinando os pobres a situações cada vez mais precárias de vida. As dinâmicas institucionais e econômicas se combinam em sua ação cotidiana, resultando em formas de regulação, disciplinamento e reprodução das relações sociais classistas e capitalistas.
Em síntese, nas cidades se expressam com toda transparência, através das localizações, dos percursos e dos consumos que se habilitam a determinados grupos, os signos das classes sociais. O espaço urbano, seu traçado, desenho, infraestrutura e aspectos semióticos fazem dele um espaço ocupado, carregado de qualidades, de relações, sentidos, ou seja, de significados que falam a respeito de poder, prestígio e status social, e definem, para cada grupo em particular, possibilidades e restrições no acesso e uso do comum, isto é, da cidade. 3. “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e o protagonismo do mercado
na política habitacional O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no
Brasil, portanto, quase uma década depois do programa homônimo implementado em Córdoba. Assim como o PMCMV de Córdoba merece uma análise especial dentre os programas estaduais, o PMCMV – Brasil representa um marco na trajetória dos programas nacionais de habitação dado o volume de investimentos públicos e privados, a quantidade de unidades habitacionais a serem produzidas e a sua área de abrangência, levando alguns autores afirmar que “talvez seja o programa habitacional mais ambicioso já desenvolvido no país, mesmo considerando os ‘áureos tempos’ do BNH [Banco Nacional de Habitação]” (Cardoso e Lago, 2013: 14).
Mais do que isso, o programa vem corroborar o protagonismo do mercado imobiliário na política habitacional brasileira, que já vinha sendo privilegiado em diversas medidas regulatórias e institucionais desde meados dos anos 1990. Para Arretche (2002), os programas habitacionais voltados para os setores de renda mais baixa seguiram duas vertentes desde então. A primeira vertente dava continuidade ao modelo baseado na promoção pública, por intermédio de Estados e municípios, já praticado desde o Banco Nacional de Habitação (BNH),
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entre 1960 e 1980.19 A segunda vertente, entretanto, rompia com o desenho institucional do modelo anterior: instaurava‐se a linha de financiamento direto ao mutuário final e introduzia um novo “paradigma” na provisão de habitação brasileira, pautado nos princípios de mercado.
A “abordagem de mercado” da política habitacional das duas gestões de governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995‐2002), apesar de apresentar uma significativa redução na capacidade de financiamento diante de um cenário de recessão econômica, inovou ao criar o programa “Carta de Crédito” que permitia o acesso direto dos consumidores, sem a intermediação de incorporadoras ou órgãos públicos de promoção de moradia – como era necessário até então ‐ para a aquisição de financiamento para obtenção da casa própria, tanto de um imóvel novo ou usado. Esse programa utilizava os dois principais fundos de financiamento habitacional, estabelecidos desde o BNH: o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).20
A partir de 2005, a produção privada de moradias se potencializou com a entrada do capital financeiro em grandes empresas construtoras e incorporadoras e com o vertiginoso aumento de recursos
19 Nos seus vinte e dois anos de existência, entre 1964 e 1985, o BNH financiou a produção de 4,45 milhões de unidades habitacionais, correspondendo a 25% do total de novas unidades construídas no país – e dessas 4,45 milhões de unidades, somente 33,1% foi destinada para faixas de renda de 1 a 3 salários mínimos. (Royer, 2009). O modelo de financiamento habitacional adotado desde então no Brasil, dentro do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), foi o de criação de instrumentos de captação de poupanças privadas (voluntárias no caso do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE; e compulsórias, no caso do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS), para aplicação primordial em investimentos habitacionais, tanto na esfera da produção quanto na do consumo (Cardoso e Aragão, 2013).
20 De acordo com Cardoso e Aragão (2013), os recursos do FGTS são destinados ao investimento habitacional para o atendimento de população de baixa renda e também para o financiamento de investimentos em saneamento ambiental, remunerados a baixas taxas de juros, sendo atualmente operacionalizados pela Caixa Econômica Federal. Já os recursos das cadernetas de poupança, que compõem o SBPE, são administrados pelo sistema bancário (público e privado), remunerados a uma taxa um pouco superior ao do FGTS e destinados primordialmente ao financiamento habitacional para os setores de renda média. (Cardoso e Aragão, 2013: 17‐18)
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públicos para o financiamento habitacional para obtenção da casa própria, além de outros fatores conjunturais, tais como o crescimento econômico do país, a redução das taxas de juros e a elevação real do valor do salário mínimo.
A ampliação da capacidade de financiamento habitacional era prevista na Política Nacional de Habitação (PNH), elaborada em 2004 pelo primeiro governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva (2003‐2006), que buscava ampliar o mercado para atingir os “setores populares”, permitindo a “otimização econômica dos recursos públicos e privados investidos no setor habitacional”. Para tanto, era prevista a criação de mecanismos tanto de proteção aos financiamentos habitacionais como de captação de recursos, entre os quais, aqueles disponíveis no mercado de capitais. (Brasil, 2004).
Além disso, o Ministério das Cidades foi criado, em 2003, com um caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), e sendo responsável pela gestão da política habitacional. Entretanto, ele perdia força operacional diante da manutenção da Caixa Econômica Federal (CAIXA)21, subordinada ao Ministério da Fazenda, e que continuou e continua a exercer enorme poder na execução da política habitacional, como agente operador dos programas e principal agente financeiro dos recursos do FGTS.
Desde então, os agentes privados souberam atuar na liminaridade entre o que a política especificava como “habitação de interesse social” e como “habitação de mercado”, tirando proveito disso e expandindo consideravelmente a produção habitacional para os setores populacionais de renda média e baixa, até então desprezados pelas grandes empresas construtoras nacionais. Muitas dessas empresas produziram um estoque de unidades habitacionais, cujos preços variavam até o limite máximo de USD 100 mil, em diversas cidades
21 Desde a falência do BNH, a CAIXA se tornou o principal agente operador e financeiro dos programas habitacionais. Assim, segundo Azevedo (2007), houve a transferência do problema da habitação a uma agência financeira de vocação social, mas que não deixa de lado os paradigmas institucionais de um banco comercial (como, por exemplo, a busca de equilíbrio financeiro, necessidade de retorno do capital aplicado etc.).
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brasileiras, dentro daquilo que o mercado imobiliário passou a chamar, grosso modo, de “segmento econômico”.22
A crise financeira internacional ocorrida no final de 2008 ameaçou, de certa forma, a comercialização desse estoque (seja em unidades já produzidas, seja em terrenos adquiridos) e a continuidade da expansão da produção habitacional levada a cabo por grandes empresas. Em março de 2009, PMCMV‐Brasil foi lançado com o objetivo de construir um milhão de moradias e foi apresentado como uma das principais ações do governo em reação à crise econômica internacional e também como uma política social de grande escala. Ao mobilizar um conjunto de medidas de estímulo à produção habitacional, mantendo o desenvolvimento dos setores imobiliário e da construção civil, o programa atendia dois imperativos econômicos e sociais – por um lado, a criação de empregos no setor da construção, e, por outro, a provisão de moradias. Segundo Fix e Arantes (2009), se as “classes C e D”23 já haviam sido descobertas por quase todas as empresas nos últimos anos, ainda havia limites para a efetivação desse mercado, os quais o pacote pretendia, a princípio, superar por meio do “apoio decisivo dos fundos públicos e semipúblicos”. 22 Em Shimbo (2012), há o desenvolvimento do argumento de que a habitação social transformou‐se, de fato, num mercado. O mercado imobiliário descobriu e constituiu um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até duzentos mil reais (ou USD 100 mil), destinadas para famílias que podem acessar os subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito imobiliário. Assim, há uma fronteira de indistinção, que se estabelece empiricamente, entre a forma de produção destinada à habitação de interesse social e aquela voltada para a habitação de mercado. Ou seja, considero que numa eventual gradação que procure classificar, num extremo, a produção pública e, no outro, a produção privada, há uma zona intermediária híbrida – a “habitação social de mercado”.
23 Há estudos no Brasil, baseados nos dados de renda domiciliar mensal, que classificam a população em cinco classes de renda. Neri (2008) especifica a seguinte classificação: a classe E são aquelas famílias que recebem até R$768,00 (ou aproximadamente até USD 450, em dólares de março de 2008) de renda mensal; a classe D, entre R$768,00 e 1.064,00 (entre USD 450 e 630); a classe C (ou “classe média”), entre R$1.064,00 e 4.591,00 (entre USD 630 e 2,700); e classes A e B, acima de R$4.591,00 (acima de USD 2,700). Esse estudo apontou para o aumento, nos últimos anos no Brasil, da participação da classe C. Vale destacar ainda a renda domiciliar média, R$ 1.957,00 (ou USD 1,150). Cf. NERI, 2008.
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3.1 Descrição do Programa “Minha Casa, Minha Vida” ‐ Brasil Na Fase 1 do PMCMV‐Brasil, para a construção de um milhão
de moradias em todo o território nacional foram alocados R$ 34 bilhões (ou USD 14 bilhões, em dólares de março de 2009), dos quais 75% eram provenientes do Orçamento Geral da União (estritamente público e, portanto, a fundo perdido) e 25% do FGTS (recursos onerosos a serem devolvidos ao Sistema Financeiro da Habitação ‐ SFH). Desses recursos, 82% se destinavam para subsídios para moradias, 15% para infraestrutura urbana e 3% para financiamento à cadeia produtiva. (Ferreira, 2012; Cardoso e Aragão, 2013)
Em 2011, foi lançada a Fase 2 do programa, com a meta de se construir mais 2 milhões de unidades, contando com recursos entre R$ 120 bilhões e R$ 140 bilhões (ou entre USD 72 bilhões e USD 84 bilhões, em dólares de março de 2011), de acordo com reportagens no momento do lançamento, sem haver uma divulgação precisa da quantidade de recursos proveniente de cada fundo. A meta física foi ampliada em 2012, passando para 2,4 milhões de unidades habitacionais.
O PMCMV‐Brasil se apresenta formalmente como um único programa habitacional, mas que se estrutura operacionalmente em linhas ou modalidades distintas, de acordo com faixa de renda dos beneficiários, origem dos recursos e instituição proponente. Tais linhas estão agrupadas em, basicamente, duas faixas de renda: de 0 a 3 salários mínimos (SM)24 e de 3 a 10 SMs – posteriormente, a referência deixou de ser o salário mínimo e passou a ter um valor fixo, ou seja, a primeira faixa até R$ 1.600,00 (ou aproximadamente USD 960, em dólares de março de 2011) de renda familiar mensal e a segunda, entre R$ 1.600,00 e R$5.000,00 (ou entre USD 960 e USD 3.000). Na primeira faixa, há o subsídio com o uso de recursos do Orçamento Geral da União. Na segunda, uma pequena parte é composta por recursos não onerosos (utilizados como “descontos”) e a grande maioria advém de recursos onerosos provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
24 Em outubro de 2012, um salário mínimo equivale a R$622,00 ou, aproximadamente, USD 300.
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(FGTS). Em ambas as faixas, a CAIXA é o agente financeiro do programa. (Ferreira, 2012)
Analiticamente, a primeira faixa corresponde aos programas de habitação de interesse social já operacionalizados no Brasil desde a primeira gestão Lula, com algumas mudanças quanto ao montante de recursos, aliás, bastante considerável, e ao papel dos agentes promotores. A segunda faixa incorpora o segmento econômico à política habitacional, tornando‐se evidente o incentivo do poder público aos agentes privados na produção de habitação voltada para os setores de renda média baixa e média.
Em termos de gestão e de operacionalização, para a primeira faixa, é possível notar que o PMCMV‐Brasil foi paulatinamente absorvendo linhas de financiamento que não estavam presentes no momento do seu lançamento, indicando um processo de acomodação e de aperfeiçoamento do próprio programa durante sua implementação. Em 2009, o programa enfatizava a produção “por oferta” via construtoras e aqui trazia uma novidade quanto ao papel dos agentes promotores. Nesse caso, “a construtora define o terreno e o projeto, aprova‐o junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a CAIXA, sem gastos de incorporação imobiliária e comercialização, e sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades”. (Cardoso e Aragão, 2013: 37). A CAIXA seleciona e aprova as propostas das construtoras e define o acesso às unidades, a partir de listas de demanda, elaboradas pelas prefeituras municipais. Além desse cadastro, as prefeituras podem participar por meio da doação de terrenos, isenção tributária, desburocratização nos processos de aprovação e flexibilização das normas urbanísticas para aumentar os índices de ocupação do solo. Portanto, nessa modalidade, estão envolvidos, basicamente, empresas, CAIXA e municípios.
Numa outra modalidade, com menor recurso disponível que a anterior, o agente promotor pode ser uma entidade sem fins lucrativos (cooperativas, associações de moradia etc.) que apresenta seu projeto à CAIXA que, por sua vez, efetua a análise e encaminha para o Ministério das Cidades, que faz a seleção dos projetos. Após aprovado, a entidade selecionada envia a lista de beneficiários a serem atendidos. Nessa modalidade, encontravam‐se as entidades ligadas às famílias
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moradoras em áreas rurais e os agentes principais eram: entidade sem fins lucrativos, CAIXA e Ministério das Cidades.
Em 2013, o PMCMV‐Brasil passou a ter outras linhas de financiamento, absorvendo municípios com menos de 50 mil habitantes e a questão da moradia rural e, portanto, abrange agora a quase totalidade dos programas habitacionais anteriores ao PMCMV. Assim, atualmente, há para as famílias com renda mensal até R$ 1.600,00, as seguintes linhas: 1. PMCMV Empresas: com recursos provenientes do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), voltado para capitais estaduais, regiões metropolitanas e municípios com população igual ou superior a 50 mil habitantes, com operacionalização “por oferta” via construtoras, como explicado acima. 2. PMCMV Entidades: com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), voltado para áreas urbanas de todo o território nacional, com operacionalização “por oferta” via entidades sem fins lucrativos. 3. PMCMV Oferta Pública: com recursos do Orçamento Geral da União (OGU) voltado para municípios com até 50 mil habitantes (que não eram atendidos pelo PMCMV – Fase 1), com operacionalização diferente dos anteriores, na medida em que ocorre por oferta pública de recursos a agentes financeiros privados autorizados pelo Ministério das Cidades (e não pela CAIXA). 4. Programa Nacional de Habitação Rural: voltado para áreas rurais de todo o território nacional. Divide‐se em três sublinhas: i) Para famílias com renda anual bruta de até R$ 15.000,00: com recursos do Orçamento Geral da União; ii) Para famílias com renda anual bruta de entre R$ 15.001,00 e R$ 30.000,00: com recursos do FGTS; iii) Para famílias com renda anual bruta de entre R$ 30.001,00 e R$ 60.000,00: com recursos do FGTS. Vale destacar que é a única modalidade do PMCMV que apresenta a linha de financiamento para reforma e ou ampliação de unidades habitacionais.
Já para a segunda faixa, destinadas às famílias com renda entre R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00, a operacionalização não se alterou desde 2009, embora os valores máximos de financiamento das unidades habitacionais tenham sido aumentados, devido à pressão política das próprias construtoras. O modelo operacional é o seguinte: “as
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construtoras ou incorporadoras apresentam projetos de empreendimentos à CAIXA, que realiza pré‐avaliação e autoriza o lançamento e a comercialização.” (Cardoso e Aragão, 2013: 39). Após a conclusão da análise, a construtora pode obter um Contrato de Financiamento à Produção ou apenas enquadrar seu empreendimento para ser comercializado dentro do programa. A comercialização é feita pelas construtoras ou pelos “feirões” da CAIXA e os consumidores podem obter uma carta de crédito dentro do PMCMV para financiarem a aquisição do imóvel. Para as famílias com renda até R$ 3.100,00, há a possibilidade de subvenção de até R$ 23.000,00, variando de acordo com a renda e com a localidade. Nessa faixa, portanto, os agentes se resumem às construtoras e à CAIXA.
Em relação às metas físicas do PMCMV, é possível notar uma grande alteração em relação aos números de unidades previstas em cada uma das faixas entre as Fase 1 e 2 do programa25. Em primeiro lugar, na Fase 1, evidencia‐se o direcionamento dos recursos para o segmento econômico do mercado imobiliário, destinando 60% do total do número de unidades habitacionais, ou seja, 600 mil unidades, para as faixas de renda que representam apenas 10% do déficit habitacional brasileiro26, ou seja para as famílias com renda entre R$ 1.395,00 e R$ 4.650,00. E, para a faixa de renda de até 3 SMs (ou até R$ 1.395,00), que concentra aproximadamente 90% do déficit, foram destinadas, 40% das unidades, ou seja, 400 mil unidades.
Em segundo lugar, reforça o argumento de que o programa foi, aos poucos, se acomodando e se voltando para as modalidades da habitação social strictu sensu – na Fase 2, a faixa até 3 SM passa a concentrar 67% do total das unidades previstas, ou seja, 1,2 milhão de unidades. Mesmo assim, não corresponde ainda à proporcionalidade do déficit por faixa de renda. A atuação dos agentes privados no PMCMV prepondera em todas as faixas, pois entre as diferentes modalidades da
25 Tais números encontram‐se compilados por Cardoso e Aragão (2013) e Brasil (2013). 26 O déficit habitacional brasileiro estimado em 2007 é de 6,273 milhões de domicílios, dos quais 83% estão localizados nas áreas urbanas. Desse total, 89,4% se refere à faixa da população com renda média familiar mensal de até três salários mínimos (SM), correspondendo a 4,616 milhões de domicílios; 6,5% na faixa entre três e cinco SM (333 mil); 4,1% na faixa acima de cinco SM (209 mil). Cf. Brasil, 2009.
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Faixa 1, na Fase 2 do PMCMV, apenas 60 mil unidades são destinadas às entidades sem fins lucrativos.
Apesar do déficit habitacional não ter sido uma referência para o cálculo das metas físicas, ele foi utilizado na distribuição dos recursos entre as diversas unidades da federação, de forma proporcional, ou seja, quanto maior o déficit do estado, maior a cota máxima de acesso aos recursos do respectivo estado. (Cardoso e Aragão, 2013) 3.2 A produção do “Minha Casa, Minha Vida” – Brasil e a
consolidação de um mercado de habitação O PMCMV‐Brasil veio legitimar e consolidar um “padrão
econômico” da habitação ‐ ou affordable housing, em inglês, que já vinha sendo esboçado desde o final dos anos 1990. Castro e Shimbo (2011) analisam a trajetória desse padrão, inicialmente proposto pelas empresas que atuavam com autofinanciamento e por cooperativas autofinanciadas na década de 1990, que foi, posteriormente, potencializado por grandes empresas (em grande parte, financeirizadas) com forte apoio estatal antes mesmo do PMCMV.
O padrão arquitetônico e urbanístico da habitação social de mercado que vem sendo implementado desde então pode ser resumido em três modalidades básicas: conjuntos de edifícios verticais (em grande parte, edifícios de até cinco pavimentos sem elevador); empreendimentos horizontais (casas térreas ou sobrepostas, em muitos casos, geminadas); e uma combinação das duas modalidades anteriores no mesmo terreno. Em grande parte, estão presentes os muros que circundam o empreendimento e prepondera a forma “condomínio” de gestão desses espaços.
A padronização dos produtos habitacionais aponta, por um lado, para processos de produção mais racionalizados e, em alguma medida, industrializados. Por outro, ela não significa necessariamente uma qualidade arquitetônica, urbanística e construtiva. Nesse sentido, é marcante a compacidade da área interna da unidade, a concentração de um alto número de unidades por empreendimento e a presença de áreas de lazer (mesmo que diminutas) conformando aquilo que diversos autores têm denominado como “condomínio clube”. Além
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disso, o mesmo padrão é repetido em diferentes regiões do país, independente das condições climáticas, culturais e morfológicas do local (Ferreira, 2012).
