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Ser quilombola, Ser de Pinhões: dinâmicas de autonomia, resistência e
territorialização1
Dias, Lúnia Costa2
Resumo
O presente artigo se apresenta como um resultado parcial de uma reflexão em curso na
pesquisa de mestrado em desenvolvimento. Nesse sentido apresentamos alguns
apontamentos em torno da análise dos processos envolvidos na afirmação da identidade
quilombola na comunidade de Pinhões – localizada no município de Santa Luzia,
Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG. Dentro da proposta do GT de fomentar o
debate crítico em torno dos 25 anos da Constituição de 1988 e os direitos quilombolas
nos propomos pensar as questões em torno da afirmação da identidade quilombola na
comunidade de Pinhões sobre o ponto de vista dos moradores numa incursão sobre
percursos históricos buscando constituir minimamente algumas das relações
constituintes da comunidade. Nesse exercícios entendemos que as significações em
torno da identidade quilombola se fazem a partir e através das experiências
historicamente constitutivas do grupo num exercício dinâmico de autonomia, resistência
e territorialização.
Palavras-chave: identidade, etnicidade e territorialização
______________________________________________________________________
A noção própria constituite da ideia de quilombo, juridicamente falando
“remanescentes dos quilombos”, carrega em si a articulação entre as noções de
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de
Agosto de 2014 em Natal/RN, no GT69 Quilombos no Brasil: 25 anos da de direitos na Constituição Federal de 1988 (coordenadores: Osvaldo Martins de Oliveira/UFES e Aderval Costa Filho/UFMG. Artigo construido a partir da pesquisa de mestrado em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Antropológia da UFMG, sob orientação da professora Doutora Andréa Zhouri com financiamento da CNPQ/CAPES. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG - Brasil.
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autonomia e resistência3, noções por si só articuladas. No processo de construção da
Constituinte de 1988, resultado de lutas políticas envolvendo movimentos sociais e a
participação de acadêmicos, que cuminou na elaboração do Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e posteriormente na elaboração do Decreto
4887/2003 que regulamenta o artigo4, o conceito de quilombo se fez aberto a novas
significações quando sustentado pela noção de etnicidade embutida no dispositivo de
autoatribuição (O‟DWYER, 2002).
Sustentado sobre as bases teóricas defendidas por Fredrik Barth (1997) da
conformação de grupos étnicos, a autoatribuição prevê uma organização social em
direção a delimitação de fronteiras definidoras do grupo no processo de diferenciação
em contextos étnicos. Nesse sentido a situação de etnicidade pressupõe relações de
antagonismo, principalmente em relação aos movimentos homonegeizadores dos
Estados-nação, colocando a autoatribuição de uma identidade diferenciada na pauta do
dia para a conformação do grupo no seu exercício de afirmação de pertença e
autonomia. Os atributos de diferenciação, assim, se dão em sentido situacional de modo
a não conceber identidades substancializadas nem tampouco estanques.
Sobre a noção de cultura como uma dimensão processual, dinâmica e
interacionista (BHABHA,1998; HANNERZ,1997; APPADURAI, 2004) as noções de
grupo e comunidade se dão sobre a base de relações em multiplas escalas temporal e
espacialmente concebidas. É dizer, as experiências de pertencimento, de constituição e
reprodução social da comunidade se fazem a partir e através das diversas relações
historicamente situadas em multiplas escalas de sociabilidade, perpassando, inclusive,
pelos limites das noções de humanidade, grupo, natureza e cultura. Nesse sentido a
afirmação de uma identidade diferenciada em contextos étnicos se faz na conformação
de uma ação social, no sentido defendido por Weber, direcionada à organização social e
a definição de fronteiras no sentido nós-eles. Esse movimento no entanto, não acontece
3 Dizemos autonomia no sentido de se fazer sujeito do prórprio presente em relação a um futuro e,
nesse sentido a resistência aparece como movimento de negação a certas dinâmicas de dominação. 4 “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Decreto 4887 – “Art. 2 º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”
3
discolado das dinâmicas contitutivas do grupo, das experiências históricas (ERIKSEN,
2001) que orientam a ação social.
É nesses termos que pretendo analisar as formas de constituição e reprodução
social da comunidade de Pinhões perpassando pelo debate da afirmação da identidade
quilombola na comunidade. Tais dimensões, acredito, passam por dinâmicas de
autonomia, resistência e territorialização, no sentido de fazer-se comunidade e de
produzir localidade (APPADURAI, 2004). Assim pergunto: como é significada a
identidade quilombola em Pinhões? Quais os elementos são acionados no debate em
torno de tal afirmação? Quem defende que é uma comunidade quilombola e por que
defende isso?
Nesse sentido este texto será desenvolvido através de um percurso que propõe
articular dimensões de uma história do lugar, ou seja, da produção de localidade, no
termos defendidos por Appadurai (2004), traçando possíveis experiências e relações
constitutivas de Pinhões. Partimos do pressuposto, assim de que a localidade se faz
“como uma qualidade fenomenológica complexa constituída por uma série de vínculos
entre o sentido da imediatidade social, a tecnologia da interactividade e a relatividade
dos contextos” (APPADURAI, 2004, p.238). Pretendemos, assim, apresentar breves
análises, de uma pesquisa ainda em desenvolvimento, das dimensões constitutivas da
produção de localidade, das dinâmicas que fazem de Pinhões lugar, comunidade, nos
termos dos moradores. Entendendo que o lugar é produzido a partir e através de
relações de multiplas escalas e naturezas constituidas espaço-temporalmente e como
dentro de tais dinâmicas e contextos aparece a afirmação da identidade quilombola
articulada as noções de autonomia, resistência e territorialização.
***
Pinhões é um bairro localizado no município de Santa Luzia, Região
Metropolitana de Minas Gerais, a aproximadamente quinze (15) quilometros da sede do
município e conta com atendimento diário de transporte público, o que permite o
trânsito dos moradores para a sede do município e para a capital do estado, Belo
Horizonte5. São três as linhas que atendem a comunidade, duas destas estabelecidas em
5 Este trânsito foi historicamente realizado pelos moradores principalmente pelas balaieras (mais
adiante será dada mais atenção a este fato) que caminhavam a pé com os balaios na cabeça até a sede do município onde tomavam o trem com destino a Belo Horizonte, estação do Horto/estação central.
