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Histórico Os "hippies" (no singular, hippie) eram parte do que se convencionou chamar movimento de contracultura dos anos 1960 tendo relativa queda de popularidade nos anos 1970 nos EUA, embora o movimento tenha tido muita força em países como o Brasil somente a partir da década de 70. O movimento foi encerrado no Brasil no final da década de 80, início dos anos 90 e, por força do governo militar da época que desaprovava a conduta dos adeptos deste movimento, não aturando mais sua interferencia em questões políticas, além de provocações verbais aos cidadãos que não eram a favor. Uma das frases ideomáticas associada a este movimento foi a célebre máxima "Paz e Amor" (em inglês "Peace and Love") que precedeu á expressão "Ban the Bomb" , a qual criticava o uso de armas nucleares. As questões ambientais, a prática de nudismo, e a emancipação sexual eram ideias respeitadas recorrentemente por estas comunidades. Adotavam um modo de vida comunitário, tendendo a uma espécie de socialismo-anarquista ou estilo de vida nômade e à vida em comunhão com a natureza, negavam o nacionalismo e a Guerra do Vietname, bem como todas as guerras, abraçavam aspectos de religiões como o budismo, hinduismo, e/ou as religiões das culturas nativas norte-americanas e estavam em desacordo com valores tradicionais da classe média americana e das economias capitalistas e totalitárias. Eles enxergavam o patriarcalismo, o militarismo, o poder governamental, as corporações industriais, a massificação, o capitalismo, o
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autoritarismo e os valores sociais tradicionais como parte de uma "instituição" única, e que não tinha legitimidade. O termo derivou da palavra em inglês hipster, que designava as pessoas nos EUA que se envolviam com a cultura negra, e.x.: Harry The Hipster Gibson. Em 6 de setembro de 1965, o termo hippie foi utilizado pela primeira vez, em um jornal de São Francisco, um artigo do jornalista Michael Smith. A eclosão do movimento se deu em consequencia do surgimento da chamada Geração Beat, os beatniks, uma leva de escritores e artistas que, primeiramente, assumiram os comportamentos copiados pelos hippies. Com a palavra "beat", John Lennon, transformado em um dos principais porta-vozes pop do movimento hippie, criou o nome da sua banda - The Beatles. Tanto o termo beatnik como o termo hippie assumiam sentido pejorativo para a grande massa norte-americana.
Estilo e comportamento
O símbolo da paz foi desenvolvido na Inglaterra como logo para uma campanha pelo
desarmamento nuclear, e foi adotado pelos hippies americanos que eram contra a guerra nos anos
60.
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Nos anos 60, muitos jovens passaram a contestar a sociedade e a pôr em causa os valores tradicionais e o poder militar e econômico. Esses movimentos de contestação iniciaram-se nos EUA, impulsinados por músicos e artistas em geral. Os hippies defendiam o amor livre e a não-violência. O lema "Paz e Amor" sintetiza bem a postura política dos hippies, que constituíram um movimento por direitos civis, igualdade e anti-militarismo nos moldes da luta de Gandhi e Martin Luther King, embora não tão organizadamente, mantendo uma postura mais anárquica do que anarquista propriamente, neste sentido. Como grupo, os hippies tendem a viver em comunidades coletivistas ou de forma nômade, vivendo e produzindo independentemente dos mercados formais, usam cabelos e barbas mais compridos do que era considerado "elegante" na época do seu surgimento. Muita gente não associada à contracultura considerava os cabelos compridos uma ofensa, em parte por causa da atitude iconoclasta dos hippies, às vezes por acharem "anti-higiênicos" ou os considerarem "coisa de mulher". Foi quando a peça musical Hair saiu do circuito chamado off-Broadway para um grande teatro da Broadway em 1968, que a contracultura hippie já estava se diversificando e saindo dos centros urbanos tradicionais. Os Hippies não pararam de fazer protestos contra a Guerra do Vietname, cujo propósito era acabar com a guerra. A massa dos hippies eram soldados que voltaram depois de ter contato com os Indianos e a cultura oriental que, a partir desse contato, se inspiraram na religião e no jeito de viver para protestarem. Seu principal símbolo era a Figura circular com 3 intervalos iguais.
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As gírias hippies surgiram no Brasil principalmente nos anos 70 e se tornaram tendência entre os jovens e atualmente são usadas com menos freqüencia, mas muitas nunca deixaram de ser usadas por jovens e "coroas" (que é uma gíria hippie).
Barra - Dificuldade Bicho - Amigo Bicho Grilo - Hippie Biônico - Político nomeado pelo governo Bode – Confusão ou ressaca Burguês – Pessoa ligada na moda, em marcas; classe alta Caô - conversa fiada; mentira Cara – pessoa; quantidade; porção Coroa - pessoa não-jovem (mais de 50 anos) Corta essa! - desiste, muda (exclamação) Dar o cano - quebrar compromissos Dar um giro - sair, passear Eu tô que tô - Eu estou muito bem Falou - Tchau, Até Mais Falou e disse - afirmou com propriedade Fazer a cabeça - mudar a cabeça de alguém Goiaba - Bobo Jóia - Tudo bem Massa - Legal Meu - pessoa, cara Parada - Negócio Patota - Galera Paz e amor - Tranquilo, tudo bem (!) (?) Pô - Exclamação de contrariedade
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Podes crer - Acredite Psicodélico - Estranho Sacar - entender Véio - amigo Velha e velho - pai e mãe
Outras características associadas aos hippies
Roupas velhas e naturalmente rasgadas, para ir em oposição ao consumismo, ou então roupas com cores berrantes para fazer apologia a psicodelia, além de diversos outros estilos incomuns (tais como calças jeans surradas, camisas tingidas, roupas de inspiração indiana).
Predileção por certos estilos de música, como rock psicodélico Rolling Stones, The Beatles, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Led Zeppelin , Creedence, The Doors, Pink Floyd, Steppenwolf, Bob Dylan, Raul Seixas, Neil Young, Mutantes, Zé Ramalho, Secos e Molhados, os tropicalistas (Caetano, Gil, etc), Novos Baianos, A Barca do Sol, soft rock como Sonny & Cher, Hard Rock como The Who, e em alguns casos até o grunge como Nirvana. Também apreciavam o Goa Trance, isto, quando hippies viajantes, buscadores espirituais e um sem-número de pessoas ligadas a manifestações de contracultura, munidos de conhecimento técnico de produção de música electrónica e de um puro desejo de curtir e experimentar, desenvolveram, de forma intuitiva, um novo estilo sonoro. Um dos principais fundadores deste movimento foi Goa Gil.
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Às vezes tocar músicas nas casas de amigos ou em festas ao ar livre como na famosa "Human Be-In" de San Francisco, ou no Festival de Woodstock em 1969. Atualmente, há o chamado Burning Man Festival.
Amor livre e sem distinções. Ideais anarquistas de comunidades igualitárias e total
liberdade não violenta. Rejeição à produtos de beleza, giletes de barbear,
shampoos ou outros instrumentos artificiais. Vida em comunidades onde todos os ditames do
capitalismo são deixados de lado. Por exemplo, todos os moradores exercem uma função dentro da comunidade, as decisões são tomadas em conjunto, normalmente é praticada a agricultura de subsistência e o comércio entre os moradores é realizado através da troca. Existem comunidades hippies espalhadas no mundo inteiro; vivem para a subsistência.
O incenso e meditação são parte integrante da cultura hippie pelo seu caráter simbólico e quase religioso;
Alguns faziam uso de drogas como marijuana (maconha), haxixe, e alucinógenos como o LSD e psilocibina (alcalóide extraído de um cogumelo), visando a "liberação da mente", seguindo as idéias dos beats e de Timothy Leary, um psicólogo proponente dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD. Porém muitos consideravam o cigarro feito de tabaco como prejudicial à saúde. O uso da maconha era exaltado também por sua natureza iconoclasta e ilícita, mais do que por seus efeitos psico-farmacêuticos;
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Culto pelo prazer livre, seja ele físico, sexual ou intelectual. Repúdio à ganância e à falsidade. Quanto à participação política, mostravam algum
interesse, mas nunca de maneira tradicional. Eram adeptos do pacifismo e, contrários à guerra do Vietnã, participaram de algumas manifestações anti-guerra dos anos 60, não todas, como se acredita. Nos EUA, pregaram o "poder para o povo". Muitos não se envolvem em qualquer tipo de manifestação política por privilegiarem muito mais o bem estar da alma e do indivíduo, mas assumem uma postura tendente à esquerda, geralmente elevando ideais anarquistas ou socialistas. São contra qualquer tipo de autoritarismo e preocupados com as questões sociais como a discriminação racial, sexual, etc.
Fome intelectual insaciável. Raramente são adeptos à muitas inovações tecnologicas, preferindo uma vida distante de prazeres materiais.
Misticismo.
Legado
Hippies relaxando no festival de Woodstock, um marco do movimento hippie
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Por volta de 1970, muito do estilo hippie se tornou parte da cultura principal, disseminando a sua essência por todas as áreas das sociedades atuais. A liberdade sexual, a não-discriminação das minorias, o ambientalismo e o misticismo atual são, em larga medida, produto da contestação hippie. No entanto, a grande imprensa perdeu seu interesse na subcultura hippie como tal, apesar de muitos hippies terem continuado a manter uma profunda ligação com a mesma. Como os hippies tenderam a evitar publicidade após a era do Verão do Amor e de Woodstock, surgiu um mito popular de que o movimento hippie não mais existia. De fato, ele continuou a existir em comunidades mundo afora, como andarilhos que acompanhavam suas bandas preferidas, ou às vezes nos interstícios da economia global. Ainda hoje, muitos se encontram em festivais e encontros para celebrar a vida e o amor, como no Peace Fest e nas reuniões da família arco-íris. No Brasil temos algumas comunidades Hippes espalhadas por praias e comunidades alternativas. Neste contexto, destacam-se a cidade mineira de São Tomé das Letras, o vilarejo Trindade em Parati, RJ, Pirenópolis em Goias, Trancoso na Bahia, etc. No cenario musical, destacam-se o cantor Raul Seixas (que provavelmente veio a ser o maior cantor hippie da historia nacional) e a banda Mutantes, que fizeram grande sucesso nos anos 60 e 70 e tem milhares de fãs ainda hoje. Na cena musical contemporânea, destaca-se o cantor Ventania, baseado em São Tomé das Letras, MG. Ventania tem em seu repertório inumeras obras, que falam desde o livre pensar ao desapego material, cultuando a natureza e os ideais Hippes.(*)fonte wikipedia.org
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Prefácio
A idéia é passar ao leitor, a imagem interna de um movimento que
embora a princípio não tivesse grandes ambições, já que no Brasil
surgiu a partir dos reflexos e moldes do movimento americano pós
Vietnã, se notabilizou por sua postura alternativa, sendo responsável
por uma revolução silenciosa em plena ditadura militar, mas que
influenciou o comportamento de toda uma geração o que se refletiu em
gerações futuras até os dias de hoje. Sempre à frente do seu tempo,
trouxeram a tona discussões referentes a drogas, liberação sexual,
liberdade de expressão, música e meio ambiente, além da quebra de
correntes enraizadas e preconceituosas com relação a credo, raça e
orientação sexual.
