Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom
SER DEKASSEGUI NO JAPÃO, A UTOPIA DA CIDADE DE TOKYO NAS
PÁGINAS DA MADE IN JAPAN.
Rafael de Almeida Serra Dias, mestrando, bolsista CNPq.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
www.pucsp.br
Este trabalho é uma parte de um estudo mais amplo sobre a publicação mensal
Made in Japan (M.i.J.), produzida pela Editora Japan Brazil Communication (J.B.C.),
com circulação e redação no Brasil e no Japão, com o mesmo conteúdo, totalmente
escrita em português, iniciada em novembro de 1997.
Nas duas últimas décadas do século XX, teve início um o processo de inversão
do movimento migratório mundial, que implicou numa inversão de papéis: os países
que recebiam imigrantes passaram a fornecê-los. O Brasil passava pelo que os
economistas chamaram de a “década perdida” e por inúmeros planos econômicos mal
sucedidos foi um desses que exportou imigrantes para várias partes do
mundo.(KAWAMURA, 2003.) O Japão por sua vez conquistava os mercados mundiais,
se tornando a segunda economia mais poderosa do mundo, dois exemplos simbólicos
pontuais desse poder foram à montadora de automóveis Toyota, que alcançou a
liderança mundial no setor, e a compra da indústria do cinema norte americano pela
Sony.
A inversão migratória entre países que, no passado, mantiveram laços de
metrópole-colônia é comum, o que não foi o caso Japão-Brasil-Japão, que se
particulariza pelo fato de a cifra atingir a casa de dois milhões de pessoas no período
entre 1908 e o início de 2007.1 Esta imigração para o Japão, assim como a realizada há
cem anos para o Brasil, não se restringiu à questões puramente econômicas ou técnicas,
mas envolveu outra questão; desta vez não era o “branqueamento”2, mas algo com um
projeto muito semelhante.
1Dados disponíveis em http://www.editorajbc.com.br. Acessada em janeiro de 2006.
2 Numa adaptação muito própria das teorias raciais européias difundiu-se o ideal do “branqueamento” que
constituía na entrada de imigrantes europeus brancos que graças a sua superioridade racial, por meio de
vários cruzamentos extinguiria índios, negros e mestiços e assim possibilitaria nosso sucesso enquanto
nação. SKIDMORE, Op cit. SCHWARCZ, L.M. O espetáculo das raças – cientistas, instituições e
questão racial no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1993. Para ver essa discussão e a participação dos
jornais em: LESSER, J. – A negociação da identidade nacional. Imigrantes, minorias e a luta pela
etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001. p 198.
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De acordo com SASAKI a presença de grupos étnicos diferenciados, constituí
um sério incômodo ao governo japonês, pois feriam os padrões de homogeneidade
racial, elementos, fundamentalmente valorizados na cultura japonesa. Por essa razão,
governo e empresários optaram pela imigração seletiva de uma mão-de-obra pertencente
ao mesmo grupo étnico, mas nascida, no entanto, nos países em crise da América
Latina, dentre os quais o Brasil possui a maior colônia. (1998)
Em 1990, a rota Brasil-Japão deixou de ser ilegal3 e, com isso, inaugurou-se uma
nova etapa na relação entre os dois países. Na sociedade japonesa a palavra dekassegui
significa ir trabalhar longe. Primeiro se usava tal expressão para os imigrantes que iam
fazer a colheita no Havaí ou Canadá no século XVIII e voltavam para o arquipélago
nipônico, após o trabalho. Vale à pena ressaltar que ao nomear os brasileiros de
dekasseguis existe uma condição de sazonalidade imposta, ou desejada.
Esta população de brasileiros que chega ao Japão, lá encontra grande dificuldade
de comunicação e de adaptação ao trabalho e à cultura do país, num processo muito
semelhante ao enfrentado pelos seus ancestrais, que aqui aportaram4. As dificuldades
enfrentadas pelos dekasseguis em relação ao trabalho nas fábricas, são acentuadas
devido à falta de familiaridade com esse tipo de ocupação, que os próprios japoneses
designam de 3K Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (pesado) e de acordo com
Ocada: brasileiros erradicados no Japão, acrescentaram outros dois Ks: Kibishii (severo)
e Kirai (detestável).5
Imigração e imprensa têm, relações muito profundas6. Jornais e revistas, além de
informar e entreter seus leitores, exercem importante papel na vida social, pois formam
opiniões, denunciam e vigiam os poderes instituídos, a ponto de a imprensa ser
considerada por alguns, como um quarto poder. Essas funções ganham outros sentidos
quando consideramos que essa imprensa destinava-se a uma parcela específica da
população - os imigrantes - que se encontravam em ambiente hostil e necessitavam de
apoio e encorajamento.
