SELBACH: uma história?
Cristiele Aline Kuhn Terhorst, professora na área de ciências
humanas do Instituto Estadual de Educação Edmundo
Roewer
RESUMO: Selbach, um município localizado no Alto Jacuí, colonizado por descendentes de alemães
categoricamente escolhidos para ocuparem os lotes de terra (inicialmente de propriedade do Coronel
Jacob Selbach Júnior, comerciante e amigo de Júlio de Castilhos), é o ponto de partida para uma análise
sobre o histórico da comunidade, que possui fortes traços étnicos (na linguagem, através do sotaque
característico, do dialeto com gírias e da língua alemã, ainda presentes no cotidiano da população; na
gastronomia, através da preparação e consumo de pratos típicos da culinária alemã, como linguiças
diversas, cucas e tortas, chucrute, entre outros tantos; na educação, formal e não formal como o costume
de frequentar o catecismo fervorosamente e a manifestação da religiosidade não só na igreja, mas em
outras instituições; e na forma de viver, através de divertimentos em sociedade, tais como grupos: de
bolão e bolãozinho, de corais infantis e adultos, de produção de artesanatos com linhas, da organização de
grupo de casais para ir aos Bailes de Kerb) e que não questiona o que havia e ocorria nestes territórios
antes da colonização.
Selbach hoje
O município de Selbach localiza-se no noroeste do Rio Grande do Sul. Com uma
altitude de 404 metros em relação ao nível do mar, sua distância à capital Porto Alegre é
de 228 km (de acordo com o Atlas de Desenvolvimento Humano do PNUD). De acordo
com o Censo Demográfico do IBGE realizado no ano de 2010, a população do
município atingiu 4929 habitantes, distribuídos numa área de 178,642 km.
Selbach possui vocação agrícola, destacando-se no plantio da soja, do trigo e do milho:
são doze mil hectares cultivados. Também tem uma significativa produção leiteira de
dois milhões e meio de litros de leite, além da criação de suínos por setenta
suinocultores. Há indústrias em desenvolvimento, sendo que a implantação da área
industrial, com planejamento municipal, deu novo impulso ao segmento. O comércio
está em expansão, e supre as necessidades de alimentação, vestuário, moradia (entre
outras) da população.
Sobre a educação, a população conta com sete instituições de ensino: Escola Municipal
de Ensino Fundamental Incompleto São Luís, na Linha Bela Vista; Escola Estadual de
Ensino Fundamental Frei Anselmo, na Linha Floresta; Escola Municipal de Ensino
Fundamental Aníbal Magni, no Distrito de Arroio Grande; Instituto de Ensino
Fundamental e Médio Adão Seger, na cidade; Escola Municipal de Educação Infantil
“A Sementinha”, na cidade; Escola Municipal de Educação Infantil Nossa Senhora
Maria Auxiliadora, na cidade; e Escola de Educação Especial de Selbach (APAE),
também na cidade, junto a Secretaria de Assistência Social.
Com relação à demografia, é possível afirmar que a população rural decresceu muito
em quarenta anos, sendo que a urbana aumentou significativamente. Uma possibilidade
de argumento para tal fenômeno é a mecanização agrícola, fazendo com que a
necessidade de trabalho braçal diminua.
O município faz parte da Rota das Terras, oferecendo ao visitante a oportunidade de
conhecer vários pontos turísticos. Entre eles: Monumento do Imigrante, Mini Parque
Encantado, Casa Urban, Recanto do Mel – HONIGECKE, Sala do Artesão de Selbach,
Igreja Matriz São Tiago, Gruta Nossa Senhora de Lourdes, Santuário Nossa Senhora da
Saúde, Cabanha Bogorny, o Haras Pinno e o Camping Vale Verde.
Selbach recebe muitos visitantes na Blumenfest (Festa das Flores), uma feira que
envolve a comunidade em geral, nas atividades de visitação aos espaços gastronômicos,
de artesanato, da indústria e do comércio, além das atividades culturais, como shows de
artistas locais, estaduais e nacionais.
Outro evento que se destaca é o Concerto de Maio, promovendo o Canto Coral do
município e região. Pela colonização alemã, o canto coral veio agregar lazer à
comunidade, através da apresentação de cantos para as celebrações religiosas de
antigamente. Na atualidade, continuam presentes, não só nas igrejas, mas em momentos
festivos, fúnebres e demais solenidades, unindo as pessoas numa prática artística, que se
tornou costume e expressão de sentimentos.
