Sebenta Português e Hypno&spaço
Liliana Vieira Conde 1
Luís de Sttau Monteiro – Felizmente há Luar!
a evocação das situações e personagens do
passado é o pretexto (ou a máscara imposta
pela Censura) para falar do presente, não
porque a História se repita, mas para dela
tirar exemplo1
HISTÓRIA DO TEATRO
Parece que a sua origem remonta às sociedades primitivas, pensando-se que as danças
imitativas concediam poderes sobrenaturais que exorcizavam maus espíritos e
controlavam factos essenciais à sobrevivência, tais como a fertilidade da terra, da casa e
do sucesso nas batalhas.
Com o evoluir dos tempos, vai assumindo um factor mais
educacional, tornando-se lugar de representação de lendas
relacionadas com deuses e heróis.
Na Grécia Antiga, os festivais anuais em honra ao deus Dionísio
(Baco, para os latinos) compreendiam, entre os seus eventos, a
representação de tragédias e comédias, sobretudo, sobre a forma
de ditirambos ou canções dionisíacas. Todos os papéis eram representados por
homens.
O teatro romano era praticamente uma imitação do grego, mas
existia apenas um actor que representava todos os papéis,
escondendo-se por detrás de uma máscara.
Com o advento do Cristianismo, e sem patrocinadores, por ser
considerado pagão, o teatro morreu e só encontrou um novo fôlego com o
Renascimento, época que representou a história da ressurreição de Cristo. Os membros
da Igreja foram os actores. As representações teatrais entram novamente em declínio
com o século XVI.
Ainda durante o século XV começam a organizar-se trupes
teatrais agregadas ao domínio de senhores nobres e reis. O teatro
era um emprego, assim como o foi para Shakespeare, o qual foi
empregado de Lorde Chamberlain e, posteriormente, pelo
próprio rei.
1 Cf. Luiz Francisco Rebello, Dicionário de Literatura Portuguesa.
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Na Itália, o teatro renascentista rompeu com as tradições do teatro medieval. Embora
tenham sido originariamente amadores, o certo é que
houve um intenso processo de profissionalização dos
actores, agora já com a presença de mulheres. No século
XVII o teatro italiano experimentou as grandes evoluções
cénicas, muitas das quais utilizadas actualmente. Já nos
séculos XIX e XX as representações teatrais são vistas
como reflexos da vida real. No teatro moderno, as situações dramáticas procuram
envolver o espectador na acção representada, denunciado problemas do nosso
quotidiano.
A influência do teatro de Brecht em Felizmente há Luar!
A peça Felizmente há luar é uma peça épica, inspirada na teoria marxista, que apela à
reflexão, não só no quadro da representação, como também na sociedade em que se
insere. O teatro de Brecht pretende representar o mundo e o homem em constante
evolução de acordo com as relações sociais. Estas características afastam-se da
concepção do teatro aristotélico que pretendia despertar emoções, levando o
espectador a identificar-se com o herói. O teatro moderno tem como preocupação
fundamental levar os espectadores a pensar, a reflectir sobre os acontecimentos
passados e a tomar posição na sociedade em que se insere.
Brecht foi um dramaturgo alemão, nascido em 1898 e foi responsável pela teoria de
teatro «épico». A sua obra domina a evolução do teatro contemporâneo e defende a
distanciação. A identificação com o herói desperta as emoções, transporta o espectador
para o universo fictício do palco, mas prejudica a visão crítica do público tornando-o
incapaz de uma análise objectiva de acção. Deve contar-se o final da peça para evitar
que a emoção perturbe a capacidade de análise dos espectadores. A distanciação leva o
espectador a pensar e a desenvolver o espírito crítico.
Na esteira de Brecht, a intencionalidade da peça Felizmente há Luar! é levar o
leitor/espectador a estabelecer um paralelismo histórico-metafórico entre o tempo
representado (1817, em que o povo português, pobre e amedrontado, é dominado por
um poder absoluto, sustentado pelo estrangeiro, pela Igreja e por cidadãos corruptos e
oportunistas) e o tempo de escrita (1961, em que o mesmo povo, com péssimas
condições de vida, é dominado pela ditadura salazarista, aliada a monopólios
estrangeiros e à Igreja e sustentada pela PIDE que, muitas vezes, se confundia com o
cidadão anónimo, o chamado «bufo» que denunciava o povo, colaborando com a
manutenção do regime).