3NINOMYA, M., Op. cit. Desde a década de 1980 percebe-se alteração em relação aos padrões dos anos
anteriores. Foi somente em 1990, porém que o governo Japonês facilitou a entrada dos nipo-brasileiros no
país. 4LESSER, Op cit, p.163 Um exemplo desta insatisfação fica claro em uma canção popular “Foi uma
mentira quando disseram que o Brasil era bom”. Para maiores informações ver, HANDA, T., Op.cit
p.123. SAKURAI. Op. cit, p.215 e NOGUEIRA. Op.cit. 5OCADA, F, K. A tecelagem da vida com fios partidos: As motivações invisíveis da emigração
dekassegui ao Japão em quatro estações. Tese (Dissertação de Doutorado em Sociologia) Araraquara,
SP: FCL – UNESP, 2006. 6Para saber mais DREHER, M.N., RAMBO, A.B. e TRAMONTINI, M.J.(orgs) Imigração & Imprensa.
Porto Alegre: Est/São Leopoldo: Instituto Histórico de São Leopoldo, 2004.
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Em 1992, apenas dois anos depois da migração tornar-se legal, foi criado um
meio de comunicação comercial para os brasileiros que estavam no Japão. Observe-se,
de saída, a diferença em relação ao início da imprensa japonesa no Brasil das primeiras
décadas do século XX. Nesse momento, os impressos eram produzidos de forma
precária, do ponto de vista gráfico, e sem a preocupação em aferir lucros. Durante o
Estado Novo, publicações em língua estrangeira foram proibidas de circular, restrição
que desapareceu apenas depois da Segunda Guerra Mundial. A imprensa japonesa
ressurgiu no Brasil, ainda que em outros moldes, agora mais comerciais.
O próprio fundador da Japan Brazil Communication (J.B.C.) o empresário
Masakasu Shoji teve a oportunidade de perceber a importância dessa imprensa. Depois
de viver trinta anos no Brasil, ele vendeu seus negócios aqui, e foi para o Japão
exclusivamente para criar um jornal voltado inteiramente aos dekasseguis. Ele mesmo
assume que devido ao seu antigo contato com a imprensa japonesa no Brasil, quando
ainda não dominava o português, que percebeu as potencialidades do mercado formado
pelos imigrantes e fundou seu negócio em moldes capitalistas. Assim surgiu à editora
J.B.C., cujo primeiro produto foi o matutino Jornal Tudo Bem, que circula até hoje com
periodicidade semanal.(ARAI, 2004.)
Totalmente escrito em português, o jornal tem como slogan a enfática frase: “um
guia de sobrevivência para os brasileiros no Japão”. À primeira vista, o seu título e
slogan parecem contraditórios, uma vez que se tudo está bem, não há necessidade de um
guia de sobrevivência. Porém, uma leitura mais criteriosa, revela que a idéia do jornal é
exatamente essa: sem recorrer a ele, o individuo estaria, como que perdido numa selva,
mas, com a ajuda do matutino, tudo se resolve de forma satisfatória.
Após cinco anos do seu lançamento, em 1997, a J.B.C colocou no mercado seu
projeto mais audacioso, a revista mensal Made in Japan (M.i.J.). E assim a editora
passou a atuar nos dois países, isto porque a publicação era – e segue sendo - escrita
inteiramente em português e circula, com o mesmo conteúdo, no Brasil e no Japão. Por
meio da revista, a editora promove discussões, ídolos nippo-descendentes e imagens
sobre o Brasil e o Japão, sem deixar de lado seus próprios produtos editoriais.
Na primeira vez que escreveu na M.i.J., seu fundador definiu-a como: “uma
revista especializada em assuntos do Japão.”7 Precisar o campo de atuação de uma
7 SHOJI, M.M.I.J. n 60 p 4 set 2002.
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revista é sempre um assunto complexo,8 ainda mais no caso dela, que possui a
singularidade de circular em dois países, dirigir-se a dois públicos distintos, com
necessidades e expectativas, nem sempre idênticas. Poderíamos facilmente classificá-la
como uma revista de variedades, porém isto por si só não basta.