O Kerb, a festa para comemorar o dia do (a) padroeiro (a) da comunidade, acontece
anualmente, e é motivo de encontro das famílias. Além da missa, são realizadas várias
refeições típicas (café colonial, almoço, café da tarde, janta) com comidas preparadas a
partir de receitas especiais passadas de geração em geração; e o baile, com animação de
músicas de bandinha, ao ritmo de valsas, polquinhas, chotes e regado a muito chopp.
Houve algumas mudanças, no decorrer dos anos, já que as famílias não são mais tão
numerosas quanto no passado, mas a essência da festa permanece.
O seu território está dividido em sete comunidades rurais, além do núcleo citadino:
Bela Vista, Linha Floresta, São Pascoal, Santa Isabel, Arroio Grande, Passo do Padre e
Santa Terezinha. Percebe-se a forte influência católica, pela denominação dos povoados
e pelas atividades anualmente previstas.
Ainda com poder simbólico de relembrar os valores e em reconhecimento aos
antepassados, no ano em que foi comemorado os “100 Anos de Colonização Alemã em
Selbach” (2008), foi exposto no trevo principal de acesso à cidade, um marco histórico
em forma de monumento. Os autores do mesmo foram Leonardo Flach, Rudi Seger,
Luís Reichert e Arlindo Ludwig.
FIGURA 1: Revista Selbach, 2008: Capa
No centro do monumento há a representação de uma araucária, simbolizando a
madeira: primeira riqueza a atrair os colonizadores. As figuras humanas representam os
descendentes de imigrantes alemães que “desbravaram” a terra, e todas com a expressão
de “buscar novos horizontes”, segurando instrumentos de valor identitário para o povo
selbachense:
A cruz simboliza a fé cristã, católica que deveria ser professada pelos
primeiros povoadores da região e que, ainda hoje, é vivenciada pela
comunidade selbachense. O livro caracteriza a educação, que foi
uma das maiores preocupações dos desbravadores, em estabelecer
escolas que atendessem não só a necessidade de alfabetizar e
aprender cálculos, mas também a aprender o catecismo e apegar-se a
valores. O machado, principal instrumento usado na abertura das
primeiras clareiras na mata virgem para fazer brotar da terra
vermelha “a rima perfeita do chão, do grão e do pão”. A bandeira
simboliza a origem do povo que deu início à história desta
comunidade, e consequentemente contribuição da cultura e valores
que consolidaram o progresso desta terra (SELBACH, 2008: 17)
O discurso oficial: a colonização
A forma como ocorreu a colonização oficial do atual município de Selbach é bem
específica. Durante a República Velha (1897), o então Coronel Jacob Selbach Júnior
(amigo do então governante do RS, Júlio de Castilhos; e membro ativo do PRR –
Partido Republicano Riograndense) adquiriu terras do Governo Federal, iniciando-se,
em seguida, o núcleo de colonização em Carazinho (1905).
FIGURA 2: retrato de Coronel Jacob Selbach (DIAGNOSE, 1991:9)
Em sua dissertação de mestrado, Maria Lourdes Backes Hartmann relata a transação
comercial:
Os latifúndios improdutivos foram vendidos pelos estancieiros a
companhias colonizadoras ou a particulares. Neste último, foi o caso
de Selbach, cujas terras foram adquiridas em 1987, do Governo
Federal pelo Coronel Jacob Selbach Júnior, homem de prestígio
político, de importantes responsabilidades republicanas e da
confiança do Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos
[...](HARTMANN, 2000:20)
Também comenta sobre a presença do positivismo nas relações, sendo que a visão de
progresso viria apenas com os europeus (no caso, alemães) como “um povo
trabalhador”. Lourdes questiona, ainda, a homenagem ao coronel pela denominação do
município, pois não há registros do valor da compra das terras, muito menos da
passagem de Selbach Júnior pelas terras que havia “comprado”.