Desmistificando a idéia de andarilhos drogados, sujos e parasitas que
conceituam essa expressão até hoje, tentamos mostrar aqui, uma
forma mais livre de lutar contra a opressão, sem se deixar corromper
pela mídia e o falso moralismo de uma época cinza de nossa história,
trazendo novo sentido ao jeito hippie de ser.
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Nota do autor
Não há nestes escritos a pretensão de trazer a tona neste momento,
discussões ideológicas, políticas ou teológicas, tampouco servir como
base de pesquisas com relação a datas, regime ou desaparecidos. A
intenção é descortinar uma época que embora vivêssemos sob a batuta
de um governo militar, de normas e padrões rígidos, pouca influência
exerceu sobre aquelas pessoas e que na verdade só queriam mostrar
que a liberdade não está diretamente ligada a locais circunscritos ou a
exposições deliberadas, ela é latente e inerente a cada um de nós
independente de seu posicionamento.
As passagens aqui narradas são fatos verídicos, já a filosofia, depende
mais da ótica de cada um. Alguns fatos, pela própria dinâmica da
narrativa e valendo-me de minha licença como autor, apresentam-se
mais ou menos incisivos de acordo com exigência de cada situação e os
nomes dos envolvidos estão propositalmente preservados, afinal
estamos falando de pessoas reais, embora a essência permaneça
intacta.
Insidiosa a vida fez com que vivêssemos tempos remotos em nosso país,
porém de forma paradoxal e até incoerente nos deixou recordações e
marcas de tempos em que a grande maioria gostaria de esquecer, mas
nós não.
Du Valle
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Ambiente
1977, periferia de Belém, vila de Icoaraci, época de explosão da
disco music: Donna Summer, Tina Charles, Santa Esmeralda e
outros. Num paradoxo paralelo os “dinossauros” pareciam não se
incomodar e faziam suas guitarras rangerem fortes e viscerais,
arrebanhando os inconformados com a musicalidade pop, marcada
e “burguesa” que se instalava nos bares e discoteques. Led, Purple,
Sabbath, Rush davam o tom metálico a vida da moçada que não
agüentava mais o Patrick Hernandez e seu “born to be a live”.
Dias de repressão militar, vivíamos o crepúsculo de uma ditadura
que nunca deveria ter se instalado, os “Chicos” e “Caetanos” já
começavam a voltar, junto com os “Fernandos”. Alguns “Sarneys”
sabe-se lá Deus porque, nem precisaram ir, aliás o José, por uma
daquelas coisas inexplicáveis da política brasileira, depois da
frustrada “diretas já” e a morte “repentina” de Tancredo no dia de
sua posse, assumiu o poder tornando-se o primeiro presidente civil
pós ditadura e continua lá até hoje, mas, essa é outra história que
ainda esta sendo contada.
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Nossa liberdade, mesmo que tardia, veio capitaneada por festivais
de rock nos cinemas da cidade. O cine Palácio, do grupo Severiano
Ribeiro, tradicionalíssimo reduto da burguesia paraense,
aproveitando a euforia crescente vinda da periferia, mas que se
espalhou como um vírus dentro do seio de famílias influentes na
cidade através de seus filhos, já um tanto americanizados, rendeu-
se ao fato de que o Rock era uma realidade e resolveu incorporar
em sua programação uma sequência de filmes e shows que haviam
mudado a mentalidade e o comportamento dos jovens americanos
durante a guerra do Vietnã no final dos anos 60 e que de certa
forma refletiam a inquietude dos nossos jovens no momento
político que se desdobrava naquele Brasil dos militares. Enquanto
alguns mais esclarecidos politicamente, entregavam-se de corpo e
alma as lutas de classes, incorporando os ideais bolcheviques e
cheguevarianos, lutando em passeatas promovidas pelos
movimentos de esquerda, outra vertente via na fórmula americana
de uma década atrás uma oportunidade de lutar, transgredindo as
regras e impondo de forma alternativa e veemente sua liberdade
para uma aceitação obrigatória pelas autoridades, as quais já
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tinham distúrbios demais pra se preocupar e não se importariam
muito com aqueles cabeludos baderneiros “apolitizados”.
O festival de Woodstock, um marco da rebeldia americana,
influenciou toda uma geração brasileira que passou a descobrir as
cores, a música, a liberdade e as drogas. Bandas surgiam no
cenário nacional dando ênfase a esta nova visão de mundo. O
“Hair” ditou as regras, ou a ausência delas, tornando-se item
obrigatório para se dizer convictamente “sou livre”. O amor
inocente, a irresponsabilidade, os baixos índices de violência
urbana, a amizade inconteste, a cumplicidade na contravenção, a
propagação das reuniões dos “malucos”, os discos de vinil
importados que faziam sucesso nos “bailes de Rock”,
caracterizavam um novo movimento enquanto o “guru” Raul
bradava uma utópica sociedade alternativa.
A velha Praça da República abrigava sempre os tipos mais diversos
e esquisitos, os policiais não sabiam bem o que fazer, então, só
olhavam a distância, talvez achassem que era ousadia demais em
plena repressão uma “cara” de tipos exóticos, vestidos com roupas
hiper coloridas com bolsas feitas de calça Jeans, e umas “minas”
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lindas de cabelos enormes e cacheados que não faziam nada a não
ser sentar no gramado, tocar violão a noite inteira dançando e
pulando ao som de Joe Cocker, Janis, Hendrix, Pink e outros, sem
interferir na “normalidade aparente das coisas”. De vez em quando
a guarda montada chegava perto, só pra checar aquele cheirinho
de mato queimado ou aquelas garrafinhas que circulavam de mão
em mão, mas nunca de forma violenta, às vezes um “baculejo”, um
flagra, uma noite em “cana”, mas nada que uma vaquinha dos mais
abastados não resolvesse no dia seguinte.
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O Hair.
O cinema Palácio exibiu, contrariando a toda uma sociedade rígida
e burguesa, uma sequência memorável de filmes e shows que
durou uma semana: Rock é Rock Mesmo, O Último Concerto de
Rock, Woodstock, Tommy, The Wall etc. parecíamos estar vivendo
uma nova era realmente, a nossa era de aquário começava ali.
Naquelas tardes, durante a semana, entravamos no cinema na
primeira seção, que servia para assistirmos o filme, mas só saíamos
na última onde transformávamos o cine em um verdadeiro festival
de estripulias, alto consumo de álcool e alguns mais exaltados
acendiam seus “baseados” ali mesmo, subíamos no palco do
cinema, pulávamos uns sobre os outros, enlouquecíamos com
Alvin Lee, aquele guitarrista “branquelo”, os seguranças a princípio
reagiram com rigor, mas depois não conseguiram controlar aquela
horda de tatuados que até então se escondiam esgueirando-se
pelos becos sombrios da cidade, mas que agora podiam mostrar a
cara, transgredindo acordos silenciosos de serenidade e mostrando
ao mundo uma nova filosofia de vida fundamentada na comunhão,
cumplicidade e não violência. Beijos, abraços, afetos explícitos
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então faziam parte daquela alegria contagiante dos adolescentes,
que visualmente assustavam, afinal, no lugar das orelhas desnudas,
ostentavam plumagens coloridas, os colares eram de dentes ou
utensílios variados que iam desde simples adornos e crucifixos até
cadeados e caveiras de animais mortos. Tudo pra mostrar uma
diferença, marcar um território e agredir uma burguesia
supostamente conivente com a atual situação política do país.
Quando entravamos nos coletivos, as pessoas se afastavam,
murmuravam, alguns xingavam e chegavam a agredir fisicamente
pelo simples fato de não sermos iguais. Preconceito aflorado, mas,
de certa forma gratificante: estávamos conseguindo nosso
objetivo, afinal, chocavamos sem desferir uma única palavra.
“Em nossas jornadas internas, aprendemos que as pessoas são
diferentes umas das outras, que o mundo das pessoas, não é o
mesmo das coisas, nem o mesmo dos bichos, tampouco da outra
pessoa. Aprendemos a viver num mesmo espaço físico e na mesma
fração de tempo, mas, somos de mundos diferentes, viemos de
mundos diferentes e nosso subconsciente sabia disso, tentamos nos
adaptar a essa esfera para que pudéssemos caminhar juntos,
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porém as notas dissonantes do eu profundo aflorava nos
momentos mais inusitados, aqueles momentos que agíamos por
impulso ou movidos por um sentimento forte que embriagava a
lucidez.
Embora achássemos que existam inúmeras espécies de humanos,
sabíamos desde aquela época, o que se confirmou ao longo dos
anos, que o mundo era regido por três categorias principais de
pessoas: os práticos, os sutis e os normais.
Os práticos ou realistas, são resolutos, objetivos, buscam e
normalmente conseguem o que querem, são grandes chefes de
estado, altos generais, políticos de toda ordem, empresários de
renome, não desviam o foco de sua escalada, isso às vezes os
tornam frios e solitários na multidão, mas são importantes, pois,
normalmente determinam os rumos de nossas vidas cotidianas.
Já por outro lado os sutis, são sonhadores, acreditam no sublime,
confidenciam com a oportunidade a maneira de melhor usá-la, têm
a capacidade de isolarem-se na multidão por escolha própria. Sabe
aquele cara que no meio de uma reunião importante com o chefe
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do departamento, desconcentrou-se porque percebeu a chuva lá
fora? Ou a luta da lagartixa pra pegar o inseto na parede? Sabe
aquele cara que chega atrasado todo dia por que faz o caminho
mais longo, mas passa pela praia? Ou é capaz de esquecer o
aniversário do seu amor, mas chega numa terça-feira qualquer, à
tarde com um ramo de flores na mão, que notadamente foram
roubadas da vizinha? Mas que ela não se importa porque ele toca
uma linda canção feita para aquele momento? Pois é, esse é um
cara sutil.
Já os normais, bem os normais são os que elegem os práticos seus
representantes, lutam nas guerras que eles promovem, buscam
melhorar de vida dentro do sistema por eles criado, não se
rebelam, mas criticam e aplaudem os sutis. Esses são paradoxos
dos milhares de espécimes de humanos e seus mundos
particulares”.
Quando o filme “Hair” apareceu no circuito, foi o ápice da
afirmação desse movimento, afinal, ali estava tudo o que
pregávamos contado de forma pura e sublime, sem violência com
muita musicalidade, protestos ocultos em meio à amizade, o amor
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incondicional, a comunhão de negros e brancos o sepultamento
definitivo de todo tipo de preconceito, algo que jamais
imaginaríamos que pudesse ser transportado para as telas, mas
que Milos Forman, como que se lesse nossas mentes conseguiu
mostrar.
