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  • RUNAS VERDES: tradio e decadncia nos imaginrios sociais

    Wagner Cabral da Costa*

    RESUMO

    Anlise dos processos de construo da identidade cultural e de instituio dos imaginrios sociais sobre o Maranho. Discute-se a relevncia das noes de decadncia e de tradio na produo dos intelectuais timbiras, em sua abordagem de temas variados, tais como, a fundao da Academia Maranhense de Letras (com a institucionalizao do mito da Atenas Brasileira); a constituio de uma histria e de uma geografia regionais; as diversas leituras do texto urbano de So Luiz e Alcntara (a cidade morta). PALAVRAS-CHAVE: Decadncia; tradio; imaginrios sociais; identidade regional; Maranho.

    SUMMARY

    Analysis of the processes of cultural identity construction and of social imaginaries institution about the state of Maranho. It discusses the relevancy of the notions of decadence and tradition in the intelectual production of the timbiras, when they write about several themes, as the foundation of the Letters Academy of Maranho (with the institutionalization of the Atenas Brasileiras myth); or the history and the geography of the state; or about the readings of the urban text of So Luiz and Alcntara (the dead city). KEY-WORDS: Decadence; tradition; social imaginaries; regional identity; Maranho (Brazil).

    * Professor do Departamento de Histria da UFMA. Mestrando em Histria Social pela UNICAMP, com a dissertao Sob o signo da morte: decadncia, violncia e tradio em terras do Maranho (a ser defendida no 2o sem/2001).

  • INTRODUO

    Uma fantasmagoria preside as discusses sobre o Maranho, ocupando uma posio estratgica quando se pretende pensar o complexo e multifacetado processo de instituio dos imaginrios sociais acerca da identidade regional. H quase dois sculos, a decadncia local tem sido tematizada pelos discursos poltico, econmico e cientfico, bem como transfigurada esteticamente em verso e prosa, em sons e imagens plsticas.

    De longe, revemo-la com amor, num crepsculo de emoes que suaviza os contornos da realidade dolorosa; e atravs da meditao, que o caminho da sabedoria, e atravs da saudade, que a me da emoo mais duradoura e espiritualizada, transportamo-nos s ruas e s runas verdes de Alcntara (Raimundo Lopes).

    Casares, becos, telhados e mirantes. Runas verdes, s vezes lricas, s vezes mordazes, s vezes cruis, escondendo e preservando medos e saudades, lendas e frustraes, mortes, desejos e mistrios. Os significados da decadncia, embora remetam a um ncleo mais ou menos definido, esto sempre em disputa, em aberto, indeterminados, sendo constantemente (re)apropriados e (re)inventados segundo os mais diversos fins e interesses desde o sculo XIX. Um historiador dalm-mar j assinalou que a noo infinitamente manipulvel para fins ideolgicos... A filologia d-se conta desta ligao essencial do conceito de decadncia com um juzo de valor negativo (LE GOFF, 1996, p.413). A decadncia e sua contraparte necessria (o mito da Atenas Brasileira) se conjugam para fornecer o referencial imagtico e discursivo a partir do qual se fala e se escreve sobre o Maranho; constituindo e sedimentando vrias camadas de idias-imagens e representaes, presentes no trabalho de historiadores, gegrafos, literatos, produtores culturais, cientistas sociais, polticos (de esquerda e de direita), dentre outros. O debate sobre a identidade regional, com variaes mltiplas e contribuies

    diversas, tem preponderantemente se organizado em torno destes temas, conformando uma teia discursiva ampla que sustentou (e ainda sustenta) prticas polticas, econmicas e culturais dos mais diversos atores sociais. Tradio e decadncia como elementos instituintes e institudos dos imaginrios sociais (BACZKO, 1984; CASTORIADIS, 1986) um magma de significaes, sempre a revolver-se pela modificao dos ngulos de anlise, pela construo de novos sentidos, pela introduo de novas temticas relacionadas de forma complexa com as anteriores, pela apropriao e reinveno de antigas significaes. Processo catico, que somente a posteriori pode ser interpretado como um processo ordenado e linear. Assim, ao problematizar a noo de decadncia, procuramos perceb-la a partir de um duplo enfoque: em sua historicidade e em sua presena recorrente nos imaginrios sociais. Nosso esforo, nas pginas que seguem, consistir, portanto, numa explorao desse conjunto de questes, uma explorao fragmentria e lacunar, na medida em que recolher indcios dispersos no tempo, tendo como referente comum uma categoria supostamente espacial, o Maranho. A nvel acadmico, dois trabalhos iniciam a tarefa de questionamento da noo de decadncia, embora sob ticas diferenciadas: A ideologia da decadncia do antroplogo Alfredo Wagner Berno de Almeida e Formao social do Maranho, do socilogo Rossini Corra. Enquanto a nfase do primeiro recai na discusso prpria noo, o segundo se atm mitologia timbira da Atenas Brasileira (o mito da prodigalidade terra-gente ou teologia maranhense, segundo frmulas do autor). ALMEIDA (1982) centra o seu estudo na anlise da historiografia econmica do Maranho, desde os cronistas do incio do sculo XIX (Gayoso, Pereira do Lago e outros), passando pela documentao oficial (relatrios, falas e mensagens de Presidentes de provncia), at os historiadores do final do sculo XIX e do sculo XX. Constituindo-se num lugar estratgico s anlises, a categoria da decadncia da lavoura, utilizada nessas

  • fontes para descrever e explicar o quadro econmico conjuntural da provncia (especialmente do setor agro-exportador), sendo manuseada pelas diferentes faces polticas ao longo do tempo. Dessa forma, a categoria se cristalizou tanto no pensamento poltico oficial, quanto na produo erudita enquanto um padro explicativo aceito sem maiores contestaes, o que lhe conferiu um forte carter de consenso (o que, por sua vez, amplifica a eficcia do discurso). As origens da decadncia da lavoura residiriam em seu oposto, a prosperidade, forma de idealizao de uma suposta idade de ouro da lavoura da provncia (fins do sculo XVIII e primeiras dcadas do sculo XIX). Estabeleceu-se assim uma viso cclica da histria econmica do Maranho, que carrega consigo uma certa periodizao: a um perodo inicial de barbrie (princpios da colonizao portuguesa), seguiu-se a poca da prosperidade (com a implantao do sistema da grande lavoura escravista, como resultado das polticas de fomento pombalinas), e depois teve incio a decadncia (cujo marco terminal seria a abolio da escravatura, por provocar a runa dos grandes proprietrios). Nestes termos, a ao oficial obteria legitimidade na medida em que apontasse caminhos para o restabelecimento da prosperidade perdida. O autor conclui sua anlise afirmando ser a decadncia da lavoura a categoria central do discurso das elites regionais, esboando sua viso do conjunto dos problemas econmicos e sociais da provncia (ALMEIDA, 1982). A eficcia da ideologia da decadncia se traduz em sua reproduo acrtica pela historiografia regional, passando por VIVEIROS (1954/64), MEIRELES (1980) e TRIBUZI (1981), dentre outros. Somente com a safra de trabalhos acadmicos produzidos a partir dos anos 80, a noo de decadncia econmica comeou a ser questionada e relativizada em maior profundidade. J CORRA (1993) manifesta a preocupao de proceder crtica do mito da Atenas Brasileira em sua materializao mais recente, o projeto do Maranho Novo (organizado por Jos Sarney), bem como das relaes de fidelidade e compromisso desse

    grupo poltico com a ditadura militar. Propondo-se fazer uma anlise da categoria Maranho, com carter ensastico e panormico (sua investigao abrange do perodo colonial aos anos 1970), a partir do referencial terico do materialismo histrico e de um compromisso poltico com a redemocratizao do pas e com a cidadania, o socilogo apresenta como tese central a idia de que a permanente sobrevivncia do fantasma do passado na sociedade maranhense ... foi um espectro legitimador de interesses econmicos, culturais e polticos, complementando que a expectativa do retorno idade urea do paraso perdido, sem fundamento na realidade objetiva, protegeu-se na mtica e mgica apologia do renascimento (CORRA, 1993, p.310-1). Sua arqueologia rica em sugestes e imagens sobre as relaes entre intelectuais e poder poltico, e, especialmente, sobre a mitologia timbira, enquanto instituidora de uma identidade regional poca do Imprio, identidade permanentemente reconstruda e reinventada desde ento. Em suas palavras, as elites provinciais fabricaram uma excepcionalidade, consagrando o Maranho como partcipe da unidade nacional promovida pelo Estado imperial, mas, simultaneamente, distinguindo-se do conjunto em elaborao, pelo manuseio de uma superioridade espiritual, ao definir-se como Atenas. Numa frmula estilstica de impacto, assim resume sua tese: Atenas Brasileira provincianismo mais refinado do que o nacionalismo... Maranhenses, nascidos na Atenas Brasileira. Atenas Brasileira, nascida dos maranhenses (idem, p.102-4). Essa sugesto importante, porque fornece hipteses para pensar o processo de reao e compromisso deste provincianismo maranhense (e seus atores, intelectuais e polticos) com outros processos mais abrangentes de formao de identidades no Brasil, no somente a identidade nacional (nos diferentes termos em que esta questo foi colocada desde o sculo XIX), como tambm identidades regionais, no caso, os processos de inveno do Nordeste e da Amaznia. A situao intermdia do estado entre essas duas macro-regies brasileiras (conforme os critrios geogrficos do IBGE) foi objeto de