Ainda é interessante citar, além do monumento, a homenagem realizada em 2008, na
passagem dos 42 anos do município, durante uma celebração religiosa na igreja matriz,
aos descendentes do Coronel, quando os mesmos receberam troféus com o símbolo da
Blumenfest, em “gratidão” a colonização:
FIGURA 3: registro da missa em homenagem à família do colonizador. (SELBACH, 2008:5)
O governo estadual, então, incentivava a colonização de terras “devolutas” como forma
de proteger o território. Assim Maestri explica a ação:
Com a formação de núcleos de camponeses proprietários, pretendia-
se ocupar, proteger e defender regiões despovoadas e estratégicas da
cobiça das nações estrangeiras e dos ataques de nativos e
quilombolas. Em virtude das tradicionais disputas territoriais com a
Espanha na América Meridional, o sul do Brasil foi uma das
principais regiões a acolher colonos-camponeses europeus não
lusitanos. (MAESTRI, 2010: 125-126)
Também havia o desejo de desenvolver no território físico atividades econômicas que
visassem, além do abastecimento de gêneros alimentícios aos grandes centros urbanos,
o “branqueamento” dos “brasileiros”, já que os europeus eram considerados indivíduos
de categoria superior, se comparados aos indígenas e aos caboclos (intrusos nacionais -
como denomina Lurdes Grolli Ardenghi aos extrativistas de erva mate e cultores de
roças com produtos de subsistência ou sobrevivendo dos recursos da natureza)
(ARDENGHI, 2007: 467).
Mercedes Gassen Kothe nos dá uma pista pelo qual os colonos instalaram-se nesta
região: “Como não havia mais terras disponíveis nas áreas iniciais da imigração, os
descendentes de 3ª ou 4ª geração dirigiram-se para o norte do estado” (KOTHE, 2007:
388). Isso explica porque as famílias deixaram parentes nas chamadas Colônias Velhas
para aventurarem-se em terras onde tudo precisava ser feito: estradas, casas, escolas,
hospitais e a igreja. A última com enorme poder de persuasão, pelo conforto espiritual
dado aos colonos que muito sofriam com: os árduos trabalhos, a distância de seus
familiares e as doenças (especialmente a Tifo, que ceifou muitas vidas em 1916).
Também auxilia para o esclarecimento o professor R. Vicente Werlang:
A exemplo de outras regiões, os “donos” dos pinheirais ou
araucárias faziam campanhas para vender estas terras a
colonos italianos, alemães, ou seja, povos de origem
européia oriundos da “colônia velha”. [...] Iniciou-se assim
um grande desmatamento: a parte nobre das árvores era
serrada e o resto queimava-se e a roça estava limpa para o
plantio do milho e da mandioca [...] (ARNHOLD, 2006:07)
Ao vender os lotes, o colonizador Coronel Jacob Selbach Júnior preocupou-se em
formar uma coletividade, com ênfase na identidade religiosa e cultural das pessoas que
iriam passar a integrar a comunidade selbachense, sendo que os colonos deveriam
preencher os seguintes requisitos para receber as terras: ser agricultor (para realizar o
desmatamento de seu lote, iniciando uma plantação de subsistência), ser católico
(garantindo a coesão da comunidade, e unindo a mesma em torno da espiritualidade), e
ser alemão (de preferência, para a unidade de pensamento, através de hábitos, valores e
atividades culturais em comum).
FIGURA 4: demonstração da fé católica. (SELBACH, 2003:janeiro)
A área de terras hoje pertencente ao município em questão foi de Passo Fundo (até
1924), de Carazinho (de 1931 a 1954), e de Tapera (até 1964, quando iniciaram os
movimentos em prol da criação de Selbach). Em 1965, através da Lei Estadual nº 5036
de 22 de setembro:
Selbach é uma das unidades integrantes da República federativa do
Brasil e do estado do Rio Grande do Sul, com autonomia Política,
Administrativa e Financeira, regendo-se por esta Lei Orgânica e
demais Leis que adotar, respeitando os princípios estabelecidos nas
Constituições Federal e Estadual. (LEI Orgânica: 11)
Além dos produtos coloniais vendidos ou trocados nas pequenas casas de comércio,
como carne suína, banha, ovos, manteiga, milho, arroz e batatas, retirava-se da pequena
propriedade outra grande fonte de renda: a madeira. Foi a indústria madeireira que
impulsionou a economia local, permitindo ao pequeno proprietário um significativo
ganho financeiro. Porém, apesar de o colono realizar o trabalho mais pesado de corte e
limpeza dos pinheiros araucária, quem ficava com o maior lucro não era as pequenas
madeireiras familiares, mas sim, as indústrias de Carazinho e Cruz Alta, para onde as
toras eram vendidas.
