PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE EDUCAÇÃO
VALÉRIA MOURA VENTURELLA
RUMO A UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINARPARA OS PROCESSOS DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA INGLESA EM SALA DE AULA
Porto Alegre2004
VALÉRIA MOURA VENTURELLA
RUMO A UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINARPARA OS PROCESSO DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA INGLESA EM SALA DE AULA
Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Educação daPontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul como requisito parcial paraa obtenção do grau de Mestre emEducação, sob orientação da Profa. Dra.Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza.
Porto Alegre2004
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VALÉRIA MOURA VENTURELLA
RUMO A UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINARPARA OS PROCESSO DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA INGLESA EM SALA DE AULA
Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Educação daPontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul como requisito parcial paraa obtenção do grau de Mestre emEducação.
Aprovada em ___/___/___ pela Banca Examinadora.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________Profa. Dra. Valdemarina Bidone de Azevedo e SouzaPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Faculdade de Educação(Orientadora)
__________________________________________Prof. Dr. Juan José Mouriño Mosquera
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SulFaculdade de Educação
Faculdade de Letras
__________________________________________Prof. Dr. Roberto Ramos
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SulFaculdade de Comunicação Social
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AGRADECIMENTO
Este trabalho tornou-se possível e foi realizado com o auxílio do CNPq, e com
o apoio e o carinho de meus professores, professoras e colegas do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
especialmente das professoras Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza e Maria
Emília do Amaral Engers, do querido amigo Marcos Tomazetti, da maravilhosa e
insubstituível equipe Tânia Braccini, Vera Almeida, Marcio Rodrigues, Lu Vargas,
Izabel Lopes e Cris Rossi e do comprometimento dos estudantes Anderson,
Fabiane, Fernando, Helly, Vanessa e William.
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A CURALulu Santos
Existirá!
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida.
Acenderá!
Todo o farol iluminará
Uma ponta de esperança.
E se virá,
Será quando menos se esperar,
De onde ninguém imagina.
Demolirá
Toda certeza vã.
Não sobrará
Pedra sobre pedra.
Enquanto isso,
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir.
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui.
Existirá!
E toda raça então experimentará
Pra todo mal
A cura.
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RESUMO
Este trabalho objetivou investigar os fundamentos do pensamento transdisciplinar em sua
concepção complexa (NICOLESCU, 2002; MORIN, b2002), e suas repercussões tanto na
investigação científica quanto no processo educacional formal. Após o estabelecimento
dessa base, o trabalho buscou fundar os pressupostos para uma abordagem
transdisciplinar para o processo de ensino e aprendizagem de inglês como língua
estrangeira em sala de aula. Após as investigações teóricas que estabeleceram os
fundamentos da educação transdisciplinar – uma formação integralizadora, permanente-
abrangente e encantadora-transformadora do indivíduo – a investigação, qualitativa de
cunho transdisciplinar (NICOLESCU, 2002) e dialógico (MORIN, a2002), consistiu em um
estudo de caso exploratório (YIN, 2001) – um curso intensivo de língua inglesa desenvolvido
segundo os princípios transdisciplinares – em que a coleta de dados foi realizada através de
entrevistas semi-estruturadas com os participantes, realizadas antes do início e após o final
do curso, pareceres escritos elaborados pelos participantes ao longo do curso e a
observação participante da pesquisadora e também professora do curso. O caso foi então
avaliado em relação ao potencial pedagógico da abordagem proposta. Os dados,
interpretados através de análise de conteúdo (ENGERS, 1987; MORAES, 2003), sugerem
que a realização de uma abordagem transdisciplinar para o processo de ensino e
aprendizagem de inglês como língua estrangeira em sala de aula passa pelo processo de
auto-formação, auto-conhecimento e retomada de posições dos estudantes, pela
concepção das aulas como eventos educacionais e interacionais e pela construção da
consciência do todo através do estabelecimento de vínculos entre os estudantes entre si e
com o professor.
Palavras-chave: transdisciplinaridade, complexidade, dialógica, reforma na educação,
estudo de caso, ensino e aprendizagem língua inglesa.
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ABSTRACT
This production aimed at investigating the foundations of transdisciplinary thought in its
complex conception (NICOLESCU, 2002; MORIN, b2002), and its repercussions both in
scientific investigation and in formal educational processes. After setting this base, the
dissertation seeked to found the principles of a transdisciplinary approach for education and,
more specifically, for the process of teaching and learning English as a foreign language in
the classroom. After the theoretical investigation that set the foundations of transdisciplinary
education – an integralizing, permanent-broad, enchanting-transforming formation of the
individual – the qualitative research, in a transdisciplinary (NICOLESCU, 2002) and
dialogical (MORIN, a2002) perspective, was constituted by an exploratory case study (YIN,
2001) – an intensive English language course whose developed according to
transdisciplinary principles – in which the data collection was done through the use of semi-
structured interviews answered by the participants before and after the course, evaluations
written by the participants during the course and the participant observation of the
researcher and also teacher of the course. The case study was then evaluated in relation to
its pedagogical potential in the proposed approach. The data, interpreted through content
analysis (ENGERS, 1987; MORAES, 2003), suggest that a transdisciplinary approach in
teaching and learning a foreign language in the classroom can be made possible by the
process of self-formation, self-knowledge and review of attitudes by the students, the
conception of the classes as educational and interactional events and the construction the
notion of the whole through the establishment of bonds among the students and between the
students and the teacher.
Key words: transdisciplinarity, complexity, dialogic, education reform, case study, teaching
and learning English as a foreign language.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 101 O DESAFIO DO AUTO-QUESTIONAMENTO 142 DE ENSINAR INGLÊS A FORMAR PESSOAS:
UM PERCURSO DO DISCIPLINAR AO TRANSDISCIPLINAR 202.1 Uma breve história dos métodos e abordagens
para o ensino de línguas estrangeiras21
2.2 A abordagem transdisciplinar 392.2.1 Os pressupostos da transdisciplinaridade 422.2.2 A atitude transdisciplinar 522.2.3 Uma abordagem transdisciplinar para a educação 563 OS MOVIMENTOS DO PERCURSO 683.1 A opção metodológica 683.2 Um delineamento para a metodologia do curso 713.3 O planejamento do estudo de caso 753.4 As entrevistas preliminares
e a revisão dos pressupostos metodológicos do curso 823.5 A coleta de dados da realidade, a triangulação e a interpretação 883.6 Tecendo a espiral:a transdisciplinaridade no processo
de ensino e aprendizagem de língua inglesa em sala de aula 934 OS ESTUDANTES EM SEU PROCESSO DE AUTO-FORMAÇÃO,
AUTO-CONHECIMENTO E REVISÃO DE POSIÇÕES 995 AS AULAS COMO EVENTOS EDUCACIONAIS E INTERACIONAIS 1166 A TEIA DE RELAÇÕES ENTRE AS PARTES
E A CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA DO TODO 142
RUMO A UM MUNDO TRANSDISCIPLINAR:O CAMINHO CONSTRUÍDO ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO 159
REFERÊNCIAS 169APÊNDICE A – O plano de ensino do curso 174ANEXO A – A carta da transdisciplinaridade 176
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INTRODUÇÃO
O ser humano parece estar, nas últimas décadas, redescobrindo sua complexidade,
a do outro e a do mundo. E parece ter se tornado, em muitos aspectos, inoperante diante
dessa “novidade”. Basarab Nicolescu, autor de O Manifesto da Transdisciplinaridade, afirma
que, apesar do crescimento contemporâneo sem precedentes dos saberes na história da
humanidade, a unidade do conhecimento parece cada vez mais inviável. Sabemos cada vez
mais sobre o que fazemos e cada vez menos sobre quem somos, cada vez mais sobre o
universo exterior e cada vez menos sobre o sentido de nossas vidas e de nossas mortes.
Ao observarmos as desigualdades, os conflitos, as tensões e a destruição ao nosso redor,
podemos suspeitar que a consciência humana não evoluiu ao mesmo tempo e na mesma
intensidade com que o conhecimento se expandiu.
Apesar de tanto saber, não parecemos dar mostras de compreender o mundo, as
pessoas que nos cercam, ou nós mesmos. A impossibilidade de superarmos muitas das
tensões e conflitos que vivenciamos – a deterioração das normas sociais e das relações
internacionais, políticas e sociais, a crescente violência nos centros urbanos, os massacres
constantemente perpetrados em nosso planeta – são evidência dessa discrepância entre
nosso conhecimento e nossa compreensão. Líderes políticos e religiosos, por exemplo,
parecem não saber como lidar com os desafios que temos de enfrentar, mesmo quando são
auxiliados pelos grandes especialistas formados pela humanidade. Segundo Edgar Morin,
os avanços disciplinares que temos vivido nos últimos dois séculos provocaram a
fragmentação do conhecimento e a hiperespecialização. Por sua vez, o excesso de
informações sobre o mundo com que nos acostumamos a conviver sufoca nossas
possibilidades de estabelecer conexões entre os fatos e atribuir sentido a eles, o que
dificulta nosso acesso ao conhecimento.
Os saberes construídos pela humanidade, registrados em bancos informacionais e
discutidos por entidades anônimas e superiores aos indivíduos, não estão ao alcance dos
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cidadãos comuns, o que torna difícil discuti-los, criticá-los, e refletir sobre suas
conseqüências. Assim, podemos chegar a supor que o conhecimento acumulado ao longo
de nossa história, além de muitas vezes ter se tornado incompreensível para boa parte das
pessoas, parece ter contribuído pouco na construção de um mundo mais conciliador e mais
feliz.
Nossa educação, apoiada na tradição científica – analítica e disciplinar – parece
contribuir para essa falta de compreensão, ao destacar os objetos do meio em que estão
inseridos, isolá-los e, ao estudá-los, ignorar as relações que existem entre os componentes
da realidade, e entre a realidade e nós mesmos. Segundo Morin, o problema não reside no
fato de que existem diferentes áreas no conhecimento humano, mas sim na maneira pouco
solidária como lidamos com essas áreas. Como nossa educação nos tem ensinado a
desagregar e não a integrar nossos saberes, destacando os objetos e eventos de seus
contextos e fragmentando a realidade em disciplinas apartadas umas das outras, tornamo-
nos pouco cientes das conexões e das interações entre eles. E é assim que aprendemos a
lidar com o mundo: tentando entender os elementos e eventos da realidade em separado,
um após o outro, numa ordem dita “didática”, pouco considerando as relações que existem
entre eles, ou entre eles e nós mesmos.
O mundo, porém, é uma teia multidimensional de elementos conectados entre si,
interagindo dinamicamente, mais complexa do que a reunião de suas partes. E o ser
humano, por sua vez – mais que um cérebro e um corpo – é um todo formado por
diferentes instâncias que se relacionam estreitamente, sempre em mutação. Além disso, ser
humano e mundo interagem, influenciam-se e modificam-se um ao outro, simultaneamente,
modificando-se eles mesmos nesse processo. Dessa interação despontam emergências
que fazem o conjunto ser humano-realidade ser mais complexo que a simples justaposição
de um a outro. É essa a complexidade que não conseguimos compreender por inteiro.
A tradição reducionista – que, para fins de pesquisa e ensino, reduziu a realidade às
suas partes – propiciou enormes avanços científicos e tecnológicos nos últimos dois
séculos. Nesse sentido, seu valor não pode ser desprezado. Esse reducionismo e a
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conseqüente fragmentação, no entanto, levou a humanidade a saber cada vez mais sobre
partes cada vez menores da realidade e, dessa maneira, tornou-nos incapazes de
compreender o todo. Estudiosos contemporâneos, como Morin e Nicolescu, cujas idéias
inspiram e embasam este trabalho, acreditam que essa incompreensão da complexidade do
mundo está na raiz das crises morais, políticas e sociais que nos assolam em escala
planetária neste início de século.
Desse modo, a necessidade de se buscar uma compreensão mais integrada de nós
mesmos, da realidade e da relação que estabelecemos com ela se faz urgente neste início
de século. “Somente uma forma de inteligência capaz de abarcar a dimensão cósmica dos
conflitos presentes é capaz de confrontar a complexidade de nosso mundo e o desafio
presente da auto-destruição espiritual e material da espécie humana”, afirma a Carta da
Transdisciplinaridade. É uma das prerrogativas da educação e, por conseguinte, de cada
educador, oferecer oportunidades para que os estudantes desenvolvam tal inteligência, um
conjunto de qualidades reflexivas, autônomas e transformadoras de si e da realidade, e ao
mesmo tempo integradas com seu entorno.
Já as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Letras (2001), um documento
produzido pela Câmara de Educação Superior do Ministério da Educação e Cultura que
estabelece parâmetros para a formação de educadores para a área, ressalta que os
professores de língua portuguesa, de literatura e de línguas estrangeiras devem buscar
elaborar abordagens pedagógicas voltadas para a construção de autonomia por parte dos
estudantes, e também devem assumir sua atribuição de orientadores, responsáveis não só
pelo ensino de conteúdos programáticos de sua área, mas também pela qualidade da
formação integral do estudante. O documento citado evidencia a relevância de se buscar
aproximações integradoras para os processos de ensino e de aprendizado de idiomas
estrangeiros, e esse é o objetivo deste estudo.
O presente estudo se configura na proposição de pressupostos que sejam pontos de
referência para a realização de uma experiência coerente com a transdisciplinaridade para o
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processo de ensino e aprendizagem de língua inglesa em sala de aula, um estudo de caso
exploratório de abordagem qualitativa e de cunho transdisciplinar-dialógico.
O primeiro capítulo deste trabalho expressa as motivações que me levaram a
empreender esta investigação e a relevância que seus resultados podem assumir no ensino
e na aprendizagem de língua inglesa em sala de aula, além de apresentar o problema e os
objetivos da investigação realizada.
O segundo capítulo descreve o percurso dos estudos bibliográficos realizados ao
longo da investigação, que resultaram no referencial teórico apresentado, e culmina com a
proposição dos pressupostos para uma abordagem transdisciplinar para a educação.
O terceiro capítulo narra os movimentos metodológicos do estudo realizado.
Os capítulos quatro, cinco e seis discutem os resultados encontrados a partir dos
dados da realidade, dos quais emergiram três categorias, que são: os estudantes em seu
processo de auto-formação, auto-conhecimento e revisão de posições, as aulas como
eventos educacionais e interacionais e construção da consciência do todo.
O sétimo capítulo descreve as verdades temporariamente assumidas – e abertas à
crítica e ao questionamento – a partir dos resultados do estudo, e também apresenta
sugestões para investigações subseqüentes que podem aprofundar e enriquecer este
trabalho.
Finalmente, são apresentadas as referências bibliográficas do trabalho, o Plano de
Curso do estudo de caso e a Carta da Transdisciplinaridade.
13
1 O DESAFIO DO AUTO-QUESTIONAMENTO
O presente trabalho emerge de reflexões e questionamentos construídos ao longo
de minha experiência no magistério e na orientação pedagógica na área de ensino de
línguas estrangeiras, e de inquietações experienciadas, nos últimos tempos, em minha
prática como educadora. Ao longo de minha prática como professora de língua inglesa,
tenho buscado construir, junto a meus estudantes e colegas de trabalho, fundamentos para
uma metodologia de ensino de idiomas estrangeiros que, além de proporcionar aos
estudantes o aprendizado de competências comunicativas, possa ser aberta, flexível e
baseada em princípios e valores humanizadores.
Mais recentemente, tenho procurado uma abordagem que, utilizando o idioma
estrangeiro como um princípio galvanizador, seja globalmente educadora, procurando
promover o desenvolvimento intelectual, corporal, afetivo e espiritual das pessoas
envolvidas no processo. Busco atuar de modo que meus estudantes e eu saiamos de cada
aula levando conosco não apenas novos conceitos e procedimentos, mas também pontos
de referência para a construção de novas visões de nós mesmos, dos outros e de nossa
realidade. Ao longo dos últimos anos, passei a me questionar sobre o quanto eu estava
atingindo este propósito, e sobre o quanto minhas aulas proporcionavam aprendizagens
articuladas com nossos projetos de vida, pois já não me sentia tão segura de que era capaz
de promover o tipo de educação que era meu objetivo.
Esse questionamento me levou a reavaliar minha prática em sala de aula e resultou
em uma profunda reflexão sobre minha postura perante o mundo e sobre a maneira como
tento apreendê-lo, e também auxiliar meus estudantes a fazê-lo. Passei, então, a buscar
uma postura pessoal e uma abordagem profissional que modificasse essa mirada, de modo
a permitir a mim e a meus estudantes uma oportunidade de compreender a educação como
um projeto abrangente, não limitado aos momentos formais de aprendizagens escolares, e
também de apreender o mundo e a nós mesmos de forma mais integral.
14
Foi ainda no último ano do curso de graduação em Pedagogia que tive contato pela
primeira vez com os trabalhos de Edgar Morin sobre a busca da religação dos saberes e
com algumas idéias difusas sobre transdisciplinaridade. Com o intuito de aprofundar esses
estudos e com a esperança de superar minhas inquietações e preocupações busquei o
Mestrado em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em
outubro de 2002.
Assim, este trabalho iniciou durante o período de preparação para o processo de
seleção para o Mestrado, entre outubro e dezembro de 2002, com estudos bibliográficos
preliminares a respeito dos princípios fundamentais da complexidade e da
transdisciplinaridade e seus possíveis desdobramentos no processo de ensino e
aprendizagem em sala de aula. Ao me aprofundar no estudo das idéias de Morin e de
Nicolescu, e nas articulações entre elas, acredito que tenha encontrado um rumo para
minha busca. Morin (b2001), ao denunciar a visão simplificadora e reducionista da
realidade, imposta pelos paradigmas científico e educacional que vigoraram durante os dois
últimos séculos, e ao defender uma religação dos saberes, explicitou o que considera ser o
problema fundamental existente na maneira como vemos e interpretamos o mundo, e
também no modo como ensinamos nossos estudantes a fazê-lo. Já Nicolescu (2002), ao
defender uma visão transdisciplinar da ciência, da educação e da vida, mostrou um caminho
a ser traçado na busca pela reintegração do conhecimento e pela reconexão da
humanidade ao mundo e a si mesma.
Pouco a pouco, em meu contato com meus colegas e professores no curso de
mestrado, percebi que minha inquietação inicial não era uma situação que eu deveria
necessariamente superar. Ao contrário, compreendi que minha preocupação se configurava
em mobilização, em interesse, em busca pela descoberta e em uma revisão do que penso,
sei, sinto e sou, e das repercussões que isso tem em minha atuação como educadora.
Essas reflexões, e os estudos que se seguiram, resultaram no referencial teórico
apresentado ao longo deste trabalho, e continuarão ao longo de minha trajetória, num
processo permanente de reavaliação, que conferirá a este estudo um caráter gödeliano:
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inacabado e provisório mesmo depois de sua finalização. Hoje já não sinto a urgência de
superar minhas dúvidas e vencer minhas inquietações, pois percebo que elas me motivam a
continuar aprendendo, o que considero prática essencial para quem quer continuar
ensinando.
O ensino de idiomas é um campo muito fértil para abordagens comunicativas,
construtivistas, humanistas e centradas no estudante (WILLIAMS, BURDEN, 1997). Essas
aproximações têm sido de grande valia para professores de idiomas, que vêm trabalhando
no sentido de tornar cada vez mais significativa e prazerosa a aprendizagem de línguas
estrangeiras em instituições da rede regular de ensino e em escolas de idiomas.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1999), o
aprendizado de uma língua estrangeira apresenta um caráter formativo intrínseco. Em sua
prerrogativa de veículos fundamentais de comunicação entre os povos, os idiomas
estrangeiros oportunizam um meio de “acesso ao conhecimento e, portanto, às diferentes
maneiras de pensar, de criar, de sentir, de agir e de conceber a realidade, o que propicia ao
indivíduo uma formação mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais sólida” (p. 148). Assim,
o aprendizado de uma língua estrangeira possibilita aos estudantes o acesso a informações
que lhes permitirão construir conhecimentos essenciais que contribuirão para sua formação
integral. O conhecimento de um idioma estrangeiro também habilita o estudante a se
comunicar em um novo idioma, permitindo sua aproximação com diferentes culturas e,
conseqüentemente, sua integração num mundo globalizado. No caso da língua inglesa,
dada sua difusão ao redor do mundo, esse caráter facilitador de inserção no mundo
globalizado assume importância ainda maior.
O documento do Ministério da Educação afirma que é possível e recomendável que
se estabeleçam aproximações entre o ensino de línguas estrangeiras e outras disciplinas
que integram a área. “Ao conhecer outra(s) cultura(s), outra(s) forma(s) de encarar a
realidade, os estudantes passam a refletir, também, muito mais sobre a sua própria cultura
e ampliam a sua capacidade de analisar o seu entorno social com maior profundidade,
tendo melhores condições de estabelecer vínculos, semelhanças e contrastes entre a sua
16
forma de ser, agir, pensar e sentir e a de outros povos, enriquecendo a sua formação” (p.
152).
O presente estudo, no entanto, procura ultrapassar essa recomendação. Acredito
que, ao permitir que o estudante reconheça conexões, similitudes e dessemelhanças entre
si mesmo e os outros, o aprendizado das línguas estrangeiras permite que o estudante
construa as habilidades necessárias para também reconhecer o que reside entre, através e
além dos diversos saberes, e entre eles e sua realidade, o que se configura em um dos
princípios fundamentais da transdisciplinaridade.
Em uma época em que os conhecimentos se multiplicam e acumulam de maneira
vertiginosa, mas não são transpostos para a realidade de modo a proporcionar o
desenvolvimento pessoal e social e a incorporação de valores (NICOLESCU, 2002; MORIN,
b2002), a transdisciplinaridade se apresenta como uma via possível para a construção de
um conhecimento mais integralizado. O pensamento transdisciplinar busca,
simultaneamente, contextualização e abertura, e nos propicia a exploração do que há de
comum-diferente, compartilhado-exclusivo e convergente-divergente entre as diferentes
áreas do saber, as diferentes culturas e também entre as pessoas, sem que isso signifique
uma tentativa de homogeneização.
Uma abordagem transdisciplinar para o processo de ensino e aprendizado de um
idioma estrangeiro pode contribuir para uma importante mudança de perspectiva, na medida
em que passe a promover o ensino da língua não mais como um fim em si mesmo, mas
como uma possibilidade de integração do indivíduo, de integração da realidade e da
integração de um ao outro.
Nessa perspectiva, o problema de pesquisa proposto por este trabalho foi:
Como se caracteriza o ensino de língua inglesa em sala de aula fundamentado em
pressupostos transdisciplinares?
E os objetivos desse estudo foram:
· compreender os pressupostos teóricos da transdisciplinaridade;
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· identificar os fundamentos de uma abordagem transdisciplinar para a educação e para o
processo de ensino e aprendizagem de inglês como língua estrangeira em sala de aula;
· propor pontos de referência para o ensino da língua inglesa baseados nos fundamentos
da abordagem transdisciplinar;
· vivenciar uma experiência de ensino e aprendizagem da língua inglesa em sala de aula
fundamentada nos pontos de referência construídos, identificando seu potencial
pedagógico.
Escrevo este trabalho em primeira pessoa. E nessa decisão sou apoiada por Rubem
Alves, que afirmou em seu clássico Conversas com quem gosta de ensinar (1984):
Falar no impessoal, sem sujeito, não passa de uma consumada mentira, umpasse de mágica que procura fazer o perplexo leitor acreditar que não foialguém muito concreto que escreveu o texto, mas antes um sujeitouniversal, que contempla a realidade fora dela. [...] os impessoais 'observa-se', 'constata-se', 'conclui-se' são o ato mágico pelo qual o pulo quer setransformar em vôo: desaparece a pessoa de carne e osso que realmenteviu, pensou e escreveu, e no seu lugar entra um espírito universal. Masparece que o fascínio do vôo é um dos pressupostos do nosso poço, umadas regras do mundo da ciência. E estou propondo que [...] recuperemos acoragem de falar na primeira pessoa dizendo com honestidade o que vimos,ouvimos e pensamos. Escrever biograficamente sem vergonha. Vai-se amodéstia dos impessoais, modéstia que esconde a arrogância da pretensãode universalidade (ALVES, 1984, p. 29-30).
Espero que essa decisão não seja interpretada como prepotência, mas, ao contrário,
como uma mostra da consciência das possibilidades e limitações deste trabalho ao âmbito
de nossas – minhas e dos participantes do estudo de caso – próprias experiências
pessoais. Este estudo se configura em uma investigação qualitativa e, como tal, não
pretende a generalização em nível estatístico, mas a compreensão de uma situação
circunscrita a um determinado local, tempo e grupo de indivíduos. Ao escrever em primeira
pessoa, assumo a especificidade e a autoria desta experiência.
Para Alicia Fernández (2001), a autoria é o reconhecimento de si mesmo como
protagonista ou participante da produção de sentidos. Ao longo das elaborações, realizei
intensas trocas com meus professores, colegas, estudantes e também com os autores que
me motivaram, me inspiraram e me apoiaram. Compreendo que essas interações, como
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todo encontro, me deslocaram e me recompuseram (GUDSDORF, 1987) constantemente, e
contribuíram de maneira determinante na construção das reflexões, dos questionamentos e
das propostas aqui expressos. Assim, compartilho a construção da autoria desse trabalho
com essas pessoas e, ao mesmo tempo, eu o coloco em aberto a novas interações e
diálogos que possam vir a modificá-lo.
19
2 DE ENSINAR INGLÊS A FORMAR PESSOAS:UM PERCURSO DO DISCIPLINAR AO TRANSDISCIPLINAR
Morin (a2002), nos chama a atenção para um importante fenômeno referente aos
professores responsáveis pelo ensino das diferentes disciplinas – entre elas as línguas
estrangeiras – para estudantes das últimas séries do ensino fundamental e para o ensino
médio. O autor afirma que, via de regra, as sociedades não atribuem a esses profissionais a
responsabilidade de educar globalmente, de contribuir na formação integral da adolescência
e da juventude. O que se espera é que esses docentes dêem conta de ensinar os
conteúdos referentes a suas disciplinas, preparando os estudantes para ingressar no nível
superior da educação formal.
Os professores das chamadas áreas do currículo, ao se concentrarem no ensino de
suas disciplinas, geralmente sem considerar as conexões que elas possam apresentar com
outras áreas do conhecimento e sem incluir em seus planos de curso outros conteúdos que
não os factuais (COLL, 1997), deixando de lado o desenvolvimento de conceitos,
procedimentos e atitudes, deixam um vácuo onde deveria ocorrer uma parte significativa da
formação cognitiva, afetiva, social, cultural, ética, estética e espiritual da adolescência e da
juventude. Desse modo, denuncia Morin, esses professores – entre eles os de língua
inglesa – não se percebendo responsáveis pela formação de seus estudantes, limitam-se a
atuar como instrutores dos conteúdos que lhes cabe ministrar. Isso significa que a segunda
metade do ensino fundamental e os anos de ensino médio não ocupam, em boa parte das
instituições formais de ensino, o locus de tempo de formação, configurando-se como um
período de instrução.
A proposta apresentada neste trabalho é uma tentativa de romper – no ensino de
línguas estrangeiras, especialmente a língua inglesa – com a situação descrita por Morin.
Ao nos conclamar a refletir sobre nossas atribuições como educadores e sobre nossa parte
na responsabilidade pela formação integral de adolescentes, jovens e também de adultos, o
autor nos mobiliza também a encontrar caminhos para tornar nossa prática docente, mesmo
20
que específica e limitada à nossa área de atuação, mais significativa nas vidas de nossos
estudantes.
A seguir, procuro descrever brevemente o caminho percorrido pelo ensino de
idiomas estrangeiros ao longo da história até seu estado atual, e proponho pressupostos
teóricos e metodológicos para uma abordagem coerente com a visão transdisciplinar de
educação, que acredito ser uma via possível na transformação do ensino da língua inglesa
em sala de aula com vistas a uma formação mais integral dos envolvidos no processo.
2.1 Uma breve história dos métodos e abordagenspara o ensino de idiomas estrangeiros
O ensino de línguas estrangeiras, praticado há séculos em salas de aula do mundo,
passou por mudanças bastante profundas ao longo do século XX. Dada a importância que o
aprendizado de idiomas assumiu com a internacionalização das relações sociais e
econômicas no último século, o estudo da aquisição e do aprendizado de uma segunda
língua tomou força e impactou as práticas de ensino, também confrontadas com um elevado
nível de exigência em termos de resultados de aprendizagem.
Apesar dos intensos esforços de pesquisa dedicados à descoberta de como as
pessoas aprendem uma língua estrangeira, ainda não sabemos ao certo como o processo
ocorre (HARMER, 1991). Por isso, essa prática de ensino – embora permanentemente
submetida a questionamentos e reflexões – está longe de contar com respostas acabadas e
com uma metodologia de trabalho que garanta o sucesso dos professores e a satisfação
dos estudantes. A pesquisa e a aplicação e a verificação de seus resultados devem
continuar a nos oferecer insights sobre a busca constante de um trabalho cada vez mais
repleto de significado.
Esta parte do trabalho descreve brevemente a história dos métodos e abordagens
utilizados no ensino de línguas ao longo dos últimos séculos e indica seu legado para as
21
práticas atuais. A seguir, apresenta a proposta de uma abordagem transdisciplinar para o
ensino e o aprendizado de idiomas estrangeiros em sala de aula.
O Método Clássico
Durante os séculos XVII, XVIII e XIX, o ensino de línguas estrangeiras no ocidente
esteve fortemente associado ao aprendizado das chamadas línguas clássicas, o latim e o
grego, devido à sua consolidada reputação em promover a intelectualidade dos estudantes
(HOWATT, 2000). No estudo das línguas clássicas, o foco estava não no uso da linguagem
como instrumento de comunicação, mas na compreensão das regras gramaticais e da
estrutura sintática do idioma. Os trabalhos em sala de aula baseavam-se em memorização
repetitiva de vocabulário, na tradução de textos literários e em exercícios escritos, sem que
houvesse espaço para a prática oral do material estudado.
Nos séculos XVIII e XIX, quando línguas estrangeiras modernas passaram a ser
parte do currículo escolar, o método clássico estendeu sua tradição para o ensino do
francês, do alemão e do inglês e é ainda – com algumas adaptações – um dos mais
populares modelos de ensino de línguas estrangeiras no mundo (HOWATT, 2000). É
necessário lembrar que nos primórdios do ensino de línguas estrangeiras, o objetivo de se
aprender um outro idioma era o exercício intelectual e, em alguns casos, a aquisição de
competências de leitura. A esses objetivos se deve a falta de preocupação com as
habilidades orais e comunicativas dos estudantes (HOWATT, 2000).
Por se concentrar na estrutura da língua, em vez de em seu uso, a contribuição do
método clássico para a construção de competências comunicativas em uma língua
estrangeira é bastante limitada (HOWATT, 2000). Também é grande a insatisfação de boa
parte dos estudantes com a dinâmica do método, “lembrado com desgosto por milhares de
estudantes, para quem o aprendizado de uma língua estrangeira significava uma
experiência entediante” (RICHARDS, RODGERS1, 1986 citados por BROWN, 2001, p. 17).
Mesmo assim, apesar das mudanças nos objetivos para o aprendizado de outros idiomas, o
1RICHARDS, Jack C., RODGERS, Theodore S. Approaches and methods in language teaching: adescription and analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
22
método clássico – ou método gramática-tradução, como também é conhecido – tem
resistido às reformas na metodologia de ensino de língua estrangeira, e continua sendo
utilizado pelos professores.
Segundo Brown (2001), a popularidade do método se deve principalmente à
facilidade de sua aplicação. “Ele requer poucas habilidades especializadas por parte dos
professores” (p. 17). O autor se embasa em outros estudos, porém, para argumentar que o
método clássico não tem defensores. “É um método para o qual não há teoria. Não há
literatura que ofereça uma racionalização ou uma justificativa para ele ou que tente
relacioná-lo a temas em lingüística, psicologia ou teoria da educação” (RICHARDS,
RODGERS, 1986, citados por BROWN, 2001, p. 17).
O conhecimento das regras gramaticais e de um vocabulário amplo é muito
importante no aprendizado de uma língua estrangeira. Também é muito proveitosa a
exploração de textos – sejam eles clássicos ou não – no idioma que se está aprendendo,
uma vez que essa prática não só pode auxiliar os estudantes a conhecer melhor a cultura
do povo que fala aquela língua, como também pode estimular a reflexão, o espírito crítico e
a elaboração própria. O problema a respeito do método clássico é que ele se limita a essas
práticas, geralmente conduzidas de forma descontextualizada e desvinculada da expressão
oral. Ele é, assim, insuficiente para conduzir os estudantes a uma utilização competente do
idioma estrangeiro em situações que exijam interação genuína, seja ela oral ou escrita.
O Método Direto
Por volta de 1875, o professor francês de latim François Gouin viajou para
Hamburgo, na Alemanha, para vivenciar a experiência de aprender um idioma estrangeiro
segundo o método que utilizava para ensinar seus estudantes (HOWATT, 2000). Gouin se
empenhou em aprender alemão através do estudo diligente de sua gramática, da tradução
e mesmo da memorização de obras clássicas, apenas para constatar que não conseguia se
comunicar com os estudantes universitários e demais moradores locais. Após um ano de
23
tentativas frustradas de aprender a nova língua através do método clássico, Gouin voltou
para a França.
Ao retornar, ele se surpreendeu ao observar a facilidade com que seu sobrinho de
três anos havia aprendido a falar naquele intervalo de tempo, o que o fez ponderar que
talvez a chave para o aprendizado bem-sucedido de uma língua estrangeira estivesse no
processo através do qual as crianças aprendem sua própria língua.
Após extensas observações do processo de construção da linguagem de seu
sobrinho, Gouin conclui que o aprendizado de uma língua consiste na transformação de
percepções em concepções, e então no uso da língua para representar essas concepções.
Assim, a língua constitui uma ferramenta de pensamento e de representação do mundo
(BROWN, 2001). A partir dessa premissa, ele publicou em 1880 o manual A arte de
aprender e ensinar línguas (GOUIN2, 1992 citado por HOWATT, 2000), em que elaborou
um método de ensino, que ele denominou o Método Seriado.
O Método Seriado buscava realizar um ensino direto e conceitual da língua
estrangeira, ou seja, sem tradução ou explicitação de regras gramaticais, através de uma
série de frases contextualizadas e conectadas entre si. Esse método encontrou muitas
barreiras entre os professores e estudiosos da época, mas acabou dando origem ao
respeitado Método Direto, idealizado por Charles Berlitz em 1878 (HOWATT, 2000).
O Método Direto partia do princípio de que o aprendizado de uma segunda língua
ocorria de modo similar ao aprendizado da língua materna. Assim, as aulas contavam com
interação oral e uso espontâneo da linguagem. Não havia tradução e pouca ou nenhuma
análise de regras gramaticais ou estruturas sintáticas. De maneira geral, os princípios do
Método direto podem ser resumidos nos seguintes pontos (BROWN, 2001):
· As aulas são curtas e conduzidas na língua estrangeira;
· A abordagem para o ensino de gramática é indutiva3;
2 GOUIN, F. The art of teaching and studying languages. London: George Phillip, 1992. (Originalmentepublicado em Paris, 1880).3 A abordagem indutiva se apóia sobre o raciocínio indutivo, que parte de dados particulares (fatos,experiências, enunciados empíricos) e, por meio de uma seqüência de operações cognitivas, chega aleis ou conceitos mais gerais, indo dos efeitos à causa, das conseqüências ao princípio, daexperiência à teoria (HOUAISS, 2001). A indução não tem valor demonstrativo. Seu âmbito devalidade abrange apenas os casos em que essa validade foi efetivamente constatada. Assim, não se
24
· O vocabulário usado e praticado em aula é quotidiano;
· O vocabulário concreto é ensinado através do uso de figuras e objetos, e o vocabulário
abstrato, através de associação de idéias;
· As habilidades comunicativas são construídas progressivamente, através de um sistema
de perguntas e respostas de níveis cada vez mais elevados de dificuldade;
· As atividades em sala de aula enfatizam as habilidades orais e aurais, e exigem correção
tanto gramatical quanto em termos de pronúncia.
O Método Direto tornou-se popular no final do século XIX e no início do século XX
em escolas privadas de idiomas estrangeiros na Europa. Nas escolas públicas, ele foi
adotado de modo tímido, por ser considerado difícil em sua aplicação prática. As principais
dificuldades mencionadas pelos professores se referiam ao seu alto custo, à dificuldade de
ser utilizado com o elevado número de estudantes nos grupos, ao tempo necessário para o
aprendizado dos estudantes e também às dificuldades de se preparar professores para
trabalhar com o método (HOWATT, 2000). As críticas mais importantes, no entanto, vieram
de estudiosos que consideravam inconsistentes seus fundamentos teóricos (BROWN,
2001). O sucesso de muitas experiências, argumentavam, se devia mais às habilidades
particulares dos professores do que a uma sustentação teórica. Mesmo assim, após um
período de declínio nos anos 30 do século XX, esse modelo acabou inspirando o movimento
que fez emergir o Método Áudio-Visual.
O Método Áudio-Visual
O Método Direto nunca gozou, nos Estados Unidos da América, do mesmo prestígio
que obteve na Europa. Por um lado, era difícil encontrar professores nativos de línguas
européias no país. Por outro lado, dado seu relativo isolamento, havia pouca necessidade,
para os americanos, de aprender a se comunicar em outros idiomas (BROWN, 2001).
A eclosão Segunda Guerra Mundial fez emergir nos Estados Unidos a necessidade
urgente de se tornar proficiente – principalmente nos aspectos orais – nas línguas dos
povos aliados e também dos inimigos (HOWATT, 2000), o que abriu caminho para uma
constitui em ciência, uma vez que a ciência é necessariamente demonstrativa (ABBAGNANO, 2000).
25
verdadeira revolução nas metodologias de ensino de idiomas no país. Para esse fim, o
Método Direto foi adaptado para dar origem ao chamado “Método do Exército”, que devido a
sua comprovada eficácia, tornou-se muito popular. A partir dos anos 50 do século XX, com
adaptações realizadas para atender a estudantes em geral, ele passou a ser conhecido
como método áudio-visual.
O método áudio-visual fundamenta suas práticas padronizadas nas concepções
divulgadas por psicólogos comportamentalistas, principalmente Burrhus Frederic Skinner,
para quem a aprendizagem resulta de condicionamento e formação de hábitos. Além disso,
o método se alimenta dos estudos estruturalistas em lingüística.
Os modelos comportamentalistas de aprendizagem seguem uma série de três
estágios: estímulo, resposta e reforço (positivo ou negativo). Em seu livro Verbal Behavior,
de 1957, Skinner transpôs a teoria do condicionamento ao modo como as pessoas
adquirem a língua materna. Segundo o psicólogo, a linguagem é um tipo de hábito formado
pelo ciclo estímulo-resposta-reforço, e nosso desempenho no aprendizado da língua
depende em grande parte dos reforços positivos ou negativos que recebemos dos adultos
enquanto estamos aprendendo a falar.
Como o estímulo-resposta-reforço formam o núcleo central da metodologia, o
método áudio-visual se apóia em exercícios de memorização e de treinamento seguidos de
reforço positivo ou negativo, com o objetivo de formar nos estudantes o “hábito” de usar a
língua estrangeira de maneira correta. Outras características desse método são: o uso
intensivo de materiais visuais e auditivos, o uso exclusivo da língua estrangeira em sala de
aula e a ausência de explicações gramaticais. Tanto o vocabulário quanto a estrutura da
língua são apresentadas e praticadas passo-a-passo e de modo contextualizado, e o
objetivo dos trabalhos é fazer com que cada estudante se expresse sem erros na língua
estrangeira (HARMER, 1991).
Apesar de ter sido considerado bem-sucedido em muitos contextos, especialmente o
treinamento das forças militares no uso de línguas estrangeiras (HARMER, 1991), a
popularidade do método áudio-visual decresceu em meados dos anos 60 do último século
26
devido à constatação de seu limitado poder de promover as habilidades comunicativas dos
estudantes. Descobrimos que a linguagem não é construída através de um processo de
formação de hábitos, que os erros não são necessariamente ruins e prejudiciais ao
aprendizado e que a lingüística estruturalista não esgota o conhecimento de que
necessitamos para ensinar e aprender uma língua estrangeira (BROWN, 2001). Além disso,
a rotina estreita e repetitiva dos trabalhos em sala de aula pode tornar o método entediante
após certo tempo.
O método áudio-visual teve o mérito de inaugurar a aplicação de estudos formais em
lingüística e psicologia do desenvolvimento na formulação e no monitoramento das
atividades de professores e estudantes em um curso de língua estrangeira. Também
algumas de suas propostas, como a utilização de recursos alternativos à tradução e a
descoberta indutiva de regras gramaticais, foram grandes contribuições na história do
ensino de idiomas estrangeiros. No entanto, como todo método, o áudio-visual está sujeito a
críticas severas e apresenta limitações que não podem ser ignoradas. Foi o estudo dessas
limitações que abriu caminho para as propostas que se seguiram.
O cognitivismo e os novos métodos
No contexto de ensino e aprendizagem de línguas, o termo cognitivismo, também
chamado mentalismo, se refere ao grupo de teorias psicológicas que foram desenvolvidas a
partir dos trabalhos do lingüista americano Noam Chomsky, cuja teoria se opôs ao
comportamentalismo. Em 1959, Chomsky publicou seu famoso artigo A Review of B. F.
Skinner's Verbal Behavior, em que explicava sua rejeição da visão comportamentalista do
aprendizado de línguas com base em seu modelo de competência e desempenho.
Chomsky iniciou sua oposição à abordagem comportamentalista fazendo o seguinte
questionamento: se a linguagem é a aquisição de um hábito, então como pode uma criança
dizer coisas que nunca ouviu antes? Para Chomsky (1959), a linguagem é um sistema de
regras, e a aquisição da linguagem consiste, em grande parte, no aprendizado desse
sistema. Sua premissa básica era que, ao aprendermos o finito número de regras existentes
27
na língua, podemos então produzir um infinito número de frases. Assim, o que uma criança
adquire ao aprender a língua materna não é um hábito, mas competência no manejo das
regras gramaticais, o que lhe permite, inclusive, ser criativa no uso da linguagem, dizendo
coisas que nunca lhe foram ensinadas.
A revolução na lingüística liderada por Chomsky chamou a atenção de lingüistas
aplicados e professores de língua estrangeira para a estrutura profunda da língua, e
coincidiu com os estudos psicológicos sobre a natureza afetiva e interpessoal do processo
de aprendizagem (BROWN, 2001). Embora os estudos de Chomsky não tenham sido
diretamente aplicados na prática de ensino de línguas estrangeiras, sua “gramática
generativa” levou muitos profissionais a pensar modos de levar a concepção cognitiva de
aprendizado da linguagem para os procedimentos de sala de aula. Assim, o cognitivismo
fundamentou o desenvolvimento de métodos de ensino que estimulavam os estudantes a
conhecer a estrutura subjacente à língua para, com base nela, desenvolver a capacidade de
expressar suas idéias.