  • discusso por parte dos setores polticos e intelectuais locais. Mas no somente isto, pois a constituio do Maranho em Meio-Norte (ao lado do Piau), bem como sua incluso na Amaznia Legal (na condio de pr-Amaznia durante o regime militar), possibilitou, apenas a ttulo de exemplo, a captao de incentivos fiscais tanto da SUDENE quanto da SUDAM. Processos de construo de identidades culturais regionais e interesses polticos e econmicos, esto, sempre, profundamente imbricados... Rossini Corra ainda ressalta o problema da exportao da inteligncia maranhense, dadas as condies precrias da vida intelectual na distante provncia, intelectualidade que busca especialmente no Rio de Janeiro o reconhecimento nacional, em contraposio ao anonimato e ao esprito de ressentimento decadentista dos que permanecem na terra-natal. Problema cultural e sentimental que perpassa a produo literria e historiogrfica local, assim apontado pelo ateniense Coelho Neto em sua fico autobiogrfica (A Conquista, 1898):

    Sentaram-se os dois e Anselmo [alter-ego do romancista] pz-se a falar saudosamente da terra amada e longnqua, bero de ambos, provncia farta que um celleiro e um Parnaso onde, com a mesma exuberncia, pullulam o arroz e o genio: terra de algodo e de odes donde, com ingrata indifferena, emigram os fardos para os teares da Amrica e os vates para a Rua do Ouvidor; terra das lyricas, terra das palmas verdes, terra dos sabis canoros (COELHO NETO, 1921, p.7-8).

    A INVENO DA TRADIO

    No ano seguinte criao da Academia Maranhense de Letras (AML), Antnio Lbo publicou um livro seminal: Os Novos Atenienses (1909), no qual o poeta e romancista considerado por MORAES (1977, p.206) a principal figura da vida literria maranhense nos primrdios do sculo

    XX busca fazer um balano das atividades e da produo de sua gerao intelectual. O ensaio foi composto em duas partes, os fatos e as individualidades (divididas entre poetas e prosadores). Precedendo ambas, uma rpida introduo, em que o fundador da cadeira no 14 da AML afirma sua filiao terica a Adolphe Coste (Principes dune Sociologie Objective) e aos postulados do cientificismo (LBO, 1970, p.3-10). A inteno manifesta das preliminares refutar as proposies do filsofo e historiador Hippolyte Taine sobre a literatura, especialmente sua tese de que esta seria subordinada trplice influncia do meio, da raa e do momento. Antnio Lbo apia-se na distino proposta por Coste entre as duas ordens de fatos sociais (independentes entre si) analisados pelas cincias humanas: a primeira ordem, ligada ao estudo da produo, populao, poltica, culto objetos da Sociologia; e a segunda, dedicada ao estudo das belas artes, das belas letras, da cincia, da filosofia objetos de outra cincia, a Ideologia. Tal incurso doutrinria teve por objetivo demonstrar que a histria do Maranho, no advento do sculo XX, confirmaria as teses de Coste. Pois, segundo Antnio Lbo, inferioridade manifesta da nossa vida sociolgica, cujas causas gerais estariam ligadas decadncia econmico-financeira... alia-se uma grande exuberncia de vida ideolgica. Segue-se uma passagem bastante expressiva:

    Aos anos de apatia e marasmo, que se seguiram brilhante e fecunda agitao literria, de que foi teatro a capital dste Estado, nos meados do sculo findo, e que ficar marcando, para honra e glria nossa, uma das pocas mais fulgentes da vida intelectual brasileira, substituiu-se, afinal, uma fase franca de revivncia intelectual, que, desde o seu incio, vem progressivamente caminhando, cada vez mais acentuada e vigorosa, destinando-se a reatar as riqussimas tradies das nossas letras, que a muitos se afiguravam j totalmente perdidas (idem, p.4-5).

  • Dessa forma, o livro dedicado ao estudo da ressurreio espiritual, ao atual rejuvenescimento literrio do Maranho, buscando fazer obra imparcial e justa, como devem ser todas aquelas que se destinam a transmitir ao futuro a memria do presente. A primeira parte (os fatos, dotados da aura mgica de portadores da verdade, segundo os cnones positivistas e cientificistas) dedica-se construo da histria (e tambm da memria) da gerao do autor os Novos Atenienses, pais fundadores da Academia Maranhense de Letras. Contudo, sua exposio vai alm, ao instituir uma periodizao da vida literria local em torno da idia de trs geraes consecutivas: a primeira, de inspirao romntica (contando com Gonalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis, entre outros), gerao apenas debelada pela morte, cujo canto de cisne foi a publicao do jornal Semanrio Maranhense (1867-68); a segunda, aquela dos que emigraram da Provncia, indo levar a outras mais afortunadas o concurso precioso dos seus talentos e da sua atividade, migrao forada pela barreira inexorvel da indiferena pblica, cujo caso extremo foi a reao adversa da sociedade ludovicense ao romance O Mulato (1881) de Alusio Azevedo; a terceira, a gerao do prprio autor, responsvel pelo rejuvenescimento literrio da poca (idem, p.13-5). Apesar da distncia geogrfica, os componentes da 2a gerao (os emigrados), eram os depositrios fiis das nossas tradies, os herdeiros diretos do nosso nome literrio, os nicos que nos asseguravam ainda incontestado direito ao realante cognome de Atenas Brasileira (idem, p.15-6). Enquanto esses literatos se envolviam ativamente na vida cultural da capital federal, a provncia se encontrava assombrada:

    Comeou ento para o Maranho essa tristssima e caliginosa noite, em que, por to longo tempo, viveram imersas as suas letras, noite cortada, por vezes, pelo claro fugidio de algum astro errante, que para logo se ia eclipsar na morte, ou perder-se na distncia a que era

    impelido pelas inelutveis fatalidades da sua trajetria (idem, p.14).

    Decadncia noo instituda e ao mesmo tempo instituinte dos imaginrios sociais, cuja vitalidade pode ser dimensionada por sua reproduo e recriao posterior. O historiador Mrio Meireles, ao analisar o panorama cultural dos primrdios da Repblica, postula a idia de uma isocronia entre as fases da evoluo de nossa vida econmica e de nossa vida cultural (posio que o colocaria ao lado de Taine, no debate com Adolphe Coste). Ao ciclo econmico do algodo, corresponderia o ciclo literrio do chamado Grupo Maranhense (1832/1868), dominado pelo esprito humanstico dos doutores e bacharis de Coimbra e Olinda, dos filhos dos nossos grandes senhores rurais; ao ciclo da cana de acar, o segundo ciclo literrio (1868/1894), momento em que a provncia no mais se satisfez com o ter, em sua capital, um grupo romantista e passou a exportar os seus valores intelectuais, ainda incipientes, para que, na Corte, se faam e se firmem como nomes nacionais, apenas nascidos no Maranho. Com a abolio e a Repblica (e o desequilbrio e decadncia econmica), sobreveio o ciclo decadentista (1894/1932) que viveria das glrias daquele passado, momento em que o Estado apenas procura lutar por que se no apague a chama daquele ideal e se no perca a tradio que deu as glrias de Atenas do Brasil (MEIRELES, 1980, p.353-4). Mesma periodizao, velhas e novas significaes, compartilhando a preocupao de preservao da identidade e tradio do Maranho. Apesar de reconhecer os mritos da gerao dos novos atenienses, em sua luta pelo restabelecimento dos foros de grandeza intelectual da terra, em seu trabalho de fundao da AML (1908), da Faculdade de Direito (1918) e do Instituto Histrico e Geogrfico do Maranho (IHGM, 1926), Mrio Meireles considera-a decadentista porque se no pode negar, [essa fase] foi inferior s dos ciclos anteriores (idem, p.355). A manipulao discursiva das imagens da decadncia e da tradio encontra-se,

  • portanto, articulada a estratgias de legitimao (ou no) de personagens e grupos intelectuais no cenrio estadual; determinao dos lugares a ocupar na histria da literatura maranhense. MORAES (1977, p.201-205), apesar de incluir em seu texto alguma pesquisa nova com jornais da poca (Filomatia e A Alvorada), praticamente reproduz o essencial do argumento de Antnio Lbo, especialmente no tocante fundao da Academia de Letras, rgo cultural a que, por seu carter de permanncia, estaria reservado relevante papel na histria de nossa cultura (MORAES, 1977, p.201-205). Novas imagens e representaes combinam-se a novas prticas, associadas s instituies culturais fundadas nas primeiras dcadas do sculo XX. Estamos diante de um processo de inveno da tradio, com a formalizao de:

    um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado (HOBSBAWM, 1997, p.9).