FIGURA 5: Família Konrad em arrozal. (SELBACH, 2003: abril)
FIGURA 6: Transporte de produtos coloniais. (SELBACH, 2003: março)
Segundo João Carlos Tedesco e Liliane Wentz:
Carazinho, ainda como 4º distrito de Passo Fundo, possuía 174
empreendimentos madeireiros no final da década de 20, abarcando
mais da metade das empresas pertencentes ao município de Passo
Fundo e justificando ser o maior empório madeireiro do Planalto
gaúcho. (TEDESCO, 2007: 344-345)
FIGURA 7: Retrato de uma serraria. (SELBACH, 2003: junho)
Já nas décadas seguintes, a agricultura foi se desenvolvendo e novas formas de
produzir a lavoura, com técnicas inovadoras, foram incentivadas. Porém, a terra tornou-
se pouca porque a população aumentou. Ocorreu aí, uma nova migração: de
selbachenses para os estados de Santa Catarina e Goiás, onde o preço possibilitava que
o colono adquirisse maior quantidade de terras por menos valor.
As famílias que permanecem labutando no campo diminuíram também em virtude do
êxodo rural, o que é comprovado pelo último censo demográfico, conforme tratado
anteriormente.
FIGURA 8: Mecanização da lavoura. (SELBACH, 2003: setembro)
Território de ocupação indígena
A história de Selbach é contada, pelos antigos moradores, por textos em pequenos
livros, tendo como marco inicial a colonização alemã. A impressão é que antes da
mesma, no território havia um grande vazio demográfico, onde a natureza reinava
absoluta. Porém, trabalhos recentes, como de Silva e Barcelos, provam que:
Esta região esteve muito longe de ser uma terra-de-ninguém
(administrativamente), ou um vazio (sem ocupação). No entanto, a
classificação de terra-de-ninguém configurou uma forma de justificar
a ocupação de uma área que, ao não pertencer a alguém, encontrar-
se-ia livre para ser apropriada. Foi este discurso ocidental moderno,
o qual pressupôs a construção de um espaço de progresso, lucrativo,
cristão e racional que viabilizou e justificou a efetivação do processo
expansionista sobre a região dos Campos de Cima da Serra e tantas
outras. (SILVA, 2009:70)
Golin sustenta que grupos indígenas estavam presentes no RS há mais de doze mil
anos, sendo que: “a região dos vales dos rios Jacuí e Ibicuí, no atual Rio Grande do Sul,
constituíram-se no espaço divisório entre as sociedades dos indígenas do pampa e do
planalto. No planalto, ao norte, predominaram os caingangues, do tronco cultural jê”
(GOLIN, 2004:21). Portanto, o território não estava “abandonado”, como costumam
ensinar os professores da 3ª série (atual 4º ano), ao trabalharem o conteúdo da história
do município selbachense, pois essa era a única que se sabia até então, sem
questionamento.
A atual Selbach fica localizada próxima a área de fronteira, ocupada mais pelos
caingangues, segundo Golin. Uma década de milhar depois dos pampeanos e dos
caingangues, surgiram os guaranis nestas paragens, dominando não só as técnicas
agrícolas, mas também os territórios e os demais povos: “Além de ocuparem parte dos
territórios dos índios do pampa e do planalto, faziam incursões militares contra os
grupos charruas, minuanos, caingangues, aprisionando-os e consumindo-os em festins”.