Além da baixa qualidade arquitetônica e urbanística, outra crítica frequente ao PMCMV‐ Brasil diz respeito aos efeitos territoriais de sua produção. Cardoso (2013) compila estudos recentes sobre essa questão em quatro regiões metropolitanas do Brasil (Rio de Janeiro, Belém, Fortaleza e Goiânia) que discutem a periferização dos empreendimentos do PMCMV e destacam a falta de articulação desses novos empreendimentos tanto com a política urbana municipal (os Planos Diretores) quanto com o plano local de habitação de interesse social.
Esse descolamento não se restringe apenas às políticas de desenvolvimento urbano, mas também a outros programas sociais regulados pelo próprio governo federal. Isso porque a seleção da demanda para a Faixa 1 do PMCMV‐Brasil fica a cargo das prefeituras locais. Os critérios para seleção dos beneficiários podem priorizar moradores de áreas de risco ou de assentamentos irregulares ou de outros locais que apresentam precariedades habitacionais, e até mesmo beneficiários de outros programas de transferência condicionada de renda (como, por exemplo, o Bolsa Família), mas não só. E é aqui que pode entrar a margem para um atendimento clientelista das prefeituras locais, pois o critério principal é a renda familiar.
Portanto, o PMCMV‐Brasil não procura constituir propriamente uma política de habitação, que estaria centrada numa lógica universal dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública – ou a “verdadeira política pública”, como lembra Dagnino (2002)27. Trata‐se, genericamente, de “um programa de crédito tanto ao consumidor quanto ao produtor”, como sintetiza Cardoso e Aragão (2013:40). Portanto, os parâmetros financeiros e a solvabilidade do
27 Dagnino (2002) problematiza as críticas em torno dos “encontros” entre sociedade civil e Estado que ressaltam, como um dos resultados desse encontro, a criação de políticas fragmentadas, setorializadas, compensatórias etc. – em contraponto ao que seria “a verdadeira política pública”. Para a autora, é necessário que se explicitem os pressupostos dessas críticas e se aprofunde na questão que está implícita nelas – modelos alternativos de formulação de políticas públicas – e que se remete ao âmbito mais amplo dos modelos de gestão do Estado.
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sistema importam muito mais do que o conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da cidade ‐ que requisitaria uma abordagem integrada entre política habitacional, política urbana, política fundiária e política social.
A partir do momento em que o paradigma da política habitacional passa a ser regido pela lógica privada – como Arretche (2002) já anunciava desde a década de 1990 –, o modelo de gestão empresarial cabe perfeitamente na operacionalização da própria política. Ambos, Estado e empresa, procuram rápidos resultados e a solvabilidade do sistema (ou dos negócios). Para o PMCMV‐Brasil, que se lançou com a meta total de se produzir 3,4 milhões de unidades habitacionais, é interessante que esse número seja atingido em curto prazo, o que só poderia ser viabilizado pela “eficiência” da iniciativa privada, segundo uma visão de mercado sobre a política.
O importante aqui é destacar que a habitação social transformou‐se, de fato, num mercado no Brasil, em termos de sua lógica de produção. Ou, em outras palavras, o mercado imobiliário já havia descoberto, antes do PMCMV‐Brasil, um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até cem mil dólares, destinadas para famílias que podem acessar os subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito imobiliário. 4. Considerações Finais
O comum a toda forma social de dominação é que ela se
configura no e pelo espaço, em estreita relação com a lógica da produção e da circulação. Esse processo de inscrição espacial, dos modos de produzir, consumir e, especialmente, habitar, é condição necessária para a configuração das relações sociais, suas possibilidades e restrições. Nesta operação de demarcação, ocupa um lugar privilegiado a infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e significado, que expõe claramente o mundo dos signos, desejos, possibilidades, frustrações, restrições expressas, oportunidades de inserção social em um momento determinado. Mas, no interior da infraestrutura urbana, é a moradia, sua localização e sua relação espacial com o centro urbano e
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com os centros de consumo, trabalho, lazer, etc., aquilo que permite apreciar de modo privilegiado a simbologia e ideologia urbana.
Consequentemente, quando se analisam programas de habitação, tem‐se a oportunidade de aprofundar a análise do impacto social, econômico e político dos mesmos, além de observar sua implementação, pertinência e seus resultados. No desenvolvimento deste artigo, oferecemos uma minuciosa descrição dos Programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, postos em marcha em ambos os países, na tentativa de explicar seus mecanismos e seus efeitos, não apenas habitacionais, mas também sociais.
A primeira questão em relação a esses programas, é que embora seus nomes sejam idênticos28, os conteúdos, as escalas, os agentes, as formas de produção e de regulamentação são totalmente distintos. Entretanto, os empreendimentos habitacionais produzidos e os espaços urbanos resultantes em ambos os programas são muito semelhantes. Trata‐se da produção de grandes assentamentos que conformam ora condomínios fechados, ora “bairros‐cidades”.
Uma segunda questão na qual podemos encontrar outra semelhança é o processo de segregação sócio‐espacial, que no caso de Córdoba se manifesta explicitamente, enquanto no Brasil, que tem linhas e modalidades diferenciadas, parece afetar especialmente a parcela de beneficiários com menores salários. Estudos recentes indicam justamente que os empreendimentos da Faixa 1, portanto das famílias mais pobres, encontram‐se localizados em áreas de expansão urbana, mais afastados dos centros do que os empreendimentos das Faixas 2 e 3, voltados para população com maior renda.
Entretanto, no Brasil, o programa é muito recente para se analisarem os efeitos sociais e territoriais advindos desse tipo de aglomeração urbana e de habitação. O caso argentino é emblemático e serve como referência sobre o que pode acontecer no Brasil, numa escala muito mais ampliada, em relação ao aprofundamento de práticas de exclusão e de constituição de territórios de precariedades, sejam elas habitacionais, urbanas e sociais. 28 E, neste aspecto, outro estudo seria necessário para verificar se o nome argentino inspirou o caso brasileiro, que pode ser uma possibilidade plausível em épocas de internacionalização de programas sociais, ou se foi apenas uma coincidência.
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Outra semelhança entre ambos os programas é sua baixa qualidade arquitetônica e urbanística. Os emergentes desequilíbrios territoriais gerados pelas intervenções por meio das políticas públicas impactam, de maneira imediata, sobre os percursos e os usos sociais do espaço. O deslocamento para as áreas suburbanas e escassamente equipadas tem como resultado uma experiência controversa entre a condição de classe e o status de cidadãos. A brecha aberta entre um status e outro, e as contradições entre eles, são um terreno igualmente fértil para a constituição de dois processos completamente opostos. O primeiro faz da contradição, e da consciência acerca dela, o lugar privilegiado para a constituição do político como resistência à dominação: as lutas políticas e sociais são gestadas precisamente na experiência que os indivíduos têm desta inconsistência. O segundo se edifica a partir das experiências de desprezo – dor, raiva ou indignação. Os processos de exclusão violam os pressupostos normativos da interação e da coesão e afetam de modo direto os sentimentos morais dos sujeitos (Honneth, 2009, p.263). Desse modo as formas estruturais de desprezo estão associadas aos sentimentos de injustiça.
No que diz respeito às diferenças, cabe destacar que, embora ambos os programas se apresentem formalmente como um único programa habitacional, no caso do Brasil, ele se estrutura operacionalmente em linhas ou modalidades distintas, de acordo com faixa de renda dos beneficiários, origem dos recursos e instituição proponente. Já em Córdoba há uma única modalidade de operação, que se constitui através de financiamentos provenientes sobretudo de crédito internacional, e em menor medida de fundos próprios do governo provincial. Ademais, esse último é implementado diretamente a partir do âmbito governamental, sendo que seu produto é a moradia já construída. No caso do PMCMV‐Brasil, de outro modo, trata‐se, genericamente, de “um programa de crédito tanto ao consumidor quanto ao produtor”29, com fundos públicos ou com fundos controlados pelo Sistema Financeiro da Habitação, todos de origem nacional –
29 Um programa de alcance nacional como o PMCVM‐Brasil, que trabalha desde a operação do financiamento, é o programa PROCREAR, implementado pelo Governo Federal.
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apesar da entrada de capital financeiro internacional nas grandes empresas construtoras.
Em ambos os programas, a produção da habitação está dentro de um processo de mercantilização mais amplo de políticas sociais. Nessa produção e reprodução intervêm – de maneiras por vezes solidárias, em outras competitivas ou conflitantes – o Estado e o capital privado. No caso brasileiro, houve a constituição de um mercado de habitação social, que embora requisite fundos públicos, está pautado por critérios de eficiência privada. Como apontou Oliveira (1998, p.13), para se construir “o pretenso mercado auto‐regulado, que dispensaria tudo o mais a não ser os próprios critérios da lucratividade”, é necessário “muito Estado, muitos recursos públicos”. Nesse sentido, houve uma mudança recente das relações do fundo público com os capitais particulares e com a reprodução da força de trabalho: o fundo público funciona como prerrogativa (“ex‐ante”) das condições de reprodução e não mais como “ex‐post”, típico do capitalismo concorrencial. Isso significa, ainda de acordo com Oliveira (1998, p.21), que a “per‐equação da formação da taxa de lucro passa pelo fundo público, o que o torna um componente estrutural insubstituível”. No caso do PMCMV‐Brasil, além dessa per‐equação, a decisão sobre as formas de regulamentação do fundo público passou também pelas empresas.
Para finalizar, e ir além das semelhanças e diferenças decorrentes dos programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ antes pontuadas, cabe ressaltar que tanto no Brasil como em Córdoba‐Argentina o déficit habitacional é muito elevado e afeta fortemente o segmento mais pobre da população. Daí a importância dos programas habitacionais, como espaços de constituição de direitos e formas de inclusão social. No entanto, a validade e a legitimidade dos mesmos são postas em xeque toda vez que, por meio deles, se procede a uma nova exclusão, isto é, quando suas formas de operacionalização aumentam a segregação sócio‐espacial já existente, e obstruem ou restringem o acesso e o uso da cidade como espaço comum e inclusivo.
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A tradução contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços públicos:
o caso do Córdoba, Argentina
Gerardo Avalle1 1. Introdução
O modo de inscrição das demandas populares nos espaços públicos é um fenômeno que adverte sobre as dinâmicas da inclusão/exclusão que assume cada sociedade. Particularmente, o modo como esses horizontes de expectativas são processados por dispositivos governamentais torna visíveis as tensões do presente.
Estas formas de nomeação, de construir e de impregnar os sentidos da política, estão longe de ser uma pretensão unívoca. Ao contrário, tanto espaço público, política, como Estado e governo são conceitos que, para além da institucionalidade que os acompanham, são objeto de permanentes disputas e tensões, uma disputa permanente de posições, onde alguns dominam e outros resistem, que representam as formas de dominação do presente e as relações de força que sedimentam.
Consequentemente, um olhar que se aproxime das linguagens que assumem as demandas populares, e de sua inscrição nos interstícios da política, implica necessariamente identificar as instâncias de tradução – institucionais – onde o potencial da resistência é transcrito nas ordens da administração pública. Isto não significa, de sobressalto, o desaparecimento do conflito; pelo contrário, de nossa perspectiva é o início do desacordo e da resistência a serem processados pelo sistema político. Nesse sentido, observar as linguagens com que as políticas públicas – e especialmente as sociais – interpelam e processam as
1 Pós‐graduado em Ciência Política (UCC), mestre em Sociologia (UNC), estudante de PhD em Política e Governo (UCC‐UCM). Professor de Sociologia e Metodologia na Universidade Católica de Córdoba, professor de pós‐graduação na Universidade Nacional de Córdoba. Pesquisador UCC em conflitos e lutas sociais. Membro da equipe de pesquisa El Llano em Llamas.
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expectativas populares permite compreender os dispositivos governamentais empregados sobre a população.
A gramática popular adverte sobre o avesso de uma política de (des)igualdade, e esta é a afirmação que desenvolveremos neste texto: a inscrição dos sujeitos nos espaços públicos e as demandas por maior igualdade enfrentam‐se com um risco permanente de desativação política e inclusão degradada na linguagem da cidadania.
A possibilidade de sustentar esse tipo de afirmações requer uma contextualização que marque, dentro da trajetória das políticas públicas, aquelas transformações que as fazem (radicalmente) diferentes de seus antecessores, apesar de manter linguagens idênticas. Neste sentido, a configuração do cenário político e social argentino tem registrado, em termos gerais, comportamentos singulares. Especificamente, nos referimos às modificações que se começaram a registrar em todos os parâmetros de relevância pública: Estado, pobreza, democracia, cidadania, direitos. Neste trabalho, decidimos tomar parte dessas vozes de demanda e impugnação, recuperando aqueles trechos de entrevistas e observações de campo realizadas durante vários anos na província de Córdoba, Argentina2, que nos permitem compreender estas transformações e continuidades que o relato popular adverte. Os discursos mostram, neste sentido, uma continuidade quase estrutural em relação ao modo de pensar o político e o público.
2 O corpus dos dados é constituído a partir do trabalho em diferentes projetos de investigação: ʺTerritórios em disputa. Um estudo sobre o conflitos territoriais urbanos e rurais na Província de Córdoba ʺ. Dir. Dr. M. A. Ciuffolini. Universidad Nacional de Córdoba e Universidad Católica de Córdoba. MynCyT; ʺApropriação/Expropriação de territorialidades sociais. Análise comparativa de processos de erradicação/ relocalização de grupos sociais empobrecidos em cidades argentinas”. Dir. Dr. Ana Nuñez, M. A. Ciuffolini., P. Scarponetti. Universidad Nacional de Mar del Plata. FONCYT; ʺA construção política da (des)igualdade: pobreza e sexualidade nas políticas públicas da província de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Co‐Dir.: JM Vaggione, Universidad Católica de Córdoba, MinCyT; ʺRelocalização territorial, conflitividade social e processos de subjetividade políticaʺ. Dir.: Dr. P. Scarponetti, Co‐Dir. Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Nacional de Córdoba, ʺO chão em chamas. Movimentos e lutas sociais urbanas e camponesas na Córdoba de hojeʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba, Agência Córdoba Ciência; ʺCulturas políticas em setores populares de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba.
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O presente trabalho está organizado em três seções: a primeira contextualiza, a partir da percepção dos setores populares, o caso argentino; o segundo adverte sobre a emergência de novos atores coletivos no marco da crise econômica de 2001; e, finalmente, a terceira desenvolve a trajetória dos dispositivos estatais e das organizações populares, abordadas nas seções anteriores, mas desta vez no território da província de Córdoba. Córdoba é um estado localizado geograficamente no centro da Argentina, com uma população de mais de 3 milhões de habitantes, sendo a segunda província mais populosa, depois de Buenos Aires. As relações com a administração central sempre foram tensas, independentemente da orientação política dos respectivos governos. Durante a década de 90, a província foi governada por diferentes frações do centenário partido Radical (UCR), enquanto a administração central era ocupada pelo peronismo (PJ). No final da década, o governo local passa para as mãos do PJ, e o governo nacional é liderado por uma mesma orientação política. No entanto, os vínculos nunca foram pacíficos, e muitas vezes extrapolaram as vias institucionais de resolução. 2. Argentina: a percepção popular de um modelo excludente
Argentina começa um processo neoliberalizador a partir da
instauração do governo estabelecido pela ditadura militar em 1976. Isto se aprofunda sob as bases do conhecido ʺConsenso de Washingtonʺ durante a presidência de Carlos Menem (1989‐1999). Durante esta década, os indicadores sociais (pobreza, desemprego, miséria, saúde, educação, etc.) se viram fortemente afetados.
A dinâmica da implementação de reformas estruturais foi dramática e poucas vezes consensual. Isso supôs importantes deslocamentos dos atores coletivos envolvidos nas tomadas de decisões, o realinhamento no campo popular, e a emergência de novos atores organizados em torno de demandas reivindicativas básicas como o acesso a direitos sociais, coberturas assistenciais e contenção diante do crescente desemprego. Esta situação acabou implodindo nos dramáticos acontecimentos que ocorreram no final de 2001 e princípio de 2002, reflexo de uma crise política, econômica e social.
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A crise de 2001 reafirmou a dinâmica do capitalismo local: não existem transições ordenadas sem rupturas e permanentes disputas entre os distintos segmentos do capital. Ao contrário do que ocorre no país vizinho, Brasil, a capital nacional argentina sempre foi dependente da política estatal e da dinâmica do capital internacionalizado. Os mercados locais (agrícola, industrial e financeiro) sempre se mostraram dóceis diante do capital internacional, incapazes de ser hegemônicos dentro de um projeto de acumulação, o que implicou sucessivas crises e transições caóticas entre cada modelo econômico (Aspiazu e Basualdo, 2012; Sidicaro, 2006). Pós‐2001 o Estado aparece como o ʺmediadorʺ que atualmente confronta com os principais grupos concentrados de poder; e trata de consolidar um bloco hegemônico que gire em torno de um capital nacional produtivo, industrialização da matéria‐prima e estímulo ao consumo, além de promover o capital financeiro e a dinâmica extrativa dos recursos naturais, situação que guarda certa semelhança com o restante do país (Seoane, 2012; CEPAL, 2011; Katz, 2010; Gudynas, 2009).
Esta configuração do campo de força também se traduziu em uma reconfiguração do discurso político e nas próprias práticas da estatalidade (Svampa, 2005). Parafraseando Dagnino (2006), o que se observa é um processo de ʺconfluência perversaʺ entre um projeto político neoliberal e outro mais democratizante e participativo. E o que sucede é que, por detrás de um discurso de inclusão que começa a aparecer fortemente a partir do ano 2003, se observam trajetórias dissimiles no que se refere à implementação de políticas públicas (sociais, trabalhistas, de infraestrutura, etc.) em nível nacional e, especialmente, nas administrações provinciais. Nesse contexto, indagamos, a partir do testemunho fornecido pelos setores populares, como é percebida esta dinâmica do sistema político, e as defasagens que aparecem entre o discurso e a prática concreta empreendida pela estatalidade.
A situação que se expressa nos relatos sobre a experiência local não se restringe a sua faceta econômica, o legado da ditadura não foi apenas de modelos econômicos excludentes e restritivos (ʺpara poucosʺ), mas também uma tragédia (ʺdestruídaʺ) para toda uma geração de militantes.
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ʺNós que temos filhos queremos deixar algo a eles, já que nossa geração, a famosa geração dos setenta, foi destruída por esse processo, e aqueles que restaram são a escória, e por isso temos os líderes que temosʺ (bairro Coordenador assembleias, Córdoba, 2002). ʺCom esse eufemismo se propunha privatizar a saúde, privatizar ferrovias, privatizar (‐) era a receita concreta do fim do Estado de bem‐estar, de um modelo, que com seus prós e seus contras, vínhamos construindo na Argentinaʺ (Sindicato, CTA 01, Córdoba, 2005). Esse processo neoliberal é claramente identificado como uma
consequência da ditadura militar, e nesse ato constitutivo é que se inicia uma mudança de paradigma, e as gerações seguintes são aqueles que devem atravessar as consequências estruturais da mudança de políticas e da primazia do mercado.
ʺMas nós lutamos contra um modelo que esteve vigente na Argentina desde a ditadura militar em diante que, bom, foi o modelo que nos deixou como estamos, digamos, feito merdas. E, bem, lutamos basicamente contra isso e contra qualquer um que represente esse modeloʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 06, Córdoba, 2005). ʺnos anos noventa foi Menem, em 2001 De la Rua, hoje sei lá quem, aqui na Província De la Sota... Entende o que quero dizer? Gente que está ligada ao liberalismo e que... continua construindo um país para poucos e não para todosʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 05, Córdoba, 2005). Por isso quando recuperamos a tese da ʺconfluência perversaʺ de
projetos políticos (Dagnino, 2006) e afirmamos que no interior de cada relação de força dominante persistem as consequências e tensões de cada fração de poder, não fazemos mais que tentar compreender a aparente contradição entre a narrativa de ʺinclusãoʺ que a política pós‐neoliberal expressa, e a percepção social de certa continuidade da situação de exclusão e desintegração social no presente.