A denúncia das injustiças e da violência, da pobreza e do analfabetismo, da
corrupção e da arrogância levam, obviamente, o espectador a tomar consciência de
que muita coisa tem de mudar. E esse era o principal objectivo de Brecht.
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Vejamos a comparação entre as duas épocas:
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Luís de Sttau Monteiro
Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro nasceu no dia 03/04/1926 em Lisboa e faleceu
no dia 23/07/1993 na mesma cidade. Partiu para Londres com dez anos de idade,
acompanhando o pai que exercia as funções de
embaixador de Portugal. Regressa a Portugal em
1943, no momento em que o pai é demitido do cargo
por Salazar. Licenciou-se em Direito, que exerceu
por um curto período de tempo. Parte novamente
para Londres, tornando-se condutor de Fórmula 2.
Regressa a Portugal e colabora em várias
publicações, destacando-se a revista Almanaque e o suplemento "A Mosca" do Diário de
Lisboa, e cria a
secção Guidinha
no mesmo jornal.
A sua estadia em
Inglaterra,
durante a
juventude, pô-lo
em contacto com
alguns
movimentos de
vanguarda da
literatura anglo-
saxónica. Na sua
obra narrativa
retrata
ironicamente
certos estratos da
burguesia
lisboeta e
aspectos da
sociedade
portuguesa sua
contemporânea.
O seu inconformismo perante a ausência de liberdade que se viveu perante o período
salazarista, o seu espírito lutador e insatisfeito e a sua atitude crítica perante o regime
foram factores que lhe valeram a cadeia de Aljubre. Em 1961 foi preso pela PIDE,
acusado de ter participado no golpe militar de Beja, tentativa de revolta fracassada que
terá sido apoiada pelo General Humberto Delgado.
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Estreou-se, em 1960, com Um Homem não Chora, a que se seguiu Angústia Para o Jantar
(1961), obra que revela alguma influência de escritores ingleses da geração dos angry
young men, que o consagrou, e E Se For Rapariga Chama-se Custódia (1966).
Destacou-se, sobretudo, como dramaturgo, nomeadamente com Felizmente há Luar!
(1961), peça que, sob influência do teatro de Brecht e recuperando acontecimentos da
anterior história portuguesa, procurava fazer uma denúncia da situação sua
contemporânea. Foi preso em 1967 pela Pide após a publicação das peças de teatro A
Guerra Santa e A Estátua, sátiras que criticavam a ditadura e a guerra colonial. Em 1971,
com Artur Ramos, adaptou ao teatro o romance de Eça de Queirós A Relíquia,
representada no Teatro Maria Matos. Escreveu o romance inédito Agarra o Verão, Guida,
Agarra o Verão, adaptada como novela televisiva em 1982 com o título Chuva na Areia
A peça em dois actos Felizmente Há Luar! foi publicada em 1961 e distinguida, logo no
ano seguinte, com o Grande Prémio de Teatro da Sociedade de Escritores e
Compositores Portugueses. Foi
representada pela primeira vez em
Paris, em Março de 1969, porque,
em Portugal, vigorava então a
Censura, que a impediu de subir à
cena, dado que o seu conteúdo
desagradava ao regime salazarista
que vigorava até 1974. Só em 1978
será representada no Teatro de D.
Maria II, numa encenação do
próprio Sttau Monteiro. Foram
vendidos 160 mil exemplares da
peça, resultando num êxito estrondoso.
Apoteose trágica – expressão conferida pelo autor, pois a obra tem um desfecho trágico
e homenageia-se a figura heróica do General Gomes Freire de Andrade, o qual morre
em contexto também ele apoteótico.
A acção desta peça, a que o próprio autor chamou um “grito de liberdade”, decorre em
1817. Centra-se na figura do General Gomes Freire de Andrade – “que está sempre
presente embora nunca apareça”. É um militar prestigiado que é executado em S.