A segmentação das revistas no mercado mundial e brasileiro, vêm acontecendo a
muito tempo e mais rapidamente no último quarto do século passado, como afirma
Maria Celeste Mira: o mercado de revistas vive, nos anos 90, uma aceleração desse processo. Uma
verdadeira avalanche de publicações superlota as bancas. No mercado brasileiro falava-se, em 1997, em
pelo menos 1.130 títulos diferentes. (2003. p.213.) Porém no fim da década de 1990 o mercado
brasileiro foi surpreendido com a revista Raça Brasil, que em 1996 se apresentou como
uma revista voltada para o público de origem africana, e fez um enorme sucesso, que
pode ser dimensionado nas palavras do seu primeiro editor Aroldo Macedo:
O primeiro número vendeu 300 mil exemplares, uma coisa absurda, um
fenômeno que colocou o Brasil no mapa. Em seis anos que eu tinha morado
nos EUA, nunca vi uma boa notícia do Brasil, a única boa notícia que teve foi
essa, seis colunas no NY Times falando sobre a revista, no Washington Post,
Atlanta, BBC de Londres,CNN. A gente passou uns dois meses, quase três
meses, sem trabalhar direito, só dando entrevista para o Brasil inteiro, para
todos os correspondentes do mundo inteito, Portugal, Holanda, um clipping
gigantesco. (BONFIGLI. 2002.)
Devido à proximidade entre os lançamentos das revistas, não se pode negar que
existem semelhanças entre a Raça Brasil (RB) e a Made in Japan. A igualdade de
tratamento da mídia em relação às etnias, diferentes da européia branca, vai claramente
unir as duas publicações, mas não só isso, a segmentação do mercado das revistas já era
um fenômeno consolidado nos resto do mundo, como confirma Roberto Civita em
1991:
Não há ainda revista para a mulher que trabalha, a mulher executiva. Eu li
uma revista para executivos negros nos EUA, e você vai dizer: qual a
diferença do executivo negro e do executivo branco? É que ele tem certos
problemas que o executivo branco não tem... Uma das maiores revistas nos
8MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista. Imprensa e práticas culturais em tempos de República, São
Paulo (1890-1922). São Paulo: EDUSP: FAPESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
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EUA em circulação é a revista para gente aposentada. Nós temos centenas de
categorias, que precisamos é ter mercado – de leitores e de anunciantes.9
No depoimento do maior empresário do ramo de revistas do Brasil, percebemos
que para a circulação das mesmas é necessário ter leitores sim, mas também é muito
importante ter anunciantes dispostos a financiar tal projeto editorial. Essa última
questão nem sempre tem seu valor reconhecido nos estudos sobre a imprensa no país.
Com isso, não negamos a importância do estudo dos conteúdos da revista, mas para se
fazer um estudo de qualidade, o conteúdo e forma devem ser igualmente valorizados e
investigados, para se entender, totalmente, qualquer projeto editorial.
Com isso não se quer dizer que as revistas são só fruto dos anunciantes, mas
como ressaltou Civita, uma publicação necessita dos dois, só com eles é que se alcança
êxito num projeto editorial. Levanto a hipótese, que a grande contribuição da RB, foi
justamente a demonstração de que havia um público que estava à margem das
publicações brasileiras, em relação à identificação e que a procura desse público em
uma revista que o retrata, permitiu a propaganda de muitos produtos, até então sem
espaço para atingir seu consumidor, um fortaleceu o outro e pavimentou a possibilidade
de publicações étnicas de um novo formato.
A M.i.J. como já foi dito, tem a particularidade de ser distribuída em dois países,
o que, por mais que ela negue, ou não afirme, atrai dois públicos distintos, com
realidades diferentes, por mais que em alguns momentos a revista afirme que escreve
para descendentes de japoneses, não importando onde eles estão, no Brasil (nikkeis) ou
no Japão (dekasseguis).
Para os que vivem no Brasil, produtos de beleza, tratamentos estéticos,
cabeleireiros, restaurantes, artes marciais, comidas típicas e bebidas, são produtos que
claramente se encaixam na categoria que escrevemos acima; um mercado de anúncios e
leitores preteridos em outras publicações, que conseguiram um canal de encontro.
Além desses anunciantes, a Made in Japan tem outro grande grupo que está
diretamente voltado para o negócio criado pela lei que permite a imigração legal para o
Japão, desde as empreiteiras que levam os brasileiros para as empresas no Japão, às
companhias aéreas, os bancos que transferem e convertem o yen ganho no arquipélago,
para as famílias que ficaram no Brasil, ou para um grande investimento na volta ao país.