ʺfalar de desocupação na Argentina é hoje, depois de todo o processo de privatizações, falar de um problema estrutural que não vai se resolver de um dia para outro ou com discursos bonitos. Crianças de
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manhã vão e tomam café da manhã na escola, almoçam no refeitório da escola, a tarde tomam um copo de leite e a noite passam pelo refeitório de uma organização para pegar a comida. Isso já faz oito anos que vem acontecendo, que perspectiva pode ter uma criança que cresceu assim?ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005).
ʺNosso salário é o resultado de todas as medidas de ajuste que foram aplicadas na última década, onde, obviamente, reduziram nosso poder aquisitivo e outros setores têm feito horrores e lucrado com issoʺ (União, ATE 01, Córdoba, 2006). O que ocorreu foi que a crise de um projeto político (econômico,
social, cultural), que de certa forma se expressou nos acontecimentos de 2001, não realizou uma ruptura total com a institucionalidade e os modos de participação política instituídos durante as décadas anteriores. Neste sentido, durante os anos 90 a construção democrática e de cidadania representou, usando as palavras de Dagnino (2006), a consolidação de um ʺprojeto neoliberalʺ que conseguiu esconder, temporariamente, as tensões entre Estado e mercado.
Isto supôs a privatização do espaço público, sua fragmentação, a retração do Estado e a concepção de cidadão consumidor. Este marco de ação, de práticas culturais, de formas institucionais, não desapareceu, em última instância começou a se reconfigurar. A tensão imanente à constituição dos dois projetos, que de certo modo confluem contemporaneamente (e perversamente) para uma ʺformaʺ de relação gerencial entre Estado e sociedade. Os conteúdos dos projetos, entretanto, não confluem, o conflito entre eles se torna mais velado.
O relato que segue abaixo expressa essa tensão entre uma prática política que tenta dissolver um modo de conceber o público e político, por um lado, e a posição subjetiva que orienta os indivíduos dentro do sistema social.
ʺAs Assembleias, tratando de construir uma questão nova que busque um senso de justiça através de uma forte participação política, se deparam com limites muito concretos, nenhum dos assembleístas tem proposto colocar‐se como cidadão, como contribuinte, do sistema econômico, político e financeiro onde estamos... as Assembleias não têm proposto uma rebelião fiscal... temos que incluir em nossos temas
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de deliberação... assuntos que tenham relação com a gestão pública do comum... das políticas aplicadas em nível municipal, estadual e nacional.ʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002). Os relatos dos entrevistados deslizam dentro de um conjunto de
argumentos que vão advertindo sobre o sentir da população em cada contexto. O final dos anos 90 expressam um sentimento de forte insatisfação da população com relação à política e suas instituições, produto de décadas de individualismo e de cidadania mercantilizada e ʺcontribuinteʺ; contudo, é também neste contexto que começam a se pronunciar fortes discursos de impugnação institucional e emergência de novas formas de organização alternativas aos canais habituais de participação. Como se observa no relato dos entrevistados, o olhar sobre o Estado vai se deslocando a partir de uma rejeição e impugnação total, ampliada logo após a crise de 2001 no caso argentino, até se converter no centro das demandas dos tempos atuais.
ʺDesde o início, sentimos a necessidade de nos reunir para discutir questões que estavam pesando sobre nossas vidas... pessoas que buscam o acordo entre seus pares, participando das Assembleias... as Assembleias são formadas pela porção mais próxima do povoado, por cada vizinho ʺ(Assembleia Bairro Alto Alberdi, D3). ʺtodo esforço que é feito a partir da assembleia é construir um poder alternativo que discuta plenamente sua posição diante do Estadoʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002). ʺDesconhecemos a autoridade municipal, desconhecemos todo tipo de legislação que tenta impedir nosso desenvolvimento... desconhecemos esses instrumentos como parte de uma prática que... tenta nos esmagar como povoʺ (Assembleia Bairros San Martin e Paraísos, Córdoba, 2002). ʺnem os partidos políticos nem o Estado têm sabido proteger este direito básico de qualquer sociedade que é o de se alimentar e se reproduzir biologicamente... a sociedade já não acredita nas instituições, porque elas já não sustentam normas e valores... As pessoas não acreditam no Estado... e é lógico, é o corretoʺ (Assembleia Seccional 14, Córdoba, 2002).
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3. Novas formas de organização, novos discursos, novos projetos Este cenário de antipolítica, contra‐hegemonia ou democracia
direta que foi gerado no final do século teve impactos na estrutura institucional, nos discursos públicos, e nas formas organizativas que assumiram os setores populares. Os relatos mencionados acima se referem, principalmente, a dois tipos organizativos diferentes. Um muito próprio do cenário de crise, que foram as ʺassembleias de bairroʺ, cuja duração foi curta no tempo, mas que foi o espaço que concentrou um amplo conjunto da população que não encontrava, nas vias tradicionais de participação, um espaço de canalização de suas demandas. A dinâmica das assembleias consistiu em recriar os espaços de deliberação e ação coletiva.
Por sua vez, os movimentos piqueteiros são organizações que se gestaram como consequência do desemprego massivo durante a década anterior, que acabou expulsando, em 2002, mais de 25% da população do mundo do trabalho. Os ʺpiqueteirosʺ se caracterizaram por implementar medidas de ação direta, entre elas os piquetes ou bloqueios, como sua principal prática para forçar uma resposta concreta do Estado.
Inevitavelmente, este contexto implicou uma mudança nos modos de ação, intervenção e operação da estatalidade. O final do século veio acompanhado, por toda a região, de um ar renovador. Linguagem que inclusive permeou o discurso dos organismos financeiros internacionais, incorporando uma perspectiva mais ʺsocialʺ no tratamento das problemáticas que surgiam como consequência da defesa tenaz do modelo de mercado. Assim, as estruturas institucionais, para além de toda possível resistência à mudança, se viram empurradas a um novo cenário político. O Estado reaparece como responsável pelas condições de vida de cada indivíduo e pelo destino coletivo da população.
Neste contexto, o que parece interessante é investigar as ausências e continuidades que contêm esses discursos, enquanto remanescentes de antigos projetos em coexistência com os novos. Isto porque cada lógica da estatalidade condensa a expressão das relações de força de cada período (Poulantzas, 2001; Foucault, 2006). E neste
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sentido, que não sejam hegemônicas não implica que tenham desaparecido. De modo que é provável que o ranço mercantil esteja sempre presente, e à espreita a cada crise, apelando aos já conhecidos argumentos que colocaram em xeque a estrutura de proteção social de meados do século passado.
Os relatos que aparecem a seguir falam sobre recuperar o papel do Estado em relação aos problemas sociais, à regulação da economia e à distribuição de recursos. Mas frente a este papel ativo que se lhe atribuem, novamente se recuperam as velhas críticas aos estados sócio‐interventores, como a de serem funcionais à lógica da acumulação capitalista, ou de atuar como representantes dos interesses empresariais frente às demandas trabalhistas.
ʺAcho que o Estado é quem deve centralizar o uso do poder... indispensável, o Estado tem coisas das quais ele pode escapar, ele é responsável pela saúde, pela educação, pela segurança, por fazer justiça, são coisas tão prioritárias o que tudo isso traz à dignidade e ao desenvolvimento do homem, que o único responsável é o Estadoʺ (ONGs 01 Carlos Paz, Córdoba, 2000). ʺo que... o imperialismo busca e... e o governo representando o imperialismo, é poder continuar mantendo esse sistema de acumulação, onde ganham uns poucos, quer dizer, quem lucra na América Latina, na África, na Ásia... são os grandes cartéis, os grandes monopóliosʺ (Movimento Piqueteiro, Córdoba, CTD‐AV 04, 2005). O modelo emergente se afirmou, em primeiro lugar,
recuperando a figura do Estado como ator político chave do qual emanam as diretrizes da política e da gestão pública (Mecle, 2010). Isso implicou, necessariamente, um redimensionamento de toda a estrutura de proteção social e, especialmente os mecanismos de regulação/ assistência aos setores mais desprotegidos (não‐empregáveis, desempregados, menores, mulheres, idosos, etc.).
O paradigma emergente requereu, em primeiro lugar, incorporar na agenda pública a problemática da desigualdade como um problema social. Assim, o parâmetro da política social alteraria significativamente seu lugar de enunciação. A assistência continuaria
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chamando‐se assistência, mas sua sustentação deixaria de ser – pelo menos de modo direto – a compensação de uma carência, o pobre vulnerável. Agora, a linguagem começaria a circular dentro do campo da ʺinclusãoʺ3, e desse modo, o apelo dos ʺdireitos humanosʺ se converteria numa caixa de ressonância para incorporar o direito à saúde, educação, cultura, trabalho, entre outros, como argumento de sustentação da penetração estatal.
ʺSe o governo implementa programas... sei lá, o Hambre Más Urgente, o Manos a La Obra, não é que faça isso porque seja BOM, mas o faz em função de uma pressão social que existe, que coloca diante de seu nariz este problema da comida... bem... este problema... e o do trabalhoʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005). Dois exemplos são ilustrativos neste caso, o Plano Jefes y Jefas de
Hogar Desocupados criado em 2002 na Argentina tem nos seus fundamentos uma linguagem marcada pelas noções de ʺinclusãoʺ, ʺdireitos humanosʺ e ʺcidadaniaʺ, começando a reconhecer situações estruturais de vida que antes eram entendidas como temporárias e isoladas, quer seja a pobreza ou o desemprego (Avalle, De la Vega e Ferrero, 2009). Outro exemplo é o Plano Jóvenes Más y Mejor Trabajo, de 2003, quando o Estado reconhece a existência de problemas estruturais na geração de emprego e inclusão no mercado de trabalho de grande parte da população, modificando a estratégia de contenção e assistência que eram pressupostos dos seguros de desemprego ou dos planos sociais criados em meados dos anos 90 como o ʺPlan Trabajarʺ (Avalle e Brandan, 2010). 4. Córdoba, demandas e conflitos no território: participação, terra e trabalho.
Córdoba é uma das maiores províncias do interior da
Argentina. Os níveis de pobreza e desocupação tiveram níveis semelhantes ou superiores à média nacional durante as últimas
3 Ver Informe de Políticas Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social (2007).
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décadas4. O problema da habitação, ou déficit habitacional5, é um fenômeno crônico que se viu agravado em diferentes momentos pela falta de políticas habitacionais para os setores populares, pela crescente pobreza e desemprego na década de 90 e, atualmente, pela revalorização e criação de valor sobre territórios localizados nos assentamentos urbanos. Segundo os dados disponíveis, atualmente a Província de Córdoba apresenta um déficit significativo em matéria de habitação, todavia ainda mais significativo é o número de domicílios que registram propriedade irregular da terra e/ou da moradia que habitam.
4 Durante os anos 70, o desemprego foi registrado em aproximadamente 3,8% da população economicamente ativa. Na década seguinte sobe a 5,8%. Ambos os valores muito inferiores aos obtidos durante a década neoliberal, onde o índice alcançou os 11,6%, com um pico 18,4% em maio de 1995. A partir do ano 1998, este indicador começa uma escalada que supera os valores históricos alcançados em 2002, chegando a 21,5% da população economicamente ativa. A partir desse momento se registra um descenso insistente situando‐se, no quarto trimestre de 2008, no nível mais baixo desde outubro de 1992 e maio de 1989, chegando a 7,3%. No primeiro semestre de 2009 volta a se notar um incremento neste indicador, situando‐se em 8,6%, encerrando com uma média anual de 8,68% da população desocupada. No entanto, os níveis de desocupação relativamente ʺbaixosʺ das primeiras duas décadas não seriam acompanhados da mesma forma pelos índices de pobreza. Durante o ano de 1989 a população em situação de pobreza ascendia a 29,1%, e a população indigente superava a porção desocupada da população economicamente ativa. Em 1990, o comportamento desses indicadores é ainda mais claro, enquanto se registra uma ligeira queda da desocupação, os níveis de pobreza e indigência marcam um pico de 44,9% e 14,5%, respectivamente. Em 1991, uma ligeira queda da desocupação é acompanhada por uma queda em ambos os índices. Os efeitos regionais que gerou a crise mexicana de 1995 impulsionaram novamente o crescimento da desocupação e da pobreza. No entanto, esta última não perderá seu impulso ascendente, alcançando os 57,5% em outubro de 2002, superando os níveis de 1989. No que se refere aos níveis de desemprego, a província de Córdoba é um das que apresenta maior volatilidade. Com uma tendência de se aproximar ou superar a média nacional, particularmente nos anos de 1989, 1997, 2002 e 2007‐2009. Quanto aos níveis de pobreza, estes se mostram semelhante à média nacional, superando‐a nos momentos de crise local ou nacional.
5 Na Argentina, a média de gastos sociais com habitação para a década de 90 não chega a superar 1,7% do PIB, inclusive há a evidência de um ligeiro aumento nos cinco anos a partir de 2000 (CEPAL, 2009). Nas políticas habitacionais, especificamente, com a abertura democrática se alterava o índice de 0,7% do PIB, decaindo ao longo da década de 90 para 0,4% do PIB (Rodriguez e Taborda, 2009).
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Considerando‐se de maneira conjunta a situação de aglomeração crítica e as condições deficitárias de moradia, a percentagem de domicílios é de 13%, enquanto os problemas de propriedade afeta a 35% dos domicílios na província. Disso resulta que quase a metade dos domicílios da província manifesta algum problema habitacional. Um levantamento comparativo de preços aponta que o valor dos terrenos dentro do Anel Viário da cidade de Córdoba subiu, em média – entre novembro de 2007 e fevereiro de 2011 – cerca de 50 por cento, ou seja, 10 por cento ao ano. Ainda assim, existem áreas em que o aumento foi superior a 70 por cento e, em alguns casos específicos, cem por cento6.
O comportamento que essas variáveis descrevem sobre a situação habitacional tem sido uma constante nos últimos 20 anos, dando lugar a distintas reações e demandas por parte dos setores populares. Somando‐se à crise econômica do final do século, este contexto adquiriu uma dimensão dramática, que resultou em uma confluência de demandas por trabalho, habitação e alimentação; e políticas públicas tendentes a neutralizar o problema, mas com uma forte dinâmica segregacionista e revalorização de terras centrais.
ʺporque há muitas casas que, por si só, nos deixam meio retirados porque somos ascendentes de favela (procedentes de favela), e não havia espaço mais perto do centro para construir casas. E outra, acho que o governador, ele não quer as favelas perto do centro, mas longe dali, porque eles já sabem a forma de viver das favelas, que roubam, que são sujos, que não são todos iguais, mas por isso também estamos meio retirados. Ainda que tenha muito espaço perto da usina, mas isso é para o país, traz mais dinheiro, a favela nãoʺ (Assentamento Relocalizado, Bairro A. Cabildo 09, Córdoba, 2008). No entanto, a trajetória dessa problemática teve
comportamentos diferentes ao longo do tempo. A organização popular em torno da habitação traduziu as demandas e expectativas sociais de ʺcasa própriaʺ construindo um horizonte de mobilidade social e acesso 6Realizado pelo jornal La Voz del Interior e publicado em fevereiro de 2013 http://www.lavoz.com.ar/cordoba/tierra‐cada‐vez‐mas‐cara‐escasa [Acessado em: 25/05/2013]
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a direitos ʺvioladosʺ. O problema da moradia provocou, em finais dos anos 80 em Córdoba, a multiplicação de organizações populares que se formaram em torno da gestão das necessidades básicas (alimentação, vestimenta, água, luz, etc.). Isto implicou uma crescente organização territorial para resolver, de modo comunitário, os problemas cotidianos. Ao mesmo tempo, um consistente posicionamento no espaço público como atores com grande capacidade de mobilização e controle territorial.
ʺAqui na Vila, por exemplo, há 10 anos não tínhamos água, então as pessoas eram uma coisa assim que lutavam todo santo dia e se organizavam em torno da água, chegou um momento em que a favela estava sitiada, porque não havia água, então se faziam bloqueios por todos os lugares em que parecia bom fazê‐lo, mas eram todos os vizinhos, não era uma organização, uma coisa real, uma necessidade básica que não tínhamos e, bom, se organizaram e assim conseguiram ter água potávelʺ (Movimento Piqueteiro, Unidhos 01, 2005). Neste contexto é que ganham forças as demandas sociais por
ʺacesso à cidadeʺ (Ciuffolini, 2007). Um conceito que engloba o direito à terra, moradia, saúde, educação e serviços básicos. Simultaneamente, diante da ameaça que esta demanda representava para a estabilidade dos governos é que começam a se ativar diferentes dispositivos de regulação. Neste marco surge, no início dos anos 90, em Córdoba, o que se denominou “Mesa de Concertación de Organizaciones de Baseʺ, um espaço institucional, com financiamento público, que supõe a gestão colegiada da política de habitação e infraestrutura social entre os setores populares organizados e o governo (Avalle e Ibanez, 2011).
Na seção anterior mencionamos que os dois atores protagonistas de finais do século foram as assembleias de bairros e os movimentos piqueteiros. Os dez anos que o antecederam tiveram como principais referências as organizações de bairro e de base territorial dos setores populares cordobeses. Organizações que se constituíam em torno da gestão de necessidades básicas como alimentação, saúde, moradia, foram articulando‐se entre si e conseguiram formar duas frentes organizadas de bairros que mobilizaram mais de 100 bairros da cidade. Eles são a Unión de Organizaciones de Base (UOB) e o Movimiento
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de Organizaciones de Base (MOB), que, em seguida, se integraram à já mencionada “Mesa de Concertaciónʺ.
ʺMe dediquei muito ao que chamamos de levar refeitórios e... era muito trabalho, sabe, e ainda mais na época de Angeloz, de Alfonsín (década de 80) foi o período mais forte, onde eu comecei a fazer o trabalho, porque eu via muitas das necessidades do povo, e eu me somei, eu... me juntei, com um bairro de Saldán e fui a Cáritas, de Saldán trabalhei em Cáritas por um ano. Então aí formamos uma inter‐bairro, assim se chamava, uma... era um integrado de todos os bairros, onde este... trazíamos as necessidades do bairro e víamos concretamente o que podíamos fazer pelos bairros (...) Fazíamos atividades (...) vendíamos empanadas, todas essas coisas, até que vimos a possibilidade de comprar sacos de farinha, açúcar, pão, e colaborar com o refeitório” (Organizações Territoriais, MOB 03, Córdoba, 2005). ʺDesde o início de 1992, tinha sido, digamos, por um lado a unidade... e, por outro lado, o acesso à habitação, acesso à terra e à moradia, digamos que esta foi a luta mais forte que teve a União. Quer dizer, era o que ela tinha de forte (‐) E não deixou de discutir a questão da educação, da saúde e do trabalho, que em diferentes... etapas conseguiu desenvolver, que, digamos, de alguma forma a União discutiu profundamente, mas não resolveu esse assuntoʺ (Organizações Territoriais, UOB 01, Córdoba, 2005). Em meados dessa mesma décadas se configura um cenário
fortemente adverso para o protesto social. O Estado provincial reafirmaria sua face repressiva e concentraria novamente o poder de decisão com respeito à política pública. Em um contexto de crise econômica e fiscal significativa, com crescentes níveis de desemprego e pobreza, a gestão do conflito abandona a linguagem do diálogo e da ʺconcertaciónʺ. Neste marco se empregam numerosas políticas de contenção que buscariam frear a conflitividade a partir de uma proliferação de recursos públicos destinados a subsídios de desemprego, planos alimentares, pensões, etc., juntamente com uma permanente prática de desqualificação pública das mobilizações e do assédio a seus dirigentes com o objetivo de cooptá‐los.
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Se essas tentativas não alcançavam os resultados esperados, a repressão direta assumia o protagonismo. O problema que se avizinhava era a confluência de demandas e reivindicações sociais nos espaços públicos. Os relatos sobre este caso mostram essas confluências, quando organizações de bairro, trabalhadores desocupados, sindicatos, entre outros, começam a delinear um inimigo comum.