Foi um marco divisor em nosso caminho, só se falava em George
Berger e sua trupe, a cidade, não parecia mais tão interessante, os
bailes continuavam acontecendo, cada vez mais frequentes, os pais
dos outros já eram mais tolerantes, todo fim de semana se fazia
reunião na casa de alguém. Alguns deles foram bem folclóricos
quando, por exemplo, na danceteria Shock dance Club (hoje no
local, ironicamente, funciona o templo maior de uma igreja
protestante) nos vestíamos a caráter, cada um com uma alegoria
que remetesse a um ídolo da época. Eu resolvi me caracterizar de
Alice Cooper, com aquele sangue escorrendo pela boca, outro com
um cadeado e uma enorme corrente no pescoço e outro ainda com
um alfinete de bebê enfiado no nariz. Quando entramos no ônibus,
todos se assustaram e a parte de traz ficou vazia, pior pra eles,
pudemos viajar tranquilamente sentados. Ao chegar ao local, ainda
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na parte externa, uma senhora me abraçou e disse “a paz do
Senhor irmão, ele não vai deixar que tomem conta do seu corpo”,
tive medo que ela se apossasse do meu corpo, foi difícil ela me
largar, ficou com a blusa suja de batom e ainda apagou o sangue
da minha boca. Em outra ocasião um amigo já “rodado”, um dos
mais velhos do grupo, deu um baile em sua casa pra comemorar o
aniversário de seu pai, preparou um bolo com folhas de maconha e
um coquetel com vários produtos alucinógenos que comprara na
farmácia e serviu pro velho, só pra observar sua reação durante a
noite, não deu certo, o velho apagou no primeiro gole e fomos
expulsos. Não satisfeito convocou todos a continuar a festa em
uma casa próxima que pertencia à família, onde na parte da frente
funcionava uma quitanda, não preciso dizer que antes de
passarmos para a parte de traz da casa, demos uma baixa
significativa nas frutas que encontramos pelo caminho, depois
fomos finalmente para os fundos, ao que consigo me lembrar rolou
muita cachaça com limão e chás esquisitos, lá pelas tantas o
anfitrião resolveu acordar todo mundo com um ritual macabro
onde o som de fundo era a “missa negra”, com Ozzy & cia, no auge
da execução aconteceu uma “parada sinistra”, faltou energia na
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casa, e sabe-se lá porque o som continuou tocando, todo mundo
“vazou”, me lembro que tinha um maluco que dormia no alto de
uma caixa d’água, coisa que ele também não explica como
conseguiu subir e tampouco como desceu com tanta rapidez.
Lembro-me de meses antes ter ido a um “baile” em um clube na
BR, junto com a turma de amigos punks, dos quais eu fazia parte,
mas quando chegamos lá, pela primeira vez, tive sensação de
estarmos maltrapilhos, com aquelas roupas improvisadas e que
agora me parecia tão óbvio que na verdade era apenas falta de
recurso para me sentir realmente bem com minha nova situação. A
turma que estava do outro lado da piscina, não se importava
conosco, mas eu os observava com uma pontinha de inveja, os
caras tinham os cabelos longos macios e bem tratados, usavam
jeans e tatuagens perfeitas os adereços e ornamentos eram de
qualidade superior, tomavam cerveja, tinham carros e motos, além
de garotas com uma cútis de modelo fotográfico. Depois de ficar ali
parado horas observando, alguém me bateu às costas e
surpreendentemente perguntou se eu não queria “chegar”, ora,
era um “figura” que conheci na casa de minha tia quando criança,
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muito amigo de um primo “muito louco” que antes éramos muito
chegados, mas que a vida se encarregou de nos separar, logo
depois descobri que no meio daquele pessoal estava meu primo e
que ainda melhor, ele parecia liderar aquela moçada linda. Pra
mim foi o suficiente pra então me descobrir diferente, passei a
entender que para ser alternativo, não precisava ser rasgado, sujo
ou mal cheiroso, encontrei novas e eternas paixões, musica de boa
qualidade, acordes e histórias de ídolos que até então para mim
eram desconhecidas. A partir daí comecei a questionar os antigos
amigos, seus atos, seus modos de ver a vida, a violência das letras
e o atraso sonoro que aquela música me remetia.
O relacionamento com os antigos companheiros ficou difícil, eu já
não conseguia mais flutuar entre realidades tão diferente, pra
desespero de minha mãe e de sua irmã, eu e o primo estávamos
juntos de novo e agora era sério, tínhamos algumas idéias em
comum e muita, muita juventude pela frente.
A primeira conquista amorosa, meu debú no meio da turma foi
uma japonesinha linda, que era mais alta que eu e isso se tornou
um problema, a segunda era muito “experiente” e me assustou um
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pouco, mas aprendi bastante com ela e depois as coisas ficaram
mais fáceis eu me tornei seu escudeiro, cúmplice e parceiro em
várias empreitadas, às vezes “pintava” um conflito de idéias, mas a
cumplicidade falava mais alto, era uma boa relação e parecia
duradoura. Ganhei um respeito que não tinha entre a turma
antiga, já me tratavam de forma diferente. Com ajuda e toque dos
novos amigos, já exibia roupas coloridas, bolsas com símbolos
consistentes e de valores agregados ao pensamento, a fluência de
idéias e palavras me credenciaram a protagonista, sem premeditar
nada me envolvi por algum tempo com uma das garotas mais
cobiçadas entre os antigos amigos, a irmã de um deles, morena
linda, com uma formação em piano clássico, um sonho, coisa que
na minha antiga condição não me atreveria a sonhar, muito
centrada e decidida, não me pareceu ser a hora de assumir um
compromisso sério e com minha auto-estima elevadíssima, podia
me dar ao luxo de escolher entre ficar e levar isso a sério ou
continuar a desbravar esse mundo novo que se apresentava.
Eu particularmente tinha meu próprio modo de ver essa coisa de
vida e morte, então não poderia me permitir desistir de viver
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aquele turbilhão de acontecimentos, mas isso certamente
aconteceria se eu ficasse e me enquadrasse àquilo que eu chamava
de morte urbana, que se caracterizava por concessões diárias,
valores corrompidos e atos repetitivos. Esse pensamento vale até
hoje e espero que sempre possa manter essa lucidez.
“Morrer não se resume a desligar um fio. Morrer não é
simplesmente o ato de fechar os olhos e desligar-se do corpo físico.
Morrer é um processo contínuo iniciado a partir da concepção.
Morrer é não mudar de idéia, não trocar o discurso, não assimilar
conhecimentos, é evitar as próprias contradições. Morrer é virar
escravo do hábito, é repetir o mesmo trajeto todos os dias e fazer
as mesmas compras, é não trocar de marca, não arriscar vestir
uma cor nova, não falar com estranhos. Morrer é não virar a mesa
quando está infeliz no trabalho, é não arriscar o duvidoso pelo
certo para realizar um sonho, é não se permitir errar e uma vez na
vida fugir dos conselhos sensatos. Morre todo dia quem não viaja,
não lê, não houve boa música, não toma um pileque em
comemoração, não acha graça de si mesmo. Morrer é passar o dia
lamentando-se de não ter feito, queixando-se do que não
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funcionou, reclamando da chuva, da má sorte, desistindo de
projetos que nem começou, não perguntando o que desconhece e
deixando de passar adiante o que aprendeu”.
Um amigo uma vez me disse que “A vida não é medida pela
quantidade de vezes que respiramos, mas pelos momentos que nos
tiram a respiração.”
Eu entendo que a jornada da vida não é para se chegar ao túmulo
em segurança em um corpo bem preservado, mas sim para se
escorregar para dentro meio de lado, totalmente gasto, berrando:
“PUTA MERDA, QUE VIAGEM!”
Devemos viver simplesmente, amar generosamente, importar-se
profundamente e falar gentilmente, do resto à natureza se
encarrega.
Eu sabia que deveria evitar a morte em doses suaves, trazendo
comigo sempre a consciência de que morrer é muito fácil, viver é
que é complicado, manter-se vivo requer um esforço muito maior
do que simplesmente respirar. Eu espelhava em meus ancestrais o
exemplo de muitos que morreram de pé, sem sentirem o privilégio
de terem vivido.
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Sair da casa dos pais era meio como que uma auto-afirmação
necessária para o que pregávamos, era como se o complemento de
tudo fosse não depender mais da família. O primo tinha mania de
batizar todo novo integrante da turma, sempre com alusão a um
ídolo ou a uma banda, tínhamos o Dilan, o Sabbah, o Zappa, o
Bohan, Queem, eu me tornei o Lee, por causa do Geddy Lee,
vocalista do Rush. Certo dia ele chegou com uma idéia inovadora, e
nos convenceu da possibilidade de fundarmos nossa própria
comunidade, longe dali, a idéia foi ganhando corpo à medida que
íamos nos indispondo com nossos pais, que queriam que
terminássemos os estudos, servíssemos o exército, enfim que nos
enquadrássemos nos padrões sociais como fizeram os filhos de
seus amigos.
Estávamos iniciando a década de 80, eu tinha conseguido um
trabalho em uma empresa de fiação, consegui comprar minha
primeira bicicleta e uma invejável coleção do Yes, minha banda
favorita, quando veio a piração total. Sem nunca termos nos
afastado de fato resolvemos que colocaríamos em prática o plano
para a criação da tal comunidade alternativa, alguns já
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trabalhavam também, o que facilitou as coisas, afinal, o
investimento inicial estava garantido com nossas indenizações,
nada fora planejado para ser assim, mas, como diz minha mãe -
saiu melhor do que encomenda - largamos nossos empregos,
reunimos uns vinte “malucos”, entre homens e mulheres e
resolvemos “arribar”. A idéia era irmos para um terreno a muito
abandonado na estrada de Maracanã, próximo a Mocoóca
nordeste do Estado. O primo e alguns mais descolados foram na
frente, a mim foi confiada uma missão muito importante, tinha
que resolver duas questões: receber minha indenização trabalhista
e seqüestrar uma nissei, namorada dele, que além de ser filha de
japoneses tradicionais, saia de um relacionamento com alguém do
meio. Não era um seqüestro “valendo”, é que tudo já estava
combinado. Recebi a minha grana e na madrugada combinada pro
“seqüestro” passei na casa dela joguei uma pedrinha na janela e
recebi de volta uma mochila grande e pesada, coloquei na garupa
da “bike” e “rasguei”. No dia seguinte no horário combinado, sem
que ninguém soubesse, aliás, ninguém sabia de nada mesmo, nem
os meus pais, nem os de ninguém, esse era o trato, nós iríamos
desaparecer simplesmente, lá estava a louca com carrinhos
36
abarrotados de compras bem “compatíveis” pra quem iria pro
meio do nada, xampu, creme facial, maços de Marlboro, leite,
biscoitos, pilhas, etc. dois carrinhos de mantimentos. Ela disse em
casa que iria passar o dia na casa de uma amiga, mas na verdade
sumiu sem deixar vestígios.
37
O Terreno
A Gelar, empresa falida de sorvetes, abandonou uma imensa faixa
de terra encravada na estrada de Maracanã, próximo a vila
Mocoóca, fato que de alguma forma após uma viagem a região
meu primo ficou sabendo, também soube que alguns colonos já
começavam a ocupar o terreno e teriam destinado a quem se
dispusesse a cultivar a terra, uma área bem generosa, algo além de
nossas expectativas, essa notícia veio no momento certo casar com
nossa aspiração em edificarmos uma comunidade nos moldes
hippie, com uma forte tendência ao comunismo oculto em nossos
anseios.
Não tardou e todos os envolvidos no projeto, repaginaram suas
atividades, adiaram ou suspenderam compromissos, demitiram-se
de seus “trampos”, trancaram a faculdade e resolveram encarar
uma empreitada difícil mais sedutora.
Dias depois dos primeiros contatos, começaram a chegar ao
terreno os mais “chegados”, seguidos de outros que não sabiam
38
direito do que se tratava e outros ainda que apenas ouviram ecos
do que poderia vir a ser esse projeto. Aos poucos iam armando
suas barracas e se estabelecendo em espaços circulares como
caravanas de deserto, onde o frio e a noite reunia todos em volta
de uma fogueira. A princípio cantávamos e festejávamos o fato de
estarmos ali e a constante chegada de novos moradores oriundos
de vários lugares, embora demonstrassem ter objetivos bem
diferentes.