Julião da Barra, acusado de liderar uma conspiração contra a junta governativa que
representava o rei de Portugal (D. João VI), refugiado no Brasil. A Junta é constituída
por D. Miguel Pereira Forjaz, representante da nobreza, por Principal Sousa,
representante do Clero, e por William Carr Beresford, o todo poderoso chefe militar
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nomeado por Sua Majestade Britânica e que “governa Lisboa para ganhar dinheiro”.
Este último, ao recear perder os seus privilégios, vai manipular os outros dois no
sentido de acreditarem nas falsas informações de delatores sem escrúpulos que
envolvem o General na Conspiração de 1817 para derrubar o regime absolutista e
instaurar o Liberalismo em Portugal. O chefe da revolta é preso e executado numa
noite de lua cheia.
É essencial, nesta peça, reconstituição histórica do que se passou em 1817. Esses
acontecimentos instituem-se como metáfora do que acontece em Portugal no
momento da escrita, porque nestes dois tempos há uma relação de analogia: o
regime autoritário, a ignorância e a miséria do povo, a delação, a hipocrisia do
clero, as prisões arbitrárias, os julgamentos sumários, as execuções imediatas, o
assassínio de políticos incómodos.
Situação Social e Política de Portugal
Obra:
1. Nesta época Portugal estava em crise a vários níveis e vivia as vésperas da
Revolução Liberal. As crises política (ausência do rei D. João VI e da corte no
Brasil), económico-social (pobreza causada pela ruína agrícola, comercial e
industrial do país que não acompanhara a Revolução Industrial Inglesa e pela
dependência económica do Brasil) e Ideológica (difusão progressiva de ideias
revolucionárias, nomeadamente a contestação da monarquia, por influência da
Revolução Francesa) dominavam o país. A presença militar inglesa tornou-se
opressora.
2. Após 1815 a principal preocupação dos regentes do reino era de alertar o
regente que viria posteriormente a ser tornado rei, D. João VI, para a
necessidade de serem tomadas medidas que pudessem tirar da pobreza, da
miséria, da ruína agrícola, comercial e industrial Portugal. Solicita-se o retorno
do rei, o qual não consegue por em marcha as reformas, devido à sua
distância.
3. Acrescente-se, ainda, a dificuldade de relacionamento com o chefe militar
inglês, o general William Carr Beresford, que em 1815 planeava já um novo
regulamento para o exército português, acarretando uma enorme despesa
económica. Daí este se tornar uma figura incómoda para os outros dois
governadores (D. Miguel Forjaz e Principal Sousa).
4. Note-se, porém, que os governadores, ao mesmo tempo que apadrinharam as
críticas às ideias de mudança, exerceram, por outro lado, uma eficaz acção de
repressão sobre as tentativas de transformação política. Inicialmente, esta
repressão traduziu-se na campanha de perseguições, prisões e exílios;
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posteriormente, na proibição de jornais portugueses publicados em Inglaterra e
na proibição das sociedades secretas.
5. O movimento conspirativo ganha novos contornos em 1817 / 1818 devido ao
aumento de medidas de repressão.
6. A Revolução de 1820 veio inaugurar o liberalismo político no nosso país; em
1822 elaborou-se a primeira Constituição Portuguesa. Considerada como tendo
um cariz demasiado avançado perante a sociedade da época, e com a morte de
D. João VI, ensaiou-se em 1826 uma nova experiência liberal, mais moderada.
Este documento pretendia conciliar a inovação com a tradição, os interesses das
camadas senhoriais e os das burguesas. Porém, a sociedade portuguesa não
tinha sofrido as alterações de fundo necessárias para poder aceitar as
instituições liberais.
E assim, só uma guerra civil prolongada (1829-1834) – em cujo decurso a
regência liberal promulgou uma importante legislação de reforma económica,
administrativa e judicial, atribuída a Mouzinho da Silveira – permitiu a
institucionalização duradoura do liberalismo.
7. Esta época serve de pretexto ao autor para, evocando esta época histórica e
situando a acção dramática nesse tempo histórico, falar do seu próprio tempo
(1961), alertando consciências, denunciando situações de repressão
comparáveis a outros tempos de noites sombrias.