(GOLIN, 2004:37)
As vias fluviais e o litoral brasileiro favoreceram o deslocamento dos povos indígenas
pelo território hoje denominado como riograndense. Em se tratando de Selbach, é válido
ressaltar que o mesmo integra a região hídrica do Alto Jacuí, que é composta pelos
demais municípios: Alto Alegre, Arroio do Tigre, Barros Cassal, Boa Vista do Incra,
Campos Borges, Carazinho, Chapada, Colorado, Cruz Alta, Ernestina, Espumoso,
Estrela Velha, Fortaleza dos Valos, Ibarama, Ibirapuitã, Ibirubá, Jacuizinho, Júlio de
Castilhos, Lagoa Bonita do Sul, Lagoa dos três Cantos, Lagoão, Marau, Mato
Castelhano, Mormaço, Não-Me-Toque, Nicolau Vergueiro, Passa Sete, Passo Fundo,
Pinhal Grande, Quinze de Novembro, Saldanha Marinho, Salto do Jacuí, Santa Bárbara
do Sul, Santo Antônio do Planalto, Segredo, Sobradinho, Soledade, Tapera, Tio Hugo,
Tunas, Tupanciretã, Victor Graeff.
Na dissertação “O Alto Jacuí na Pré - História: subsídios para uma arqueologia das
fronteiras”, Fabrício Vicroski trabalha com várias pesquisas que demonstram
evidências da ocupação do território referente ao Alto Jacuí antes da colonização
européia por povos indígenas:
Com base nos resultados imediatos das pesquisas brevemente
descritas, pode-se afirmar que a antiguidade do povoamento humano
no Alto Jacuí nos remete a fase inicial do período holocênico, com a
presença de populações de caçadores - coletores nômades, os quais
precederam a chegada de grupos ceramistas – horticultores que aqui
viveram sem maiores adversidades até a chegada do colonizador
europeu. (VICROSKI, 2011: 65)
Como é relatado na história memorialista selbachense havia a existência de pinheirais
no passado, inclusive inspirando um dos símbolos na entrada da cidade: o monumento
no trevo da RS 223, retratado na página 13. Maestri demonstra a importância dessas
florestas para as civilizações de caçadores-coletores do planalto:
Os pinhões e a caça dos animais atraídos pelo fruto do pinheiro
constituíam importantes fontes de alimentos dessas comunidades. Nos
territórios do atual Rio grande do Sul, privilegiavam como locais de
acampamento nos vales dos arroios, dos córregos e dos rios,
sobretudo os que descem do Planalto para a Depressão central.
(MAESTRI, 2006: 46)
Segundo Vicroski, havia em torno de vinte milhões de hectares de matas de araucárias,
sendo encontradas até duzentas árvores por hectares quando da chegada dos europeus.
Ainda: que tais matas não estavam aleatórias no espaço era “resultado do manejo
florestal praticado pelos indígenas, que não apenas realizavam uma seleção de espécies,
como também as cruzavam, gerando sementes híbridas utilizadas posteriormente pelos
imigrantes, algumas delas já extintas e outras em via de desaparecer” (VICROSKI,
2001: 110).
Está aí outra evidência de ocupação do território: os indígenas realizavam um rodízio
das áreas para sua moradia e alimentação, respeitando o ambiente natural, para que a
natureza se recompusesse; com utilização sustentável da mesma, sem causar dano às
espécies da fauna e da flora que contribuíam para a sua sobrevivência.
A partir da chegada dos descendentes de alemães, a paisagem foi sendo modificada,
pois uma das premissas para o recebimento dos lotes era ser agricultor, tendo a missão
de “abrir” a mata e fazer a lavoura. Se por um lado as civilizações nativas tiveram seu
espaço e liberdade de transição usurpada, os colonos-camponeses também foram
iludidos pelas propostas das empresas colonizadoras, como escreve Sandor Bringmann:
Para instigar nos Estados alemães a vinda de imigrantes
para o Brasil, os agentes se utilizavam de diversos recursos
para o sucesso da empreitada. Entre os principais estava a
garantia de terras férteis das colônias. Logicamente não
constava na propaganda das empresas colonizadoras o fato
de que as áreas que iriam ser ocupadas pelos colonos não
eram completamente “devolutas”, como disseminavam as
propagandas. (BIRGMANN, 2009: 111)
Habitando o planalto, com níveis de até 1000 metros acima do mar e sempre próximo
ao curso ou vales de rios (entre eles o Jacuí), os grupos indígenas, de acordo com Arno
Kern, possuíam uma estadia tranqüila, pois havia abundância de alimento através da
caça e a possibilidade de coleta:
Pássaros, mamíferos de pequeno e médio porte, raízes, mel
silvestre, caramujos e pinhões faziam parte da dieta desses
grupos. [...] Frutos, raízes e principalmente o nutritivo e
abundante pinhão do Pinus araucária, poderiam ter sido
parte da alimentação desses grupos, mesmo que nos sítios
arqueológicos estes restos perecíveis tenham deixado poucos
traços. (KERN, 2009: 26)
Como se percebe, depois do agrupamento de variadas pesquisas, parece um equívoco
dizer que no território físico e político atual de Selbach não havia a presença de
indígenas. Certamente eles estiveram ali, porém com uma sociedade diferente da dos
imigrantes alemães. Se os nativos estavam ocupando as matas no momento da
colonização, não possuímos referenciais concretos (como relatos de encontros ou algum
outro registro, nem pesquisas arqueológicas que qualifiquem a mesma); porém é muito
provável.