4
resposta à demandas dos moradores, que historicamente têm algumas de suas atividades
de trabalho fora dos perímetros da comunidade6.
A comunidade conta com uma unidade de posto de saúde e uma escola estadual
que atende até o Ensino Médio e tem aulas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no
período noturno. A escola recebe o nome de Escola Estadual Padre João de Santo
Antônio, o padre indicado por alguns moradores como „fundador‟ da comunidade,
sendo este responsável pela construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
padroeira da comunidade. A escola de Pinhões recebe auxílio merenda por ser
reconhecida como escola quilombola7. Em Pinhões há também o espaço da quadra
poliesportiva coberta que se constitue como um espaço de interação social. A quadra é
gerida por um grupo de moradores (equipe de acordo com a termilogia local), formado a
patir da indicação do pároco responsável pela igreja da comunidade já que a quadra foi
construída em é um espaço da igreja sedido para a construção da quadra como espaço
para a realização das atividades físicas da escola, bem como para a realização de festas e
grandes reuniões8. A comunidade conta com três associações civis com
representatividades distintas: a Associação dos Produtores Rurais de Pinhões,
responsável pela coleta do leite produzido na região, que é armazenado em um tanque
na própria comunidade e recolhido pela empreza Itambé; a Associação do Loteamento
organizada pelos moradores residentes no loteamento realizado pela prefeitura na
comunidade9; e a Associação Cultural das Mulheres de Pinhões
10 fundada com o intuito
6 4135 – linha que circula em 3 horários diários da comunidade até a estação de metro São Gabriel; 913
– linha de maior circulação com dois trajetos distintos entre a comunidade e a sede do município, Santa Luzia, atendendo também a comunidade do Engenho, localizada a aproximadamente 10 km da comunidade em sentido Jaboticatubas-Taquaraçu de Minas; 4125 – linha especial para atender as balaieiras, com percurso que atende a comunidade em apenas um horário pela manhã retornando a tarde com as trabalhadoras (entre balaieiras e domésticas/diaristas), esta linha deixa as balaieiras em seu ponto de trabalho em Belo Horizonte, na Rua Ponte Nova esquina com a Jacuí. Os moradores podem contar ainda com a linha Belo Horizonte-Jaboticatubas (5582) que circula nos dias úteis de hora em hora nos horários de pico. 7 Em buscas de informação da Escola pela internet identifiquei que a escola de Pinhões recebe auxílio
como escola quilombola. Dado a ser averiguado ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, já que Pinhões não se autoreconheceu como remanescente quilombo não possuindo o registro da Fundação Cultural Palmares. 8 A quadra foi ocnstruída pelos próprios moradores através de mutirões, assim como a reforma de
cosntrução da corbertura da quadra, na qual os materiais foram conseguidos através de doações, algo que é contado com muito orgulho que se empenham nos exercícios de negociação do uso da quadra com a igreja e com as demais organizações da comunidade como a Associação Cultural das Mulheres de Pinhões (desenvolveremos mais a fundo sobre esta Associação em especial mais adiante). 9 Ainda não tive acesso a data e ao processo que gerou o loteamento no bairro.
10 Fundada em 2009 como resultado de diálogos e oficinas promovidas pelo CEDEFES.
5
de conduzir os debates sobre a afirmação da identidade quilombola e a valorização da
negritude focando na produção de uma cosnciência negra e do estabelecimento de
diálogos com o poder público local para a resposta de demandas da comunidade.
Na rua principal da comunidade há serviço de esgoto e em toda a comunidade a
água é distribuida pela COPASA11
que tem um poço de distribuição de água localizado
na própria comunidade. Apesar da presença da COPASA são muitas as casas que não
contam com saneamento básico para coleta de esgoto servindo-se de fossas. Apenas as
ruas principais da comunidade (três) são asfaltadas, de modo que as outras quatro são de
terra ou de calçamento. Pinhões é composta de aproximadamente 40012
famílias,
segundo os moradores. Sendo este número muito próximo do número de domicílios,
mais do que das famílias que compõem a comunidade, já que as famílias são extensas e
se concentram em regiões específicas da comunidade.
Pinhões se constituiu a partir dos trabalhadores e escravos13
de duas grandes
terras vizinhas, situando-se na fronteira, ou melhor nas extremas, para utilizar a
categoria local, estre a sesmaria do Mosteiro de Macaúbas e a Fazenda de Bicas. O
Mosteiro de Macaúbas tem sua construção datada de 1714, o que revela uma
longeividade no tempo de povoação da região14
. O Mosteiro foi construido por dois
irmãos vindos de Alagoas que compraram o terreno onde se localiza o Mosteiro e outros
tantos alqueires de terra foram sendo conseguidos com a justificativa da realização de
atividades para o sustento do Mosteiro15
. Os irmãos fundadores do Mosteiro vieram em
comitiva com suas filhas e filhos bem como munidos de escravos. Antes mesmo da
construção do Mosteiro este obteve autorização para vestir o hábito de Nossa Senhora
da Conceição, da qual os irmãos eram devotos.
11
Agência de distribuição e tratamento de água do estado de Minas Gerais. 12
Segundo CEDEFES, no projeto Quilombos Gerais de mapeamento das possiveis comunidade quilombolas de Minas Gerais, Pinhões é a segunda comunidade com maior número de moradias (350), ficando atrás penas de Brejo dos Crioulos (483) (CEDEFES, 2008). 13
Trabalhamos com essas duas categorias em consoancia aos discursos dos moradores que transitam entre ambas, afirmando-se descendentes de escravos em situações de construção lógica muito mais que de reconhecimento. Este uso será analisado mais adiante no texto. 14
Segundo Galizoni o tempo de povoamento está intimamente ligado solidez das formas de apropriação da terra e com a oferta de recursos (GALIZONI, 2000 – dissertação de mestrado USP) um ponto relevante para se pansar a solidez das relações constitutivas da ‘comunidade’ de Pinhões. 15
Dados construídos ao longo de análises no Arquivo Público Mineiro e no Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte, nos foi possível identificar apontamentos de cartas trocadas com Rio de Janeiro e com um Padre chamado Padre Lana, em Portugal para a aquisição de terras no formato de sesmarias e para as atividades de colégio de moças no Mosteiro.