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Síntese de acontecimentos político-militares e sócio-económicos:
➢ 1792 – início da regência de D. João VI
➢ 1806 – Napoleão decreta bloqueio continental; ocorre a 1ª invasão
francesa; a corte desloca-se para o Brasil; Governo de Junot; decadência
do comércio externo português; Tratado Comercial entre Portugal e a
Inglaterra.
➢ 1808 – pedido de auxílio à Inglaterra; as tropas inglesas comandadas por
Artur Wellesley desembarcam em Portugal;
➢ 1810 – 1812 – 2ª e 3ª invasões francesas. Retirada final dos franceses.
➢ 1816 – Morte de D. Maria: início do reinado de D. João VI, ainda no Rio
de Janeiro. Beresford assume preponderância em Lisboa.
➢ 1817 – Conspiração libertária. O general Gomes Freire de Andrade
morre.
➢ 1819-1820 – Fundação do Sinédrio, no Porto, associação secreta que irá
preparar a Revolução de 1820. Revolução. Primeira tentativa de
introdução da máquina a vapor em Portugal.
➢ 1821 – primeiras eleições em Portugal. D. João VI regressa a Portugal.
Decreto que estabelece, em Portugal, a abolição da censura prévia e
regula o exercício da liberdade de imprensa. Extinção do Tribunal do
Santo Ofício. Fundação do 1º Banco, em Lisboa. A máquina a vapor
começa a ser utilizada na navegação do Tejo.
Época de elaboração da obra:
1. Em Felizmente há Luar! o passado é um pretexto para se falar do presente.
2. A sociedade do início dos anos 30 estava dependente da agricultura, cujas
classes dominantes eram largamente marcadas pela importância económica e
política dos sectores agrários e do comércio internacional / colonial e com uma
burguesia industrial em emergência, mas ainda débil.
3. O 28 de Maio iniciou o longo e complexo processo de superação do Estado
liberal pelas resistências “externas” à ditadura por parte das forças
republicanistas e democráticas. Porém, o salazarismo acaba por se impor.
4. O teatro parece surgir como a manifestação artística que mais perseguição
sofreu durante este período, tendo sido, inclusive, fundada a Comissão de
Censura Teatral, que analisava as obras a fim de lhe suprimir passagens que
fossem consideradas “perigosas” ou mesmo proibir a sua representação. É fácil
descobrir a razão desta perseguição se pensarmos na acção perturbadora que o
teatro pode assumir junto do público, pela sua proximidade à vida. Daí a peça
de Luís de Sttau Monteiro ser perigosa, na opinião da censura.
5. Salazar e Estado Novo: no início dos anos 30 Portugal era primordialmente
agrário e as classes predominantes estavam largamente marcadas pelo poder
económico e político dos sectores agrários / rentistas e do comércio
internacional / colonial e com uma burguesia industrial em emergência, mas
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ainda débil. Os efeitos quase sucessivos das crises de 1921, da valorização do
escudo, em 1924, e da Grande Depressão de 1929 tinham afectado gravemente a
economia, os negócios e as finanças públicas. O velho estado republicano-
liberal tornava-se sinónimo de demagogia e desordem, de instabilidade política
e social, de escândalos, de incapacidade geral de fazer face à crise. O 28 de Maio
vinha iniciar um longo processo de superação do Estado Liberal. Com a crise,
começa a proliferar a ideia de que era necessária a ordem
6. As principais e mais duradouras características do modelo económico do
Estado Novo foram construídas durante a Ditadura Militar, entre as quais:
- Politica de fomento das obras públicas;
- Política colonial;
- Acto colonial;
- Política de autarcia;
- Constituição política;
- Estatuto do Trabalho Nacional;
- Política conjuntural anti-depressão.
7. A nível político-constitucional, o regime emerge como uma ditadura de “chefe
de Governo”, com o progressivo esvaziamento dos poderes do Presidente da
República e da Assembleia Nacional e a anulação efectiva das concessões do
Liberalismo resultantes do “compromisso constitucional” de 1933.
8. Domínio do exército e da Igreja Católica. Criação das milícias: Mocidade
Portuguesa e Legião Portuguesa
9. O Estado Novo podia deter quem entendesse, sem culpa formada e sem
mandato ou fiscalização judicial, por períodos que foram sendo alargados, até
chegar aos seis meses. Durante esse tempo os detidos podiam ser conservados
incomunicáveis, sem visitas nem assistência dos seus advogados.