As abordagens humanísticas
Uma perspectiva que desde o início dos anos 80 do último século tem atraído muita
atenção na área de ensino de idiomas é a que, além de ensinar a língua, se preocupa em
educar o estudante. As chamadas abordagens humanísticas se interessam pelos
estudantes como seres integrais e se empenham em auxiliá-los a se desenvolver como
pessoas. Essas abordagens têm como objetivo, além do ensino da língua estrangeira, o
desenvolvimento da personalidade, das habilidades e da auto-estima dos estudantes.
Em 1978, Gertrude Moskowitz publicou seu Caring and Sharing in the Foreign
Language Classroom, um livro que, ao propor atividades que estimulam o bem-estar e as
boas memórias dos estudantes enquanto praticam diferentes estruturas lingüísticas,
estabeleceu um marco na abordagem humanística para o ensino e aprendizado de idiomas
estrangeiros.
28
À medida que a importância de fatores afetivos no processo de ensino e
aprendizado de línguas estrangeiras se tornava reconhecida, as pesquisas sobre sua
aplicação em sala de aula multiplicavam. Muitos métodos humanísticos foram criados e
testados, e atraíam cada vez mais o interesse de professores ávidos por inovações. Embora
o tempo tenha mostrado que nem sempre eles cumpriam a promessa de levar os
estudantes ao auge de suas potencialidades (BROWN, 2001), esses métodos representam
uma etapa importante na história do ensino de idiomas estrangeiros, por terem introduzido
idéias sobre a importância dos aspectos interacionais e afetivos no processo de ensino e
aprendizagem que contribuíram para o desenvolvimento da abordagem comunicativa.
Abaixo, estão brevemente descritos alguns dos mais conhecidos métodos que focaram
seus trabalhos em atividades centradas nos estudantes, em suas vidas e seus
relacionamentos.
· Community Language Learning (CLL): Esse método se fundamenta na Counseling
Learning Approach elaborada por Charles Curran4, que por sua vez se inspirou na visão
rogeriana de educação5, e foi projetado especialmente para estudantes adultos, que
decidem o que querem aprender. Os conteúdos são selecionados pelos estudantes a
cada aula de acordo com seus interesses e necessidades, e a atribuição do professor no
CLL é a de facilitador da aprendizagem. Descrito de modo simplificado, o trabalho
consiste em os estudantes perguntarem para o professor como expressar na língua
estrangeira o que gostariam de falar, e usarem essa fala para estabelecer uma
discussão significativa com os colegas e com o professor. Considerando a dinâmica
social estabelecida entre os estudantes como sendo de importância primordial no
processo de aprendizagem, essa visão de ensino considera que os estudantes
4 O sacerdote católico Charles A. Curran, também professor de psicologia clínica da Universidade deLoyola, em Chicago, construiu a counseling learning (aprendizado por aconselhamento) ao longo dosanos 70 do século passado como resultado de seu trabalho como professor e psicólogo. Consideradauma das várias abordagens humanísticas para o aprendizado de línguas e para a educação em geral,sua principal característica é a preocupação com a construção da auto-estima e da autonomia dosestudantes, proporcionada por uma atitude de apoio e aprovação por parte do professor (STEVICK,1990).5 A palavra “rogeriana” deriva do nome do psicólogo Carl Rogers, que idealizou uma abordagemeducacional não-diretiva em que professor e estudantes trabalham cooperativamente para promover oaprendizado em um contexto problematizador porém não ameaçador que privilegia o desenvolvimentodas potencialidades de cada indivíduo do grupo (ROGERS, 1990).
29
constituem uma comunidade. Ao assumir a natureza essencialmente afetiva do processo
de aprendizagem, o modelo sugere que professor e estudantes interajam de modo a
criar na sala de aula uma atmosfera de apoio e confiança que diminua a ansiedade
geralmente associada ao processo de aprendizagem.
· Suggestopedia: Criado pelo psicólogo e educador búlgaro Georgi Lozanov, esse sistema
de aprendizagem se fundamenta na ativação sistematizada das capacidades potenciais
da mente humana (STEVICK, 1990). Para liberar os estudantes de suas limitações,
técnicas de respiração, ambiente confortável e música suave induzem um estado
relaxado que cria condições para as “experiências” dos estudantes com a linguagem.
Essas experiências consistem em tarefas típicas de um curso de língua estrangeira,
como aprendizado de novo vocabulário, leituras, diálogos, e outras. Sua contribuição
para o estado atual do ensino de idiomas se relaciona com a tomada de consciência da
influência dos aspectos ambientais na aprendizagem. A Suggestopedia indicava que um
ambiente de aprendizagem tranqüilo e seguro poderia facilitar o aprendizado da língua
estrangeira.
· The Silent Way: Apoiado mais em fundamentos cognitivos que afetivos, esse método
propõe uma aproximação problematizadora para o aprendizado de uma língua
estrangeira. Segundo o Silent Way, o aprendizado e a construção de autonomia são
facilitados pela utilização de objetos concretos como mediadores, pela descoberta, pela
criatividade e pela necessidade de solucionar problemas de modo cooperativo
(STEVICK, 1990). O professor deve falar em aula apenas o essencial, oferecendo
espaço para as manifestações dos estudantes. É possível reconhecer aqui os primórdios
da utilização de “técnicas de descoberta” e de atividades problematizadoras que são
bastante utilizadas na abordagem comunicativa, e também a preocupação com os limites
do TTT, o teacher talking time, ou seja, o tempo de fala do professor em sala de aula.
· Total Physical Response: O conhecido TPR foi desenvolvido pelo psicólogo americano
James Asher a partir da premissa de que a memória é ativada pela atividade física, e
também a partir de conhecimentos sobre como as crianças adquirem a linguagem ao
30
ouvir os adultos e responder ao que ouvem com ações (STEVICK, 1990). Asher
acreditava que antes de se iniciar nas habilidades produtivas da língua – falar e escrever
– os estudantes deveriam ter tempo suficiente para experienciar sua recepção – ouvir e
ler – e executar certas ações requisitadas pelo professor. Em um estágio subseqüente,
os estudantes, apropriando-se da fala, passariam a dar instruções uns aos outros. O
método logo demonstrou suas limitações: a diretividade, que obriga o uso quase
exclusivo do modo imperativo, a dificuldade de ser utilizado com grupos numerosos e em
longos períodos de curso, sua confinação a níveis básicos e, principalmente, a difícil
transição do exercício das habilidades receptivas para as produtivas. Porém, dado seu
caráter cinético, as atividades propostas pelo TPR, integradas em um contexto mais
amplo e integrado de aprendizagem, podem ser motivadoras e significativas,
especialmente em níveis elementares. Além disso, elas incluem no processo de
aprendizagem o envolvimento dos movimentos do corpo, um aspecto geralmente
deixado de lado nas salas de aula.
Aquisição e aprendizagem da linguagem e a Abordagem Natural
No início dos anos 80 do último século, as pesquisas sobre como as pessoas usam
a linguagem se concentraram na diferença entre aquisição e aprendizado de uma língua.
Stephen D. Krashen, lingüista da Universidade da Califórnia, Los Angeles, caracterizou
aquisição como um processo subconsciente que resulta na construção de competências
para o uso de uma língua, enquanto que o aprendizado consistiria na construção do
conhecimento sobre a língua. Nessa perspectiva, a aquisição da linguagem seria mais bem
sucedida e duradoura do que seu aprendizado (HARMER, 1991).
Krashen sugeriu que o aprendizado de uma segunda língua ou de uma língua
estrangeira deveria ocorrer do modo mais semelhante possível à maneira como uma
criança adquire sua língua materna. Segundo o autor, não se ensina a língua à criança. O
que ocorre é que ela está exposta ao uso da língua diariamente, por muitas horas, e
também está colocada em situações de comunicação com adultos. Sua construção gradual
31
de competência no uso da língua depende de uma série de processos subconscientes,
resultados do input6 que recebe do exterior e das experiências que o acompanham.
O conceito de input é chave na proposta de Krashen para ensino de língua
estrangeira. Segundo ele, os estudantes devem estar expostos a um nível lingüístico um
pouco acima do que eles podem produzir mas ainda dentro dos limites de sua
compreensão. Essa é, de acordo com sua visão, a maneira como os pais se comunicam
com seus filhos, tendendo a adequar sua linguagem ao nível de entendimento do bebê, e
tornando-a mais complexa à medida que a criança amadurece. Ao promover esse tipo de
experiência em sala de aula, os professores estariam facilitando o desencadeamento de
processos inconscientes que levariam os estudantes à aquisição da língua estrangeira.
Os trabalhos de Krashen inspiraram sua colega Tracy Terrell na idealização da
Abordagem Natural (BROWN, 2001), que busca, através do estabelecimento de um
ambiente natural de uso da língua estrangeira na sala de aula, a emergência espontânea
nos estudantes do desenvolvimento de habilidades de comunicação quotidiana, como ir às
compras ou estabelecer uma conversa em uma reunião social.
A proposta apresentada pela Abordagem Natural é coerente com o que ocorre
quando estudantes de intercâmbio adquirem a língua estrangeira em sua interação com a
comunidade que fala o idioma. Contudo, o modelo demonstra insuficiências em sua
aplicação em sala de aula. Uma das principais críticas ao modelo se refere à dificuldade
para se determinar o nível de input apropriado a cada grupo de estudantes e o momento
adequado em que os estudantes passam da recepção para a produção de linguagem
(HARMER, 1991). Sua contribuição na evolução das práticas de ensino de línguas
estrangeiras, no entanto, consiste na busca da instauração de uma atmosfera que remeta
os estudantes à genuinidade das situações comunicativas naturais e que estimule seu
aprendizado inconsciente, não como o fundamento principal de seus estudos, mas como
mais uma ferramenta na complexa tarefa que é a promoção do aprendizado de um idioma
estrangeiro.
6 Input é um termo usado, neste contexto, para designar a linguagem que os estudantes ouvem oulêem, em sala de aula ou fora dela, durante seu processo de aprendizagem.
32
A abordagem comunicativa
Podemos afirmar que os fundamentos da abordagem comunicativa começaram a se
construídos com os Currículos Nocionais-Funcionais (CNF). Os currículos baseados em
noções e funções tiveram origem nos trabalhos de Van Ek e Alexander (1975) para o
Conselho da Europa7, que se dedica, desde o final dos anos 50 do século XX, a promover a
popularização do estudo de línguas estrangeiras (TRIM, 2001). Para desenvolver seu
trabalho, os autores partiram dos conceitos de noção e de função. Noções são contextos ou
situações amplos em que usamos a linguagem. Já as funções representam tanto o objetivo
quanto a atividade executada pelas pessoas nos dados contextos. Assim, na noção geral de
identificação pessoal, por exemplo, podemos enquadrar as noções mais específicas de
nome, idade, endereço ou números de telefone. Nessa situação, as funções de perguntar,
responder, identificar, confirmar e corrigir, entre outras, seriam necessárias para a
comunicação (BROWN, 2001).
A característica mais marcante dos CNF é o uso das noções e funções da língua
como critério para a organização de um currículo de estudo. O estabelecimento desse
critério representou uma quebra de paradigma, pois até então cursos e materiais se
organizavam em torno de seqüências de tópicos gramaticais e de grupos léxicos. A
abordagem nocional-funcional, como também é chamada, logo passou a influenciar de
maneira decisiva o planejamento de cursos e a produção de materiais didáticos para o
ensino de línguas estrangeiras no mundo.
É importante ressaltar que os CNF não foram propostos como método de trabalho,
mas sim como um fundamento para a estrutura dos currículos em língua estrangeira. Nos
cursos organizados segundo esse princípio, uma unidade de estudo parte de uma situação
para propor uma combinação bastante variada entre atividades, tais como práticas
controladas de pronúncia e tópicos de gramática, trabalhos interativos em pares ou
7 O Conselho da Europa é a organização política mais antiga do continente. Fundado em 1949, oConselho reúne hoje 46 países europeus, e tem como objetivos defender os direitos humanos, ademocracia parlamentar e o governo através de leis; promover acordos para padronizar as práticassociais e legais dos países-membros; promover a consolidação de uma identidade européia baseadaem valores compartilhados através das diferentes culturas (Council of Europe Portal, 2004).
33
pequenos grupos e simulações. Embora não garantissem o desenvolvimento de
competências comunicativas8 (BROWN, 2001), por tenderem a uma prática mecânica de
certas formulações rígidas, os trabalhos fundamentados nos CNF lançaram as bases
sólidas necessárias para o desenvolvimento da abordagem comunicativa.
Outra pedra fundamental da abordagem comunicativa foi o conjunto de estudos a
respeito dos estilos e das estratégias individuais de aprendizagem desenvolvidos entre o
final dos anos 70 e o início dos 80 do século passado, quando pesquisadores e professores
influenciados pelos estudos cognitivistas começaram a prestar atenção nas diferenças
individuais presentes em suas salas de aula e nos distintos estilos de aprendizagem que
cada estudante apresentava (BROWN, 2001).
Essas observações originaram esforços no sentido de sistematizar meios de auxiliar
os estudantes a desenvolver estratégias que lhes permitissem fazer o melhor uso possível
de seu próprio estilo e, ao mesmo tempo, compensar suas habilidades pouco
desenvolvidas. Os pesquisadores americanos Michael O’Malley e Anna Chamot se
dedicaram a estudar, ao longo dos anos 80 do último século, as estratégias adotadas pelos
estudantes de uma segunda língua, e seu trabalho foi decisivo para esse esforço. Seus
estudos se encontram descritos e ordenados de em seu livro de 1990, Learning Strategies
in Second Language Acquisition.
Estilos de aprendizagem são “traços cognitivos, afetivos e psicológicos que são
indicadores relativamente estáveis de como os indivíduos percebem o ambiente de
aprendizagem, interagem com ele e a ele respondem” (KEEFE9, 1979, citado por BROWN,
8 A competência comunicativa foi definida pela primeira vez pelo antropólogo da Universidade deIndiana Dell Hymes, que se inspirou nos trabalhos de Noam Chomsky para produzir, em 1964, a obraThe ethnography of communication. O autor sustenta que, para se comunicar com sucesso, umapessoa necessita dominar mais do que os aspectos gramaticais da língua. Ela precisa saber como osmembros daquela comunidade usam o idioma para atingirem seus objetivos. O conceito decompetência comunicativa foi mais tarde discutido e refinado por muitos outros autores, e hoje se dizque são quatro seus principais aspectos: gramatical (formal), sócio-lingüístico (apropriação da fala aocontexto social), discursivo (coerência na fala) e estratégico (compensatório) (SAVIGNON, 1991).Brown (2001) inclui nesse conjunto o elemento funcional, que se refere à habilidade de escolher afunção da linguagem adequada ao objetivo e à necessidade que se apresenta. É importantemencionar, como ressaltam os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1999), quecolocam a competência comunicativa como um objetivo a ser alcançado pelo ensino de idiomasestrangeiros na rede regular de ensino, que esses componentes não podem ser entendidos comoindependentes, mas como elementos que se inter-relacionam no ato comunicativo.9KEEFE, J. W. Student learning styles: diagnosing and prescribing programs. Reston: NationalAssociation of Secondary School Principals, 1979.
34
2000). Assim, algumas pessoas apreendem e processam novas informações visualmente;
outras necessitam interagir com o conteúdo, e assim por diante. Segundo os estudiosos do
cognitivismo, uma vez que os professores conhecem os estilos de aprendizagem de seus
estudantes, eles têm melhores condições de planejar atividades de modo a auxiliar cada
grupo de estudantes a desenvolver suas potencialidades. Também, se os estudantes
tomam consciência do modo como aprendem, eles podem planejar e desenvolver métodos
de estudo apropriados a seu estilo.
Estratégias são caracterizadas, no contexto de ensino e aprendizado de uma língua
estrangeira, como o uso da língua estrangeira como um instrumento de aprendizagem em si
(CHAMOT, 1987), ou, mais especificamente, “ações, comportamentos, passos ou técnicas
específicas que os estudantes utilizam (geralmente de modo intencional) para aperfeiçoar
seu progresso no desenvolvimento das habilidades na segunda língua” (OXFORD, 1992-
1993, p. 18). Desenvolver e aprender a utilizar estratégias de aprendizado são importantes
ferramentas no desenvolvimento de habilidades comunicativas. O’Malley e Chamot (1990)
categorizam as estratégias em três grupos, que são: as metacognitivas, as cognitivas e as
sócio-afetivas. As estratégias metacognitivas envolvem conscientização, reflexão,
planejamento, avaliação e monitoramento do próprio processo de aprendizagem. As
estratégias cognitivas se direcionam para as tarefas de aprendizado propriamente ditas, tais
como repetição, uso de palavras-chave, contextualização e inferência. Já as estratégias
sócio-afetivas têm a ver com a qualidade da interação com o professor e com os colegas.
As pesquisas sobre estilos e estratégias de aprendizado foram decisivas no
processo de mudança de enfoque no ensino de idiomas iniciado com as abordagens
humanísticas. Na evolução de métodos centrados na figura do professor para abordagens
em que os estudantes se assumem como protagonistas – ou, pelo menos, co-partícipes da
ação – o conhecimento dos estilos e estratégias e de como fazer uso deles permitiu que os
estudantes iniciassem o importante aprendizado sobre como aprender, um dos objetivos da
abordagem comunicativa.
35
Assim, entre o final dos anos 80 e o início dos 90 do século XX, iniciou-se o rápido
desenvolvimento de abordagens que passaram a privilegiar as propriedades comunicativas
da língua, e os trabalhos em sala de aula passaram a se caracterizar pela busca de
autenticidade e de atividades significativas que preparassem os estudantes para atuar no
mundo real utilizando a língua estrangeira como instrumento. Foi o início da busca do que
ficou conhecida como a abordagem comunicativa.
A abordagem comunicativa, segundo Douglas Brown, “é um conjunto de princípios e
crenças unificado, porém fundamentado em amplas bases teóricas sobre a natureza da
linguagem e de seu ensino e aprendizagem” (BROWN, 2001, p. 43). De difícil definição,
essa abordagem resulta em um amplo conjunto de interpretações e aplicações práticas em
sala de aula. O autor oferece, para fins de clareza, seis características principais do ensino
comunicativo, que são os seguintes:
· A complementaridade entre a busca de correção formal e de fluência;
· A busca da integração dos elementos da competência comunicativa;
· O envolvimento dos estudantes em interações espontâneas e genuínas, ou seja, no uso
pragmático, autêntico, funcional da linguagem com objetivos significativos;
· A preparação dos estudantes para se comunicar na língua estrangeira nas mais variadas
situações fora da sala de aula;
· A compreensão, por parte dos estudantes, de seus estilos de aprendizagem e o
desenvolvimento de estratégias que lhes permitam um aprendizado autônomo;
· O professor colocado como facilitador e condutor dos processos em sala de aula, e não
como o detentor do conhecimento.
Essas práticas e objetivos que caracterizam a abordagem comunicativa são
resultado da sedimentação de experiências prévias com o ensino de idiomas estrangeiros,
ao mesmo tempo em que são avanços significativos em relação a elas. Essa abordagem
faz uso de muitos dos princípios embasadores e procedimentos de sala de aula
consolidados por outros métodos e abordagens, como as técnicas de descoberta para o
ensino de conteúdos estruturais, o trabalho cooperativo em pares ou grupos para prática de
36
novos itens de linguagem, e o currículo organizado a partir de contextos e funções. Ao
mesmo tempo, a abordagem comunicativa é equilibrada no sentido de evitar privilegiar
qualquer um dos aspectos da competência comunicativa e também ao dar igual ênfase à
correção formal e à fluência.
Assim, os objetivos dessa abordagem incluem levar os estudantes a se comunicar
competentemente no idioma estrangeiro, além de prepará-los para refletir sobre como
aprendem e como podem fazer melhor uso de seu estilo de aprendizagem. O trabalho com
a abordagem comunicativa é desafiador não só para os estudantes, mas também e
principalmente para os professores. O profissional deve não só ser proficiente no idioma
como também estar teórica e tecnicamente preparado para tomar as decisões inesperadas
que se fazem necessárias em um ambiente pouco controlado como é o do processo
comunicativo de ensino e aprendizagem. Como não há uma lista rígida de procedimentos a
ser seguida, o professor necessita desenvolver um perfil reflexivo e observador para realizar
opções informadas no planejamento dos cursos e em sua atuação em sala de aula.
Outro ponto importante a ser mencionado é a preocupação da abordagem
comunicativa em fazer do estudante, e não do professor, o protagonista do processo. Isso
não quer dizer que o professor tem uma atuação menor em sala de aula, mas sim que sua
ação é de natureza diversa dos ambientes centrados no professor. Nas práticas
comunicativas, o professor disponibiliza aos estudantes as informações necessárias e as
situações apropriadas para uma atuação significativa. Durante os trabalhos, o professor
observa seus estudantes e decide quando e como é necessário intervir. Após, é uma de
suas atribuições fornecer um feedback que possa conscientizar os estudantes sobre suas
potencialidades e insuficiências, para auxiliá-los a continuar se desenvolvendo. A avaliação
dos resultados de aprendizagem dos estudantes também se configura como um desafio,
dada a complexidade dos objetivos da abordagem e também a importância que o feedback
assume na evolução do aprendizado dos estudantes.
Como pudemos observar ao longo dessa breve narrativa, no período de pouco mais
de um século transcorrido entre 1880 e 1990, pesquisadores do processo de ensino e
37
aprendizagem e professores de línguas estrangeiras se envolveram na busca de um
método ou de uma abordagem que garantisse êxito no processo de aprendizado dos
estudantes. Ao final dos anos 80 do último século, após a explosão de estudos, pesquisas e
inovações em metodologias para o ensino de línguas estrangeiras ocorrido ao longo da
década, os profissionais da área haviam já acumulado um considerável escopo de
experiências e aprendizados sobre teorias da aprendizagem e também sobre o trabalho
prático em sala de aula.
À medida que cada método mostrava suas limitações, o próprio conceito de método
– no sentido de um plano ordenado, sistemático e prescritivo de trabalho a ser posto em
prática em qualquer situação – foi sendo questionado, e a busca por uma metodologia de
trabalho ideal foi dando lugar à observação de cada grupo de estudantes e a reflexões
sobre a escolha esclarecida de práticas que melhor se adequassem às suas necessidades
e aos seus interesses específicos.
Na última década, os objetivos dos pesquisadores e professores mudaram.
Abandonando a busca de um modelo único, passaram a direcionar seus esforços no
sentido de flexibilizar, adaptar e integrar um conjunto de técnicas e procedimentos que,
fundamentados em teorias válidas sobre a aprendizagem e o desenvolvimento humano,
possam dar conta das especificidades de cada grupo de estudantes e de cada contexto
institucional e social. Nossa profissão atingiu um nível de maturidade que nos permite
reconhecer a complexidade da tarefa de promover o aprendizado de uma língua estrangeira
para estudantes que têm características, estilos de aprendizagens, objetivos e
potencialidades individuais e peculiares.
O que se busca hoje, além de promover o aprendizado da correção formal e de
fluência na língua estrangeira, é auxiliar nossos estudantes a compreender as
características sociais, culturais e pragmáticas da língua que estão estudando (BROWN,
2001). Além disso, estamos preocupados com sua conscientização a respeito de seu estilo
de aprendizagem e com sua construção de autonomia e de estratégias. Buscamos também
38
envolvê-los em um trabalho cooperativo de compartilhamento de responsabilidades pelo
aprendizado.
Como foi colocado no início, não sabemos ao certo como realizar esse trabalho.
Passamos as últimas décadas construindo, desconstruindo e reconstruindo conceitos,
confrontando teorias com nossas práticas e experiências, e refletindo sobre esse confronto.
Acabamos nos tornando mais flexíveis em nossos procedimentos, e aprendemos a lidar
com as incertezas inerentes à nossa profissão. E, acima de tudo, considerando a não-
existência de respostas acabadas, nos conscientizamos de que nossas reflexões e estudos
devem continuar.
Segundo Brown (2001), cada professor de língua estrangeira hoje deve estar
consciente de que cabe a ele desenvolver sua própria abordagem para planejar e promover
seu ensino, e “refletir sobre um número de opções metodológicas possíveis à sua
disposição para planejar as aulas para cada contexto particular” (BROWN, 2001, p. 40).
Neste trabalho, apresento uma proposta de caráter transdisciplinar para o processo de
ensino e aprendizagem da língua inglesa em sala de aula, fundamentada nos princípios da
educação transdisciplinar que serão discutidos a seguir, e direcionada a uma formação
integralizadora, permanente-abrangente e que busca o encantamento e a transformação
das pessoas envolvidas no processo.
As abordagens transdisciplinares, como defende Nicolescu (a2002), utilizam
diferentes procedimentos adequados aos objetivos e conteúdos a serem desenvolvidos.
Suas especificidades não residem nas técnicas de trabalho utilizadas, mas no objetivo que
propõem para os trabalhos de sala de aula: a busca – assumida por este trabalho – de uma
visão mais integral e de uma postura aberta em relação ao conhecimento.
2.2 A abordagem transdisciplinar
39
A transdisciplinaridade é uma transgressão generalizada que abre espaçoilimitado para liberdade, compreensão, tolerância e amor (NICOLESCU,2002, p. 74).
O pensador francês Georges Gudsdorf afirma que reivindicações pela unificação dos
conhecimentos, tais como a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, não passam de
uma redescoberta, de uma busca da integridade científica perdida ao longo da história do
conhecimento, já que a unidade foi inerente à ciência desde seu surgimento (GUDSDORF,
1995). Foi apenas no século XIX que a expansão sem precedentes do trabalho científico
levou à especialização e à conseqüente fragmentação da ciência e ao isolamento das
disciplinas. Foi também nessa época, devido à consolidação da reputação das metodologias
científicas analíticas e preditivas, que o conhecimento deixou de ser uma relação com a
realidade para se tornar um conjunto de descrições e prescrições abstratas, o que
evidentemente causou um divórcio entre a realidade e a visão que a ciência tem dela.
Para Gudsdorf, o futuro do conhecimento – e, conseqüentemente, o futuro da
humanidade – está em uma relação de íntima dependência com a possibilidade de
abordagens reunificadoras da ciência, uma vez que é o conhecimento produzido pela
humanidade que define sua consciência de si e da realidade (GUDSDORF, 1995). E é para
tentar dar conta do desafio de compreender a si mesmo e ao mundo presente que
lançamos mão da transdisciplinaridade, que tem como finalidade reintegrar o que está
dividido e compartimentalizado.
Nicolescu (1997) descreveu as principais diferenças entre pluridisciplinaridade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no Congresso Internacional Que Universidade
para o Amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar para a universidade em
Locarno, na Suíça em 1997. Para compreendermos estes conceitos, porém, precisamos
primeiro entender o que é disciplinaridade, pois é a partir desta noção que podemos propor
uma definição para as outras.
A disciplinaridade é o estudo especializado de um determinado ramo do
conhecimento, geralmente feito de forma isolada, em que se desconsidera os vínculos que
40
possam existir entre aquele ramo do saber e as demais diferentes áreas da ciência. Cada
um desses ramos se configura em uma disciplina, cujas metodologias e linguagens são
características e distintivas.
Já a pluridisciplinaridade, ou multidisciplinaridade, é o estudo de um objeto por várias
disciplinas ao mesmo tempo. Esse processo, pelo cruzamento das análises de vários
especialistas de diferentes áreas, enriquece o objeto e aprofunda o conhecimento sobre ele.
Porém, apesar de ultrapassar os limites das disciplinas, a abordagem multidisciplinar
continua inscrita no quadro disciplinar.
A interdisciplinaridade, por sua vez, se refere ao compartilhamento de métodos e
linguagens por diferentes, em três diferentes âmbitos: a aplicação, a epistemologia e a
criação de novas disciplinas. Assim como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade
chega a ultrapassar as disciplinas, mas sua finalidade ainda é manter a divisão disciplinar.
O termo “transdisciplinaridade” não pode ser considerado novo. Ele foi usado pela
primeira vez por Jean Piaget em um colóquio sobre a interdisciplinaridade em 1970, em que
afirmou que a etapa das relações interdisciplinares evoluiria para as relações
transdisciplinares que, mais do que encontrar interações ou reciprocidades entre pesquisas
especializadas, situaria essas relações em um sistema global, onde não existiriam fronteiras
estáveis entre as disciplinas (SOMMERMAN, 1999).
Como indica o prefixo “trans”, a transdisciplinaridade aborda o que está
simultaneamente entre, através e além das disciplinas, reconhecendo nelas o que existe de
desconhecido e inesgotável (LITTO, MELLO, 1998). A transdisciplinaridade, assim,
ultrapassa as barreiras entre as disciplinas para tentar uma compreensão mais inclusiva da
realidade. O diálogo transdisciplinar, que passa pelo conhecimento disciplinar, não só
modifica as disciplinas como também faz emergir novas idéias e novos conhecimentos
(BRENNER, 2000), que necessariamente não necessitam se inscrever em qualquer área
específica do conhecimento.
A transdisciplinaridade é uma postura, um espírito integralizador diante do saber,
uma vocação articuladora para a compreensão da realidade sem, no entanto, abandonar o
41
respeito e o rigor pelas áreas do conhecimento. Seu objetivo é a compreensão global do
mundo, e para isso, é necessário que encaremos tanto o conhecimento quanto o ser
humano como únicos em sua complexidade e diversidade.
É importante ressaltar que a disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade não são excludentes. Apesar de concorrentes,
essas abordagens para o conhecimento são complementares. Elas coexistem e enriquecem
uma à outra. O cuidado a ser tomado é no sentido de fazermos um esforço para
explorarmos as fronteiras existentes entre as disciplinas, para que possamos almejar uma
compreensão mais coesa do mundo.
2.2.1 Os pressupostos da transdisciplinaridade
Ao refletirmos sobre as fronteiras entre as diversas áreas do conhecimento,
podemos questionar a existência de qualquer coisa que esteja presente entre, através e
além das disciplinas. Do ponto de vista do pensamento ocidental clássico, por exemplo, não
há a preocupação de desvendar o que existe nas fronteiras entre os diferentes ramos do
saber. Este âmbito é dado como vazio e, como tal, não apresenta o que ser explorado. Se
tomarmos o ponto de vista do pensamento quântico, inaugurado no início do século XX, o
espaço existente entre os objetos infinitesimalmente pequenos e também entre os objetos
infinitamente grandes é levado em conta, e é considerado repleto de potencialidades
(HERBERT, 1985). Do mesmo modo, o que existe nos limites entre as áreas de
conhecimento é considerado repleto de informações e possibilidades. É nesse pressuposto
que se baseia a transdisciplinaridade.
A abordagem transdisciplinar se apóia em três princípios: a existência de diferentes
instâncias10 de realidade, a percepção da complexidade da realidade e o reconhecimento da
10 O estudioso da transdisciplinaridade Nicolescu utiliza em seus trabalhos a expressão “níveis derealidade”, (niveaux de réalité nos originais em francês). Neste estudo, optei pela expressão“instâncias de realidade”, por acreditar que essa expressão evita a imagem de camadas sobrepostasque a palavra “níveis” poderia invocar.
42
lógica do terceiro incluído (NICOLESCU, 1997). À primeira vista, esses postulados podem
nos causar intenso impacto, pois parecem estar em desacordo com o mundo como nós o
vemos. Após um estudo mais aprofundado desses princípios, porém, começamos a
perceber que eles não só fazem sentido, como também têm enorme potencial para nos
auxiliar a compreender nossa complexa realidade.
No início do século XX, jovens físicos europeus deram início ao que passou a ser
considerada a maior revolução científica dos últimos cem anos: a revolução quântica, que
deixou grandes impressões não só no mundo científico quanto na epistemologia, uma vez
que foi a partir do desenvolvimento da teoria quântica que filósofos da ciência como Karl
Popper iniciaram sua própria revolução, que originou o que hoje é conhecido como o
paradigma do fim das certezas e a transitoriedade do conceito da verdade (POPPER,
1980).
Aqueles jovens físicos – entre eles Max Planck, Niels Bohr, Albert Einstein, Werner
Heisenberg, Wolfgang Pauli, Paul Dirac, Erwin Schrödinger e Max Born – concluíram,
através de exaustivos experimentos, cálculos e medições, e profundas e intensas reflexões,
que a realidade microscopicamente pequena, a realidade dos átomos e de seus
componentes, é regida por leis diametralmente diferentes das leis obedecidas pela física
macroscópica, a chamada física clássica.
Essas duas instâncias de realidade – a macrofísica e a microfísica – apesar de não
obedecerem às mesmas leis de funcionamento, convivem de modo tão coeso que sequer
nos apercebermos das enormes diferenças entre elas. Estava ali estabelecida a presença
de diferentes instâncias de realidade, fazendo ruir o dogma filosófico e epistemológico
dominante na cultura ocidental moderna da existência de apenas uma instância de
realidade, a realidade visível – mesmo que apenas através de instrumentos de extensão da
visão humana, como telescópios e microscópios.
De acordo com Nicolescu (1985), a realidade pode ser definida como o que oferece
resistência às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formulações.
Ele toma o cuidado de diferenciar as noções de realidade e de real (NICOLESCU, 2002).
43
Enquanto o real é aquilo que é, a realidade se caracteriza como o que resiste à nossa
experiência. Morin reitera essa visão ao afirmar que a realidade não é o que “se deixa
absorver pelo discurso lógico mas o que resiste a ele”. (c2002, p. 141). Assim, enquanto a
realidade é acessível ao nosso conhecimento, o real, devido às limitações insuperáveis de
nossa capacidade cognitiva, não se desvela por inteiro – pelo menos não para nós.
Uma instância de realidade é um conjunto de sistemas delimitado por um certo
número de conceitos e regido por um determinado número de leis. As instâncias de
realidade são diferentes quando, na passagem de uma para a outra, há uma ruptura das
leis de funcionamento e dos conceitos fundamentais, como a que ocorre da passagem da
realidade macrofísica para a realidade microfísica.
Enquanto que a abordagem disciplinar considera a existência de apenas uma
instância de realidade – e muitas vezes, apenas fragmentos dessa instância – a
transdisciplinaridade reconhece e se interessa pela dinâmica produzida pela existência
interativa de diferentes instâncias de realidade e pelas emergências produzidas por essa
interação.
Hoje já se estuda pelo menos duas outras instâncias de realidade, além da
macrofísica e da microfísica: a instância do espaço-tempo cibernético e a instância das
supercordas11. Não sabemos ainda quantas instâncias de realidade existem, ou se esse
número é finito ou infinito, mas é importante que reconheçamos que há múltiplas instâncias
de realidade, e o fato de que não as percebemos se deve a limitações em nosso aparato
sensitivo e cognitivo e na maneira como aprendemos a perceber o mundo.
Segundo os estudiosos da mecânica quântica, o conjunto das diferentes instâncias
de realidade – ou seja, as diferentes instâncias de resistência – se prolonga por uma zona
de não-resistência às nossas experiências, representações, descrições, imagens e
representações (NICOLESCU, 1997). A não-resistência se deve, ela também, às limitações
11 A instância das supercordas, por enquanto, não tem comprovação empírica, ou seja, ela existeapenas no âmbito teórico. A teoria das supercordas, desenvolvida a partir dos anos 60 do últimoséculo, tem sido considerada pelos físicos contemporâneos como a textura última do universo. Deacordo com essa teoria, os objetos básicos formadores do universo não são partículas, masentidades que possuem apenas uma dimensão, o comprimento, como uma corda infinitesimalmentefina. Na teoria das cordas, o que hoje é visto como partícula passaria a ser concebido como onda quese desloca ao longo da corda (GREENE, 2000).
44
de nossa capacidade de compreensão. A unidade aberta e complexa formada pelas
diferentes instâncias de realidade e sua zona complementar de não-resistência constitui o
objeto transdisciplinar.
De maneira análoga, a consciência humana se constitui, de acordo com a
abordagem transdisciplinar, de diferentes instâncias de percepção12. Essas instâncias de
percepção incluem a racionalidade, a afetividade, os movimentos do corpo, a imaginação, a
intuição13 e a espiritualidade14, entre outras que ainda estão para ser descobertas.
Ao passo que a tradição clássica privilegia apenas uma dessas instâncias de
percepção – a racional15 – a transdisciplinaridade está interessada em seu conjunto, e na
dinâmica que emerge de sua interação. Do ponto de vista transdisciplinar, a interação de
nossas diferentes instâncias de percepção permite que tenhamos uma visão mais
unificadora e global da realidade sem, porém, jamais esgotá-la. Permite também que
possamos atribuir sentido à realidade.
12 As diferentes instâncias de percepção foram definidas e estudadas por Edmund Husserl e outrospesquisadores. Husserl, em seu Méditations Cartésiennes (HUSSERL, 1966 citado por NICOLESCU,1997) afirma que o sujeito-observador, ou seja, a pessoa, conta com diferentes instâncias depercepção na sua tentativa de compreender a realidade. (HUSSERL, Edmund. MéditationsCartésiennes: introduction à la phénoménologie. PARIS: Vrin, 1966.)13 A palavra “intuição” vem do latim intuire, que significa “ver por dentro”. É, dessa forma, umasabedoria interior que nos permite resoluções ou elaborações. Para Kaplan, a intuição é, umacondensação de diferentes linhas de pensamento racionais num único momento, em que a mentereúne rapidamente uma gama de conhecimentos e passa de imediato para a conclusão. Muitasvezes, a intuição condensa anos de experiência e de aprendizado num clarão instantâneo(ABBAGNANO, 2000). É nesse sentido que a palavra “intuição” está sendo usada neste trabalho.14 A palavra “espírito” deriva do termo latino spiritus, que significa sopro de vida. Podemos, dessemodo, definir espírito como a energia e a vitalidade que anima os seres vivos, fazendo com que elesatuem no mundo, relacionando-se com ele. Em seu significado original, espírito não constitui umafração do ser distinta do corpo, mas uma parte integral do ser enquanto sentido e força vital. A partirdessa definição de espírito, podemos conceituar espiritualidade como uma vivência mais integral dadinâmica da vida, a consciência do ânimo e da energia de cada ser, em seu movimento e suasrelações no universo. A espiritualidade é, podemos afirmar, uma maneira mais plena e integrada denos colocarmos no mundo, de percebê-lo e compreendê-lo como um todo do qual fazemos parte, eque, por sua vez, faz parte de nós. Dalai-Lama definiu espiritualidade como aquilo que produz no serhumano uma mudança interior. Leonardo Boff define esse tipo de mudança como “verdadeirastransformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido à vida ou de abrir novos campos deexperiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas” (BOFF,2001, p. 17 e 18). Essas transformações interiores conduzem, por sua vez, a uma rede detransformações no exterior: “na comunidade, na sociedade, nas relações com a natureza e com ouniverso inteiro” (p. 36).15 Cabe aqui incluir a diferenciação feita por Morin (a2002, b2002) entre racionalização e racionalidade.Para o autor, a racionalização é um sistema lógico e abstrato de explicação de fenômenos, destituídode fundamento empírico, enquanto que a racionalidade é a busca de coerência nas experiências quevivenciamos. Enquanto a racionalidade nos protege contra os erros e ilusões decorrentes daslimitações de nosso aparato cognitivo, a racionalização, por constituir um sistema lógicoaparentemente completo, se fecha à crítica e à revisão de suas concepções. O termo “racional”empregado acima corresponde ao conceito de racionalização em Morin.
45
Assim como se dá nas diferentes instâncias de realidade, o conjunto das diferentes
instâncias de percepção existentes se prolonga por uma zona de não-resistência. A unidade
aberta e complexa formada pelas diferentes instâncias de percepção do indivíduo e de sua
zona complementar de não resistência constitui o sujeito transdisciplinar.
Uma importante consideração é feita pelos estudiosos da transdisciplinaridade a
respeito das zonas de não-resistência da realidade e do indivíduo. É a presença dessa zona
de não-resistência tanto no objeto quanto no sujeito transdisciplinares que permite a
unidade dos dois em sua diversidade. Essa unidade é considerada aberta porque ela é
dinâmica, estando, assim, sempre em transformação, e é considerada complexa por estar
em uma permanente relação recursiva, de influência e transformação mútuas. A realidade
transdisciplinar é, assim, a unidade aberta complexa, interativa, dinâmica e transformadora
entre o sujeito e o objeto transdisciplinares.
Segundo Nicolescu (2002), seremos capazes de conceber a realidade quântica e as
diferentes instâncias de realidade apenas se nos esforçarmos para aceitar e compreender
as informações, as idéias e as conclusões oferecidas pela teoria quântica. Para tal, é
necessário que ampliemos nossa visão de mundo para nela integrar a concepção de
unidade complexa proposta pelas diferentes instâncias de realidade e de percepção. O
autor coloca que a compreensão da realidade transdisciplinar pode marcar “um novo
estágio em nossa história, baseado no conhecimento do universo externo em harmonia com
o auto-conhecimento do ser humano” (p. 72).
O conjunto das diferentes instâncias de realidade, por ser uma estrutura
descontínua, é considerada como complexa. A etimologia da palavra “complexo” indica
abarcamento, compreensão, entrelaçamento, emaranhamento. Assim, complexo quer dizer
interligado, interdependente, numa concepção análoga a um tecido multidimensional
estreitamente tramado por infinitos fios, o que parece descrever a realidade tal como é vista
na abordagem transdisciplinar.
Para Morin (a2001), a complexidade se revela onde quer que existam
emaranhamentos de ações, de interações e de retroações, e também onde ocorram
46
fenômenos que não podem ser determinados ou previstos em suas repercussões. Em
outras palavras, há complexidade onde quer que diferentes elementos da realidade se
relacionem entre si, produzindo, nesses relacionamentos, efeitos que retroajam sobre os
elementos que os produziram, modificando-os continuamente e comportando, nesse
processo, desordens e incertezas. Morin se inspira em Pascal para afirmar que, sob a ótica
complexa, os componentes da realidade são simultaneamente causa e efeito, ajudantes e
ajudados, mediatos e imediatos, e que estão conectados entre si por um fio comum que as
torna partes de um todo. A partir desse ponto de vista, em que os componentes do todo se
influenciam constante e reciprocamente, torna-se impossível conhecer o todo sem
compreender cada uma das partes, e vice-versa16.