    O carter de permanncia dessas instituies no contexto regional constitui uma tentativa de superao do tempo, unificando passado e presente, e projetando para o futuro a possibilidade e a esperana de retorno Idade de Ouro. Em funo das prprias condies de eficcia do discurso, acaba-se por delimitar um dever simblico a cada nova gerao (categoria artificial que, no mesmo processo, se naturaliza, criando uma suposta continuidade e homogeneidade biolgica e temporal, que se reproduz socialmente enquanto continuidade horizontal, da gerao, da mocidade), qual seja, o dever de deixar o seu quinho de contribuio s glrias da terra-bero, atribuindo aos intelectuais um papel de interveno demirgica na sociedade local. Simultaneamente, houve um deslocamento dos processos de consagrao literria a nvel estadual, que passaram a ser

    mediados por essas instituies, as quais detm o poder de conferir um status diferenciado a seus membros no interior da sociedade maranhense. De certa forma, o mesmo ocorre com os emigrados, pois, ao lado do reconhecimento adquirido na metrpole, muitos deles, mesmo distncia, passam a fazer parte dessas instituies, na medida em que as mesmas acabam funcionando como incentivadoras do sentido coletivo de superioridade das elites, conforme adverte o historiador ingls Eric HOBSBAWM (1997, p.18).

    MAPEANDO A TERRA DAS PALMEIRAS

    Alm da histria, da literatura e do discurso poltico, um outro campo de produo de saberes se insere no debate sobre a identidade e a tradio do Maranho, a geografia, que, ao produzir conhecimentos sobre a regio, tambm se movimenta no universo da teia discursiva constitutiva dos imaginrios sociais, significando e re-significando, abordando velhos temas e propondo novos. Lembrando o carter exploratrio deste texto, iremos tratar neste tpico de um dos livros fundantes da geografia do Maranho, Uma regio tropical de Raimundo Lopes (publicado em 1a edio com o ttulo de O torro maranhense, 1916). No Prlogo, o autor anuncia seu intento de aplicar os princpios e os mtodos da moderna geografia ao estudo do caso particular do Maranho (LOPES, 1970, p.1-4). Esta geografia cientfica tem por objetivo de produzir uma sntese total dos fenmenos do planeta (uma geografia do todo), articulando aspectos inter-relacionados: o meio fsico (geografia fsica), a vida (biogeografia: fauna, flora), a formao humana, e a geografia no tempo (histrica). Por conta disso, o carter sistemtico e abrangente da obra, que envereda por campos tais como a economia, a etnologia indgena, a questo racial, a histria. Na percepo do conjunto, o leitor vai descortinando aos poucos o estabelecimento de problemas, apontados com o ntido propsito de interveno na

  • realidade com vistas construo de um Maranho renovado. O debate, que, como vimos apontando, girava em torno da definio da identidade regional em termos da excepcionalidade maranhense no contexto do pertencimento nacionalidade brasileira, sofreu uma inflexo significativa com a introduo do saber cientfico. Inflexo que acompanhou a mudana de paradigmas operada no debate sobre a identidade nacional; debate no qual, sob influncia das correntes cientificistas e positivistas, diversos grupos intelectuais se envolveram ativamente visando construo de um saber prprio sobre o Brasil que possibilitasse sua transformao e modernizao. Foi imbudo desses princpios e idias que Raimundo Lopes se predisps a pensar o Maranho. O primeiro ponto a destacar a discusso da questo racial. Preso a fortes preconceitos sobre a superioridade civilizatria da raa branca, e com um particular desprezo pelo mulato (mestio branco/negro), em contraposio ao caboclo (mestio branco/ndio por quem nutre alguma simpatia, na linha da ambigidade de Euclides da Cunha), o cientista acompanha em linhas gerais os parmetros do debate existente no pas no incio do sculo XX acerca dos temas correlatos da raa, da mestiagem, do carter e da cultura nacionais (idem, p.62-3, 67-73). Segundo ALBUQUERQUE JNIOR (1994, p.55), a interpretao naturalista e evolucionista do Brasil considerava o pas como estando preso a um estgio cultural inferior, ainda no tendo atingido a civilizao. O Brasil era visto como atrasado em relao a um processo cujo desenvolvimento paradigmtico se dava na Europa. Dessa forma, diversos discursos vo mapear o pas, dividindo-o em regies raciais, discursos que, no mesmo procedimento, procuraro justificar a superioridade de um espao sobre outros e serviro de suporte imagtico da produo dos esteretipos e preconceitos regionais. Alm disso, houve a emergncia do saber biotipolgico, que colocava na ordem do dia a definio do que seria o tipo nacional, a partir da construo de tipos raciais e

    culturais, os quais aliam caractersticas somticas com as manifestaes exteriores da psicologia dos indivduos ou grupos, procurando determinar o que os individualizava no nvel comportamental (idem, p.62, 66). A investigao de Raimundo Lopes, acerca das raas e do carter psicotnico do maranhense, se constri numa relao que pensa tanto as raas e o carter do brasileiro, quanto a especificidade maranhense nesse conjunto. Vejamos o argumento. Ao analisar a formao humana, inclui o Maranho na zona do caboclo, segundo classificao elaborada por Roquette-Pinto, porque realmente, o mestio de sangue indgena, descendente na baixada dos catecmenos das misses, forma o substratum da populao maranhense. Apesar de, no litoral, haver uma zona de influncia preponderante do branco, isto no impede que, em seu conjunto, o estado seja predominantemente mestio (LOPES, 1970, p.62,77). Ao tecer comentrios sobre as raas puras (baseado em seus conhecimentos de etnologia indgena) afirma que a atitude dos nossos ndios tem sido mais subterrnea que abertamente hostil, e quase apenas defensiva. Os conflitos seriam resultantes das prprias necessidades [de terras] da civilizao e dos preconceitos, tanto do civilizado como do selvagem, assim, o quadro que se nos apresenta o de dois mundos, tendo evoludo distintamente e que esto em graus muito diversos de cultura. J em relao raa negra, a apreciao no to positiva.

    Desde os tempos coloniais cada vez mais se afirma o predomnio, social e tnico, da raa branca... [vitria proveitosa, porque] malgrado o horror do regime escravista e a marca, porventura indelvel, que ele deixou no ser moral do brasileiro, a raa negra pouco a pouco se elevou, ao contacto do branco, e o descendente do fetichista antropfago do Congo converteu-se, pelo cruzamento ou pela educao, num civilizado (idem, p.68-70).