9 “Abril faz plano de vôo para dobrar faturamento em cinco anos” , Meio & Mensagem, 15/7/91
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Estes anunciantes têm o interesse direto em manter esse movimento de
populações entre os dois países, pois deste deslocamento, que seus negócios
sobrevivem, ou no mínimo lhe concede grande lucro. Isso dentro da análise da revista, é
extremamente importante, pois ao considerar estes dois grupos de anunciantes, podemos
ressaltar a diferença brutal entre eles, afinal, um produto para cabelo, e se tornar um
imigrante, tem um abismo de diferenças entre si.
Para melhor compreender estas diferenças, uma breve análise de alguns anúncios
pode ser muito interessante:
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As mensagens contidas nestes anúncios são claras e diretas, como se pode
perceber ao pensar nos seus slogans: “moeda forte”, “Dê a volta por cima” ou “Com um
pouquinho todo mês, você pode transformar seus sonhos em realidade”, só coisas
positivas são veiculadas para produzir uma relação de sucesso entre a o ser imigrante, e
realização financeira. Além do produto, existe a produção de sentimentos.
A Made in Japan, não fica a parte disto, pelo contrário, age diretamente neste
sentido de construir e vender sonhos em suas páginas, que ligam a imigração à
realização e as questões identitárias, tão importantes no nosso mundo globalizado, em
que existe um “mal estar” em relação à identidade, antes singular, agora cada vez mais
múltipla e posicional, segundo o autor inglês Stuart Hall:
globalização tem de fato o efeito de contestar e deslocar as identidades
centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem o impacto
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de
possibilidades e de novas posições de identificação, e tornando as identidades
mais posicionais, políticas, plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou
trans-históricas. (2005. p.67.)
Ao tentar construir uma identidade fixa e una, a M.i.J. busca reconfortar esses
descendentes, suprindo este dito “mal estar” da pós modernidade, deixando de lado
dúvidas e lhes apresentando um porto seguro, que é a valorização do sentimento de ser
descendente de japonês. Isso se dá, por meio da construção de discursos que
exemplificam o que é ser japonês e o que é o atual Japão. Entender esta questão é
importante, pois a singularidade do movimento dekassegui, engloba esta volta às
origens, além da questão econômica, como destaca OCADA:
Existem, além dos fatores econômicos e estruturais, elementos invisíveis que
imprimem outros significados a esta migração. O desejo de conhecer a terra
dos antepassados, viver novas experiências e aprender a língua japonesa, são
outras justificativas dadas pelos trabalhadores, que não excluem a pretensão
de ganhos financeiros, mas são indicativas de uma outra busca, de natureza
existencial e identitária.(2007. p.51)
Nas páginas da Made in Japan existe a construção de um local, onde todas as
qualidades estão reunidas; é a representação da utopia da cidade, onde tudo funciona, e
é harmônico; onde não existem conflitos e tudo é perfeito. Este lugar, segundo a revista,
é Tóquio. Nela se encontra: segurança, as melhores lojas, os grandes eventos, a moda
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mais moderna do mundo, a diversão, a cultura, o moderno e a tradição. Tudo se
condensa na capital japonesa.
Esta representação de Tóquio como utopia, feita nas páginas da revista M.i.J. é
extremamente bem construída e consegue unir diversos dos seus interesses, ao criar algo
que serve para a alimentação do sentimento da valorização, do que é ser japonês. Isto
atinge tanto aos dekasseguis, como aos nikkeis, e aos anunciantes relacionados ao
negócio da imigração para o Japão.
Este discurso ufanista da perfeição de Tóquio, tem significado e sentido nas três
categorias citadas acima, porque: os dekasseguis vivem nas áeras industrializadas do
Japão, que são distantes da capital; os nikkeis estão no Brasil, por isso não tem contato
algum com a cidade, e os anunciantes que se aproveitam da expectativa de se conhecer
Tóquio, para motivar ainda mais a imigração para o arquipélago nipônico.
Porém, não podemos ficar só com a leitura da revista sobre a cidade de Tóquio,
uma vez que não a entendo como reprodutora imparcial de fatos, pelo contrário, nego
esta afirmação e compactuo com a historiografia que percebe a imprensa “como instrumento
de manipulação de interesses, concebendo-a como agente da história que ela também registra e comenta.”
(CAPELATO e PRADO, 1980, p.XIX).