Dois processos, embora aparentemente separados, encontram uma linguagem comum para construir seu projeto de futuro. Assim, a demanda por trabalho e por moradia contém uma linguagem coletiva que condensa desejos e expectativas de amplos setores da sociedade que pretendem ser parte de ʺprojetos políticosʺ que os contenham. No entanto, a tradução dessas demandas resultou em um processo de permanente fragmentação e despolitização dos atores coletivos.
“É como se o Estado adotasse uma estratégia abrangente para destruir o movimento piqueteiro... (‐) Sim, alguns se apressaram deste lado para dizer ʺOs bloqueios não vão mais acontecerʺ. Também não é assim, (...) na realidade o Estado tem chamado nossa luta de doutrina, e por isso nos reprime de diferentes maneiras, nós também temos que fazer doutrinas, mas... isso não significa desacreditar das melhores ferramentas de luta que nos últimos anos o povo tem gestado e que não apenas estão sendo utilizadas pelo... têm sido utilizadas pelo movimento piqueteiro, mas também pelos trabalhadores ocupados, pelos docentes, vimos isso aqui em Córdoba, cheio de piquetes e bloqueios” (Organização Piqueteira, Córdoba , CTD‐AV 08, 2005). Como consequência disso, a política de impugnação se
converteu em uma política de gestão, com a consequente despolitização dos espaços coletivos de base. O dispositivo de governo agiu, desse modo, traduzindo a queixa popular na gestão mesma das decisões públicas, reduzindo o potencial de conflito. A administração se converteu em uma imposição para os setores organizados, subtraindo espaço para o debate político. Desativada a ameaça mediante a desorganização, um segundo processo consistiu na extinção do espaço político.
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ʺquando entrou um governo (provincial) que foi comprando toda a liderança, sabe? (...) comprando líderes fortes, os líderes que tinham... os que tinham força de luta, e bem, foi corrompendo eles (...), porque se você notar, hoje não temos uma mobilização na ruaʺ (Organização Territorial, Córdoba, MOB 03, 2005). Os relatos que se seguem narram o processo de desativação
que sofreram as organizações de base no final dos anos 90, sob o mandato do governo peronista de De la Sota na província. Estas organizações experimentam, em um curto espaço de tempo, a perda de influência nos espaços institucionais, a perda de recursos, que são destinados para financiamento de novas obras de infraestrutura social que não conseguiriam nem mesmo se capitalizar, e o rompimento de solidariedades dentro de suas próprias bases.
ʺEu tenho um problema com a minha cooperativa, nós temos um plano de habitação e, depois, compramos outras parcelas de terra e entramos nos novos planos, em novos bairros, então o governo fez a estrutura e depois saiu, politicamente, vendendo isso, dizendo que eram os novos bairros que ele dava, sendo que a terra é nossa. Então, temos duas coisas, as pessoas que vivem em um novo plano de habitação dizem, ‘a minha casa quem me deu foi o governo’, mas nós temos uma outra parte que não vai receber a escritura do governo, quem vai receber a escritura é a cooperativa, porque quem tem a (...) a propriedade é a cooperativa. Então, até isso os rachou, os rachou como organização, porque nós, muitos e muitos anos de luta, 5 anos de luta para conseguir terra para um novo plano de habitação, quando ele entra (em 1999) é feito um acordo político dentro da nossa cooperativa com eles, feito um pacto político onde se doavam quarenta lotes desde que o governo desse a estrutura. E nos enrolou justo aí, deu escola, iluminação pública para nós, deu asfalto, deu tudo, mas foi quando ficamos entregues, o governo dizendo que era um novo bairro, estrutura de bairro novo, e acreditávamos que esse novo plano de habitação era o novo Plano De La Sotaʺ (Organização Territorial, Córdoba, MOB 04, 2005).
ʺO que vemos é que parte do Estado está sempre tentando nos institucionalizar... como por exemplo... eles te dão esse subsídio para o copo de leite... a partir de agora se chama Centro Infantil e centro de
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cuidado infantil... isso... e te dão a vaga quando eles querem, e te dizem que tipo de filhos você tem que ter e com o que (...) você tem que trabalhar... as pessoas são uma espécie de gestores do Estado... (risos) quando eles não ditam o lugar, não colocam o esforço, não organizam as pessoas... colocam o dinheiro, que aliás não é a quantidade de dinheiro que eles têm que colocar ... mas você trabalha de acordo com os critérios deles... tantas pessoas... tantos meninos aqui... tantos meninos aqui...ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 01 Córdoba, 2005). Uma vez desativada a capacidade de mobilização por meio da
cooptação e ruptura das organizações de base, a demanda por habitação era totalmente desarticulada. A necessidade não desaparecia, mas já não havia organização nem articulação popular conjunta que a sustentasse no espaço público. A ausência de conflito permitia, assim, a resolução de um problema gestado diretamente a partir das instâncias institucionais.
Neste marco aparece um conjunto de políticas cuja tendência seria a de neutralizar a demanda central: o emprego, a alimentação e o teto. Em nível nacional são implementados em meados de 2002 o Plano Jefas y Jefes de Hogar Desocupados7; em nível local, o mega‐plano de habitação ʺMi Casa, Mi Vidaʺ8, ambos financiados pelo BID. O primeiro exigiu uma reincorporação do beneficiário à disciplina do trabalho: prestação de serviços em órgãos públicos, controle de saúde e reinserção no sistema educacional. Em suma, uma regulação sistemática do indivíduo desempregado. O segundo9, o plano de habitação, foi implementado de maneira vertiginosa e arbitrária, através da criação de bairros populares que tinham duas características fundamentais: situar‐se nas periferias da cidade, e contar com a presença de todos os equipamentos do Estado (polícia, ministérios, escolas, refeitórios). Isto se traduziu em uma política diretamente destinada à regulação do espaço e ao deslocamento da população. No
7 Programa público que envolveu a transferência de dinheiro para os beneficiários e, em troca, a remuneração por horas de controles de trabalho, saúde e educação.
8 Programa habitacional destinado a setores ʺvulneráveisʺ e ʺrisco ambientalʺ que envolvem a transferência de assentamentos irregulares e à prestação de uma casa de família.
9 Este plano é discutido no artigo de Shimbo e Ciuffolini presente neste livro.
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entanto, isso não implicou ou deteve o crescente problema habitacional, mas exatamente o contrário10.
A política intensiva de revalorização territorial promoveu a expulsão de populações de seus locais de residência sem dar‐lhes um novo destino, levando ao ressurgimento das ocupações de terra que aconteciam há 15 anos atrás.
ʺE é assim como, sabe quando dizem ʹDeus cria, eles se juntam e o vento os amontoaʺ, e bom, nos amontoou neste caso aqui ... e eu, isso é verdade, eu me senti excluído de um monte de... do sistema... nos chutava para fora, não entrávamos nem na classe média, nem na média‐baixa, nem em nenhuma classe, não existíamos e prontoʺ (Ocupação de Terra 04, Icho Cruz, Córdoba, 2012). ʺE sempre disse a meu filho: ʹOlha, temos a casa porque ganhamos ela com o nosso sacrifício, papai, mamãe, lutou, você também lutou. Resistimos, todos os dias’. E quando chegam famílias digo a elas ʹesta é a minha casa, tanto lutei que vim para cá. E é assim. E aí você tem sua casa, tem o orgulho de dizer ‘moro lá’ʺ (Ocupação de Terra, Córdoba, 2012). ʺA questão da habitação sempre representava para nós um problema porque não podíamos... muitas vezes, por exemplo no ano passado, quando estávamos alugando, que foi o ano retrasado, chegou um momento em que em alguns meses tínhamos que decidir entre comprar um par de sapatilhas Brisa e pagar o aluguel completoʺ (Ocupação de Terra 06, Icho Cruz, Córdoba, 2012).
5. Conclusões
Com frequência as situações de desigualdade e exclusão nas
sociedades contemporâneas são abordadas a partir de uma dinâmica
10 O crescimento dos assentamentos informais recentemente é significativo. Atualmente, existem 238 na província, registrando‐se entre 2001‐2010 forte crescimento da população (62%), nos já existentes, ao invés de surgimento de novos assentamentos. De todos os assentamentos, 119 estão localizados na cidade de Córdoba (Levantamento de assentamentos informais na província de Córdoba, Um Teto para meu País‐Argentina, em setembro de 2011).
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que focaliza de modo permanente o indivíduo ʺvulnerávelʺ ou ʺpobreʺ (Bravo, 2001; Indec, 2000; Macadar e Mendive, 1997). Falar de pobreza soa, inclusive, reiterativo, dada a numerosa produção bibliográfica sobre o tema. No entanto, de nosso ponto de vista, acreditamos ao menos ser necessário nos diferenciarmos destes conceitos.
Pobreza habitualmente é um termo que agrupa um conjunto de estratégias de medição e agregação de categorias que colocam o foco na “carência” do indivíduo; efetua uma leitura estática das condições de vida da população; constrói o pobre como um conjunto homogêneo de população marginalizada e excluída da sociedade. No entanto, as vozes daqueles pobres dão conta de uma dinâmica diferente: em primeiro lugar exige que falemos, em todo caso, de pobrezas – no plural –, uma vez que estas se encontram ancoradas em múltiplas e diversas experiências cotidianas; e, por outro lado, é necessário entendê‐las como posições determinadas pela posse de capitais dentro de uma estrutura específica de relações, quer dizer, dentro da sociedade e não excluídos desta.
Por sua vez, o conceito de ʺvulnerabilidadeʺ em políticas sociais é problemático já que ora habilita dinâmicas individualizantes, ora totalizantes, dos sujeitos beneficiários / destinatários. Por um lado, o ʺbeneficiárioʺ é objeto de um tratamento diferente do restante da população, dado que seu atributo principal é a carência de todo tipo de recursos ou capital. Assim, o acesso à cobertura da política pública não aparece como um direito, mas como uma compensação por danos (sociais).
Simultaneamente, cada situação de vulnerabilidade é inscrita em uma lógica mais global do tratamento, que visa a permanente normalização da desigualdade social que a provocou. Assim, configurações do espaço social que assumem um caráter dominante são permanentemente legitimadas por um discurso compensatório proveniente da estatalidade, e, neste sentido, é possível pensar o caráter (des)igualitário que assume a política pública frente às tensões do presente.
No entanto, a presença do conceito de ʺvulnerabilidadeʺ nos discursos públicos foi um ponto a problematizar nossa indagação. Os riscos que supõe essa perspectiva estão em sua própria definição.
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Assume o vulnerável como aquele indivíduo potencialmente em risco por algo que é uma ameaça para si mesmo, um estado de ʺincerteza, impotência e insegurançaʺ (Brusso, 2001). Sob esse pressuposto desaparece a construção do beneficiário como um cidadão portador de direitos, como saúde, educação, etc., e, portanto uma categoria de caráter universal, para passar a ser um sujeito em potencial ameaça de exclusão de ʺassistênciaʺ educativa, de saúde, etc., e, deste modo, um indivíduo em risco, um indivíduo vulnerável.
Neste sentido, todos nos vemos expostos a riscos (Beck, 1998), de modo que se torna necessário ir identificando os mecanismos para atender cada problemática e situação. Neste marco, ʺvulnerávelʺ é um conceito que penetrou tanto nos escritórios de organizações internacionais em Washington e Nova York como nas barricadas e assentamentos protagonizados pelos setores populares. No entanto, como era de se esperar, o olhar foi dirigido para eixos diferentes.
Espaços como o G7 e em menor medida o G20 vêm substituir os mandamentos do Consenso de Washington. O fórum dos 20 países se converteu em um palco de reivindicações dos países menos desenvolvidos, e no espaço de reafirmação de medidas financeiras para apoiar modelos que de modo permanente estão mostrando a inviabilidade de, parafraseando Touraine (1998), uma ʺvida juntosʺ.
Por outro lado, a partir de baixo, os setores populares organizados têm instaurado novamente o debate das demandas de inclusão e radicalizado as práticas de impugnação social. Ambos os conceitos se encontram em constante disputa, constituem um modo de (não) nomear os conflitos sociais e de in/excluí‐los. Aparece dessa maneira uma tensão chave, permanentemente insolúvel, entre a conformação dos espaços públicos e a definição do sentido da política, ou a sua capacidade de definir os rumos de uma sociedade.
No breve percurso que tentamos refazer sobre o caso argentino, e a província de Córdoba em particular, observado a partir da perspectiva dos setores populares, nos aporta uma série de elementos para pensar e problematizar as consequências que provocam as políticas públicas, independentemente do objetivo que perseguem. Os relatos dos entrevistados, que recuperam mais de 20 anos de experiência do campo popular, nos advertem sobre a tensão que
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permanentemente se apresenta quando os espaços de decisão e ação pública se vêem questionados a partir da própria base social. Sem dúvida, os recursos que os setores organizados conseguem obter da estatalidade constituem um dos pilares para fortalecer sua estrutura interna, sua capacidade de mobilização e negociação com os funcionários públicos. No entanto, esta forma alternativa de gestão dos problemas, que implica na intermediação entre indivíduos e Estados a partir da organização dos setores afetados, representa um risco para a estatalidade, uma ameaça ao controle que se busca exercer sobre essas populações.
Percebe‐se nos textos das políticas estatais, ainda, que as pessoas em questão não careçam de Estado, mas ao contrário, que elas o tenham de sobra, encontram‐se inscritas em uma nova técnica gerencial, ou uma nova “tecnologia social”. A presença estatal, entretanto, não é exatamente garantidora de direitos: em todos esses documentos, políticas e programas, ao mesmo tempo em que se oferecem oportunidades, produz‐se histórias de vida típicas de tudo o que falta para que um sujeito esteja apto a desfrutar do convívio de cidadãos.
Quando a organização popular constitui uma clara ameaça para a legitimidade dos projetos políticos dominantes, os mecanismos estatais se esforçam por provocar a fratura, ruptura e desmobilização dessas experiências coletivas. E o fazem por múltiplas táticas na arena pública, seja cooptando seus dirigentes, envolvendo essas organizações em práticas cada vez mais burocratizadas, ou intervindo diretamente no território, perseguindo a fratura da base de apoio. Mas quando esses mecanismos não são suficientes, o espaço público se torna um campo de batalha, onde a repressão opera como a única resposta do Estado às demandas sociais.
O cenário que se apresenta, então, é de uma dupla aprendizagem, onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de ferramentas e um estado de coisas que estabelece permanentemente novos pontos de partida e instâncias de demandas sustentadas com estratégias mais radicais, mais móveis, e formas organizativas que permitem, com relativo êxito, escapar à desativação, criando um cenário mais participativo, mais politizado, e com atores
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fortemente empoderados. Daí que sustentamos que para pensar em uma democracia sólida, e reclamar por instituições que sejam capazes de organizá‐la, devemos garantir os espaços de liberdade para aquelas pessoas que estão lutando por uma sociedade mais justa. Bibliografia ASPIAZU, D. y BASUALDO E. ”Transformaciones estructurales de la economía Argentina. Una aproximación a partir del panel de grandes empresas 1991‐2005”. Buenos Aires: Programa Naciones Unidas para el Desarrollo‐PNUD. 2012. Disponible en http://www.undp.org.ar/docs/Libros_y_ Publicaciones/FLACSO.pdf AVALLE, G, y BRANDÁN ZEHNDER, M.G. “Entre la asistencia, la promoción y la inclusión. Dilemas de las políticas de empleo post‐convertibilidad en Argentina”. En III Jornadas de Estudios Políticos. Universidad Nacional General Sarmiento. Los Polvorines. ISBN 978‐987‐26398‐0‐8. 17 al 19 de noviembre, 2010. AVALLE, G., DE LA VEGA, C. y FERRERO, M.M. “Ciudadanía, técnicas de gubernamentalidad y degradación de derechos: lo planes laborales pos 2001 en Argentina”. En Foro Internacional ʺTerritorialidades Locales – Regionales y Métodos Posibles de Resolución de Conflictosʺ. Córdoba, Argentina. 29 al 31 de octubre, 2009. AVALLE, G., y IBAÑEZ MESTRES, G. “Gestionar, concertar o decretar la provisión de viviendas en Córdoba. Análisis de los actores en el gobierno de lo habitacional”. En Núñez, A. y Ciuffolini, M.A. Política y territorialidad en tres ciudades argentinas. Buenos Aires: Ediciones El Colectivo. Pgs. 61‐84, 2011. BECK, U. Sociedad De Riesgo. Barcelona: Paidós Básica, 1998. BUSSO, G. “Vulnerabilidad social: nociones e implicancias de políticas para latinoamérica a inicios del siglo XXI”. ONU‐CEPAL. Santiago de Chile, 2001. http://www.redadultosmayores.com.ar/buscador/files/ORGIN011.pdf. BRAVO, J. “Estimaciones de Ingreso y Pobreza para áreas geográficas menores: Avances recientes en América Latina y el Caribe”. Notas de Población, año 71, Nº 71. Santiago de Chile: CEPAL. Pgs. 139‐148, 2001. CIUFFOLINI, M.A. “Luchas urbanas por la tierra”. En “Anuario IX del Centro de Investigaciones Jurídicas y Sociales”. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Córdoba. Pgs.: 443‐459, 2007.
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Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil contemporâneo
Gabriel de Santis Feltran1
1. Introdução O Brasil contemporâneo está em franca transformação, em grande medida pelo cenário de desenvolvimento econômico da última década, desigualmente distribuído pelos tecidos social e urbano. A conflitividade social expressa por esse cenário também é nova. No centro da cidade de São Paulo, a Polícia Militar (PM) ocupa a região conhecida como “cracolândia” em meio a uma grande operação de ʺrequalificação urbanaʺ. Enquanto isso, a Prefeitura Municipal constrói albergues de “atendimento” aos usuários de crack, cada um para mais de mil pessoas. Discute‐se publicamente a pertinência da internação compulsória dos ʺnoiasʺ. Grandes incorporadoras investem em mão de obra de presidiários paulistas – cuja população foi quadruplicada na última década – em troca de remissão de penas. Há 200 mil presos no estado, e cinquenta novos presídios em construção. No Rio de Janeiro, o Exército Brasileiro ocupa territórios de favela na zona sul, a mais abastada, expulsando traficantes de drogas para as periferias. O caminho aberto pelas Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) também serve aos mercados imobiliário e do terceiro setor. Uma sequência de incêndios criminosos em favelas de São Paulo possibilita que as políticas de remoção, estancadas desde os anos 1980, retomem fôlego e liberem terrenos de interesse comercial. O conflito alastra violência. Mais de 80 policiais militares foram assassinados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), a principal facção criminosa do estado, e a vingança das forças da ordem produz uma nova escalada das taxas de
1Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Pesquisa apoiada pela FAPESP e CNPq.
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homicídios nas periferias, depois de uma década de queda significativa. As taxas de desenvolvimento da economia acompanham essa elevação. Esse cenário paradoxal, de desenvolvimento associado a alta conflitividade social, pode ser captado especificamente nos territórios e grupos sociais considerados ʺmarginaisʺ no Brasil contemporâneo. Este ensaio reflete sobre algumas relações entre a gestão contemporânea desses territórios e populações, bem como os modos como tem podido ser convertido ‐ tanto no plano semântico, quanto de mercado ‐ em “desenvolvimento”. Acompanhando etnografias recentes junto a esses grupos, sobretudo no estado de São Paulo, proponho algumas sínteses analíticas que apontam para a fusão recente entre os problemas “social” e de “segurança pública” no debate público brasileiro, bem como para algumas questões teóricas e políticas pouco intuitivas, a princípio. A hipótese é que esse modo de administrar o conflito urbano nas principais metrópoles brasileiras, que promovem franca transformação territorial, social e econômica conecta‐se diretamente à validação pública do Brasil com o país em franco desenvolvimento. Os argumentos expressos aqui, ainda bastante preliminares, partem de uma investigação coletiva, em andamento desde agosto de 20102, que etnografa três grupos urbanos específicos: i) adolescentes e jovens inscritos em atividades criminais, moradores de bairros das periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas3. O que articula analiticamente esses sujeitos e territórios distintos, a princípio, é tanto sua condição marginalizada frente a dinâmicas sociais consideradas 2 Trata‐se do projeto de pesquisa “As margens da cidade: grupos urbanos ‘marginais’, política e violência em três territórios do estado de São Paulo”, desenvolvido no NaMargem – Núcleo de Pesquisas urbanas, além de mim por Mariana Martinez (PPGAS/UFSCar), Filipe Horta (IESP/UERJ), Daniel Melo (PPGAS/UFSCar), Henrique Takahashi, Luciano Oliveira, Evelyn Postigo e Luiz Fernando Pereira (PPGS/UFSCar), Liniker Batista (PPGAS/Unicamp), Domila Pazzini, Deborah Fromm, Leilane Matsushita, Marcos Vinícius Silva (Ciências Sociais/UFSCar). Agradeço a cada um deles pela parceria nesses últimos anos. O texto conta com trechos em primeira pessoa do singular, quando apresento argumentos de minha responsabilidade, e em primeira pessoa do plural, quando me refiro a dinâmicas de pesquisa coletiva.