  • Apesar do marcado preconceito em relao a negros e mulatos, o autor faz rpidas consideraes sobre a existncia de quilombos no Maranho, considerando-o uma das provncias onde mais se desenvolveram os quilombos, alguns notveis como os de Viana (possivelmente uma referncia insurreio de 1867) e de Cod, este ltimo dos tempos da Balaiada, comandado pelo lendrio e funambulesco senhor Dom Cosme Bento das Chagas, tutor e imperador das liberdades bem-te-vis. Menciona ainda as confrarias fetichistas das Pretas Minas, que se explicam pela conservao dos costumes e supersties africanas, consideradas uma curiosa associao, com as suas estranhas prticas, em que o catolicismo romano se mistura s usanas e crendices do Continente Negro. Elementos que constituem a tradio racial da nossa terra (idem, p.69,73). Chamamos a ateno sobre este ponto, porque ele sinaliza no sentido de uma outra mudana fundamental nas representaes sobre o Maranho, aquela que se deu com a introduo da temtica da cultura popular no debate acerca da definio da identidade nacional. Vrios intelectuais passaram a se ocupar desta temtica, a exemplo de Antnio Lopes e Domingos Vieira Filho. J apontamos em artigo sobre o bumba-meu-boi, sua transformao em smbolo maior da identidade cultural do Maranho, em virtude da atuao de intelectuais e rgos oficiais de cultura (como tambm dos prprios brincantes); transformao que produziu um silenciamento da histria anterior de conflitos entre os brincantes de bumba-meu-boi e as elites locais (COSTA, 1999). No caso da cultura negra, a mais acabada expresso literria da apropriao e reinveno dessa temtica pelos intelectuais timbiras o romance Os tambores de So Lus de Josu Montello, que toma como referente de construo esttica a religio afro-brasileira da Casa das Minas. A anlise das raas complementada pela definio do tipo e do carter regional. Afirmando que no Maranho haveria um tipo mais vago e mais complexo do que aquele do jaguno (definido por Euclides da Cunha), o autor aponta vrios tipos maranhenses (relacionados s zonas

    geogrficas do estado): o pescador ribeirinho, indolente, reflexo quase fiel do selvagem; o vaqueiro dos campos baixos, mais empreendedor, aventuroso; o lavrador rude, sbrio; o sertanejo do Chapado, ambicioso e rude. E o homem da capital, o sanluisense, tipo burgus, avesso a violncias, grave, com um pouco de atividade mole do mulato, encarcerado na rotina funcionalista e comercial (LOPES, 1970, p.195). Destes tipos sub-regionais resultaria um tipo mdio, atravs da histria e do povoamento, o maranhense. Vale a pena acompanhar a descrio desse personagem:

    O maranhense tem em alta escala um vcio quase geral da nacionalidade: confundir iniciativa e anarquia, ordem e marasmo. A ao no lhe falta, e sim a continuidade dela; tbio por vezes e desanima s dificuldades. A audcia dos aventureiros -lhe tanto ou mais suspeita que o emperramento... As suas mais belas qualidades, a tolerncia e a ordem, ou melhor, adaptabilidade, chegam a degenerar em defeitos. Intelectualmente, nota-se a facilidade de idealizar e aprender. incontestvel que estes atenienses permita-se o tradicional epteto tm, como os defeitos dos seus prottipos clssicos, uma tradio de cultura literria relativamente notvel, e cabe-lhes um lugar de destaque na formao intelectiva nacional. H uma qualidade suprema que nunca faltar ao clamo maranhense: o colorido, a graa e o valor da dico. Sob o ponto de vista da criao esttica e cientfica, tem dado exemplo de esprito crtico claro e seguro, e de fora conceptiva e associativa. Uma vaidade de raa exagerou o valor desses dotes, conferindo terra das palmeiras uma preeminncia que no se traduz em plena realidade. Moral e religiosamente, o filho do Maranho tem bastante senso para no ser fantico; entre os nossos prprios sertanejos no se desenvolveram tendncias msticas [do beato-cangaceiro] (idem, p.196).

  • Este o maranhense na pena de Raimundo Lopes, tolerante, ordeiro, adaptvel, inteligente, excelente falar, esprito crtico, religioso, e no fantico (como os sertanejos de Canudos); mas portador de grandes defeitos, tais como, tbio, rotineiro, acomodado, e com uma vaidade de raa que o levou a exagerar na construo da tradio da Atenas. Se o senso crtico do autor no lhe permite aceitar sem reservas as representaes construdas, por outro lado, seu campo de significaes est circunscrito questo fundamental em debate: a busca e determinao da especificidade maranhense, acrescida em seu trabalho da pesquisa sobre os tipos regionais. Nestes termos, avana na proposio de uma outra especificidade da terra enquanto uma zona de transio. Em suas palavras: no conjunto das grandes regies brasileiras, o Maranho faz parte da complexa transio entre o Extremo-Norte (a Amaznia) e o Nordeste, entre a baixada e o planalto, sob o ponto de vista do relevo, como entre a grande mata e o serto, sob o ponto de vista da flora (idem, p.115). Singular e complexo geograficamente, com caractersticas tanto do serto, quanto da hilia amaznica (peri-hilico, pr-Amaznia), com destacada presena da palmeira de babau, dominante na chamada zona dos cocais. Contudo, o gegrafo revela-se consciente do carter arbitrrio da categoria Maranho, cuja existncia seria devida unicamente a critrios poltico-administrativos. Sendo assim, a nica rea genuinamente maranhense seria a bacia do golfo (formada pela ilha de So Luiz e pelos rios interiores, o Munim, o Itapecuru, o Mearim, e seus dois afluentes, Pindar e Graja), pois unida geogrfica, demogrfica, econmica e historicamente. Tal concluso leva formulao de um problema maranhense, o da integrao das reas isoladas ao resto do estado e conseqentemente ao pas, visando sua unificao real e definitiva (idem, p.197). O problema da integrao apresentaria duas dimenses: o problema da mata (a regio oeste do estado, de floresta amaznica) e o problema sertanejo (o alto serto, regio sul maranhense). Tanto o

    deserto florestal, potencialmente rico em produtos extrativos (a imagem de deserto humano para designar a hilia foi tomada de emprstimo a Euclides da Cunha), quanto o sul pecuarista necessitariam ser integrados, seno continuar metade do Maranho como que esquecida da outra metade, num mundo parte (idem, p.176). bvios os interesses econmicos e polticos (as citaes, por exemplo, s desordens freqentes no serto) envolvidos na tese da integrao regional sob a gide do litoral, a qual projeta, implicitamente, a idia de dar concretude econmica e histrica a uma categoria predominantemente poltica, o Maranho. A equao se completa com a abordagem do problema econmico maranhense, com uma economia imersa na rotina e no atraso, contraposta ao progresso do sul do pas. Por isso, a exortao por um Maranho renovado, construdo a partir da adoo de medidas reformistas, amparadas em critrios cientficos. As imagens e representaes da ideologia da decadncia so acionadas pelo discurso geogrfico, (re)produzindo o desejo de um mtico renascimento, um florescimento da nossa cultura material e mental, mais coesa, mais forte e mais brilhante, numa cidade nova, que, resultante do novo estado de coisas, pompeie, como a princesa dos campos, na convergncia dos grandes rios, no centro da plancie fecunda (idem, p.197). Entretanto, num ponto fundamental, a anlise econmica do autor divergente do senso comum sobre a decadncia da lavoura. O que se pode observar uma disputa entre as representaes que devem nortear a percepo da realidade, processo no qual a vitria de determinada concepo, implica no apagamento de outras, em seu silenciamento. O ponto de discrdia reside na anlise da crise ps-abolio, a qual marcada na maioria dos intrpretes pelas imagens da catstrofe e da hecatombe. Analisando a estrutura agrria, aponta como a grande doao, a sesmaria, foi o defeito da partilha de terras no Brasil, e como, no caso maranhense, o problema da concentrao fundiria seria menos acentuado, pois, a Abolio facilitou o evoluir da partilha das terras, pela substituio efetiva

  • mas ainda incompletamente estabilizada das fazendas senhoriais pelas famlias de lavradores (idem, p.82). Essa concepo crtica da questo agrria lhe permite concluir, ao final da anlise, que a vitria do abolicionismo:

    ... foi uma crise econmica profunda, mas trouxe uma verdadeira renovao social, altamente benfica em seu conjunto. Suas conseqncias se desenrolam no perodo republicano. A importncia da aristocracia agrcola se desfaz: pujana dos orgulhosos auriocratas [sic] da faixa vizinha dos campos baixos sucede a prosperidade dos pequenos lavradores, e da cultura algodoeira. A esta ltima se prende uma tentativa industrialista, uma quase mania das fbricas; ao mesmo tempo tenta-se, sem resultados definitivos, regenerar a indstria do acar. Apesar de tudo o trabalho dos pequenos lavradores, ainda hoje, a base da vida econmica do Maranho (idem, p.194).

    Com todas as ressalvas que possam ser feitas, a anlise de Raimundo Lopes se encontra prxima da recente reviso da questo promovida ao nvel da pesquisa universitria. decadncia da aristocracia sucederia a prosperidade dos pequenos lavradores, pensada enquanto uma renovao social. Novos ngulos de abordagem: a determinao da decadncia como afetando uma classe social especfica (expressando o ponto de vista das elites locais) e a viso positiva do processo de transformaes na estrutura agrria. Contudo, o autor no se estende na avaliao do pequeno lavrador nomeado (fora rpidas passagens sobre ser rude e sbrio e sua cultura rotineira e destrutiva), pois suas pginas mais emocionadas e plenas de imagens foram dedicadas decadncia da aristocracia, atravs da descrio de um (no) lugar Santo Antnio dAlcntara.