Quando cheguei, já haviam desmatado uma boa área, onde estava
o acampamento, algumas barracas de camping e uma tapera
improvisada, tipo a casa grande onde ficavam os que não tinham
barracas, ou não estavam em casais. Fui recebido com festa, já que
na bagagem além de muito mantimento, trazia a namorada do
primo, esperada com muita ansiedade, foi um dia bem especial,
eu, o herói do dia, dei motivo pra uma festa que entrou pela
madrugada, mas isso não era algo inusitado, todo dia
encontrávamos um motivo pra comemorar, pelo menos durante os
primeiros trinta dias enquanto tínhamos energia e fartura.
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Mas nem tudo pode ser eternamente festa, a ficha caiu quando os
mantimentos e o dinheiro começaram faltar, alguns, menos
comprometidos com a idéia foram logo embora, parecíamos um
tanto quanto perdidos, já que não sabíamos nada de plantio, não
entendíamos nada de terra, aliás, a terra era seca demais e só
havia plantas nativas além das ervas daninhas. Durante o dia o
calor era insuportável e a noite, pela proximidade com o litoral, o
frio era intenso, a escassez de alimento era o fator que provocava
maiores desentendimentos, já que o desperdício dos primeiros
dias fora determinante para o agravamento da situação. Alguns
dos que acreditaram queriam fazer acontecer de fato, mas o
primo, idealizador do projeto, flutuava sem demonstrar a força de
liderança que todos atribuíam a ele. Insatisfeitos, as agressões
verbais foram ficando mais acirradas, não tínhamos dinheiro
nenhum. Uma espingarda de caça, de valor muito alto havia sido
comprada, alguns entendiam que o dinheiro deveria ter sido usado
para a aquisição de utensílios de lavoura e mantimentos, mas tudo
que se conseguiu caçar foi uma aranha e um pássaro, que acabou
sendo motivo de nova discussão, já que a questão ecológica era
uma predominância entre nós. Pink Floyd, o cachorrinho que foi
40
adotado, era o único feliz ali, não entendia o tamanho da roubada
que havia se metido. Lembro-me que os grupos se separaram,
alguns tentaram algum recurso, mas já era tarde pra recomeçar, a
expectativa que se criou sobre a capacidade de liderança do primo
não se confirmou. A ele era imputada a responsabilidade sobre as
ocorrências, como se ninguém mais tivesse a capacidade de
discernir suas próprias escolhas. Era mais simples não pensar e
repassar responsabilidades. A garota, apesar de imatura, possuía
boa formação e já apresentava sinais de esgotamento, parecia
mesmo que o deslumbre pelo “brinquedo novo” havia acabado e
que de alguma forma todos teriam que redirecionar suas vidas.
Uma noite caminhamos alguns quilômetros iluminados pela lua,
até chegarmos a uma festa de caboclos, onde fomos muito bem
recebidos, o primo tinha ficado no acampamento, nos divertimos
muito, dançamos e bebemos com os colonos e voltamos quase de
manhã, arrumei minha mochila e algum tempo depois de ter saído
de casa voltei a Belém.
Fiquei sabendo que todos debandaram dias depois, as feridas
foram tão profundas que até hoje não cicatrizaram, alguns não se
41
falaram mais, o primo passou a morar em Belém com a garota e o
cãozinho. Ela depois voltou pra casa dos pais, casou urgentemente
com um ex-namorado, mudou radicalmente seu modo de vida e
não quis mais contato com nenhum de nós.
Os discursos eram eloqüentes, mas inconsistentes, essa é a grande
verdade. Eu tirei de tudo aquilo lições importantíssimas, eu
aprendi que costumamos carregar por toda nossa vida o reflexo de
um ato impensado.
“Se tivermos consciência do mal feito, conviveremos para sempre
com a tendência de hiper-valorização do que aconteceu, por mais
que as conseqüências não tenham sido tão devastadoras,
pensamos várias vezes em retornar ao ponto que desencadeou o
fato, para então abrandá-lo ou contorná-lo. Na real, o que nós
gostaríamos mesmo é que nossa memória fosse dotada da tecla
“DEL” e simplesmente pudéssemos excluir o erro para que
armazenássemos apenas as boas recordações. Não gostaríamos de
viver com esse peso, mas também não deveríamos morrer com ele,
qual a solução então? “A pedra depois de atirada não retorna à
mão”, logo, devíamos atenuar o efeito da atitude, procurando a
42
parte atingida, retratando-nos, por mais que isso tenha acontecido
há muito tempo, nossa consciência não perdoa, mas, a humildade
de reconhecer e passar adiante nosso arrependimento diminui
sobremaneira o fardo de nossas costas, não elimina o ato, nem o
desfaz, porém nos deixa em condições de levantar a cabeça e
enfrentar nosso carma com argumentações que se não são as
ideais, pois ideal é não errar, pelo menos abriremos um leque de
compromissos a assumir e assim caminharemos em um terreno
menos pedregoso. Não adianta esconder-se e tentar eximir-se das
responsabilidades, o passado sempre vem”.
Mas o vírus da liberdade não seria extirpado, permanecia latente a
espera de uma nova oportunidade, que não tardaria a chegar, já
que sem emprego e sem perspectiva nenhuma, aos 19 anos, algum
caminho deveria ser vislumbrado.
Voltamos à rotina dos velhos bailes, novos grupos se formaram.
Em Icoaraci, a vontade de fazer algo diferente, uniu pessoas que
vinham dissidentes de vários movimentos, o rock começava a
ganhar corpo de fato, a explosão do heavy metal em Belém, com a
banda Stress, funcionou como uma alavanca para o surgimento de
43
novos grupos, daí junto com uma moçada a fim de fazer música
nos reunimos para iniciar algo meio desajeitado que parecia
música, eu, transava algumas letras e os contatos, mas o som era
muito ruim, depois virou o “The Podres” que teve uma única e
frustrada apresentação no campo do Paissandu, quando abriu,
junto com outras bandas, o show de lançamento do primeiro disco
de Stress. O show foi um fiasco total, já que a banda só tinha uma
música ensaiada e outra mais ou menos, isso levou o público a
vaiar e a irritar o vocalista que já se preparara para o
acontecimento previamente, levando frutas podres e ovos para
atirar na platéia, o que foi um grande erro, já que o revide foi
imediato e voraz, vidros, pedras e tudo mais que se encontrava ao
alcance das mãos foram atiradas de volta, se não fosse à
intervenção de um vizinho, então cabo da polícia militar,
poderíamos ter sido linchados na saída do estádio.
Mas nem tudo foi em vão, já que anos depois esse embrião
tornou-se o “Insolência Pública”, a banda de punk rock, de maior
prestígio em Belém chegando a freqüentar durante algum tempo o
44
segundo lugar nas paradas de sucesso de uma rádio local
especializada, com o hit “Beirute Está Morta”.
A amizade continuava, mais o racha da trupe foi inevitável, pois o
som sem qualidade sonora, sem um arranjo decente e acordes
interessantes me levaram de volta ao velho metal e ao progressivo
que sempre foi minha paixão. O relacionamento piorou quando me
envolvi com a namorada de um dos integrantes da banda, uma
moreninha de lábios carnudos e sensuais, mas que me trouxe
algumas inimizades.
Resolvi me mandar de novo, dessa vez, sozinho.
45
O Atalaia
Fazendo um bico de vendedor de suportes para plantas, conheci o
“Raso”, figura bem mais velha, mas do mesmo modo sem juízo
algum, saiamos para vender nas casas, ganhávamos até uma grana
razoável. Um dia pela manhã, ele me disse, eufórico, ter conhecido
umas “gatas” lindas que estavam chegando do Araguaia e não
tinham para onde ir, perguntei de onde ele as conhecia, porém, na
verdade ele acabara de conhecê-las no pátio do terminal
rodoviário e prometido arranjar um local pra que elas ficassem.
Chamou um amigo que possuía um taxi e que se interessou pelas
meninas, logo depois o taxista disse que tinha uma casa
desocupada no Telegrafo, bairro da periferia de Belém, e que
pertencia a um parente, colocando a disposição para que
levássemos as meninas para lá, então rumamos para a rodoviária
para conhecermos finalmente as garotas. Ao chegarmos lá,
realmente três delas eram bem bonitas, já a quarta era irmã de
uma delas, bem, ficamos sabendo num rápido bate-papo que elas
haviam fugido de casa em Conceição do Araguaia, cidade do sul do
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Pará, e que pretendiam arranjar emprego na cidade, logo todos se
arranjaram, cada um com uma delas e tínhamos que arranjar outro
amigo para a quarta garota, o que não foi possivel. Levamos as
garotas para a tal casa do parente do taxista. A casa, se é que se
pode chamar assim, ficava numa área alagada, sobre estivas, não
tinha banheiro, nem fogão, nem camas, era uma casa muito
engraçada não tinha nada... pra se ter uma idéia, não se podia
pular ou dançar, porque as paredes pareciam que iam ceder a
qualquer momento, as portas eram presas com tramelas e as
janelas eram descartáveis, mas, não tínhamos dinheiro para ir a
um lugar melhor, e elas não tinham pra onde ir.
A noite foi longa, eu não tinha compromisso algum, fizemos uma
rápida “vaquinha”, compramos algumas quentinhas, as garotas
estavam famintas, algumas garrafas de rum, arranjamos um toca-
fitas e fizemos uma grande orgia que varou a madrugada. Durante
a festa trocamos de garotas, beijamos todo mundo, a feia ficou
linda, porém, uma delas, a morena mais “gata” que eu já havia
conhecido, me chamou a atenção pelo seu comportamento
refinado, gosto diferenciado e por não se envolver com outra
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pessoa, a não ser com o colega taxista, não demonstrou falso
pudor, apenas não parecia estar à vontade com a situação
estabelecida, sempre com gestos leves e palavras bem articuladas,
não parecia pertencer ao mesmo mundo das demais, virou na
verdade objeto de cobiça e os primeiros atritos surgiram
justamente por causa disso, quando pela manhã, o amigo Raso
tentou seduzi-la, houve um desentendimento entre os amigos, e o
taxista disse que deveríamos desocupar o imóvel, já que a garota
iria com ele, o que ela não concordou, gerando mais desconforto.
As meninas ficaram na casa, e nós saímos para tentar arranjar
outro local.
Passado um dia inteiro não conseguimos nada e fomos pra nossas
casas, retornando ao “muquifo” somente no dia seguinte, onde
não as encontramos mais.
Ainda fiquei cerca de mais um mês nesse trabalho, até o dono da
empresa ter sido preso por estelionato. Fiquei de novo
desempregado e sem dinheiro. Em casa o clima que já não era dos
mais amigáveis, tornou-se insuportável para os padrões
adolescentes, precisava arranjar outro jeito de me “virar”, foi
48
quando reencontrei um velho amigo da Paraíba que precisava de
alguém pra tomar conta de uma casa que ele construíra na praia e
não dispunha de tempo pra ir dar manutenção, pronto, fechou, era
a deixa que eu precisava.