6
A construção do Mosteiro, assim, foi um fato relevante para a região e não foi
diferente para história de Pinhões. Ao conversar com os moradores sobre a origem da
comunidade, todos afirmam que Pinhões surgiu dos escravos e trabalhadores do
Mosteiro e da Fazenda de Bicas, duas grandes terras das quais Pinhões está na „extrema‟
de ambas:
Pesquisadora: então foi o dono da Fazenda de Bicas que cedeu a
terra para o pessoal que trabalhava fazer as casas...
-É...a terra era até aqui, (aponta para o fundo da sua casa) era
enorme minha filha...
Pesquisadora: A Fazenda vinha de lá do final de Santa Luzia....é isso
mesmo?
- É Você sabe ali vindo pra cá, onde tem uma igrejinha ali na beira da
estrada?[local identificado pelos moradores como FECHO] É de
Nossa Senhora da Conceição, pois é, dali pra cá tudo era deles...[...]
A extrema era aqui oh....de Macaúbas era aqui. Então sabe ali onde
Alice16
mora, ali tudo era do Mosteiro de Macaúbas. Ali é Chácara,
que o dono que comprou uma parte na mão das irmãs chacriou, mas a
extrema de Macaúbas é ali oh...ainda não é bem na casa de Alice não,
é no fundo da casa de Alice.
Pesquisadora: eram duas grandes terras, e vocês ficavam no meio e
trabalhavam nas duas?
-É, então tinha escravo de Macaúbas e escravo da Fazenda Bicas e
foi aí que formou esse povoado de Pinhões. 17
As „extremas‟ são marcadores dos limites entre as terras sobre as quais a
comunidade se constituiu. Estes limites estão vivos nas memórias dos moradores que
são capazes de localizá-las e que o fazem sempre que indagados sobre a história da
comunidade.
A narrativa de outra moradora, Dona Elisa Azevedo18
sobre a história da
comunidade se mostra muito específica em relação às demais narrativas, já que ela
realizou uma pesquisa sobre a genealogia de sua família e identifica uma figura
feminina que teria gerado três diferentes famílias que constituem a comunidade de
Pinhões:
16
Os nomes são fictícios, a utilização dos nomes reais será discutida com os moradores no contexto de realização do trabalho de campo de maior fólego que será realizado em Junho/Julho deste mesmo ano, 2014. 17
Entrevista realizada com uma moradora de pInhões identificada pelos moradores como principal detentora da história da comunidade, atual presidente da Associação Cultural das Mulheres de Pinhões. Entrevista realizada em Agosto de 2012 no contexto de elaboração da Monografia de Conclusão de Curso. 18
Dona Elisa é uma senhora de aproximadamente 65, 70 anos, dona de casa.
7
Não se sabe precisar bem a data a gente sabe que foi numa década do
século XVIII. E naquela época era comum o governo arrumar terra pra
certas pessoas, arrendatários tomar conta de um tanto de terra e essas
terras eram chamadas de sesmarias. Então aqui tinha uma sesmarias
pertencente a fazenda das Bicas que era aqui e a divisa dessas fazenda era
aqui [aponta para o fundo do quintal] com a sesmaria do Mosteiro de
Macaúbas. Então o que se sabe é que aqueles escravos de mais confiança
dos senhores lá da fazenda das Bicas eles mandaram pra aqui pra vigiar
demarcação de terra, pra não haver invasão da sesmaria de lá pra cá, né.
Porque era em aberto né, não havia cerca de arame, nem muro, né. Então
o objetivo dos donos da sesmaria da Fazenda das Bicas era mandar os
escravos pra aqui pra servir de vigia, e eles é que foram os primeiros
moradores e o povoado foi criado daí, desses escravos que vieram. E
depois foi rolando um intercâmbio de casamento, de matrimonio dos
escravos daqui com os escravos da sesmaria de Macaúbas.
Bom, eu procurei saber a origem da minha família. A família do meu pai
eu procurei saber os antepassados, então eu fui até uma mulher chamada,
eu sei que o nome dela real era Ana, Essa Sá Aninha, ela deu origem a
família Azevedo, que é a minha que tem muito pouca gente,[...] porque a
Sá Aninha foi casada com um homem chamado João José e esse João José
foi numa festa do Divino em Macaúbas e dizem que foi morto lá [...] Essa
Sá Aninha inventou de ter outro filho com o nome de Marçal, [...] e esse
Marçal deu origem a família Diniz que é lá do Ambrósio. O povo lá.Aí
gerou a família Diniz, depois a Sá Aninha teve outro filho por nome de
Luciano, esse Luciano gerou a Pereira. Então a própria Sá Aninha tinha
uma geração com o nome Azevedo, a outra com o nome Diniz, eu não sei
se é cada homem que ela arrumava e esse Luciano gerou os Pereira. Então
esse não foi o primeiro morador daqui não, você entendeu, ele não foi o
primeiro, é descendente de escravo, sim, porque naquela época todo negro
era escravo, então não tem onde escapolir. E depois foi mistiçando né, que
foram casando procurando mulheres brancas né, pra casar e tudo, então
já foi misturando as raças.
É interessante pensar nas famílias que constituem a comunidade no sentido que
os moradores são identificados a partir deste registro que se mostra fortemente operante
em dois sentidos, na organização e distribuição das residências pelo território da
comunidade e nas festas realizadas na e pela comunidade19
. Quanto a distribuição das
famílias pelo território o local de residência se faz diretamente vinculado as relações de
trabalho/escravidão estabelecidas em relação às fazendas no entorno e ao Mosteiro:
...a família TELES, a família GERÔNIMO, [...] era escravo de
macaúbas[...]. Família SANTOS, que veio lá, da Fazenda Bicas, que
mora lá na Vagna, onde faz panelas[...] Pois é... tem os
CARVALHO[...] que veio de Lagoa Santa, [...] trabalhava também
pro...ali onde é Nana Bahia, então Nana Bahia também era de
19
Este ponto será abordado adiante.
8
Fazenda das Bicas.[...] Ali era um fazendão, aquela beirada de Rio,
ali, aquela ruazinha ali onde Lilicia mora, ali tudo ali era gente que
morava que trabalhava pra eles... ele, (morador do comunidade
conhecido como Zé Garotão) a família dele era da Alcatruz, Alcatruz
é aqui onde é o Aras, e lá também tinha escravo, né, na Alcatruz, lá
também tinha escravo, Fazenda Alcatruz20
.