    AS CIDADES COMO TEXTO

    Alcntara, a morta. Considerado durante o Imprio o ncleo urbano mais polido, mais faustoso e mais aristocrtico da provncia, tornara-se uma fantasmagoria, um vilarejo de sofridas lembranas aps o abandono de seus casares pelas elites derrocadas. A partir do ltimo quartel do sculo XVIII, a conjugao da agricultura escravista e do alto comrcio possibilitou antiga aldeia de Tapuitapera rivalizar em prestgio com So Lus (o autor chega mesmo a comparar tal contraste com o conhecido conflito entre a aristocrtica Olinda e a burguesa Recife). A prosperidade foi sendo abalada ao longo do sculo XIX por uma conjuno de fatores: a comunicao direta de suas reas-satlites na baixada com a capital; a lei abolicionista; o deslocamento da atividade econmica para o baixo serto. Entretanto, no nos deteremos em anlises econmicas, mas sim na imagtica construda sobre sua decadncia e morte.

    ... cidade meio abandonada, Alcntara guarda ainda as relquias do fausto extinto... Edificou-se num plano largo, quase monumental, ruas amplas, casas slidas, numerosos sobrados, muitos dos quais so verdadeiros palacetes ... E a velha cidade morta, com os seus templos derrudos e casares destelhados, tem a poesia do passado, da grandeza perdida, das relquias venerveis... (LOPES, 1970, p.103-4).

    ... essas fazendas, que foram colmias do trabalho alcantarense, e so hoje taperas, reveladas apenas pelas mangueiras seculares e pelos alicerces dos assentamentos dos engenhos... e, finalmente, essa rua da Amargura, cujo nome lhe profetizou o destino, hoje runas de ponta a ponta, onde outrora se erguiam as principescas residncias dos Mendes, dos Sousas, dos Guterres, dos Vales e tantos outros potentados (VIVEIROS, 1975, p.54-5).

    Decomposio, runa, relquia, morte, fel, poesia. Representao da decadncia em

  • termos de imagens alegricas, que orientam o olhar e a percepo. Metforas de longo alcance, que no reproduzem os eventos que descrevem, mas sim nos dizem a direo em que devemos pensar acerca dos acontecimentos e carregam o nosso pensamento sobre os eventos de valncias emocionais diferentes (WHITE, 1994b, p.107-8). Decadncia cujo substrato material o sobrado em runas, a fazenda regredindo em tapera. A poesia das ruas triste, comovente das velhas cidades coloniais se transformou, assim, em tema recorrente dos discursos locais, em especial daqueles dedicados s principais cidades da Idade de Ouro: So Lus e Alcntara, cidades-runa. Espaos da saudade. Sentimentos despertados no simples ato de visit-las.

    Basta percorrer algumas ruas de So Lus para se sentir que o passado ainda ali est presente. So os velhos sobrados senhoriais... So os casares apalaados... So igrejas venerandas... So as ruelas estreitas, onde ainda se vem alguns passos das procisses de antanho, que nos transportam insensivelmente para os sculos coloniais (AZEVEDO & MATTOS, 1951, p.72-4).

    Transportar, trazer para outro lugar, metfora (meta-phorein). Vencer a distncia temporal, esta a sensao do gegrafo Aroldo de Azevedo (professor catedrtico da USP), a de estar caminhando por uma cidade que o tempo esqueceu, contraposta sua percepo de habitante de uma metrpole, onde o tempo corre depressa. A cidade como um texto do passado, de uma poca de glrias perdidas nas brumas do tempo, mas reencontradas a todo o momento ao dobrar-se uma esquina, no sobrado, nas pedras de cantaria, nos azulejos e mirantes. Esta a leitura potica da urbe colonial, que o turista registrou com sua mquina fotogrfica, direcionando o olhar, com o intuito de preservar mecanicamente este instantneo do passado. A mesma sensao aguardava-o no outro lado da baa de So Marcos.

    No tardou que nela se concentrasse a aristocracia maranhense, vivendo uma existncia faustosa, orgulhosa de seus casares apalaados e olhando com certo desprezo para So Lus, centro da burguesia da poca, considerada uma cidade de mercadores... Desse modo, foi Alcntara posta fora de combate; hoje, nada mais que um espectro do passado, uma cidade morta (que o governo federal j considerou monumento nacional), com suas ruas desertas e cobertas de capim, seus venerandos sobrados que podem ser alugados por 50 ou 100 cruzeiros mensais, suas tristes runas, invadidas pelo mato (como as que se encontram na chamada Rua da Amargura) (idem, p.76-7).

    Derrotada, a Olinda maranhense transformou-se em cidade-fantasma, a natureza reivindicando seus despojos atravs do capim e do mato. Contudo, sua rival burguesa conquistou uma vitria de Pirro, pois, mesmo que seus casares ainda persistam em manter-se de p, conservaria, como sua antiga rival, uma relao especfica com o tempo, a ausncia. Assim, o repertrio alegrico da decadncia expande-se em nova erupo. So Luiz e Alcntara, cidades-texto da decadncia, cantadas em verso e prosa na literatura regional, escrituras de um passado desaparecido em seu fausto e esplendor, cidades-histria que nos transportam alegoricamente do presente ao passado e vice-versa, monumentos, runas, patrimnios da humanidade. Por um efeito de condensao, se estabelecem pontos de fixao (FLETCHER, 1990, p.369) nas imagens da decadncia, pontos que, em nosso caso, so melhor visualizados por meio da produo literria. Selecionamos para anlise o romance A noite sobre Alcntara de Josu Montello, narrativa de condensao dos imaginrios sociais maranhenses. Romance histrico de fixao, mas tambm de instituio, que sempre significa mais do que literalmente diz, diz algo diferente do que parece significar, e s revela algumas coisas sobre o mundo ao

  • preo de esconder outras tantas (WHITE, 1994a, p.28). Romance epitfio, recheado de saudade, decadncia e expresso da vida, constitutivo da saga maranhense do autor. [Tal saga concretizao do projeto literrio de (re)construo da identidade regional compreende vrios romances, dos quais destacamos A dcima noite (1959), Os degraus do paraso (1965), Cais da Sagrao (1971), Os tambores de So Lus (1975), A noite sobre Alcntara (1978). Este ltimo foi apresentado como a saga da aristocracia maranhense, contraposta (e complementar) saga do negro (em Os tambores).] Um ponto de partida possvel para a nossa investigao so as palavras de outro intelectual regionalista e tradicionalista, Gilberto Freyre, que, em comentrio ao romance A dcima noite, se perguntou: qual o atrativo principal do novo livro do escritor maranhense?. A resposta evidencia um critrio de juzo esttico fundamental ao escritor pernambucano a literatura enquanto arte de expresso, expresso da vida critrio pelo qual combate em defesa da literatura regionalista. Vejamos, ento, a resposta:

    ... [o atrativo ] a evocao de um Maranho que j quase no existe, por um maranhense que tambm um raro artista literrio; e que guarda daquele Maranho quase desfeito imagens de uma rica sugesto potica. So essas imagens que enchem A Dcima Noite de uma srie de ressurreies de tempos mortos, que vm at um homem de hoje com alguma coisa de nostlgico, de saudoso, s vezes at de sentimental, que s faz aumentar o seu encanto (FREYRE, 1962, p.23).