Autarcia é uma sociedade que se basta a si
própria em termos económicos. Tem implícita a ideia de que um país deve produzir tudo
aquilo de que necessita para consumir, não
ficando dependente das importações.
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10. Carta de Matilde de Melo a António de Sousa Falcão
Ambiguidade do título
O título da peça é ambíguo, conforme o ponto de vista das personagens que proferem a
célebre frase (D. Miguel Forjaz – indica o medo e o fim da rebelião – e Matilde Melo –
esperança no começo de uma nova era, em que o povo se revoltará contra o poder dos
dirigentes; há uma profetização da Revolução de 1820), mas também pela dupla
simbologia do fogo: remete simultaneamente para a destruição e para a purificação. O
luar liga-se à morte, mas também à vida.
A expressão «Felizmente Há Luar» foi utilizada por Raul Brandão, em Vida e Morte de
Gomes Freire, o que nos mostra claramente que Sttau Monteiro recorreu a esta narrativa
histórica, onde pôde confirmar factos relacionados com a condenação do herói da
conspiração de 1817.
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O advérbio felizmente é bastante pertinente, traduzindo ideias diferentes por parte de
cada uma das personagens, pois a noção de prosperidade e de felicidade é,
obviamente, diferente para D. Miguel e para Matilde.
Signos não Linguísticos
No discurso teatral existem signos linguísticos – presentes no discurso das personagens
– e nos signos não-linguísticos emitidos pela situação e adereços de cena. Daí a
importância do texto principal, mas também das didascálias (indicações cénicas). Em
Felizmente há Luar!, as indicações cénicas fornecem indicações sobre vários signos não
linguísticos: o tom de voz, os gestos e a movimentação dos actores, a iluminação, a
indumentária e o som.
É a metáfora que nos permite transpor a trindade da Regência
Para o tempo da ditadura salazarista que sobreviveu com a ajuda
Os signos permitem-nos compreender a miséria, a opressão e a consequente revolta do
povo.
D. Miguel
Beresford
Principal Sousa
PIDE
Igreja
NATO
O tom de voz
Auxilia a interpretar as falas das personagens e revela sentimentos ou relações afectivas
entre as personagens. Exemplos:
1. Manuel – é «o mais consciente dos populares», utiliza nos monólogos o seu tom
de voz habitual (pp. 16, 79), mas adopta um tom sarcástico (p.16), «duro e
ríspido» (p. 78) quando pretende imitar os poderosos (p.16), pede esmola «num
tom de voz humilde e trémulo» (p. 78), torna-se irónico quando critica a situação
política do país, fala com ternura (p.105), tristeza (p. 109) ou em tom de
acusação com Matilde Melo (pp. 105-106). As suas reflexões são entrecortadas
por pausas que sugerem o fluir do pensamento, mas também a sua própria
impotência para mudar a situação política do país.
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A linguagem gestual e a movimentação das personagens
O conceito de linguagem gestual é abrangente já que se refere a gestos, jogos
fisionómicos, posição e postura das personagens. A movimentação pelo espaço cénico
engloba entrada e saída dos actores nesta obra está intimamente ligada à iluminação. Por
exemplo:
1. Matilde exprime, pelos seus gestos e movimentos, a dor e a revolta. Logo após a
prisão do marido, aparece sozinha procurando consolo nas recordações e nos
objectos pessoais do general. A didascália dá conta do aumento gradual do seu
sofrimento. «Levanta-te […] Encaminha-se para uma cómoda velha […] Abre
uma gaveta da cómoda e tira dela um uniforme velho do Gomes Freire […]
Coloca o uniforme de Gomes Freire sobre a cadeira […] Acaricia o uniforme
[…] Passa a mão pelo uniforme com ternura […] Faz o gesto que fecha uma
janela […] Começa a chorar […] Endireita-se. Parece crescer no palco […] Cai
de joelhos, com os braços em torno da cadeira e, soluçando, enterra a cabeça no
uniforme de Gomes Freire» (pp. 83-86)
Cenário, iluminação, trajes, adereços de cena
Os diferentes quadros são desvendados pelo jogo de luzes: oposição entre escuridão e
luminosidade. No início de cada um dos actos «a cena está às escuras», incidindo a luz
sobre Manuel que aparece sozinho. Só depois se ilumina o fundo do palco e surgem as
outras figuras populares. Após a chegada da polícia que dispersa o grupo de populares, a
«luz do fundo vai diminuindo de intensidade até desaparecer completamente».