3 Os territórios estudados concentram‐se sobretudo nas cidades de São Paulo (Sapopemba, Heliópolis, Centro – “Cracolândia”), São Carlos e Cruzes (nome fictício), no estado de São Paulo. Uma das pesquisadoras desenvolve ainda, inicialmente, seu trabalho na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.
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legítimas, quanto o fato de estarem, quase sempre, convivendo proximamente com políticas e programas estatais (de atendimento e repressão, muitas vezes simultâneos). Esses sujeitos impuseram à equipe de pesquisa, logo de cara, o paradoxo de serem considerados “excluídos” da vida social ao mesmo tempo que apresentavam vinculações empíricas com formas de “atendimento” estatais das mais diversas. Além disso, e ao contrário do que supõe o senso comum, trata‐se muitas vezes de sujeitos vinculados a distintos arranjos familiares, de mercados de trabalho e geração de renda, bem como a distintas religiosidades e modos de habitar a cidade, ou seja, a diferentes instâncias da vida social considerada legítima. A escolha desta condição marginal como lente a partir da qual se analisa o cenário brasileiro contemporâneo não é casual. Trata‐se de uma escolha de pesquisa desenvolvida ao longo dos últimos anos de investigação coletiva, amadurecendo conexões entre pesquisa etnográfica e leitura teórica inspirada, sobretudo, nas etnografias do estado e de suas margens. O mundo urbano brasileiro, visto aqui sob o prisma de São Paulo e, com menor intensidade, Rio de Janeiro, tem mudado muito nas últimas quatro décadas. As periferias da cidade apresentam deslocamentos nada triviais nas bases da sua dinâmica social. A migração “nortista”, central à expansão das manchas urbanas do sudeste brasileiro, declinou muito a partir dos anos 1990; ao mesmo tempo, os mercados de trabalho populares se reconfiguraram inteiramente, na esteira da chamada “reestruturação produtiva”, tardia no Brasil se comparada aos países do norte (Kowarick & Marques, 2011). Consolidou‐se ainda a inscrição das mulheres no mercado de trabalho popular, agora constitutivamente marcado pelas fronteiras entre formal‐informal e legal‐ilegal (Telles & Cabanes, 2006; Telles, 2011). Imersa nessas transformações, a família popular tendeu à nucleação, em arranjos muito heterogêneos. A taxa de natalidade brasileira de 1,8 filhos/mulher é, hoje, menor do que a taxa de reposição demográfica. No plano religioso, e especialmente entre os mais pobres, foi enorme o trânsito do catolicismo ao pentecostalismo (Almeida, 2009). Além disso, o acesso à infra‐estrutura urbana e bens de consumo cresceu enormemente desde os anos 1970 e, embora ainda muito deficiente, possibilitou que as novas gerações da cidade vivam, hoje, em
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mundo radicalmente distinto daquele de seus pais (Marques & Torres, 2005; Feltran, 2011). Nesses anos, além do mais, a “violência urbana” tornou‐se assunto de qualquer cidadão brasileiro (Caldeira, 2000; Machado da Silva, 2004; Misse, 2006), e à elevação brutal das taxas de homicídio nos anos 1990 (Manso, 2003, 2012), seguiu‐se na década seguinte uma queda muito expressiva em São Paulo, sobretudo nas margens da cidade (Marques, 2010; Feltran, 2010a, 2010b, 2011; Hirata, 2010; Manso, 2011), fato que não ocorreu em outros estados. Em suma, as palavras‐chave do debate sobre as periferias de São Paulo, ou seja, trabalho, migração, religião, família, políticas sociais e violência, estão hoje muito longe de dizer o que diziam há quarenta anos. Nesse cenário, o projeto dos “trabalhadores”4 que colonizaram as periferias da cidade, fundindo o desejo operário de ascensão social à aposta política na expansão da cidadania (Dagnino, 1994; 2002), sofreu deslocamentos nada triviais, em todas as suas dimensões fundadoras. Analisando o percurso de tensões desse projeto nas últimas décadas, e as dinâmicas recentes de relação dos governos com “populações” marginalizadas (Foucault, 2000), argumento que o estatuto do conflito social e político ensejado pelas periferias urbanas foi deslocado (Feltran, 2012). Se nos anos 1980 esse conflito pôde ser pautado numa perspectiva de integração das camadas “trabalhadoras”, pela aposta na contrapartida social do assalariamento, agora trata‐se sobretudo de gerenciar as fronteiras entre periferias e direito – de modo compartilhado entre Estado, polícias e “mundo do crime” – pela ênfase sistemática nas representações da violência urbana. As investigações de campo empreendidas entre esses grupos, ainda muito preliminares, sugerem a sustentação desse argumento. Todas de orientação etnográfica, tiveram como ponto de partida duas constatações importantes, provenientes de pesquisas anteriores e do diálogo com a bibliografia mais recente sobre o tema: a primeira eminentemente teórico‐epistemológica; a segunda mais propriamente analítica. Neste ensaio, dividido em duas seções, trato de cada uma delas. Ao final, apresento sínteses das questões analíticas, teóricas e 4 Utilizo aspas para demarcar as categorias de uso corrente nas periferias da cidade, como “trabalhador”, “mundo do crime”, “bandido” etc. Os nomes próprios citados são fictícios.
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políticas que me parecem estar inscritas na gestão contemporânea das “populações marginais” no Brasil urbano, em tempos de “desenvolvimento econômico”. 2. Os sujeitos marginais e o mundo social: digressão teórico‐metodológica Usualmente, tanto nos relatórios dos serviços sociais que atendem a esses usuários da assistência, quanto nas ações das forças policiais que os reprimem, e mesmo na produção bibliográfica mais tradicional acerca dos grupos estudados aqui, a dinâmica social que os caracteriza tem sido descrita na chave da ausência. Ou seja, nessas perspectivas um menor infrator, uma prostituta ou um morador de rua, quase invariavelmente, são pensados como pessoas vivendo nos interstícios sociais, a quem falta o fundamental para uma vida social considerada saudável, digna, cidadã: o trabalho regular, a “família estruturada”, as condições de habitação, o respeito à lei, a civilidade, a moral, o autocuidado, a autoestima. Evidentemente, ainda nessa chave, aquilo que caracterizaria esses grupos, estendendo‐se e contaminando também os territórios que habitam, seria o oposto dessas virtudes: a vadiagem, o alcoolismo, o vício, as atividades ilegais, ilícitas e/ou imorais, a promiscuidade, a degradação pessoal, familiar e, no limite, quase como conseqüência natural, a criminalidade violenta. A partir desse diagnóstico, a vida desses sujeitos tem sido majoritariamente pensada a partir do problema (pobreza, desordem, incivilidade, imoralidade, violência, marginalidade, criminalidade) com o qual são identificados, e a produção de conhecimento a respeito deles parte da seguinte pergunta: como resolver/administrar esse problema?5
5 Se o problema são os outros, e não a relação, as técnicas de tratamento devem estar focadas nos sujeitos aos quais se atribui o problema, e não à relação que o(s) constitui. Desde as primeiras décadas da modernidade se constrói a noção da cidade como laboratório e clínica do humano, noção formalizada cabalmente nos primeiros escritos da Escola de Chicago (Park, 1979). Caberia, portanto, aos homens de bem, aos cidadãos, aos incluídos, encarregar‐se de cuidar dessa fronteira de dignidade e legitimidade social, agindo para transformar os viciados e desviantes; seria preciso oferecer‐lhes as oportunidades da vida digna, ou reprimir neles os impulsos deletérios. Da punição exemplar à filantropia, do suplício à disciplina, e daí à gestão das populações, na genealogia foucaultiana, os mesmos remédios vem sendo testados por séculos, década a década, ano a ano.
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Eis a primeira constatação: esses sujeitos são concebidos pelo problema social que representam, e portanto pela ausência frente à normatividade dominante (partilhada muitas vezes pelos próprios sujeitos em questão, em determinadas situações) que lhes é inerente. É preciso esclarecer, logo de cara, que não se trata aqui de dizer que esse problema não existe, acusando o déficit de “realidade” ou o etnocentrismo de quem assim o formula. Se há um século rompemos com o positivismo na etnografia, trata‐se aqui, apenas, de dizer que é preciso estudá‐lo considerando sua existência em perspectiva, e não sob quaisquer perspectivas. Assumo aqui, inclusive, que o problema se confirma como tal nas falas dos próprios sujeitos em questão, mas apenas quando eles se dirigem aos assistentes sociais, psicólogos, advogados, escrivães, pastores ou missionários que os acompanham pela vida; o problema não se confirma, entretanto, em inúmeras outras situações de locução. São essas, pela carência delas na bibliografia, que cabe a nossa pesquisa explicitar. A exclusão social de um trecheiro6 é inconteste, partindo do ponto de vista do religioso que lhe presta ajuda filantrópica; mas não é, quando vista desde a conversa entre ele e os pares de uma banca de moradores de rua, que se reúnem para passar o dia, arrumar dinheiro, comida e bebida, trocar dicas sobre os lugares em que estiveram e as pessoas que devem ou não ser respeitadas em cada um deles, os modos mais fáceis de escapar da polícia e conseguir abrigo da prefeitura, os códigos para falar com os assistentes sociais e as críticas ao sistema (equivalente semântico de sociedade). Nessa segunda perspectiva, já não há ausência de sociabilidade, códigos ou laço social, como demonstra a bibliografia a respeito (Rui, 2012; Martinez, 2010). Ocorre que a primeira figuração, a da co‐presença de seres excluídos7, portanto alheios ao pertencimento social, é dominante e se constitui como o ponto nodal de elaboração dos critérios pelos quais todos esses sujeitos marginalizados – seu passado, sua presença, seus destinos, seus territórios – passam a ser
6 Sobre trecheiros e pardais, classificações internas ao mundo daqueles conhecidos como andarilhos, mendigos e vagabundos, no estado de São Paulo, ver Martinez (2010).
7 Há uma série de críticas produzidas à noção de exclusão social, desde a clássica crítica de Martins (1997). Nossa abordagem soma‐se a elas, embora não se confunda com nenhuma delas, inteiramente.
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compreendidos publicamente. A repercussão dessa figuração nas políticas públicas é evidente – os programas sociais, questionários, relatórios e fichas de atendimento partem dessas premissas para confirmá‐las, progressivamente, nos seus “atendimentos”. Se há consequências políticas expressas a partir daqui, concentro‐me inicialmente naquelas mais propriamente analíticas. Entre elas, parece‐me relevante afirmar que o diagrama de compreensão dominante produz uma fronteira normativa que circunscreve o pertencimento social. Apostando numa análise reflexiva, pode‐se perceber sem dificuldade que essa forma de nomeação, tal seja, a que sugere a existência de “excluídos”, ao fazê‐lo reforça os critérios normativos de pertencimento ao social, definindo‐os. Desenha‐se nesta operação, portanto, os limites cognitivos que circunscrevem as margens daquele domínio passível de ser chamado de sociedade, bem como a plausibilidade daquilo que pode ser considerado social. O ganho da abordagem reflexiva que se propõe a tornar explícita essa figuração, nos parece, está centrado no fato de que o problema em questão, quando tratamos dos grupos considerados marginais, deixa de ser o excluído, e volta‐se ao diagrama de relações que os nomeiam como tais. Nessa medida, desnaturaliza‐se também o lugar tradicionalmente ocupado pelo pesquisador8. Consequência primeira desta constatação, e dos desdobramentos analíticos dela – estudar os grupos marginalizados é também estudar as fronteiras normativas que circunscrevem o social e, portanto, conhecer os seus princípios normativos fundadores. Estudar as franjas sociais é, então, também estudar o centro.
No tratamento mais corrente da questão, portanto, há uma partilha a ser considerada para se pensar a sociedade: o social, nessa perspectiva, é sempre considerado circunscrito por valoração e normatividade, e há invariavelmente sua contraface: fenômenos, territórios e seres dele apartados, por o constituírem em negativo. De
8 Ressalta‐se, nesse ponto, a contribuição decisiva de pesquisadores, no grupo, oriundos dos contextos estudados. É bastante recente, na bibliografia, a presença de pesquisadores desses contextos que compartilham códigos, sociabilidade e territórios com seus sujeitos de pesquisa e com as universidades; Dias (2012) apresenta reflexão metodológica fundadora a respeito.
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um lado há um terreno reservado àquilo que é propriamente social – os critérios de legalidade, legitimidade, moralidade correntes o definem; de outro, há territórios e populações que não compartilham desses critérios, e mesmo os ameaçam, e portanto deve permanecer excluídos. A sociedade tem sempre um lado de fora, portanto, e a fronteira que define seus limites é inteiramente pautada pela relação mútua entre os lados que ela divide. A proposta das investigações deste projeto de pesquisa, que ora desenvolvemos, pensa as margens, interstícios, periferias ou franjas do social numa outra direção, afeita a outra tradição de investigação. No tratamento proposto aqui, não há lado de fora na vida social, portanto não há excluídos da sociedade9. Há dependentes de crack, prostitutas, ladrões, e moradores de rua fazendo parte da vida social e urbana e, por vezes, pautando, pela sua presença, a definição mesmo dos critérios das ações dos grupos considerados centrais. Estudar os marginais a partir das relações que estabelecem com as fronteiras – semânticas, classificatórias e mesmo físicas – que os definem como excluídos é, nessa perspectiva específica, acessar os critérios de formulação da normatividade social dominante, não raras vezes legitimadas por determinações estatais. O conjunto de relações que compõe o social, nessa medida, abarca não apenas todos esses sujeitos, mas seus territórios, formas de ação, rotinas, cotidianos, instituições. A “sociedade” ganha, ao mesmo tempo, mais amplitude descritiva e menos caráter normativo. A definição bipolar que opõe os homens de bem aos vagabundos, os trabalhadores aos bandidos, as moças de família às prostitutas, inteligível por onde quer que se ande, perde força como categoria analítica. Essas polaridades usuais de compreensão da vida social e urbana passam, então, não mais a funcionar como categorias pelas quais se poderia compreender o que se passa; elas passam a ser vistas como uma espécie de representação (coletiva, e não precisamos da transcendência do social durkheimiano para considerá‐la assim) que é, justamente, aquilo que nos caberia estudar. Essas polaridades semânticas, portanto, deixam de
9 A inspiração é, sobretudo, de Das & Poole, 2002; Das, 1999, 2006, 2012. Latour (2000), por outros caminhos, chega a conclusões semelhantes.
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ser chaves a partir das quais se poderia pensar o problema dos grupos marginalizados, e passam a ser pensadas como parte fundamental do próprio objeto que se pretende compreender10. A prostituta, o morador de rua ou o jovem infrator deixam de ser, assim, sujeitos dados ou problemas sociais concretos, circunscritos aos interstícios ou alheios ao social, que nosso saber deve contribuir para sanar. Eles passam a ser, antes de mais nada, enunciados naturalizados, porque dominantes, que nos cabe estudar em detalhe, e na linha do tempo, para compreender as forças que os constroem como dotados de sentido, e os rituais cotidianos que os atualizam. É essa construção, e essa atualidade, que demarcam as consequências analíticas – e políticas – que fazem com que o morador de rua, o jovem infrator e a prostituta ocupem, nos contextos pesquisados, o lugar que ocupam. São elas que fazem com que se pense saber quem eles são, e o que pensam, sem nunca ter travado contato com eles – a percepção que nos faz entender quem eles são se dá pelo que se sabe que eles não são e não pensam. Estudá‐los o mais rigorosamente possível, assim, tem por finalidade produzir inteligibilidade sobre perspectivas múltiplas e conflitantes que, em sua tensão constitutiva, estabelecem os parâmetros do conjunto da normatividade social. Estudar as noções de moralidade, legitimidade, valores e concepções de mundo, códigos de pertencimento e conduta, entre outras, está, portanto, no centro dessa tentativa. Trata‐se aqui, portanto, de multiplicar as formas de enxergar esses grupos, buscando estabelecer etnograficamente as perspectivas a partir das quais a complexidade das suas relações sociais possa ser captada. Busca‐se estabelecer lugares de pesquisa a partir dos quais as inúmeras formas de codificação interna, formulação de regras e valores morais, constituição de alianças e inimigos, linguagem e reflexividade desses sujeitos possam se tornar mais presentes na análise.
As formas de nomeação, classificação, hierarquização e significação, enunciadas e postas em marcha nos territórios, situações e grupos estudados, são tomadas, nessa medida, como parte fundamental do material de campo
10 Aproprio‐me aqui da reflexão original de Machado da Silva (2004) sobre a categoria “violência urbana”, estendendo‐a a outros problemas.
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que analisamos, cujos diagramas de sentido nos cabe compreender11. Assim, pretende‐se realizar, sobretudo, um retorno à tradição fundadora da pesquisa social, no sentido simmeliano, que propõe uma ruptura – a começar pela inversão da questão central que lhe é imanente – com o conjunto de pressupostos normativos de senso comum que informava, e que informa ainda hoje, boa parte das estruturas dominantes de compreensão dos sujeitos marginalizados. Em termos práticos, ao invés de nos perguntarmos pelo que falta para que o problema representado nas figuras de adolescentes inscritos no crime, dependentes de crack ou prostitutas seja sanado, ou como administrá‐lo de modo mais eficiente, eficaz, efetivo, preocupamo‐nos inicialmente apenas em descrever as relações que caracterizam as dinâmicas íntimas, sociais e públicas desses sujeitos, em sua vida cotidiana, seus espaços de atendimento, suas formas de lidar com a cidade, etc. Em seguida, procuramos comparar os efeitos de conhecimento acerca das dinâmicas sociais que se abrem, nessa perspectiva, aos que são gerados por outras formas de analisar. Constatamos, então, que esses efeitos são muito diferentes, que a partir deles as análises chegam a lugares distintos. O choque entre essas perspectivas de saber é, então, inteiramente rentável analiticamente. Levando‐o a sério, trata‐se de um choque de saberes inteiramente afeito à constituição da política, no sentido de Jacques Rancière12. O método de trabalho etnográfico nos tem parecido adequado a esse investimento por possibilitar convivência, a mais próxima possível,
11 A sociologia pragmatista de Boltanski & Thevenot (1991); Thevenot (2006) tem sido ponto de ancoragem constante dessa reflexão.
12 O que se passa, com efeito, quando as forças da ordem são enviadas para reprimir uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade situa‐se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função. Assim, o dissenso, antes de ser a oposição entre um governo e pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí seu lugar. E, aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: “vamos circular, não há nada para ver”. (...) Antes de ser um conflito de classes ou partidos, a política é um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos. (Rancière 1996, p.373).