Dias depois, estava eu de “malas” prontas para ir ao litoral, depois
dos desentendimentos costumeiros em casa e de não conseguir
convencer minha então namorada (ex do cara da banda) a me
acompanhar, resolvi que iria sozinho, fizemos um bota-fora na
rodoviária, nos despedimos com juras de amor eternas,
prometemos que nos esperaríamos, tomamos algumas cervejas e
nos separamos. Sentei-me na calçada, próximo de uns hippies que
estavam jogados por lá, pra esperar à hora do ônibus quando achei
que estava tendo uma visão, lá estava à morena do taxista
distribuindo papelotes pros malucos da calçada, fiz um esforço e
lembrei seu nome, chamava-se Edna, eu a chamei, ela me
reconheceu e solícita me ofereceu um ”bagulho”, perguntei como
ela tinha se envolvido naquela onda, ela disse que morava na casa
de uma “madame” próximo a rodoviária e que o companheiro da
mulher traficava, mas que ela era apenas o “avião”, não fazia uso e
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enfim tentou me dar mil explicações que eu nem me importava,
depois perguntou pra onde eu ia, contei-lhe o que estava
acontecendo e que estava indo pro Atalaia, praia do litoral, porque
um amigo paraibano, dono de uma tapera e que raramente ia lá,
me pediu pra ficar o tempo que quisesse pra evitar invasões e tal.
Bem, pra minha surpresa, Edna disse que não estava bem com
esses patrões, que corria riscos e gostaria de mudar de ares, logo,
com tamanha onda de sorte, estendi o convite a ela, que de
imediato aceitou dizendo que iria buscar suas “coisas” e me
encontraria na rodoviária em trinta minutos.
Já não estava mais solitário, e contrariando todas as previsões,
estava muito bem acompanhado, parecia que dali em diante as
coisas iam de alguma forma fluir com mais facilidade, já que
concordávamos com quase tudo, exceto pelo fato de que quando
ela chegou à rodoviária trazia nas mãos duas sacolas enormes
contendo além de seus pertences, jóias e utensílios variados que ia
desde radio toca-fitas ao secador de cabelos. Quando perguntei
sobre a “muamba” ela disse que era um acerto de contas e que
eles ainda ficavam lhe devendo por serviços prestados, a princípio
50
me preocupei com a “limpa” que ela deu no ap da patroa, mas
depois que o ônibus chegou, relaxei e deixei rolar. Viajamos
durante a madrugada, quatro horas de viagem, eu acho,
namoramos e dormimos, até os primeiros raios de sol entrarem
pelas janelas, não sabíamos nada sobre o lugar que estávamos
indo, muito menos como se chegava lá, alguém no ônibus nos
orientou a descer num determinado trevo, antes da cidade de
Salinas, e de lá tentarmos uma carona pra chegar ao local, pois,
não havia linha de coletivo para lá, se não conseguíssemos,
teríamos que caminhar oito quilômetros até a praia, também
perguntavam o que faríamos lá, por que o local era ermo, no
máximo encontraríamos alguns pescadores que viviam nas
proximidades. Pra mim tudo era uma grande novidade, apesar de
ter morado durante meses muito perto do litoral, na “onda” do
terreno, nunca vira o mar e a “mina” também não, já que vinha de
uma região central do Brasil.
Descemos no tal trevo e nem esperamos por carona, o dia
começava a nascer, a temperatura era agradável, o cheiro
diferente, o vento frio e constante, começamos a caminhar. Logo
51
nos dois primeiros quilômetros, tudo bem, depois aquela mochila
parecia pesar como um cofre e as sacolas que a outra trazia
pareciam pianos de cauda que teimávamos em arrastar.
Na metade do caminho, encontramos uma ponte, um rio de água
escura e doce que serpenteava por entre as pedras, parecia uma
recompensa por termos chegados até ali, vários cajueiros
carregados e coqueiros baixinhos, ao alcance das mãos. Descemos
e nos banhamos naquelas águas geladas, não havia uma alma por
perto, aos pouquinhos ela foi tirando a roupa até ficar
completamente desnuda, aí eu pude ver realmente o valor daquele
bilhete premiado. Tinha a pele sedosa, morena jambo, sem
marcas, silueta perfeita, seios fartos e firmes, cabelos negros
azulados escorridos pelas costas e muita, muita sensualidade,
esquecemos que ainda caminharíamos mais uns quatro
quilômetros, e ficamos lá, brincando durante horas, saciando um
desejo a muito reprimido, mas que agora teria seu momento, nada
importava, nos entregamos àquele instante como náufragos
famintos, deslizamos no suor do corpo até estancar aquela
devassidão, foi demais, até a hora que percebermos o sol
52
queimando a pino, queimando pra valer, era hora de levantar
acampamento e partirmos pra mais uma jornada desgastante, mas
que deveria parecer mais leve depois de tudo.
Na verdade tudo era muito romântico até voltarmos pra estrada
num sol de quase meio dia, com um peso enorme pra carregar, os
cajus que levávamos eram a única fonte de alimento, parecia que
não chegaríamos nunca ao nosso destino.
Depois de algum tempo enfim, sentimos uma brisa leve e
refrescante no ar, um barulho diferente, parecia de torcida no
campo de futebol, logo depois da subida, já podíamos ver o mar, as
dunas branquinhas e muita água, era maravilhoso, larguei tudo no
chão e saí correndo, me joguei de encontro às águas, mas logo
estranhei o ardume nos olhos e o sal, para mim muito estranha
essa sensação, nunca havia sentido algo parecido, para ela
certamente não era diferente, deslumbramento e medo por
tamanha grandeza. Em volta um deserto interminável de vento e
areia alva como a neve, não sabia por onde começar, em que
direção seguir, não havia sequer uma casa ou uma pessoa a quem
pudéssemos nos dirigir, não tínhamos água para beber e a
53
temperatura era muito elevada, olhando pra direita só um grande
nada, mas pra esquerda avistei um velho farol sobre uma formação
rochosa, que naturalmente deveria ter alguém ali perto pra
acendê-lo e pronto, decidimos o lado e rumamos pra lá.
A Comunidade
Aquele era um Brasil onde a violência urbana não atingia números
elevados, os bandidos mais famosos transformavam-se em lendas
54
por sua ousadia, dava tempo de contar histórias, já que não havia
internet, nem celular e as noticias não se espalhavam com tanta
voracidade, tudo isso contribuía para que pudéssemos nos
deslocar de um lugar para o outro, cruzar o país e até chegar ao
exterior, sempre contando com a ajuda de terceiros, pegando
carona nas estradas, arranjando hospedagem com certa freqüência
e até com prazer.
Quando atravessamos o local onde estava o velho farol, nos
deparamos com uma pequena vila, na parte da enseada ficava as
casinhas dos pescadores, uma pequena venda e vários barquinhos
espalhados sobre a areia, entre as casinhas haviam caminhos
improvisados que cortavam ou eram cortados por dunas que nos
levavam a outra vila encravada nas falésias, bastante integrada a
primeira, mas com diferenças culturais muito acentuadas, já que ali
estavam os “malucos” ex-nômades, hippies, ex-ativistas
estabelecidos, com suas mulheres e filhos, vindos de todas as
partes do Brasil e também de outros países, viviam basicamente do
que produziam, artesanatos que refletiam muito da região, porém
55
com traços e esmero tamanho, que influenciam tudo o que é
produzido até hoje.
Depois de nos recuperarmos do impacto daquela visão
cinematográfica, que mais parecia um quadro pintado que minha
mãe tinha na parede da cozinha e que eu tanto queria penetrar um
dia, tivemos que voltar a realidade e tentar achar a tal casinha que
o amigo paraibano nos cedera, nossa única referência era um
pescador chamado Jorge, que não tivemos nenhum problema em
encontrar, já que além de líder dos pescadores era também o dono
da única venda do local. Apresentamo-nos, fomos muito bem
recebidos, ele chamou um de seus vários filhos pequenos para que
nos pudesse conduzir até a casinha, agradecemos e seguimos o
guri, cinco minutos por um caminho de areia e voilá.
A casinha, não era tão casinha assim, era toda de madeira e palha,
mas tinha um certo charme, não era pequena, lá estava uma área
interna grande com piso apenas em barro batido, um fogão grande
de lenha, vários armadores, uma escada rústica que nos conduzia a
um segundo andar onde havia um quarto bem aconchegante com
uma cama de casal e uma janela ampla de onde podíamos avistar a
56
praia e toda a movimentação dos pescadores. Instalamo-nos,
agora teríamos que nos integrar ao meio e descolar um jeito de
sobreviver, porque a grana era curta e os mantimentos não
durariam muito tempo e como “cachorro mordido de cobra tem
medo de lingüiça”, não gostaria de viver as mesmas privações da
época do “terreno”. Mas, todas as providências ficariam só para o
dia seguinte, é que estávamos exaustos e literalmente hibernamos
após um prato de sopa de camarão mandado pelo amigo Jorge.
Aos poucos, fomos nos adaptando a nova realidade, Edna era uma
mulher fascinante, a casa, antes muito simples, rapidamente foi
ganhando um toque de requinte, aliás como tudo que ela tocava,
ela era enigmática, gostava de música clássica, falava espanhol e
inglês, tinha o bom gosto que lhe era peculiar, natural, não fazia
tipo, eu entendia que se existia uma coisa difícil de ser ensinada e
que, talvez por isso, estivesse cada vez mais rara, essa seria a
elegância do comportamento, um dom particular que ia muito
além do uso correto dos talheres e que bem mais abrangente do
que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza, era a
elegância que a acompanhava da primeira hora da manhã até a
57
hora de dormir e que se manifestava nas situações mais prosaicas,
quando não havia festa alguma nem testemunhas para caras e
bocas por perto, era uma elegância desobrigada, que só é possível
detectar naquelas pessoas que elogiam mais do que criticam, nas
pessoas que escutam mais do que falam e quando falam, passam
longe das maldades ampliadas no boca a boca, é possível detectá-
la nas pessoas que não usam um tom superior de voz, nas pessoas
que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer
em humilhar os outros, é possível detectá-la em pessoas pontuais.
Elegância é uma característica de quem demonstra interesse por
assuntos que desconhece, é quem cumpre o que promete, que não
fica espaçoso demais, não muda seu estilo apenas para se adaptar
ao de outro. Ela era assim, parecia vir de uma família abastada,
mas era elegante ao ponto de nunca falar de dinheiro em bate-
papos informais, retribuir carinho e solidariedade, ela sabia que
sobrenome, jóias, e nariz empinado não substituíam a elegância do
gesto, afinal, não há livro que ensine alguém a ter uma visão
generosa do mundo, a estar nele de uma forma não arrogante,
pode-se até tentar capturar esta delicadeza natural através da
58
observação, mas tentar imitá-la é improdutivo e a educação pode
enferrujar por falta de uso.