Os trajes das personagens e os objectos funcionam como adereços de cena que
permitem localizar a acção dramática. As figuras populares ilustram um cenário de
miséria contrastando com a opulência e poder da classe dirigente. Os objectos pessoais
das personagens constituem também adereços de cena: «cestos, mantas esfarrapadas,
uma abóbora, etc.» (p. 18), «o sapato estragado de Vicente», «uma boneca esfarrapada»
(p. 25). O cenário de miséria é completado pelas próprias personagens: «uma velha,
sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova» (p. 16).
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Elementos simbólicos
➢ A cor verde da saia de Matilde – a viúva de Gomes Freire, vestida de verde num
claro sinal de substituição do luto pela esperança e tranquilidade. É também
associada à renovação da natureza, à longevidade e à imortalidade, remetendo
também para o encontro de ambos num outro mundo. No final do espectáculo será
a voz de Matilde que ecoará n os ouvidos dos espectadores, transfigurando o
significado das palavras de D. Miguel que ditaram o título da obra. «Entre o azul e
o amarelo, o verde resulta das interferências cromáticas. Mas entra com o vermelho
no jogo simbólico de alternâncias. A rosa floresce entre folhas verdes. Equidistante
do azul-celeste e do vermelho infernal, ambos absolutos e inacessíveis, o verde,
valor médio, mediador entre o quente e o frio, o alto e o baixo, é uma cor
tranquilizadora, refrescante, humana.»2 O frio, a solidão e o gelo da prisão e da
morte são substituídos pela confiança de Matilde, para quem a condenação injusta
do marido significa a honra e o ensinamento que permitirá a mudança.
➢ O fogo – «O fogo purificador que se ergue sobre o altar dos holocaustos,
acompanhou sempre as coroações e os ordálios. […] Mas o fogo também pode
descer e transformar-se em castigo, como testemunha Lúcifer, anjo portador de luz
que se tornou príncipe do fogo subterrâneo.»3
➢ A noite – é o momento temporal em que domina a obra. Gomes Freire é preso de
madrugada por soldados; a sua execução em lugar à noite, que, simbolicamente, se
associa ao sofrimento e à morte. A noite é, também, sinónimo do poder maldito e
das injustiças dos governadores. A noite é o tempo das germinações e das
2 Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Teorema, Lisboa, 1982. 3 Luc Benoist, Signos, Símbolos e Mitos, Perspectivas do Homem / Edições 70, Lisboa, 1999, pp. 58-59.
Som
Os sons adensam a expressividade dramática da peça.
Os sons dos tambores sugerem a repressão militar e policial; o som dos sinos mostra o
envolvimento da Igreja na repressão que se abate sobre o povo; a mistura destes dois
sons denuncia o seu envolvimento.
Os sons da fanfarra que se ouve no final da peça «num crescendo de intensidade até cair
o pano» é ambíguo; se por um lado resulta do som opressivo dos tambores, é também o
som da festa da liberdade profetizada por Matilde.
Os silêncios também são significativos. Marcados pelas pausas no discurso, podem
sugerir o estado emotivo das personagens, o fluir dos seus pensamentos ou sublinharem
um momento de grande tensão emocional como é o caso do silêncio «pesado» que se
segue à primeira conversa dos populares sobre o General Gomes Freire de Andrade (p.