As fazendas apontadas acima, como Alcatruz, por exemplo, a Naná Bahia e a
fazenda Santa Helena que será apontada adiante por Dona Elisa são de dimensões
menores que a Fazenda de Bicas acredito, sendo algumas delas inclusive repartições
desta. Naná Bahia, segundo Dona Elisa era a esposa de um dos herdeiros da Fazenda de
Bicas, e ela comandava junto com o marido um armazém que ficava nos âmbitos da
comunidade de Pinhões. Onde se localizava o armazém atualmente é uma praça, onde
se realiza o encerramento da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Pinhões. O casarão
foi demolido e segundo uma das lideranças da Associação Cultural das Mulheres de
Pinhões, a secretária geral, eles lutaram para que este não fosse demolido, havia o
desejo de que o casarão fosse um centro cultural ou, porque não, a sede a Associação,
nas palavras da liderança.
Quando indagados sobre a origem da comunidade aos moradores21
as narrativas
apontam para a construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pinhões como
marco incial de fundação. É interessante ressaltar que o início da construção da Igreja
data de 1900, um período pós-abolição, um dos indícios do trânsito entre as categorias
de trabalhadores e escravos. Quando „fundada‟ a comunidade não havia escravidão.
Além deste ponto, as relações assimétricas que a escravidão pressupõe são
transpassadas pelo lugar da Igreja na comunidade (civilizador e referência da
constituição de uma moral22
) e pelo discurso de benevolência em relação aos
fazendeiros e das multiplas famílias e relações constituintes da comunidade.
20
Entrevista realizada com a presidente da Associação Cultural das Mulheres de Pinhões, em Agosto de 2012 em contexto da elaboração da Monografia de Conclusão de Curso, Ciências Sociais, PUC-Minas. 21
Ingaguei sobre a origem e história da comunidade com moradores em sua maioria idosos e meia idade identificados como figuras conhecedoras da história local. Duas mulheres idosas, uma delas presidente da Associação Cultural das Mulheres de Pinhões, duas de meia idade também membros da Associação, Dona Elisa, um antigo pároco da Igreja da comunidade atualmente aposentado e residente na comunidade e o mestre da Guarda de Catopé da Comunidade. 22 Fala de Dona Elisa: Então filhos ilustres não tem, mas tem pessoas que foram muito notórias na
comunidade, por exemplo tem o Marcos Gerônimo, ele chamava Marcos Gerônimo da Conceição. Era um negro, sabia ler e escrever, só que o ele não sabia era regras gramaticais, concordancias verbais ele não entendia, mas lia e escrevia. E era um homem católico que na época ele, ele é descendente lá de Macaúbas, da sesmaria, lá ele era sacristão, ajudava o padre a celebrar em latim, aprendeu, sabe? Então ele era uma figura de muita importância na comunidade.
9
Vamos dizer assim que num tem uma família, uma geração com filhos ilustres não,
não tem, mas com o decorrrer dos anos que aqui não tinha igreja, não tinha
cemitério, não tinha nada, eles comemoravam no cruzeiro, acho que o nome era
uma cruz. [...] Então aqui eles botavam um cruzeiro então aí lá eles iam lá cultuar,
São João, São Pedro, Santo Antônio, Santa Cruz... E como era caminho de tropa,
de burro, o Padre João de Santo Antônio, ele é de Morro Vermelho, lá no
Município de Caeté, mas ele tava lá em Cordisburgo lá em Sete Lagoas.[...] Então
ele passando a cavalo que parece que ele tava indo pro Mosteiro né, ele viu o povo
numa festa lá no cruzeiro, porque o caminho de Santa Luzia entreva lá em Santa
Helena ali na frente, passava por dentro assim e saia lá no cemitério [local de
hoje, onde se localizava a cruz/cruzeiro dos festejos], não tinha essa estrada na
beirada do rio. Então ele passou lá e viu minha filha, cultuando um santo lá não
sei o que que era, mas a cachaça rolando e o tambor no batuque, e aí a hora que
um queria entrar no batuque o outro não queria sair ainda e aí é que virava a
briga de foice, e, o golo, né. Aí ele passou a cavalo e viu e perguntou pra eles se
eles tinham vontade de ter uma capela, pra festejar o santo. Eles falaram que
tinha. Ele falou então, eu vou prometer vocês que eu volto pra gente ver como é
que vai fazer uma capela aqui. Mas até acontecer vocês vão me prometer uma
coisa, podem vim aqui cultuar os santos todos que vocês estão cultuando, mas
vocês podem ficar aqui só até nove horas da noite, deu nove horas todo mundo tem
que ir embora pra casa. Não pode ficar. Uma maneira deles beber menos, ficar
menos tempo né, pra evitar briga. E ele voltou.23
Sobre o prisma de que a memória trabalha no exercício de construir identidades
e auto-imagem24
(NOVAIS,1983), estas são cosntruídas atráves de dimensões espaço-
temporais constituindo espaços e período(s)-âncora, de onde partem as referências
(WOORTMANN, 1998). O tempo de chegada do padre João de Santo Antônio e a
construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário podem ser pensandos sobre tal
perspectiva. É a partir deste espaço construído em um determinado período-âncora que
a comunidade se institue enquanto tal. Essa narrativa de fundação vem acompanhada
também da força da Igreja Católica na constituição da comunidade e na marcação de um
ato civilizador que organiza o batuque (candombe segundo o mestre da Guarda de
Catopé), os cultos, o espaço, com a construção da igreja, do cemitério, etc. Dimensões
constitutivas de uma forte relação que perpetua na comunidade assuimindo a Igreja o
lugar de principal „Outro‟ legitimador das práticas e condutas, foco de negociações
múltiplas, quais sejam, a utilização e gestão da Quadra, as festas e cultos realizados na
comunidade, a utilização dos espaços do Centro Catequético, para reuniões da
23
Fala de Dona Elisa entrevista realizada em Agosto de 2012. 24
“Auto-imagem [...] implica características não fixas, estremamente dinâmicas e multifacetadas que se transformam, dependendo de quem é o outro que se torna como refer~encia para a cosntituição da imagem de si e mais, de como as relações com este outro se transformam ao longo do tempo.” (NOVAES, 1983: 27,28 apud FILHO, 2008 – artigo apresentada na 26ª RBA)
10
Associação Cultural das Mulheres, por exemplo. Essas relações de negociação são
historicamente constituidas e revelam os limites da própria Igreja Católica quando tais
negociações são realizadas diretamente com o pároco responsável pela igreja local,
flutuando a cada novo pároco – quais festas religiosas passam pela igreja ou não; a
fundação da Guarda de conga na comunidade, um desejo expressado pelas mulheres,
principalmente aquelas que compõem a Associação, e agora será fundada num regime
tutelar em relação ao pároco e ao seminarista assistente que definiram as regras, músicas
e processos que envolvem a fundação de uma guarda, apesar de existir na comunidade a
Guarda de Catopé, que se faz exclusivamente masculina.