Existem estudos que mostram que nem tudo é perfeito no Japão para os
dekasseguis, como a representação de Tóquio nas páginas da Made in Japan sugere. Por
exemplo, a vida do imigrante na fábrica, como mencionamos anteriormente bastante
dura, porque além das longas horas de trabalho no Japão, existe hoje um sistema de
administração empresarial chamado de “toyotismo” ou “modelo japonês”,
extremamente cruel com o trabalhador, como o livro Japão a outra face do milagre de
Kamata Satoshi, esclarece tão bem como isso afeta a vida dos operários. Podemos
constatar neste trecho de Ocada:
Esta mesma precisão controla a vida de todos os trabalhadores dentro e fora
da fábrica, aprisionando-os em uma rotina de trabalho desumanizaste, que
acaba por conduzir o indivíduo a uma vivência depressiva. A vida de cada
trabalhador é integralmente dominada pelo processo produtivo. A regulação
do tempo na esfera do trabalho determina, também, o tempo no espaço
privado, representado pelos alojamentos, formando um continuum
indissociável, no interior do qual todos os dias tornam-se iguais. (p.17)
Os relatos de seu presidente Masakazu Shoji em relação à fábrica são
significativos: “Muitos trabalhavam em um sistema de semi-escravidão, tinham dificuldades de se
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adaptar ao país por causa da diferença do idioma e da cultura, da mesma maneira como aconteceu com os
primeiros imigrantes que vieram ao Brasil” (Arai, 2004 p-261)
Como se percebe, o dono da JBC sabe muito bem quais são as verdadeiras
condições de trabalho dos dekasseguis, porém em sua revista, o tom em relação a estas
dificuldades é bem diferente, existem distorções e omissões e todas são construídas para
a valorização do Japão, como no trecho abaixo, pertencente a seção Eu e o Japão na
edição:
Faltavam apenas dez minutos para eu ir embora. De repente, a prensa onde eu
trabalhava baixou sobre a minha mão direita. Nem senti dor, mas quando
olhei, percebi que estava cheia de sangue. Nessa fábrica, não se costuma ligar
o sensor de segurança de prensa porque dizem que o trabalho rende mais...
Nunca tive apoio para recorrer a Justiça. Mas agora pretendo processar a
empresa. Muitos brasileiros dizem que eu vou ganhar a maior grana com a
indenização, mas eu só quero o que é justo. Mesmo assim, não reclamo do
Japão. (Ano 3 número 31, p.51)
Apesar do dedo amputado, e a falta de assistência, e o processo que ele pretende
mover, sua fala termina com um elogio do Japão. Claramente isto não acontece por
acaso; a escolha dos depoimentos tem a intencionalidade de passar uma mensagem de,
apesar de tudo, até mesmo perder um dedo, não se pode reclamar do Japão.
Por meio dessas representações, que buscam a todo custo construir uma imagem
bela da vida dos dekasseguis no arquipélago nipônico, mesmo com todas as dificuldades
que existem, entendemos que a eleição de Tóquio como uma utopia, é realizada
justamente para contrapor a vida nas fábricas, tão duras, como acabamos de ver.
As matérias que construem essa visão utópica da capital nipônica, tem uma
relação direta com a vida diferente da levada na fábrica. Dentre os temas, temos grandes
eventos de lançamento de carros e video-games modernos, que muitas vezes tem peças
construídas pelos dekasseguis, mas nunca são consumidos por eles. Existem vários
temas em que Tóquio apareceu nos últimos doze anos na Made in Japan.