21) ou dos instantes que precedem a execução dos conspiradores, em que «o palco fica
às escuras e em silêncio» (p.135)
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conspirações. Segundo Luc Benoist, «O simbolismo terrestre oscila assim entre a
luz e a sombra (sentido etimológico do yang e do yin), entre o lado iluminado e o
obscuro, como nas arenas espanholas, alternância que impunha e ainda impõe à
construção dos edifícios e à agricultura uma orientação que outrora era fixada
pelos ritos da geomância.» 4
➢ O luar – permite presenciar a tortura dos conspiradores e concede a visão de um
momento esclarecedor que poderá engendrar a regeneração social. A lua, tal como
o fogo, é marcada por uma dupla simbologia: ela prefigura a morte na Terra, mas,
pelas suas diferentes fases, associa-se a rituais de renovação e de mudança da
natureza. Segundo Luc Benoist a Lua associa-se à «água como o Sol ao fogo.
Irradiando uma luz indirecta, é símbolo de dependência e, pelo seu
reaparecimento periódico de renovação. Mede o tempo, o das semanas e dos
meses, segundo o seu próprio ciclo e unifica os ritmos heterogéneos, cuja analogia
os aproxima do seu. Controla os fenómenos da fertilidade e da vegetação.» 5
➢ A moeda – é entendida como uma medalha
➢ Os tambores e a fanfarra – são sinónimos de repressão e de autoridade.
O espaço e o tempo
São o espaço e o tempo que organizam o microcosmos da acção; estão presentes nos
cenários e nas didascálias. A mudança de espaços é sugerida pelos efeitos de luz e
pelos adereços.
O espaço físico – primeiro acto: ruas da cidade de Lisboa, no espaço em que D. Miguel
recebe Vicente, no palácio dos governadores do Reino, no Rossio onde entrevistam o
delatores e preparam o seu plano, casa de Gomes Freire, alusão a espaços frequentados
pelos revolucionários, tais como o botequim do Marrare e uma loja maçónica, sedeada
na Rua de São Bento.
O espaço físico –segundo acto: ruas de Lisboa, casa da Matilde de Melo, gabinete onde
Beresford dialoga com Matilde, a entrada da casa de D. Miguel Forjaz e o local onde a
mulher do general conversa com o principal Sousa, o alto da serra, de onde se
vislumbram as fogueiras, e há ainda referência ao forte de S. Julião da Barra, o campo
de Sant’Ana, onde serão executados os presos, e o Rato, por onde andam as patrulhas
da polícia. Matilde evoca ainda a aldeia onde nasceu e cresceu, Paris e os campos da
batalha da Europa por onde acompanhou o marido.
O espaço social– este é mais explorado pelo autor. Os inúmeros elementos que
dispomos fazem-nos pensar que Sttau Monteiro pretende reforçar as profundas
diferenças que marcam a sociedade oitocentista. Assim, o povo é caracterizado por um
vestuário reduzido e por um cenário de doença, pobreza e miséria. Os poderosos, por
sua vez, aparecem caracterizados por um guarda-roupa cuidado e rodeados por um
cenário de riqueza. Temos ainda referências constantes ao clima de medo, de repressão
4 Luc Benoist, ibidem, p. 80. 5 Luc Benoist, ibidem, pp. 60-61.
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e de perseguição, ao ambiente de conspiração, fruto de acontecimentos como à
presença de estrangeirados no país.
O tempo é abstracto. No primeiro acto o tempo da acção é muito mais rápido do que
no segundo. Os acontecimentos precipitam-se até chegar à prisão de Gomes Freire.
Este ritmo temporal comprova a celeridade da condenação e da execução dos
revolucionários para que não tivessem qualquer hipótese de defesa, como pretendia D.
Miguel: «o julgamento será secreto, e para evitar o perdão de el-rei, a execução seguir-
se-á imediatamente à sentença» (p.65). O arrastamento e o fluir do segundo acto
intensifica o drama: acompanhamos o sofrimento de Matilde ao longo daqueles 150
dias em que Gomes Freire esteve na prisão. Logo no início do acto, Manuel diz-nos que
prenderam o general «nessa madrugada» (p.79); mais adiante, Sousa Falcão informa
Matilde de que «só ao fim de seis dias» (p.111) o general teve dinheiro para comer.