A venda do Jorge era o ponto de encontro todo fim de tarde, os
pescadores chegavam em suas canoas, desembarcavam todo o
pescado na praia, retiravam os peixes maiores e mais valiosos para
serem vendidos na cidade e distribuíam o restante entre todos os
que se dispusessem a ir buscar, então toda a “malucada” ia ao
encontro deles e garantia o “rango” do dia seguinte, depois
reuniam-se na venda pra tomar um trago, ouvir um único disco dos
Beattles numa vitrola a pilha e jogar conversa fora. Tinha gente de
todo lado, os sotaques mais variados, cearenses, mineiros,
catarinenses, gaúchos, argentinos e chilenos, muitas crianças, uns
maiores, outros bebês, mulatos e lourinhos, mulheres bonitas e
bronzeadas, caboclas e índias misturadas a pescadores e
aventureiros, uma integração sem preconceitos onde todos
cuidavam de suas vidas e se ajudavam na medida do possível,
entre eles haviam pessoas de formação superior, como uma
professora e um médico, também um ex-bancário e uma
enfermeira. Um ex-político, Pablo, banido da vida pública pela sua
ligação com o PC, assumia uma postura de liderança entre os
59
“estrangeiros” e tentava de alguma forma dar uma cara organizada
as atividades coletivas, como por exemplo, a produção de
artesanato que saía para ser levada à Belém era catalogada e a
renda dividida entre todos os demais, o mesmo acontecia com
algum tipo de mantimento trazido de fora da aldeia, no mais, os
“batalhos” eram individuais. Rapidamente nos tornamos parte de
tudo aquilo.
Cristina, uma figura que não parecia bem casada, uma noite
apareceu em casa com um hematoma no braço e pediu pra ficar,
chovia muito, Edna acabara de passar um café, e ela trazia uma
garrafa de cajuína, uma especiaria alcoólica produzida lá mesmo,
tomamos o café com torradas e então ela nos contou que seu
companheiro estava muito drogado passando a agredi-la sem
motivo aparente, disse também que essa não era a primeira vez e
que gostaria de ir embora para sua terra, Curitiba. No momento
tudo o que podíamos fazer era acolhê-la e reconfortá-la até que o
dia seguinte tratasse de esclarecer as coisas, a noite foi bem
divertida, depois que tomamos a cajuína, saí em baixo de um
temporal e fui bater na casa do Jorge em busca de limão pra
fazermos caipirinha, a venda ainda estava aberta e o marido de
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Cristina estava lá falando um monte, quando me viu, partiu pra
cima de mim, achei que ia me agredir, mas me abraçou chorando,
e pediu que eu a devolvesse a ele, tentei explicar que não sabia o
que acontecia, mas ele disse que iria comigo buscá-la, porque ela
era seu amor e não fazia sentido viver sem ela e outro monte de
coisas. Peguei os limões, e o levei junto até nossa casa. Ao
chegarmos, ela se surpreendeu, pegou um arpão que estava na
parede e disse que não o queria perto, e que ele fosse embora ou
ela o mataria, o clima ficou tenso, depois de acirrada discussão,
tivemos que intervir, Edna com sua tranqüilidade costumeira,
argumentou sobre os problemas que poderia acarretar para ambos
uma atitude impensada, ele, por sua vez chorou muito e resolveu ir
embora voltando tudo à normalidade.
Na manhã seguinte quando ia sair pra catar conchas, esse trabalho
nos dava algum dinheiro, porque repassávamos aos artesãos e
passávamos assim a ter nosso quinhão na produção, encontrei o
maluco jogado no meio do caminho, tentei acordá-lo, mas ele não
se mexia, estava com o rosto mergulhado em uma poça d’água,
virei o seu corpo, tentei reanimá-lo, mas em vão, já não respondia,
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corri até a vila, chamei o Jorge e os outros, logo, constataram que
estava morto.
Muita comoção e problemas foram agregados aquele fato, a
tranqüilidade do local fora quebrada, policiais da cidade circulavam
entre nós investigando, perguntando e coagindo de certa forma a
todos que não estavam acostumados com aquela situação, depois
de constatado a aparente morte súbita do amigo, eles foram
embora. O corpo foi velado na casa onde moravam e depois
enviado numa caminhonete para a cidade onde aconteceu o
sepultamento.
Passado esse episódio, Cristina ficou muito íntima de nossa casa,
entrava e saia quando queria, passou a me ensinar os segredos das
confecções artesanais, com facilidade aprendi lidar com as contas
do mar, metais, linhas, madeira, corda e tudo o que mais se
produzia no local, em pouco tempo me tornei um produtor e
artesão muito criativo, algumas das peças que eu criava serviram
de moldes para os outros e vice-versa, a interação tomou corpo e
eu me senti bem posicionado entre eles. Edna, que realmente
destoava entre todas as mulheres daquele vilarejo dado sua
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destreza e requinte, tornou-se uma parceira e tanto, tudo que eu
produzia ela conseguia vender.
A praia do Atalaia, nessa época, era um local isolado e não fazia
parte do roteiro turístico freqüente, mas nos finais de semana,
feriados e férias, uma certa quantidade de pessoas se deslocavam
para lá em caravanas e piqueniques, daí então surgia a
oportunidade de vender nossos produtos diretamente ao público,
o que nos dava um retorno financeiro muito bom comparado ao
que as lojas da capital pagavam no atacado. Nessa época eu
passava a noite produzindo peças com muito esmero e qualidade e
pela manhã ela colocava aquele biquininho amarelo, uma canga
colorida e saía pra vender na praia, uma bela combinação de
fashion com alternativo e o resultado eram várias peças vendidas.
Passados oito meses de muita paz e tranqüilidade, parecia que
tinha descoberto enfim o lugar que viveria pro resto da minha vida,
tinha uma mulher belíssima, o mínimo de conforto, companheiros
leais, parceiros de fé, comida farta, remédios produzidos a partir
de ervas e frutos do mar, uma culinária invejável até para os
63
grandes hotéis da capital, enfim, para mim não faltava mais nada,
mas, para ela sim, ela queria um bebê.
Numa nublada manhã de inverno, com o sol tímido, praia
desaguada, quilômetros de muito nada, estávamos caminhando
pela praia quando deparamos com um caminhão, tipo baú,
estacionado no meio daquela imensidão, em volta havia, cadeiras,
guarda-sol, uma pequena caixa térmica e um casal, que parecia
estar em férias ou em lua-de-mel, chegamos perto pra
cumprimentá-los e oferecer-lhes algumas peças, a placa do
caminhão era de Goiânia, dissemos “olá”, o motorista levantou e
de forma muito amável nos convidou pra “chegar”, tirou do
reservatório uma garrafa de cerveja e conversamos durante horas,
disse sobre os acontecimentos de Brasília, da derrocada eminente
do militares, perguntou sobre nossas vidas e costumes, me senti
como um nativo sendo pesquisado, as meninas em outro lado
conversaram sobre variedades, disseram que eram recém casados
e que esperavam o primeiro filho e assim foi até a última garrafa.
Estavam hospedados ali mesmo, passariam a noite e depois
seguiriam para Anápolis, onde residiam, dentro do caminhão
64
contavam com uma motocicleta que usaria para ir a cidade
comprar mantimentos, bebidas etc. e que se estivéssemos
interessados poderíamos voltar e passar a noite com eles, já que
viajariam no dia seguinte.
O fato da garota do caminhoneiro estar grávida reiniciou uma
discussão de dias atrás quando ela me disse que estava com suas
regras atrasadas e que seria bom termos um filho, o que eu não
concordava, achando que aquele local tão isolado não era um bom
lugar para os pequenos, ela mostrava as outras crianças felizes
como exemplo e eu, meio sem argumento, disse que não queria
ficar preso a essa situação e que ainda era muito jovem pra isso e
etc. enfim, o clima não ficou muito bom a partir daí e justamente
nesse momento fomos nos deparar com uma grávida feliz. Quando
chegamos em casa, já tínhamos bebido o bastante pra falar
palavras não medidas e desferir aquelas que dilaceram, até
chegarmos a nos agredir com empurrões e unhas afiadas, resolvi
sair, fui até o Jorge, tomei uma cajuína sozinho até que não me
sentisse mas em condições de argumentar sobre nada, voltei pra
casa muito tarde, ela fingia que dormia e eu fingi que acreditava, a
65
chuva entre relâmpagos, caiu forte como nunca, a noite esfriou
muito, ela passou a perna por cima de mim, e sem dizer uma única
palavra tivemos uma noite arrebatadora, daquelas que as vestes
são retiradas de qualquer maneira em detrimento aos seus botões,
apesar do frio intenso que fazia lá fora, aquela cama parecia arder
com movimentos bruscos e insanos, e assim foi até a exaustão.
Dia seguinte, sol intenso, horizonte aberto e límpido, fiquei
olhando um pouco pela janela o movimento dos pescadores,
aquele gosto de ressaca na boca e as costas marcadas pelas
unhadas da noite anterior, mas uma sensação boa de uma noite
prazerosa dava um certo tom de contentamento, eram dez ou
onze horas, desci as escadas e não a encontrei em casa, o café
estava pronto e até o pão torrado coberto à mesa, tomei o café e
saí. Cheguei até a venda do Jorge, que foi logo falando – dona Edna
passou cedinho, ela foi viajar? – não entendi muito bem a
pergunta, mas depois Jorge me disse que ela havia passado com
umas sacolas nas mãos, voltei em casa e só encontrei algumas
peças de roupas dela que estavam estendidas no varal, até o
secador de cabelos que ela nunca usara, por falta de energia
66
elétrica, também havia desaparecido, saí correndo e perguntando
a todos se a tinham visto, e a resposta era sempre a mesma: “saiu
cedinho em direção a praia com umas sacolas”, segui o que achei
que eram suas pegadas e cheguei até o caminhão do goiano, que já
havia partido. Nunca mais a vi, contrastando com sua sutileza e
elegância, saiu da minha vida com a mesma impetuosidade que
entrou, me deixou marcas muito profundas nas costas e no
coração, tudo o que restou foi uma doce lembrança e um pão
requentado sobre a mesa.
67
A Vida Continua
“O tempo é o melhor remédio”, esta página foi virada, perdi minha
parceira na vida e nos negócios, mas pelo menos nos negócios
encontrei em Cristina uma nova parceria bem dinâmica, já que
nesse caso os dois produziam e assim tínhamos chance de sair e
viajar juntos com bastante material, ficamos muito unidos depois
do que aconteceu, devo reconhecer que ela não era detentora de
uma beleza tão estonteante, mas tinha outros atributos que a
tornavam muito interessante, cabelos longos, negros e cacheados,
seu tipo físico era bem latino, pernas grossas e bem torneadas, um
pouco mais velha, talvez 25 ou 26, perspicaz, inteligente e muito
cheia de vida, passamos a nos deslocar com muita freqüência por
cidadezinhas próximas, vendendo em praças e em rodoviárias, era
outro tipo de comércio que até então eu ainda não experimentara,
sempre decidida e segura eu a seguia e nunca me dava mal,
dormíamos bem, nos relacionávamos muito bem com as pessoas,
seu carisma fazia com que todos fossem bastante receptivos, as
viagens eram curtas, três a cinco dias, depois voltávamos para a
praia, com um bom dinheiro, fazíamos nossas compras juntos e
68
ficávamos sem fazer nada durante uma semana, produzíamos
durante outra semana, até seguirmos para estrada outra vez, esse
método era utilizado pela maioria dos casais da aldeia, depois do
retorno sempre entravamos num período de comemoração, a vida
era realmente uma grande festa.
Passados mais uns meses o verão já se instalava forte, era hora de
produzir em grande escala para entregar nas lojas e vender direto
nas praias, para isso precisávamos fazer dinheiro e investir pesado
em material mais sofisticado, tipo pérolas e marfins, não
conseguimos guardar o suficiente para essa empreitada, afinal
após o verão queríamos alçar vôos mais altos, conhecer novos
lugares, culturas diferentes, gostaríamos de sair do estado ou até
do país, daí pintou um lance interessante, conhecemos em Salinas
um figurão que nos deu uma carona de volta, ele nos perguntou
sobre o local que morávamos e outros detalhes, disse que se
quiséssemos vender nossa casa que ele compraria, pois, sempre
quis ter uma casa naquele local, bem, eu não podia vender a casa
que não era minha, mas ela sim, já que poderia vir morar comigo.