Na edição número 1, a primeira capa da revista tem o título: Tóquio, a metrópole
mais segura do mundo, com dez páginas de muito texto, fotos e a comparação entre São
Paulo e a capital nipônica, constante a todo o momento, sempre apontando as grandes
disparidades entre as cidades, como por exemplo:
A maior cidade do planeta, com 24 milhões de habitantes, teve
apenas 501 assaltos e 117 assassinatos em 1996. Esses números, por si só, já
causam espanto. Quando comparados aos de outras metrópoles, tornam-se
ainda mais impressionantes. Na maior cidade brasileira, São Paulo, onde
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moram 15 milhões de pessoas, ocorreram no mesmo período 54.518 assaltos
e 4.891 assassinatos. Mas é nas estatísticas dos assaltos a banco e dos
seqüestros que se tem a real dimensão de como é possível viver sem
sobressaltos a cada minuto. Estas ocorrências são tão raras que nem constam
das estatísticas divulgadas pela polícia. (Ano 1, número 1, p.23)
Em outro momento de exaltação das qualidades de Tóquio, onde se compara a
realidade brasileira: “morar em cidade grande, viver como no interior”, dizendo que se
tem todas as qualidades de uma metrópole; - redes de transportes, serviços, opções
culturais, lazer - e não existe as preocupações com segurança, tendo qualidades de
cidade do interior elencadas pela M.i.J como viver de porta aberta, crianças andando
sozinhas na rua, carros destrancados. Para exemplificar podemos selecionar um trecho
que sintetiza bem o teor da reportagem toda:
Em metrôs lotados, as mulheres carregam a bolsa aberta com a carteira à
vista. Os homens jogam as pastas executivas no bagageiro e dormem
tranquilamente. Nem mesmo os bêbados correm risco. Largam as carteiras
soltas e caem no chão. Ninguém, sóbrio ou não, parece achar que possa
acontecer qualquer tipo de violência. (Ano 1, número 1, p.24)
De acordo com a revista, até os bêbados tem uma vida melhor em Tóquio, pois
estão mais seguros lá, do que em qualquer outro lugar do mundo. Depois de toda essa
argumentação em favor da segurança que lá existe, temos as fotos onde essa
tranqüilidade é apresentada para o público, com legendas que resumem os textos
anteriores.
Depois de tudo isso, chega um momento em que as razões para o sucesso da
cidade são elencadas de acordo com a M.i.J.: país rico, povo classe média, emprego,
educação para todos, defesa da honra, polícia eficiente e rigor nas punições. A
construção dos motivos, é um anuncio fantástico para a migração para o Japão,
independente de qualquer coisa.
Ao comparar com a situação do Brasil em 1997, isso se torna ainda mais latente,
pois, a segurança era um tema fartamente retratado nos outros meios da imprensa
nacional, como por exemplo, na revista Veja da editora Abril, que em 26 revistas teve o
tema da segurança em 11 edições. 10
10
Informação disponível em www.veja.abril.com.br/arquivo-1997-2001.shtml em 20/05/2010.
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Na edição 113 da M.i.J. a matéria de capa teve o seguinte título Harajuku, o
lugar mais moderno do Japão - Aqui nasce a moda de rua mais criativa do mundo.
Temos só está breve apresentação nas duas primeiras páginas seguidas de muitas fotos:
“Prepare-se para um giro pela região em que a ousadia não tem limites. Aqui nasce a mais criativa moda
de rua, fonte de inspiração para estilistas do mundo todo. Veja, nas ruas, o que ainda nem chegou às
passarelas das Fashion Weeks”. Nota-se pela construção do texto, a exaltação ao bairro que,
segundo a revista, ditaria a moda das passarelas, mais do que as cidades
tradicionalmente ligadas a moda, como Milão ou Paris.
O infográfico apresentado
aqui na imagem, é recorrente nas
matérias das páginas da M.i.J.,
com um estilo leve e uma
linguagem bem próxima de um
guia turístico, ele aponta lugares
a serem visitados, com lojas e
outras coisas a serem vistas,
Permitindo ao leitor ter a
impressão de facilidade e
familiaridade em relação ao
local.
O lado cruel de tudo isso é que não existe espaço para o dekassegui na cidade de
Tóquio, lá não há empregos disponíveis para eles, e sua vida de trabalho nas fábricas
nos alojamentos ou próximos das indústrias, são muito diferente da elaborada pela
Made in Japan sobre a capital japonesa.
Por isso, a importância dentro do discurso da revista em construir um lugar
inalcançável dentro do Japão, onde a utopia é possível, a segurança, o emprego fixo sem
longas jornadas, as lojas chiques, os caríssimos mini-apartamentos, os eventos
mundiais, o paraíso dos eletrônicos, tudo isso foi bem pavimentado pela M.i.J..
Para conseguir se manter enquanto projeto editorial, sustentado pelo público e
pelos anunciantes, a Made in Japan elaborou uma série de estratégias, dentre elas a
eleição do lugar sem conflito, devido a longevidade, - mais de dez anos - dessa
construção. Podemos considerar que o consumo dessa utopia teve significação para os
seus receptores e também satisfez os anunciantes. Como este processo se deu, é um
desafio a ser enfrentado, pois, na nossa sociedade massamidiática existe um
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esvaziamento de sentidos e discursos, ir na contramão deles e estudá-los, se torna
candente.
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