É possível que tenha sido ocultada a presença dos indígenas, ou que apenas poucos se
encontrassem escondidos na densa floresta, com receio da ação dos chamados
bugreiros. O certo é que o governo da época, desejoso de progresso, fez com que duas
minorias étnicas (indígenas e alemães) ocupassem o mesmo espaço (talvez em
momentos distintos), com valores sociais distintos, o que pode ter causado
estranhamento e receio entre as duas partes.
Curioso é a nomenclatura utilizada por duas comunidades interioranas para designar o
nome de seus clubes: Esporte Clube Guarani, de Linha Floresta; e Esporte Clube
Cacique, de Linha Arroio Grande, o que poderia render subsídios para pesquisas mais
intensas, com um novo olhar da historiografia, mais de acordo com Peter Burke:
O movimento da história-vista-de-baixo também reflete uma
nova determinação para considerar mais seriamente as
opiniões das pessoas comuns sobre o seu próprio passado do
que costumavam fazer os historiadores profissionais.
(BURKE, 1992: 16)
Continuar trabalhando dados ultrapassados e memorialistas com as crianças nas
instituições de ensino público (não há rede particular no município) é negar o passado
de Selbach que existiu antes da colonização. Subtrair ou negar parte do passado é
cometer um desrespeito para com as gerações futuras e um crime étnico para com as
populações nativas que certamente ocuparam este espaço.
Bibliografia
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ervateiros e coronéis. In: História Geral do Rio Grande do Sul, volume 3: República
Velha, tomo 1. Livraria e Editora Méritos Ltda, Passo Fundo: 2007.
ARNOLD, Alcides José. O Desejo Amarelo. LEW editora, Tapera.
BRIGMANN, Sandor Fernando. Fronteiras da inclusão e da exclusão: reflexos dos
Kaingangues e as frentes de expansão (séc.XXI). In.: História Geral do Rio Grande
do Sul. V.5: Povos Indígenas. Livraria e Editora Méritos Ltda, Passo Fundo: 2009.
BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. Novas perspectivas. Editora UNESP,
São Paulo: 1992.
GOLIN, Tau. O povo do pampa: uma história de 12 mil anos do Rio Grande do Sul
para adolescentes e outras idades. 3 ed. UPF, Passo Fundo: 2004.
KERN, Arno Alvarez. Pré-história e ocupação humana. In. : História Geral do Rio
Grande do Sul. V.5: Povos Indígenas. Livraria e Editora Méritos Ltda, Passo Fundo:
2009.
MAESTRI, Mário. Uma breve história do Rio Grande do Sul: da pré-história aos
dias atuais. A ocupação do território. Ed. UPF, Passo Fundo: 2006.
SELBACH. Calendário de Eventos. 2003.
SELBACH. Lei Orgânica Municipal.
SILVA, Adriana Fraga da; e Arthur Henrique Franco Barcelos. A “terra de ninguém”:
índios e bugres nos Campos de Cima da Serra. In: História Geral do Rio Grande do
Sul, volume 5: Povos Indígenas. Livraria e Editora Méritos Ltda, Passo Fundo: 2009.
TEDESCO, João Carlos e Liliane I. M. Wentz. A economia e a indústria da madeira.
In: História Geral do Rio Grande do Sul, volume 3: República Velha, tomo I. Livraria e
Editora Méritos Ltda, Passo Fundo: 2007.
VICROSKI, Fabrício José Nazzari. Dissertação de mestrado O Alto Jacuí na Pré-
História: subsídios para uma arqueologia das fronteiras. UPF: 2011.
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