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entre pesquisadores e sujeitos pesquisados, incluído aí o esforço de reflexão sobre essa convivência (bastante significativo para pensar a alteridade como fronteira). Mais uma vez, cabe dizer que essa proposta não é nada inovadora, embora distinta do que vem sendo feito majoritariamente nas Ciências Sociais brasileiras (e também em muitos contextos internacionais), nas últimas décadas. Estamos procurando fazer apenas o que os clássicos da Sociologia – e da Antropologia – já recomendaram, e foi posto em prática de pesquisa, com algumas distinções relevantes, por trabalhos fundadores como os de Simmel (2006 [1903]), Anderson (2010 [1923]) ou Whyte (2005 [1943]). Basicamente, trata‐se de buscar suspender – o tanto quanto possível, e o mais radicalmente possível nas situações de pesquisa – os juízos morais acerca dos sujeitos pesquisados, para descrever os modos como essas pessoas interagem entre si, nas diferentes situações que vivem, nos diferentes momentos e territórios em que convivem. Da mesma forma, atentar para como se dão, desde essa perspectiva, suas relações efetivas com instâncias sociais e políticas legitimadas como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as políticas sociais, a esfera jurídica, o “mundo do crime” e o Estado. Descrever, ainda, as trajetórias pessoais, de grupos e de associações inscritas nessas dinâmicas marginais, tomando como parâmetros o que acontece, o que se diz, o que se faz, e não o que julgávamos que deveriam fazer, falar, pensar. Não se trata, portanto, de desconsiderar que esses sujeitos se apresentam como um problema social, para muitos, mas de não reificar a existência desse problema como se fosse objetivamente encontrado em todas as situações ou perspectivas em questão. Até porque nossos dados de pesquisa têm mostrado, justamente, que não é assim que as coisas se passam, se trabalharmos com rigor a partir dos princípios teórico‐metodológicos fundamentais das Ciências Sociais. 3. Pensar a mudança nos setores populares: as margens como lacuna na bibliografia
Um segundo ponto de partida desta pesquisa, igualmente derivado de investigações anteriores e da leitura da bibliografia recente, é aquele que percebe as dinâmicas sociais e políticas dos setores populares a partir da mudança, da transformação, registrada
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empiricamente pelos mais variados métodos – das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por trajetórias individuais às que procuram captar transformações estruturais no Estado ou na economia. Parte‐se aqui do pressuposto de que os parâmetros da vida social nas margens urbanas vêm se alterando enormemente nas últimas décadas, de modo conectado a mudanças ocorridas também em outras esferas sociais, econômicas e de Estado, inclusive as mais legítimas. A transformação nas margens nos parece, portanto, conectada às transformações do trabalho, família, religião, projetos de mobilidade social, formas de associativismo, relações com a institucionalidade estatal, as políticas públicas e os movimentos sociais. Motivo, portanto, para pensá‐las relacionalmente e, assim, contribuir para a transformação também das formas de analisá‐las.
Dando passos atrás com relação às propostas dedutivas de teorias de grande envergadura, a proposta é produzir pesquisas situadas e análises de médio alcance, renovando pela base as formas de compreensão do social – e aqui falamos, portanto, tanto de pressuposições teóricas, quanto de estratégias de método e formas de analisar. Mais uma vez, não há nenhuma intenção em reinventar a roda, ou trabalhar apenas com o cenário contemporâneo, tão diferente dos anteriores. Ao contrário, trata‐se de recorrer aos fundamentos das disciplinas das Ciências Sociais, entre elas as categorias de tempo, espaço e mudança social: uma das perspectivas mais relevantes para os pesquisadores envolvidos nesse projeto tem sido, justamente, a busca pela historicidade e pelas múltiplas causalidades das mudanças em curso, que derivam das formações sociais e políticas que lhes precederam13.
13 As transformações nas periferias urbanas têm sido pensadas ao longo das últimas quatro décadas, tempo restrito para historiadores, embora apenas inicialmente traçado para a compreensão do perfil recente desses territórios (Feltran, 2011a; Batista, 2011). Em alguns casos, a temporalidade das pesquisas é maior: as políticas de encarceramento recentes, em São Paulo, geraram uma investigação sobre uma rebelião de 1952, da qual se desdobram inúmeras linhas de análise do presente (Horta, 2011, 2012); a curiosidade acerca da atual conformação dos dispositivos de justiça do PCC gerou pauta para uma investigação sobre duas décadas de trajetória de um grupo de rap (Takahashi, 2011) e, em seguida, para a formulação de um subprojeto de pesquisa acerca da expressividade do conflito social das periferias e
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A partir dessa tentativa, parece‐me fundamental considerar um deslocamento, especialmente para pensar os sujeitos em questão nesse projeto: trata‐se de pensar os modos de formulação pública da questão social e os descompassos frente às formas como ela é vivida entre aqueles figurados como seus protagonistas. Se há algumas décadas, e em diversas perspectivas, tratava‐se de procurar as formas de integração do trabalhador à vida moderna e urbana, fazendo proteção social e defesa de direitos (Durham, 1973; Kowarick, 1979; Santos, 1979; Sader, 1988; Dagnino, 1994, 2002; Telles e Paoli, 2000; Telles, 2001), atualmente os sujeitos‐chave do problema são aqueles considerados marginais, e a perspectiva de integrá‐los é cada vez mais frágil. Diferentes pesquisas vêm mostrando que os bandidos, favelados, drogados e traficantes, pontos de gravitação do problema social contemporâneo, devem ser, sobretudo, contidos (seja em prisões e clínicas de internação, ou mesmo fora delas (Thomaz, 2008; Agier, 2008; Telles & Cabanes, 2006; Misse, 2010; Villela, 2010; Telles, 2011; Hirata, 2011; Feltran, 2011;). A questão social passa a ser compreendida publicamente, então, como problema de segurança e ordem públicas, que tem sujeitos e territórios bem demarcados14. Tanto do centro da cidade, habitado por dependentes de crack, moradores de rua, travestis e prostitutas, quanto das periferias e favelas mais distantes, representadas como territórios da violência e do tráfico de drogas, emergiria o ponto de gravitação da “nova questão social”, que se pretende tratar com ampliação da repressão, controle, contenção e gerenciamento15. As tentativas de ocupação de favelas e cracolândias, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, são exploradas ad infinitum em todas as mídias, e se tornam problemas ou trunfos fundamentais de governos de diferentes esferas. O debate
favelas notável na sua produção musical, em todo o século 20 (NaMargem, 2011); a atualidade do problema do crack tem sido pensada a partir de seus antecedentes relacionais – transformações no tráfico de drogas, nas dinâmicas sociais e políticas urbanas, nas políticas de atendimento, etc. (os trabalhos de Martinez, Oliveira, Barbosa, Pereira e Pazzini, nos anexos, seguem nessa direção).
14 A respeito da distinção entre uma ameaça à segurança individual e uma ameaça à ordem pública, em contexto diferente, ver Villela (2011).
15 Expressão dessa centralidade é a filmografia brasileira nos anos 2000, praticamente monotemática: trata‐se de apresentar, sob diferentes perspectivas, a questão das favelas e de grupos marginalizados como problema simultaneamente social e policial.
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público sobre a questão social se confunde, progressivamente, com aquele voltado às questões da criminalidade violenta, tráfico e abuso de drogas, e preconiza‐se mais repressão. 4. Desenvolvimento A repressão, entretanto, não é a única face pública da mudança dos setores populares, no Brasil contemporâneo. Muito mais pública tem sido a constatação, justamente entre eles, de crescimento das capacidades de consumo em ritmo acelerado, ou seja, na figuração dominante a constatação dos efeitos positivos do “desenvolvimento econômico” e da “consolidação institucional” do país. A ampliação no acesso à escolarização, saúde e outros direitos sociais, a queda substantiva do desemprego, além da expansão agressiva do poder de compra, nos últimos anos, são discutidas diariamente pelos gestores do mercado e do Estado. A propalada emergência de uma nova classe média16 dá novo alento ao projeto de trabalhadores que, conforme notava agudamente Durham (1973), para o caso central dos operários do seu período de pesquisa, tinham como centro de seu projeto de vida a mobilidade social. Atualmente, a retomada deste projeto pelas elites da periferia urbana é quase uma redenção, já que haviam passado por duas décadas de frustração importante desse projeto. Dos últimos quarenta anos, vivemos na segunda metade dos anos 2000 o período de maior expectativa de ascensão social entre os trabalhadores pobres urbanos. A década atual se inicia em plena marcha dessa esperança (a de um Brasil sem pobreza, conforme o slogan oficial). Favelas e cracolândias de um lado, novos integrantes da classe média, de outro. Contrafaces, muitas vezes, das mesmas territorialidades urbanas: as periferias e o centro da cidade; sujeitos presentes – os trabalhadores, os nóias, os presos, as prostitutas, as mães de família, os bem‐sucedidos – muitas vezes, no seio das mesmas famílias populares. Nenhuma dessas duas configurações contemporâneas está bem estudada na tradição de pesquisa sobre as periferias urbanas e as classes populares brasileiras. Há uma lacuna relevante na bibliografia
16 Crítica a essa abordagem aparece nos dados apresentados por Pochman, 2012.
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específica a respeito, talvez ocasionada pela ênfase das Ciências Humanas latinoamericanas no estudo do operariado e das classes populares erigidas em torno do ideal do trabalho – e não do lumpen, sequer dos pequeno‐burgueses, que hoje aparecem sobretudo como derivações significativas e tendenciais, nas representações dominantes, das periferias trabalhadoras. Nossas pesquisas sobre esses sujeitos marginalizados, portanto, se dedicam também a contribuir para o estudo de territórios e sujeitos sociais populares, extremamente heterogêneos, cuja conflitividade não se canaliza para a representação política oficial e que, talvez por isso, não tenha sido majoritariamente legitimada como objeto válido da bibliografia específica sobre os setores populares urbanos no país. A própria tematização desses sujeitos já é expressão da mudança social, captada em pesquisa de campo nos últimos anos. Nota‐se, além do mais, que a presença estatal nos territórios estudados auxilia a construção de bipolaridades (que mascaram e reconfiguram, a todo tempo, a pluralidade empírica desses lugares). Nesse processo, como na fotografia, o esfumaçamento de tons de cinza dispersos em dado suporte é substituído pela classificação dicotômica de seus limites extremos: o preto e o branco. E a partir daí – o caso de São Paulo é exemplar a esse respeito – expandem‐se ao mesmo tempo políticas extremas: a ampliação agressiva do encarceramento (de 40 mil presos em 1996 para 190 mil em 2012, com mais 50 presídios em construção) é simultânea à ampliação do acesso a direitos e serviços sociais fundamentais, aumento da escolarização média e emprego, modernização da infra‐estrutura urbana etc. Praças de guerra em remoções urbanas, reintegrações de posse e cracolândias convivem com discursos amenos da responsabilidade social empresarial. Essas polaridades, em vista geral, são apresentadas como lógica única nas situações em que se mostram. Essa clivagem, e a disposição da análise situacional, é portanto importante na própria formulação do problema a analisar que, muitas vezes, é pouquíssimo claro nas dinâmicas empíricas observadas.
Exemplo desse esfumaçamento é a constatação de que atualmente, entre os grupos urbanos mais marginalizados, há tudo, menos ausência de Estado. Nem mesmo dos serviços públicos, algo que
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os movimentos sociais das periferias puderam alardear com certa razão nos anos 1980. Aumentou‐se muito a presença estatal entre essas populações, e nos territórios em que elas habitam. Tanto – e sobretudo – para levar até ali a ordem que estaria ausente, procurando, sempre sem muito sucesso, reprimir e ocupar os insterstícios urbanos em ofensivas civilizatórias, como nas UPPs cariocas ou na Nova Luz paulistana, quanto para possibilitar que pudessem ser resgatados do crime e da vagabundagem aqueles indivíduos que, mesmo desfrutando da convivência de bandidos, drogados e pervertidos, desejassem se tornar cidadãos. Logo após a entrada da polícia, ocupam favelas e cracolândias uma miríade de ONGs e programas sociais (a UPP tem um braço policial e um assistencial, como todas as intervenções nas ruas e favelas paulistas). Depois dessa ocupação, a valorização imobiliária produz as “remoções brancas” para que a gentrificação se instale definitivamente. Por isso, paralelas às retomadas das políticas de mercado imobiliário, inclusive populares (Shimbo, 2012), estão as desocupações de favelas e as retomadas das reintegrações de posse de prédios ocupados. De um lado, portanto, as mudanças da questão social contemporânea promovem associações gestionárias como ONGs, prestadores de serviços sociais e cursos de aprendizado profissional, das mais diversas qualidades; de outro lado, aposta‐se todas as fichas na repressão em massa dos desviantes. Ao mesmo tempo. Para a elite das periferias, e os desgarrados das famílias mais pobres que puderam fazer alguma ascensão social e, por isso, cumprem com os critérios objetivos e disciplinares da mobilidade, há cursos de alta qualificação no SENAI, no SENAC, entre outros. Há algum trabalho, há cursos noturnos, há inclusive universidades pagas. Nas margens das favelas, há formação preventiva promovida por entidades assistenciais e pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) para manicures, cabeleireiros, fazedores de bijuterias, entre outros, permanecerem onde estão – e não caírem na vida fácil. Via de regra, nenhuma dessas atividades chega aos que estão inscritos nos mercados ilegais e ilícitos e, se chegam, não duram. Os circuitos de inscrição desses outros sujeitos não passam necessariamente por elas. Expandem‐se lado a lado, portanto, ações sociais muito heterogêneas – algumas poucas voltadas a “garantia de direitos”, para os que moralmente os mereçam; outras
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tantas voltadas para “evitar que os meninos fiquem na rua, na droga, no crime”. Para os que não atendem os critérios formais, mas sobretudo aos critérios morais desejados, há outras políticas hoje muitíssimo bem estruturadas – Fundação Casa para os que têm menos de 18 anos, sistema carcerário para os que têm mais. Ambas em franca expansão pelo estado. Clínicas de reabilitação, internação, contenção de transtornados mentais e dependentes químicos terminam de compor o cenário. Quem já passou algum tempo por favelas da cidade sabe que não se tratam de dispositivos residuais; quem já passou tempo entre essas instituições totais sabe que elas já não atuam pela integração social, no plano normativo anunciado acima, mas são elementos estratégicos constitutivos de uma nova ordem social, nos termos descritos nesta pesquisa. A lógica da ocupação de territórios e controle de grupos marginalizados, quando não de sua internação – seja por criminalização, por dispositivos de saúde mental ou “guerra às drogas” – é então complementada pela conversão desses processos em acumulação de valor. São os modos relacionais de construção dessa nova ordem, articulada entre gestão de miseráveis e desenvolvimento econômico, que parece ser possível vislumbrar – embora ainda estejamos dando passos muito iniciais nessa direção – a partir da investigação em curso. Bibliografia BOLSTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. AGIER, M. Gérer les indésirables. Des camps de réfugiés au gouvernement humanitaire, Paris, Flammarion, novembre 2008. ALMEIDA, Ronaldo. A Igreja Universal e seus Demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome/FAPESP, 2009. DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil, Espaços Públicos e a Construção Democrática no Brasil: Limites e Possibilidades In: DAGNINO, Evelina. (org.) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente1
Rodrigo Constante Martins2 1. Introdução A produção de verdades/diagnósticos sobre a moderna crise sócio ambiental é atualmente um campo amplo que concentra não apenas investigadores e peritos da ciência, mas também engloba militantes ambientalistas, agentes econômicos, burocracias de governo, stakeholders, dentre outros. A pluralidade de interesses envolvidos na tessitura de hipóteses e explicações sobre causas e efeitos do aquecimento global, da perda de biodiversidade, da poluição e da escassez de água indica a pertinência de esforços sociológicos de problematização das forças sociais que disputam o reconhecimento pelo retrato legítimo da questão ambiental. Isto é, as narrativas dos desafios ambientais contemporâneos podem ser apreendidas como objeto de investigação sociológica através das relações entre as categorias de classificação dos fenômenos naturais e as posições das classes e grupos sociais que simultaneamente atuam e são afetados por tal classificação. Neste texto, a questão ambiental será abordada através das narrativas hegemônicas dos problemas relativos aos usos e acessos à água no século XXI. Como é sabido, a temática dos recursos hídricos adquiriu grande abrangência social e política no decorrer das últimas três décadas. Encontros multilaterais envolvendo técnicos e chefes de governo tornaram‐se recorrentes, tendo no mais das vezes o propósito de estabelecer inovações normativas para a regulação do uso e acesso à água em escalas nacional e internacional. Em termos simbólicos, ressaltam‐se as novas estratégias de classificação do recurso, associado aos signos de riqueza econômica estratégica, como ouro azul ou petróleo do século XXI.
1 Este texto reúne resultados de estudos desenvolvidos pelo autor com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq).
2 Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós‐graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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Esta ressignificação do recurso, alçado à categoria de capital natural, também repercute na construção de novas estruturas de gestão ambiental, voltadas fundamentalmente para o ideal econômico da alocação eficiente dos fatores de produção. Neste sentido, a disseminação internacional dos chamados instrumentos econômicos de gestão ambiental vem sendo apontada como solução eficaz para o ajustamento do consumo social da água. Do ponto de vista prático, tais instrumentos teriam o mérito maior de fazer refletir, através de mecanismos de mercado, os níveis de escassez relativa do recurso, induzindo os agentes econômicos a adotarem condutas racionais de uso do capital natural. Neste artigo buscaremos desenvolver uma interpretação crítica sobre o aparato conceitual e os valores sociais envolvidos na narrativa que sustenta os instrumentos econômicos de gestão das águas. Para tanto, o capítulo divide‐se em quatro partes. Na primeira parte, mais descritiva, serão apresentadas algumas experiências nacionais de gestão econômica dos recursos hídricos, chegando até os contornos institucionais do caso brasileiro. Na segunda parte do texto serão discutidos os pressupostos teóricos que, legitimados pela crença científica, amparam as narrativas elaboradas pelos especialistas da chamada “economia da água”. Na terceira e quarta partes do artigo serão discutidos alguns elementos críticos envolvidos nestas narrativas sobre “oferta”, “escassez” e “gestão” do recurso, que atualmente influenciam sobremaneira o debate internacional sobre a governança ambiental. Por fim, nas considerações finais, será feita uma síntese das principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto. Do ponto de vista conceitual, as narrativas ambientais serão abordadas neste capítulo não como simples resultado discursivo de visões de mundo estabelecidas, mas sim como vontade de verdade, nos termos de Foucault (2005). Isto é, as narrativas serão interpretadas como força, poder singular que atua nos processos de construção de verdades que visam organizar e orientar as práticas sociais. São, portanto, práticas discursivas que operacionalizam a realidade, transcendendo o domínio exclusivo da representação e se apresentando como aparato que também produz o real – um efetivo dispositivo de poder.
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2. A gestão econômica da água: experiências nacionais Problemas relacionados à escassez de água potável em nível
mundial têm suscitado preocupações, tanto por parte de Estados Nacionais quanto por agências e organizações multilaterais, acerca dos modos de regulação e otimização do uso dos recursos hídricos. Gradativamente, em vários países – sobretudo nos pertencentes à OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – o controle institucional direto sobre o acesso e uso dos recursos hídricos vem sendo feito a partir da adoção dos chamados instrumentos econômicos, que teriam como função induzir os agentes econômicos a comportarem‐se de acordo com padrões socialmente desejados. No concernente à experiência internacional de gestão das águas, os instrumentos econômicos mais utilizados para a garantia de usos mais eficientes do recurso têm sido os orientados para a criação de mercados de água e para formas de cobrança pelo uso dos recursos hídricos – a valoração da água.
A instituição de mercados de direitos de água tem sido realizada com base na crença do marginalismo neoclássica de que, dentro de um sistema de livre mercado, a escassez relativa de um bem determina automaticamente a elevação de seu preço, estimulando assim seus consumidores a otimizarem o seu uso. Nos estados do oeste dos Estados Unidos (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada e Novo México), o direito de propriedade da água possui as mesmas características dos direitos de propriedade sobre a terra, podendo inclusive ser vendido, cedido ou alugado temporariamente. A administração do mercado de direitos de água é feita pelo Estado, através de tribunais especiais de água (Water Courts), encarregados de reconhecer os direitos sobre o recurso e resolver eventuais conflitos (Cowan, 1998).