    O poder de evocao, poder mgico de invocar almas, espritos e demnios, de chamar memria, de reproduzir na imaginao e no esprito. Poder divino de ressurreio, de (re)criar o mundo, poder imagtico do romancista de tocar a sensibilidade do homem de hoje, atravs do despertar de sugestes poticas. Poder conjugado virtude de narrador, que

    constri sua trama em uma dupla temporalidade, em que passado e presente [dos personagens] se interpenetram (idem, p.21-5). Esse juzo de valor esttico, cujos pressupostos residem na filosofia idealista alem, pensa o ato de compreenso como interpretao das manifestaes da vida, da expresso de seus sentimentos e suas emoes. O poder de evocao tem a capacidade de superar a distncia (temporal e geogrfica) entre os homens, a partir do postulado de uma identidade fundamental entre todo e qualquer homem. Movimento de superao, que, por sua vez, transforma o regional, o maranhense, em universal, atravs da empatia e da identificao (RICOEUR, 1990; SZONDI, 1989). Visto por esse ngulo, o projeto literrio de Josu Montello adquire contornos mais precisos. No depoimento pessoal com que se inicia o romance, o escritor relata uma travessia para Alcntara, visita que lhe forneceu o leitmotiv do livro, comentando que tarde da noite, muitos destes imponentes sobrados senhoriais, h tanto tempo fechados, misteriosamente se descerram. Como outrora, refulgem as luzes de seus sales no retngulo das janelas sobre a rua. Ao que acrescenta,

    ... fiquei a pensar nessas ressurreies noturnas. Lenda? Realidade? E aos poucos comecei a ver que, luz do sol, Alcntara retrocedia no tempo, com o retinir das ferraduras nas pedras de seu calamento, o rolar das carruagens de portinholas brasonadas, as janelas que se escancaravam sobre o passeio, e gente que vinha, e gente que ia, grave colorida, nas suas roupas fora de moda, e que passava por mim sem me olhar (MONTELLO, 1978, p.7).

    Atravs da reflexo (imaginao), efetuada luz do sol, o romancista vence o tempo e se transporta ao passado vivo de Alcntara, passado que ressurgia (na lenda ou na realidade) somente tarde da noite, enquanto a claridade do novo dia no chegava. O jogo de palavras com os significados metafricos de dia e noite no inocente, o autor os reveste de tal ambigidade que a noite, usualmente

  • associada s idias de morte e decadncia, tambm pode ser expresso de vida e ressurreio (a mesma ambivalncia vale para o dia). Em passagem marcada pela morbidez e pela melancolia (com pitadas de grotesco alegrico), confrontando a sensibilidade e os sentidos do leitor, o mesmo jogo de ambivalncias reaparece a configurar a idia de cidade morta.

    De repente, j longe, teve a sensao ntida de que ia andando pela alameda de um cemitrio. As casas fechadas eram sepulcros, e ali jaziam condes, bares, viscondes, senadores do Imprio, deputados, comendadores, sinhs-donas, sinhs-moas, soldados, mucamas, juzes, vereadores, sacerdotes. Somente ele, assim desperto dentro da noite, estaria vivo na cidade de mortos. E uma impresso instantnea de frio gelou-lhe as mos e os ps, com a idia de que, tambm ele, ia permanecer em Alcntara para sempre, encerrado no mausolu de seu sobrado (idem, p.245).

    Alegoria comemorativa de uma cidade-fantasma, que noite dominada por pesadelos, alucinaes e assombraes (de escravos annimos e de pessoas importantes, a exemplo do Baro de Pindar), A noite sobre Alcntara oferecido leitura sob o signo da ambigidade e da ambivalncia. O romance proporciona ao leitor a possibilidade de uma volta ao passado que apaga a passagem destruidora e corrosiva do tempo sobre a cidade, e, simultaneamente, coloca para o presente a necessidade de preservao das runas verdes de Alcntara (patrimnio histrico). Num nvel mais abstrato, projeta-se para o futuro o desejo de que efetivamente os imponentes sobrados senhoriais descerrem suas janelas sobre a rua, num tempo cclico de volta Idade de Ouro do Maranho. Santo Antnio dAlcntara cidade-texto da decadncia, cidade morta renascida na literatura. A estrutura narrativa cumpre um papel importante na concretizao do projeto literrio do romancista, encontrando-se dividida em duas partes A travessia (depoimento do autor) e Enquanto a noite

    no vem (o romance propriamente, subdividido em 5 partes). A ambigidade caracterstica do romance pode ser observada na funo das sete epgrafes que correspondem a esta diviso. Estas cumprem o papel de epitfios de Alcntara, e, na medida em que se apiam em diversas representaes sobre a cidade-runa (de poetas, gegrafos e historiadores), tm o efeito de condensar os imaginrios sociais, ao mesmo tempo em que fornecem diretrizes para pensar tanto a histria da cidade quanto a estria do romance, evidenciando a duplicidade de intenes do gnero romance histrico. Vejamos algumas das epgrafes-epitfios:

    Eu careo de amar, viver careo Nos montes do Brasil, no Maranho Dormir aos berros da arenosa praia Da ruinosa Alcntara (Souzndrade, Harpas selvagens) Rainha da opulncia destronada, Tu tens por fausto o mar; por trono o nada: Grandezas que te restam do passado (Agostinho Reis, Alcntara) Adeus, Alcntara, com a tua gua fresca e leve da Miritiua, os teus cravos cheirosos, as tuas praias alvinitentes, a beleza dos teus luares, a singeleza da tua vida, o teu povo amorvel, as tuas moas esbeltas, trigueiras, de olhos lquidos, flores entre runas, o esplendor e altivez do teu passado em contraste com o apagado e a humildade do teu presente (Antnio Lopes, Alcntara).

    Numa linha de interpretao psicolgica (vertente na qual Josu Montello classificado pela histria da literatura), o romance conta a estria do desencontro amoroso entre dois personagens, o Major Natalino e Maria Olvia, ambos filhos da aristocracia alcantarense. Ele, neto de Baro, filho de Visconde, voluntrio e heri da Guerra do Paraguai, republicano e abolicionista (motivo de freqentes conflitos com o pai, liberal do partido bem-te-vi). Ela, filha de Baro, educada num Internato em Paris, poetisa (Violeta de Alcntara),

  • independente (entrando em choque com o conservadorismo social local), professora quando a famlia vai falncia. O desencontro motivado pela certeza de Natalino de que estril, da sua recusa a casar-se por no poder ter filhos, cumprindo a funo social da famlia. Somente ao final, aparece um filho bastardo de Natalino com uma plebia, acontecimento que leva-o a repensar toda sua vida. A decadncia de Alcntara projeta-se em todas as esferas, inscrevendo-se mesmo nos corpos de seus habitantes/personagens: a esterilidade do Major corresponde simetricamente queda de cavalo sofrida por Maria Olvia, acidente traumtico no qual ficou aleijada, retirando-se dos convvios sociais e tornando-se a solitria prisioneira do sobrado. Assim, por vias diferentes, ambos so dominados pelo doloroso sentimento de ausncia da maternidade/paternidade. Numa cidade morta impossvel gerar-se qualquer fruto. A estrutura temporal da saga aristocrtica divide-se em dois planos, movendo-se entre o presente decadente e o passado de fausto, mas tambm de inconseqncia (simbolizada pelo episdio verdico da construo dos dois palcios do Imperador, pelos partidos liberal e conservador, esperando uma visita que Pedro II jamais realizou...). O presente transcorre entre o Natal e o Ano Novo de 1900, poca em que a vila j est morta, mas vsperas do novo sculo, com todo o imaginrio de renovao e progresso correspondente. J o passado engloba o perodo entre a dcada de 1860 e a proclamao da Repblica (1889), poca do auge e posterior declnio da cidade. Os dois planos so ligados por alguns artifcios narrativos: a memria de Natalino (seu fluxo de recordaes enquanto se prepara para ir embora) e o dirio ntimo de Maria Olvia (apresentado como real e em parte guardado no Instituto Histrico, o que lhe confere um sabor de fonte histrica). Alm disso, a narrativa constri situaes em que personagens de fico contracenam com personagens da histria local, o que d oportunidade ao relato dos acontecimentos histricos da cidade. Assim, no romance esto complexamente interligadas a fico, a

    memria e a histria. Essa unio de fundamental importncia no tocante aos efeitos-conhecimento e aos significados que a saga de Josu Montello visa produzir. Esta uma de suas contribuies particulares ao dever simblico de preservao, difuso e (re)construo da tradio e da identidade do Maranho: a formao de lugares da saudade, lugares de memria (NORA, 1983). O texto urbano se expande, se desdobra e se individualiza na narrativa montelliana, compondo uma cartografia sentimental da cidade colonial, atravs da associao ntima dos cenrios experincia de vida dos personagens.