A abordagem transdisciplinar-complexa, que comunga com Morin em sua visão de
mundo, coloca três concepções principais que fundamentam a visão complexa do mundo,
que são a causalidade global, o indeterminismo reinante nas instâncias de realidade e a
não-neutralidade do sujeito-observador dessa realidade.
Max Planck, em seus experimentos no início do século XX, descobriu que a energia
emitida pelas partículas microscópicas não tinha uma estrutura contínua, mas era
transmitida descontinuamente, em forma de pequeníssimos pacotes, que ele denominou
“quanta”. Planck presenciava, em 1900, a introdução da concepção de descontinuidade no
campo da física (HERBERT, 1985). Até então, acreditava-se que as leis da física eram, em
geral, compatíveis com a idéia de fluxos contínuos, e a descoberta de atividades
descontínuas implicava a necessidade de repensar também a causalidade local.
No mundo macroscópico, considera-se que a causalidade é local, isto é, concebe-se
que só podem interagir e se influenciar mutuamente elementos que estejam localizados
contiguamente, em uma cadeia de causas e efeitos. Já no mundo microfísico, a causalidade
é global. Isso quer dizer que as causas e os efeitos não se conectam em uma cadeia mas
em uma teia, em que cada elemento é ao mesmo tempo causa e efeito em relação ao que
16 Em A Cabeça Bem Feita, Morin (a2002) descreve os princípios complementares e interdependentesque caracterizam a relação complexa existente entre os diferentes elementos da realidade. Essesprincípios – sistêmico, hologrâmico, do circuito retroativo, do circuito recursivo, da autonomia-dependência, dialógico e da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento – serão descritos ediscutidos mais adiante neste trabalho.
47
ocorre na trama (HERBERT, 1985). A descoberta da causalidade global tem implicações
muito importantes não só para a física, mas também para a epistemologia, pois introduz a
idéia da conexão que pode existir entre entes que estão aparentemente separados.
As descobertas quânticas mostraram que a realidade é um emaranhado complexo
de entidades que influenciam e são influenciadas pelo que quer que esteja em seu entorno.
Essas entidades interagem numa relação dialógica (MORIN, a2002) que marca outra
proposição inerente à concepção complexa da realidade: a complementaridade existente
entre entes aparentemente antagônicos e concorrentes. Essa interferência dialógica está no
cerne da concepção complexa da realidade, configurando-se como um de seus princípios
fundamentais.
Outra das leis da macrofísica que a mecânica quântica desafiou foi o determinismo,
fundado na previsibilidade dos acontecimentos da natureza – dadas certas condições
iniciais – e na conseqüente certeza do conhecimento. No âmbito da mecânica quântica, não
se pode localizar uma partícula em um ponto específico do espaço e do tempo, nem se
pode determinar sua trajetória. As partículas, assim, se caracterizam por uma certa
combinação de seus atributos físicos – tais como suas velocidades e posições – cada uma
associada a uma probabilidade específica. Assim, suas leis fundamentais expressam
possibilidades, e não certezas. Segundo Morin (b2001), ao levar em conta as inumeráveis
interações existentes entre os componentes da realidade, não podemos conceber
convicções absolutas sobre o que se passa em um ponto qualquer dessa trama. As
previsões possíveis na realidade microscópica existem apenas em nível estatístico.
A complexidade pressupõe, portanto, a presença constante de incerteza, de
desordem e de eventualidade na realidade, e também no conhecimento dessa realidade. O
indeterminismo dessa concepção de mundo supera a certeza da previsibilidade, o que não
significa o fim do previsível, mas apenas sua limitação a sistemas dinâmicos simples e
isolados. O reconhecimento da incerteza, da desordem, e da eventualidade, assim, não
exclui admitir os componentes de certeza, ordem e determinismo que existem no universo.
Apesar de antagônicos, esses componentes não são excludentes.
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Ao definir o elétron como sendo ao mesmo tempo onda e partícula, a teoria quântica
também fez ruir um dos mais caros pressupostos da física clássica, que é objetividade, ou a
neutralidade do sujeito que estuda a realidade frente a ela. Os experimentos quânticos
mostraram aos cientistas que cada elétron se comporta como uma onda entre as
observações, mas assume o comportamento de partícula quando observado (HERBERT,
1985), sugerindo que a presença de um observador interferia na atuação do elétron, e
estabelecendo a relação estreita que existia entre o sujeito que observava e o objeto
observado.
As reflexões que se seguiram a esse experimento levaram à conclusão de que a
consciência do observador influencia na definição, no comportamento e até mesmo na
existência do objeto observado, ou seja, de que a presença consciente de um observador
remolda a própria tessitura da realidade, que reage à nossa presença nela. Werner
Heisenberg afirmava que observar pressupõe construir conexões entre o fenômeno e
nossas concepções em relação a ele (HERBERT, 1985). Isso nos leva a compreender que
não estamos apartados de nossa realidade. Estamos nela, assim como ela está em nós, e
interagimos continuamente, exercendo influências recíprocas.
O pensamento clássico, originado entre os filósofos da Antiga Grécia, que imperou
na cultura e na ciência ocidentais até o início do século XX, consagrou três axiomas lógicos,
que são:
· O axioma da identidade: um objeto A é A;
· O axioma da não-contradição: um objeto A não pode ser não-A;
· O axioma do terceiro excluído17: não pode haver um terceiro objeto T que seja, ao
mesmo tempo A e não-A.
De acordo com este conjunto de axiomas, principalmente o segundo e o terceiro,
entre opostos contraditórios não pode haver meio-termo, uma vez que, como afirmou
Aristóteles, a contradição é a oposição em que uma das partes está presente na outra
(ABBAGNANO, 2000).
17 De acordo com o Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2000), o filósofo alemão Alexander G.Baumgarten em seu trabalho Metaphysica, de 1739, foi o primeiro pensador a nomear esse axioma,considerando-o como independente do princípio da não-contradição.
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O segundo e o terceiro axiomas foram, por muito tempo, considerados como
coincidentes. Abbagnano (2000) coloca que, segundo Aristóteles, a exclusão do T não
poderia estar separada da contradição. Foi apenas após a idade média que Leibniz, em
seus trabalhos sobre filosofia natural, pôs em questão pela primeira vez a correspondência
entre os dois axiomas. Apesar do posterior estabelecimento da diferença entre eles, até
hoje muitos pensadores consideram que o segundo e o terceiro princípios dizem o mesmo,
o que tem influências consideráveis em nossa epistemologia. A conjunção desses três
axiomas origina o que é conhecido como a lógica aristotélica, que, pelo método da indução
sistemática, embasou a ciência experimental ocidental até o início do século XX e continua
até hoje tendo grande influência na pesquisa e na educação.
O desenvolvimento da mecânica quântica ao longo do século XX, porém, acabou por
provar que um determinado objeto T pode ser A e não-A ao mesmo tempo, ao descobrir
que o elétron simultaneamente se configurava em corpúsculo e onda (HERBERT, 1985).
Enquanto do ponto de vista da física clássica corpúsculo e onda são entidades diferentes, e
não poderia haver outra entidade que fosse as duas ao mesmo tempo, a microfísica
mostrou a existência dessa possibilidade.
É evidente que só pode existir o T (a entidade que possa se configurar em A e não-A
ao mesmo tempo) porque existem diferentes instâncias de realidade (NICOLESCU, 2002).
O terceiro incluído – ou seja, a entidade que é partícula e onda ao mesmo tempo – só vai se
tornar possível na realidade microfísica. Dizemos, assim, que o terceiro incluído se torna
verdadeiro na passagem de uma instância de realidade a outra. Desse modo, o princípio da
não-contradição é respeitado. A lógica do terceiro incluído também permite a coerência
necessária para atravessarmos as diferentes áreas do conhecimento.
Assim, se sob a ótica clássica, que considera a existência de apenas uma instância
de realidade, o segundo e o terceiro axiomas são equivalentes, o mesmo não ocorre se
reconhecemos a existência de mais de uma instância de realidade. Na abordagem
transdisciplinar, esses axiomas são distintos, e o terceiro não é sempre verdadeiro. É
importante deixar claro que a lógica multivalente do terceiro incluído não torna falsa a lógica
50
binária clássica do terceiro excluído. Ela restringe sua aplicabilidade e seu domínio de
validade, ao mostrar que ela pode ser ultrapassada18.
Embora esse possa parecer um problema interessante apenas para físicos, lógicos e
filósofos, Nicolescu (2002) lembra que a lógica que governa o conhecimento também dita as
normas do que é considerado verdadeiro – ou válido, uma vez que a palavra verdade
assume hoje um caráter demasiadamente forte – em nossa sociedade e em nossa vida
quotidiana. Segundo o autor, há uma lógica escondida por detrás de cada uma de nossas
concepções e ações. “Uma lógica nunca é inocente. Ela pode até mesmo causar milhões de
mortes” (p. 29).
Enquanto a lógica clássica é incapaz de conceber a reconciliação dos opostos, isso
se torna possível sob a lógica do terceiro incluído (NICOLESCU, 2002; MORIN, 1996).
Embora entidades continuem contraditórias, a tensão entre elas pode oportunizar sua
simultânea inclusão e ultrapassagem, transgredindo a polaridade que parece imperar em
nossa visão de mundo: subjetividade-objetividade, complexidade-simplicidade, diversidade-
unidade, matéria-consciência, cérebro-espírito, entre outras. Ao serem colocados na
perspectiva transdisciplinar, tais binômios se tornam objeto de profunda reflexão e
questionamento e expõem a face nociva contida na maneira como compreendemos o
mundo.
O terceiro incluído, portanto, é a possibilidade de uma ampliação da noção de
verdade que ligaria antagonismos aparentemente insuperáveis, tanto no domínio científico
quanto nas esferas sociais e políticas, desde que, para isso, estejamos dispostos a nos
deslocar de nossa “instância de realidade”.
Assim, os três pilares da transdisciplinaridade – a legitimação da existência de
múltiplas instâncias de realidade, a visão complexa da realidade e a aceitação da lógica do
terceiro incluído – configuram a metodologia transdisciplinar. Segundo Nicolescu (2000a), a
observância mais ou menos rigorosa desses pressupostos gera diferentes posições em um
18 Coube a Stéphane Lupasco, em seu livro Le principe d’antagonisme et la logique de l’énergie, de1951 (Lupasco, 1987 citado por NICOLESCU, 1997) a tarefa de demonstrar que a lógica do terceiroincluído é uma lógica verdadeira, formalizável e formalizada, constituída como multivalente e nãocontraditória (LUPASCO, S. Le principe d’antagonisme et la logique de l’énergie. Paris: du Rocher,1987. Originalmente publicado em Paris, 1951).
51
continuum que vai da disciplinaridade à transdisciplinaridade. Decorre daí que a
transdisciplinaridade não é uma abordagem estanque e totalizadora para o conhecimento,
mas convive, interagindo em maior ou menor intensidade, com a disciplinaridade, com a
multidisciplinaridade e com a interdisciplinaridade.
2.2.2 A atitude transdisciplinar
A atitude transdisciplinar foi conceituada pela primeira vez em 1991 pelo poeta
argentino Roberto Juarroz (NICOLESCU, 2002) e se caracteriza pela aptidão para manter a
observância e a prática dos três princípios fundamentais da transdisciplinaridade discutidos
acima. É importante que incluamos nessa definição a consideração das concepções de
sujeito, de objeto e de realidade que emergem desses três princípios. A relação dialógica
(MORIN, a2002) – antagônica, concorrente e complementar – existente entre os três pilares
da transdisciplinaridade pode resultar em uma atitude, isto é, um modo de ver o mundo, de
pensar e também de agir que, ao nos fazer repensar a realidade e nós mesmos, pode
mudar a história do pensamento, do conhecimento, e do próprio mundo.
A legitimação da existência de diferentes instâncias de realidade que, embora sejam
descontínuas, permanecem ligadas por zonas de não resistência, origina uma visão
integrada de realidade. Assim, passamos a conceber a realidade – e o conhecimento dela –
não como um ente fragmentado e dividido em áreas, mas como uma unidade complexa e
coerente que emerge da interação entre as diferentes instâncias, e que deve ser abordada
como tal. Como afirma a Carta da Transdisciplinaridade19 (NICOLESCU, 2002), “qualquer
tentativa de reduzir a realidade a um único nível, regido por uma única forma de lógica, não
se situa no escopo da transdisciplinaridade” (p. 148). A visão transdisciplinar, ao
19 A Carta da Transdisciplinaridade foi redigida durante o Congresso da Arrábia, acontecido noConvento da Arrábia, Portugal, em novembro de 1994, com apoio da UNESCO. Esse congresso éconsiderado como a primeira manifestação mundial da transdisciplinaridade. Redigida sob acoordenação de Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu, a Carta foi publicada comoapêndice do Manifesto da Transdisciplinaridade (NICOLESCU, 2002)
52
transcender as instâncias de realidade, encoraja a reconciliação aberta das diferentes áreas
do conhecimento sem, contudo, abandonar o rigor científico com que elas são tratadas.
De modo análogo, a autenticação de diferentes instâncias de percepção no sujeito –
também descontínuas, porém unidas por sua zona de não resistência – determina uma
concepção integral de sujeito que, em sua concepção transdisciplinar, também se configura
como uma unidade multifacetada, porém coesa, emergente da relação dialógica (MORIN,
a2002) entre suas diferentes instâncias. Na abordagem transdisciplinar-complexa o sujeito é
considerado em sua inteireza. “Qualquer tentativa de reduzir o ser humano à definição
formal do que é um ser humano e de submeter o ser humano a análises redutivas restritas
a estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar”,
afirma o primeiro artigo da Carta (NICOLESCU, 2002, p. 148).
A unidade complexa e dinâmica que liga o conjunto das diferentes instâncias de
realidade, o conjunto das diferentes instâncias de percepção do indivíduo, e um ao outro, é
também aberta. Os fluxos de informações que perpassam as diferentes instâncias de
realidade encontram correspondência nos fluxos de consciência que permeiam as
diferentes instâncias de percepção. Assim, chegamos à consideração de que o
conhecimento não é exterior ao sujeito que se dispõe a conhecer, e também não é interior a
ele. Coerentemente com a lógica do terceiro incluído, a compreensão do universo exterior e
do interior do sujeito – ciência e consciência – sustentam e complementam uma à outra,
estabelecendo que o conhecimento é ao mesmo tempo interior e exterior aos sujeitos. Essa
visão – assim como os resultados da revolução quântica – abala a divisão artificial e
arbitrária, reinante na história do conhecimento, que apartou o sujeito do objeto. O estudo
do mundo e o estudo do ser humano se sustentam e complementam, tornando impossível a
compreensão de um sem o entendimento do outro.
Segundo os pressupostos transdisciplinares, se começássemos uma teoria a partir
de um certo número de pares antagônicos (A e não-A), poderíamos pressupor que
encontraríamos o terceiro incluído que uniria essas entidades antagônicas em uma instância
de realidade diferente. Porém, essa teoria seria temporária, porque a descoberta de novos
53
pares antagônicos em novas instâncias de realidade seria inevitável. Esse processo
continuaria indefinidamente, à medida que novas instâncias de realidade fossem
descobertas.
A realidade sob o ponto de vista transdisciplinar é, assim, considerada sob uma ótica
gödeliana20, que implica a impossibilidade de formularmos, algum dia, uma teoria completa
e final sobre o mundo. Assim, podemos concluir que o conhecimento, sob a abordagem
transdisciplinar, evolui eternamente, com a descoberta de leis cada vez mais gerais, sem
chegar a uma verdade final. O conhecimento está, assim, ao mesmo tempo indeterminado e
livre de qualquer verdade dogmática, aberto para sempre.
Isso pressupõe, porém, que estejamos conscientes das incertezas e das
insuficiências inerentes a nosso conhecimento, e que nos engajemos em um permanente
esforço para superá-las. O estudioso indiano da transdisciplinaridade K. V. Raju (2003)
ressalta que a atitude transdisciplinar exige que reconheçamos que sabemos pouco sobre o
mundo, e que não podemos conhecê-lo de maneira total. Ele menciona em seus trabalhos a
“ignorância aprendida”, que na tradição filosófica indiana representa o conhecimento que
não questiona e não examina. Um trabalho transdisciplinar, seja na pesquisa, seja no
ensino ou em qualquer outra área de atuação, tenta conscientemente questionar dogmas e
posições estabelecidas com o objetivo de combater nossa ignorância aprendida.
A aceitação das propriedades abertas e complexas da realidade e do indivíduo e da
lógica do terceiro incluído – que permite a congregação de opostos – faz emergir o que
Nicolescu chamou de “um novo princípio de relatividade” (NICOLESCU, 1997). Segundo a
nova relatividade, nenhuma instância de realidade constitui um lugar privilegiado a partir do
qual se possa compreender os outros. As implicações desse princípio são extremamente
relevantes em nossas vidas. Segundo ele, assim como nenhuma disciplina ou grupo de
disciplinas tem mais valor do que a outra, nenhum ponto de vista é uma posição privilegiada
20 O termo “gödeliana” deriva do nome do matemático austríaco radicado nos Estados Unidos KurtGödel. Gödel, em seus estudos da lógica matemática, formulou uma sintaxe lógica da aritmética noâmbito da própria aritmética, concluindo que um sistema suficientemente abrangente de axiomas levainevitavelmente a resultados ou irresolúveis, ou contraditórios, o que torna impossível a constituiçãode um sistema completo. Sua conclusão ficou conhecida, a partir de 1931, como o Teorema de Gödel(WANG, 1995).
54
para avaliarmos ou julgarmos qualquer outro. E isso inaugura um novo modo de olhar as
nacionalidades, os sistemas políticos, as culturas e as religiões, entre outros aspectos de
nosso mundo.
Segundo os estudiosos da transdisciplinaridade, a realidade não é apenas
multidimensional; ela é também multirreferencial (NICOLESCU, 1997). Assim, podemos
expandir o conceito de transdisciplinaridade para pensarmos em transnacionalidade,
transpolítica, transcultura e transreligião, numa concepção aberta e complexa do que reside
entre, através e além das nacionalidades, sistemas políticos, culturas e religiões.
Essa percepção indica que não há nacionalidade, sistema político, cultura ou religião
que possa ser considerado superior ou inferior, ou que se configure em um locus
privilegiado para avaliar os outros a partir de si. Nenhuma dessas “transentidades” significa,
no entanto, a homogeneização ou a unificação do que existe de diverso no mundo. A
riqueza de nossa realidade reside na diversidade que há entre as inúmeras nacionalidades,
sistemas políticos, culturas e religiões. A percepção de que cada um deles tem seu local e
tempo específicos, e incorpora visões, valores, crenças e costumes de seres humanos que
também pertencem a seu próprio local e tempo constitui uma atitude transdisciplinar.
Em última alçada, o princípio de relatividade transdisciplinar poderia nos conduzir ao
trans-humanismo (NICOLESCU, 2002), uma busca do que existe entre, através e além de
cada grupo humano e de cada indivíduo. Segundo a visão transdisciplinar, “não há lugar
que seja mais degradante que qualquer outro, ou lugar mais invejável que qualquer outro. O
único lugar que nos convida é nosso próprio lugar, e ele é único, à medida que cada um de
nós é único” (NICOLESCU, 2002, p. 93). O trans-humanismo, assim, ofereceria a cada ser
humano as bases para seu desenvolvimento integral e para uma realização mais plena em
sua presença no mundo, numa atitude de respeito por si mesmo, pelas outras pessoas e
pelo universo.
A relação dialógica (MORIN, a2002) entre os três pilares em que se apóia a
transdisciplinaridade é, como podemos ver, a fonte dos valores transdisciplinares:
integralidade, integração, abertura, reconciliação entre posições aparentemente
55
antagônicas, questionamento de dogmas e de totalitarismos e busca de realização. Esses
valores podem nos oferecer uma nova maneira de concebermos a nós mesmos e a nossa
realidade. E, como diz Nicolescu, “quando nossa perspectiva a respeito do mundo muda, o
mundo muda” (NICOLESCU, 2002, p. 55).
2.2.3 Uma abordagem transdisciplinar para a educação
Segundo Nicolescu (2000a), os pressupostos da transdisciplinaridade delineiam
fundamentos metodológicos a partir dos quais é possível criar diferentes métodos
adequados a situações e necessidades específicas. Assim, os procedimentos podem mudar
de acordo com os objetivos do programa educacional e com os conteúdos que se pretende
desenvolver, mas uma abordagem transdisciplinar para a educação pressupõe a
consideração dos valores que emergem de seus princípios fundamentais.
O principal objetivo de uma abordagem transdisciplinar na educação é a geração de
uma cultura transdisciplinar que, através de uma compreensão mais global do mundo –
entendido aqui como simultaneamente o universo interior do ser humano, o universo
exterior e a interação que existe entre esses dois universos (NICOLESCU, 2002) – pela
busca do diálogo entre os conhecimentos e do conhecimento com o ser humano, possa ter
a esperança na progressiva redução das tensões que ameaçam a vida em nosso planeta e
na construção de um mundo mais feliz do que o que vivenciamos no presente.
Nicolescu (2002) afirma que nossa vida individual e social é estruturada pela
educação. Central em nosso devir, a educação tem o poder de moldar o futuro através de
nossa formação presente. A percepção geral das sociedades atuais, porém, é a de que a
educação oferecida na maioria das escolas está em defasagem com as necessidades e os
desafios da pós-modernidade, uma vez que os princípios e métodos sobre os quais está
fundada estão em descompasso com a consciência que se faz necessária no mundo
contemporâneo. Esse tem sido o tema de inúmeros estudos sobre educação, em que se
56
tenta formular propostas para a escola do futuro. Um dos resultados mais proeminentes
desses esforços é o documento elaborado pela Comissão Internacional de Educação para o
Século XXI, encomendado pela UNESCO e relatado por Jacques Delors (2000).
Nesse documento, que passou a ser conhecido como o Relatório Delors, os
membros da comissão enfatizam quatro pilares que sustentam a proposta de um novo tipo
de educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.
Segundo Nicolescu (2002), aprender a conhecer significa aprender a desenvolver o
espírito científico baseado na recusa de qualquer conhecimento que nos seja apresentado
como pronto e esgotado. Propiciar o desenvolvimento desse espírito não significa, segundo
o autor, incrementar o ensino de conhecimentos científicos ou treinar os estudantes em
abstrações ou formalizações. Ensina-se a conhecer estimulando o questionamento e
possibilitando o estabelecimento de conexões entre as diferentes disciplinas, numa busca
de integralização da realidade.
Aprender a fazer, para o autor, vai além de construir conhecimentos teóricos e
práticos que nos permitam desempenhar uma profissão – embora essas sejam construções
essenciais em nossa sociedade – e também não pode estar restrito à especialização. Dado
o ritmo acelerado com que o mundo se transforma, aprender a fazer significa construir um
conjunto amplo de conhecimentos que possam ser ativados e desenvolvidos em diferentes
direções, caso uma mudança de área de atuação seja necessária. Nicolescu afirma também
que aprender a fazer é buscar a realização de nosso potencial pessoal e criativo. É
importante colocar aqui a relevância do conhecimento de nossos estilos e preferências de
aprendizagem para que possamos desenvolver estratégias que nos permitam não apenas
nos mantermos constantemente aprendendo, mas principalmente lidando com as limitações
de nossas capacidades. Auto-conhecimento, portanto, se faz necessário na construção do
aprender a fazer.
Em seu Manifesto, Nicolescu afirma que uma das características fundamentais da
atitude transdisciplinar e, por conseguinte, da educação transdisciplinar é o reconhecimento
de nós mesmos na face do outro (NICOLESCU, 2002, p. 135). Aprender a viver juntos
57
significa construir a atitude transcultural, transpolítica, transnacional e transreligiosa já
mencionada, que permite que compreendamos melhor nossa própria nação, cultura,
sistema político e orientação religiosa sem, contudo, adotar qualquer posição totalitária.
O autor acrescenta que aprender a viver juntos significa não apenas respeitar as
normas que governam a vida coletiva mas, acima de tudo, compreendê-las para que
possamos vivenciá-las com convicção, em vez de mera obediência. Nessa perspectiva, uma
atitude atenta e participativa em relação a essas normas se torna fundamental. Uma vez
que – para que nossa vivência com os demais seja significativa – necessitamos não só
aceitar mas acreditar nas regras sociais, é fundamental que possamos participar de sua
construção, e estar prontos para questioná-las e negociar com nossos pares para
transformá-las quando elas parecem não se adequar a nossas crenças, no espírito
apontado no artigo 13 da Carta: “a ética transdisciplinar rejeita qualquer atitude que recuse
diálogo e discussão” (NICOLESCU, 2002, p. 151).
Já o aprender a ser, para Nicolescu, significa aprender reconciliar nossas dimensões
material e espiritual, processo que considera fundamental para a sobrevivência de nossa
espécie. Da mesma forma, significa agregar o sujeito ao objeto, termos que aqui assumem
significado especial. Segundo o autor, o outro permanecerá sendo sempre um objeto para
nós se não realizarmos o projeto transpessoal, que é a busca da essência que reside entre,
através e além de cada pessoa, e que permite o próprio viver juntos. Assim como o
aprender a conhecer, aprender a ser significa questionar. “Questionar sempre”
(NICOLESCU, 2002, p. 136). Examinar nossas certezas, nossas crenças, nossos
condicionamentos. O aprendizado de ser é um permanente re-aprender.
Podemos observar que a transdisciplinaridade comunga profundamente com os
quatro pilares propostos pelo Relatório Delors, e se propõe a ir além. A Conferência
Transdisciplinar Internacional, ocorrida em Zurique no início de 2000, propôs dois outros
pilares que complementam o relatório Delors: aprender a antecipar e aprender a participar
(BRENNER, 2000).
58
O quinto pilar, aprender a antecipar, se baseia na compreensão de que a
humanidade não pode mais aprender pela destruição, pelo choque ou pela mera adaptação
a novas circunstâncias que emergem sem que nos tivéssemos apercebido de seus sinais.
Aprender a antecipar envolve a capacidade de vislumbrarmos o futuro – enfrentando as
incertezas inerentes a esse processo – com base nas circunstâncias presentes, e de para
ele nos prepararmos de maneira ativa.
Já o sexto pilar, aprender a participar, sugere o envolvimento de todos e de cada um
na preparação para o futuro proposta pelo quinto pilar. Em outras palavras, cada um de nós
tem parte da responsabilidade pela procura de soluções viáveis para os desafios que se nos
impõem. Uma vez que ações e iniciativas individuais não são suficientes e, principalmente,
porque a tarefa de tornar o mundo um lugar melhor não pode estar sob responsabilidade
apenas de especialistas, aprender a participar pressupõe agirmos em um esforço ao
mesmo tempo pessoal e conjunto, tendo em vista a complexa relação existente entre nós e
a realidade.
Para estar em consonância com a visão transdisciplinar de sujeito, de objeto e de
realidade, a proposta transdisciplinar para a educação prevê uma transrelação que unifica,
sem homogeneizar, os seis pilares (ou quantos mais outros vierem a ser propostos, uma
vez que esta proposta deverá estar, coerentemente com a visão gödeliana, para sempre em
aberto) que são, em última alçada, “o fundamento de nossa constituição como seres
humanos” (NICOLESCU, 2002, p. 137).
Em 1999, com o objetivo de ampliar a visão transdisciplinar de educação, a
UNESCO solicitou a Edgar Morin que expressasse sua visão sobre a educação que se faz
necessária para o século XXI. A proposta de Morin está concretizada em Os Sete Saberes
Necessários para a Educação do Futuro (MORIN, e2002). Os sete saberes indispensáveis
aos cidadãos contemporâneos, segundo Morin, são: as cegueiras do conhecimento: o erro
e a ilusão; os princípios do conhecimento pertinente; a condição humana; a identidade
terrena; enfrentar as incertezas; a compreensão; a ética do gênero humano. A proposta
59
educacional do autor solidifica e amplia os pilares propostos pelo relatório Delors, e também
fundamenta, ainda que implicitamente, a proposta elaborada neste trabalho.
Nicolescu (1997) caracterizou a proposta transdisciplinar para a educação como uma
educação in vivo, confrontando-a com a educação disciplinar tradicional que ele intitula in
vitro. O quadro comparativo abaixo descreve, sinteticamente, cada uma delas21.
QUADRO COMPARATIVO:A EDUCAÇÃO DISCIPLINAR E A EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR
Educação disciplinarin vitro
Educação transdisciplinarin vivo
Aceitação de apenas uma instância derealidade, de uma visão simplificadora dessa
realidade e da lógica do terceiro excluído
Aceitação de múltiplas instâncias derealidade, de uma visão complexa dessarealidade, e da lógica do terceiro incluído
Separação entre o mundo externo (objeto doconhecimento) e o mundo interno (sujeito
que se dispõe a conhecer)
Integração entre o mundo externo (objeto decompreensão) e o mundo interno (sujeito que
tenta compreender)Foco no conhecimento Foco na compreensão
Envolvimento da inteligência racional Envolvimento do indivíduo integral: umarelação dialógica entre a mente, o corpo, os
sentimentos, o espírito, a intuição e aimaginação
Orientação para disputas de podere para o consumo
Orientação para o permanenteencantamento, o encontro do próprio lugar
no mundo e a partilha.Desconsideração de valores Consciência e prática dos valores
transdisciplinares
É importante compreendermos que a proposta transdisciplinar para a educação não
pretende excluir a proposta disciplinar, uma vez que elas não são antagônicas, mas
complementares. “A transdisciplinaridade não ambiciona o domínio de diferentes disciplinas,
mas tem como objetivo abrir todas as disciplinas para o que elas compartilham e para o que
reside além delas”, diz o artigo 3 da Carta (NICOLESCU, 2002, p. 149). A
transdisciplinaridade não prescinde, no entanto, da seriedade e da severidade científicas.
21 Quadro construído a partir do apresentado por Nicolescu no Congresso Internacional QueUniversidade para o Amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar para a universidade, emLocarno, na Suíça, em 1997.
60
Sua racionalidade aberta pressupõe uma relação dialógica (MORIN, a2002) entre o rigor, a
abertura e a tolerância.
Podemos, portanto, a partir dos pressupostos teóricos da transdisciplinaridade,
considerar que uma educação transdisciplinar se configura em uma vivência que contribui
para uma formação integralizadora, permanente-abrangente e encantadora-transformadora
dos indivíduos que dela participam. É importante ressaltar que, coerentemente com a
concepção complexa de realidade, essas características não existem nem são postas em
prática de maneira isolada. Elas se interpenetram e se influenciam simultaneamente de
maneira complementar e concorrente, como a Figura 1 procura mostrar.
61
Uma proposta integralizadora de formação diz respeito a seu objeto (a realidade
vista por inteiro, sem fragmentações artificiais), a seus sujeitos (também em sua totalidade
aberta) e, especialmente, à integração de um ao outro.
A transdisciplinaridade se esforça para conceber o mundo como um ente integral, e
busca estabelecer um diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento, seja ele
proveniente das chamadas ciências naturais ou humanísticas. As fronteiras entre as
disciplinas se tornam mais tênues, ao mesmo tempo em que se busca o rigor disciplinar
essencial na realização de um trabalho científico. Em uma abordagem transdisciplinar, o
conhecimento científico também busca um diálogo com as artes – as artes plásticas e
também a música, a literatura, o teatro, o cinema, entre outras.
A formação transdisciplinar, assim, procura ver a realidade como um conjunto coeso
de seres e eventos reais, vivos e significativos para aqueles que se dispõem a compreendê-
la. Portanto, um dos focos de tal educação é tornar os conteúdos expressivos para os
estudantes, com o objetivo de auxiliá-los a integrar os conhecimentos dentro de si e atribuir
sentido ao mundo em que se inserem e à maneira como nele atuam.
A perspectiva transdisciplinar considera cada ser humano como um ente inteiro, e
outro de seus focos é a totalidade aberta que é cada pessoa. Assim, envolvendo em suas
atividades não só a racionalidade, mas também o corpo, os sentimentos, a intuição, a
imaginação e a espiritualidade, a educação transdisciplinar se volta para os diversos
aspectos do ser humano e busca oferecer aos estudantes subsídios para que possam
buscar coesão em si mesmos, refletir sobre quem e como são e sobre os posicionamentos
que assumem frente aos outros e à realidade.
Ao mesmo tempo que contempla e valoriza cada pessoa em sua individualidade, a
formação transdisciplinar busca também uma integração das pessoas entre si, concebendo
a humanidade – e cada grupo de estudantes – como uma pluralidade complexa. Propiciar
um ambiente que valorize as interações e que propicie uma experiência de aprendizado
cooperativo e compartilhado é outro foco da transdisciplinaridade, uma vez que nessa
interação com os outros, cada um de nós aprende também sobre si mesmo.
63
A busca da integração da realidade às pessoas – e vice-versa – é um objetivo
primordial da transdisciplinaridade. No âmbito educacional, isso significa construir
conhecimentos a partir de nossas realidades, trazendo nosso mundo – saberes, vivências e
experiências, vislumbres e sonhos – para a sala de aula e, a partir deles, estabelecer as
conexões existentes entre nossa vida cotidiana e os saberes formais. Os conhecimentos
construídos, assim, são incorporados ao mundo dos estudantes, e são acessados e
ativados em sua vida quotidiana, num permanente movimento recursivo de influência e
modificação.
Conceber a realidade como integral significa considerar a existência de diferentes
instâncias de realidade e as emergências originadas na interação entre elas. Isso significa
também considerar o conhecimento dessa realidade – conforme a visão gödeliana – como
eternamente em aberto. “O conhecimento é uma aventura incerta que comporta em si
mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro” (MORIN, b2002, p. 86). Portanto,
uma formação transdisciplinar busca a consciência permanente do caráter inacabado do
saber e, por conseguinte, da feição inesgotável da busca pelo saber.
O estado sempre provisório de nosso conhecimento pressupõe que necessitamos
estar conscientes, ao mesmo tempo, tanto da onipresença das incertezas quanto do estado
permanentemente limitado de nosso saber. Não temos plenas certezas sobre nosso mundo,
sobre os outros, e mesmo sobre nós mesmos. Necessitamos, assim, aprender a conviver
com essas incertezas e com o risco inerente a qualquer passo que dermos. Necessitamos
estar atentos a nossas limitações e à impossibilidade de um dia chegarmos a superá-las,
estando também conscientes do quanto ignoramos sobre o mundo. Nessa perspectiva, a
formação transdisciplinar se configura – em seu permanente questionamento de nós
mesmos e de nossa realidade – em uma constante luta contra “a ignorância aprendida”
(RAJU, 2003), que pode ser definida como a atitude inflexível frente tanto ao que
acreditamos saber quanto aos mistérios que o mundo guarda.
Na perspectiva transdisciplinar, no entanto, o estado inacabado de nosso
conhecimento não se configura apenas em limitações, mas – especialmente – em
64
potencialidades também. Considerando que um ser integral é um complexo de relações
entre suas diferentes instâncias de percepção, e das emergências de suas interrelações,
uma formação transdisciplinar se volta para a permanente realização das potencialidades
interiores das pessoas. Embora não possamos esgotar a realidade, podemos sempre re-
elaborar nossos conhecimentos sobre ela, e esse movimento de expansão sem ponto de
chegada caracteriza uma formação transdisciplinar. Desse modo, essa é uma formação que
se configura em um processo permanente, que ocorre ao longo da vida do sujeito.
Como as pessoas estão em interação dinâmica com sua realidade, uma formação
transdisciplinar não se restringe a instituições de ensino formal. As ruas, os clubes, as
igrejas, os locais onde encontramos lazer e diversão são tempos e espaços educativos, que
podem estar incluídos nas experiências de formação abrangente que a transdisciplinaridade
prevê. Não só o planejamento da educação pode propor vivências educativas fora da
escola, mas principalmente necessita valorizar os conhecimentos e percepções construídos
nesses lugares e trazidos para a sala de aula, tornando-os subsídios para discussão e
também objetos de reflexão e questionamento, no espírito transdisciplinar proposto pelo
artigo 11 da Carta: “A educação autêntica não pode valorizar a abstração sobre outras
formas de conhecimento. Ela deve ensinar abordagens contextualizadas, concretas e
globais” (NICOLESCU, 2002, p. 150).
Para que cada instante de nossas vidas seja potencialmente educativo e formador,
necessitamos desenvolver curiosidade, habilidades de observação e reflexão sobre o que
observamos, e também estratégias de aprendizagem que nos tornem capazes de continuar
nos educando em diferentes lugares e momentos, em nossas relações com as pessoas e
com o mundo, mesmo estando afastados de nossos educadores. Ao ajudar os estudantes a
desenvolver essas capacidades, uma formação transdisciplinar os estará auxiliando a se
tornarem mais autônomos e mais responsáveis não só por seu próprio processo de
aprendizado, mas também sobre suas próprias ações.
O objetivo primordial de uma formação transdisciplinar é a compreensão de nós
mesmos, de nossa realidade, do modo como nos relacionamos com ela, e das emergências
65
dessa relação. Acreditamos que essa compreensão pode ser propiciada pelo que Nicolescu
(1997) denomina o “permanente encantamento”. Podemos almejar que nossos estudantes
experienciem um estado de deslumbramento perante suas vidas, sua realidade, seus
semelhantes, encontrando em si e à sua volta universos a serem desvelados, sem jamais
serem esgotados. Para que isso possa ocorrer, sua formação necessita lhes oferecer
desafios prazerosos que instiguem sua curiosidade e sua criatividade e que lhes impulsione
à permanente busca da compreensão.
A compreensão de nós mesmos que, na perspectiva transdisciplinar, passa pelo
permanente exame e questionamento de como somos – nossas opiniões, valores e crenças
– frente aos outros e à realidade, nos permite encontrar o que Nicolescu chama “nosso
próprio lugar no mundo (um dos aspectos do que denominamos felicidade)” (NICOLESCU,
2002, p. 89) e nossa auto-realização como parte dele. A realização de nós mesmos e a
valorização de nossas vidas se configura, assim, como foco de uma formação na
transdisciplinaridade.
Podemos também almejar transformar a realidade, em decurso de nossa própria
mudança e da modificação do modo como nos relacionamos com ela. Não só acreditamos
que, como diz Nicolescu (2002), transformamos o mundo ao mudar nosso olhar sobre ele,
mas principalmente, transformamos o mundo através de nossa participação nele, uma
participação ao mesmo tempo autônoma e integrada, que reconhece nossa submissão à
dinâmica que emerge de nossa interação com a realidade, e nosso poder sobre ela, poder
de buscar sustentabilidade para nossas vidas e para a vida sobre o planeta.
Essa proposta de educação, ao se tornar real, pode promover, através da geração
da cultura e da postura transdisciplinares, um novo tipo de inteligência, aquilo que Morin
chama de “o bem-pensar” (MORIN, b2002, p. 100): o modo de pensar que permite que
apreendamos simultaneamente o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o
global, ou seja, o complexo. Um pensar que favorece o questionamento e a revisão
constantes de nossas concepções e crenças, que valoriza as diferentes dimensões
66
humanas, capaz de apreender o mundo em sua totalidade e, ao mesmo tempo, manter-se
eternamente aberto ao novo e ao devir.
Nicolescu (1997) afirma que a educação transdisciplinar é uma educação da e para
a libertação, uma educação que permite e estimula a religação das pessoas, dos eventos, e
das pessoas aos eventos. Podemos ir além dessa esperança, confiando que essa é uma
proposta que poderá permitir que as pessoas redescubram o prazer e a alegria que existem
no infindável processo de aprender, um processo em espiral crescente e ascendente.
Também pode ser a proposta que viabilize a reapropriação do mundo e de si mesmas pelas
pessoas, de maneira comprometida e ética22.
22 O Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2000) oferece, como uma definição geral de ética, areflexão a respeito da essência das prescrições, regras e valores presentes em uma sociedade. Já aCarta da Transdisciplinaridade (NICOLESCU, 2002) coloca a ética como uma posturapermanentemente aberta para o diálogo e para a discussão. Em seu Ética para um Jovem, FernandoSavater define a ética como “procurar um certo saber viver [ou arte de viver] que nos permita acertar”(SAVATER, 1991, p. 24). Neste trabalho, o termo “ética” assume o significado de reflexão,questionamento e negociação de posturas, idéias e valores assumidos, com vistas à realização deescolhas conscientes que nos permitam viver e conviver em uma atitude de respeito por nós mesmose pelo que nos rodeia.
67
3 OS MOVIMENTOS DO PERCURSO
O maior de todos os trabalhos – o Grande Trabalho – é nossa própria vida(NICOLESCU, 2002, p. 93).
3.1 A opção metodológica
Bauer e Gaskell (2004) descrevem a pesquisa qualitativa como uma importante
ferramenta na compreensão de fenômenos genuinamente humanos. Já para Holliday
(2002), uma pesquisa qualitativa estabelece uma realidade local e não-exaustiva que deve
ser continuamente questionada e reafirmada. Esse tipo de estudo, em lugar de ser
concebido como conclusivo e terminal, permanece aberto e estabelece oportunidades para
pesquisas e trabalhos subseqüentes.
Os autores citados acima corroboram duas características fundamentais da atitude
transdisciplinar colocadas na Carta da Transdisciplinaridade (1994), que são abertura e
tolerância. Segundo esse documento, que lança os fundamentos para a pesquisa, a
educação e a visão de mundo transdisciplinares, a abertura pressupõe a aceitação do
desconhecido, do inesperado e do imprevisível, dada a transitoriedade gödeliana de nosso
conhecimento, que necessita ser constantemente revisto e renovado. A abertura implica
também a rejeição de dogmas e de sistemas fechados de pensamento, uma vez que as
abordagens transdisciplinares se voltam não tanto para as respostas, mas para as
perguntas. Já a tolerância implica o reconhecimento do direito às idéias e verdades
diferentes das nossas, concebe a possibilidade de olhares diferentes sobre o mesmo
fenômeno, e procura, segundo a lógica do terceiro incluído, uma via que integre de maneira
dialógica visões aparentemente incompatíveis, mas que incluem a possibilidade de se
complementarem.
A Carta menciona ainda outra característica essencial do trabalho transdisciplinar,
que é a busca do rigor na argumentação através da eterna investigação, continuamente
68
alimentada pela construção de novos conhecimentos e pela vivência de novas experiências.
O rigor, ao levar em conta os dados existentes, se configura como uma garantia – tanto
quanto possível – de validade. Holliday (2002) afirma que, mesmo que levemos em conta a
natureza complexa e aberta da pesquisa qualitativa, é possível que alcancemos o rigor e a
disciplina que são essenciais à cientificidade. O autor afirma que esse rigor e essa disciplina
residem, em grande parte, no modo como a pesquisa é relatada. Ele recomenda, então,
que a narrativa de um estudo qualitativo explicite de modo detalhado seu passo-a-passo,
suas estratégias e as justificativas para cada escolha.