Na América Latina, o Chile é o país com experiência mais longa de implementação de estratégias econômicas de gestão da água. Desde 1981, a legislação chilena garante a negociabilidade dos diretos de água (definidos como certo volume de água por unidade de tempo), permitindo o intercâmbio entre o que a lei define como setores agrícolas e não‐agrícolas (Lee; Juravlev, 1998). Contudo, se comparado com o
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caso norte‐americano, o mercado de água chileno ainda é considerado incipiente, e possui um pequeno volume de transações.
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos, por sua vez, constitui‐se atualmente no principal instrumento de gestão de águas em nível internacional. Em síntese, tal instrumento parte da atribuição de um valor monetário aos recursos hídricos, que se reflete na forma de impostos, taxas ou simplesmente preços a serem cobrados sobre o uso e/ou contaminação da água. Tal instrumento tornaria possível responsabilizar os agentes (usuários/poluidores) pelas externalidades negativas que suas atividades comportam, permitindo uma aproximação entre custos privados e custos sociais, ao mesmo tempo em que pode gerar receitas para amenizar os impactos negativos sobre os aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos (Dinar, 2000).
A adoção da cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem como uma de suas orientações básicas o Princípio do Poluidor Pagador, adotado pelas legislações ambientais dos países filiados à OCDE. Tal princípio pressupõe que o agente econômico poluidor responderia à demanda de sustentabilidade ambiental menos por considerar que tal temática seja legítima e mais porque o não atendimento à mesma reverbaria negativamente em sua posição no mercado, através da elevação de seus custos individuais3.
O sistema francês de gestão dos recursos hídricos é um dos principais exemplos internacionais do emprego do Princípio do Poluidor Pagador. Calçado em legislação da década de 60, tal modelo define a bacia hidrográfica como unidade administrativa de gestão das águas nacionais, além de também garantir a cobrança pelo uso da água para os agentes públicos e privados que contribuam para a deterioração da qualidade do recurso. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses – a redevance – é determinada através do volume de poluição lançado ou
3 Neste mesmo sentido, o Banco Mundial (1998: 80) pressupõe que “as tarifas de água e incentivos fiscais podem incentivar as firmas a adotarem tecnologias para economizar e conservar a água, incluindo sistemas de reciclagem. Tais tecnologias e alternativas de gerenciamento tornarão fácil a conservação da água e a reutilização”. No caso da agricultura, o banco acredita que “da mesma forma, as tarifas podem servir de incentivos aos agricultores para alternarem seu trabalho agrícola para culturas que utilizem pouca água.”
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na degradação gerada sobre os corpos d’água. Sua aplicação seria uma forma de induzir o poluidor a realizar análises de custo‐eficácia entre poluir – pagando taxas – ou não poluir, adotando mecanismos ou tecnologias que reduzam sua carga poluidora (Barraqué, 1991).
Na Alemanha, embora a gestão das águas seja assegurada aos estados (Länder), a legislação geral sobre a cobrança pelo uso da água tem caráter nacional, cabendo a cada estado complementá‐la e/ou reforçá‐la. Datada de 1976 (e efetivamente aplicada a partir de 1981), a valoração da água na Alemanha tem como principal alvo os agentes poluidores, através da cobrança pelo lançamento de efluentes. Mais recente, a cobrança pela captação de água se baseia em legislações estaduais complementares, não abrangendo a totalidade do país. Na prática, a cobrança alemã atinge quase exclusivamente os industriais (com lançamentos diretos em corpos d’água) e os usuários domésticos (através das estações de tratamento de esgotos).
Na América Latina, o México iniciou sua política de cobrança pelo uso da água em 1991. Na ocasião, os principais alvos eram as municipalidades e as indústrias que em seus lançamentos sobre os corpos d’água rompiam limites de emissão pré‐estabelecidos. A partir de 1995 o critério de cobrança foi alterado, passando a basear‐se na carga efetiva de poluentes lançados pelos agentes individuais – aproximando‐se assim da lógica de mercado própria dos princípios de valoração ambiental. No Brasil, o modelo francês tem sido a principal referência para a construção dos arcabouços institucionais nacional e estaduais de gestão dos recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988 reiterou o domínio público da água, reconhecendo, porém, o valor econômico do recurso e a cobrança por seu uso. Em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos definiu que a valoração seria o instrumento privilegiado de ação política de controle ambiental. Dado o caráter descentralizado do novo sistema de gestão das águas no país, nos rios de domínio federal, cumpriria aos Comitês de Bacia Hidrográfica a implementação da cobrança. No caso dos rios de domínio estadual, seria dos estados a responsabilidade pela regulamentação do sistema de cobrança.
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Desde 2003, em nível federal, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos é praticada pelo Comitê do rio Paraíba do Sul, que envolve municípios dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro Minas Gerais. Em nível estadual, o Ceará implementou a cobrança no final de 1998. No estado de São Paulo, a cobrança pelo uso da água foi aprovada em forma de lei em 2005 e encontra‐se em fase de implementação pelos Comitês de Bacia Hidrográfica. A Política de Recursos Hídricos deste estado, desde 1991, reconhecia a água não só como um bem público, mas também como um bem dotado de valor econômico, “cuja utilização deve ser cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades das bacias hidrográficas” (São Paulo, 1991).
De maneira geral, no Brasil, o princípio da mercantilização da água, sobretudo através das estratégias de valoração, vem sendo amplamente defendido por movimentos ambientalistas e pelos integrantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica. As justificativas comumente manifestadas em favor do princípio estão, por parte dos movimentos ambientalistas, relacionadas à perspectiva de penalização dos agentes poluidores, e, por parte das instituições gestoras, voltadas à arrecadação de recursos financeiros para as atividades de gerenciamento.
Considerando este contexto de expansão das estratégias de mercantilização da água, nos parece que, em termos de reflexão sociológica, são necessários novos esforços de interpretação crítica dos principais termos envolvidos na noção de valoração ambiental. Ou seja, se por um lado as necessidades de recursos financeiros para a gestão ambiental e de enquadramento jurídico dos agentes poluidores são inquestionáveis, por outro, é preciso atentar para a não‐naturalização de noções lógico‐dedutivas que pouco contribuem para a construção de políticas públicas condizentes com a complexidade das disputas socioambientais.
Do ponto de vista da análise sociológica, são vários os caminhos de interpretação crítica que podem ser desenvolvidos sobre a narrativa da mercantilização dos recursos naturais. Dentre tais caminhos, buscaremos aqui percorrer os contornos essenciais de duas alternativas interpretativas, quais sejam: a das dimensões extra‐econômicas do comportamento econômico dos agentes sociais; e a da crítica ao padrão
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capitalista de uso e acesso aos processos ecossistêmicos. Antes, porém, convêm algumas notas sobre os princípios teóricos que sustentam esta narrativa da gestão econômica dos recursos naturais. 3. Mercado e meio ambiente: as hipóteses do utilitarismo neoclássico
A microeconomia ambiental neoclássica tem fornecido um
importante suporte conceitual para a adoção em escala internacional de instrumentos econômicos para a gestão dos recursos naturais (Jacobs, 1994; Martins, 2004). No nível das políticas públicas, este suporte conceitual fornece os fundamentos para a hipótese do Princípio do Poluidor Pagador. De acordo com tal princípio, o agente social poluidor deve arcar com as despesas para manter o meio ambiente dentro de parâmetros aceitáveis de qualidade, sustentando, por conseguinte, a hipótese de que, ao ser penalizado pela cobrança no uso deletério da água, o poluidor seria induzido a adotar práticas menos onerosas ao meio ambiente (OCDE, 1992).
Na construção epistemológica do referido princípio – que, em consonância com o utilitarismo neoclássico, segue uma lógica estritamente hipotético‐dedutiva, onde os conceitos aplicadas na análise derivam abstratamente uns dos outros4 –, supõe‐se que o agente econômico isoladamente induziria o progresso técnico, respondendo rapidamente à demanda de sustentabilidade ambiental. Contudo, tal resposta justificar‐se‐ia menos pela legitimidade dos valores da sustentabilidade ambiental ante o cálculo econômico do agente do que pela ameaça de custos adicionais que o não atendimento à demanda de sustentabilidade lhe acarretaria. No caso da aplicação do Princípio do Poluidor Pagador à gestão das águas, espera‐se que a insistência de um agente no uso insustentável do recurso eleve seus custos de produção – custos estes que, repassados ao preço final de seus produtos, diminuirá sua competitividade. Assim, seria esta uma forma de internalização do problema ambiental pelos agentes econômicos tida pela OCDE como 4 Neste sentido, a própria Economia Ambiental, com as noções de equilíbrio e externalidade, surge como derivação do neoclassicismo no campo da ciência econômica. A propósito deste caráter lógico‐dedutivo do utilitarismo neoclássico, ver Wolff e Resnick (1988).
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legítima e urgente de ser instaurada nos países que atravessam situações limite. Nestes termos, a criação de mercados de água e a valoração do recurso surgem como processos de significação por excelência da questão ambiental em nível social. Por intermédio da instauração destas novas institucionalidades, as situações de degradação e escassez relativa dos recursos hídricos seriam naturalmente incluídas no cálculo racional‐econômico dos agentes consumidores, que, por sua vez, seriam incitados a definirem formas de uso mais sustentáveis de tais recursos.
Esta dedução acerca das práticas individuais ampara‐se na suposição neoclássica de que a alocação eficiente de qualquer bem ou serviço dá‐se mediante a livre manifestação da escala de preferência dos agentes‐consumidores. Isto significa que seria possível medir a sensibilidade dos consumidores diante das variações na oferta de mercadorias a partir, única e exclusivamente, de sua disposição a adquiri‐las/comprá‐las, ou seja, a partir de sua utilidade circunstancial.
No caso dos bens ambientais, a situação de uso e acesso não regulados pelos mecanismos de mercado afetaria de maneira decisiva a função de utilidade do agente‐consumidor. Pearce (1985), um dos principais expoentes da Economia Ambiental, destaca que o caráter não‐rival dos bens ambientais faz com que seu consumo por um indivíduo não implique, necessariamente, o não‐consumo de outrem, impedindo, assim, que os consumidores manifestem suas preferências pelo referido bem por intermédio de lances de mercado. Diante de tais circunstâncias, os resultados – sejam eles positivos ou negativos – dos usos feitos pelos agentes econômicos dos bens e serviços de domínio público constituiriam‐se em externalidades da atividade econômica. Fundamental no arcabouço teórico da Economia Ambiental, as externalidades são definidas por este paradigma como sendo os efeitos gerados pela atividade de um agente econômico sobre outrem, afetando sua função de utilidade e, por conseguinte, o próprio equilíbrio do mercado (Baumol; Oates, 1988). A alteração desta situação de equilíbrio afastaria o mercado do optimum de Pareto, causando então distorções na distribuição dos recursos e das rendas entre produtores e consumidores. No caso dos bens e serviços ambientais, ao provocar algum tipo de prejuízo que se transformasse em custos excedentes para
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outro, o agente em questão estaria produzindo uma externalidade negativa, afastando então o mercado do seu ponto optimum de alocação dos recursos.
Desta feita, em uma situação de poluição (que não seria apenas ambiental, mas também econômica), a solução para o restabelecimento do equilíbrio de mercado seria a internalização, por parte do homo oeconomicus, das externalidades por ele provocadas. Contudo, conforme afirmam Baumol e Oates (1988), a ausência de direitos de propriedade sobre muitos dos recursos naturais faz com que não haja pressão social para que o agente gerador da externalidade arque com os custos sociais de sua ação. Para os autores, na medida em que os bens ambientais não podem se constituir em propriedades privadas, sendo então de uso e domínio públicos, a racionalidade própria das transações de mercado não pode sobre estes imperar. Por conta disso, Stevenson (1991) nos mostra que, historicamente, tem sido atribuída aos governos nacionais – na condição de gestores dos bens públicos – a função privilegiada de equacionar os impasses políticos e econômicos criados pela degradação ambiental. Entretanto, vários outros autores têm argumentado que esta intervenção governamental tem dado margem ao surgimento de outras disfunções na relação entre economia e natureza. Definidas por Gowdy e O’Hara (1995) como falhas de intervenção, ou, conforme o próprio Stevenson, falhas de governo, tais disfunções estariam vinculadas à própria forma de estruturação do moderno Estado‐nação. Segundo os autores, o aparato burocrático característico da estrutura deste Estado dificulta a regulação do uso dos recursos naturais na medida em que os interesses políticos envolvidos no âmbito da gestão pública transformam a questão ambiental em instrumento de barganha entre facções da burocracia estatal. Também ressaltando a existência das falhas de governo, Turner, Pearce e Baterman (1993) apontam as possíveis manobras na legislação ambiental em favor de interesses setoriais, revelando a incapacidade do Estado de fazer refletir os níveis de escassez ambiental junto aos agentes econômicos. De acordo com os autores, a regulação estatal poderia mascarar o nível de esgotamento do capital natural, uma vez que não remete ao homo oeconomicus a responsabilidade de adquirir informações sobre o estoque de recursos
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naturais para, a partir delas, realizar suas próprias análises de custo‐eficácia. Diante desses impasses atribuídos à atuação do Estado na gestão ambiental, a análise neoclássica conclui que não há como enfrentar os problemas relativos à escassez e à degradação ambiental – retomando o bem estar de todos os agentes econômicos –, senão através da criação de condições para que os próprios instrumentos de mercado possam atuar nas relações entre economia e natureza. Para tanto, ao invés de regulamentar, caberia ao Estado a tarefa de criar condições para o “livre” funcionamento dos mercados ambientais, que, por sua vez, agiriam em prol da minimização dos impactos econômicos da degradação ambiental. 4. O mercado como prática social
Em face da consolidação dos principais termos da Economia
Ambiental para a narrativa da moderna crise ambiental, vários estudos têm sido realizados, no curso das duas últimas décadas, com o objetivo de estimar valores monetários para bens e serviços ambientais. A elaboração de indicadores quantitativos ponderados através de critérios de escassez, tais como os níveis de vulnerabilidade e insubstitubilidade dos recursos naturais, e a tentativa de mensuração da disponibilidade da sociedade em pagar pela preservação ambiental – passando inclusive pela construção de mercados hipotéticos para os serviços ambientais – têm sido apresentadas por autores da Economia Ambiental como a solução viável e eficaz de gerenciamento dos recursos naturais em escala mundial (Pearce e Turner, 1991; Pearce, 1993; Tisdell, 1997).
De outra parte, vários esforços interpretativos, partindo de diferentes matrizes teóricas das Ciências Sociais, têm enfatizado tanto a falta de sustentação teórica da concepção de mercados ambientais quanto sua inadequação como princípio norteador de políticas de gestão dos recursos naturais. No geral, as críticas à Economia Ambiental apontam para o reducionismo do comportamento econômico dos agentes sociais no uso dos recursos naturais (Leff, 1995; Benton, 1994), a apreensão a‐histórica da relação sociedade‐natureza (Martins, 2004; Altvater, 1995) e a própria concepção de sistema
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econômico deste approach, que reduziria a atividade econômica a um sistema fechado e isolado, desconsiderando que a produção é, fundamentalmente, troca e/ou transformação de energia (Allier e Schlüpmann, 1993; Daly, 1991). Contudo, a despeito das críticas, os princípios da economia política da água sustentados pelo neoclassicismo marginalista seguem ocupando lugar de destaque no debate internacional sobre regulação ambiental. Outrossim, estes princípios são recorrentemente utilizados para a nominação dos principais temas da moderna crise socioambiental. Esta atividade de nominação, que se origina na designação dos ativos ambientais e se estende até a proposição dos mercados futuros de commodities ambientais, também explicita o fabrico de relações complexas de poder, que não se encerram nos limites de autonomia dos distintos campos de relações (burocrático, acadêmico, econômico). A rigor, a temática ambiental perpassa estes campos; contudo, fundamenta‐se sobre a retórica dominante do campo econômico. O entendimento da gênese do moderno discurso ambientalista requer, sem embargo, a compreensão das formas pelas quais a retórica econômica conduziu os termos da temática ambiental na agenda política desde meados do século XX. Do ponto de vista analítico, propor tal compreensão não implica em tomar a dimensão econômica dos processos sociais como elemento determinante de interpretação. Neste caso, o olhar sobre a retórica econômica resulta da própria historização do discurso ambientalista, posto que sua formulação foi resultante do apontamento de certos limites físicos para a sustentação do padrão de crescimento econômico verificado nas economias centrais no curso das duas primeiras décadas do pós‐guerra. Um dos produtos sociais mais expressivos da presença da retórica econômica na gênese do moderno debate ambiental é a noção de racionalidade no interior do discurso ambientalista. A expressão “racionalização do uso dos recursos naturais” atribui às práticas sociais um conjunto de suposições que comumente apresentam‐se de forma bastante fragmentada na vida cotidiana. A noção de cálculo implicada nos discursos de uso racional da água, da energia e dos recursos florestais, dentre outros, requer uma consciência fundamentada no
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cálculo e na previsibilidade. Esta consciência temporal e seu ethos correlato aparecem como fundamento da conduta econômica racional e capaz de assegurar êxito ao planejamento do que nos últimos anos convencionou‐se chamar de contabilidade ambiental. Entretanto, a suposição da condução universalizada das práticas sociais na direção desta modalidade de racionalização despreza o fato de que a racionalidade da ação tem seu limite na conduta socialmente estruturada do agente. Logo, toda prática social está circunscrita a um quadro específico de experiências passadas que funcionam como matriz de percepções, decisiva para a formulação de estratégias de conduta social. Ou, como nos sugere Bourdieu, a prática revela a fundamentação da illusio como ordem de ação, rotina; no caso do utilitarismo, revela que “o conjunto de disposições do agente econômico que fundam a ilusão da universalidade a‐histórica das categoriais e conceitos utilizados são o produto de uma longa história coletiva, e que deve ser adquirida no curso da história individual” (Bourdieu, 2003: 83)
É notório que a crença de que os agentes econômicos, induzidos por “sinais” de mercado, deverão incorporar a dimensão ambiental sob um padrão de racionalidade econômica, pressupõe a existência de um padrão unívoco de racionalidade. Entretanto, se consideramos que a relação da sociedade com o meio ambiente é mediatizada também por processos políticos e culturais, torna‐se evidente que qualquer estereótipo de conduta racional constitui‐se numa idealização com estreito alcance analítico. Weber (1999), em sua clássica análise da dimensão reflexiva da ação social, já enfatizava a necessidade de se compreender o seu sentido subjetivamente visado, ou seja, os elos significativos que fundamentam a ação do agente. Para o autor, a dimensão do termo racional vincula‐se estritamente aos processos que sustentam a ação social. Sem a compreensão dos seus elos significativos – ou, na terminologia weberiana, de seu sentido – a ação torna‐se, do ponto de vista analítico, um comportamento reativo, sem conteúdo eminentemente social.
Portanto, a racionalidade de uma ação ou processo social não deve ser compreendida senão a partir dos seus elos significativos, compostos tanto de motivações materiais quanto simbólicas. É justamente tal iniciativa que permitiria à teoria social, tal como
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enfatizam apropriadamente Elias e Scotson (2000), a recusa da herança iluminista no que tange à crença consoladora da supremacia de uma razão abstrata, descarnada e totalizante. Os dados sociais, por serem sui generes, não são racionais ou irracionais em sentido absoluto, mas base sobre a qual indivíduos e/ou grupos sociais se autoreconhecem e constroem suas identidades (seja através do conhecimento científico e de ideologias políticas, ou mesmo da construção depreciativa do outro).