Procuramos o doutor e lá fechamos negócio, era uma grana alta
69
pra época, algo que significava mais ou menos o preço de uma
motocicleta nova, dinheiro suficiente pra fazermos um belo
investimento e depois viajarmos.
Cristina passou a morar comigo, e aquele jogo de sedução a
distância não durou muito tempo, nos envolvemos de fato e lá
estávamos de novo meio casados e tocando a vida, nossa relação
era bem madura e aberta, sem ciúmes ou cobranças, baseava-se
em carinho, admiração e lealdade, uma fórmula perfeita, só
fazíamos planos para o futuro recente, nada de devaneios ou
solidez, nada era definitivo, isso muito me agradava, trabalhamos
durante o veraneio, juntamos um bom capital e decidimos que
iríamos embora, a caminho do nordeste, esse era o caminho
natural da maioria dos que haviam partido, comunicamos nossa
decisão a toda a moçada da vila, foi bem legal, fizeram um grande
bota-fora, com tudo que tínhamos direito, muito peixe assado,
violão e aguardente, abraços, beijos, risos e lágrimas, foi a
apoteose de um ciclo maravilhoso onde naquele momento caia o
pano para então descortinarmos outros Brasis.
70
A Viagem
A situação do país era de instabilidade econômica, inflação em
torno de 30% ao mês, pelo menos é o que ouvíamos falar, os
universitários eram agredidos nas praças, lideres desapareciam em
meio às passeatas e reapareciam tempos depois meio desligados,
tudo isso nós só ouvíamos falar, não parecia que vivíamos a mesma
realidade, coisas estranhas aconteceram na era da ditadura,
quando a censura tirava do ar comerciais inocentes, mas permitia a
difusão de grupos como “Secos e Molhados” constituído de
homens travestidos, de voz feminina, mas de recado forte e muita
sensualidade. Drogas e rock, não parecia fazer parte de sua
planilha de desinfecção, o problema era político, tinham que
mostrar poder sobre as classes emergentes para que fossem
respeitados, a força bruta era usada indiscriminadamente, o poder
bélico impunha-se nas ruas com pompa e autoridade, mas os
“hippies” eram tolerados, parecia que os "milicos” não entendiam
bem o que acontecia, talvez, os vissem como pessoas a margem da
sociedade ou despojos dela, quando na verdade ali estavam os
únicos livres dentre tantos seguimentos, os únicos que usavam
71
sem restrições seu direito de ir e vir sem serem importunados,
além de não pagarem impostos, não servirem o exército e ainda
cruzarem o país sem gastos, já que na maioria dos lugares eram
bem recebidos ou apenas ignorados. Nossa segurança de certa
forma era preservada, porque enquanto os militares guardavam as
ruas temendo um levante popular ao mesmo tempo inibiam os
pequenos furtos e os atos de hostilidade de vândalos, podíamos
trabalhar livremente nas praças e até éramos convidados a
compartilhar a mesa de pessoas influentes que gostavam de nossa
arte e nosso repertório, havia certa discriminação por parte dos
setores mais tradicionais, é verdade, pareciam nos admirar, só que
á distancia, não permitiam que suas filhas se aproximassem, o vírus
da insurgência poderia contagiá-las, mas notávamos que nossos
artesanatos estavam “na crista da onda” ornamentando com
plumagem suas orelhas e com sementes seus colos e pulsos.
Saindo de Salinas em direção a Capanema, cidade próxima,
pegamos uma carona em uma caminhonete da prefeitura, até a
rodoviária, levávamos pouco dinheiro, mas pelo menos três
mochilas abarrotadas do melhor que conseguimos produzir, ao
72
chegarmos à cidade, fizemos uma pequena incursão entre as
pessoas que esperavam para embarcar, sem muito sucesso, mas
conseguimos “descolar” o do almoço e fizemos um contato
importante, era um carreteiro que seguiria para Viseu, uma cidade
mas ao nordeste, fronteira com o Estado do Maranhão, no final da
tarde partimos.
A viagem transcorreu sem problemas, o caminhoneiro se
interessava pelo que fazíamos, perguntava bastante, sempre ao
som de guaranhas e músicas sertanejas até chegarmos ao nosso
destino.
Viseu, nos pareceu uma cidade sem atrativos, mas do outro lado
estava a praia de Carutapera, já no estado vizinho, atravessamos
em um barquinho motorizado e nos deliciamos com um lindo
visual do qual já nos acostumávamos, parecíamos estar em casa de
novo, andamos por alguns quilômetros, a noite já caia, nos
deparamos com um grupo de mochileiros que se reuniam em volta
de uma fogueira onde assavam alguma coisa, sempre com violão e
muito reagge, notamos que todos eram negros e não pareciam
estar dispostos a convidar a que nos juntássemos a eles, ficamos
73
um pouco mas adiante, montamos nossa barraca e procuramos
entre os enlatados algo para comer, estávamos um pouco
cansados, resolvemos dormir, logo que fechamos o zíper, alguém
perguntou do lado de fora se nos éramos melhores que eles,
abrimos uma fresta, pra conversar, quando uma garota do meio
deles que estava aparentemente embriagada, jogou um pedaço de
madeira em brasa pra dentro da barraca, saímos imediatamente,
as chamas queimaram parte do piso, ficamos assustados, eles riam
nos chamando de falsos burgueses e outras coisas sem sentido,
não entendíamos muito bem o motivo daquela agressão gratuita,
já que quando chegamos, nós os cumprimentamos e não
obtivemos resposta alguma, Cristina tentou argumentar e foi de
imediato rechaçada com palavrões e palavras de ordem, pareciam
uma seita de fanáticos, resolvemos desmontar a barraca e
procurar outro lugar pra ficar, no momento em que arrumávamos
os pertences, eles nos cercaram e com correntes começaram a
bater nas mochilas até o ponto que uma delas rasgou revelando
seu conteúdo, foi terrível, eles se surpreenderam com o que
carregávamos, um deles tentou interferir, mas foi a maioria, uns
sete ou oito, que partiram pra cima das nossas coisas danificando e
74
saqueando o que puderam, pra depois desaparecerem como se
jamais estivessem estado lá, exceto por um deles que permaneceu
no local e tentou nos ajudar recolhendo o pouco que sobrou,
pensamos em retornar ao Atalaia, mas o negro que tentou nos
ajudar, que apresentou-se como Pretinho, disse que não nos
preocupássemos, porque ele tinha parentes em S. Luiz e poderia
nos ajudar, disse que havia conhecido aquelas pessoas em Belém a
algumas semanas e que não tinha idéia do que eram capazes de
fazer. As coisas ficaram difíceis, todo o trabalho de meses se
perdera naquela noite insólita, mas tínhamos que continuar, então
seguimos para São Luiz.
Sem comida, sem mercadoria e sem dinheiro, ficamos em frente
de uma igreja antiga no centro da cidade, oferecendo o pouco do
que nos restava, nosso amigo desapareceu com promessa que
voltaria com alguma ajuda, acontecia na pracinha algum tipo de
festejo de um santo ou coisa parecida, ficamos postados em local
estratégico, tínhamos pouco material, mas dava pra confeccionar
alguma coisa, vendemos uns brincos, algumas pulseiras de linha,
nada de valor elevado mas que já ajudava na alimentação, me
75
lembro de uma cena humilhante quando Cristina aproximou-se de
uma mesa na calçada para oferecer uns trabalhos, a mulher
imediatamente levantou-se segurando os filhos pelas mãos e
virou-lhe às costas enquanto o marido falou algo ríspido e cuspiu
em seu rosto, foi muito constrangedor, esses fatos eram muito
raros mas aconteciam, e naquela região parecia mais enraizada a
postura aristocrata dos “coronéis”.
A não ser pelo fato do amigo Pretinho, reaparecer no dia seguinte
com algum dinheiro e um rolo novinho de metal, nossa passagem
por ali seria digna de esquecimento. Decidimos continuar, ele, o
Pretinho, nos deu umas dicas de um lugar onde esteve, chamava-
se Canoa Quebrada, descrevia como um verdadeiro paraíso para
quem gostava de viver livremente, produzir e expandir, ele dizia
que o lugar estava repleto de grupos vindos de toda América e até
africanos e asiáticos, dizia que pra quem tinha talento em
reproduzir peças como as nossas era na verdade uma universidade
de aprendizado e troca, perguntamos se ele iria nos acompanhar,
ele disse que não, visto que encontraria alguns amigos no Pará, na
ilha de Algodoal, porquanto lá ainda havia muito o que conhecer,
76
também começou a descrever a ilha, mesmo sem conhecer, o que
nos fez balançar entre seguir ou voltar pra terrinha, mas o objetivo
era Fortaleza e com a dica de Canoa, deveríamos arriscar.
De volta à estrada, conseguimos uma carona com um cara de Picos
no Piauí, depois outros em pequenos trechos e um ônibus até
Fortaleza, não me lembro muito da cidade, só ficamos próximo a
rodoviária, até que encontramos o Solano, amigo da Cristina desde
Curitiba, um reencontro muito festejado, mas que parecia
programado, não falei nada, confesso que fiquei enciumado e de
cara já não gostei do figura, mas ele tinha um jeep e
“coincidentemente” ia pra Canoa, então, com tantos “atributos”
tive que me render e partimos para o litoral, sem esquecer que
antes passamos num outro bairro onde pegamos o Arthur e a
Guta, dois irmãos, filhos de um militar influente que resolveram
aderir ao movimento e estavam caindo fora. Sabe aquelas figuras
que não tem nada haver com aquele momento? Mas que tem a
maior boa vontade em saber como tudo funciona? Pois é, assim
eram os dois irmãos, ele 17 e ela 21, pareciam ter sido criados a
base de leite de cabra, de pele tão alva e modos tão refinados, que
77
nitidamente não deveriam estar ali, ele mais atirado falava o
tempo inteiro, disse que tinham largado os estudos, ele o colegial e
ela a faculdade e que não voltariam mais pra casa onde eram
reprimidos em suas vontades sem o mínimo respeito, com o
agravante que ele deveria se apresentar ao exercito nos próximos
meses e tal, ela, o tempo todo calada, parecia tensa, tinha os olhos
verdes fixos na paisagem, não parecia muito interessada na
conversa, seu pensamento divagava distante daquela estrada.
Adiante um posto de gasolina e uma rápida parada. Todos
desceram, menos Guta, que permanecia inerte, arrisquei
perguntar-lhe se gostaria de comer algo, ela balançou a cabeça
positivamente, mas não disse o que gostaria de comer, não falei
mais nada, desci e me juntei aos outros, pedimos sanduíches e
suco, não se passou nem dez minutos, quando retornamos ao
carro, eu trazia um sanduíche para ela que pra nossa surpresa já
não se encontrava mais lá, procuramos pelas imediações sem
sucesso, nos separamos, não tinha muito pra onde ir, ou entrara
no posto, ou seguira a pé, ou embrenhara-se no mato ou alguém a
levara, o garoto assustado disse que talvez ela tenha se encontrado
com um tal Dado, seu ex-namorado que a seguia o tempo inteiro,
78
um barra pesada que traficava nas ruas de Fortaleza, não sabíamos
muito bem o que fazer, como comunicaríamos o desaparecimento
de alguém que já havia desaparecido, como explicaríamos sua fuga
se estava fugindo com a gente. Artur disse que seguiria em frente,
que não era a primeira vez que ela fazia isso, e que na ultima
morou com o tal Dado durante três meses, bem, ele parecia
convicto do estava rolando, tão convicto que nos convenceu e
resolvemos continuar sem ela.