Ao longo deste trabalho, realizei esforços conscientes para atender às três
exigências principais da pesquisa de cunho transdisciplinar, ao mesmo tempo em que me
apoiava nos princípios da dialógica – complementares e interdependentes – propostos por
Morin (a2002) como referência para uma compreensão da realidade em seus múltiplos
aspectos, suas relações e conexões com seu entorno. Esses princípios são apresentados
resumidamente a seguir:
· Princípio sistêmico ou organizacional, que liga o conhecimento das partes ao
conhecimento do todo e indica que o todo resultante pode se constituir em algo maior ou
menor do que a soma das partes, dependendo das condições em que o sistema ou
organização opera;
· Princípio hologrâmico, que propõe que a parte está contida no todo, do mesmo modo
como o todo está inscrito na parte;
A articulação do princípio sistêmico ou organizacional com o princípio hologrâmico
origina o grande princípio hologramático, em uma concepção de recursividade entre
totalidade e partes constituintes. Ou seja, as partes interagem formando uma totalidade
que, de alguma forma, está contida nessas partes. Esta totalidade, ao transformar-se,
transforma as partes, transformando-se.
69
· Princípio do circuito retroativo, que, rompendo com a causalidade linear, apresenta a
idéia de uma causalidade circular, em que a causa age sobre o efeito, e o efeito age
sobre a causa, modificando-a e gerando um novo efeito;
· Princípio do circuito recursivo, que indica que os produtos e os efeitos são produtores e
causadores do que os produz;
O princípio do circuito retroativo e o princípio do circuito recursivo formam, em sua
relação de complementaridade, o grande princípio recursivo, em um entendimento de auto-
produção e auto-organização;
· Princípio da autonomia-dependência (auto-eco-organização), que chama a atenção para
o dispositivo segundo o qual os seres vivos realizam sua constante auto-reprodução,
retirando energia, informação e organização do meio ambiente, tornando sua autonomia
inseparável de sua dependência;
· Princípio dialógico, que compreende a idéia da possível interação de idéias antagônicas,
complementares e/ou concorrentes, que podem formar novas sínteses;
· Princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, que restaura a
presença do sujeito como central no processo cognitivo, compreendido como uma
tradução e reconstrução da realidade realizadas pela unidualidade complexa mente-
cérebro, em uma cultura e época determinadas, integrando a unidade na diversidade de
cada ser vivo na filogênese, epigênese e ontogênese.
Os princípios apresentados acima, assim, se configuram como fundamentos para
categorias de um percurso dialógico para apreensão e compreensão da realidade, ou seja,
como um veículo de mediação entre o investigador se dispõe a compreender a realidade a
ser compreendida.
A abordagem qualitativa de orientação transdisciplinar-dialógica foi escolhida para
fundamentar este estudo por se constituir em uma busca de ruptura com o modo de pensar
redutor e fragmentário ainda muito corrente na cultura e no ensino ocidentais
contemporâneos, o que é um dos objetivos iniciais da realização deste trabalho. Morin
(1987) afirma que uma das simplificações mais contundentes é aquela que tenta manipular
70
eventos naturalmente complexos, procurando transformá-los em ocorrências simples e
circunscritas. Ao encobrir as contradições e confluências, os conflitos e os antagonismos
existentes nas relações entre os eventos e entre eles e seu ambiente, essas simplificações
provocam o esvaziamento da essência dessas relações. O propósito deste estudo não é
encontrar certezas ou verdades absolutas, mas explorar incertezas e verdades
temporariamente assumidas e, com elas e a partir delas, buscar compreender a
experiência.
A abordagem transdisciplinar-complexa oferece também a possibilidade de um
método de investigação construído, desconstruído e reconstruído ao longo do processo.
Este trabalho, ao longo de sua realização, esteve em aberto. E continua sujeito a releituras
e reinterpretações, podendo ser questionado e revisto à medida em que for considerado sob
diferentes óticas, em circunstâncias diversas. Estabeleci um compromisso com o objetivo
primordial deste projeto, que é a reflexão e a revisão de minhas concepções, de minhas
atitudes e de meus pressupostos teóricos. Esse compromisso fez com que eu necessitasse
voltar sobre meus próprios passos em repetidos momentos. Longe de se configurarem em
retrabalho, esses movimentos foram oportunidades para auto-conhecimento e auto-
avaliação.
3.2 Um delineamento para a os pressupostos metodológicos do curso
A partir dos estudos bibliográficos realizados principalmente com base nas obras de
Nicolescu e Morin que constituíram o referencial teórico preliminar deste estudo, o trabalho
evoluiu para o estabelecimento prévio de pressupostos transdisciplinares para o processo
de ensino e aprendizagem em sala de aula.
Como Nicolescu (a2000) afirma que os pressupostos da transdisciplinaridade não
delineiam um método de trabalho, mas fundamentos metodológicos a partir dos quais
podemos criar ou adaptar diferentes métodos, desde que os valores transdisciplinares
71
fundamentais sejam respeitados e vivenciados, busquei complemento, para a concepção de
pontos de referência para uma prática transdisciplinar de ensino da língua inglesa, em duas
linhas teóricas: a teoria da mediação de Reuven Feuerstein, colocada em seu Mediated
Learning Experience de 1991, e na concepção de educação construtivista proposta por
Ernst von Glasersfeld em seu Radical Constructivism de 1995. Utilizei também meus
conhecimentos e experiências prévias, construídas e reconstruídas ao longo de minhas
vivências como educadora e como estudante. Estes princípios orientadores da prática,
transpostos para atividades que visavam integrar os conteúdos básicos a serem
desenvolvidos ao longo do curso, também estiveram sujeitos a constantes releituras e
reformulações à medida que o estudo avançava.
Segundo Nicolescu (2002), uma abordagem transdisciplinar para a pesquisa ou para
a educação não ambiciona substituir mas enriquecer o método de cada disciplina ao
fecundá-lo com novos valores: os valores transdiciplinares. O autor lembra que nas
profundezas de cada disciplina residem elementos transdiciplinares que lhes dão seu
sentido, lhe enraízam no mundo e a conectam com a realidade, e os esforços do
pesquisador e do educador devem se dirigir para fazer com que esses elementos emerjam
durante os trabalhos.
Desse modo, o curso teve como objetivos promover, a partir de uma abordagem
transdisciplinar, um aprendizado integrado e contextualizado dos diferentes aspectos da
competência comunicativa de nível básico da língua inglesa, com vistas a contribuir para a
formação integral dos envolvidos no processo. Para que esses objetivos se realizassem, os
conteúdos básicos para o desenvolvimento do curso-estudo foram selecionados segundo
três critérios principais, propostos pela teoria da mediação de Feuerstein e coerentes com
uma visão transdisciplinar de educação (NICOLESCU, 1997), que foram a significação, a
transcendência e a intencionalidade. Embora básicos, os conteúdos do curso deveriam
estar relacionados com a realidade vivida dos estudantes, incluindo oportunidades para a
compreensão e para a elaboração e reelaboração de atitudes, crenças e valores; deveriam
poder ser transpostos para outras situações de suas vidas; e os objetivos para seu
72
aprendizado deveriam ser claros para os estudantes. O curso também almejou estabelecer,
através dos conteúdos, diálogos entre o aprendizado da língua inglesa e diferentes
aspectos da contemporaneidade, para que os estudantes pudessem perceber a existência
de conexões entre diversos saberes. Selecionei tópicos que estimulassem os estudantes
em seus diferentes aprenderes (DELORS, 2000; BRENNER, 2000) – conhecer, fazer, viver
juntos, ser, antecipar e participar – e nos saberes recomendados por Morin (e2002) – as
cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios do conhecimento pertinente; a
condição humana; a identidade terrena; enfrentar as incertezas; a compreensão; a ética do
gênero humano.
Assim, optei por um currículo nocional-funcional (VAN EK, ALEXANDER, 1975)
organizado a partir de situações quotidianas interacionais, como fazer novos amigos,
compartilhar informações pessoais, participar de uma reunião social, entre outras. A partir
dessas situações comunicacionais genuínas, o vocabulário e os conteúdos gramaticais
seriam trabalhados de maneira personalizada e contextualizada. Dei preferência a um
currículo que deixasse espaços abertos para expansão e aprofundamento conforme os
interesses e as necessidades dos estudantes fossem emergindo. Procurei utilizar materiais
– textos, fotografias, figuras, compact disks e fitas cassete de áudio – que apresentassem
pessoas em situações autênticas para facilitar a identificação ou a contraposição com a
realidade dos estudantes e a conseqüente reflexão sobre si mesmos, sobre os outros e
sobre o mundo.
Também os procedimentos e as estratégias planejadas tiveram critérios de seleção
coerentes com a abordagem transdisciplinar para a educação: integralidade, permanência-
abrangência e encantamento-transformação. O conhecimento construído e as experiências
prévias dos estudantes seriam levadas em conta tanto na introdução quanto no
desenvolvimento dos conteúdos. Suas contribuições seriam fundamentais para o
enriquecimento e significação dos materiais estudados. Também era importante que os
estudantes se conscientizassem das permanentes insuficiências de seu conhecimento e de
que seu aprendizado não estava terminado ao final da aula ou do curso. Assim, o
73
desenvolvimento de estratégias cognitivas que lhes permitisse a construção autônoma de
novos conhecimentos era uma meta importante do curso.
Procurei também elaborar atividades que oferecessem aos estudantes
oportunidades de envolver sua mente, seu corpo, suas emoções e seu espírito de modo
integrado, e que lhes propiciassem a realização de descobertas tanto individuais quanto
compartilhadas que lhes propiciassem extrair prazer e auto-realização.
O resultado dessas reflexões foi um plano de curso e um material didático de apoio
composto de cinco unidades em que tentei integrar conteúdos e procedimentos de maneira
coerente e ao mesmo tempo didática. Tanto a estrutura quanto os conteúdos do plano de
curso e dos materiais de apoio seriam revistos após as entrevistas preliminares com os
estudantes do grupo, de modo a atender suas características e expectativas, e continuariam
a ser reelaborados ao longo das aulas.
De acordo com Hadley (1993), “um plano de curso bem elaborado é um componente
necessário para uma experiência de aprendizagem bem sucedida, tanto do ponto de vista
do professor quanto dos estudantes. Para o professor, o plano de curso oferece orientação
quanto à abrangência, à seqüência e ao ritmo de atividades de sala de aula; para o
estudante o plano de curso fornece uma visão geral do perfil do trabalho a ser desenvolvido
e também das expectativas quanto aos resultados desse trabalho” (p. 485). Esse
pensamento justifica minha decisão de adotar um plano de curso que, no entanto, esteve
aberto a releituras ao longo dos trabalhos.
Em relação à elaboração do conjunto didático, eu me apoiei nos autores de
Conceber e Avaliar Materiais Escolares, Gerard e Roegiers (1998), para quem o material
didático se configura como um dos recursos, junto a muitos outros, a ser utilizado de
maneira crítica pelo professor em sua atuação profissional. O material é um facilitador e não
um condutor; uma sugestão e não uma receita. Optei, assim, pelo uso de um material de
apoio durante o curso principalmente devido à sua característica de auxílio nos estudos
individuais dos estudantes (GRANT, 1988). Confiei, também, que a participação dos
estudantes nas atividades desenvolvidas na sala de aula estabeleceria com o material
74
didático uma relação de recursividade, em que um elemento atuaria sobre o outro,
simultanteamente, causando a emergência de sínteses muito mais ricas do que as que
seriam produzidas pelos elementos em separado.
3.3 O planejamento do estudo de caso
Após o delineamento dos pressupostos teóricos e metodológicos do curso, o
próximo passo foi em direção aos estudos necessários para o planejamento de um estudo
de caso. Segundo Robert Yin (2001), essa estratégia de investigação permite que nos
aprofundemos na intensa investigação de uma intervenção na realidade – que era o objetivo
amplo desta proposta de trabalho – levando em conta sua complexidade, e considerando
suas relações com seu ambiente de ocorrência e com seus participantes (BRESSAN, 2000).
Nessa intervenção, os comportamentos dos sujeitos envolvidos não são manipulados, mas
é possível que realizemos observações – diretas ou participantes – e também entrevistas e
outras coletas sistemáticas de dados a respeito desses comportamentos.
O estudo de caso permite também que, com base em uma teoria inicial a respeito do
estudo a ser realizado, estabeleçamos um propósito inicial para a intervenção e também
que definamos critérios para a análise de seus resultados (YIN, 2001). Este estudo, com
base nos pressupostos da transdiciplinaridade sob a ótica complexa (NICOLESCU, 2002;
MORIN, b2002), teve como propósito inicial elaborar uma abordagem para o ensino e o
aprendizado de língua inglesa em sala de aula que fosse coerente com a
transdisciplinaridade. O estudo também objetivou a realização de uma experiência de
ensino e aprendizado fundamentada na abordagem transdisciplinar e a identificação do
potencial pedagógico dessa abordagem. Uma vez que eu pretendia explorar uma
intervenção na realidade cujos resultados não podiam ser considerados simples ou claros,
realizei um estudo de caso de tipo exploratório, como indicado por Robert Yin (2001), de
75
cunho qualitativo e na perspectiva transdisciplinar-dialógica (NICOLESCU, 2002; MORIN
e2002).
Segundo Holliday (2002), a investigação qualitativa se ocupa de áreas da vida social,
tais como experiências compartilhadas, interesses e percepções das pessoas, que – por
serem essencialmente subjetivas e complexas – não atendem às prerrogativas de estudos
quantitativos. A pesquisa qualitativa aborda as relações humanas e evoca a necessidade de
estudar o modo como os participantes do estudo se posicionam em relação às informações
levantadas do mesmo modo que busca examinar as informações em si.
A unidade de análise do caso (YIN, 2001), isto é, a definição do caso em si, foi um
curso básico de língua inglesa com carga horária de 30 horas, para um grupo de seis
estudantes adolescentes e adultos, com idades entre 13 e 33 anos com pequena ou
nenhuma experiência anterior no estudo da língua inglesa. Desses seis participantes, três
eram estudantes. William e Vanessa haviam passado para a oitava série do ensino
fundamental e Fabiane para o penúltimo semestre do curso de pedagogia – séries iniciais.
Os outros três eram profissionais: Fernando prestava serviços na área de manutenção de
equipamentos de informática, Anderson era instrutor em academias de ginástica, e Helly era
assistente de biblioteconomia.
O curso ocorreu durante o mês de fevereiro de 2004, em 15 encontros, de segunda
a sexta-feira, de duas horas-aula, divididas dois blocos de uma hora, com uma pausa de
quinze minutos entre eles. O local selecionado para o curso foi a instituição de ensino de
língua inglesa em que trabalho desde janeiro de 1997, em Uruguaiana, no Rio Grande do
Sul.
Optei por um programa intensivo, com encontros diários de duas horas-aula porque
minha experiência prévia no ensino de idiomas estrangeiros já havia mostrado algumas
peculiaridades dos módulos intensivos de cursos de idiomas. Por apresentarem aos
estudantes a oportunidade e a necessidade de estarem em contato diário com o idioma
estudado, os conteúdos, a instituição de ensino, os colegas e o professor, os programas
intensivos tendem a propiciar o estabelecimento de vínculos mais estreitos entre os
76
estudantes, com o professor e com o ambiente de aprendizado, o que parece favorecer
uma atitude positiva em relação ao objeto de estudo e ao processo de aprendizado em si.
Essa percepção é corroborada por autores como Peter Grundy, que afirma que os
cursos superintensivos permitem que os estudantes rapidamente desenvolvam “sistemas de
suporte intra-grupo” (GRUNDY, p. 1994, p. 9) que tendem a tornar rápido e tangível o
progresso de seu aprendizado. Grundy afirma também que, nos cursos superintensivos, o
professor, por se concentrar em um mesmo grupo de modo intenso, mesmo que seja por
um curto período de tempo, tem maiores oportunidades de conhecer e refletir sobre as
características e necessidades individuais de cada estudante e sobre o desenvolvimento do
grupo como um todo.
Um programa de 30 horas pareceu tempo suficiente do ponto de vista da qualidade
da experiência de aprendizado do grupo e viável do ponto de vista do volume de dados
coletados durante o estudo. Estive ciente das limitações inerentes a um curso de 30 horas
do ponto de vista da variedade dos conteúdos que poderia desenvolver e dos temas que
conseguiria abordar nas aulas. Por esse motivo, procurei estabelecer como primazia não os
aspectos quantitativos do curso – número de unidades, quantidade de funções em cada
unidade, variedade de temas abordados, entre outros – mas sim a intensidade e a
profundidade com que cada tema era explorado pedagogicamente. Ao colocar em segundo
plano os critérios numéricos, priorizamos um desenvolvimento mais abrangente de cada
tópico, e a integração dos temas estudados entre si, com as experiências, as expectativas e
as inquietações do grupo, e também com a realidade.
Minha proposta era a de estudar um grupo pequeno que permitisse, nesta primeira
investigação, um atendimento individualizado durante as aulas e um acompanhamento
atento de seus progressos, dificuldades, avanços e rupturas tanto do ponto de vista
cognitivo quanto afetivo. O grupo deveria, no entanto, ter um número de integrantes que
permitisse um trabalho comunicativo significativo ao propiciar oportunidades para
descobertas mútuas e conjuntas e o estabelecimento de vínculos entre os estudantes e a
77
partilha de idéias, de informações, de conhecimentos, e de estratégias de aprendizagem,
entre outros.
Vários autores sobre o ensino de língua inglesa para níveis elementares afirmam
que não existem estudantes que sejam iniciantes absolutos neste aprendizado. Dado o
estatuto ocupado pelo idioma como uma “língua do mundo”, e também a maciça difusão da
cultura de língua inglesa, mesmo quem não estuda o idioma sabe pelo menos algumas
palavras e frases em inglês, e também está familiarizado com a escrita e a pronúncia
características da língua (GRUNDY, 1994). Assim, podemos dizer que a maioria das
pessoas que inicia seus estudos de língua inglesa, mesmo sem saber, é um “falso iniciante”
no aprendizado do inglês como idioma estrangeiro, pois já construiu um conjunto
conhecimentos sobre a língua, reconhecendo inclusive algumas semelhanças e diferenças
entre ela e sua língua materna.
Esse se mostrou ser o caso do grupo de estudantes participantes deste estudo.
Muitos já haviam tido aulas de inglês na escola. Um dos estudantes, já na entrevista inicial,
demonstrou estar ciente de seus conhecimentos prévios: “a gente até já tem uma idéia
porque o inglês está incluso dentro da vida, do quotidiano. [...] Então tu acabas
descobrindo, sabendo de alguma forma como é que é, para que é, ou para que serve”.
Mesmo os estudantes que acreditavam nada saber, no entanto, apresentavam alguma
familiaridade com o idioma, construída a partir de seu contato com filmes, músicas e jogos
em língua inglesa, e seus conhecimentos prévios puderam ser ativados já nas primeiras
aulas.
Grundy (1994) afirma que os estudantes adultos – e também os adolescentes –
geralmente têm objetivos claros para estudar um idioma estrangeiro, que ultrapassa o
aprendizado em si. Eles podem estar se preparando para uma ocupação futura,
enriquecendo suas competências, ou mesmo atendendo uma exigência de sua profissão. O
autor sugere que o professor procure se inteirar dos propósitos de seus estudantes.
Nas entrevistas iniciais, o grupo se mostrou homogêneo em relação a seus
objetivos. “O inglês é muito importante e pode abrir portas”, afirmou Helly, confirmando a
78
posição apresentada pelo autor. “É uma língua que se afina muito com minha profissão”,
corroborou Fernando. Mesmo o estudante mais jovem reconhecia que saber falar inglês
seria importante em seu futuro. Esses estudantes, segundo Grundy, tendem a ser
dedicados ao estudo e exigentes em relação aos resultados de sua aprendizagem.
As descrições acima justificam a escolha da faixa etária dos participantes do curso, e
também de seu estágio de conhecimento prévio. Mesmo apresentando uma certa bagagem
de conhecimentos sobre a língua inglesa, um estudante iniciante tem uma experiência de
aprendizado forte e impactante. A primeira fase de um curso de idiomas tende a ser um
período muito significativo de descobertas e de mudanças de concepção, em que os
resultados de aprendizagem são facilmente percebidos tanto pelo professor quanto pelos
estudantes. Quis ter e oferecer aos estudantes uma vivência de intenso aprendizado, em
que as mudanças fossem observadas a cada dia, devido ao caráter acelerado do curso.
Também quis que essas modificações não estivessem aparentes apenas para mim, mas
também para o grupo de estudantes.
É importante ressaltar que os participantes do curso foram selecionados também de
acordo com o interesse demonstrado no aprendizado da língua inglesa ao procurarem a
instituição para participar do curso oferecido no mês de fevereiro, o chamado “Curso
Superintensivo de Verão”, e também segundo a disponibilidade de tempo para comparecer
às aulas e realizar as tarefas extra-classe que seriam solicitadas, e o compromisso em
permanecer no curso até o final do estudo.
Como já foi mencionado, o curso ocorreu em uma escola franqueada de língua
inglesa localizada em Uruguaiana. A instituição franqueadora é uma organização voltada
para a promoção da educação internacional fundada em 1950 na cidade de São Paulo, com
o compromisso de difundir valores de cidadania global, praticados tanto nas salas de aula
brasileiras quanto nos programas de intercâmbio oferecidos pela organização. A instituição
tem também uma atuação significativa em projetos sociais, tais como formação de
professores em comunidades carentes e conscientização da população para um consumo
mais consciente (SILVA, 2000).
79
Desde sua fundação, o a instituição também vem se dedicando à pesquisa de novas
tecnologias e metodologias educacionais e à sua aplicação na prática de ensino e
aprendizagem de idiomas estrangeiros em sala de aula. Atualmente as franquias trabalham
com inglês, espanhol, francês e alemão, além de português para estrangeiros, apoiadas por
materiais didáticos próprios e exclusivos fundamentados na aprendizagem significativa, na
abordagem comunicativa e na tecnologia educacional (SILVA, 2000).
A franquia da cidade de Uruguaiana, que comunga com os valores, com a filosofia e
com a metodologia de trabalho da instituição franqueadora, foi inaugurada em janeiro de
1997. Na época em que o curso ocorreu, a escola contava com um quadro de 190
estudantes, com idades entre oito e 48 anos, nos níveis básicos, intermediários e
avançados, nos turnos da manhã, da tarde e da noite. Em sua modalidade extensiva, os
cursos têm uma carga horária de 35 horas semestrais, distribuídas em dois encontros
semanais de uma hora. Esses cursos se apóiam nos materiais didáticos produzidos pela
instituição franqueadora, que consistem em um livro de aula, um livro de tarefas
complementares, um compact disk de áudio e um domínio na internet para atividades
complementares.
Os cursos superintensivos de férias têm sido oferecidos desde a fundação da
escola, nos meses de julho, janeiro e fevereiro, e têm uma procura estável. Normalmente
são abertos dois ou três grupos em cada mês, com uma média de seis estudantes em cada
grupo. Esses cursos normalmente oferecem a mesma carga horária e os mesmos
conteúdos dos cursos de modalidade extensiva.
A escola de Uruguaiana, localizada em um ponto central da cidade, ocupa uma
antiga casa restaurada de 190 metros quadrados de área construída, contando com uma
sala de recepção, um centro de recursos com uma pequena biblioteca e quatro estações de
multimeios, três salas de aula, a sala da orientação pedagógica, a sala dos professores, a
sala de estar dos estudantes e uma pequena cozinha, além de um jardim com mesas,
cadeiras e bancos para convivência.
80
A sala de aula em que o curso ocorreu, uma área retangular de quinze metros
quadrados, é montada de acordo com os padrões das franquias. As 12 carteiras móveis são
colocadas em U frente a um quadro branco e um mural de informações. Em um canto da
sala, há uma mesa alta móvel para uso do professor. A sala é acarpetada e as paredes
texturizadas para evitar eco. As cores selecionadas para o carpete, as paredes e os móveis
são suaves – cinza, marfim, azul-claro – e a iluminação é intensa e dirigida. Não há
televisor, aparelho de vídeo ou computador na sala de aula, apenas um aparelho de
reprodução de compact disks e de fitas cassete de áudio. A sala conta com um
condicionador de ar que permite sua climatização.
O quadro de colaboradores da escola, na época deste estudo, consistia de duas
gerentes administrativas, uma gerente de manutenção, e três professores, além de mim,
que desempenho também os papéis de gestora administrativa e orientadora pedagógica da
escola. Eu trabalho nesta franquia desde sua fundação. Uma das gerentes administrativas é
colaboradora desde dezembro de 1997. A gerente de manutenção, desde janeiro de 1999.
Um dos professores e a outra gerente administrativa trabalham na instituição desde 2000.
Duas das professoras eram recém-contratadas e estavam em pre-service em fevereiro de
2004. A equipe da escola é coesa e nossa comunicação pode ser considerada eficiente. O
estilo de administração da franquia pode ser descrito como democrático e participativo, uma
vez que as decisões importantes – desde o destino de verbas até ajustes no processo de
avaliação – são tomadas em equipe.
Morin (a1999) afirma que a apreciação crítica de nosso ser, nosso saber e nosso
fazer deve vir principalmente do interior, e que nossos esforços de investigação da realidade
necessitam comportar a auto-reflexão. Assim, minha participação como professora do grupo
se configurou em uma oportunidade de desconstrução e reconstrução de conhecimentos
sobre a realidade de sala de aula e também em um desafio no sentido de questionamento e
de reavaliação de minhas práticas de ensino e dos princípios que as embasam.
Assim, os estudantes do curso e eu – professora-pesquisadora – constituímos partes
de uma totalidade, interagindo constantemente ao longo do processo, além de estabelecer
81
conexões com a equipe da escola, com o espaço físico, com os materiais pedagógicos, com
os pressupostos teóricos e metodológicos do trabalho e com o mundo exterior à escola.
Nossas impressões, interpretações, sentimentos e idéias foram consideradas tanto
individual quanto coletivamente no estudo e na constituição do material que serviu para a
interpretação e para a avaliação do trabalho realizado. A relação concorrente-complementar
existente entre as visões dos diferentes participantes do estudo auxiliou a evitar pelo menos
parte dos erros causados pelas cegueiras decorrentes de, entre outros, ilusões, falsa
consciência e falsas certezas, tão característicos da natureza humana (MORIN, a2002).
3.4 As entrevistas preliminares e a revisão dos pressupostos metodológicos do curso
Após sua inscrição no curso, foi realizada com cada estudante uma entrevista semi-
estruturada. Esse tipo de entrevista se encontra entre dois extremos – a entrevista
estruturada ou padronizada, em que se segue um roteiro de perguntas feitas a todos os
participantes da pesquisa de modo idêntico, e a entrevista não estruturada, em que a
pessoa entrevistada discorre sem interferências ou sugestões sobre o tema proposto
(LUDKE; ANDRÉ, 1986) – configurando-se em um roteiro planejado de perguntas que, ao
serem respondidas pelos participantes, podem abrir novas possibilidades de
questionamento ou de expressão de pensamentos que não haviam sido inicialmente
planejados. No início desse encontro, a proposta de estudo e seus objetivos foram
comunicados, e os estudantes tiveram a oportunidade de decidir se participariam ou não do
estudo, considerando as exigências colocadas abaixo:
· interesse e motivação para participar do curso-estudo;
· disponibilidade de tempo para freqüentar as aulas e realizar as atividades extra-classe
que seriam solicitadas (tarefas de casa, entrevistas, avaliações, auto-avaliações, entre
outras);
· compromisso em permanecer no curso até o final do estudo.
82
As entrevistas prévias realizadas com os seis integrantes do grupo tiveram como
objetivo principal obter informações sobre as vivências anteriores dos estudantes com o
estudo de inglês e de outras línguas estrangeiras, e seu conhecimento já construído no
idioma. Também tentei conhecer os sentimentos dos estudantes em relação à língua
inglesa, e seus objetivos e expectativas em relação ao curso que se iniciava. Além disso,
tinha como meta realizar uma avaliação das pré-concepções dos estudantes sobre o
processo de ensino e aprendizagem de uma segunda língua em sala de aula como ponto de
referência para a avaliação dos avanços conceituais. As entrevistas iniciais foram gravadas
em fitas-cassete e transcritas. Após a transcrição, elas foram submetidas à revisão de cada
entrevistado, que teve a liberdade de re-elaborar ou complementar suas falas.
Os informes obtidos nessas entrevistas – vivências, saberes, sentimentos, objetivos,
expectativas, pré-concepções dos alunos – serviram como insumos para uma revisão do
plano de curso e dos materiais didáticos de apoio preliminarmente elaborados.
As entrevistas revelaram que a maioria dos estudantes – todos exceto Helly – havia
tido experiências anteriores com o aprendizado de línguas estrangeiras – inglês e espanhol
– na escola regular. Apesar disso, de maneira geral, consideravam seu conhecimento
insuficiente e revelaram insatisfação com as aulas, com os conteúdos e – muitas vezes –
com os professores. “Não era o que eu esperava”, disse Vanessa. “A gente não aprendeu
nada, [...] só tinha que cumprir os horários, os períodos. [...] Sinto um pouco de dificuldade”,
criticou Anderson, para acrescentar logo a seguir: “a professora deixava a desejar”. Grundy
(1994) afirma que o estudante que já se dedicou a aprender um outro idioma desenvolveu,
por um lado, estratégias de aprendizado que lhe permite realizar transposições de sua
prática anterior para a nova oportunidade de aprendizado. Por outro lado, diz o autor, esse
estudante traz consigo lembranças, sentimentos, concepções e expectativas que tanto
podem ser positivas como negativas, e o professor deve estar atento a essas percepções.
Alguns estudantes manifestaram ter uma atitude bastante negativa em relação ao
aprendizado de inglês, admitindo não gostar do idioma e ter medo de não serem capazes
de aprendê-lo. “Não gostava de inglês nem de espanhol”, revelou Anderson. “Tenho medo
83
de na hora não saber escrever, não saber falar. [...] Estou apavorada”, admitiu Fabiane.
Outros se mostraram positivos em relação ao aprendizado da língua. “O inglês é uma língua
que eu gosto, e eu tenho interesse nele”, disse Vanessa. Já Fernando revelou saber a
importância de uma postura positiva em relação ao conteúdo para o sucesso do
aprendizado: “Tem que gostar para poder querer aprender alguma coisa”. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1999) atestam essa atitude geral dos
estudantes em relação à língua estrangeira, diagnosticando que não só as aulas de língua
estrangeira da rede regular de ensino falharam em habilitar os estudantes para se
comunicar, como também, muitas vezes, devido a seu caráter repetitivo e monótono,
acabaram por desmotivar os estudantes e mesmo gerar neles sentimentos negativos em
relação ao aprendizado de idiomas estrangeiros.
Suas concepções do processo de ensino e aprendizagem em sala de aula se
mostraram bastante tradicionais, apesar das críticas que faziam a esse tipo de aula. “Uma
sala de aula, um atrás do outro, nada de diferente, nada de interessante” era o que
esperava Fabiane. “A matéria no quadro, a professora explica. Se não entendeu vai para
casa e estuda. Depois chega aqui e faz um trabalho de avaliação”, concordava Anderson.
Porém, a maioria dos estudantes afirmou esperar mais do curso que se iniciava do que
havia experienciado anteriormente. “[Eu espero] um ensino mais puxado, que é até melhor
para o estudante”, afirmou Vanessa. “Os conteúdos têm que ser bem mais explicados”,
sugeriu Anderson.
Quando questionados a respeito de suas expectativas em relação ao curso, os
estudantes, de modo geral, pareceram não ter clareza sobre o que esperavam aprender.
“Eu não tenho uma definição do que eu espero aprender aqui. Eu espero aprender inglês.
Ou pelo menos os iniciais do inglês”, afirmou Anderson. Eles tinham, porém, uma
percepção um pouco mais clara em relação a como esperavam aprender. “O curso tem
estrutura, tu tens o livro, uma didática, te ensinam por partes, tu não vais pegando assim
sem saber como ou aprendendo de forma errada”, esperava Fernando, acrescentando logo
84
a seguir: “eu quero aprender de forma correta e com outras pessoas”, uma fala que parece
resumir os anseios do grupo.
Grundy (1994) adverte que os estudantes geralmente trazem para a sala de aula
certas percepções sobre suas próprias atribuições, as do professor e as do grupo no
processo de aprendizagem que já estão bem estabelecidas e podem ser difíceis de mudar.
Mais uma vez, o autor sugere que o professor esteja atento a essas visões. Em relação aos
papéis de cada um no processo de ensino e aprendizagem, os resultados das entrevistas
também foram nítidos.
Suas expectativas em relação à atuação da professora eram homogêneas. Eles
esperavam uma profissional exigente e comprometida com seu aprendizado. “A professora
tem que ser exigente em relação ao estudo” disse Anderson. “Não adianta ser professor e
não dar bola para o aluno. Tem que fazer com que ele aprenda”, acrescentou Vanessa.
Além disso, os estudantes esperavam que a professora explicasse os conteúdos “tudo bem
com calma, porque é com calma que eu consigo aprender”, segundo Fabiane.
Já em relação às responsabilidades do próprio estudante no aprendizado, as
respostas não foram tão claras. “Eu não parei para pensar [nisso]”, admitiu Helly. “[O
estudante] tem que se esforçar e tem que dar um jeito de estudar e aprender”, acreditava
Vanessa. Já Anderson via a responsabilidade do estudante estreitamente ligado à do
professor. “Acredito que tu tenhas que chegar em casa, [...] ficar estudando, te dedicar ao
estudo. Na realidade isso não acontece porque se tu não és estimulado ao inglês, se tu não
és estimulado a gostar do inglês, a ver o inglês de forma diferente, ou para que serve, aí tu
não vais fazer isso”. Assim, embora os estudantes soubessem que tinham uma função a
desempenhar no processo, não pareciam estar seguros a respeito de que ela consistia.
Quanto à influência do grupo na aprendizagem de cada um e do grupo como um
todo, as visões demonstradas pelos estudantes foram, em geral, negativas. “Seria bom se
todos gostassem”, disse Vanessa, para logo acrescentar que isso não era o que sua
experiência escolar mostrava. Já Fabiane revelou temer a atuação do grupo: “na escola às
vezes tu não sabes falar uma palavra todo mundo já começa a vaiar”, e Anderson receava
85
as discrepâncias entre os membros do grupo: “alguns sabem mais e outros sabem menos,
uns têm experiência e outros não têm”. Os estudantes revelaram, assim, temores em
relação à atuação do grupo como um dos componentes de seu processo de aprendizagem.
Apesar das inseguranças e até mesmo das descrenças reveladas pelos estudantes
em relação ao processo de ensino e aprendizagem do idioma estrangeiro, eles, de modo
geral, demonstraram disposição para uma mudança de atitude e para uma reavaliação de
suas concepções. “Já que eu não sei, então vamos estudar”, entusiasmou-se Fabiane.
“Vamos ver se inglês era isso que eu tive no colégio, ou se vai me surpreender”, ponderou
Anderson. Desse modo, mesmo tendo sentimentos negativos em relação a suas
experiências anteriores, os estudantes confiavam que poderiam ter uma vivência
significativa no curso que se iniciava, e era a partir dessa confiança que eu esperava
trabalhar.
As informações obtidas a partir dessas entrevistas iniciais resultaram em uma
revisão do plano de curso e do material de apoio, de modo a atender às características e às
expectativas do grupo. Minhas preocupações principais passaram a ser com a re-
construção da confiança dos estudantes em relação à sua capacidade de aprendizado da
língua inglesa, que havia se revelado baixa nas entrevistas iniciais e também com uma
mudança de atitude em relação ao aprendizado da língua inglesa e ao aprendizado em
grupo.
Embora os conteúdos previstos inicialmente fossem mantidos, os procedimentos e
as estratégias passaram por ajustes, especialmente no tocante à organização do grupo
para os trabalhos de aula. Optei, assim, por buscar um planejamento de cada aula, e cada
atividade, simultaneamente como uma unidade em si e como uma parte do curso, por
acreditar que esse modo de organização pudesse possibilitar aos estudantes, ao final da
aula, a sensação de terem aprendido conteúdos e, ao mesmo tempo, a percepção de
continuidade, com seus avanços e rupturas, que caracteriza um curso. Essas atividades e
aulas deveriam, além disso, estar conectadas entre si como que por uma trama de fios que
lhes desse um sentido comum (WOODWARD, LINDSTROMBERG, 1995).
86
Planejei também atividades a serem realizadas em casa, entre as aulas, para que os
estudantes tivessem a oportunidade de, ao mesmo tempo, consolidar os conhecimentos
construídos na aula e realizar uma avaliação de seus próprios progressos e dificuldades de
aprendizagem, em um trabalho individual em seu próprio ritmo e tempo. As tarefas extra-
classe, propostas de maneira colaborativa, eram exploradas, em aulas subseqüentes,
principalmente no tocante às dificuldades encontradas pelos estudantes e como eles
haviam lidado com elas. Esse seria, assim, um momento diário de avaliação do trabalho e
auto-avaliação do processo de aprendizagem.
Planejei, além disso, atividades cooperativas que promovessem a interação entre os
estudantes. Embora estivesse ciente de que, conforme Allright e Bailey, “o sucesso da
interação entre os elementos da sala de aula não pode ser dado como certo nem pode ser
garantido pelo planejamento exaustivo” (1991, p. 18-19), uma vez que a interação resulta de
um esforço cooperativo de cada um dos membros do grupo, acreditava que haveria maiores
chances de construirmos um relacionamento construtivo de auxílio mútuo se as atividades
de sala de aula propiciassem essa construção.
As atividades desenvolvidas no curso, assim, seriam um movimento de ir-e-vir entre
os conteúdos planejados e as curiosidades, contribuições, dúvidas e dificuldades
apresentadas pelos estudantes em aula, naquilo que Gudsdorf (1987) denomina o equilíbrio
entre o planejamento e a improvisação. As contribuições dos estudantes durante as aulas
deveriam servir de insumo para o planejamento dos próximos encontros, que era feito logo
após o término do registro das notas de campo referentes à aula diária.
Essas anotações diárias, realizadas com base no referencial teórico e com o auxílio
da gravação das aulas em vídeo, eram contrapostas ao planejamento daquela aula em
busca das coincidências e – especialmente – dos desvios. Pouco a pouco, fui revendo
minhas visões sobre o que eu considerava ser uma educação transdisciplinar e –
principalmente – sobre como propiciar um ensino coerente com essa abordagem em sala
de aula. Essas retomadas eram fruto de uma atitude atenta, crítica e questionadora em
87
relação às minhas próprias concepções, em seu confronto com as idéias dos autores de
referência e com a observação da realidade que eu vivia.
Inúmeras vezes, ao longo desse processo, eu me deparei com minhas próprias
limitações, com minhas ilusões e cegueiras e também com minha incapacidade de mudar
de posição no momento em que isso seria necessário. Nesse sentido, o ato de ensinar
representou não apenas o acompanhamento e a orientação dos estudantes em seu
trabalho de construção de conhecimentos e de autonomia. Ensinar significou
fundamentalmente um processo de reflexão e reavaliação de meu modo de pensar, fazer e
sentir, em um processo de re-organização ao mesmo tempo pessoal e interativa, de
participação em uma relação intensa entre construção individual e coletiva.
3.5 A coleta de dados da realidade, a triangulação e a interpretação
Um estudo de caso permite e possibilita o uso de múltiplas fontes de evidências e
diversas formas e instrumentos de coleta e tratamento de dados. Neste estudo, optei por
uma combinação entre entrevistas semi-estruturadas realizadas individualmente antes e
depois da realização do curso, pareceres escritos que os estudantes realizavam após cada
semana de aulas e também notas de campo diárias resultantes de minha observação
participante conforme as propostas de Taylor (1987), Haguette (2000), e Bogdan (1999).
Assim, as entrevistas iniciais, os pareceres semanais, as notas de campo e as
entrevistas finais constituíram os instrumentos de registro de dados do estudo. As
entrevistas iniciais tiveram – como mencionado acima – o objetivo de conhecer mais
profundamente a realidade dos estudantes, o que levou a modificações no plano de curso e
nos materiais didáticos de apoio. As notas de campo, por sua vez, serviram também como
pano de fundo do estudo, como subsídios para a elaboração do roteiro das entrevistas finais
e também como insumos para uma interlocução com as falas dos estudantes. Já os
88
pareceres semanais e entrevistas finais ofereceram subsídios para compreender o ponto de
vista dos estudantes.
Uma vez que desempenhei no estudo o papel de professora e compartilhei da
experiência dos estudantes, tive a oportunidade não só de observar, mas principalmente de
participar da experiência, modificando e sendo modificada pela tessitura formada pela
interação dos participantes entre si e com os conteúdos e atividades que estruturavam o
curso. Tive a oportunidade de acompanhar a construção, desconstrução e reconstrução de
saberes, atitudes e crenças dos estudantes, com base em seus conhecimentos prévios e
experiências anteriores, e a apropriação de novos conhecimentos com crescente
autonomia, num processo em que a reflexão sobre o que e como pensavam, sentiam e se
relacionavam foi fundamental. Dessa observação participante resultaram as notas de
campo.
As notas de campo, contextualizadas e ricas em detalhes, foram anotações e
comentários realizados diariamente, após cada aula, sobre a experiência concreta vivida,
que incluíram descrições de pessoas, eventos, ações, falas literais ou resumidas dos
participantes, percepções e sentimentos, dúvidas e certezas manifestadas pelas pessoas
envolvidas no estudo. Utilizando a proposta de Taylor (1987), Haguette (2000), Bogdan
(1999), procurei, durante a realização dessas notas, não excluir o que parecia discrepante
em relação a minhas expectativas, o que não era compreendido e/ou o que surpreendia,
uma vez que dessas aparentes contradições poderiam emergir compreensões ainda mais
ampliadas dos eventos experienciados.
As aulas também foram gravadas em vídeo. Essas gravações serviram de apoio
para meus registros, uma oportunidade de reviver a experiência diária e observar
principalmente as linguagens não-verbais utilizadas pelos participantes do curso. O vídeo
teve o objetivo de subsidiar meu processo de auto-reflexão e auto-crítica, e no
questionamento de minhas certezas sobre a experiência vivida, além de se constituir em um
registro duradouro da experiência, que pôde ser consultado no decorrer do processo de
89
interpretação dos dados do estudo e de identificação do potencial pedagógico do trabalho
desenvolvido.
Em um processo posterior ao curso, concomitantemente à interpretação dos dados,
as notas de campo foram complementadas pela reflexão a respeito da articulação dos
trabalhos desenvolvidos com os pressupostos da proposta transdisciplinar de educação
apresentada neste estudo. Após a revisão da concepção de educação transdisciplinar
descrita no referencial teórico, elaborei uma lista de vinte e três itens a serem observados
em cada aula, com o objetivo de confrontar a prática diária com os princípios fundadores da
proposta.