Na esteira dos breves apontamento realizados acima, que não serão
aprofundados neste texto por questões de espaço e consistência dos dados ainda em
construção, nos é possível afirmar que grande parte dos ex-escravos que
constituiram(cosntituem) a comunidade de Pinhões são apontados pelos moradores
como escravos da Igreja (Mosteiro de Macaúbas) ou escravos de confiança da Fazenda
de Bicas. Espaços estes com os quais os moradores ainda mantém relações na
constituição de Pinhões enquanto Lugar. Ao assimilar a escravidão a uma noção de
sofrimento e castigo, os moradores não acionam sua memória diretamente a um passado
de escravidão. Não foram castigados ou explorados pela Igreja ou pelos donos da
Fazenda que lhes sedeu o lugar de moradia:
Então porque Pinhões é uma origem de sesmaria, aqui ninguém tem
escritura, todo mundo tem posse. Porque a família lá da sesmaria, os
herdeiros, eles nunca quiseram, é, simplesmente deixaram, pra evitar de
pagar o imposto no INCRA, eles preferiram, abandonar aqui, tirar do
registro da parte deles, mas eles também não arrumou escritura naquela
época pra ninguém, né. Olha a quantos anos atrás, né. E aí porque, aqui é
uma posse, que todo mundo é, cada um foi fazendo seus ranchos, depois foi
melhorando a situação foi fazendo um barracãozinho melhor, mas
ninguém tem escritura. Mas existem regiões quilombolas onde o pessoal
quilombola enfrenta muita dificuldade com os fazendeiros daquela região
né. Mas o nosso não acontece isso porque a família que foram donos né da
sesmaria, os herdeiros, eles tem um carinho muito grande por Pinhões.
Então ninguém nunca teve vontade [de afirmar quilombola e disputar
terras].
Então a origem de Pinhões é essa, nós não sabemos quem foram os
primeiros moradores, mas sabemos que é, a comunidade aqui foi criada
por escravos que vieram morar aqui. Existe um impasse [silêncio], muita
gente não gosta de falar que a gente é descendente né, é remanescentes de
escravos entendeu. Principalmente aqueles que tem preconceito, que não
quer saber de falar que é negro. Como se isso fosse pecado.
11
As possibilidades do reconhecimento de uma identidade quilombola chegou na
comunidade de Pinhões através do CEDEFES em contexto da realização do “Projeto
Quilombos Gerais‟ que almejou identificar comunidades quilombolas no estado de
Minas Gerais. A realização deste projeto resultou na publicação de um livro
“Comunidades Quilombolas no estado de Minas Gerais no Século XXI: história e
resistência” e na conformação da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas
Gerais, N‟Golo. Foi a partir da indicação de uma liderança do Movimento Negro de
Santa Luzia que o CEDEFES foi informado de Pinhões e estabeleceu diálogos com a
comunidade no sentido de informar sobre as possibilidades da afirmação da identidade
quilombola. Este contato se deu entre os anos de 2006 e 2009 e cuminou na formação
da Associação Cultural das Mulheres de Pinhões, fundada em 2009, ano que iniciaram
meus contatos com a comunidade, também estabelecidos via indicação do CEDEFES de
um rico campo de vivências em torna da afirmação da identidade quilombola na Região
Metropolitana de Belo Horizonte.
Foram idas e vindas em relação a afirmação da identidade diferenciada. Em um
primeiro momento a Associação Cultural das Mulheres de Pinhões se apresentou à
comunidade em uma festa realizada em homenagem ao dia das mulheres com o seguinte
nome: Associação Quilombola das Mulheres de Pinhões. Vários foram os debates,
internos à Associação sobre as categorias, quilombola, cultural e mulheres pressupostas
nos possíveis nomes da Associação e, ao registrar-se enquanto associação civil em
2010, o nome assumido, então, foi Associação Cultural das Mulheres de Pinhões. Ao
interpelar os membros da Associação sobre a retirada do termo quilombola da
Associação foi-me informado de que a questão da comunidade ser quilombola não era
um consenso na comunidade. Como a Associação se pretende representativa da
comunidade nos diálogos com o poder público local, não se podia colocar algo que não
era(é) consenso. Ainda segundo as lidenranças da Associação o termo cultural abrangia
a ideia de valorização da cultura local e da intensão em se trabalhar a consciência negra
na comunidade.
Os conflitos situados em torno da afirmação da identidade quilombola25
, em
conversa sobre o tema com a presidente da Associação e a partir dos dados apresentados
acima, giram em torno das disputas em relação ao reconhecimento do território da
25
Tais conflitos são objeto da dissertação de mestrado em desenvolvimento e portanto os dados etnográficos de descrição de tal situação ainda estão sendo forjados.
12
comunidade. As significações em torno da afirmação da identidade quilombola se
manifestam no sentido do entendimento de que o fim último de tal afirmação é a
regularização do território no formato de terras de uso comum. Segundo conversa muito
delicada com a presidente da Associação, no contexto inicial do debate com a presença
do CEDEFES ministrando palestras e oficinas houveram brigas entre irmãos e desunião
entre famílias inteiras sobre a sombra de que as terras se tornariam coletivas, com uma
gestão comum e fora das transações de mercado. Várias foram as falas sobre o fato de
que a terra, mesmo sobre o domínio de posse, era(é) o único bem, a reserva familiar em
caso de necessidade última.