    Alcntara resplandecia na claridade crepuscular. Por toda parte, a algazarra dos pssaros. O pesado arfar das ondas esboroando-se na nesga da praia. E uma virao constante a correr as ruas, as praas, os caminhos, com uma poeira leve e translcida danando no ar. Por ali tinham passado as cadeirinhas de pau-santo, forradas de seda, com brases bordados nas sanefas de veludo, levadas pelos ombros dos negros. Depois, as carruagens de luxo, com arreios de prata nas parelhas. Agora era aquele deserto e aquele silncio, aguardando o tanger dos sinos pelas ave-marias. Entretanto, assim despovoada e quieta, nunca a cidade parecera to bela aos olhos de Natalino. Alcntara contemplava o mar pelas janelas de seus mirantes, enquanto a mata densa, que do outro lado a circundava, parecia vir avanando, a empunhar o penacho de guerra de suas palmeiras. Na orla da praia, ele sentou no mesmo banco onde se havia refugiado noite, depois do encontro com o filho. E ali ficou de pernas cruzadas, a bengala sobre os joelhos, vendo a luz se decompor sobre os telhados (idem, p.307).

    Esta cena do ltimo captulo, pouco antes do Major Natalino partir (para sempre?) de Alcntara, marcada pela descrio plstica do crepsculo a descer sobre a cidade, pela aura de encanto e beleza a envolver o

  • personagem, contm, entretanto, uma outra chave de interpretao: o tema do confronto entre natureza e civilizao. A reconquista da cidade pelas foras naturais. O mar e a floresta aos poucos encurralando a cidade, entoando seus gritos de guerra, enviando seus primeiros batedores, enquanto Alcntara, tendo cumprido seu ciclo de civilizao (das cadeirinhas s carruagens), resiste com suas ltimas foras. A imagem do penacho de guerra das palmeiras parece mesmo evocar um esprito invisvel que estivera adormecido o esprito dos ndios tupinambs, que ressurge para reivindicar sua antiga Tapuitapera. Impotente em meio ao conflito de dimenses titnicas, nada mais resta a fazer ao velho aristocrata seno sentar-se e embevecer-se com to fabuloso espetculo, enquanto interiormente encontra-se dilacerado por sentimentos contraditrios de beleza e medo, contemplao e temor. Poder-se-ia at afirmar que o melanclico final sinaliza para o total fracasso das tentativas de constituio de uma civilizao a dois graus do Equador. As elites escravistas maranhenses (por sua incapacidade) demonstraram o avesso da conhecida frmula de Euclides da Cunha: Estamos condenados civilizao. Ou progredimos ou desaparecemos. Agora, desse ponto de vista, s resta prantear em verso e prosa a Idade de Ouro perdida, criando alegorias da saudade. Num crepsculo de emoes, enquanto a noite no vem, evidencia-se o jogo de oposies que pontua todo o romance da decadncia: a simultaneidade dos contrastes entre o dia e a noite; a vida e a morte; o burburinho e o silncio; o movimento e o deserto (humano); a fertilidade e a esterilidade. Mltiplas significaes que podem ser condensadas numa idia-imagem nuclear as runas verdes de Alcntara. Desse modo, no romance-epitfio da aristocracia maranhense, representaes se envolvem e se cruzam, construindo um percurso que compreende o conflito entre os homens (aristocratas vs. escravos), o conflito entre cidades (So Luiz vs. Alcntara) e o conflito natureza vs. cultura. Fico, histria e memria se entrelaam no projeto literrio de Josu Montello para constituir camadas

    sobrepostas de significao sobre a cidade, cujo texto pode ser lido em vrias direes. Atravs da evocao da vida, o intelectual regionalista constri um suporte de mediao (o romance) no qual possvel (re)criar todo um mundo de glrias e tradies passadas, possibilitando ao leitor viajar no pelo tempo e reencontrar-se com sua identidade, enquanto maranhense, castiamente maranhense.

    ALMINTA: o subconsciente da decadncia

    O tema da vingana da natureza contra o homem, todavia, pode ser explorado em outras direes que no aquela tradicionalista e saudosista de Josu Montello. Um caso atpico de desconstruo crtica da ideologia da decadncia na cena cultural estadual consiste no conto Alminta de Ferreira Gullar um pequeno exerccio satrico e irnico com imagens e representaes j consagradas sobre a cidade morta. Sendo uma cidade inventada pela histria e pela literatura (que adotam o ponto de vista da antiga aristocracia escravista), Santo Antnio dAlcntara foi reconstruda pelo contista estreante a partir de outros lugares e atores (recalcados pela Histria oficial): os ratos e os morcegos. Personagens obscuros dos quais sabe-se pouco, pois, como os negros, somente so mencionados nos poucos momentos em que riscam como estrelas cadentes a histria dos brancos. Assim, filha do trabalho escravo, [Alminta] cresceu e progrediu com o suor dos negros at que um dia, entregue unicamente queles que se diziam seus senhores, comeou a morrer. E est morta agora (GULLAR, 1997, p.13). O golpe fatal da abolio anunciou a debandada geral.

    Na mesma noite em que os negros, bbados de alegria e de lcool, festejavam a liberdade nas ruas de Alminta, os senhores brancos, carregando eles mesmos, trpegos, seus pesados bas cheios de roupas finas, pratarias e cristais, tomaram os barcos a vela e atravessaram a baa. Pela madrugada, os negros saquearam as residncias e violentaram mulheres

  • brancas, retardatrias; puseram fogo na cadeia pblica, destruram o pelourinho e internaram-se no mato. Ningum mais soube deles. Assim foi que, na mesma noite, Alminta foi abandonada pelos senhores de escravos e pelos escravos. A histria dos ratos comea a, onde acaba a dos homens (idem, p.15-16).

    O conto retoma as teses tradicionais apenas para desmont-las no momento seguinte, evidenciando os seus limites e contradies. Na cidade, ainda viveriam dois dementes (um branco e um negro) e famlias de pescadores. Viveriam realmente em Alminta? No, porque os pescadores, de fato, no moram em Alminta, mas na beira da praia... como se ignorassem a defunta cidade, hoje ptria de bichos imundos, povoada de fantasmas. No, pois estes personagens infames vivem voltados para o mar, para o presente, com seu peso real de sal e sol. Eles ignoram Alminta, mesmo como passado. A cidade s existiria, dessa forma, num (quase) no-lugar, no papel das monografias, que j ningum pega para ler. Uma existncia precria a partir de falas sem sentido, mal decoradas para responder a estranhos homens, com mquina fotogrfica a tiracolo, que aparecem perguntando coisas estranhas (idem, p.14). Um lugar de memria, tecido nos adeuses e epitfios da literatura e da histria, com seus textos bolorentos, insossos e glidos, imersos em vs tentativas de revivncia da Idade de Ouro. Cidade-constructo de tradicionalistas, de olhos voltados para a contemplao (e no para o horror) do passado, sempre a lamentar a decadncia. Nas igrejas vazias, as imagens sujas de excremento de morcego remontam ao tempo do esplendor provinciano. Pois, Alminta viveu um dia, com suas jovens brancas passeando os ltimos vestidos de Paris, o sino chamando para a missa, o rolar das carruagens de portinholas brasonadas, flores perfumando as ruas, e gente que vinha, e gente que ia, grave colorida, nas suas roupas fora de moda. Contudo, interrompendo o tom alegre e idlico da narrativa, sob o assoalho, no forro das casas, nos pores onde os negros dormiam, os ratos e morcegos espreitavam.

    Da escurido surgem os perigos e ameaas civilizao branca. Das trevas emerge o subconsciente das cidades, os seus no-personagens: o mato, os parasitas, o penacho de guerra das palmeiras, os dementes, os negros, os pescadores (idem, p.13-14). Ferreira Gullar elabora uma alegoria s avessas do suposto conflito natureza vs. cultura, produzindo uma pardia do poder mgico de evocao e de ressurreio de mundos perdidos. Utilizando-se de estratgias narrativas consagradas na produo intelectual local, o autor as desloca, corrompendo por dentro (atravs da ironia) a presumida seriedade e relevncia desses discursos. Assim, as controvrsias e polmicas entre os historiadores (um rol formado por Arnaldo Ti-bi, Gyl Berta, El Man, O T Lar, Gon D e Burro) envolvendo o nome, a fundao e a origem dos povoadores da cidade: Vieram do norte? do sul? do centro? do oeste? do leste? do centro-oeste? (idem, p.13). Num rodap, convoca-se o opsculo Fundamentos geogrficos e histricos da Provncia de Alminta do general Carlos Studart Filho, lanado pela Editora Xaxado (na verdade, Fundamentos geogrficos e histricos do Estado do Maranho e Gro-Par, da Biblioteca do Exrcito), um livro proibido que contava as intimidades e a riqueza passional da elite branca (e no a tradicional histria poltica e administrativa!): lutas de famlias, homicdios por questo de terras, traies por herana, adultrios, desfalques, trapaas polticas, amores srdidos, paixes delirantes. O submundo recalcado da histria oficial e comemorativa vem tona nas estrias da virtuosa esposa do governador-geral e seu viril amante escravo ou da linda menina branca, que tinha tara por negros e que foi vrias vezes surpreendida em plena felao, ou em sua prpria cama deixando-se possuir das maneiras mais extravagantes. Morreu estrangulada por um escravo da fazenda, no transporte do gozo (idem, p.14-15). Momentos em que a pardia assume o tom do escracho e da chalaa para representar as virtualidades de outros textos e leituras da cidade. O ncleo urbano mais polido, mais faustoso e mais aristocrtico da distante provncia transfigura-se em miniatura da