Durante os registros, tanto os realizados durante o curso quanto os posteriores, tive
em mente a importância da permanente reflexão sobre minha trajetória pessoal e sobre
como essa trajetória influenciava a maneira como interpretei as experiências. Ponderei
sobre minhas convicções e visões, e estabeleci uma prática de diálogo comigo mesma,
auto-reflexão e auto-crítica, numa relação de concorrência e complementaridade com os
diálogos com os participantes do estudo e com os autores de referência. É importante, no
entanto, destacar que esses registros são a expressão de minhas percepções e de
confrontos com outros informantes. Ao fazemos uma tradução e reconstrução da realidade,
realizamos uma interpretação pessoal, peculiar, própria (MORIN, e2002), e essa
interpretação pode conter erros e ilusões decorrentes de nossa maneira particular de ver o
mundo.
No decorrer do estudo, ao final de cada semana, os estudantes tiveram a
oportunidade de registrar suas impressões sobre o desenvolvimento dos trabalhos e sobre o
desempenho dos participantes do estudo – o seu próprio, o dos colegas e o meu – a partir
dos propósitos do curso registrados no plano de curso e de suas próprias reflexões. Este
era um registro em aberto, em que os estudantes expressavam o que consideravam mais
relevante e significativo a respeito dos eventos que vivenciavam ao longo da semana.
Nessa perspectiva, a participação dos estudantes não se restringiu à experiência de
aprendizado em si, mas incluiu oportunidades de reflexão, de tomada de consciência e de
90
avaliação do modo como se relacionavam entre si, com os conteúdos e as atividades do
curso e comigo, de seu aprendizado e da formação do grupo como um todo.
Ao final do estudo, os participantes foram novamente ouvidos em entrevistas
individuais semi-estruturadas, em que explicitaram suas impressões sobre o
desenvolvimento dos trabalhos, seus resultados de aprendizagem, suas habilidades,
potencialidades, limitações, estilos e estratégias de aprendizagem. Nessa entrevista
procurei também identificar mudanças conceituais, procedimentais e atitudinais dos
estudantes na aprendizagem da língua inglesa em sala de aula, tais como suas
responsabilidades e a do professor e do grupo no processo educativo, seus programas e
estratégias de estudo e aprendizagem e também sua atitude e seus sentimentos em relação
ao aprendizado da língua inglesa.
Essas entrevistas, assim como as iniciais, foram gravadas em fitas-cassete,
transcritas e entregues aos entrevistados para complemento e revisão de suas idéias, na
busca de maior fidelidade aos pensamentos e sentimentos dos estudantes. É necessário,
porém, que estejamos cientes de que quando ouvimos alguém, não estamos isentos de
nossas opiniões ou posições prévias sobre o conteúdo da narrativa. Mas é importante que
estejamos abertos aos posicionamentos do outro e também a reformulações em nossa
própria postura.
A triangulação – a confrontação de diferentes tipos de dados, coletados por meios
de diferentes instrumentos – é utilizada, na pesquisa qualitativa, como um meio de buscar
maior validade e confiabilidade. Neste estudo de caso, o processo de triangulação consistiu
na interpenetração das informações geradas nas entrevistas semi-estruturadas anteriores e
posteriores ao curso e nos pareceres semanais dos estudantes com os registros obtidos a
partir da observação participante, tanto os realizados ao longo do curso quanto sua
complementação posterior realizada com o auxílio do vídeo e com base no referencial
teórico. Os dados foram comparados e complementados uns pelos outros, entrando, assim,
em uma relação complexa de simultânea contradição e complementaridade.
91
Através da triangulação, busquei encontrar coincidências e contradições que
levaram ao aprofundamento dos informes obtidos. Também pela triangulação, tentei dar ao
estudo o aspecto circular defendido por Morin (a2002). Ao fazer interagir relatos
complementares, foi possível atingir sínteses mais complexas e integradoras.
Segundo Mosquera e Stobäus (2004), a busca da compreensão integra um método
de estudo que nos auxilia a construir um conhecimento específico sobre as conexões de
sentido que se estabelecem no mundo subjetivo dos participantes.
A ciência é a descoberta de conexões entre os fatos. Na conexão o fatodesaparece como puro fato e se transforma em membro de um sentido. Aípodemos compreendê-lo. O sentido é matéria inteligível (MOSQUERA,STOBÄUS, 2004, p. 90).
Neste estudo, a busca da compreensão das conexões de sentido estabelecidas
pelos diferentes informes percorreu os seguintes movimentos, formulados com base em
Bardin (1977) com adaptações de Engers (1987), e também com base em Moraes (2003):
· leituras sucessivas dos dados, com a reunião das transcrições das entrevistas, dos
pareceres semanais e das notas de observação, para a impregnação de seus conteúdos
e significados;
· leitura horizontal dos itens de cada documento e leitura vertical de cada item para todos
os documentos na busca de coincidências e de contradições nas falas dos informantes;
· busca dos significados explícitos e implícitos nos textos23;
· assinalação das idéias-chave dos textos em busca das unidades de significado;
· síntese das idéias-chave para a interpretação dos significados;
· estabelecimento de categorias a partir do reconhecimento de relações entre as unidades
de sentido dos textos estudados;
· remontagem dos textos ao redor das categorias estabelecidas e das relações entre elas;
23 Segundo Moraes (2003), a pluralidade de sentidos contida em qualquer texto pode originardiferentes tipos de leituras. Algumas dessas leituras – denominadas leituras do explícito, ou domanifesto – estão relativamente aparentes no texto e podem ser facilmente compartilhadas entrediferentes leitores. Já a leitura do implícito, ou do latente, exige uma interpretação mais aprofundada,bastante subjetiva e, por isso, não tão facilmente compartilhada entre diversos leitores.
92
· movimentos pendulares de leitura do referencial teórico e dos dados da realidade, uma
vez que já existia um comprometimento com teorias e pressupostos a priori;
· desenvolvimento de novos conceitos e proposições teóricas, com a emergência de uma
compreensão renovada da realidade estudada;
· refinamento do ciclo, uma vez que no estudo dos dados apareciam contradições e
coincidências, que eram consideradas e destacadas, pois sua identificação poderia
conduzir a modificações na interpretação.
Uma vez realizada a interpretação dos dados, o próximo estágio do trabalho, como
indica Moraes (2003) é comunicar as novas compreensões que emergiram do estudo, em
um exercício de explicitação dos passos percorridos e dos resultados teóricos desses
movimentos, que resultam em uma reformulação-reelaboração do referencial teórico
construído.
O autor se refere a essa comunicação como a construção de um “metatexto” (p.
191), em que “novos insights atingidos são expressos em forma de linguagem e em
profundidade e detalhes” (p. 208). A elaboração dessa comunicação se constitui como fonte
de novas concepções, crenças e valores. Em suma, essa elaboração se constituiu na
construção dos conhecimentos que estão expressos nos capítulos seguintes deste estudo,
e que devem, no entanto, se manter abertos à avaliação e à revisão.
Um aspecto relevante a ser ressaltado aqui diz respeito ao que Morin chama a
onipresença da incerteza (a2002). Segundo o autor, apesar de nossos esforços, não
conseguiremos eliminar a incerteza que existe no conhecimento. Podemos, isso sim,
conviver com essa incerteza, desde que estejamos dispostos a reconhecer sua presença
constante. Assim, é importante lembrar que as precauções que tomei para tornar a coleta
de dados rigorosa e confiável e para atribuir validade a este estudo não fizeram
desaparecer a imprecisão inerente ao próprio saber humano.
3.6 Tecendo a espiral: a transdisciplinaridade no processode ensino e aprendizagem da língua inglesa em sala de aula
93
Segundo Moraes (2003), a interpretação dos dados coletados a partir da experiência
em um estudo qualitativo parte de um conjunto de significantes – que no caso deste estudo
estão contidos nos textos das entrevistas prévias e posteriores ao curso realizadas com os
estudantes, em seus pareceres semanais e nas notas de campo realizadas a partir da
observação participante – aos quais o pesquisador atribui significados que se inter-
relacionam com seus conhecimentos e teorias pessoais. “A emergência e a comunicação
desses novos sentidos e significados é o objetivo da análise” (MORAES, 2003, p. 193).
O autor recomenda que a reconstrução de compreensões se configure em um
“processo auto-organizado” (p. 192) que se dê ao longo de três passos fundamentais que
são: a desmontagem dos textos em busca de suas unidades constituintes essenciais, a
categorização ou o estabelecimento de relações entre essas unidades, e a captura de uma
totalidade que emerge dos passos anteriores. Considero importante acrescentar a esses
três passos um movimento circular de refinamento do ciclo, uma vez que no estudo dos
dados podem aparecer contradições e coincidências que podem ocasionar modificações na
interpretação.
O resultado desse processo auto-organizado é – como foi mencionado acima – a
elaboração do metatexto construído por meio das categorias e, se for o caso, subcategorias
resultantes da interpretação. Esse metatexto, um esforço de explicitação dos sentidos
emergentes do estudo, é constituído pela descrição e pela interpretação dos fenômenos
investigados. Isso significa que o pesquisador, além de se apoiar em referências teóricas,
tanto prévias quanto emergentes, assume a autoria de seus argumentos, o que ocasionará
uma reformulação do arcabouço teórico construído ao longo do processo.
A interpretação dos textos deste estudo fez emergir três elementos principais ao
redor dos quais o processo de ensino e aprendizagem da língua inglesa em sala de aula no
caso investigado se estruturou: o processo de auto-formação, auto-conhecimento e revisão
de posições por parte dos componentes do grupo; as aulas como eventos educacionais e
interacionais; e a teia de relações entre as partes que contribuiu na construção da
94
consciência do todo. A realização de um projeto transdisciplinar para o ensino e a
aprendizagem da língua inglesa em sala de aula se configura, assim, como um processo
em espiral crescente e ascendente, permeado pelos valores transdiciplinares de
integralidade, integração, abertura, reconciliação de posições antagônicas, questionamento
de posições e busca de auto-realização no qual a auto-eco-transformação dos estudantes,
a ressignificação dos eventos educativos e a consciência da complexidade da relação entre
as partes e o todo se tornam essenciais.
Já durante os primeiros momentos do processo de interpretação, percebi que,
embora cada categoria se manifestasse de modo bastante claro, cada uma delas só
assumiria sentido em sua relação com as outras, conforme o princípio da autonomia-
dependência do pensamento complexo (MORIN, a2002). Em algumas ocasiões, um mesmo
fragmento de discurso poderia ser encaixado em mais de uma das categorias, o que
demonstrava a estreita relação entre elas.
É importante ressaltar, então, que essas três categorias não emergem separadas e
impermeáveis umas às outras, mas sim como unidades em conexão dialógica e recursiva
(MORIN, a2002). Embora cada um dos elementos mencionados acima concorra com os
demais nesse processo, eles ao mesmo tempo complementam e influenciam uns aos
outros, deixando perceber uma relação de causalidade não linear, mas circular e
interdependente, como tento expressar através da Figura 2.
95
Assim, na discussão dos resultados, embora tenha separado as categorias para fins
de clareza, buscarei evidenciar a complexidade da experiência de aprendizado vivenciada,
que ocorreu como uma emergência das inter-relações existentes entre os três elementos
mencionados. Começarei discutindo o processo de auto-conhecimento, de auto-formação e
de retomada de posições pela perspectiva de cada estudante, evidenciado tanto nas falas
dos estudantes – nos pareceres semanais e nas entrevistas – quanto em seu
comportamento observado em sala de aula. Então, discutirei encontros diários com seu
caráter educacional e interacional e como eles influíram na construção do conhecimento dos
estudantes. Após, discorrerei sobre a visão compartilhada do todo elaborada pelos
estudantes e por mim ao longo do processo. É importante destacar que essa divisão é
artificial, e foi realizada para fins de compreensibilidade na explicitação das emergências do
estudo, uma vez que elas formam uma teia multidimensional e multirreferencial que não
pode ser desmembrada sem prejuízos de compreensão.
Segundo Morin (c2002), cada membro de uma organização – que neste caso se
configura como um grupo humano – carrega uma dupla identidade. Ao mesmo tempo em
que ele tem sua identidade própria individual, assume uma identidade dentro do todo, em
sua relação com as demais partes. Assim, por mais que sejamos diferentes, cada um de
nós assumia, no grupo, uma identidade comum por estar vinculado à unidade global e por
estar sendo influenciado pelas retroações das emergências e das imposições geradas pela
dinâmica das interações estabelecidas.
É nessa perspectiva que procurei abordar os dados relacionados aos estudantes e a
mim mesma, e também o a identidade comum do grupo no processo de aprendizado
ocorrido durante o curso. Cada um de nós deveria ser visto tanto em nossas singularidades
quanto como parte do todo. Tornou-se, assim, necessário conhecer as características de
cada um – até mesmo as que são inibidas no interior do conjunto – não apenas para
construir conhecimentos sobre cada estudante, mas também para melhor conhecer o grupo
como um todo, uma vez que este era determinado pelas emergências e pelas imposições
que surgiam das relações entre nós.
97
O conhecimento de cada estudante foi buscado através das entrevistas prévias e
posteriores ao curso, seus pareceres semanais individuais e da observação atenta de suas
manifestações e atitudes em sala de aula, enquanto meu auto-conhecimento foi procurado
através de intensas reflexões auto-críticas ao longo da realização deste trabalho. Essas
reflexões se apoiaram tanto no referencial teórico preliminar do trabalho quanto em
referências buscadas à medida que as categorias emergiam. Já o conhecimento do grupo
atuando como uma totalidade foi procurado na observação atenta e crítica das aulas tanto
in loco quanto mais tarde, na revisão de cada encontro através da gravação em vídeo. O
diálogo entre essas diferentes visões do mesmo fenômeno, complementado pela
interlocução com os autores de referência compõe a discussão apresentada a seguir.
É importante lembrar, neste ponto, que segundo Bondia24, o diálogo é uma tradução
em duas vias que, neste contexto, significa uma tentativa de compreender ou de se fazer
compreender. Além disso, o conhecimento assim construído é uma elaboração de
traduções da realidade, uma ação submetida tanto às possibilidades quanto às limitações
de nosso aparato cognitivo e que, por isso, implica incerteza e risco. (MORIN, a1999).
Assim, a discussão a seguir está profundamente enraizadas no referencial teórico
construído ao longo do estudo e também em minhas visões e experiências pessoais. Nas
palavras de Moraes (2003):
Enxergamos as coisas, percebemos os fenômenos, lemos textos, sempre apartir de referenciais teóricos que constituem nossos domínios lingüísticos,nossos discursos. Por isso estamos sempre interpretando. Não temos comosair da prisão da linguagem e do discurso a partir dos quais falamos.Necessitamos manifestar-nos de dentro deles (p. 204).
Portanto, é importante reiterar que a discussão que se segue é receptiva a re-
leituras e re-traduções, configurando-se de acordo com a visão gödeliana que concebe toda
construção de conhecimento como estando permanentemente em aberto.
24 BONDIA, Jorge Larrosa. Linguagem e educação após Babel. Conferência apresentada na PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, em 4 de setembro de 2003.
98
4 OS ESTUDANTES EM SEU PROCESSO DE AUTO-FORMAÇÃO,AUTO-CONHECIMENTO E REVISÃO DE POSIÇÕES
Para Morin, a educação se configura em um processo de auto-formação (MORIN,
1984), o que significa que o indivíduo, através de processos de auto-conhecimento, reflexão
sobre si e exame de suas próprias percepções e concepções, realiza sua própria educação.
Isso não quer dizer, porém, que esse seja uma construção isolada. A auto-formação,
embora individual e única para cada ser, se dá na interação da pessoa com seu ambiente e
com os outros.
Como a discussão a seguir evidencia, ao longo do curso que se configurou neste
estudo de caso, os estudantes revelaram ter vivenciado um significativo processo de auto-
formação. Além do aprendizado dos conteúdos específicos, evidenciaram reformulações
dos conceitos que portavam sobre a língua inglesa, além de retomadas de posição a
respeito de aspectos importantes do processo de ensino e aprendizagem. Acima de tudo,
no entanto, revelaram ter vivido uma intensa experiência de auto-conhecimento e, a partir
dele, de revisão de seus auto-conceitos.
Os psicólogos da educação Marion Williams e Robert L. Burden, autores de
Psychology for Language Teachers, de 1997, definem auto-conceito como a aglutinação
das percepções e concepções que formamos sobre nós mesmos, que dão origem a nosso
sentido de identidade pessoal. Essa noção, que abarca outras como auto-imagem, auto-
confiança e auto-estima, é constantemente construída e reconstruída, desde nossa primeira
infância, em nossas interações com as outras pessoas e com nosso ambiente. Segundo os
autores, nosso auto-conceito influencia ao mesmo tempo em que é influenciado por nossas
concepções e percepções sobre o mundo e, nessa relação de reciprocidade, ambos
interferem de maneira determinante em nossos estilos, estratégias e inclinações para o
aprendizado. Assim, o auto-conceito dos estudantes é um aspecto relevante de seu
processo de aprendizagem, e se torna um importante objeto de reflexão por parte do
professor.
99
Os estudantes manifestaram, em suas entrevistas e pareceres, terem percebido
mudanças em seus auto-conceitos, assim como em sua atitude geral perante si mesmos e
os outros. Helly, que havia manifestado, na entrevista inicial, temor de não se relacionar
bem com os colegas devido a sua timidez, afirmou na entrevista final: “Eu fiquei menos
tímida e menos retraída, [...] participei da aula”. Já William ponderou: “eu não sou muito de
falar, eu sou quieto [...], mas não é sacrifício falar em aula”, demonstrando ter adotado uma
atitude mais aberta em relação às suas características pessoais, o que lhe permitiu atuar no
grupo.
A concepção transdisciplinar considera que as modificações ocorridas nas pessoas
envolvidas nos permanentes processos de auto-educação e educação do outro não
envolvem apenas seu aparato cognitivo. Segundo Nicolescu25, uma educação
transdisciplinar tenta resgatar a valorização das instâncias afetivas, relacionais, intuitivas e
espirituais de seus protagonistas. Nesse sentido, podemos esperar que os estudantes e eu
tenhamos realizado, no processo educativo desenvolvido através da aprendizagem da
língua inglesa, não só a descoberta do conhecimento como também descobertas sobre nós
mesmos e sobre como nos relacionamos com os outros e com o mundo.
Durante as aulas, procurei fazer com que os conhecimentos prévios e as
características individuais de cada um dos estudantes fossem reconhecidos e valorizados.
Embora contasse com a participação espontânea dos estudantes, procurava não deixar de
lado os que não se manifestavam, e lhes oferecia a oportunidade de também expressar
suas idéias e sentimentos, respeitando-os e valorizando-os mesmo quando se
manifestavam de forma divergente. Esse posicionamento parece ter contribuído para que os
estudantes desenvolvessem a capacidade de reconsiderar suas idéias.
Os estudantes demonstraram também ter se tornado mais alertas para suas
atribuições em sua própria aprendizagem. Em seus pareceres e entrevistas posteriores,
eles mencionaram a importância de seu próprio comprometimento e esforço pessoal, além
da necessidade de um posicionamento questionador e investigativo para o sucesso de seu
25 NICOLESCU, Basarab. Um mundo transdisciplinar. Conferência proferida no I Congresso Gaúchode Recursos Humanos, em Porto Alegre, em 12 de maio de 2003.
100
aprendizado. “O papel do estudante é muito importante”, declarou Helly, “sem ele o curso
não é nada”. “O estudante tem que ter vontade, ânsia de procurar mais, de querer saber
mais”, complementou Fernando.
No início do curso, os estudantes pareciam acreditar que a responsabilidade pelo
planejamento, organização e o monitoramento das atividades de sala de aula eram
atribuições minhas, e que sua atuação se limitava a realizar as atividades propostas. No
entanto, eu procurava chamá-los à participação, solicitando suas contribuições com idéias,
sugestões e exemplos de atividades. Pouco a pouco, no decorrer das aulas, seus aportes
começaram a se tornar cada vez mais naturais e espontâneos, e eles passaram a tomar
decisões a respeito de conteúdos e atividades a serem realizadas tanto em aula quanto
extra-classe.
É possível afirmar que os estudantes tiveram chances de construir responsabilidade
por seu próprio processo de aprendizado e também sobre suas próprias ações. Auxiliar as
pessoas a desenvolver habilidades de auto-orientação, que lhes permitam construir a
autonomia que lhes possibilite caminhar com suas próprias pernas, é uma das atribuições
cruciais do processo educativo, e procurei dedicar a ela uma atenção especial.
A influência de suas expectativas em relação às minhas atitudes e à minha atuação
foi também reconhecida: “Eu fui muito exigente com a professora”, afirmou Anderson em
sua entrevista final, demonstrando perceber que, ao assumir um posicionamento ativo na
sala de aula, estava também interferindo em minha atuação. Segundo a teoria da mediação
de Feurerstein (1991), assim como os professores influenciam os estudantes, o contrário
também ocorre, em uma relação recíproca e recursiva. O aprendiz é um participante ativo
do processo interativo de mediação, em que há modificações em ambas as partes.
Segundo César Coll (1997), a postura ativa do estudante, traduzida em atitudes
como curiosidade, interesse, comprometimento e envolvimento nas atividades, são fatores
que favorecem a aprendizagem e intervêm de modo decisivo na construção do
conhecimento. Para Williams e Burden (1997), um dos fatores mais significativos na
motivação dos indivíduos é seu sentimento de domínio pessoal sobre os eventos que
101
vivenciam. Segundo os autores, os aprendizes que se sentem à frente de seus próprios
atos tendem a buscar informações de maneira ativa e usá-las o enfrentamento de
problemas, tendem ser assertivos e participativos, e a apresentar entusiasmo em relação ao
aprendizado. Essas pessoas tendem também a ser persistentes em sua busca de aprender
e, por se envolverem cognitiva e afetivamente nas atividades, não dependem de
recompensas exteriores para realizá-las.
Ao longo do curso, pude perceber que, à medida que os estudantes se sentiam mais
capazes de assumir responsabilidade por seu próprio processo de aprendizagem – no
planejamento e na realização de atividades de sala de aula e também extra-classe, na
investigação de seus próprios enganos e na avaliação de seus progressos e retrocessos –
eles se demonstravam mais dispostos a se engajar nessas atividades. Enquanto no início
do curso as atitudes dos alunos pareciam ser responsivas, já nas últimas aulas seu
posicionamento se mostrava ativo e questionador.
Para que possamos acompanhar os estudantes nesse processo de tomada de
responsabilidade, é importante que lhes auxiliemos a construir referências que lhes
permitam estabelecer seus próprios objetivos – não só de aprendizagem como também de
vida – e, além disso, a planejar os modos como vão atingi-los. Assim, uma das
prerrogativas do professor se torna a de ajudar seus estudantes em seu auto-
conhecimento: identificar sua atitude e seus sentimentos a respeito da própria
aprendizagem, de suas potencialidades e limitações. Enquanto a incerteza quanto aos
objetivos pode levar a um sentimento de falta de rumo, que pode prejudicar e até mesmo
impedir o aprendizado, a consciência de suas próprias metas oferece aos estudantes a
sensação de poder de escolha, de liberdade e de propriedade que conduzem à
responsabilidade pessoal (WILLIAMS, BURDEN, 1997).
Em Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, Morin (e2002) afirma que
um dos objetivos fundamentais da educação é o desenvolvimento da responsabilidade
humana em relação ao futuro não só da humanidade, mas também do planeta. Essa
responsabilidade, no entanto, não pode ser uma imposição exterior, mas deve emergir da
102
tomada de consciência de cada um de nós a respeito de nossa atuação no mundo e das
emergências dessa atuação. “As interações entre indivíduos produzem a sociedade e esta
retroage sobre os indivíduos” (p. 105). Assim, assumir a responsabilidade sobre nós
mesmos, nosso aprendizado, nossos atos, nosso relacionamento com os outros e com o
mundo escapa aos limites da sala de aula e adquire uma importância global, contribuindo
para o destino do mundo e da realidade.
No decorrer do curso, os estudantes deram mostras de estarem, pouco a pouco,
assumindo disposições para lidar com as incertezas inerentes ao processo de
aprendizagem, de correr riscos, de manifestar inseguranças, de se adaptar a novas
situações e de atuar apesar dos medos. Anderson, por exemplo, ao final da segunda
semana declarou: “Existe às vezes uma certa insegurança em responder certas perguntas
[...], isso ocasiona uma dificuldade na aprendizagem”. Já no final do curso, o mesmo
estudante havia revisto sua posição em relação às suas inseguranças: “Mesmo notando
que ainda tenho dificuldades, estou procurando desempenhar as atividades dentro e fora da
sala de aula”, demonstrando já uma tolerância maior ao sentimento de incerteza. Fabiane,
por sua vez declarou: “Eu tinha aquele medo. [...] Na hora de responder alguns deveres,
tinha palavras que eu não sabia, mas com o auxílio do professor eu não tinha dificuldade
maior”.
Os estudantes, assim, evidenciaram progressos em relação à convivência com a
ambigüidade, com a incerteza e com o risco inerente ao processo de aprendizagem. De
acordo com Hadley (1993), pessoas que têm baixa tolerância à ambigüidade geralmente se
sentem ansiosas e frustradas se a atividade com que estão envolvidas apresenta elementos
desconhecidos. Já pessoas que lidam com naturalidade com a imprecisão são capazes de
operar em um ambiente de incertezas. No início do curso, os estudantes paralisavam frente
à sua própria incerteza: se não sabiam responder uma pergunta em aula ou nas tarefas de
casa, se não tinham certeza se sua contribuição seria ou não “correta”, preferiam se abster
de participar a se arriscar. Aos poucos, dando mostras de elevar sua tolerância à
ambigüidade, os estudantes passaram a se arriscar cada vez mais, e a lidar com mais
103
conforto com as incertezas. Considerando-se a condição sempre instável, sempre mutante
de nossa realidade, uma das prerrogativas mais importantes da educação hoje é auxiliar as
pessoas a desenvolver estratégias para atuar em meio à incerteza.
Segundo Morin (a1999), por se configurar em uma tradução do real, que é uma ação
submetida tanto às possibilidades quanto às limitações de nosso aparato cognitivo, todo o
conhecimento construído implica incerteza e risco, com os quais necessitamos aprender a
lidar para continuarmos construindo saberes. Segundo o autor, aprender a lidar com essas
incertezas é essencial não só no aprendizado mas mesmo na sobrevivência humana.
Outro aspecto importante no processo de auto-conhecimento dos estudantes se
relaciona com a tomada de consciência a respeito do caráter processual de seu
aprendizado, de seus progressos, de suas limitações e dificuldades e, especialmente, da
incompletude de seu conhecimento e da necessidade de se manter aprendendo. “Evoluí
muito desde que eu entrei neste curso”, declarou Vanessa ao final da primeira semana de
aulas. “Estamos aprendendo inglês pouco a pouco”, complementou William.
Um dos princípios da educação transdisciplinar é a concepção do conhecimento da
realidade como estando permanentemente em aberto, o que torna essencial que os
estudantes estejam cientes do caráter inesgotável da busca pelo saber, seja ele específico
ou global. "O conhecimento é transitório, provisional, e relativo [...], o modo único como
cada pessoa atribui sentido a suas experiências" (VON GLASERSFELD, 1995, p. 96).
Acredito que o curso tenha sido bem sucedido nesse aspecto, pois os estudantes, ao final
do período programado de aulas, estavam alertas para o fato de que, apesar da intensa
experiência de aprendizado que acreditavam ter vivenciado, reconheciam que haviam
aprendido pouco em vista do que há para descobrir, e também afirmaram que gostariam de
continuar estudando inglês, o que evidencia uma contradição: ao mesmo tempo que os
alunos consideravam ter construído muitos conhecimentos, estavam cientes de que o que
sabiam era pouco.
Morin nos alerta para os limites do conhecimento humano ao afirmar que o mistério
do real não se esgota no conhecimento. “Nenhum conhecimento conseguiria apreender a
104
realidade por trás ou sob o fenômeno” e por isso “a verdade total, exaustiva ou radical é
impossível” (MORIN, a1999, p. 244). Essa limitação não deve ser vista, porém, apenas
como insuficiência. Ela abre também possibilidades, pois torna o aprendizado sempre
possível. Morin afirma que a consciência das limitações do aparato cognitivo humano e de
suas realizações é “uma aquisição capital para o conhecimento”, pois “o conhecimento dos
limites do conhecimento faz parte das possibilidades do conhecimento e realiza essa
possibilidade” (MORIN, a1999, p. 245).
Também é importante que os estudantes saibam que, além de nosso processo de
aprendizado, o próprio estado do conhecimento está sempre em aberto, na concepção
gödeliana assumida pela transdisciplinaridade (NICOLESCU, 2002). No caso específico do
aprendizado da língua inglesa, foi necessário estarmos atentos ao fato de que, segundo
Morin, a vida da linguagem se alimenta da vida individual e social de seus produtores, das
atividades que integra e das experiências que viabiliza. Além disso, cada língua realiza
trocas com outras línguas e se enriquece com as diferentes histórias, experiências e
criações de outras culturas. É esse dinamismo da linguagem, que favorece a vitalidade de
nossa experiência, “permite a vida do espírito e a vida das idéias” (b1999, p. 202).
Assim, mais do que uma entidade autônoma, para Morin a linguagem é um ser vivo.
“As palavras e as nuanças nascem, degradam-se, morrem”. (MORIN, b1999, p. 201). Não
só as palavras de uma língua, mas as próprias linguagens têm seus ciclos. Segundo
Bondia26, as línguas estão em constante transformação, num permanente processo de auto-
degradação e auto-regeneração característico da vida, sendo usada por pessoas que
também se modificam.
Houve ocasiões em aula em que discutimos esse traço vivo e mutante da linguagem:
a quantidade de palavras novas que são cunhadas a cada ano em inglês – dada a grande
quantidade de países e áreas em que o inglês é utilizado como primeira ou segunda língua
– e também as iniciativas formais e informais de reforma da ortografia e mesmo da
gramática de língua inglesa. Penso que essas discussões tenham contribuído para alertar
26 BONDIA, Jorge Larrosa. Linguagem e educação após Babel. Conferência apresentada na PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, em 4 de setembro de 2003.
105
os estudantes sobre a impossibilidade de um dia chegarmos a esgotar o conhecimento
sobre uma língua e sobre como nos relacionarmos com ela.
Para Morin, aprender é sempre reaprender. O autor define o aprendizado como uma
operação que vai além da aquisição de novas habilidades. “Pode ser aquisição de
informações; pode ser a descoberta de qualidades ou propriedades inerentes às coisas ou
seres; pode ser a descoberta de uma relação entre dois acontecimentos ou, ainda, a
descoberta da ausência de ligação entre eles” (MORIN, a1999, p. 68), mas principalmente
saber como fazer para adquirir essas habilidades e também para modificar o que já
sabemos. Assim, construir novos conhecimentos é, essencialmente, reaprender a aprender,
ou seja, desenvolver estratégias que nos permitam atuar diante do imprevisto.
Nesse sentido, o reconhecimento, por parte dos estudantes, de seus estilos de
aprendizagem, e o conseqüente desenvolvimento de estratégias que tornasse seu processo
de aprendizagem mais autônomo, se tornou crucial no processo. Ao longo do curso, houve
vários momentos para o reconhecimento dos estilos de aprendizagem de cada um e de
explicitação e avanços em relação às estratégias que lhes permitissem realizar uma
aprendizagem mais independente. Assim, os estudantes foram se tornando cada vez mais
auto-orientados na realização de suas tarefas de compreensão e expressão, tanto oral
quanto escrita. Fernando sugeriu que “o que poderia ser trabalhado ainda mais do que já é
são os exercícios de listening [escuta ativa] porque me ajudam na pronúncia”, evidenciando
que compreendia suas necessidades e como atendê-las. Fabiane explicitou seu processo
de construção de estratégias de leitura do seguinte modo: “Eu olhava o material no primeiro
momento e não sabia nada. Aí eu [...] começava a identificar as palavras devagarinho”.
Outro recurso de aprendizagem considerado relevante foi a prática individual em seu próprio
tempo e ritmo. “A minha principal dificuldade hoje é fazer a leitura, [...] a pronúncia”,
reconheceu Anderson ao final do curso, “só eu posso resolver isso: pegar a palavra, saber
que é assim, pronunciar umas quantas vezes até aprender”.
106
Tomando uma expressão de A. Newell e H.Simon, Morin considera o cérebro
humano como um general problem solver27, ou seja, um solucionador de problemas em
geral (MORIN, b1999). Para tal, nosso cérebro dispõe tanto de uma memória genética como
de uma memória cujo repertório se constrói a partir de nossas vivências, e também de
competências para tratar os dados que extraímos do meio através dos sentidos e de
habilidades estratégicas para resolver uma grande variedade de problemas. O objetivo
desse aparato é, além de nos preparar para a vida quotidiana, nos tornar aptos para agir – e
para modificar nossa ação – em situações inesperadas. A estratégia é acionada onde existe
o diálogo com o novo, e onde necessitamos fazer escolhas. Construir conhecimento, na
abordagem complexa, é o permanente desenvolvimento de habilidades cognitivas que nos
permitam nos adaptar a um meio que se modifica a todo instante, além de intervir nesse
ambiente para adaptá-lo a nós.
27 O General Problem Solver (GPS), ou “solucionador geral de problemas” é uma teoria proposta nofinal dos anos 70 do século passado pelos psicólogos Newell e Simon para explicar a resoluçãohumana de problemas expressa na forma de um programa de simulação. Esse programa e oreferencial teórico em que se fundamentava tiveram um impacto significativo nos desenvolvimentosda psicologia cognitiva que se seguiram. Segundo o GPS, o comportamento humano é uma função deoperações de memória, de processos de controle e de construção de regras, ou seja, é umprocessamento de informações. O objetivo principal do GPS era estabelecer um conjunto principal deprocessos que poderia ser usado para solucionar uma variedade de diferentes tipos de problemas(GARDNER, 1995).
107
A educação, na visão complexa-transdiciplinar, é um processo para toda a vida. Um
de seus objetivos é auxiliar os alunos a desenvolver habilidades que lhes tornem capazes
de lidar com um mundo que muda a todo o momento, as chamadas estratégias de
aprendizagem. Morin (b2002) define a estratégia como a arte de utilizar as informações de
que dispomos, em um esforço de reunir algumas certezas para decidirmos sobre um plano
de ação que dê conta da incerteza em meio à qual vivemos. "A complexidade atrai a
estratégia. Só a estratégia permite avançar no incerto e no aleatório” (p. 121), afirma ele,
referindo-se ao caráter complexo – interligado e incerto – de nossa realidade. “Estratégias
de aprendizagem são táticas ou técnicas específicas, observáveis ou não, que o indivíduo
usa para compreender, armazenar, acessar, e usar informações ou para planejar, regular
ou avaliar seu aprendizado” (WILLIAMS, BURDEN, p. 66). Ao desenvolver estratégias, os
estudantes constroem as habilidades necessárias para lidar com as constantes mudanças
no ambiente e para assumir o controle de seu próprio aprendizado.
“Aprender é um processo essencialmente pessoal e individual e duas pessoas não
aprendem a mesma coisa mesmo que se encontrem na mesma situação particular”
(WILLIAMS, BURDEN, 1997, p. 96). Uma vez que os estudantes trazem para o processo de
aprendizagem características e experiências específicas que influenciam a maneira como
constroem seu conhecimento, as estratégias de aprendizagem utilizadas pelos estudantes
são tão pessoais e individuais como o próprio processo de aprendizagem.
No aprendizado de uma língua estrangeira, é comum que os estudantes não se
sintam à frente de seu próprio processo, por desconhecerem suas competências para tal.
Além disso, os aprendizes geralmente não estão cientes das estratégias que usam em seu
processo, e se beneficiariam se fossem auxiliados a tomar consciência delas. Neste ponto
reside a importância da mediação no aprendizado da língua: aos professores cabe
compartilhar a responsabilidade sobre o processo com os estudantes e auxiliá-los na
tomada de consciência e no desenvolvimento de suas estratégias de aprendizagem.
Preparar os estudantes para intencionalmente construir e fazer uso de estratégias de
aprendizado, reaprendendo a aprender, não é uma tarefa fácil. Segundo Williams e Burden
108
(1997), há duas aproximações principais para o desenvolvimento de estratégias de
aprendizagem em sala de aula. A primeira se fundamenta na promoção de momentos
específicos para o ensino e aprendizagem de estratégias. Já a segunda sugere que as
estratégias devem ser ensinadas e aprendidas em um processo de “infusão”, permeando o
processo de aprendizado de conteúdos específicos. É possível que alguns estudantes se
beneficiem mais da primeira abordagem, enquanto que a segunda atende melhor às
necessidades de outros. Frente às alternativas, cabe ao professor tomar decisões
metodológicas abrangentes, de modo a atender aos estilos cognitivos de diferentes
estudantes. Não há soluções simples para a questão de como promover o desenvolvimento
de estratégias de aprendizagem. É, porém, crucial que, como educadores, nos
mantenhamos sensíveis à maneira como os estudantes aprendem e a posição central que
ocupam em seu próprio aprendizado. Além disso, é necessário que o professor acredite no
poder de ensinar a reaprender a aprender.
Segundo Morin (a1999), é no difuso âmbito das limitações, das inseguranças e do
risco que podemos vislumbrar realidades que excedem nossas possibilidades, e tentar
atualizar nossas potencialidades, tornando, através delas, real a possibilidade de conhecer
que ainda é apenas virtual. Porém, embora estivessem cientes de suas insuficiências e
dificuldades, os estudantes não pareciam, ao final do curso, estar seguros a respeito de
seus pontos fortes. Vanessa foi a única estudante a se posicionar com segurança em
relação a esse aspecto, declarando que seu ponto mais forte era a conversação: “Se
alguém chega e me pergunta alguma coisa [...] eu sei responder. Sei entender também”. Os
outros estudantes ou declararam que não conheciam seus pontos fortes ou deram
respostas vagas, o que indica a necessidade de um maior investimento no auto-
conhecimento dos alunos em relação a suas próprias potencialidades.
Foi possível, no entanto, perceber mudanças na confiança dos estudantes em
relação às suas capacidades de aprendizagem. “No começo eu tive um pouco de
dificuldade, mas aos poucos eu estou aprendendo cada vez mais”, confiava William. Em
sua segunda entrevista, ele declarou: “No começo eu não tinha nem idéia do que ia ser o
109
inglês. E agora é uma língua que eu sei”. “Eu ganhei mais confiança, tenho aprendido com
mais facilidade do que eu esperava”, declarou Fernando. “Aprendi a acreditar no meu
potencial de aprendizado”, declarou Vanessa ao final da terceira semana.
Um componente central na motivação para o aprendizado, Segundo Williams e
Burden (1997), é a edificação de um sentimento de competência, ou seja, da crença de que
somos capazes de realizar novos aprendizados. O aprendizado se torna uma experiência
significativa e prazerosa quando os estudantes se sentem competentes e capazes de
aprender. Uma das responsabilidades do professor é promover esses sentimentos nos
estudantes, encorajando sua auto-confiança.
Williams e Burden afirmam que o sentimento de competência é, em grande parte,
determinado por experiências prévias. No caso do aprendizado da língua estrangeira, é
comum que os estudantes cheguem ao curso com auto-conceitos negativos construídos em
experiências anteriores de aprendizagem. Nessas situações – como foi o que aconteceu no
início deste estudo – os estudantes chegam à sala de aula com receios de se expressar na
língua estrangeira, o que pode inicialmente dificultar seu progresso. Feuerstein (1991), por
sua vez, argumenta que muitas vezes a postura e a atitude do professor são responsáveis
por sentimentos de incompetência nos estudantes e por seus medos de correr riscos. Ele
reforça, assim, a necessidade de um esforço do professor para promover a construção do
sentimento de competência por parte dos estudantes.
O psicólogo canadense Albert Bandura28 (1977, citado por WILLIAMS, BURDEN,
1997) menciona em seus trabalhos o conceito de “auto-eficácia”, que define como a crença
em nossa capacidade de aplicar os conhecimentos e habilidades que já possuímos para
atualizar nossas construções. O autor afirma que o sentimento de auto-eficácia – que pode
ser estimulado através de um envolvimento ativo na solução de problemas – interfere de
maneira decisiva em nossas motivações para a realização de qualquer tipo de atividade,
especialmente as educativas.
28 BANDURA, A. R. Self-efficacy: towards a unifying theory of behavioural change. PsychologicalReview, 41, 1977.
110
De acordo com Hadley (1993), a maneira como cada indivíduo percebe o mundo e a
si mesmo ocupa uma posição crucial na construção de conhecimento. Ao longo de nossas
vidas, estamos continuamente enfrentando problemas e tendo que decidir se podemos ou
não resolvê-los. Ao decidirmos que a solução para um problema está fora de nosso
alcance, estamos desistindo de buscar alternativas para lidar com ele. Feuerstein (1991)
propõe que boa parte das barreiras ao aprendizado são auto-impostas devido à falta de
crença em resultados positivos. Nesse sentido, é importante encorajar os estudantes na
busca persistente de soluções para os problemas que enfrentam.
Um componente importante da retomada realizada pelos estudantes, possivelmente
decorrente da construção da sensação de competência, se refere às modificações ocorridas
em suas motivações e em seus sentimentos em relação à língua inglesa e também em
relação a seu processo de aprendizagem. Já em seu primeiro parecer semanal, Fernando
declarou: “Minhas expectativas são boas até o final do curso. Acho que vou alcançar os
objetivos que eu espero”. “Estou adorando o curso”, declarou Helly. “Estou aprendendo
bastante, e estou contente com isso, me sinto motivada para freqüentar as aulas, participar
delas”, disse Fabiane após a segunda semana do curso.
Segundo William e Burden (1997), a motivação é considerada pelos professores
como uma das influências mais significativas no aprendizado dos estudantes. Porém,
afirmam os autores, geralmente os professores têm idéias indefinidas sobre o que motiva os
estudantes, sobre o que lhes deixa satisfeitos a respeito de seu trabalho, e sobre como
podem interferir em suas motivações.
Os autores definem motivação como um estado de excitação cognitiva e emocional –
interesse e curiosidade – que conduz a uma decisão consciente de agir – iniciar e sustentar
uma ação por um período de tempo – com o objetivo de atingir determinados objetivos.