Outro ponto de desconfiança em relação a afirmação da identidade quilombola
veio ao longo do período pós contato com o CEDEFES quando alguns projetos voltados
à comunidades quilombolas começaram a ser realizados na comunidade em parceria
com a Associação Cultural das Mulheres. Projetos que, segundo as lideranças já chegam
prontos e não podem ser discutidos com a comunidade para alterações no sentido de
uma execussão mais próxima das demandas locais. “Eles vem aqui, ganham dinheiro e
fazem tudo do jeito deles. Vê se pode servir coxinha pros convidados da festa? A gente
tem a nossa comida que servimos em dia de festa.”26
Nesse sentido, a afirmação da identidade quilombola foi significada pelos
moradores como uma perda de autonomia em relação a gestão de suas terras, a
condução dos projetos e resposta de demandas. A noção de terras de uso comum,
pressuposta juridicamente como fim último do reconhecimento como remanescentes de
quilombo, não se apresentou, neste primeiro momento, como um exercício de
autonomia, o que levou a uma certa resistência dos moradores a tal afirmação. A
questão quilombola, assim, se situou como um debate velado, conduzido
exclusivamente pela Associação Cultural das Mulheres de maneira indireta, ou seja, no
desenvolvimento de festas e homenagens ao dia das mulheres e ao dia da consciência
negra, nas quais se apresenta um discurso de valorização da cultura local.
Algumas das dimensões das experiências historicamente constitutivas da
comunidade apontam para tal significação da identidade quilombola e, principalmente a
26
Fala da liderança da Associação em menção a um projeto que realizou seu encerramento com uma festa na comunidade com a presença de todas as comunidades quilombolas envolvidas.
13
noção de terras de uso comum, além da diversidade de formas de ocupação do território
que compõem o bairro27
.
Uma dimensão importante e diretamente articulada às famílias e as alianças
entre famílias que se mostrou um campo a ser explorado são as configurações de uso da
terra. Em minhas incursões a campo, prévias ao trabalho profundo que como afirmado
anteriormente se sucederá, pude perceber algumas das dinâmicas do uso da terra para
plantação e criação. Em conversas com alguns moradores que revelaram uma memória
relativamente recente, já que são pessoas entre 40 e 60 anos, que em suas infâncias
trabalharam com seus pais e irmãos nas lavouras das fazendas que faziam, e algumas
ainda fazem, fronteira com a comunidade, no plantio de tomates, quiabo, cana, milho,
etc, no formato de plantio na meia e na quarta, no qual porcentagens de suas produções
eram entregues aos donos das terras como pagamento pela utilização da terra.
Atualmente as atividades de plantio, em geral, estão condicionadas a pequenas
produções para uso doméstico realizadas em lotes de cunhados, irmãos e sobrinhos, até
onde tive acesso. Plata-se um pouco de milho no lote sem área construída, divide-se os
fundos da casa para criação de gado com o cunhado, três cabeças de um e quatro do
outro, enquanto o capim para tratar do gado é plantado no lote de um primo, e assim por
diante. São relações que se mostraram interessantes e que ainda se fazem muito
insipientes enquanto dado, mas revelam um ethos camponês resistênte mesmo às
atividades de trabalho na cidade de Belo Horizonte e Santa Luzia realizadas pelos
moradores, muitos destes pedreiros, trabalhadores em firmas em Santa Luzia,
empregadas domésticas e diaristas em Belo Horizonte geralmente, etc.
Tais dinâminas apresentadas acima, somadas ao histórico de formação da
comunidade, sustentam a hipótese de que Pinhões se constituiu enquanto “chão de
morada” (WOORTMANN, 1990; WOORTMANN, 1983). As atividades de trabalho se
constituiram historicamente fora dos limites de moradia, nas lavouras e fazendas do
entorno, através de cultivos na meia e na quarta como já apontado acima, bem como na
cidade. Restringem-se aos limites da comunidade pequenos plantios de hortaliças e
pequenas criações no modelo do “sítio camponês” (WOORTMANN, 1983), produção
27
Em Pinhões há um grande hotel fazenda situado ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e que compreende uma grande área de mata com lagoa e pesque-pague. A comunidade está sercada, também de pequenas chácras de fim de semana, os sitiantes como nomedos pelos moradores; além da presença de um Aras, do loteamento e de fazendas de médio e grande porte em seus limites.
14
esta escoada pelas balaieiras, que tecem dinâmicas de troca e produção na comunidade
produzindo territorialidades múltiplas que alcaçam a capital do estado.
As balaieiras são mulheres que a gerações (a atividade já está complentando sua
terceira geração) levam verduras, frutas e doces em balaios de palha, tradicionalmente
produzidos na comunidade, para vender em Belo Horizonte na Rua Ponte Nova, esquina
com Rua Jacuí no bairro Floresta:
Pesquisadora.: e a senhora estava trabalhando? Todo mundo falou que a senhora
demorava pra chegar...
-É, eu sai pra Belo Horizonte. Eu era pequena e minha mãe ia pra Belo Horizonte
vender as coisas, pra Lagoa Santa, atravessava o rio La embaixo, com balaio na
cabeça, atravessa o rio em barca pra levar balaio com panela de barro pra vender
em Santa Luzia, Lagoa Santa...
Pesquisadora: é...e a senhora levava o que....
-Panela de barro pra vender em Lagoa Santa,depois a gente foi crescendo e
mamãe ia muito em Lagoa Santa e mamãe criou a gente assim sabe, ia muito a
Belo Horizonte, num tinha ônibus nem nada não, a gente ia a pé, daqui até Santa
Luzia e pegava trem de ferro na estação de Santa Luzia. Muito trabalhoso não
tinha asfalto nem nada era estrada de chão, aquele matão assim, e a gente ia com
a mão assim, e o capim abria, a gente ai, eu era pequena com o balaio na cabeça
sabe... aí a gente ia e chegava lá e descia lá na estação do Arruda, lá perto do
Perrela... [...] É...ali no Santa Efigenia...aí a gente descia ali, a mamãe punha os
balaio na cabeça e eu ia atrás, tinha mais donas de idade que já morreu sabe, mas
igual hoje a gente ainda vai pra Belo Horizonte vender, mas é outra turma, morreu
os velhos e a gente ficou no lugar dos velhos, já morreu muita da minha idade
também, as velhas vão morrendo e os filhos vão ficando no lugar, sabe, é tradição.