Neste contexto, ao contrário do que supõem os neoclássicos, a significação cultural, dentre outras, pode ser o fator determinante sobre o resultado social de uma dada ação, sobrepondo‐se inclusive a aspectos econômicos que poderiam dar‐lhe sentido distinto. Este seria o caso, por exemplo, de uma interpretação um pouco mais acurada do que o neoclassicismo chama de falhas de mercado. Na economia moderna, as falhas relacionadas com a alocação dos recursos naturais constituem‐se, a rigor, em vantagens competitivas disputadas por diferentes grupos (ou capitais) econômicos. A apropriação e uso de condições ecológicas favoráveis ao processo de valorização capitalista têm sido, historicamente, alternativas para ganhos de produtividade e competitividade dos capitais individuais. Da mesma forma, o uso de vantagens institucionais e políticas da esfera não‐mercantil – chamadas pelos neoclássicos de “falhas” de governo – também constituem‐se, sob o prisma da prática destes agentes, em vantagens competitivas5.
Ademais, convém ainda destacar que o alcance dos instrumentos econômicos na gestão dos recursos naturais, ao serem concebidos sob a estratégia marginalista de universalização das práticas sociais, evidencia de antemão seus limites em face das distintas modalidades de disputas sociais pertinentes aos jogos de cada campo de forças sociais. Isto é, se considerarmos os recursos naturais como elementos de disputas que são indissociáveis do espaço social, é mister supor que os jogos de oposições e de distinções sociais de cada campo revelarão estratégias diversas de distribuição dos recursos materiais e
5 Para apontamentos sobre a construção política destas vantagens competitivas no contexto da economia norte‐americana (berço dos ideais do “livre‐mercado”), ver estudo de Fligstein (2001) a propósito da emergência do valor acionário como concepção do moderno controle das empresas, e do crescimento do Vale do Silício, força motriz da indústria informática naquele país.
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simbólicos em face dos princípios de diferenciação do próprio campo. Neste sentido, os pressupostos nos quais a aplicação de tais instrumentos se baseiam – quais sejam, os da alocação econômica eficiente e da promoção do uso racional do recurso – deverão servir sobremaneira aos mecanismos de diferenciação social de cada campo de forças. Por esta razão, não há como estabelecer nenhum elo, seja de ordem prática ou mesmo teórica, entre o pseudo equilíbrio das relações de troca e o equilíbrio ecológico requerido para a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
Nestes termos, convém ainda resgatar a definição de Fligstein (1996) para a constituição do mercado econômico como fenômeno eminentemente sociopolítico. Tal como destaca o autor, a criação de mercados implica em soluções sociais para problemas de direito de propriedades, estruturas de governança, concepções de controle e regras de troca. A definição do perfil não resulta de processos automáticos de interação social. Esta definição é sobretudo política. As soluções para a constituição de cada mercado são decisivas para a permanência ou exclusão dos agentes. Portanto, a racionalidade destes agentes no âmbito do mercado reserva‐se às disputas políticas pelo ordenamento das relações e pela conquista de vantagens competitivas. E, no campo destas disputas políticas, os capitais econômico, social e cultural combinam‐se de formas peculiares à posição de cada agente no espaço social.
Mesmo a noção de equilíbrio, recorrente na literatura da Economia Ambiental em referência à obra de Pareto, revela traços de inconsistência que ultrapassam as dificuldades de identificação do plano das relações concretas e chega á sua formulação conceitual. Como bem observa Passeron (2004), a originalidade de Pareto em relação aos demais marginalistas neoclássicos relaciona‐se com sua ressalva de que o equilíbrio econômico de mercado não fornece um modelo que possa ser transposto para suposições acerca do equilíbrio social. O equilíbrio econômico suposto pelo autor estria intimamente atrelado a condutas lógico‐ideais dos agentes econômicos. Em sua análise econômica, o autor procura demonstrar que o livre mercado seria o espaço por excelência de realização de tais condutas. Já em sua obra sociológica, Pareto avança sobre o que denomina de ações não‐lógico‐experimentais, relacionadas
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ao que chama de resíduos e derivações. Tal como insiste o autor, é preciso estar atento ao fato de que estas ações não‐lógicas não seriam ilógicas: na história social, equilíbrios, conflitos e crises se explicariam através dos resíduos (expressão dos sentimentos inscritos na natureza humana e nos processos de socialização) e das derivações, formas as quais indivíduos e grupos lançam mão para a justificação de condutas não‐racionais (no sentido da correspondência da relação meios‐fins na consciência do agente e no contexto empírico). Sua sociologia, ao estudar as condutas não‐lógicas, não visava construir paralelos com a idéia de utilidade empregada na economia. E menos ainda indicar alguma convergência entre as duas noções. Em Pareto, as ações lógicas e não‐lógico‐experimentais comporiam, tal como sugere Aron (2002), o esforço de construção de uma sociologia totalizante, evidentemente correndo os riscos que tais esforços comumente implicam. A propósito da obra paretiana, o que os autores da Economia Ambiental desprezam é justamente um de seus pressupostos fundamentais, qual seja, o da inexistência de sociedades compostas exclusivamente de condutas lógico‐exprimentais ou de condutas não‐lógicas. Tratar‐se‐iam de modalidades extremas, quase no sentido dos tipos puros weberianos. Como salienta em seu Tratado de Sociologia:
“Embora isso desagrade aos humanistas e aos positivistas, uma sociedade determinada exclusivamente pela razão não existe e não pode existir; e isto, não por que os prejulgamentos dos homens os empeçam de seguir os ensinamentos da ”razão”, mas por que os dados do problema que se quer resolver pelo raciocínio lógico‐experimental lhes faltam. Aqui aparece de novo a indeterminação da noção de utilidade (...). As noções que os diferentes indivíduos têm a respeito do que é bom para eles mesmos ou para os outros são essencialmente heterogêneas, e não há meio de reduzi‐las a uma unidade.” (Pareto, 2003, § 2143) A leitura sobre estes limites empíricos das condutas lógico‐
experimentais é o que vem permitindo, por exemplo, a retomada crítica da obra paretiana. Este é o caso dos esforços de Burns e Roszkowska (2009), que problematizam o princípio abstrato do optimum de Pareto no contexto de situações de conflitos e questionamentos sobre os
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resultados de processos institucionalizados de negociação envolvendo diferentes agentes sociais. Ressaltando os limites do enfoque paretiano para os estudos sobre conflito, os autores apontam como os procedimentos de negociação (tais como o voto e a jurisdiciação das relações), e não propriamente seus resultados, adquirem legitimidade nas sociedades modernas (promovendo uma espécie de alquimia institucional). Nestes termos, o ponto optimum de equilíbrio para a alocação de recursos se relativiza na avaliação dos resultados das negociações institucionalizadas. Como bem observam os autores, a aceitação geral dos procedimentos é que se torna fundamental na resolução do conflito, e não seu resultado como função de utilidade. Com efeito, talvez não seja por outra razão que a crítica social aos instrumentos econômicos de gestão de águas encontra‐se em grande medida centrada na condenação dos procedimentos de mercado como reguladores viáveis das modalidades de uso e acesso a este recurso6.
5. Crítica da economia política da água
Criticar esta modalidade de economia política da água não
significa simplesmente retificar distorções de detalhes da abordagem neoclássica ou preencher eventuais lacunas. Neste esforço de análise, a crítica da economia política da água sugere o apontamento de uma nova narrativa, capaz de superar os impasses inerentes às interpretações centradas no modelo formalista de equilíbrio de mercado. Na direção inaugurada por Marx, em sua crítica da economia política clássica, o que este texto coloca em discussão é o próprio objeto da economia ambiental, a saber, a alocação eficiente dos recursos naturais baseada em categorias econômicas de gestão.
Sobre a constituição das categorias econômicas, é importante ressaltar que a sociedade cria formas diversas de trocas, que se relacionam e se retroalimentam. Retomamos, portanto, a assertiva de Mauss (2003) de que os mercados são constituídos de práticas 6 São muitos os críticos que no âmbito do debate público (principalmente no campo jornalístico) ressaltam o caráter excludente da gestão estritamente econômica da água. Para uma síntese dos principais argumentos envolvidos em tal crítica no cenário da opinião pública nas duas últimas décadas do século XX, ver Laimé (2003).
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econômicas que são, simultaneamente, políticas e culturais. Como é sabido, em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva, o autor interpreta a troca como um fato social total, cujas regras manifestam‐se simultaneamente na moral, na religião, no direito, na economia, na política, na organização das relações de parentesco e na estética da sociedade em questão. Neste sentido, os indivíduos não podem ser concebidos como estátuas econômicas, posto que também são agentes políticos, culturais e pessoas morais. É justamente por esta razão que, ao se supor a conduta racional do agente econômico diante dos mecanismos de valoração da água, está‐se absolutizando a dimensão econômica da conduta social e refletindo‐se sobre um agente abstrato, fracionado em sua integridade social.
Este superdimensionamento do cálculo econômico na conduta individual em ambientes de mercado, tal como sugere Sahlins, (2003), é uma expressão da própria cultura permeada pela hegemonia da razão utilitária. Tal razão, fundamento da visão moderna de racionalidade econômica, é, do ponto de vista cultural, a maneira pela qual as sociedades ocidentais vêm se experimentando desde o início do século XX. Equivocadamente, este modo de experimentação social segue sendo reificado como único fundamento para a explicação das propriedades das relações sociais, desconsiderando que mesmo a utilidade é composta por dimensões simbólicas que escapam ao universo dos fluxos de oferta e demanda dos mercados. Senão, como interpretar as práticas culturais de grupos sociais distintos em relação às águas tomando como referência as noções de utilidade e conduta racional sustentadas pela economia ambiental? Ou, como interpretar a resistência à precificação da água por aqueles que a concebem como recurso sagrado, sem possibilidade de representação no universo das mercadorias? Neste caso, tratar‐se‐ia simplesmente de uma conduta residual, nos termos paretianos? Ou ainda, no sentido antropológico, como compreender as tradicionais Festas dos Pescadores e as práticas religiosas sobre as águas, tão presentes em cidades ribeirinhas brasileiras, a partir das posições sociais de ofertante e de consumidor do utilitarismo neoclássico? Qual será a resposta racional dos que cotidianamente mantém com as águas práticas simbólicas que estão para além dos ajustamentos de mercado?
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Como sugere Espeland (1998), a suposição de uma conduta racional universal é problemática justamente em razão das dimensões de identidade e cultura que amparam as práticas e a construção social da realidade. Nestes termos, a leitura dos grupos de interesse e de suas estratégias baseada diretamente em suas respectivas posições de mercado despreza, segundo a autora, a complexidade que envolve as construções de diferentes visões técnicas sobre a natureza, de diferentes disputas políticas envolvidas na regulação do acesso ao meio ambiente e do multiculturalismo envolvido na construção da moderna temática ambiental7.
Podemos afirmar que a noção de racionalidade econômica não apenas possui um alcance relativo, mas também contribui para a construção de ausências no âmbito dos saberes regionais sobre as águas. Intimamente articulada à razão indolente analisada por Santos (2002), as categorias de conhecimento disseminadas pela economia política da água, ao marcarem os horizontes de alcance para aplicação de certos saberes técnicos, também contribuem para a produção da monucultura do saber e das ausências que lhe são decorrentes. Talvez seja um dos caminhos possíveis para a interpretação das formas de exclusão de grupos sociais das possibilidades de participação em estruturas descentralizadas de gestão das águas8. Ao realizar‐se como saber legítimo, esta razão técnico‐instrumental não promove apenas a
7 Espeland (1998) exemplifica esta complexidade através do caso dos conflitos envolvidos na construção de uma barragem no oeste dos Estados Unidos. Destaca, em particular, os diferentes universos simbólicos presentes no processo de desocupação territorial para tal construção, que envolvia os Yavapi, comunidade indígena do Arizona que, por considerar a terra como parte de sua herança étnica, não a concebe como alvo de atos de compra ou venda; os engenheiros planejadores da obra, que por quarenta anos argumentaram sobre seu mérito técnico; e os burocratas de estado envolvidos na elaboração de modelos de consenso para mitigar a tensão social em torno da construção da barragem.
8 A despeito do caráter de parlamento das águas, os Comitês de Bacias Hidrográficas no Brasil revelam circunstâncias crescentes de exclusão de grupos sociais. No contexto específico da construção social da governança das águas no estado de São Paulo, este processo vem sendo interpretado por Martins (2006; 2007) através da posição dos agentes nos aparatos de governança, da construção dos discursos, dos critérios de autoridade para as falas/posições no debate descentralizado e das hierarquias sociais resultantes destes atos de distinção.
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marginalização de outras epistemologias do saber ambiental. A acumulação seletiva dos sucessos em termos de nominação estritamente econômica dos recursos ambientais pode também levar ao processo descrito por Santos, Menezes e Nunes (2004) como epistemicídio dos saberes concorrentes, liquidando por conseguinte os grupos sociais cujas práticas se assentavam em tais conhecimentos.
Se do ponto de vista cultural, a noção estrita da racionalidade do homu oeconomicus reafirma o modo utilitário de experimentação do cotidiano social, do ponto de vista da construção do conhecimento, a mesma dissocia a ação social dos demais processos que lhe compõe. Como também nos esclarece Santos (2002), esta fragmentação da ação social propiciou o reducionismo das concepções modernas de regulação e emancipação. Isto porque a emancipação moderna tornou‐se estritamente associada à racionalidade cognitivo‐instrumental da ciência, voltada à produção totalitária do saber e promissora da dominação plena da sociedade sobre os recursos naturais. A regulação, por sua vez, foi associada, com larga contribuição do utilitarismo neoclássico, à livre atuação das forças de mercado. Deste modo, o pragmatismo do paradigma da racionalidade econômica, reduzindo em nível analítico as várias dimensões envolvidas nos processos de desenvolvimento social, de produção de saberes e de regulação institucional de práticas sociais, foi alçado à condição de parâmetro supradimensional para a problematização de quaisquer temas relativos à sociedade, política, economia, ciência e cultura em tempos de modernidade. Com efeito, as relações sociais não são balizadas somente pelas disputas econômicas por benefícios. Como bem acentua Mauss (2003), em sociedade, não são apenas as mercadorias que circulam, mas também as pessoas, os nomes, palavras, os títulos (prestígio), etc. Por esta razão, cálculos de custo‐eficácia não refletem os distintos instrumentos sociais empregados nas práticas cotidianas de classes e grupos. Outras regras e recursos sociais interferem nas ações individuais. A experiência dos grupos sociais, por exemplo, através da construção de saberes e valores sobre o ambiente e sobre a própria sociedade, é um instrumento de percepção social decisivo para os eventuais redimensionamentos da relação sociedade‐natureza.
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Desta feita, além da compreensão histórica dos processos de uso e apropriação dos recursos ecossistêmicos, também faz‐se necessária a análise da transformação social da natureza através de um dado território, com formação histórica específica e relações próprias de dominação. Neste âmbito, a produção social de valores excedentes nos espaços sociais ganha nova dimensão, porquanto abre caminho para a problematização da relação sociedade‐natureza a partir da disputa entre grupos e classes sociais pela hegemonia nas formas de uso, regulação e apropriação da natureza local. Isto é, o resgate das dinâmicas regionais e das especificidades políticas de cada sociedade permite que, do ponto de vista analítico, os processos ecológicos circunscritos aos ambientes de produção de valor adquiram um conteúdo histórico que ultrapasse a simples condição de base biofísica dos processos de acumulação. Por outro lado, o que a concepção da relação sociedade‐natureza presente no instrumental conceitual da economia ambiental deixa de esclarecer são justamente as contradições locais das formas capitalistas de sociabilidade. Deste modo, mantém obscuros os processos que revelam mais elementos da crise da sociedade produtora de valores excedentes.
Não é por outra razão que Leff (1995) destaca que a tentativa de pensar a articulação entre sociedade e natureza exclusivamente em função das categorias de investimentos de capital e utilidade marginal dos fatores de produção impossibilita a compreensão dos processos ecológicos como integrantes da história social. Na medida em que as condições ecológicas do processo produtivo surgem como externalidades do sistema econômico, as contribuições dos processos ecossistêmicos e da própria produtividade ecológica à geração de riqueza passam a ser negligenciadas, juntamente com as diferenças entre a produção de valores de uso e valores exedentes. Isto impediria uma análise da transformação ecossistêmica derivada da apropriação social dos recursos naturais como objeto e meio de trabalho para a produção de mercadorias, o que, por sua vez, repercutiria negativamente na construção de alternativas políticas para os grandes temas da moderna crise sócio‐ambiental – como é o caso da questão hídrica.
Portanto, no âmbito histórico‐estrutural, é importante o estabelecimento de conhecimentos complexos para a promoção de políticas para o uso e acesso sustentáveis das águas em níveis nacional e
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regional. No caso da água, considerando as especificidades regionais de disponibilidade e qualidade do recurso, torna‐se de grande relevância o esforço de integrar as disputas locais às relações dinâmicas da dialética do particular‐universal. Este esforço, ao dispor‐se a interpretar a complexidade das esferas de sociabilidade historicamente inscritas nos modos de interação da sociedade com a natureza, permite a construção de cenários mais condizentes com o cotidiano dos grupos e classes que possuem interesses concretamente situados diante das potencialidades ecológicas e sociais. 6. Considerações finais
A expectativa sobre o aprofundamento da crise de acesso à água
em várias partes do mundo vem estimulando não apenas disputas materiais, mas sobretudo lutas simbólicas em torno dos diagnósticos da crise e das possibilidades de sua mitigação. Neste capítulo, buscou‐se sistematizar alguns elementos críticos que permitem compreender o cenário de criação de uma narrativa social hegemônica sobre o recurso água, focada essencialmente em sua significação econômica.
Face às discussões empreendidas, nos parece adequado sugerir a problematização da conveniência social dos mecanismos de mercado na gestão de águas com base em dois critérios não excludentes de apreciação de políticas públicas, quais sejam, os de extensão e densidade. Conforme se espera ter evidenciado no curso do texto, a extensão pretendida pelos princípios conceituais dos instrumentos econômicos de gestão dos recursos naturais é bastante ampla, posto que, em um contexto lógico‐dedutivo, dissemina as hipóteses do utilitarismo econômico para todas as esferas da vida em sociedade. Entretanto, justamente por aprisionarem os referenciais da experiência social aos mecanismos de conduta econômica, as estratégias de mercantilização da água apresentam baixa densidade informacional, uma vez que não fornecem suportes em seus princípios de gestão para as dimensões extra‐econômicas da relação sociedade‐natureza.
Como procurou‐se ressaltar através dos marcos críticos aqui abordados, há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no código de recursos socialmente desejáveis. Isto significa dizer que um
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recurso natural não pode ser reduzido à sua dimensão econômica mesmo para os que o observam como tal; ele também é recurso simbólico que corporifica signos culturais, ocupando assim posição no conjunto hierárquico das trocas simbólicas. Evidentemente, em razão de sua posição neste conjunto hierárquico, suas dimensões políticas e econômicas assumem significado particular para sociedades e grupos sociais distintos.
Por fim, mesmo na análise histórico‐estrutural das condutas econômicas nos mercados capitalistas, o formalismo da análise utilitarista impede a problematização do mercado como instituição política, palco de disputas que se estruturam em outros contextos (ou campos) de sociabilidade. Ou seja, no curso da análise socioambiental, este formalismo impede a constatação de que os grupos e classes não apenas criam bases materiais distintas para seus modos de vida, mas também interpretam de formas diversas a construção dos modos de vida, das identidades culturais e da experiência social sobre as potencialidades ecológicas. Para o contexto das sociedades latino‐americanas, que encontram‐se em vias de consolidação de novos princípios para a gestão das águas, a leitura crítica deste formalismo a‐histórico nos parece decisiva para a construção do olhar plural que o tema requer. Bibliografia ALIER, J.M.; SCHLUPMANN, A. La ecología y la economia. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ALTVATER, E. O preço da riqueza. São Paulo: Ed. UNESP, 1995. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. 6ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BANCO MUNDIAL. Gerenciamento de recursos hídricos. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos, 1998. BARRAQUÉ, B. Les politiques de l’eau en Europe. Paris: Éditions la Découverte, 1991. BAUMOL, A.; OATES, W. The theory of environmental policy. 2ª ed. Cambridge University Press, 1988.
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