Porém, lembram que a natureza da motivação é multifacetada, e que cada indivíduo se
motiva de maneira única, uma vez que as pessoas reagem de maneiras diferentes, de
acordo com suas características e disposições pessoais, frente a situações que
111
compartilham. Nossas motivações recebem também influências de nosso contexto social e
de nossa interação com pessoas que consideramos significativas.
Assim, sabemos que algumas determinações da motivação são internas, a chamada
motivação intrínseca, e outras externas, a motivação extrínseca. Enquanto que na
motivação extrínseca os motivos para atuar têm a ver com possibilidades de ganhos
exteriores à atividade – tais como a aprovação de pessoas significativas, bons resultados
em um exame, ou a obtenção de prêmios financeiros – na motivação intrínseca a própria
vivência da atividade gera interesse e prazer, e nessa satisfação residem os motivos para a
realização da atividade. Williams e Burden (1997) nos alertam, no entanto, para o fato de
que a distinção entre os dois tipos de motivação não é clara, eles se relacionam
dialogicamente, e a maioria de nossas ações decorre de uma combinação entre eles.
No processo educativo, segundo Williams e Burden, os dois tipos de motivação têm
sua contribuição. Então, quanto mais valor os indivíduos atribuem ao seu envolvimento em
uma atividade ou ao sucesso obtido a partir dessa atividade, mais motivados tenderão a
estar para realizá-la. Cabe ao professor, assim, auxiliar os estudantes a refletir sobre suas
motivações, e em sua conscientização a respeito do valor que atribuem às diferentes
atividades ou ao resultado delas. Desse modo, eles podem compartilhar com o professor as
decisões a respeito do andamento das aulas e da seleção das atividades educativas que
lhes despertem o interesse e lhes envolvam ativamente, contribuindo na construção tanto
individual quanto compartilhada de conhecimentos na sala de aula.
Quando questionados, em suas segundas entrevistas, sobre o que haviam
aprendido ao longo do curso, as respostas dos estudantes foram bastante abrangentes.
Houve menções a aspectos estruturais da língua inglesa, como regras gramaticais e grupos
léxicos, e também traços culturais característicos dos países de língua inglesa. Além disso,
os participantes afirmavam ter aprendido muito sobre si mesmos. Os estudantes também
reconheceram, entre os conteúdos, a emergência de valores como respeito pelo outro e
confiança em si. Assim, os depoimentos dos estudantes evidenciaram a percepção de
112
aprendizagem de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, como proposto por
Coll (1997).
O autor propõe que a educação vá além do ensino de conteúdos factuais – fatos e
dados apresentados aos estudantes para que os memorizem, muitas vezes sem
compreensão, e reproduzam quando necessário – para promover a aprendizagem de
conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.
Os conceitos se originam nas relações significativas estabelecidas entre diferentes
dados e fatos. Isso significa que, na construção de conceitos, é necessário que atribuamos
significados às informações que nos são apresentadas e que estabeleçamos conexões
entre elas para gerar novos sentidos. Construir conceitos, sob esta ótica, é modificar nossas
idéias, concepções e representações como conseqüência de interações de nossos
conhecimentos anteriores com a nova informação. Essa construção é, assim, processual,
pois cada nova tentativa pode nos proporcionar uma nova compreensão dos fenômenos
que nos dispomos a aprender.
Os conteúdos procedimentais, segundo Coll (1997), se configuram como cursos de
ação, caminhos, operações ou séries de operações ordenadas e orientadas para a
obtenção de um resultado desejado. Trabalhar os procedimentos significa, então,
desenvolver a capacidade de saber fazer, ou seja, de atuar, de usar e transpor os
conhecimentos construídos para situações em que eles se fazem úteis e necessários. O
saber fazer consiste em operar tanto com objetos como com informações. Assim, os
conteúdos procedimentais podem se referir à motricidade, como a manipulação de
instrumentos, ou à cognição, que envolve abstrações tais como símbolos, representações,
imagens e conceitos, entre outras.
Podemos definir atitudes como experiências subjetivas internalizadas, tendências ou
disposições construídas e relativamente estáveis a partir das quais avaliamos a nós
mesmos e a realidade a nosso redor, e também segundo as quais nos expressamos e
atuamos. As atitudes possuem três componentes básicos, que são o cognitivo (nossos
conhecimentos e crenças), o afetivo (nossos sentimentos e preferências) e o componente
113
de conduta (ações manifestas e declarações de intenções). Segundo Coll (1997), a
instituição educativa não se limita a ensinar conceitos e procedimentos. Como parte do
sistema cultural de uma sociedade, contribui para preservar e gerar atitudes e valores,
buscando – implícita ou explicitamente – atuar com vistas a um ideal de ser humano, de
escola e de sociedade que inspira a sua atividade e que lhe confere uma identidade. Dessa
forma, as atitudes e os valores se constituem em um projeto compartilhado pela
comunidade escolar que orienta as atitudes e as atividades na escola.
Podemos considerar que as atitudes e os valores permeiam a experiência
educacional e que seu compartilhamento ocorre mesmo que não se constituam em
conteúdos educacionais. Como a maior parte dos conteúdos atitudinais internalizados pelos
estudantes não são ensinados formal ou intencionalmente, Coll urge os educadores a se
conscientizarem sobre os processos de geração de atitudes e valores que ocorrem no
ambiente escolar e no processo educativo. Assim, a inclusão dos conteúdos atitudinais no
currículo escolar, ao mesmo tempo em que amplia as perspectivas pedagógicas dos
professores, se traduz em uma maior complexidade de seu compromisso para com os
estudantes.
Coll ressalta que essa separação é útil apenas para orientar o planejamento de
objetivos de uma aula ou de um curso e a escolha de atividades adequadas para atingi-los.
Na sala de aula, é fundamental termos consciência de que ensinamos conceitos,
procedimentos e atitudes ao mesmo tempo e de maneira interligada, de modo que os
estudantes compreendam os conceitos trabalhados e, sobretudo, possam utilizá-los em
suas realidades e justificar seus usos, o que está em acordo com a concepção
transdisciplinar-complexa de educação, que recomenda que os conteúdos estejam
integrados às vidas dos estudantes de modo que possam deles se apropriar, refletir sobre
eles e usá-los em sua busca por melhor qualidade de vida.
Para Morin, a fonte de todo o conhecimento é simultaneamente a realidade do
mundo e a atividade do sujeito que se dispõe a conhecer (MORIN, a1999). Essas duas
instâncias se relacionam de modo complexo e indissolúvel, em um circuito retroativo, o que
114
significa que o conhecimento humano é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. É objetivo,
por um lado, na medida em que percebemos o mundo como um objeto a ser conhecido. Por
outro lado, é subjetivo porque é construído de modo individual e único no interior de cada
um. Assim, na abordagem transdisciplinar-complexa, o conhecimento, mesmo ao objetificar
a realidade, não se desprende da subjetividade humana.
A relação entre o sujeito e o mundo, segundo o autor, pressupõe “inerência,
separação e comunicação” (MORIN, a1999, p. 227). A inerência, ou a não-dissociabilidade,
decorre da pertença do sujeito que conhece e do objeto a ser conhecido ao mesmo mundo.
É a pertença comum que permite a comunicação entre o sujeito e o objeto, que é condição
para o conhecimento. Contudo, nessa inerência há uma separação necessária entre o
cognoscente e cognoscível, o que constitui uma dualidade insuperável. Se não houvesse a
separação não haveria sujeito ou objeto de conhecimento, ou seja, não haveria necessidade
ou interesse interior para conhecer ou realidade exterior a ser conhecida. A separação
também é fundamental para a interação que permite a construção de conhecimento.
É com base na concepção dual objetiva-subjetiva do conhecimento humano, e nos
princípios de inerência, separação e comunicação que a experiência de aprendizado
realizada pelos estudantes do curso foi abordada aqui. A construção de conhecimento –
compreensão e uso – da língua inglesa foi concebida como um processo ao mesmo tempo
subjetivo, uma vez que é individual e único para cada pessoa, e objetivo, pois tem na
linguagem seu objeto. A edificação de habilidades comunicativas também foi vista aqui
como complementar à des-re-elaboração de nós mesmos e de nossas visões dos outros, da
vida e do mundo, em um processo simultaneamente individual e compartilhado que ocorreu
ao longo de cada encontro do curso. É sobre esses encontros – os eventos educacionais e
interacionais diários, construídos cooperativa e solidariamente – que versa a próxima parte
desta discussão.
115
5 AS AULAS COMO EVENTOS EDUCACIONAIS E INTERACIONAIS
Gudsdorf, em Professores para quê? descreve o encontro entre um educador e seus
estudantes do seguinte modo:
[...] um professor vai começar seu curso. Isso se dá cem vezes por dia nomesmo prédio. Essa reflexão, no entanto, pode não conseguir dissipar ainquietação e levar à angústia. 'Que venho fazer aqui? E que eles vêm fazeraqui, eles todos e cada um por sua parte? Que espero deles? Que esperamde mim?' (GUDSDORF, 1987, p. 33).
O evento da aula, por mais rotineiro e programado que possa ser, não é banal,
“apesar de nossos esforços para descaracterizar o acontecimento, retirando-lhe o que
poderia ter de insólito, de excepcional, portanto de ameaçador” (GUDSDORF, 1987, p. 33).
Uma aula é um encontro entre universos que se contrapõem e complementam, um embate
do qual não saímos iguais ao que éramos quanto entramos. Unidade estrutural do processo
educativo, a aula é o evento em que nossas idéias, crenças, valores, limitações e
potencialidades se realizam e se atualizam, permeando nossas atitudes e nossas
atividades, facilitando ou impedindo o processo de ensino e aprendizagem.
Em suas entrevistas e pareceres semanais, os estudantes consideraram que as
qualidades e propriedades dos encontros diários – as aulas – se constituíram em elementos
decisivos para a aprendizagem. As aulas foram abordadas pelos estudantes tanto sob a
ótica de sua dinâmica – ou seja, a qualidade dos movimentos internos responsáveis pela
evolução do aprendizado – quanto sob a perspectiva de sua atmosfera – isto é, as
propriedades do ambiente social físico e/ou psicológico que oportunizaram a própria
dinâmica. Esses dois traços das aulas – dinâmica e atmosfera – não podem ser
considerados de modo isolado, uma vez que estabelecem entre si uma valiosa relação
recursiva, em que simultaneamente permitem e influenciam a existência e as características
um do outro.
116
Os estudantes revelaram surpresa com o fato de que as aulas foram ministradas em
inglês desde o início do curso e que, mesmo assim, compreendiam tanto os conteúdos
quanto as interações orais após um curto período de familiarização tanto com a língua
inglesa quanto com as atividades. “No primeiro dia eu fiquei assustada porque não entendia
muita coisa, mas depois fui me acostumando”, admitiu Helly.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1999), por um lado,
alertam os professores de língua estrangeira para fatores que podem dificultar, para os
estudantes, o aprendizado do idioma. Entre eles, encontram-se a reação de estranhamento
frente ao novo idioma e a frustração pela pequena capacidade de comunicação. Por outro
lado, Willis (1996) argumenta pelo uso exclusivo da língua estrangeira nas salas de aula em
que ocorre seu processo de ensino e aprendizagem, afirmando que:
se os iniciantes se acostumam a ouvir apenas inglês durante sua aula, eleslogo entenderão e mais tarde aprenderão a falar [...]. Assim, além deaprender itens específicos de linguagem que estão sendo formalmenteensinados, eles também estarão praticando inconscientemente um conjuntode habilidades lingüísticas, como ouvir e captar palavras-chave, ecomeçando a pensar em inglês [...] (p. 1).
Segundo a autora, uma língua é melhor ensinada e aprendida através de seu uso
real do que através de práticas padronizadas e exercícios. Ao longo do curso, busquei me
comunicar em inglês com os estudantes a maior parte do tempo. Nossas trocas usuais, a
comunicação natural que se estabelece entre professor e estudantes e mesmo os
momentos das aulas direcionados para estudos específicos, como a construção de novo
vocabulário e de estruturas gramaticais, além das negociações de procedimentos para as
atividades e de normas para os jogos, foram realizados em inglês. Tomei o cuidado, porém,
de estar atenta às reações dos estudantes para não lhes causar, com a insistência em
estabelecer interações com eles na língua em estudo, sentimentos de incapacidade e de
frustração. Seguindo as sugestões de Willis, complementei minhas palavras com gestos,
expressões faciais e ilustrações. Isso não quer dizer que nós não conversávamos em
português nas aulas. Houve diversos momentos, em que surgiram questionamentos e
117
idéias originais, ou em que discutíamos estilos e estratégias de aprendizagem, em que
nossa comunicação necessitou ser estabelecida em nossa língua materna para fins de
clareza. Procurei seguir uma norma que me parece razoável: utilizar inglês quando possível
e português quando necessário.
No início do curso, quando os estudantes não conseguiam expressar o que
desejavam em inglês, eles recorriam ao português. Ao longo dos encontros, porém, percebi
que eles passaram a utilizar gestos e expressões faciais para compensar a insuficiência de
seus conhecimentos em várias situações diferentes: para expressar dúvida ou insegurança,
para dar instruções aos colegas, para mostrar falhas em seu próprio trabalho ou no dos
outros, entre outros. Nós não tivemos momentos específicos do curso com o objetivo de
desenvolver essa habilidade expressiva, mas acredito que eles me observaram atuando e
acabaram compreendendo, mesmo que intuitivamente, que é possível que nos
expressemos verbalmente com o auxílio da expressão corporal.
Os trabalhos em sala de aula foram considerados motivadores especialmente por
oportunizarem a participação ativa dos estudantes e por se fundamentarem em atividades
que promoviam a comunicação genuína entre eles, que propiciava o desenvolvimento de
habilidades tanto individuais quanto do grupo como um todo. “A gente pode participar mais
do que na escola”, comparou William já em seu primeiro parecer semanal. “Eu me sinto
motivada para freqüentar as aulas, participar delas”, disse Fabiane.
Na concepção complexa, o conhecimento é inseparável da ação. Ele é, ao mesmo
tempo, atividade – o ato da cognição – e o produto dessa atividade (MORIN, a1999). Assim,
o aprendizado, na abordagem complexa-transdisciplinar se dá de modo ativo, em que o
aprendiz é, e se sente, junto com o professor, o protagonista-coadjuvante do processo,
fazendo uso de seus conhecimentos prévios, de suas estratégias e de sua intuição.
Nicolescu (2002) afirma que, para que os indivíduos tenham a oportunidade de
assumir e exercer sua responsabilidade, as estruturas sociais devem gerar condições para
que isso ocorra. O protagonismo dos estudantes foi algo que busquei estimular ao longo do
curso. Em vez de vivenciar a explicitação de estruturas gramaticais, por exemplo, os
118
estudantes tinham a oportunidade de observar – e, muitas vezes construir – exemplos para,
a partir deles, deduzir parâmetros. Também tinham a oportunidade de confrontar suas
hipóteses com outros exemplos à procura de confirmação ou refutação. Acostumei-me a
responder perguntas com “O que tu achas?”, ou a devolvê-las para o grupo. Aceitava e
valorizava suas respostas, que geralmente tinham muito de apropriado à situação e partia
delas para uma explicação mais detalhada, se necessário. Embora no início do curso essa
prática pudesse ser exasperadora para os estudantes, no decorrer das aulas eles se
tornavam mais receptivos a ela.
As opiniões dos estudantes a respeito da característica fundamental da modalidade
intensiva do curso – a concentração da carga horária – foram divergentes. Parte dos
estudantes considerou benéfica a concentração da carga horária. “Tinha que ser manhã,
tarde e noite”, exagerou Fabiane, “o ideal é ter mais tempo porque de manhã podia fazer
uma coisa, de tarde outra, mas claro que este tempo não vai ser o bastante”. “Eu gostaria
que fosse bem mais tempo, mais prolongado”, disse Anderson. Para esses estudantes, as
duas horas diárias de aula pareceram vantajosas. Outra parte dos estudantes se sentiu
diferente em relação à concentração dos trabalhos. “No intensivo, tu não tens aquele
descanso até mesmo para ter um raciocínio”, lembra Fernando, acrescentando: “Eu preciso
de mais tempo para poder completar as tarefas [...], fazer mais pesquisas [...], levar mais
dúvidas”.
Pesquisas realizadas a respeito dos resultados de aprendizagem em cursos
intensivos de línguas estrangeiras (República Checa, 2002) tendem a concordar com ambas
as partes, ao reconhecer que essas modalidades de cursos evidenciam vantagens e
desvantagens tanto para cada estudante individualmente quanto para o grupo de
estudantes. Como vantagens principais, aparecem o visível progresso no aprendizado dos
estudantes e a intensa construção de vínculos entre os membros do grupo – como foi
discutido acima. Já as principais desvantagens são a inflexibilidade do arranjo do curso –
notada por Fernando – e as diferenças individuais, tanto nos ritmos de trabalho quanto no
119
progresso no aprendizado, que se tornam mais marcantes no caso de um trabalho intenso
concentrado em um período de tempo relativamente curto.
Segundo Cañal et al. (1997), as atividades educativas necessitam ser planejadas
para atender tanto aos objetivos previstos para o curso quanto aos tempos e ritmos de
aprendizagem dos diferentes alunos, e esse planejamento se fundamenta em negociações
entre os membros do grupo. Segundo os autores, os trabalhos em sala de aula devem se
caracterizar pelo diálogo e pela maleabilidade, de modo a permitir que cada estudante tenha
oportunidades para se desenvolver segundo seu próprio tempo e ritmo. Embora essa
maleabilidade se torne, em um programa de ensino e aprendizagem estruturado na
modalidade intensiva, mais difícil de ser atingida, ela pode, ainda assim, ser buscada
através do planejamento de atividades individuais em aula intercaladas com as interativas, e
principalmente através da inclusão de tarefas de consolidação e de avaliação do
conhecimento construído a ser realizadas extra-classe.
A oportunidade de avaliação diária de seu próprio trabalho foi apontada pelos
estudantes como um aspecto importante do programa. Na entrevista preliminar ao curso,
Anderson havia expressado sérias restrições ao modo como havia sido avaliado em sua
experiência escolar com as línguas estrangeiras: “davam um conteúdo no quadro, chegava
na prova, davam um conteúdo bem inferior ao que era dado no quadro, e ainda [...] em
dupla, [...] com consulta no livro. Não cobravam, então não instigavam o aluno”. O
estudante demonstrava, a seu modo, uma visão construtiva de avaliação: um desafio
coerente que se configura em uma contribuição no processo de aprendizado dos
estudantes.
No início do curso, foi acordado que a realização de uma avaliação formal escrita e
oral no final do curso seria opcional, mas que o grupo por inteiro deveria realizar atividades
de avaliação e auto-avaliação diárias e semanais. Optei por propor tarefas de casa diárias
como nosso principal instrumento de acompanhamento do progresso individual e do grupo,
seguindo a sugestão de Lesley Painter (2003). Na primeira aula, tivemos uma rápida
discussão a respeito dos diferentes aspectos a serem avaliados – conceituais,
120
procedimentais e atitudinais (COLL, 1997) – e também concordamos que as tarefas de casa
constituíam as atividades de avaliação diária, a respeito das quais os estudantes deveriam
realizar uma reflexão naqueles três âmbitos.
Assim, houve momentos em cada aula dedicados à discussão das conclusões a que
os estudantes haviam chegado em relação às tarefas, das estratégias usadas, das
dificuldades encontradas e dos sentimentos provocados pelas atividades. Nessas
discussões, os estudantes compartilhavam ativamente o que haviam feito e como, e eu
atuava como organizadora das interlocuções e sistematizadora das conclusões, que eram –
via de regra – registradas no quadro-branco. Eu tomava o cuidado de não realizar uma
simples “correção” das atividades, mas as problematizava e questionava os estudantes
sobre diferentes alternativas, propiciando-lhes a oportunidade de rever suas idéias e
procurarem seus próprios enganos.
Jussara Hoffman (1995) afirma que, antes de refletirmos sobre avaliação da
aprendizagem, necessitamos refletir sobre o que é aprender. A autora define o aprender
como a busca do desenvolvimento pleno dos estudantes: seus interesses, sua curiosidade e
também sua autoria como pesquisadores, escritores e leitores. A aprendizagem é um
conjunto de saberes e fazeres que não podem ser somados ou justapostos. Nesse sentido,
ao avaliar, o professor se torna um aprendiz no processo, pois necessita se dispor a
conhecer as estratégias dos estudantes, o modo como eles pensam, atuam e realizam as
atividades educativas para, a partir desse conhecimento, construir condições de intervir no
processo e orientar seus estudantes na continuidade de sua aprendizagem (HOFFMAN,
1995).
Considero importante incluir na reflexão da educadora a responsabilidade dos
estudantes por sua própria avaliação. Os estudantes, assim como o educador, necessitam
conhecer suas estratégias, e seus modos de refletir e agir ao longo do processo
educacional, para que tenham condições de apreciar criticamente seu desempenho e seu
desenvolvimento e, com base nesse conhecimento, traçar planos de ação e de intervenção
para si mesmos. Uma importante conseqüência do acompanhamento de nosso próprio
121
progresso de aprendizagem é o reconhecimento de nossas permanentes mudanças
pessoais como estando sob nossa própria responsabilidade. Considerando o estado de
permanente modificação do mundo, o reconhecimento da mudança como um processo
contínuo pode ser visto como uma das tarefas cruciais da educação. Cabe ao professor,
então, identificar maneiras de auxiliar os estudantes a se tornar mais cientes do seu próprio
desenvolvimento sem depender tanto de uma avaliação do professor.
A auto-avaliação é, assim, uma importante ferramenta na construção da autonomia
dos estudantes e na tomada de responsabilidade sobre seu próprio aprendizado. “A
principal forma de avaliação”, acredita Fernando, “é que tu saias satisfeito com aquilo que tu
foste fazer”. E para acessar sua satisfação em relação a seus objetivos, a auto-reflexão e o
auto-conhecimento são essenciais. As tarefas de casa e o compartilhamento das
conclusões, dos modos de fazer e dos sentimentos envolvidos em sua realização tiveram
como objetivo oferecer aos estudantes uma oportunidade diária de avaliar seu próprio
progresso e de manifestar suas opiniões a respeito dos conteúdos e das atividades
realizadas.
A realização de atividades extra-classe foi considerada também um importante
recurso de aprendizagem. “Eu chegava em casa, fazia os temas e ficava naquela
expectativa para o outro dia”, narra Fabiane, destacando o aspecto instigador das
atividades. “Todo o tempo livre que eu tinha eu usava para revisar a matéria”, afirmou Helly
em sua entrevista posterior ao curso. Anderson, por sua vez, reconhecia que a falta de
tempo para dedicar às tarefas extra-classe lhe impedia de desfrutar mais plenamente da
experiência de aprendizado: “Não consigo um tempo suficiente para fazer as revisões
completas do que foi estudado, e isso vem a acarretar no meu aprendizado uma limitação
que eu não gostaria”.
Segundo Painter (2003), a realização de tarefas de casa é uma parte vital do
aprendizado, pois auxilia os estudantes a internalizar e consolidar os conteúdos trabalhados
em sala de aula, além de ter o potencial de tornar os estudantes mais autônomos, ao
requerer uma postura ativa e reflexiva. Para que essas potencialidades das tarefas de casa
122
se realizem, porém, Painter aponta que elas devem ser estimulantes e instigantes. Os
estudantes necessitam percebê-las como uma atividade significativa e reconhecer seu valor
em seu processo de aprendizado. “As tarefas de casa devem ser uma experiência positiva
que encoraje os estudantes a aprender” (p. 8). Os depoimentos acima sugerem que esses
objetivos foram atingidos, uma vez que os estudantes demonstram ter reconhecido a
relevância das atividades extra-classe na construção de seu conhecimento.
A ludicidade – o trabalho com jogos e brincadeiras, além do clima lúdico geral – foi
mencionada como um importante recurso de ensino e de revisitação de conteúdos. “Se a
pessoa não aprendia de um jeito, aprendia através de jogos, era uma maneira mais fácil
para quem não tinha [...] entendido alguma coisa”, lembra Vanessa. “Houve brincadeiras, e
assim eu acho que a gente vai aprendendo melhor o inglês”, acredita William.
Denominar a espécie humana homo sapiens, afirma Morin (d2002), é uma redução
crassa. Somos homo sapiens, mas somos também demens, economicus, mythologicus,
prosaicus, poeticus, faber, ludens. Em suma, somos o homo complexus. Esquecer de
nossas demais dimensões – além da racional – no processo educativo seria também uma
redução, que mutilaria tanto a experiência de aprendizagem como as próprias pessoas
envolvidas nela. O aprendizado, nessa perspectiva, deve se esforçar por envolver nossas
dimensões de modo integrado, numa tentativa de nos proporcionar uma vivência mais plena
de nós mesmos e de nossas interações com o que nos rodeia. A ludicidade, sob essa ótica,
se configura como um importante componente da educação.
O reconhecimento do valor da ludicidade no processo educativo não é um fenômeno
recente. Segundo Teixeira (1995), já no século XVII Comênius defendia, em sua Didactica
Magna, a prática de jogos educativos, por seu potencial na formação integral de um
indivíduo, em seus aspectos cognitivos, afetivos, motores e sociais.
A ludicidade é um impulso natural dos seres humanos, lembra o autor. Assim, a
realização de atividades lúdicas satisfaz – através de um engajamento espontâneo –
necessidades humanas de prazer e gozo. Os jogos e brincadeiras – ou qualquer outra
atividade que se realiza por prazer e esforço voluntário – envolvem as pessoas de modo
123
pleno. Ao brincarmos, estabelecemos uma relação prazerosa e criativa com a realidade. Ao
jogarmos, estamos pensando, atuando, sentindo, socializando, aprendendo.
Embora a ludicidade tenha um valor educacional intrínseco, ela tem sido utilizada
como recurso pedagógico em situações formais de ensino e aprendizagem no sentido de
proporcionar aos estudantes um modo mais natural e divertido e de interagir com os
conteúdos. As atividades lúdicas, segundo o autor, têm o poder de influenciar as
motivações e os sentimentos dos estudantes em relação aos materiais, ao mesmo tempo
em que – dado seu caráter desafiador – ativam e modificam seus esquemas mentais,
facilitando seu aprendizado.
O lúdico pedagógico, assim, se constitui em atividades que têm como objetivo
despertar o interesse, a curiosidade e a imaginação dos estudantes, estimular a construção
de novo conhecimento e promover uma aprendizagem significativa. "Mais do que um
passatempo, ele é um elemento indispensável para o processo de ensino e aprendizagem.
A educação pelo jogo deve, portanto, ser a preocupação básica dos professores que têm
intenção de motivar seus alunos ao aprendizado" (TEIXEIRA, 1995, p. 49).
Os conteúdos trabalhados ao longo do curso foram considerados significativos pelos
estudantes. “Os conteúdos são bem importantes”, avaliou Helly. “Tudo o que foi aprendido
foi super-interessante”, entusiasma-se Fabiane. Embora essas afirmações pareçam, à
primeira vista, um tanto vagas, elas podem demonstrar a idéia geral que os estudantes
formaram sobre o que aprenderam nas aulas: conteúdos que lhes interessam, que
consideram relevantes, mesmo não sabendo explicitar por quê, o que encontra um dos
fundamentos da concepção transdisciplinar da educação, que é a de oportunizar aos
estudantes condições de atribuir valor e sentido ao que estão estudando.
Em sua teoria da aprendizagem mediada, Feuerstein (1991) identifica diferentes
características no processo mediado de aprendizado. Dentre elas, as que considera as mais
importantes são a significação, a intencionalidade e a transcendência. Consideradas em
relação dialógica (MORIN, a2002), essas características – discutidas a seguir – se tornam
124
congruentes com a concepção de educação transdisciplinar-complexa proposta neste
estudo.
A significação designa o valor e o sentido que os conteúdos e as atividades
educativas assumem para o aprendiz. Para que a educação seja uma experiência
enriquecedora, os sentidos que emergem do processo devem ser pessoais, ou seja, devem
ser autênticos e relevantes para a vida das pessoas envolvidas. Para que as atividades e
conteúdos assumam sua significação, porém, a intencionalidade – que é a compreensão de
porque estão realizando as atividades e como podem realizá-las – também necessita estar
presente. Desse modo, as aprendizagens escolares se revelam úteis na atuação dos
estudantes no mundo.
Ao final do curso, os estudantes demonstraram ter encontrado a significação e a
intencionalidade de sua experiência ao declararem ter desenvolvido novas expectativas e
novos interesses, além de novos objetivos pessoais. "Toda experiência é válida. Cada vez
que tu aprendes coisas novas ou que tu és exposto a coisas diferentes, elas te
enriquecem", disse Fernando. "Hoje eu desejo aprender inglês", disse William, que havia
começado a estudar inglês por insistência de sua família e que havia construído uma
motivação intrínseca ao longo do estudo. Uma das estudantes, em sua entrevista final,
declarou que havia encontrado seu próprio talento como mediadora, ao descobrir que
apreciava compartilhar seus conhecimentos e auxiliar as outras pessoas a aprender. "Eu
descobri que gosto de ensinar quem não entende, quem tem dificuldade. [...] É uma
maneira de eu estar fazendo uma coisa boa", disse Vanessa, revelando compreender o
imenso prazer que existe em interferir de maneira positiva no processo de aprendizagem de
outras pessoas. A educação tem como um de seus principais objetivos alargar a visão dos
estudantes sobre o mundo, a "ampliação ou atualização de horizontes intelectuais", como
coloca o Ministério da Educação e do Desporto (1997). Sob essa ótica, o desenvolvimento
de novas expectativas, de novos propósitos e de novas motivações é essencial para o
caráter permanente do processo educativo.
125
Já a transcendência, na teoria da mediação de Feuerstein (1991) expressa a
qualidade dos conteúdos e atividades que não se esgotam em si mesmos, podendo ser
transpostos para outras situações em nossas vidas, como foi expresso pelos estudantes do
curso. “A gente aprendeu bem como eles falam lá, bem o que a gente precisa”, acredita
Helly. “Abrangeu a maioria das coisas que tu utilizas no teu dia-a-dia. Isso aí é que vale à
pena”, disse Fernando. “Tu estás num grupo de colegas, conversando sobre coisas
normais”, resumiu Anderson.
A transcendência dos conteúdos – sua transposição para a vida dos estudantes – foi
um dos aspectos significativos do trabalho desenvolvido. E, sob esse ângulo, os conteúdos
conceituais talvez tenham sido os menos importantes. Os estudantes aprenderam inglês
(sua estrutura, vocabulário e pronúncia, e como se comunicar com outras pessoas em
diversas situações), mas é necessário considerar que as oportunidades para o uso desses
conhecimentos em suas vidas é limitada no momento presente. Nesse sentido, é possível
que os conteúdos procedimentais e atitudinais tenham sido mais significativos para os
estudantes. Ao longo do curso, eles tiveram oportunidades de rever seu auto-conceito, as
atribuições que têm em seu próprio aprendizado, seus programas e estratégias de estudo e
de comunicação com os outros. Também se tornaram mais cientes de suas habilidades
para atuar de modo cooperativo e compartilhado, e essas são aprendizagens que eles
poderão levar para outras instâncias de suas vidas.
Em relação a esse aspecto do aprendizado, um dos estudantes comentou, em sua
segunda entrevista, que embora estivesse satisfeito com os conteúdos tratados ao longo do
curso, gostaria de ter trabalhado temas mais específicos para sua área de atuação, que é a
informática. “Eu gostaria que tivesse uma parte mais específica na área de informática”,
disse ele. Logo depois, porém, ele ponderou que isso seria difícil de ser feito, considerando
que ele estava em um grupo de estudantes com diferentes interesses e diversas áreas de
atuação. “Mas como eu estou num grupo que abrange várias áreas, então é um curso que
te abre um leque para vários setores da sociedade”, entendeu ele.
126
O ensino de línguas para objetivos específicos é uma abordagem para o ensino de
idiomas estrangeiros em que as decisões quanto aos conteúdos de aprendizagem e à
metodologia de trabalho são tomadas a partir dos motivos e intenções específicos que
levam um estudante ou um grupo de estudantes a querer ou necessitar aprender a língua
(HUTCHINSON, WATERS, 1990), geralmente relacionados com sua área de atuação
acadêmica ou profissional. Assim, os materiais são produzidos e as atividades planejadas a
partir de uma investigação minuciosa das necessidades, dos interesses, dos estilos de
aprendizagem e dos conhecimentos prévios do estudante. O objetivo do curso que se
configurou neste estudo não era o de atender a necessidades e interesses profissionais ou
acadêmicos específicos dos estudantes, mas oferecer oportunidades para a construção de
bases para uma competência comunicativa na língua inglesa, além da vivência dos valores
transdisciplinares. Desse modo, embora os anseios do estudante – fruto do processo de
reconhecimento de seus próprios objetivos de aprendizagem – sejam relevantes, não
chegam a se configurar como uma insuficiência no trabalho realizado.
Esse estudante distinguiu, no entanto, os componentes intencionais e
transcendentes nos trabalhos de sala de aula. “A gente tratou muito do diálogo [...]. Como é
que eu vou me comunicar?”, ponderou ele. Outros estudantes concordaram com ele: “Eu
vim para cá e consegui descobrir que com o verbo to be tu podias fazer frases. E consegui
descobrir [...] as palavras para fazer outras frases, fazer perguntas...”. William, ao dizer: “Eu
pensei que eu ia aprender as palavras, e não tudo numa frase só”, parece sintetizar o
contraste entre as expectativas de aprendizado iniciais do grupo e o que foi vivenciado.
Morin caracteriza a linguagem como uma “máquina de dupla articulação” (MORIN,
b1999, p. 199), o que significa que, embora as menores partes da linguagem – os fonemas
– sejam entidades sem sentido em si, sua associação produz enunciados dotados de
sentido – as palavras. “O essencial ao sujeito da linguagem é que ela tenha significado, ou
seja, que ela esteja em relação com alguma coisa que não seja ela própria” (Russell29, 1969
citado por MORIN, b1999, p. 199). Segundo Morin, a originalidade da linguagem humana
reside no fato de que seus elementos são usados para designar um mundo exterior a ela.
29 RUSSELL, B. Signification et vérité. Paris: Flamarion, 1969.
127
Além disso, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(1999), o ensino de um idioma estrangeiro que visa apenas ao conhecimento
metalingüístico, ou seja, ao conhecimento sobre a língua, deve dar lugar a uma preparação
para situações de comunicação real na vida cotidiana. “Para poder comunicar-se numa
língua qualquer não basta, unicamente, ser capaz de compreender e de produzir
enunciados gramaticalmente corretos. É preciso, também, conhecer e empregar as formas
de combinar esses enunciados num contexto de maneira que se produza a comunicação”
(p. 151). Abrir mão da significação e da contextualização da língua estrangeira em sala de
aula seria o mesmo que ignorar a originalidade da linguagem humana, como colocado por
Morin.
É importante lembrarmos neste ponto que as pessoas constroem seus sentidos e
planejam suas ações a partir de suas experiências de aprendizagem de modo único e –
embora esse seja um processo que envolve intensas interações – a maneira como o fazem
depende fundamentalmente de como elas são. Esse processo recebe as influências do
auto-conceito, das emoções e das motivações de cada um. Diferentes abordagens de
ensino podem ser vistas como diferentes tentativas de auxiliar as pessoas a atribuir sentido
a suas vidas (WILLIAMS, BURDEN, 1997). O ensino, nessa perspectiva, é um processo
facilitador da construção pessoal de significação, intencionalidade e transcendência. Cabe
ao professor, assim, auxiliar os estudantes a perceber o valor e a utilidade que os
conteúdos e as atividades que ocorrem na sala de aula podem ter em suas existências.
Um outro aspecto dos conteúdos que também foi percebido pelos estudantes foram
as discussões das especificidades culturais dos povos que falam inglês como sua primeira
língua. “A gente aprendeu também um pouco sobre a cultura deles”, disse Helly. “A gente
aprendeu como se comportar, como as pessoas dos Estados Unidos agem”, lembra
William, evidenciando os traços procedimentais dos conteúdos interculturais.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1999) afirmam que o
aprendizado de uma língua estrangeira deve auxiliar os estudantes a conceber o mundo a
partir de sua própria cultura, reconhecendo as demais. Assim, embora os estudantes
128
tenham conversado sobre si mesmos e suas vidas, isso não significa que o mundo ao seu
redor tenha sido ignorado. Em diferentes momentos do curso, discutimos os costumes e a
cultura de vários povos do planeta, e o que eu buscava era oportunizar aos estudantes o
estabelecimento de conexões de semelhança e diferença em relação à sua própria
realidade, tentando, nesse processo, construir uma postura de rejeição a posições
dogmáticas e discriminatórias em relação a diferentes estilos de vida e manifestações
culturais.
Morin (b1999) vê a cultura como os saberes coletivos acumulados por um grupo
humano: as crenças, visões de mundo, experiências, competências, princípios e modelos
construídos de maneira interativa e solidária pelos indivíduos que compõem aquela
sociedade. As sociedades, por sua vez, se formam, conservam e desenvolvem através das
interações entre os indivíduos – mediadas principalmente pela linguagem – que resultam
em suas manifestações culturais. Desse modo, segundo o autor, “cultura e sociedade estão
em relação geradora mútua” (p. 19), o que significa que os indivíduos em suas interações
produzem a cultura, que, ao instituir normas que organizam a sociedade e governam os
comportamentos individuais, retroage sobre os indivíduos, normatizando seu
comportamento.
Segundo Williams e Burden (1997), uma das funções principais da linguagem é
definir seu ambiente e sua cultura, de modo que possamos formar uma imagem dele e de
nossa contribuição nele. Assim, o sucesso no aprendizado de uma língua estrangeira é
afetado, em parte, pelo sentimento e pela atitude que temos em relação às comunidades
que falam aquela língua. Segundo Hadley (1993), ao compreenderem pelo menos parte das
convenções que ditam as práticas discursivas na língua estrangeira, os estudantes têm
melhores condições de entender o uso e a estrutura da linguagem.
Sob um outro enfoque, ao entrar em contato com a cultura dos falantes da língua
estrangeira que estão aprendendo, identificamos diferenças em relação à nossa própria. O
conhecimento de outras culturas e línguas pode nos auxiliar, por contraste e por
congruência, a desenvolver uma consciência mais profunda das nossas próprias
129
manifestações. Sob essa ótica, quanto melhor pudermos compreender o contexto cultural
em que a linguagem que estamos aprendendo se desenvolve, melhor compreenderemos as
diferenças e semelhanças entre aquela linguagem e a nossa própria, e maior facilidade
teremos de assimilar as peculiaridades da linguagem. Daí a apreciar essas diferenças é um
passo que deve ser monitorado pelo educador.
Também é necessário lembrar que, na relação em anel recursivo que nos conecta à
nossa cultura, a cultura tem o poder tanto de abrir quanto de fechar as potencialidades de
construção de conhecimento dos indivíduos e da sociedade (MORIN, b1999). Ao nos
oferecer a linguagem, os paradigmas, a lógica, os métodos e o saber acumulado, ela abre
as portas para nossa elaboração do novo. No entanto, ao nos impor as normas, os tabus,
os mitos e principalmente a “ignorância de nossa ignorância” (p. 20) a cultura pode nos
fechar para a construção de novos saberes. A educação, assim, tem a atribuição de alertar
os estudantes tanto para a abertura quanto para o fechamento propiciados por nossa
cultura, para que tenhamos condições de refletir sobre esse antagonismo que é também
complementar.
É importante também que estejamos comprometidos com o desenvolvimento de
uma abertura para a compreensão e a apreciação intercultural. Morin (b1999) nos alerta
para os perigos do que ele denomina o imprinting cultural: certas características culturais
que nos são transmitidas pelos ambientes sociais em que convivemos – família e escola,
entre outros – e que carregamos conosco como uma marca, um tipo de normatização que
se impõe sobre nossos comportamentos, pensamentos, visões de mundo, valores e
opiniões, determinando, pelo menos em parte, a maneira como nos posicionamos frente ao
que é diferente de nós. “O imprinting cultural determina a desatenção seletiva, que nos faz
desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças e o recalque
eliminatório que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas convicções” (p. 30).
“Notícias sobre faxinas étnicas na Europa Oriental, evidências de crimes de ódio
contra vários grupos étnicos e sociais e contínuos conflitos entre facções culturais ao redor
do mundo revelam a necessidade de compreensão e aceitação mútua entre os povos do
130
mundo” (HADLEY, 1993, p. 356), ou seja, a necessidade de nos desvencilharmos, pelo
menos em parte, de nosso imprinting, de modo a nos deslocarmos de nosso ponto de vista.
Neste contexto, a valorização da diversidade étnica e cultural é uma das mais altas
prioridades da educação, para que as novas gerações aprendam a viver em paz e harmonia
em um mundo cada vez mais interdependente. A integração entre o ensino e a
aprendizagem de línguas estrangeiras e integração cultural podem oferecer contribuições
significativas para o desenvolvimento da sensibilidade dos estudantes para uma
compreensão global do mundo, e é essencial que os educadores estejam atentos a essas
possibilidades.
Segundo Hadley (1993), muitos educadores temem abordar a diversidade cultural
em sua sala de aula por considerar que seus conhecimentos são parcos e escassos ou por
temerem atitudes e reações que os estudantes possam manifestar. No entanto, acredito
que, mesmo que os professores tenham pouco conhecimento sobre as diferentes culturas
do mundo, o mais importante é que se mostrem sensíveis à diversidade cultural e assumam
uma atitude aberta em relação às diferenças. Mais importante do que portar conhecimentos
factuais, assumir uma postura transcultural permite que o professor promova a valorização
da diversidade e influencie as posturas e as atitudes dos estudantes.
Nicolescu (2002) define a cultura como a emergência das interações entre os seres
humanos que habitam uma determinada área geográfica e histórica: seus sentimentos,
esperanças, crenças e dúvidas. Cada experiência cultural é a realização das
potencialidades do grupo humano, do local e do tempo em que foi originada, e a atitude
transdiciplinar busca sua valorização na pluralidade aberta e na unidade complexa que a
fundamenta. Uma abordagem transdisciplinar para a diversidade cultural, segundo o autor,
busca a abertura das diferentes manifestações culturais para o que lhes atravessa e
transcende, para os valores humanos compartilhados, e para a postura que assume que
nenhuma cultura constitui um locus privilegiado a partir do qual as outras possam ser
avaliadas. Busca, assim, “um novo sentido de igualdade entre seres humanos, [...] o direito
131
inalienável de cada ser de encontrar seu próprio lugar. A fraternidade humana consiste em
auxiliarmos uns aos outros a encontrarmos este lugar” (Nicolescu, 2002, p. 94).
Um aspecto importante a ser destacado nos depoimentos dos estudantes é a
coerência que foi identificada entre conteúdos desenvolvidos e atividades propostas.