P.: e a senhora vende o que lá hoje?
-Hoje, eu fui lá, a gente vende verdura, fruta, vende doce, vende ovo...
P.: aonde?
- Lá na Floresta, na Rua Ponte Nova com Salinas, cruzamento ali de jacuí com
Salinas e Ponte Nova, é lá que a gente vende, em frente a porta da Igreja São
Pedro. De terça a sábado tem gente lá... todo dia tem gente lá. Então a gente não
leva quando igual esses dias aí pra trás que deu muita chuva, acabou com as
plantas, com as hortas tudo. Igual, pega de outros quintal, igual de vizinho que
vende pra gente, do meu filho que tem quintal, tem gente que dá pra gente...então é
assim. Doce mesmo eu desde 9 anos que fazia pra vender, pra ajudar mamãe que a
gente morava numa casa de pau a pique com cipó tampado de barro, e dois
cômodos só, mamãe nos criou assim, mas era oito filhos, aí depois que eu cresci eu
fui trabalhar na roça que eu falei mamãe vão fazer uma casa e ela disse uai tem
jeito não minha filha nós vão é passar fome, de jeito que nós vai fazer....falava o
belo, num falava belo horizonte não, de que jeito que nós vai pro belo vender essas
coisas aí nós vai arrumar um jeito de fazer casa... ah não nós vai fazer sim mãe,
deus vai ajudar que nós vai fazer. Aí minha filha, eu era solteira ainda, eu mais
mamãe fizemos uma casa de quatro cômodos, é de quatro cômodos, aí depois que
eu casei e os meus meninos ficaram grande é que eles fizeram essa casa.28
Assim, as balaieiras são parte de uma teia de trocas de produtos bem como
figuras importantes na constituição da comunidade nos seus vínculos estabelecidos em
28
Entrevista realizada com Dona Doralice, balaieira, em Janeiro de 2012.
15
Belo Horizonte. Muitas mulheres que trabalham hoje em Belo Horizonte como
empregadas domésticas ou diaristas foram indicadas pelas balaieiras a suas clientes.
Muitas mulheres escolarizadas da comunidade fizeram seu processo de escolarização
em Belo Horizonte morando e trabalhando em „casa de família‟. As balaieiras, assim,
estabelecem uma rede constituida e alimentada a gerações. Rede esta que configura uma
territorialidade interessante que extrapola os limites físicos-geográficos da comunidade.
Outro ponto interessante das balaieiras é que em sua maioria são mulheres, o que
configura numa rede de fluxo de mulheres, são elas que extrapolam mais longicuamente
temporal e espacialmente falando os limites da comunidade, trazendo novidades e
perspectivas para a comunidade como um todo. São as balaieiras também que ainda
hoje transportam as roupas para lavar. Muitas delas eram lavadeiras ou passavam o
serviço para suas irmãs, primas e tias. Um fato que, apesar de não mais acontecer na
beira do Ribeirão Vermelho com muita cantoria ainda mantêm uma rede de encomendas
para lavar, passar e/ou engomar29
. O ônibus das balaieiras, o 4125, vai e vem de Pinhões
diariamente repleto de balaios e trouxas de roupas e regado de boas conversas e risadas,
um espaço de interação e socialização.
Uma outra dimensão que revela alianças e dinâmicas de conformação familiar,
além de se constituir como um espaço privilegiado pela comunidade para a produção e
transmissão viva das histórias, são as festas. Podemos dizer, que Pinhões é uma
comunidade em festa! Com um vasto calendário anual festivo, Pinhões tem como sua
principal festa a Festa de Nossa Senhora do Rosário de Pinhões, um grande
evento/ritual que organiza um calendário anual de atividades, de outubro a outubro,
quando acontece a Festa em si. São três dias de festa no mês de outubro, sempre num
sábado, domingo e segunda-feira, além da novena que antecede estes dias. Compõe o
calendário anual da festa de Nossa Senhora do Rosário também uma peregrinação com
a imagem de Nossa Senhora do Rosário pelas casas da comunidade. A peregrinação
inicia-se em Maio, numa região mais rural da comunidade conhecida como Mata
Virgem, ou Pau D‟Óleo, e se encerra numa visita ao Mosteiro de Macaúbas e as casas
em seu entorno, estas responsáveis pela manutenção dos roçados e criação do Mosteiro.
A Festa de Nossa Senhora do Rosário conta com a participação da Guarda de Catopé da
29
Segundo os moradores o Ribeirão Vermelho hoje se encontra poluido demais para desenvolver essas atividades assim como outras, como os banhos de diversão: “hoje não dá mais pra ir se banhar no rio” (fala de uma moradora, antiga lavadeira).
16
comunidade, composta apenas por homens de todas as idades. A Guarda conta com um
número aproximado de cem integrantes sendo mantida pelas promessas, geralmente
realizadas pelas mães à Nossa Senhora do Rosário e tem como pagamento o ingresso do
filho na Guarda. Após sete anos de participação na Guarda é firmada a irmandande
entre membros. Como uma das conclusões apresentadas na monografia30
pude perceber
que tanto a peregrinação como a Guarda de Catopé realizam percursos pelo território da
comunidade, percursos estes que extrapolam as extremas, tecem histórias, atualizam
relações sociais e sagradas responsáveis pela constituição da comunidade.
Outra dimensão interessante da Festa de Nossa Senhora do Rosário é o fato de
que ela sempre é produzida por um casal de festeiros, que não necesseriamente precisam
ser casados, em verdade quase nunca se configura como um casal de noivos, já que
estes devem pertencer a mesma família, em geral são mãe e filho, primo e prima, tia
sobrinho, etc. O casal festeiro é revelado sempre no penúltimo dia de Festa (o
domingo), onde são passados os bastão e coroa de um rei e rainha a outro. A definição
do casal festeiro é feita em negociação com o padre responsável pela Igreja da
comunidade e com as coordenações da igreja, e em geral os festeiros realizam a festa
num movimento de promessa a santa. Para realizar a Festa o casal mobiliza uma rede de
parentes e conhecidos para conseguir doações de alimentos, de figuras decorativas, de
infraestrutura de palco, etc, além de compor „equipes‟ (categoria utilizada pelos
moradores) para a organização e produção da Festa – a equipe da cozinha que prepara o
almoço, a equipe da quadra que organiza e decora o espaço, bem como as equipes de
composição das procissões. Nesse sentido, as festas são verdadeiras narrrativas
localizadas socialmente sobre a história da comunidade. Cada festeiro tem certas
liberdades na composição de elementos da festa. Apesar de existirem elementos
„convencionalmente‟ obrigatórios, cada Festa é uma, de modo que nesse fazer/viver da
Festa de Nossa Senhora do Rosário os moradores, de uma forma ou de outra, em certa
medida estão conscientemente „inventando‟ seu modo de viver e de contar uma história.