  • capital do Imprio, com uma elite escravocrata vida por medalhas e ttulos de nobreza, ciosa de sua vaidade e orgulho (como no episdio da construo do palcio para a no-visita de D. Pedro II). Uma cultura teatralmente sofisticada, representada por uma elite que parlava le franais nas recepes, festas e jantares; educava suas filhas em internatos na Europa (e os filhos dentre as pernas das escravas); e pesquisava rvores genealgicas em busca de brases, escudos e armas, visando uma nobilitao forjada. Por meio do riso, evidencia-se o fundo falso e a impostura do processo de civilizao dos costumes que caracterizaria a Idade de Ouro tropical, processo reduzido metonimicamente pelo contista a uma imagem-smbolo:

    A preocupao com a origem nobre alcanava mesmo os detalhes mais ntimos da vida cotidiana, haja vista o urinol de loua, conservado no Museu Imperial, a nica relquia subsistente de Alminta. Trata-se de um objeto finamente trabalhado por mos de artista europeu, com as armas do Imprio em relevo e o escudo da famlia em lpis-lazli e ouro. A propsito dele, escreveu Gyl Berta, o clebre historiador: a prpria alma de Alminta a sua histria, os seus sonhos, o seu requinte que neste objeto se concretizou (Cidades e homens, Editora Anil, Alcntara, 1930) (idem, p.16).

    Rico, ftido e podre urinol de loua inusitada associao de obra de arte e depsito de dejetos, artefato-sntese da aristocracia alcantarense/almintense. Urinol que, por sua vez, evoca outra estria do anedotrio estadual, envolvendo a controversa figura de Ana Jansen e os penicos com sua efgie no fundo, mandados fazer em Portugal por um seu adversrio poltico. Nada mais maranhense, castiamente maranhense. A desconstruo pardica do discurso da decadncia desestabiliza e confunde os pontos de fixao dos imaginrios sociais sobre o Maranho, os quais entram em curto-circuito com o aflorar de seu subconsciente, com o desfile de infames e repulsivos personagens de sal e sol, com o narrar de

    srdidas (des)venturas pessoais processo recalcado por uma cultura do simulacro, onde as fantasmagorias da tradio e da decadncia no podem ser levadas demasiadamente a srio...

    CONSIDERAES FINAIS

    Em publicao recente, a historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix, ao questionar a ilusria fundao gaulesa da capital timbira, analisa esta frmula mtica em sua relao com a emergncia (em fins do sculo XIX) da ideologia da singularidade, forjada pelas elites locais durante a crise do sistema agro-exportador escravista. Tal ideologia do orgulho apoiar-se-ia na [falsa] conscincia de que o homem maranhense gozava da virtude da sabedoria, da excelncia e quase exclusividade no panorama cultural brasileiro, qualidades expressas sobremaneira na cultura vernacular, que primaria pela pureza, correo e elegncia da linguagem (LACROIX, 2000, p.61). A idia de singularidade da provncia (pedra angular dos processos de constituio dos imaginrios sociais sobre a identidade regional) teria surgido, portanto, na fase do marasmo, quando:

    um sentimento saudosista dos bons tempos resultou na construo de uma aura grega no homem e, em especial, em torno dos intelectuais que viveram naquela sociedade, considerada tambm ilustrada e requintada. Essa elaborao serviu como um alento, mecanismo esse que minimizou a postura paralisante da decadncia, passando-se a viver das lembranas de um glorioso passado. Ainda hoje, diz-se que o Maranho se tornou a terra do j teve e do j foi... Para acentuar esse suposto atributo [intelectual], a sociedade aponta a breve e frgil passagem francesa por nossas plagas como o fator diferenador de uma identidade singular, apesar da evidente lusitanidade de nossas origens e tradies (idem, p.74-5).

  • So Luiz, cidade do Senhor de La Ravardire cidade-texto da opulncia perdida dos casares coloniais, com suas salas sofisticadamente decoradas numa imitao aos sales da nobreza francesa, seus aparadores vergados ao peso das iguarias, dos vinhos, dos cristais e porcelanas (idem, p.54). Sobrados que abrigariam uma aristocracia letrada e afinada com a ltima moda de Paris, quer nos costumes, vesturio e alimentao, quer na literatura e nas artes, o tout le monde parlava le franais, aussi. Urbe ausente e distante dos fluxos temporais e dos processos da modernidade. Cidade-runa, miticamente greco-gaulesa, em cujo percurso o visitante v-se transportado insensivelmente para os sculos coloniais. Patrimnio da humanidade, distinta, a priori, porque a nica capital brasileira que no nasceu lusitana. Cidade que j foi, por isso, tambm, uma cidade morta (cujo subconsciente pode, contudo, aflorar, sombrio, das trevas ou dos guetos e palafitas da Jamaica brasileira...). A anlise das diferentes escrituras urbanas permite evidenciar, por conseguinte, a transformao das noes de tradio e de decadncia em paradigmas, representaes instituintes [e institudas] dos imaginrios sociais sobre o Maranho. Enfim, um magma de significaes, repertrio de temas e idias, a fornecer o referencial imagtico e discursivo a partir do qual se fala, se escreve e se visualiza a terra das palmeiras onde canta o sabi. Idias-imagem instrumentalizadas no campo poltico, nas cincias e nas artes segundo os mais variados interesses: quer tecendo a excepcionalidade ou a singularidade do maranhense, quer reivindicando uma fundao francesa dAthenas, quer fabricando lugares de memria, ou seja, conformando uma rede discursiva que sustenta e suscita as mais diversas e contraditrias prticas sociais. Relquias, urinis e fragmentos reunidos e manipulados para compor toadas e

    stiras; para (re)compor o verso e a prosa citadina (evocando seus fantasmas, seu no-ser); para canalizar sonhos e esperanas em torno de [vazios] projetos de ressurreio ou renascimento do Maranho, em delrios e frenesis de modernizao; ou ainda, para (re)escrever identidades polticas, a exemplo das evanescentes lutas da Campanha de Libertao (a greve de 1951), que forjou em sangue e fogo a imagtica da Ilha Rebelde:

    O entusiasmo da massa popular repetiu durante os 15 dias em que se manteve em greve, na Praa da Liberdade, os comcios cvicos... na mais plena demonstrao de que o Maranho mesmo a Atenas do Brasil, pelos seus talentos e pelo esprito espartano dos seus bravos filhos (jornal O Combate, 14/03/1951, p.1).

    Fronteiras helnicas sempre mutveis, porque dessa instabilidade e volubilidade das palavras e representaes se alimentaram sempre as (re)construes da identidade do Maranho, com suas cidades mortas, assombradas e sangradas por indestrutveis e inefveis runas verdes.

    E que melhor se v uma cidade / quando como Alcntara / todos os habitantes se foram / e nada resta deles (sequer / um espelho de aparador num daqueles / aposentos sem teto) se no / entre as runas / a persistente certeza de que / naquele cho / onde agora crescem carrapichos / eles efetivamente danaram / (e quase se ouvem vozes / e gargalhadas / que se acendem e apagam nas dobras da brisa). (Poema Sujo, Ferreira Gullar)

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  • RUNAS VERDES:

    tradio e decadncia nos imaginrios sociais

    Wagner Cabral da Costa Professor do Departamento de Histria / UFMA.

    Mestrando em Histria Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

    Endereo: Rua B, quadra 13, casa 14, Maranho Novo So Luiz/MA

    Telefone: 236-3037

    E-mail: [email protected]

    RUNAS VERDES:tradio e decadncia nos imaginrios sociaisWagner Cabral da Costa*INTRODUOA INVENO DA TRADIOMAPEANDO A TERRA DAS PALMEIRASAS CIDADES COMO TEXTOALMINTA: o subconsciente da decadnciaCONSIDERAES FINAIS

    RUNAS VERDES:tradio e decadncia nos imaginrios sociaisWagner Cabral da Costa