Fabiane, em seu segundo parecer semanal chamou a atenção para “as atividades
dinâmicas e sempre a respeito dos conteúdos diversificados”. Essa observação sugere que
os estudantes percebiam as conexões existentes entre os temas propostos e as atividades
selecionadas para desenvolver esses temas.
O uso natural de uma linguagem ocorre em determinados contextos, e as produções
discursivas se inserem em circunstâncias e situações particulares. O comportamento
lingüístico autêntico não consiste na produção de palavras ou frases soltas, mas no uso
delas para a criação de um discurso com sentido (HADLEY, 1993). Assim, as atividades de
aprendizado em uma sala de aula que busca auxiliar os estudantes a construir seu
aprendizado da língua estrangeira de modo natural e autêntico devem ser planejadas na
tentativa de promover um uso real da linguagem.
A contextualização natural e autêntica da linguagem pode ser buscada através do
desenvolvimento de atividades comunicativas e abertas que tentem reproduzir ou simular,
na sala de aula, situações com as quais os estudantes se deparariam na “vida real”. Isso
não significa, porém, que não devamos enfatizar também a construção de estruturas
formais precisas na língua estrangeira. Assim, nossa meta deve ser a realização de tarefas
que promovam uma conexão entre conteúdo e forma na produção discursiva dos
estudantes. “Os estudantes devem ser estimulados a usar a linguagem de forma precisa,
apropriada e coerente” (HADLEY, 1993, p. 77). Daí a necessidade de planejarmos
atividades que conectem aspectos formais, funcionais, organizacionais e sócio-lingüísticos
da língua estrangeira, como foi percebido pela estudante.
Alguns estudantes se declararam surpresos ao descobrir, nas aulas, eventos e
relações que não sabiam existir. “Na parte da árvore genealógica, eu nem sabia que eles
132
tinham aqueles parentes”, disse Fabiane. “A maioria dos conteúdos eu nem tinha idéia de
que existiam em inglês”, surpreendeu-se Anderson.
Um dos fundamentos para uma abordagem transdisciplinar para a educação, a
chamada “educação in vivo”, segundo Nicolescu (1997), é sua orientação para o
permanente encantamento. O processo educativo deve seduzir os estudantes, instigá-los,
estimular sua curiosidade e sua imaginação, motivá-los a realizar suas próprias descobertas
e, então, compartilhá-las com seus colegas. Para que nos motivemos para realizar
descobertas, é necessário que nossa curiosidade seja ativada (WILLIAMS, BURDEN,
1997).
Os seres humanos são naturalmente curiosos. Quando estimulados, gostamos de
aprender coisas novas e nos engajamos ativamente no processo. De acordo com Williams e
Burden (1997), possuímos uma orientação inata para o envolvimento em uma tarefa pela
própria tarefa, desde que os resultados sejam incertos e que possamos construir
expectativas, uma vez que essa incerteza contribui para nossa motivação. Infelizmente,
muitos dos exercícios escolares, por sua natureza repetitiva, mecânica e previsível,
contribuem para asfixiar a curiosidade natural dos estudantes, que vão se tornando cada
vez mais apáticos e indiferentes aos estímulos oferecidos pelas atividades.
A curiosidade dos estudantes pode ser alimentada se conseguirmos apresentar a
eles situações incongruentes e discrepantes em relação às idéias e crenças que trazem
para a sala de aula, estimulando-os a questionar e refletir sobre seus conhecimentos já
consolidados. Também podemos fazer das atividades educativas circunstâncias abertas
cujos resultados – que dependem da contribuição original de cada estudante – são incertos
e podem ser surpreendentes. Segundo Nicolescu (2002), “o único caminho para o
reencantamento do mundo é o que explora a capacidade infinita de nos maravilharmos” (p.
143), e é esse maravilhamento que a educação transdisciplinar tenta resgatar.
Os estudantes, ao longo do curso, deram mostras de não ter aprendido apenas
conteúdos relacionados às diferentes competências comunicativas. “Eu aprendi a gostar de
inglês”, disse Fabiane, em sua entrevista posterior ao curso, em parte surpresa e em parte
133
emocionada. “Respeitar todo mundo, da escola e de fora” foi um dos aprendizados mais
marcantes na visão de William.
Segundo Nicolescu30, um dos grandes diferenciais de uma abordagem
transdisciplinar para a educação – em relação às abordagens disciplinares – é a vivência de
valores. “A vida resiste a todo dogma e todo totalitarismo. A atitude transdisciplinar, assim,
pressupõe tanto o pensamento quanto a experiência interior, tanto a ciência quanto a
consciência, tanto a eficácia quanto a afetividade” (NICOLESCU, 2002, p. 87-88). O autor
defende uma educação que se assume como não-neutra, que tem o objetivo explícito de
participar na formação de pessoas lúcidas, reflexivas, críticas, participativas e
transformadoras de sua realidade, uma vez que acredita que essa é a única revolução
possível nos dias de hoje.
Segundo Williams e Burden (1997), um dos elementos mais fortes que os
professores trazem para o processo de ensino e aprendizado é sua visão de mundo e de
educação, que interfere em suas ações na sala de aula. “Os professores são influenciados
por suas crenças que, por sua vez, estão estreitamente conectadas a seus valores, suas
visões de mundo e as suas concepções a respeito de seu próprio lugar nele” (p. 56). Essas
crenças, mais do que o próprio conhecimento construído, costumam influenciar a maneira
como os professores planejam suas aulas, se relacionam com os estudantes e tomam
decisões em sua prática pedagógica. As tarefas e as interações educativas são
manifestações das teorias que embasam, implícita ou explicitamente, consciente ou
inconscientemente, a prática pedagógica do professor. Aí reside a importância da
permanente reflexão do professor sobre suas percepções, crenças, ideais e valores mais
arraigados, uma vez que a maneira como o professor media o processo educativo depende
dessa reflexão.
Nicolescu (2002) afirma que “é o espírito do pesquisador [educador] em qualquer
que seja a disciplina que é transdisciplinar” (p. 122) e que a pesquisa ou o ensino em
qualquer área do conhecimento pode ser animado pela atitude transdisciplinar adotada
30 NICOLESCU, Basarab. Um mundo transdisciplinar. Conferência proferida no I Congresso Gaúchode Recursos Humanos, em Porto Alegre, em 12 de maio de 2003.
134
pelas pessoas envolvidas. Assim, no processo educativo, se o professor cultiva os valores
transdisciplinares – integralidade, integração, abertura, reconciliação entre posições
aparentemente antagônicas, questionamento de dogmas e de totalitarismos e busca de
realização – e se esforça por apoiar neles sua prática, é possível que venha a influenciar
não só o processo de aprendizagem, mas também a visão de mundo de seus estudantes e
o modo como atuam na realidade.
O artigo 13 da Carta da Transdisciplinaridade afirma que a ética transdisciplinar
rejeita qualquer atitude que recuse o diálogo e a discussão. “O conhecimento compartilhado
deve conduzir a uma compreensão compartilhada baseada no respeito absoluto pelo
coletivo e pelo individual” (NICOLESCU, 2002, p. 151). A postura ética assumida pela
transdisciplinaridade, assim, prima pelo respeito construído através do diálogo entre os
diferentes membros de uma comunidade e também entre comunidades diferentes.
Nicolescu (2002) sustenta que nossas sociedades, fundamentadas tão solidamente
na busca da eficiência utilitarista, devem resgatar a afetividade que foi aos poucos sendo
relegada a planos cada vez mais desimportantes. Sem desprezar o valor da primeira, o
autor sugere que foi o crescente desequilíbrio entre a eficiência e a afetividade que causou
nossa desconexão em relação ao universo, à natureza e à nossa própria condição humana,
o que hoje ameaça a sobrevivência de nossa espécie.
A busca de uma concepção de educação que alie a eficiência – resultados de
aprendizagem que possam ser percebidos por nossos estudantes e que os deixem
satisfeitos com seu próprio trabalho, com o de seus colegas e com o nosso – e a
afetividade, que é a conexão respeitosa e reverente que pode existir entre as pessoas, e
entre elas e os componentes de seu ambiente, é um dos objetivos da transdisciplinaridade
que parece ter sido alcançado pela experiência que se constituiu neste estudo.
Em seus depoimentos escritos e orais, os estudantes demonstraram atribuir um
valor significativo ao ambiente seguro e acolhedor – que permitia que participassem das
atividades e corressem riscos de errar sem temores – como um importante componente dos
trabalhos de sala de aula e como uma influência significativa na qualidade de sua
135
experiência de aprendizagem. “A gente se sente bem na aula, não tem vergonha de
participar, não tem medo”, disse Helly. “Não é aqueles cursos que a gente fica
envergonhado de perguntar. A gente pode perguntar se não entendeu alguma coisa”,
afirmou Vanessa.
O aprendizado não ocorre no vácuo (WILLIAMS, BURDEN, 1997). O conhecimento
é construído pelos indivíduos em um contexto particular – ou numa variedade de contextos
sobrepostos – como resultado de interações sociais que, de maneira às vezes positiva, às
vezes negativa, mas sempre poderosa, influenciam o processo de desenvolvimento global
dos envolvidos no processo. “A importância de condições ambientais apropriadas para o
aprendizado não pode ser subestimada” (p. 188).
Além disso, segundo os autores, “aprender uma segunda linguagem é aprender a
ser uma outra pessoa social” (p. 115). A experiência de aprender uma língua estrangeira,
devido a sua natureza essencialmente interacional, envolve a adoção de novos
comportamentos, o que ocasiona não só um impacto significativo na natureza social do
estudante como também – pelas modificações nas interações com os outros – a alteração
de seu auto-conceito.
Coll (1997) afirma que os estudantes desenvolvem atitudes positivas ou negativas
em relação a determinado componente curricular não somente em função dos conteúdos
desenvolvidos, mas também em função do ambiente gerado durante a aprendizagem.
Assim, uma vez que o ambiente físico da sala de aula e a natureza das interações
construídas ali interferem no aprendizado individual e coletivo, o estabelecimento de uma
atmosfera apropriada para o aprendizado se torna tão importante quanto os próprios
conteúdos de que os estudantes se apropriam. Um contexto apoiador estimula a motivação
para aprender e encoraja as pessoas a expressar sua individualidade e a desenvolver seu
potencial, criando condições motivacionais significativas. Uma das atribuições mais
importantes do professor, então, é a de estabelecer um ambiente físico apropriado ao
aprendizado e, acima de tudo, monitorar o tipo e a qualidade das relações que os
estudantes desenvolvem entre si e com o próprio educador. “Para um aprendizado
136
significativo, é crucial que os professores estabeleçam em suas salas de aula uma
atmosfera em que a auto-confiança dos estudantes possa ser construída, em que erros
possam ser cometidos sem medo, em que os estudantes possam experimentar com a
linguagem sem embaraço, em que as contribuições sejam valorizadas, e em que as
atividades realizadas conduzam ao sentimento de sucesso e não de fracasso” (p. 73).
Um ambiente seguro e amistoso, assim, surge como um elemento importante em
uma experiência positiva de aprendizagem. No caso do aprendizado comunicativo de uma
língua estrangeira, que envolve a permanente exposição dos estudantes, a negociação de
significados entre uma língua e outra, e o risco de cometer erros, esse componente se torna
ainda mais relevante. A vivência educativa dos estudantes se torna mais intensa a partir do
momento em que eles reaprendem a aprender a partir de seus sucessos e fracassos. Mas
para isso, o ambiente deve promover a construção de segurança em suas próprias
capacidades. É importante lembrar, no entanto, que o ambiente em si pouco tem a nos dizer
a respeito das interações que ali ocorrem e de suas interferências no processo de
aprendizagem dos envolvidos. Cada indivíduo constrói suas próprias percepções em
relação ao ambiente. E são essas percepções que necessitam ser conhecidas e
acompanhadas pelo professor.
O ambiente de sala de aula foi considerado também livre e natural, tanto em relação
ao desenvolvimento das atividades quanto no que dizia respeito ao comportamento dos
estudantes. “Foi tudo espontâneo. Não tinha aquela coisa de responder porque era
obrigado”, conta Fabiane. “Tu estás em ambiente de aulas, mas ao mesmo tempo parece
que tu estás em um grupo de colegas, conversando sobre coisas normais”, define
Anderson.
Esse clima natural e espontâneo mencionado pelos estudantes foi construído ao
longo do curso. As aulas e as atividades foram planejadas de modo que os estudantes –
embora estivessem seguindo um certo roteiro de conteúdos – pudessem se apropriar
daquelas funções e daquele vocabulário, integrar os conhecimentos, torná-los seus e
significativos para suas vidas. Assim, os estudantes falavam sobre si mesmos, suas
137
famílias, seus amigos, sua rotina, suas preferências, eventos do mundo e de sua própria
vida, e também expressavam curiosidade sobre os colegas, como ocorreria em uma
conversa entre amigos.
Os estudantes tiveram oportunidades também de expressar – como lembrou
Vanessa em seu depoimento transcrito acima – como se sentiam em relação aos
conteúdos, a seu processo de aprendizado e também a diversas situações e eventos, e
porque se sentiam daquela maneira, no início em português, mas nas últimas aulas já em
inglês. A própria qualidade de sua expressão cresceu ao longo do curso à medida que o
grupo se consolidava como tal, e suas interações se tornavam mais significativas. Os
estudantes passaram a explicitar e, principalmente, a examinar e questionar suas opiniões,
valores e crenças frente às dos colegas. Muitas vezes, pude perceber que os estudantes
refletiam sobre suas concepções, repensando-as. Outras vezes, embora continuassem
pensando como pensavam, reconheciam outras idéias válidas, embora diferentes das suas,
e as tratavam com respeito, em uma atitude que valorizava tanto as interações quanto as
individualidades.
Houve, ao longo das aulas, também diferentes momentos de incentivo à imaginação,
tanto nas simulações quanto nas discussões naturais de sala de aula. Vivemos em uma
cidade pequena e afastada dos grandes centros de cultura e lazer, o que tende a limitar a
imaginação e as expectativas das pessoas em relação ao que podem ser, experienciar e
aprender. Desse modo, torna-se ainda mais importante que os estudantes percebam que
mundo é repleto de possibilidades, e está ao nosso alcance para que possamos conhecê-lo
e explorá-lo. Para isso, porém, necessitamos ter essa perspectiva, almejar e planejar de
modo mais amplo e também ter acesso a iniciativas educacionais que possibilitem a
construção de uma identidade e uma cidadania planetárias.
Segundo Morin (e2002), um dos objetivos da educação é auxiliar os estudantes a
compreender que pertencem, ao mesmo tempo, a uma comunidade local, enquanto
cidadãos de seus bairros e cidades, e a uma comunidade planetária, enquanto cidadãos
terrestres. Como tal, necessitamos participar de processos interativos múltiplos e distintos,
138
mas solidários entre si, o que significa que nossas ações e inações entram no jogo dialógico
das relações entre os elementos da realidade e afetam nosso planeta, quer estejamos
cientes disso ou não. Assim, é necessário que a educação contribua no desenvolvimento da
capacidade de pensar o contexto terrestre, o global, o multidimensional e o complexo.
Os estudantes reconheceram, em seus depoimentos, o desafio que estavam
vivenciando com as aulas e com os conteúdos, especialmente na primeira semana: “no
começo eu tive um pouco de dificuldade”, disse William. “Estou em fase de transição”,
declarou Helly em seu primeiro parecer escrito, referindo-se às dificuldades que enfrentava
para realizar as atividades em aula.
Embora eu estivesse sensível às dificuldades que os estudantes enfrentavam com
as aulas – em inglês e com a dinâmica fundamentada na participação ativa dos estudantes
– apostei que, uma vez familiarizados com a metodologia de trabalho, os estudantes se
beneficiariam com desafios prazerosos que instigassem a busca de compreensões cada
vez mais abrangentes. As atividades do curso – geralmente problematizadoras – foram
preparadas de modo a provocar a curiosidade dos estudantes para o que estava por vir e
também de modo a lhes oferecer oportunidades de realizar descobertas e se encantar com
elas.
Embora legitime os fatores físico-químicos do aprendizado – ao considerar que a
aptidão para aprender está ligada à “plasticidade bioquímica do cérebro” (MORIN, a1999, p.
69) e que o conhecimento adquirido inscreve-se na forma de propriedades associativas
entre os neurônios – Morin não limita a eles a determinação do aprendizado. Além de
considerar que o conhecimento se desenvolve de modo solidário e interativo, ou seja, em
nossas relações com os outros, ele destaca a contribuição do ambiente, que nos oferece
estímulo ao aprendizado na forma de incógnitas e problemas a ser resolvidos. Assim, um
ambiente rico em estímulos e problemas a serem analisados e resolvidos permite e provoca
a emergência de nossas potencialidades de aprendizado.
De acordo com von Glasersfeld (1995), a vivência de desafios de aprendizagem é
essencial não apenas para o processo educativo, mas para a vida de um modo geral. O
139
pensamento do autor converge com o que Morin (a1999) afirma sobre a contribuição dos
desafios na aprendizagem: vivemos em um meio repleto de incertezas e – na presença
delas – nos mantemos em um constante processo de aprendizado. Simultaneamente, é a
capacidade de construir novos conhecimentos que garante nossa adaptação às
permanentes mudanças nas condições em que vivemos, ao mesmo tempo que interferimos
nela para que se ajustem a nós. É essa relação recursiva entre desafio e aprendizado que
nos capacita a mudar para nos adaptarmos a nosso ambiente e, simultaneamente,
modificá-lo, adaptando-o às nossas próprias mudanças.
Nos processos educativos formais, afirma von Glasersfeld, para que os estudantes
se envolvam em sua aprendizagem, é importante que os professores lhes ofereçam
desafios, de modo que sejam encorajados a sempre dar passos à frente. O autor afirma
que uma abordagem construtiva para a educação é colocada em prática através da
apresentação de temas, conceitos e tarefas na forma de problemas a serem resolvidos
cooperativa e interativamente. Além disso, como um passo na direção da autonomia,
acredito ser importante que os estudantes estabeleçam seus próprios desafios, auxiliando o
professor a planejar atividades educativas que motivem o envolvimento do próprio
estudante.
Um aspecto importante do pensamento de von Glasersfeld diz respeito à satisfação
que um ambiente problematizador pode proporcionar no processo de aprendizagem. A
solução de problemas, defende o autor, além de um significativo recurso educacional, é um
elemento que pode tornar o processo prazeroso. Essa parece ser a percepção evidenciada
pelos estudantes do curso. Mesmo considerando o caráter desestabilizador das aulas, eles
declararam que se sentiam motivados e se divertiam, demonstrando que é possível uma
relação interativa entre desafio e conforto que estimule os estudantes sem intimidá-los.
“Quando tu vês, [...] passou o tempo e tu já aprendeste aquilo ali. Não se torna uma aula
cansativa”, disse Anderson. “As aulas são divertidas e cheias de uma energia muito gostosa
que nos dá ânimo e vontade de aprender”, acreditava Helly.
140
A chamada educação in vivo, defendida pela abordagem transdisciplinar
(NICOLESCU, 1997), tem como um de seus propósitos a busca do “permanente
encantamento”, um estado de arrebatamento perante a vida, com seus desafios e
limitações, mas também com suas possibilidades e potencialidades a serem desvelados,
sem jamais serem exauridos. No processo educativo, esse encantamento se traduz no
resgate do prazer e da alegria de aprender, tornado possível a cada aula pela instigação da
curiosidade e da criatividade, e pela oportunização de desafios prazerosos que impulsionem
à descoberta de si mesmos e do mundo, em uma postura de permanente busca da
compreensão.
Em um processo de ensino e aprendizagem coerente com a transdisciplinaridade, as
aulas buscam se configurar como eventos significativos, encantadores e transformadores.
Os encontros entre os estudantes, o professor, os conteúdos, as estratégias e as atividades
– em seu movimento entre o planejado e o emergente – objetivam oferecer um tempo e um
espaço para que sentidos e significados sejam desconstruídos e reconstruídos, para que
aprendizados sejam realizados e atualizados e para que compreensões sejam ampliadas e
aprofundadas dentro de cada um de nós e – especialmente – em nossa interação com os
outros.
É no estabelecimento de conexões e vínculos que se fundamenta a
transdisciplinaridade: vínculos na realidade, conexões entre a realidade e indivíduos e
ligações entre indivíduos. É sobre as ligações entre as partes envolvidas neste estudo que
discorre a próxima etapa dessa discussão: a tomada de consciência do pertencimento a um
todo que ocorreu ao longo do curso.
141
6 A TEIA DE RELAÇÕES ENTRE AS PARTESE A CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA DO TODO
Morin (c2002) afirma que uma organização humana deve ser pensada não de
maneira reducionista mas articuladora, não simplificante mas multirramificada, e que essa
abordagem deve comportar as idéias de relações recíprocas e de ação e retroação entre as
partes dessa organização.
Permeando a teia de componentes do processo de ensino e aprendizagem
vivenciados em sala da aula, os relacionamentos estabelecidos pelos membros do grupo –
estudantes e eu – conosco mesmos, entre nós e com os conteúdos de aprendizagem
emergem como um elemento-chave no estudo realizado. Ao longo do curso, os estudantes
deram mostras de ter construído não só fortes vínculos entre si e comigo, mas
especialmente de terem desenvolvido uma compreensão da influência desses
relacionamentos e das forças deles resultantes em seus processos individuais de
aprendizagem.
É importante lembrar que os estudantes não traziam consigo visões positivas de
suas experiências prévias de aprendizado em grupo. Em suas entrevistas iniciais, eles
mencionaram lembranças de falta de comprometimento, de manifestações de
individualismo e mesmo de escárnio por parte dos grupos de que já haviam feito parte. “O
papel do grupo é todos ajudarem a todos”, afirmava Anderson, para logo acrescentar: “só
que isso não acontece, tem muito individualismo”. Assim, um de meus esforços durante o
curso foi o de edificar na sala de aula um ambiente que valorizasse as interações entre os
membros do grupo, e que pudesse proporcionar aos estudantes uma experiência
cooperativa e compartilhada de aprendizado.
Em seu livro sobre interações na sala de aula, Hadfield (1992) descreve um grupo de
sucesso como aquele em que a atmosfera geral é integradora, o que leva seus membros a
conceber a si mesmos como parte de um todo. Os componentes evidenciam atitudes de
apoio mútuo que permeiam as relações do grupo – de modo que se sentem seguros para
142
expressar sua individualidade. Assim, eles se manifestam e escutam uns aos outros,
respeitando seus colegas mesmo quando discordam de suas posições. Por se sentirem
seguros e aceitos no grupo, seus componentes confiam uns nos outros e cooperam na
realização das atividades, conseguindo trabalhar juntos de maneira produtiva. Embora essa
seja uma situação ideal, acredito que é possível de ser buscada, especialmente através do
estabelecimento de um contexto – como o colocado por Hadfield – positivo e integrador.
No início do curso, a interação mais significativa dos estudantes ocorria comigo, e a
comunicação entre eles acontecia como parte das tarefas da aula. A participação voluntária
dos estudantes era reduzida e havia os que se mostravam resistentes ao trabalho com seus
colegas em pares e em pequenos grupos. Aos poucos, ao longo das interações necessárias
para a realização das tarefas, pude perceber que eles começaram a voluntariamente
cooperar, a se auxiliar mutuamente e a chamar a atenção dos colegas para falhas em seus
trabalhos.
Pouco a pouco, os estudantes construíram, em grupo, confiança em seus parceiros
e na própria capacidade de aprender, o que lhes rendeu segurança para superar suas
dificuldades à medida que elas eram identificadas. Suas interações passaram a ser mais
naturais, e logo eles começaram a compartilhar dúvidas e conclusões sobre as tarefas de
casa mesmo antes de entrar em sala de aula.
A consciência de totalidade, ausente no início, foi sendo construída à medida que os
trabalhos avançavam. “Existe [...] insegurança em responder certas perguntas por minha
parte e a dos colegas, e isto ocasiona uma dificuldade na aprendizagem”, disse Anderson,
demonstrando estar atento não só às suas necessidades, mas também às de seu grupo.
“Os meus colegas e eu estamos aprendendo inglês pouco a pouco”, já dizia William ao final
da segunda semana, evidenciando reconhecer integração e solidariedade no processo de
aprendizagem que vivenciava. Nesse processo, os estudantes estabeleceram uma relação
de parceria que influenciou sua experiência de aprendizagem. Na última semana de aulas,
eles faziam perguntas aos colegas durante os trabalhos em pares ou pequenos grupos, em
143
vez de fazê-las a mim, o que demonstrava a autonomia e a complementaridade construída
no grupo.
Segundo Feuerstein (1991), há três elementos sociais inerentes às relações
mediadas de aprendizagem, que são o compartilhamento, a individualidade, e a sensação
de pertencimento. Compartilhar e trabalhar cooperativamente é uma parte vital de nossa
existência social. Portanto, é importante que aprendamos e ensinemos como interagir de
forma cooperativa e compartilhada, nos preparando para contribuir na construção de uma
realidade que tenha como fundamentos a confiança e o respeito mútuos. Além disso,
sugerem William e Burden (1997), estruturas cooperativas de trabalho fazem emergir uma
orientação moral, pois motivam os estudantes com base em um senso de compromisso
com o resto do grupo.
Segundo Williams e Burden (1997), diversos estudos têm acumulado evidências de
que trabalhos em pares, pequenos grupos ou no grande grupo na sala de aula auxiliam os
estudantes a construir interações compartilhadas. Além disso, essas atividades interativas
constituem um importante aspecto de uma abordagem comunicativa para o ensino e
aprendizagem de uma língua estrangeira. Assim, atividades cooperativas desenvolvem
tanto o conhecimento da linguagem como a habilidade de atuar junto a outras pessoas.
Assim, a maior parte das atividades planejadas para o curso envolveu trabalhos em
pares, em pequenos grupos e no grupo como um todo. Embora os estudantes tenham
resistido a essa estrutura cooperativa no início do curso, ao final da experiência a postura
comprometida e solidária do grupo foi mencionada pelos seis estudantes, revelando o
quanto esse aspecto do trabalho foi considerado relevante em seu aprendizado. Também o
apoio e o auxílio mútuos foram considerados importantes no decorrer do curso. “Todo
mundo respondia, todo mundo fazia os temas de casa. [...] Se tu não sabias, eles te
ajudavam”, disse Fabiane, o que Vanessa complementa: “Todo mundo gostava de
aprender”. “Todos ali estão prestando atenção no assunto. Além de ajudar o outro, ninguém
atrapalha o outro, todos aprendem”, disse Anderson, para revelar: “As coisas que eu não
144
sabia, eu perguntava para os outros”, demonstrando a relação de confiança e de auxílio
mútuos que se estabeleceu entre os colegas.
Os estudantes revelaram estar cientes da complementaridade da experiência de
aprendizagem que vivenciaram. Declararam que suas potencialidades, limitações, saberes
e não-saberes eram compartilhados sem receios, e que esse envolvimento foi fundamental
em seu aprendizado. “Muitos deles também tinham dúvidas que eles levavam para a sala
de aula, então tu pegavas um pouquinho daquilo”, considerou Fernando, “então tu acabas
aprendendo um pouco com as dúvidas e até mesmo com o que eles já sabem”. Anderson
parece concordar com Fernando, quando declara: “Através dos outros alunos eu conseguia
descobrir também o conteúdo”.
Ao mesmo tempo em que consideraram importantes os traços de interatividade,
cooperação e compartilhamento que caracterizavam as atividades de sala de aula, os
estudantes também apreciaram a valorização de sua individualidade. “Eu pensei que fosse
ser que nem um colégio [...]. Mas aí chegando aqui eu vi que era personalizado. Pessoa por
pessoa [...]. Tu aprendes bem mais porque tu és cobrado”, afirma Anderson, conectando o
acompanhamento individualizado à sua motivação para os estudos.
As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Letras (2001) recomendam que os
professores de línguas – tanto as estrangeiras como a nossa própria – procurem estar
cientes dos conhecimentos prévios dos estudantes, da diversidade e heterogeneidade
existente nos grupos e também de seus interesses, expectativas e necessidades. Durante o
curso, os procedimentos de sala de aula, através das atividades propostas e da atmosfera
criada, procuravam fazer com que a individualidade dos estudantes fosse valorizada e
expressa através da língua estrangeira. Nesse aspecto, o pequeno número de estudantes
no grupo foi bastante influente, possibilitando um conhecimento mais profundo das
representações e inclinações de cada um.
Durante as aulas, também houve momentos de trabalho individual anteriores ao
compartilhamento das conclusões, para que cada estudante tivesse a oportunidade de
construir suas próprias concepções antes de interagir com os colegas. Esse tipo de
145
exercício de aprendizado individualizado gera no contexto formal de ensino e aprendizagem
uma ênfase no auto-desenvolvimento, monitorado pela comparação do conhecimento e das
habilidades atuais com os anteriores (WILLIAMS, BURDEN, 1997). Nesse tipo de estrutura,
o sentimento de sucesso está relacionado com o próprio esforço, e requer um grande
conhecimento de cada estudante por parte do professor e de si mesmo por parte do
estudante.
Morin afirma que a aprendizagem decorre de interações cognitivas e afetivas dos
seres com seu meio. Essas interações são incorporadas pelo aprendiz através da criação
de um mundo interior, ao mesmo tempo uma recriação do mundo exterior e uma auto-
criação (MORIN, b1999). Embora compartilhemos nossas auto-produções através da
linguagem, estabelecendo processos de cooperação e co-evolução, cada um de nós
conserva sua autonomia e sua diversidade em relação ao outro. Na concepção complexa de
aprendizagem, a identidade, a individualidade e a autonomia, embora relativas e
inseparáveis da dependência do meio e dos outros, ocupam lugar fundamental no processo
de auto-educação.
Segundo Williams e Burden (1997), “ao mesmo tempo que aprendem a cooperar, as
pessoas necessitam ser indivíduos, sentir que podem legitimamente pensar e sentir
diferentemente de outros, desenvolver e exercitar sua própria personalidade, [...] o que
significa uma consciência crescente de seu próprio lugar, de sua contribuição em um mundo
social” (p. 78). Assim, faz parte das prerrogativas do educador encorajar em cada um de
seus estudantes o senso de individualidade que possa promover um sentimento interior de
valor pessoal.
Os estudantes trazem para o processo de aprendizagem características individuais –
tais como personalidade, habilidades, motivações, estilos e estratégias de aprendizagem –
e também um conjunto de diferentes conhecimentos e experiências anteriores que afetam o
modo como constroem seus sentidos e realizam suas aprendizagens (WILLIAMS,
BURDEN, 1997). A construção de sentido é essencialmente pessoal. Desse modo, para
146
promover uma experiência de aprendizagem significativa, é importante que os professores
identifiquem e compreendam as características individuais de seus estudantes.
Na perspectiva transdisciplinar, a busca da realização plena de cada indivíduo em
suas potencialidades e nas suas diferentes instâncias se configura como o trans-
humanismo, e é um dos objetivos primeiros do processo educativo. É importante lembrar
que o trans-humanismo busca não a homogeneização – considerada destrutiva da riqueza
residente na diversidade humana – mas a unidade na variedade entre as pessoas.
É necessário lembrarmos também que, em um grupo, as singularidades, as
experiências prévias e as aprendizagens dos diferentes membros se interrelacionam e –
embora sejam individuais e particulares – entram em um jogo dialógico que interfere na
elaboração solidária de aprendizagens. Torna-se, assim, essencial que as diferenças
individuais sejam vistas não como obstáculos a serem superados na construção tanto
individual quanto integrada do conhecimento, mas como um enriquecimento da experiência.
“Não tinha aquela coisa de um saber mais do que o outro. Era tudo de igual para igual”,
declara Fabiane, deixando entrever que mesmo que houvesse – como é inerente à
experiência em grupos – diferenças entre os conhecimentos e habilidades individuais, isso
não impedia os relacionamentos entre os estudantes. “Cada um era diferente do outro,
cada um aceitava o conteúdo de uma maneira diferente”, lembrou Anderson. E dessas
diferenças emergia a complementaridade que compõe as interações que originam o todo.
“Ao mesmo tempo em que se sentem indivíduos, as pessoas necessitam sentir que
pertencem a uma comunidade ou a uma cultura” (WILLIAMS, BURDEN, p. 79). O
sentimento de pertença facilita as interações pessoais que são essenciais ao processo de
aprendizagem. Os estudantes deram mostras de ter construído esse sentimento de
pertença ao longo do curso. “A gente se sentia em casa aqui”, declararam Vanessa e Helly
em suas entrevistas posteriores ao curso, revelando sentir que pertenciam ao ambiente da
sala de aula e da escola.
Como mediadores, os professores têm a responsabilidade de promover, em suas
salas de aula, esse sentimento e essa consciência, que têm implicações tanto para o
147
indivíduo, quanto para o grupo, assim como para a escola. Além disso, ao se
conscientizarem de que são membros ativos e responsáveis dentro de seu grupo, os
estudantes desenvolvem condições de transpor esse senso de pertença para sua vida em
comunidade, o que contribui para sua construção de cidadania participativa.
A tríade inerência-separação-comunicação que relaciona os sujeitos ao objeto de
aprendizado, segundo Morin, possibilita também a construção e o compartilhamento de
saberes no interior de um grupo ou sociedade. Essa relação permite o intercâmbio e a
verificação dos conhecimentos construídos no grupo (MORIN, a1999) e contribui para a
preservação tanto das vidas individuais quanto da sociedade por inteiro. E esse
compartilhamento parece ter ocorrido no caso estudado, em que os membros do grupo, em
sua relação de pertencimento-apartamento-interação uns com os outros, construíram
conhecimentos em sua relação dialógica (MORIN, a2002): concorrente e antagônica, uma
vez que individualidades se encontravam e se contrapunham, mas também complementar,
uma vez que supriam insuficiências individuais.
Outra das críticas às experiências prévias no aprendizado de idiomas estrangeiros
manifestadas pelos estudantes em suas entrevistas anteriores ao início do curso se dirigia
aos professores responsáveis pelo ensino de inglês e espanhol. Os estudantes
questionavam sua qualificação, suas atitudes e mesmo sua ética, manifestando descrença
em sua capacidade de promover vivências significativas de aprendizado. “Na oitava série,
aprendendo ou não aprendendo tu passavas de ano. [...] O método da professora não
estimulava”, criticou Fabiane. “A professora deixava a desejar. A gente conseguia até colar
nas provas. E se tu não saías bem ela te dava uns pontinhos para tu completares tua
média”, denunciava Anderson.
Esses estudantes, ao questionarem não só a metodologia de trabalho, mas também
as atitudes de seus professores de língua estrangeira, não estavam apenas manifestando
insatisfação com seus resultados de aprendizagem, atribuindo-os ao que consideravam ser
o despreparo de seus professores. Eles estavam denunciando uma conduta que julgavam
inadequada e anti-ética.
148
O filósofo espanhol Fernando Savater (2002), embora reconheça que não há
consenso sobre como a ética pode ser ensinada nas escolas, acredita que os valores éticos
devem ser transversais a toda a educação, e que os professores têm responsabilidade
tanto na oportunização de reflexões quanto na exemplificação de atitudes éticas. Na
infância e na adolescência, segundo o filósofo, os exemplos e as atitudes são fundamentais.
“Nessa idade é possível aprender a refletir com pequenos exemplos e narrações que
abordem problemas éticos: como se pensa sobre determinado assunto, como se resolve
algumas questões” (p. 47).
Esses estudantes, assim, traziam para o estudo expectativas negativas em relação
ao ensino de línguas estrangeiras, frutos de suas experiências anteriores. Quando
questionados, nas primeiras entrevistas, sobre as atribuições do professor, a idéia mais
recorrente explicitada pelos estudantes era a de que o professor está na sala de aula para
“tirar as dúvidas dos estudantes”, mas que muitas vezes não está capacitado para tal.
Assim, uma de minhas preocupações foi, ao longo do curso, oferecer aos estudantes uma
oportunidade de refletir sobre o conceito que já haviam construído sobre os professores de
idiomas estrangeiros.
No livro The Essence of Good Teaching, de 1984, Seymour Ericksen descreve um
estudo em que jovens estudantes revelavam o que consideram ser um professor capaz:
“um instrutor inspirador que é preocupado com seus estudantes, um acadêmico ativo que é
respeitado por seus colegas, e um profissional organizado e eficiente que é acessível a
seus estudantes e colegas” (p. 47). Já Brown e McIntyre31 (1983, citados por WILLIAM,
BURDEN, 1997) reportam a opinião de outro grupo de estudantes sobre o que
consideravam ser um bom professor: um profissional capaz de demonstrar talento e
conhecimento pessoal, explicitar os objetivos de aprendizagem e suas expectativas em
relação aos estudantes, apresentar as atividades de modo interessante e motivador, facilitar
a compreensão dos estudantes, auxiliá-los com suas dificuldades, criar uma atmosfera
tranqüila e agradável em sala de aula e, ao mesmo tempo, controlar o grupo, desenvolver
31 BROWN, S., MCINTYRE, D. Making sense of teaching. Buckingham: Open University Press,1983.
149
uma relação pessoal e madura com os estudantes, e encorajá-los a construir altas
expectativas em relação a si mesmos.
William e Burden mencionam os componentes do comportamento dos professores
que consideram essenciais em sua contribuição para um processo significativo de
aprendizagem: entusiasmo, postura positiva e construtiva, orientação para o êxito, incentivo
e valorização das idéias dos estudantes, busca de variedade nas atividades de aula, clareza
na apresentação dos conteúdos, ensino de conteúdos bem estruturados e orientação das
atividades de sala de aula e das respostas dos estudantes. Os autores ressaltam, porém,
que embora seja possível identificar tanto as características quanto o comportamento de um
bom professor, estabelecer um plano de ação para outros professores a partir desses
elementos tem se mostrado um desafio insuperável.
Não há uma maneira de ensinar que possa ser considerada a mais correta, afirmam
Williams e Burden (1997). O ensino, assim como o aprendizado é uma permanente
construção e reconstrução de sentido, a partir das situações com que o professor se
depara. Existem professores competentes em um amplo espectro de personalidades,
crenças, valores, experiências prévias e estilos de trabalho. Ao mesmo tempo, o que um
grupo de estudantes considera um educador adequado pode decepcionar um grupo
diferente. Assim, acredito que cabe ao professor investigar as motivações, as preferências,
os estilos de aprendizagem, as inclinações e os valores de seu grupo de estudantes para
melhor trabalhar com eles.
Tanto os pareceres semanais quanto as entrevistas posteriores ao curso revelaram
que os estudantes identificaram em sua professora, ou seja, em mim, características que
apreciavam, e que, de certo modo, contrastavam com suas expectativas, tais como a
criatividade e o bom-humor. “A professora é super-legal e criativa”, declarou Helly. “No
começo eu achei que os professores seriam mais rígidos, mais sérios. É uma ótima
professora, comunicativa, bem-humorada”, declarou William, com certa surpresa.
As atividades planejadas para o curso, geralmente comunicativas e abertas, e
geradoras de resultados muitas vezes inesperados, contribuíram para essa impressão dos
150
alunos. As simulações, por exemplo, exigiam que os estudantes interagissem em situações
que reproduziam a vida real e se manifestassem de forma inesperada, o que oferecia às
atividades um caráter genuíno e ao mesmo tempo imprevisível. Assim, é possível que a
criatividade e o bom-humor que os alunos atribuíram a mim partissem deles mesmos e de
sua atuação na sala de aula. A atividade em si – ou eu mesma – não era necessariamente
criativa, mas estimulava os alunos a explorarem sua própria atividade criadora.
Segundo Williams e Burden (1997), o professor costuma, mesmo de maneira não
intencional, influenciar com seu comportamento as motivações dos estudantes em relação
às atividades. De um modo geral, os estudantes identificaram meu interesse por seu
aprendizado, reconhecendo a disposição para compreender e lidar com suas dificuldades, o
que consideravam relevante no êxito de seu aprendizado. “A teacher é dinâmica e
comprometida com seus estudantes”, declarou Fabiane após a primeira semana de aulas.
Já Vanessa acreditava que a atenção que recebia era muito importante em seu progresso:
“A professora é muito atenciosa e é por isso que eu a cada dia estou evoluindo”. “São bons
professores, estão sempre nos ajudando”, diz William, invertendo as visões tradicionais de
professor e estudante: de protagonista no processo de ensino e aprendizagem, o professor
passa ao de auxiliar dos estudantes, que tomam para si a responsabilidade por seu
desenvolvimento. Em uma mensagem final, Vanessa lembrou: “Tu foste dedicada. Se a
gente precisasse, tu explicavas de novo. Tu não deixavas a gente sair de lá zero”.
Williams e Burden (1997) afirmam os estudantes são bastante sensíveis ao
comprometimento demonstrado pelo professor em relação às suas atividades e a seus
estudantes, como foi evidenciado nos depoimentos dos participantes do curso. Ao sentir e
demonstrar cuidado32 em relação aos estudantes – suas características, dificuldades,
potencialidades – além de comprometimento e até mesmo paixão pelo trabalho, um
32 Segundo Leonardo Boff (1999), o cuidado se constitui em uma atitude responsável que podemosassumir frente ao que consideramos importante, uma relação afetuosa e respeitosa que podemosestabelecer conosco, com os outros e com o mundo a nosso redor. O cuidado – um consenso mínimoem que podemos nos amparar para adotar uma atitude protetora para com a vida – é uma força quetem o poder de se opor à entropia, que é o desgaste sofrido gradativamente pelos elementos naturaisaté sua morte térmica. Segundo o teólogo, o cuidado faz parte da constituição humana: "o serhumano é um ser de cuidado, mais ainda, sua essência se encontra no cuidado” (p. 35) e necessitaser resgatado como ética mínima e universal, para que possamos ter a chance de preservar aherança que recebemos do universo e da cultura e garantir nosso futuro.
151
educador está compartilhando com eles mais do que seus valores profissionais, mas
também sua atitude valorativa perante as outras pessoas e a vida.
Os estudantes demonstraram acreditar que uma das atribuições mais importantes do
professor continua sendo a realização da transposição didática, ou seja, a transformação de
tópicos inertes e algumas vezes herméticos em conteúdos significativos e compreensíveis
para os estudantes. “A gente não consegue entender as coisas, e a professora tem que
explicar”, afirma Helly, explicitando a expectativa de ter em mim uma tradutora dos
conteúdos. Nosso conhecimento se constitui, segundo Morin (a1999), na elaboração de
traduções dos elementos e eventos da realidade. Às vezes, essa tradução necessita ser
mediada por um outro, como é colocado pela estudante. “O papel do professor é procurar
ensinar [...] de uma forma melhor”, disse William, referindo-se ao traço facilitador do
aprendizado do estudante que ele acreditava ser uma de minhas atribuições.