Além da Festa de Nossa Senhora do Rosário, acontecem outras tantas festas em
Pinhões. Cada família que chegou a comunidade trouxe sua festa. O dono da mercearia,
natal de uma comunidade próxima, chamada André Quicé, levou para Pinhões sua festa
de São João, com boi da manta e fogueira onde os devotos caminham sobre as brasas.
Na própria comunidade já existia uma família que tradicionalmente guarda as bandeiras
30
Na qual analisei mais a fundo a Festa de Nossa Senhora do Rosário de Pinhões.
17
de São João e Santo Antônio, os Pereira e Conceição. No dia de São João, assim
acontecem duas festas, em horários distintos para possibilitar a presença de todos. Além
desses exemplos há também as festas de São Sebastião, do Divino, de Santa Cruz etc.
Não são festas de grandes públicos como a de Nossa Senhora do Rosário, mas
reafirmam a hipotese das festas como locus de criatividade, como linguagem, como
idioma identitário da comunidade para dentro e para fora.
A partir e através das festas assim, as famílias e as alianças constituidas
assumem discursos próprios sobre a comunidade, fazendo história, assumindo narrativas
a partir do estabelecimento de vínculos e interações. Negociam em menor ou maior
medida com a Igreja local, com o Mosteiro, com os vereadores, etc.
O lugar de relevância ocupado pelas festas na comunidade e, em principal da
Festa de Nossa Senhora do Rosário com suas dinâmicas de territorialidades, nos permite
trazer para o diálogo a noção de „terra de santo‟, apresentada por Alfredo Wagner, como
uma possibilidades de se pensar a dimensão de terras de uso comum na comunidade de
Pinhões. Segundo Wagner(2008):
Pode-se dizer que ela [terra de santo] se refe à desagregação de
extensos domínios territoriais pertencentes à Igreja. [...] Consoante o
santo padroeiro destas fazendas, foram sendo adotadas denominações
que recobriram seus limites e lhe conferiam unidade territorial. [...]
Nas chamadas „terras de santo‟, entretanto, as formas de uso comum
coexistem, ao nível da imaginação dos moradores, com uma
legitimação jurídica de fato destes domínios, onde a santo aparece
representado como proprietário legítimo, a despeito das formalidades
legais requeridas pelo código da sociedade nacional. Sobressaem
nestas unidades sociais os denominados „encarregados‟ ou lideranças
do grupo que teriam basicamente funções vinculadas ao ciclo de festas
e ao cerimonial religioso. [o que ] mantém a coesão do grupo
acionando rituais de devoção. (2008, p.149)
Nesse sentido, acredito que a dimensão das festas é um locus privilegiado na
construção da comunidade de Pinhões, sendo estas, principalmente a Festa de Nossa
Senhora do Rosário, historicamente situada como idioma identitário no sentido de
situar sócio-espacialmente outras tantas dimensões da vida em sociedade, além de
conter em si a noção de terra de uso comum. Faz-se necessário assim, compreender
mais a fundo as relações entre terra, religião e festas, no sentido de revelar experiências
histórias norteadoras das noções de autonomia, resistência, pertencimento e identidade.
Digo históricas porque as experiências se fazem situadas em processos que constituem
18
territorialidades específicas (ALMEIDA, 2008) em movimentos de produção de
localidade que de forma alguma se fazem isolados de relações de poder constitutivas
das configurações culturais e histórico-estruturais, definindo limites dinâmicos nas
relações nós-eles.
Assim, entendendo a noção de territorialização sobre os pressupostos defendidos
por João Pacheco, a noção de processos de territorialização é uma chave analítica que
permite trabalhar com a definição de território sem tomar o social como uma dimensão
estática, revelando principalmente os conflitos contitutivos da definição do mesmo. Em
uma perspectiva processualista, João Pacheco propõe, assim, a noção de “processos de
territorialização” como uma dinâmica da relação intersocietária produzida em contextos
de conflito, e que compreende em si processos de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização. Quando sociedades com territorialidades distintas estão em contato,
sobretudo quando este contato acontece no formato de fricção interétnica31
, um fato
histórico, sobretudo a presença colonizadora muitas vezes incorporada pelo Estado,
instaura novas relações com o território, “deflagrando transformações em múltiplos
níveis de sua existência sociocultural” (OLIVEIRA, 1999, p.22).
Em si pensando por tal chave de análise, uma possível ameaça à reprodução
social da comunidade de Pinhões32
, bem como aprofundamentos nas análises dos
conflitos embutidos na afirmação da identidade quilombola somado a um exercício de
debates clareadores das implicações de tal afirmação com os moradores, podem gerar
uma ação social em direção a constituição da comunidade como um grupo étnico em
seu sentido organizacional. Um movimento no qual representação e realidade social são
dois lados da mesma moeda, de modo que a dimensão do simbólico é uma estrutura
imbricada na prática, campo de disputas que revela posicionamentos e hierarquias na
legitimidade das representações em jogo (BOURDIEU, 2002).
31
Conceito cunhado por Roberto Cardoso de Oliveira, para explicar os processos de contato entre grupos, para um aprofundamento na questão ver CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Pioneira, 1976. 32
No mês de maio deste ano, em entrevista com uma vereadora do município me foi informada a existência de um projeto municipal que altera as leis de uso e ocupação do solo atribuindo a Pinhões a categoria de área urbana na seção de Áreas de Interesses Especiais, podendo a mesma ser destinada a construção de conjuntos habitacionais e regularização fundiária nos parâmetros de urbanização vigente.
19
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