Depois da entrevista com o principal Sousa, Matilde lamenta-se: «Há quatro dias que
não me deito e que não sinto, na minha, qualquer mão amiga» (p. 130). A praga que
roga ao prelado coincide com o dia de execução de Gomes Freire: «hoje, 18 de Outubro
de 1817» (p. 129).
a) tempo histórico: século XIX
b) tempo da escrita: 1961, época dos conflitos entre a oposição e o regime salazarista
c) tempo da representação: 1h30m/2h
d) tempo da acção dramática: a acção está concentrada em 2 dias
e) tempo da narração: informações respeitantes a eventos não dramatizados, ocorridos
no passado, mas importantes para o desenrolar da acção
Não nos esqueçamos do tempo em que esta peça remonta de uma forma metafórica:
Estado Novo.
LINGUAGEM E ESTILO
Linguagem
- natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de
algumas das personagens
- uso de frases em latim com conotação irónica, por aparecerem no momento da
condenação e da execução
- frases incompletas por hesitação ou interrupção
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- marcas características do discurso oral
- recurso frequente à ironia e sarcasmo
Recursos estilísticos: enorme variedade (tomar especial atenção à ironia)
Funções da linguagem: apelativa (frase imperativa); informativa (frase declarativa);
emotiva [frase exclamativa, reticências, anacoluto (frases interrompidas)];
metalinguística
Marcas da linguagem e estilo: provérbios, expressões populares, frases sentenciosas
Personagens
GOMES FREIRE: protagonista, embora nunca
apareça é evocado através da esperança do povo, das
perseguições dos governadores e da revolta da sua
mulher e amigos. É acusado de ser o grão-mestre da
maçonaria, estrangeirado, soldado brilhante,
idolatrado pelo povo. Acredita na justiça e luta pela
liberdade. É apresentado como o defensor do povo
oprimido; o herói (no entanto, ele acaba como o anti-
herói, o herói falhado); símbolo de esperança de
liberdade
D. MIGUEL FORJAZ: primo de Gomes Freire, assustado com as
transformações que não deseja, corrompido pelo poder, vingativo, frio e
calculista. prepotente; autoritário; servil (porque se rebaixa aos outros);
PRINCIPAL SOUSA: defende o obscurantismo, é deformado pelo
fanatismo religioso; desonesto, corrompido pelo poder eclesiástico, odeia
os franceses
BERESFORD: cinismo em relação aos portugueses, a Portugal
e à sua situação; oportunista; autoritário; mas é bom militar;
preocupa-se somente com a sua carreira e com dinheiro; ainda
consegue ser minimamente franco e honesto, pois tem a
coragem de dizer o que realmente quer, ao contrário dos dois
governadores portugueses. É poderoso, interesseiro, calculista,
trocista, sarcástico
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VICENTE: sarcástico, demagogo, falso humanista, movido pelo interesse da
recompensa material, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado; traidor;
desleal; acaba por ser um delator que age dessa maneira porque está revoltado com a
sua condição social (só desse modo pode ascender socialmente).
MANUEL: denuncia a opressão a que o povo está sujeito. É o mais consciente dos
populares; é corajoso.
MATILDE DE MELO: corajosa, exprime romanticamente o seu amor,
reage violentamente perante o ódio e as injustiças, sincera, ora desanima,
ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre. Representa uma denúncia
da hipocrisia do mundo e dos interesses que se instalam em volta do
poder (faceta/discurso social); por outro lado, apresenta-se como mulher
dedicada de Gomes Freire, que, numa situação crítica como esta, tem
discursos tanto marcados pelo amor, como pelo ódio.
SOUSA FALCÃO: inseparável amigo, sofre junto de Matilde,
assume as mesmas ideias que Gomes Freire, mas não teve a
coragem do general. Representa a amizade e a fidelidade; é o
único amigo de Gomes Freire de Andrade que aparece na peça; ele
representa os poucos amigos que são capazes de lutar por uma
causa e por um amigo nos momentos difíceis.
Frei Diogo: homem sério; representante do clero; honesto – é o contraposto do
Principal Sousa.
Delatores: mesquinhos; oportunistas; hipócritas.
MIGUEL FORJAZ, BERESFORD e PRINCIPAL SOUSA perseguem, prendem e
mandam executar o General e restantes conspiradores na fogueira. Para eles, a
execução à noite, constituía uma forma de avisar e dissuadir os outros revoltosos, mas
para MATILDE era uma luz a seguir na luta pela liberdade.