Segundo Perrenoud (1999), a transposição didática é um conjunto de adaptações,
realizadas pelos educadores, que transformam a cultura construída e preservada em uma
sociedade – seus conhecimentos, práticas e valores, entre outros – em objetivos e
programas escolares, em conteúdos de aprendizagem e em conhecimento construído pelos
estudantes. A transposição didática, assim, traduz os saberes acadêmicos em conteúdos
didaticamente assimiláveis, uma prática que não é neutra nem isenta de ideologias.
Uma vez que o acesso dos estudantes aos saberes consolidados por sua sociedade
se dá principalmente através dessa mediação realizada pelo professor, discutir a
transposição didática faz emergir a urgência de abordar a postura auto-reflexiva e auto-
crítica que deve permear as práticas dos educadores. Segundo Marlene Grillo (1997), a
docência se configura como fonte de conhecimento, na medida em que – por se tratar de
uma forma de investigação e de experimentação – constrói saberes próprios, não apenas
do ponto de vista metodológico como também teórico. Nesse sentido, é essencial que os
profissionais docentes se mantenham atentos às idéias que possuem e que lhes possuem
(MORIN, e2002), às suas limitações, ilusões, cegueiras e auto-enganos, contra os quais o
melhor antídoto é a racionalidade, que é o pensamento que se pensa, a reflexão que se
152
reflete e se abre a novas maneiras de ser, agir e pensar. Ao procurarmos constantemente
manter um diálogo com a realidade, podemos evitar pelo menos parte de nossas auto-
falácias, o que nos possibilita realizar uma transposição didática menos dogmática e
totalizante, e mais aberta a posições diferentes das nossas.
Os estudantes consideram também que minhas atitudes interferiram na modificação
de seus sentimentos em relação ao aprendizado da língua inglesa. “Ela auxiliou a ter
vontade de gostar de inglês. [...] Auxiliou todos a gostarem e a ver que querem aquilo
mesmo”, disse Fabiane em sua entrevista final, sugerindo que, como afirmam Williams e
Burden (1997), a maneira como os alunos interpretam o comportamento do professor
influencia seus resultados cognitivos e afetivos de aprendizagem.
A relação dos estudantes com seu professor interfere em seu processo de
aprendizagem, sustentam Williams e Burden (1997). Através de suas atitudes, suas
palavras e suas decisões, ele pode organizar um ambiente propício ao aprendizado,
demonstrar interesse no desenvolvimento de seus estudantes, influenciar suas motivações,
auxiliá-los no reaprender a aprender, e na construção de sua confiança em si mesmos,
além de interferir nos sentimentos que os estudantes desenvolvem a respeito de sua própria
aprendizagem. Professores que demonstram habilidades de liderança, além de
comportamento afetuoso e compreensivo em suas interações com os estudantes, tendem a
gerar neles atitudes mais positivas em relação aos conteúdos com que trabalham.
Essa responsabilidade exige uma atitude constantemente atenta e auto-reflexiva por
parte do professor, uma vez que ele necessita tanto considerar singularidades dos
estudantes quanto monitorar suas relações interpessoais na sala de aula. A qualidade da
interação entre professores e estudantes é pivotal, ressaltam Williams e Burden (1997). É
através dessas interações que atitudes e mensagens a respeito dos mais diferentes
aspectos do processo de ensino e de aprendizagem são compartilhadas. Essas interações
são o próprio veículo para a prática educativa.
O professor na posição de membro experiente do grupo também foi referenciado
pelos estudantes, que reconheceram o valor do compartilhamento de suas experiências
153
para seu aprendizado. “O professor é o que tem a experiência”, afirmou Fernando, “ele vai
contar as experiências que ele teve, e aí com a experiência tu consegues aprender mais
ainda”.
Feuerstein (1991) sugere que nosso processo de aprendizado é influenciado pela
intervenção de pessoas mais experientes que nos são significativas. O autor se refere a
essas figuras importantes em nosso desenvolvimento como mediadores, e às experiências
vivenciadas com eles como experiências mediadas de aprendizado. Os mediadores têm a
incumbência de – a partir de suas vivências e experiências prévias – selecionar e organizar
os estímulos que consideram apropriados, e também de apresentá-los das maneiras que
acreditam ser adequadas para a promoção da aprendizagem. Eles também influenciam as
tentativas que fazemos de responder a esses estímulos, orientando e encorajando nossas
respostas, e explicitando porque consideram algumas reações mais apropriadas que outras.
Esse processo, segundo o autor, não é uma seqüência linear de eventos, mas um
desenvolvimento dinâmico, de influências recíprocas, cujo foco é a construção de
autonomia por parte do aprendiz, através da elaboração de conhecimentos e das
habilidades e estratégias que lhe permitam aprender a enfrentar problemas, participar
ativamente na sociedade e na cultura, e atender a exigências cada vez mais complexas e
geralmente imprevisíveis. Nesse processo, os aprendizes pouco a pouco se independizam
de seus mediadores, e se tornam cada vez mais responsáveis pelo seu próprio
aprendizado.
No processo educativo, o estudante tem seu aprendizado mediado pelo professor,
que se assume como parte experiente que tem a atribuição de orientar suas construções e
elaborações, compartilhando com eles não só suas vivências e conhecimentos construídos,
mas também suas atitudes e visões perante a realidade.
É importante, neste ponto, voltar a ressaltar a necessidade e a importância de uma
atitude permanentemente atenta do professor – e de um posicionamento aberto que se
esforça para combater totalitarismos e dogmatismos – em relação às suas crenças e
valores, com as quais ele contamina, através de sua prática pedagógica, o processo de
154
aprendizado dos estudantes. Também é importante que o professor auxilie os alunos a
tomar consciência de suas próprias ilusões. Morin (e2002) nos chama a refletir sobre os
riscos de erros e de ilusões presentes em todo o conhecimento, e nos clama a enfrentá-los
no processo educativo. “O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão
seria subestimar o problema da ilusão” (p. 19). Considerando a onipresença desses riscos
inerentes à nossa busca pelo saber, diz o autor, devemos buscar a lucidez através da
abertura, da reflexão e da auto-crítica em relação a nossos próprios posicionamentos.
Cabe aqui observar que, embora a mediação tenha como objetivo a construção de
autonomia por parte dos aprendizes, de um certo modo ela se configura em uma atitude
protetora em relação à parte considerada menos experiente da relação. Segundo Williams e
Burden (1997), embora o professor não diga aos estudantes que conceitos construir ou
como construí-los, ele pode, através do uso da linguagem, tentar impedir elaborações que
considera inadequadas, e que sabe, por experiência, que os estudantes tenderão a tentar.
Ao agir desse modo, o professor pode impedir a reflexão crítica e criativa que poderia
inclusive levar a novas formulações por parte dos estudantes.
Durante o curso, assumi em diferentes momentos essa postura de amparo em
relação aos estudantes – embora não concorde com ela. Na tentativa de lhes fazer sentir
seguros, e de lhes “poupar” de frustrações, eu me adiantava em relação às suas dúvidas,
tentando adivinhar o que lhes apresentava dificuldades. Esse impulso – uma evidência da
contradição entre crenças e práticas – vai contra o princípio transdisciplinar de busca de
tolerância e de estratégias para lidar com as incertezas e as dúvidas onipresentes no
conhecimento, configurando-se como um obstáculo à construção da autonomia.
Nesses momentos, e em muitos outros, revelei minhas contradições e insuficiências.
Houve ocasiões em que os estudantes me fizeram perguntas que eu não soube responder,
e necessitei consultar um dicionário ou outro material de referência. Procurei fazer essas
consultas na presença deles, para que eles percebessem que, mesmo após mais de duas
décadas de dedicação ao aprendizado da língua inglesa, continua havendo espaços para
155
novos aprendizados. E procurei compartilhar meu conforto em relação às minhas limitações
com meus estudantes.
Desse modo, fui considerada pelos estudantes como passível de insuficiências e,
neste ponto, a abertura para o aprendizado cooperativo entre os estudantes e para a
participação do grupo foi considerada fundamental. “Coisas que tu não conseguiste passar
para nós, os alunos faziam uma pergunta e daquela pergunta tu conseguias responder. O
papel do professor não é somente ensinar. Também tem que entender e pode até aprender
com os estudantes”, disse Anderson em sua entrevista final, demonstrando uma visão do
traço de recursividade existente entre o professor e os estudantes na aprendizagem.
É importante não só que, como educadores, estejamos cientes de nossas próprias
carências e contradições, mas principalmente que nos mantenhamos abertos a revisões em
nossas concepções e atitudes. Os professores não detêm todo o saber e não estão sempre
corretos em suas abordagens. Assim, a concepção tradicional de escola, em que o
professor é a fonte de todo o conhecimento é incompatível não só com a concepção
transdisciplinar de educação, como com a própria realidade.
Os educadores, na concepção complexa-transdisciplinar, se abrem para a
perspectiva de reaprender continuamente, em uma atmosfera de aprendizado ativo,
pensamento crítico e descoberta colaborativa, em que professores e estudantes interagem
para juntos extrair sentido do mundo. A concepção do professor, nesse sentido, se
reestrutura. Passamos a atuar como conselheiros, facilitadores, consultores. Mas, acima de
tudo, nos tornamos parceiros de nossos estudantes na contínua construção, desconstrução
e reconstrução de nós mesmos, do que sabemos, sentimos e somos. Se, porém, falharmos
em reconhecer nossa condição inacabada, podemos ocasionar prejuízos na construção, por
parte dos estudantes, dos sentimentos de confiança, competência, e individualidade.
O reconhecimento de meus erros e limitações, porém, não pareceu comprometer a
confiança que os estudantes tinham em meu trabalho. “Sua metodologia de ensino é
importante para que isso [o aprendizado dos estudantes] ocorra”, afirmou Anderson, o
mesmo estudante a destacar mais veementemente as limitações que percebeu em meu
156
trabalho. “Estou aprendendo muito, pois o jeito que os professores ensinam é muito bom”,
acreditava Vanessa. Isso sugere que os estudantes, além de reconhecerem a ambivalência
inerente às insuficiências da docência – que se configura simultaneamente como limitação
no trabalho do professor e possibilidade para uma participação mais ativa dos alunos –
também pareceram reconhecer as contradições existentes em uma atuação docente que,
embora fosse insuficiente, ainda assim foi considerada satisfatória.
Um aspecto importante a ser destacado é que, neste estudo, não fui considerada
pelos estudantes como um ente isolado da equipe da escola, mas sim como um integrante
de um grupo coeso movido por objetivos comuns buscados através de procedimentos que
foram reconhecidos como coincidentes. “Os professores são como uns pais para a gente.
Tratam a gente com muito carinho”, dizia Vanessa em seu primeiro parecer semanal. É
importante lembrar aqui que Vanessa só teve contatos com os outros professores da equipe
na entrada, no intervalo e na saída das aulas, não chegando a ter aulas com eles. William
foi outro estudante que, em seus pareceres e entrevistas, usou a palavra “professores” no
plural, dando a entender que me via como parte de um grupo. Em sua segunda entrevista,
Helly incluiu outros profissionais da equipe em sua fala: “A gente se sentia em casa aqui. A
professora, a secretária [gerente administrativa] faziam a gente se sentir bem.”
Segundo Morin (c2002), uma organização – conjunto em que estão incluídos os
agrupamentos humanos de diferentes tipos – é uma totalidade de relações entre elementos
que produz uma unidade complexa. Esse conjunto de relações apresenta qualidades e
características que não estão presentes nos elementos isolados. A organização une de
modo interrelacional os elementos que, a partir dessa união, se tornam integrantes de um
todo.
Sob essa ótica, é possível concluir que, mesmo que os estudantes tivessem tido
uma experiência de aprendizagem em uma estreita interação comigo, eu não poderia ser
vista como isolada do meio, mas sim como parte de pelo menos uma organização – a
equipe da escola – que contribui na construção das atitudes reconhecidas pelos estudantes.
É importante ressaltar que o trabalho realizado em sala de aula contou com a participação
157
ativa de cada estudante, que contribuiu para a construção das relações entre nós e também
da atmosfera propícia ao aprendizado. Assim, mesmo que minha atuação tenha sido
considerada como um elemento importante na qualidade do processo de aprendizagem dos
estudantes, é essencial lembrar que faço parte de sistemas interrelacionados com o quais
realizo intensas trocas, que me desconstroem e reconstroem constantemente.
Assim, o todo formado pelo grupo de estudantes, por mim e pelos vínculos e
relacionamentos estabelecidos entre nós foi percebido como uma influência positiva no
processo de aprendizagem individual dos estudantes, em sua motivação e na construção de
sua auto-confiança. “É melhor estudar inglês em grupo, [...] a gente sente mais vontade de
aprender, eles me ajudam a me sentir à vontade nas aulas”, acredita William. “É assim que
as pessoas aprendem, com bons colegas e ótima professora”, diz o estudante, parecendo
sintetizar as percepções de seus colegas a respeito dos relacionamentos do grupo e como
eles retroagem sobre o processo de aprendizagem.
Todo jogo de inter-relações no interior de um grupo humano, segundo Morin (c2002),
supõe atrações, afinidades, ligações e comunicações entre os indivíduos, mas também a
existência de forças de repulsão, de dissociação e mesmo de exclusão. Ambos os pólos –
afinidade e antagonismo – são inerentes às relações entre os elementos de um todo. Em
sua relação dialógica – complementar, concorrente e antagônica ao mesmo tempo – os
elementos individuais regulam o funcionamento de uma organização, que, para se manter
coesa, segundo Morin, necessita que as forças de afinidade predominem sobre as de
antagonismo.
Se os aspectos dissociadores das relações estabelecidas no grupo não foram
mencionados pelos estudantes, isso não quer dizer que eles não existiram. A idéia de grupo
não traz em si apenas harmonia e síntese. Ela carrega ao mesmo tempo dissonância,
oposição e antagonismo. No curso do estudo, a coesão prevaleceu sobre a cisão, de modo
que a visão geral dos componentes do grupo foi a de concordância e de identidade comum,
vista como benéfica para o aprendizado de cada um e de todos.
158
RUMO A UM MUNDO TRANSDISCIPLINAR:O CAMINHO CONSTRUÍDO ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO
Todo ser humano é livre para se abrir, de sua própria maneira e através desua própria transformação liberadora, para o conhecimento de seu própriodestino espiritual (NICOLESCU, 2002, p. 72).
Nicolescu, no capítulo de abertura de seu Manifesto da Transdisciplinaridade,
expressa sua surpresa diante do paradoxo que a humanidade vivencia no presente: o
acúmulo sem precedentes de saberes, em vez de promover o compartilhamento de
sabedoria entre as pessoas e o avanço de nossa consciência – o que poderia nos auxiliar
na construção de um mundo mais igualitário e mais feliz – contribuiu na atrofia de nossa
vida interior e na potencialização de condições para nossa auto-destruição material,
biológica e espiritual. Segundo o autor, o rompimento entre a ciência e a filosofia, ocorrido
no raiar dos desenvolvimentos da ciência moderna, apartou o conhecimento da reflexão,
impediu a integração dos saberes entre si e também sua integração a nós e originou uma
tecnociência cega e triunfante que, apesar de ter nos proporcionado as vantagens de
enormes progressos técnicos e científicos, obedece primariamente à lógica implacável do
utilitarismo, sacrificando os valores mais inerentes à nossa condição humana, como a
afetividade e a espiritualidade, relegados ao limbo da subjetividade. Esta, ainda considerada
um tipo de relação com o mundo inferior à objetividade, é aceita por boa parte da
comunidade científica e educacional apenas como um adorno, isso quando não é rejeitada
por ser vista como uma fantasia ou uma ilusão.
A viabilização do projeto utilitarista demandou o estabelecimento de uma visão
fragmentada do mundo, segundo a lógica do “dividir para dominar”. Ao dividirmos a
realidade em partes cada vez menores pudemos esmiuçar cada parte, conhecê-la em seus
menores detalhes e divisar modos de utilizá-las para o que consideramos ser as crescentes
necessidades humanas de progresso e conforto material. Essa lógica se estendeu para o
conhecimento de nós mesmos e de nossos semelhantes, transformando-nos na
159
justaposição de um número crescente de fragmentos estudados separadamente por
diferentes disciplinas, cada uma com seu domínio, sua linguagem e seus métodos de
trabalho específicos, o que torna o diálogo entre elas cada vez mais difícil.
No entanto, lembra o autor, o que está armado para nossa auto-destruição pode ser
revertido para transformações positivas em nós mesmos e em nosso mundo. Como duas
faces de um espelho, a ameaça da auto-destruição encontra sua contrapartida na
esperança do auto-nascimento, esperança esta que pode ser realizada a partir da
edificação de uma consciência transpessoal e visionária que, por sua vez, pode ser
alimentada pela ampliação de nossos conhecimentos e de nossa tolerância, desde que
encontremos maneiras de tornar os fatos e dados – hoje fragmentados e vazios de sentido
para muitos de nós – em saberes inteligíveis e transformadores de nós mesmos e da
realidade ao nosso redor.
Sob essa ótica, há uma estreita relação entre os pressupostos transdisciplinares e a
conquista de relacionamentos mais pacíficos e harmoniosos entre os seres humanos. É
nesse sentido que a emergência de abordagens e – acima delas – de um pensamento e de
uma cultura transdisciplinares assume sua urgência. Nicolescu e Morin sustentam que a
única revolução possível hoje é a da inteligência, uma revolução que pode transformar
nossas vidas em um compromisso ético e estético, em um resgate das dimensões
integradas, compartilhadas, participativas, harmoniosas e poéticas da existência. Uma
revolução que pode ser almejada e alcançada principalmente através da educação, da
conquista do que Morin denomina o bem-pensar, da pertinência de nosso conhecimento, da
oportunização, através do constante reaprender a aprender, da transformação de nós
mesmos e de nosso mundo.
O presente estudo se estruturou em torno da busca da realização de um projeto que
contribuísse – através da vivência dos princípios e valores transdisciplinares – na formação
integral de jovens e adultos através do processo de ensino e aprendizagem de um idioma
estrangeiro – o inglês – em sala de aula. O projeto consistiu em um estudo de caso
exploratório – um curso de inglês básico em uma modalidade intensiva de trinta horas
160
concentradas no período de três semanas para seis estudantes jovens e adultos, iniciantes
no aprendizado da língua inglesa.
Os resultados dessa investigação, colocados abaixo, almejam uma legitimidade
circunscrita no âmbito de sua proposta e apresentam a potencialidade de embasar
hipóteses a serem testadas em contextos diferentes – por exemplo, grupos maiores de
estudantes de diferentes faixas etárias e conhecimentos prévios menos elementares na
língua inglesa, cursos mais longos e menos concentrados no tempo, e experiências
envolvendo não apenas um professor, mas equipes de professores. Assim, embora os
resultados do estudo não possam ser transpostos para outras situações sem revisões
aprofundadas, esta investigação se propõe a abrir possibilidades epistemológicas e
metodológicas para futuras explorações.
A pesquisa qualitativa nos leva a construir um conhecimento sobre a realidade a ser
continuamente questionado e revisto. Assim, este trabalho é uma proposta que estará
aberta a mudanças e adaptações à medida que novas reflexões sejam realizadas e que
novos estudos sejam postos em prática. É essencial que estejamos dispostos a não só
enfrentar, mas a explorar as dúvidas e as críticas, a atentar para os detalhes, e a refletir
sobre nossa trajetória em busca de pontos que necessitam ser repensados. Nesta postura
aberta, busco apoio em Morin, que nos convoca a praticar a serendipidade33, que é a arte
de transformar detalhes aparentemente insignificantes em indícios que permitam reconstruir
uma história.
Nesta investigação, partindo do estudo de trabalhos de Nicolescu e de Morin – onde
são encontradas pedras fundamentais da perspectiva complexa da transdisciplinaridade –
busquei a compreensão dos pressupostos teóricos da transdisciplinaridade, que se
estruturam sobre três pilares: a legitimação da existência de múltiplas instâncias de
realidade, a visão complexa da realidade e a aceitação da lógica do terceiro incluído. 33 A palavra serendipidade, que significa o talento para se realizar descobertas interessantes a partirdo acaso, tem sua origem no termo serendipity cunhado pelo lingüista inglês Horace Walpole,inspirado no conto persa Os Três Príncipes de Serendipe (antigo nome do Sri-Lanka), cujos heróispossuíam e exploravam esta capacidade (MORIN, 1999). Esta palavra foi deixada em sua versão emfrancês serendipidé na tradução para o português do Método 3 realizada por Juremir Machado daSilva (MORIN, 1999, p. 198). Em A Cabeça Bem-Feita, a tradutora Eloá Jacobina usa a palavraserendipididade (MORIN, a2002, p. 23). Optei, neste trabalho, pelo uso da palavra serendipidade, porconsiderá-la uma tradução mais fiel do termo original em inglês.
161
A partir dessa compreensão, concluí que a relação dialógica que se estabelece entre
os três fundamentos principais da transdisciplinaridade origina valores – integralidade da
realidade e dos indivíduos que a perfazem, integração da realidade aos indivíduos e vice-
versa, abertura para o novo e para o desviante, reconciliação entre posições aparentemente
antagônicas, questionamento de dogmas e busca de auto-realização – que caracterizam a
atitude transdisciplinar e embasam projetos transdisciplinares tanto para a pesquisa quanto
para a educação.
A partir dessas idéias, o próximo passo foi propor fundamentos para uma
abordagem transdisciplinar para o processo de ensino e aprendizagem da língua inglesa em
sala de aula. Esse se mostrou o movimento mais desafiador do estudo. No início da
investigação, o objetivo era chegar a uma metodologia transdisciplinar para a educação e,
mais especificamente, para o processo de ensino e aprendizado do inglês como língua
estrangeira em sala de aula. Edgar Morin define metodologia como um permanente
processo dialógico entre a teoria e a prática, um processo político, pedagógico e
investigativo de descoberta, desconstrução, reconstrução, criação e recriação individuais e
compartilhados, um processo comprometido com a transformação de nós mesmos e de
nossa realidade. Nesta perspectiva, podemos concluir que uma metodologia de ensino e
aprendizagem é construída de modo cooperativo entre professor e estudantes ao longo da
experiência e que, embora tenhamos um arcabouço teórico elaborado a priori no qual
fundamentamos nossa prática, e do qual não podemos prescindir, é na relação antagônica,
concorrente e complementar entre esses fundamentos teóricos e sua transposição na
prática de sala de aula – e nas emergências dessa relação – que a metodologia se constitui.
Assim, com base nos fundamentos teóricos e nos valores transdisciplinares, cheguei
não a uma metodologia, mas a pontos de referência com vista aos quais os trabalhos de
sala de aula se desenvolveram. A educação transdisciplinar, na presente proposta, se
configura na busca constante de uma formação integralizadora, permanente-abrangente e
encantadora-transformadora de cada indivíduo em sua relação com os outros e com o
mundo. Esses valores – busca de integralização, continuidade, abrangência,
162
deslumbramento e transformação – permearam o planejamento e a prática de sala de aula,
oferecendo um rumo para o desenvolvimento dos conteúdos, das atividades e das
interações que buscaram alcançar os objetivos do curso. Para esse desenvolvimento,
busquei também o apoio de teorias educacionais alinhadas à abordagem transdisciplinar: a
Mediação de Feuerstein e o Construtivismo Radical de von Glasersfeld.
Ao longo da experiência vivenciada, a articulação dos depoimentos orais e escritos
dos estudantes do curso com as notas de campo resultantes da observação participante
revelaram que a realização de um projeto transdisciplinar no processo de ensino e
aprendizagem da língua inglesa em sala de aula passa por três elementos principais,
estreitamente relacionados entre si, que são: a concepção das aulas como eventos
educacionais e interacionais, a construção da consciência do todo através do
estabelecimento de vínculos entre os estudantes entre si e com o professor e o processo de
auto-formação, auto-conhecimento e retomada de posições pessoais dos estudantes,
categorias emergentes neste estudo.
Podemos afirmar que o objetivo primordial de uma educação coerente com a
transdisciplinaridade é a busca de uma compreensão mais integral de nós mesmos, de
nossa realidade, do modo como nos relacionamos com ela e das emergências dessa
relação. Na busca dessa compreensão, a reflexão sobre nosso lugar no mundo é essencial.
Também é primordial que aprendamos a ver a realidade como multirreferencial e
multidimensional, mas ainda assim como única, total e inesgotável, resultante das
permanentes interações dinâmicas existentes entre seus componentes.
No decorrer do estudo, as atividades propostas para os encontros diários
encaminharam a integração entre conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais
desenvolvidos no curso. Além disso, embora tivéssemos em vista que nosso objetivo
principal era o aprendizado da língua inglesa, procuramos explorar as fronteiras e as
interfaces percebidas entre o uso do idioma e conceitos e habilidades referentes a
diferentes aspectos da contemporaneidade. Pouco a pouco, conforme os conhecimentos
construídos dos estudantes a respeito da língua inglesa se tornavam mais profundos e mais
163
abrangentes, essas conexões emergiam naturalmente nas aulas, oferecendo oportunidades
de compartilhamento de saberes e não-saberes e oportunizando novas buscas, em um
processo que – apesar de ter sido interrompido ao final do curso – se configurou como
interminável.
Considerando o estado de permanente modificação do mundo, o reconhecimento da
mudança da realidade e de nós mesmos como um processo contínuo pode ser visto como
uma das atribuições cruciais de uma educação transdisciplinar, que almeja auxiliar os
estudantes a encontrar em si e ao seu redor universos a serem desvelados, sem jamais
serem esgotados. Nessa perspectiva, a compreensão que o indivíduo tem do mundo é
constantemente reformulada à medida que ele adapta seu conhecimento prévio às novas
informações que lhe são apresentadas. O aprendizado se configura, assim, como um
desenvolvimento permanente, com rupturas e avanços em relação ao já construído e de
substituição de velhas perguntas por novas.
De modo análogo, os participantes do estudo pareceram ter tomado consciência da
condição inacabada tanto do conhecimento em si quanto do conhecimento que portam, e
evidenciaram compreender que o aprendizado se configura em uma superação processual,
circular e compartilhada de medos, limitações e dificuldades. Nessa tomada de consciência,
os estudantes passaram a lidar melhor com as incertezas, os riscos e as ambigüidades
inerentes à construção do conhecimento.
Para o enfrentamento dos permanentes desafios que nos são oferecidos por nossa
realidade, e para tornar cada momento de nossas vidas um instante potencialmente
educativo, o desenvolvimento de programas de estudo e de estratégias de aprendizagem,
que possibilitaram aos estudantes caminhar em direção à conquista de sua autonomia e do
co-protagonismo do processo foram fundamentais. Ao tomarem consciência das próprias
atribuições e se tornarem, pouco a pouco, co-responsáveis por seu próprio aprendizado e
pelas construções de conhecimento realizadas no e pelo grupo, os estudantes deram
mostras de te desenvolvido mais independência e liberdade, o que fez com que
evidenciassem atribuir um elevado valor à sua experiência.
164
O reconhecimento, por parte dos estudantes, dos trabalhos de sala de aula como
significativos e contextualizados indicou o caráter integrado de nossas aulas às suas
realidades. Em uma abordagem transdisciplinar para a educação, a realidade é concebida
como uma interrelação viva entre seus componentes, e os conteúdos e as atividades
educativas partem das experiências e vivências dos próprios estudantes, e entram com elas
em uma relação recursiva de enriquecimento recíproco.
O reconhecimento da aprendizagem como um processo interacional foi uma
conquista compartilhada pelo grupo. Inicialmente refratários a trabalhos cooperativos,
devido a experiências anteriores negativas, pouco a pouco os estudantes deram mostras de
compreender o caráter solidário – mesmo que individual – da construção do conhecimento.
Ao final do curso, os estudantes apontaram o estabelecimento de vínculos e de
reciprocidade em seus relacionamentos como um dos elementos mais importantes de sua
experiência de aprendizagem.
Nossas aulas se configuraram, assim, como encontros de interação e
compartilhamento de saberes e aprenderes que não se esgotavam naquele tempo e
espaço. Participamos, juntos, na realização de eventos em que os objetivos, os conteúdos,
as atividades, as estratégias e a avaliação se tornavam significativos pelo desafio, pela
descoberta e pela apropriação por parte dos estudantes, que atribuíam sentido ao que
faziam, integrando, desse modo, os aprendizados construídos entre si e a si mesmos.
Os estudantes construíram, através das interações e das atividades realizadas em
sala de aula, novas atitudes em relação à língua inglesa e seu aprendizado, a mim e aos
colegas, mostrando-se cada vez mais dispostos a trazer à tona suas vivências anteriores ou
suas pré-concepções para, confrontando-as com o novo, re-elaborar seus conhecimentos,
em uma postura aberta frente ao diferente e ao desconhecido. Nesse processo, os
estudantes se mostravam mais cientes de seus avanços em relação ao que já sabiam ou
concebiam, e também das rupturas com esse conhecimento prévio. Muitas de nossas
posições foram, assim, na contraposição com idéias antagônicas e em sua reconciliação
165
com elas, questionadas e modificadas ao longo do processo, evidenciando o caráter
transformador da abordagem.
Assim, de maneira especial, os participantes do estudo deram mostras de ter
realizado reflexões sobre si mesmos que resultaram em importantes modificações em seu
auto-conceito. À medida que as pessoas realizam aprendizados, elas se transformam de
maneira integrada – em suas dimensões cognitivas, afetivas, sociais, físicas e espirituais –
e a tomada de consciência dessas mudanças é um dos elementos mais essenciais do
projeto educativo, uma vez que ao estarmos cientes de nosso processo de mudança, temos
melhores condições de nele interferir.
Essa retomada de si mesmos, apesar de desestruturar suas convicções, lhes
ofereceu também a oportunidade de reconstruir sua auto-confiança, e não apenas em
relação a situações específicas de aprendizagem da língua inglesa. As dificuldades em
relação ao aprendizado da língua inglesa foram assumidas, abordadas e desmistificadas.
Embora não ignorassem suas dificuldades, os estudantes evidenciaram ter aprendido a lidar
com elas sem se deixar desmotivar. Seu êxito, assim, parece se fundamentar na
possibilidade percebida de êxito, estabelecendo um anel recursivo motivador e
enriquecedor. Percebendo-se bem sucedidos, os estudantes se entusiasmavam com seus
estudos e atingiam compreensões cada vez mais ampliadas.
Ao final do curso, os estudantes se mostraram satisfeitos com sua experiência de
aprendizagem, com seus próprios progressos e com os progressos dos colegas, uma vez
que puderam perceber resultados positivos em seu processo tanto individual quanto
compartilhado de construção de conhecimentos. Ao refletir e tomar consciência do valor que
assumiram no grupo e na escola e das transformações que estavam vivenciando e também
realizando – através de sua atuação – os estudantes construíram um aprendizado que
acredito que possam transpor para outras instâncias em que se relacionam com os outros e
com a realidade.
Aos poucos, cada estudante pareceu ter encontrado seu lugar no grupo, e também
deu mostras de ter caminhado no sentido de sua auto-realização como estudante e como
166
pessoa, ao se perceber valorizado em suas contribuições para o desenvolvimento dos
trabalhos. Segundo Nicolescu, nos tornamos verdadeiramente livres quando encontramos
nosso lugar no mundo, o que pressupõe o compromisso de nos engajarmos em uma
permanente busca de auto-realização, uma busca ao mesmo tempo individual e
compartilhada, uma vez que, segundo o autor, a fraternidade humana consiste em nos
auxiliarmos mutuamente a encontrar nosso próprio locus, ou o sentido de nossa própria vida
e de nossa missão.
A vivência dos valores transdisciplinares tem o potencial de nos levar não só a
mudar nosso ponto de vista e nossa maneira de pensar como também nosso modo de atuar
no mundo. Ernst von Glasersfeld afirma, em sua teoria do construtivismo radical, que,
apesar de sermos responsáveis pela construção de nosso mundo e de nossa realidade, nós
o fazemos – boa parte do tempo – de maneira inconsciente e desatenta. Ao tomarmos
consciência de nossa responsabilidade e ao passarmos a explorar as operações que
realizamos, podemos fazer escolhas e tomar decisões mais coerentes com nossos projetos
de vida e de realidade.
Em nossas aulas, os momentos de reflexão e de retomada de nós mesmos, nosso
relacionamento com as pessoas, com a vida e com o tempo, entre outros, contribuíram para
o desenvolvimento da consciência da maneira como podemos nos modificar pela reflexão e
influenciar nossa realidade através de nossa atuação. Embora seja ambicioso considerar
que houve, ao longo do curso, a valorização da vida – como é um dos objetivos de uma
educação transdisciplinar – acredito que isso tenha acontecido naqueles momentos em que
estávamos sintonizados e envolvidos com nossa vivência, e em que o grupo se sentia
integrado e participativo em sua experiência. Ao atribuirmos valor a nosso trabalho,
encontrávamos o sentido de nossos esforços e de nossas vidas.
Nesses momentos de plenitude – embora breves – eu sentia que era capaz de
transformar o mundo. Sentia que tinha potencial para realizar transformações significativas,
como conseqüência de minha interferência na realidade da sala de aula e dos estudantes, e
como resultado dos efeitos desencadeadores positivos que minhas ações poderiam ter.
167
Acredito que eu não tenha sido a única pessoa a ter essa sensação. Ao perceber os
sentimentos de prazer e de sucesso estampado no rosto dos meus estudantes, reconhecia
neles aquela atitude de quem pode mudar o mundo simplesmente ao mudar o olhar.
168
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173
APÊNDICE A
CURSO SUPERINTENSIVO DE VERÃO – FEVEREIRO DE 2004INGLÊS BÁSICO 1 – 30 HORAS
PLANO DE ENSINO
EMENTAO curso visa promover, a partir de uma abordagem transdisciplinar, um aprendizadointegrado e contextualizado dos diferentes aspectos da competência comunicativa de nívelbásico da língua inglesa, com vistas a uma formação integral dos envolvidos no processo.
OBJETIVOS· Construir competência comunicativa de nível básico na língua inglesa em seus aspectos
gramatical, sócio-lingüístico, discursivo, estratégico e funcional, trabalhados de formaintegrada;
· Estabelecer e explorar conexões entre o aprendizado da língua inglesa e de diferentesaspectos da contemporaneidade.
· Conscientizar-se das permanentes insuficiências do conhecimento;· Conscientizar-se a respeito das próprias estratégias de aprendizagem;· Realizar um aprendizado cooperativo e compartilhado, que transcenda seu próprio
objetivo para abranger uma formação mais integral do estudante;· Realizar descobertas individuais e compartilhadas que propiciem a retomada das
próprias posições, prazer e auto-realização.
PROGRAMAOs conteúdos básicos do curso, organizados a partir de situações quotidianas interacionais,objetivam estimular os diferentes aprenderes: conhecer, fazer, viver juntos, ser, antecipar eparticipar, procurando estar relacionados com a realidade dos estudantes e ser transpostospara outras situações de suas vidas. Os conteúdos buscam também estabelecer diálogosentre a língua inglesa e diferentes aspectos da contemporaneidade e ofereceroportunidades para a reflexão e a reelaboração de posturas, crenças e valores.
Unit 1: Who are we?· Greetings and personal introductions· Occupations and places of work· Feelings about the English language· Useful language to be used in the classroom· Words and expressions of politeness· Spelling· Indefinite articles· The present tense of verb to be· Introduction to listening and reading strategies
Unit 2. Making new friends· Introducing other people· Greetings between friends and acquaintances· Residence and phone numbers· Location of places· Numbers in our lives· The prepositions in, on and at
174
Unit 3: Getting to know each other· Birthdays and other important dates· Dates and places of birth· Age· Astrology· The family· An interview at the immigration office· Possessive adjectives and the genitive case
Unit 4: Around the world· The world: continents, oceans, countries and capitals· Origins and nationalities· Language and symbols from different countries· The question structure
Unit 5: What are we like?· Personal characteristics· Personal profile· Talking about other people· The present tense of action verbs
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOSOs procedimentos planejados, que tiveram como critérios de seleção a integralidade,permanência-abrangência e encantamento-transformação do indivíduo e do meio,envolverão, entre outras atividades:· Aulas orientadas para situações comunicacionais genuínas e atividades comunicativas e
abertas, que propiciem interações dos estudantes com a professora e entre si;· Práticas contextualizadas e personalizadas da língua estrangeira;· Atividades que ativem os conhecimentos prévios dos estudantes e os envolvam de modo
ativo e integrado;· Atividades funcionais – tais como diálogos, entrevistas, simulações, discussões e escrita
de textos – que, simulando as interações realizadas no uso real da linguagem, integremo desenvolvimento integrado dos aspectos da competência comunicativa;
· Utilização de materiais de apoio autênticos que ofereçam oportunidades de práticas deleitura e escuta contextualizadas do ponto de vista cultural, e propiciem a identificação oua contraposição da cultura dos países de língua inglesa com a realidade dos estudantes.
AVALIAÇÃOA avaliação é entendida enquanto diagnóstico, processo e produto, em que estudantes eprofessora comprometem-se e assumem de maneira cooperativa a responsabilidade pelaconstrução do conhecimento. Após cada aula os estudantes realizarão tarefas deconsolidação dos aprendizados realizados, e compartilharão suas estratégias, dificuldades econclusões na aula seguinte. Ao final de cada unidade haverá uma avaliação oral individuale coletiva dos conhecimentos construídos até então. Após o final do curso, os estudantesrealizarão uma avaliação escrita formal para obter o certificado de conclusão. A avaliaçãoocorrerá também por meio dos relatos da observação da professora.
175
ANEXO A
A CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE34
Preâmbulo
Considerando que a proliferação atual das disciplinas acadêmicas e não acadêmicas
conduz a um crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer visão global
do ser humano;
Considerando que somente uma forma de inteligência capaz de abarcar a dimensão
cósmica dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e ao
desafio presente de autodestruição material e espiritual da espécie humana;
Considerando que a vida na Terra está seriamente ameaçada pelo triunfo de uma
tecnociência que obedece apenas à lógica terrível da eficácia pela eficácia;
Considerando que a ruptura entre um saber cada vez mais quantitativo e uma
identidade interior cada vez mais empobrecida leva à ascensão de um novo tipo de
obscurantismo, com conseqüências incalculáveis sobre o plano individual e social;
Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, tem
aumentado a desigualdade entre seus detentores e os que dele são desprovidos,
engendrando assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as diferentes
nações do planeta;
Considerando, ao mesmo tempo, que a esperança é a contrapartida de todos os
desafios mencionados, a esperança de que o crescimento extraordinário dos saberes pode
conduzir, a longo prazo, a uma mutação comparável à evolução dos primatas à espécie
humana;
Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade (Convento da Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994)
adotaram a presente Carta que contém os princípios fundamentais da comunidade de
pesquisas transdisciplinares, e que constitui um compromisso moral, sem qualquer pressão
legal ou institucional, de todo signatário desta Carta.
Artigo 1: Qualquer tentativa de reduzir o ser humano à definição formal do que é um
ser humano e de submeter o ser humano a análises redutivas restritas a estruturas formais,
sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar.
Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos
por diferentes tipos de lógica, é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de
34 Como já foi mencionado, a Carta foi redigida durante o Congresso da Arrábia, acontecido noConvento da Arrábia, Portugal, em novembro de 1994 sob a coordenação de Lima de Freitas, EdgarMorin e Basarab Nicolescu.
176
reduzir a realidade a um único nível, regido por uma única forma de lógica, não se situa no
escopo da transdisciplinaridade.
Artigo 3: A transdisciplinaridade é complementar às abordagens disciplinares: ela
faz emergir dados novos e novas interações do encontro entre disciplinas. Ela nos oferece
uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não busca o domínio
sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que elas
compartilham e àquilo que se localiza além delas.
Artigo 4: O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação
semântica e prática dos significados que atravessam e se localizam além das disciplinas.
Ela pressupõe uma racionalidade aberta mediante um novo olhar os conceitos de
"definição" e "objetividade". O formalismo excessivo, a rigidez das definições e a busca de
objetividade total, ocasionando a exclusão do sujeito, só podem ter um efeito de negação da
vida.
Artigo 5: A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que
ultrapassa o domínio das ciências exatas e exige seu diálogo e sua reconciliação não
somente com humanidades e as ciências sociais mas também com a arte, a literatura, a
poesia e a experiência espiritual.
Artigo 6: Em comparação com a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade, a
transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional. Levando em conta as várias
abordagens para o tempo e a história, a transdisciplinaridade não exclui a existência de um
horizonte trans-histórico.
Artigo 7: A transdisciplinaridade não constitui uma nova religião, uma nova filosofia,
uma nova metafísica ou uma ciência das ciências.
Artigo 8: A dignidade do ser humano é de ordem cósmica e planetária. O
surgimento do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O
reconhecimento da Terra como nosso lar é um dos imperativos da transdisciplinaridade.
Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, como habitante da Terra, é
também um ser transnacional. O reconhecimento pelo direito internacional de uma dupla
pertença – a uma nação e à Terra – constitui uma das metas da pesquisa transdisciplinar.
Artigo 9: A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos
e às religiões, e também em relação àqueles que os respeitam em um espírito
transdisciplinar.
Artigo 10: Nenhuma cultura tem privilégio sobre qualquer outra cultura. A
abordagem transdisciplinar é inerentemente transcultural.
Artigo 11: A educação autêntica não pode valorizar a abstração sobre qualquer
outra forma de conhecimento. Deve ensinar abordagens contextualizadoras, concretas e
globalizadoras. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da
sensibilidade e do corpo na transmissão do conhecimento.
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Artigo 12: O desenvolvimento de uma economia transdisciplinar é fundada sobre o
postulado de que a economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso.
Artigo 13: A ética transdisciplinar recusa toda atitude que recusa o diálogo e a
discussão, seja qual for sua origem – de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica,
política ou filosófica. O saber compartilhado deverá conduzir a uma compreensão
compartilhada baseada no respeito absoluto pela Alteridade individual unida pela nossa vida
comum sobre uma única e mesma Terra.
Artigo 14: Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e
da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados
existentes, é a melhor defesa contra as possíveis distorções. A abertura comporta a
aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância implica o
reconhecimento do direito às idéias e verdades opostas às nossas.
Artigo final: A presente Carta da Transdisciplinaridade foi adotada pelos
participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que não visam outra
autoridade que não sobre seu próprio trabalho e atividade. Segundo os procedimentos a serem acordados por pessoas de mentalidade
transdisciplinar de todos os países, a Carta está aberta à assinatura qualquer pessoa
interessada em promover medidas progressistas de ordem nacional, internacional e
transnacional para assegurar a aplicação de seus Artigos na vida quotidiana.
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