79
Canoa
Durante a viagem encontramos várias pessoas com mochilas nas
costas indo na mesma direção, mas contrariando o que tínhamos
conhecido até então, Solano postado no volante tendo a seu lado
Cristina, não parecia se incomodar com os apelos de carona que
eram solicitados a margem da estrada, falava bobagens, tipo, “joga
a corda que te puxo” ou “vou te mandar um reboque” e para
minha desilusão, Cristina se divertia com aquele monte de
abobrinhas, parecia ter esquecido o que a bem pouco tempo
80
acontecera em S. Luiz, ou todo o “batalho” que foi pra chegarmos
até ali, não a reconhecia mais, como alguém podia mudar sua
postura de forma tão radical em tão pouco tempo? Depois de mais
algum tempo chegamos finalmente.
Era deslumbrante o cenário que se apresentava aos nossos olhos,
eu fiquei extasiado com a beleza do lugar, praia linda, areia fina
colorida, muita gente acampada, outros em barracas de palha,
parecia um pré-acampamento do Woodstock, por algum tempo
não pude conter minha admiração, os outros ao contrário,
pareciam já conhecer o lugar e simplesmente chegaram, Cristina,
que eu tinha certeza, nunca estivera lá, fez de contas que era só
mais um lugar e acompanhava Solano todo o tempo, o garoto
Artur, me dava nos nervos, eu não conseguia conversar com ele e
tampouco fazer com que ele se calasse, ficamos numa barraca,
tipo restaurante onde estavam servindo comida natural, os caras
que trabalhavam lá eram bem exóticos, usavam uma espécie de
túnica laranja, tinham a cabeça raspada e um rabinho de cavalo no
meio, tocavam e cantavam umas musiquinhas enquanto outros
davam pulinhos engraçados, depois fiquei sabendo que se tratava
81
de um grupo ligado a uma religião da índia e tal, foi bem legal o
contato com eles, eram cheios de frases de efeito e filosofias
inteligentes, Cristina flutuava por todos os cantos e parecia me
evitar, sabia que eu tinha muito a falar e que certamente
discutiríamos, até que em dado momento o “Fulano” deu um
tempo e eu a chamei, perguntei o que estava rolando, ela disse
que ele era um velho amigo e que ela estava tentando agradá-lo,
perguntei o porque de sua mudança de atitude, ela disse que na
verdade sempre foi essa pessoa e que Atalaia e tudo mais fora uma
fase e que já não fazia mais sentido, disse que se comunicou com
seus pais no Paraná e que receberia dinheiro para ficar uns dias e
depois voltaria pra casa, disse também que eu não me
preocupasse, pois a grana daria pra segurar minha “onda” o tempo
que ela ficasse lá e até me arranjaria “algum” pra que eu
retornasse. Foi muito ruim ouvir tudo isso, eu me senti usado e
descartado, ela pertencia na verdade a uma classe social abastada,
a mesma burguesia que tanto nós criticávamos e combatíamos. A
situação em que eu a conheci seria apenas circunstancial, ela
apenas tirava “uma”, assim como o garoto Arthur estava tentando
fazer, não tivemos um papo definitivo, mas já não tínhamos mais
82
intimidade alguma, éramos apenas velhos conhecidos, ela arranjou
um lugar na casa de amigos da Guta, onde eu poderia ficar, junto
com o moleque, o cara que nos atendeu, de quem não lembro
mais o nome, disse pra ficarmos tranqüilos que a Guta estava na
casa de uma figura amiga, junto com o tal Dado e que só estava
com ele porque era viciada em ácido lisérgico e ele era o único
canal, daí o motivo daquele relacionamento tempestuoso.
À noite tudo era um grande “barato”, as rodas de amigos se
espalhavam diversificando aquele lugar mágico, rolava de tudo,
loucos drogados, loucos embriagados e loucos de cara, rock do
bom, reggae, MPB e Hare Krishinas, um grande festival de
liberdade e cultura, não havia nenhum tipo de repressão,
estávamos em uma zona livre dos tentáculos reacionários e
pudicos que regulavam o sistema, todos viviam em uma comunhão
relativa, mais harmoniosa, durante os dias que fiquei por lá, não
ouvi falar de um simples distúrbio, tudo transcorreu na mais
absoluta tranquilidade.
Ha três dias não via Cristina, cheguei a pensar que não estava mais
lá, mas naquela tarde na casa onde estava hospedado, sem custo
83
algum, ela chegou e me procurou, disse que chegara de Fortaleza e
que seus pais lhe haviam mandado dinheiro e que agora podíamos
retomar nossa vida de outra forma, perguntei-lhe sobre seu amigo
Solano, ela disse que não tinha nada haver e que ele já tinha se
mandado, mas que agora poderíamos ir viver num lugar melhor, já
que seus pais a receberiam de volta, disse também que falou a eles
sobre mim e que gostariam de me conhecer. Tudo pra mim
pareceu muito repentino, percebi que o lance com Solano tinha
“babado” e que ela se sentia meio perdida, bem, pensei com meus
botões, estou longe de casa, sem dinheiro e sem perspectiva de
voltar, logo teria que me segurar até conseguir comprar algum
material e voltar pra estrada, e foi o que eu fiz, relevei os
acontecimentos e ficamos muito bem instalados em uma pousada
por alguns dias, ela fazia planos pra que fossemos morar em
Curitiba, mas eu já não conseguia mais confiar no que ouvia, pedi
que me arranjasse algum dinheiro, para que fosse á Fortaleza
comprar algum material de trabalho, ela disse que não precisava
mais e que tomaríamos um ônibus direto para sua casa,
argumentei que não gostaria de ficar em sua dependência e que
gostaria de levantar minha própria “grana” até pagar seu
84
empréstimo, ela aceitou minha argumentação e liberou um valor
razoável para que eu voltasse a produzir, passamos uma noite
muito legal, mas já não era igual, eu sentia uma mulher diferente,
não melhor ou pior, apenas diferente, não existia mais aquela
vontade de ficar horas jogado na cama se curtindo como antes.
No dia seguinte tomamos café na vila, um beijinho rápido, tomei
um ônibus e viajei para Fortaleza. Ao chegar a cidade fui dar umas
voltas pela belíssima orla da capital, uma rapaziada “descolada”
circulava pelo calçadão muito bem policiado, era um cenário
repressivo que eu não estava acostumado, cheguei até a lojinha
comprei uma boa quantidade de material, metais, miçangas,
sementes, palha e linha, mas na volta à rodoviária fiquei quase
uma hora circulando em frente aos guichês minha conveniência
me remetia a comprar a passagem de volta para Canoa, mas minha
consciência gritava diferente, no final quando me toquei, mais ou
menos como Edna fizera comigo, desapareci, e voltei à Belém.
Meus cabelos estavam crescidos, quase no meio das costas, minha
experiência era minha carta de referência para seguir a qualquer
lugar, não gostaria de voltar ao circuito turma, bailinho, idealismo,
85
radicalismo etc. essas coisas não faziam mais parte do meu modo
de pensar, já trazia uma bagagem considerável de relacionamentos
e estrada que me credenciavam a fazer escolhas consistentes e ao
mesmo tempo não via mais relevância em determinados
posicionamentos, não me dispunha mais a discutir assuntos
batidos que nada acrescentavam ao meu conhecimento, os
carinhas, pareciam ter parado no esquema do rock e mantinham
suas mente fechadas sem se darem contas que o novo sempre vem
e que o leque de possibilidades é imenso, as bifurcações sempre
iriam aparecer, mas nós teríamos que ter o discernimento
necessário na hora de fazer nossas escolhas, visto que nessa fase
que estávamos atravessando elas poderiam ir de um simples
experimento a seqüelas para toda uma vida, mas apesar de pensar
dessa forma, também não conseguia me ver de volta a casa dos
meus pais, ficaria sempre aquele sabor amargo do fracasso e um
gosto estimulante de quero mais, portanto, naquele momento eu
estava diante de minha bifurcação, o ônibus se aproximava de
Belém, e eu teria que resolver o que fazer, minha família não tinha
noticias minhas a pelo menos seis meses, o ultimo telefonema foi
quando fui a Castanhal, cidade a 60 quilômetros de Belém,
86
entregar algum material em uma lojinha, me lembro do alívio de
minha mãe ao saber que estava bem, contei-lhe que estava meio
casado e que tinha uma casa, um trabalho, ela ficou contente,
mandei beijos e abraços a todos e disse tchau, desde aí não falei
mais com ninguém, e agora estava voltando, sem mulher, sem casa
e sem emprego, não podia ser desse jeito.
Chegando ao terminal não sabia muito bem o que fazer, parecia
um estrangeiro em minha própria terra, procurei a casa de uma ex-
namorada, aquela ex do cara da banda, com quem troquei juras de
amor antes de tudo isso começar, cheguei até sua casa em uma
rua próxima, não lembrava muito bem onde ficava a casa, pedi
algumas informações e cheguei até lá, bati na porta, uma senhora
veio atender, era sua mãe, pedi para falar com a garota, mas a
senhora disse em um tom pouco amigável que ela havia saído com
seu noivo, pedi desculpas, disse que voltaria outro dia e me
mandei, meu primeiro cartucho estava queimado, bem agora me
restava procurar o meu primo, fui até o terminal de novo e liguei,
Falei com meu velho primo, figura apesar de excêntrica tinha
sempre uma carta na manga e só precisava de outra alma livre
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para decolar. Encontramos-nos e traçamos uma ida à ilha de
algodoal. Essa dica foi legal, me lembrei do maluco do Maranhão e
resolvi que era pra lá que eu ia. Lembro-me que segui depois de
alguns dias. Rapidinho uma ligada pra mamãe, beijos e choros e lá
fui eu de ônibus para Marudá, cidade litorânea no nordeste do
estado de onde se tinha acesso a ilha.
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ALGODOAL
1982, o governo militar agonizava, uma grande quantidade de
jovens alheios aos movimentos políticos, amantes do bom e velho
rock’in roll, promoviam um verdadeiro êxodo para longe dos
centros urbanos, a velha filosofia de “paz e amor”, mas do que
nunca era desfraldada entre as muitas cabecinhas frescas que se
aventuravam em sair de casa, sem se contentar com uma vida
quadrada e urbana, uma “comichão” de conhecer, desbravar,
experimentar tomava conta de toda uma nova geração, que se
importava mais com o companheiro do que com as condições
89
impostas para viver essa amizade, que não media esforços para se
deslocar e encontrar distante alguém que antes era tão próximo e
não mantinha contato algum, a filosofia de cuidado e amor a
outros estranhos que passavam em alguns encontros a serem
amigos eternos, íntimos como a aquela tatuagem que escondiam
dos pais, cúmplices e testemunhas de uma década que sempre
será lembrada por ter proporcionado mudanças profundas na
política de um país e no comportamento das gerações futuras,
uma geração que trazia a sensualidade aflorada em cada gesto ou
movimento, uma geração que veio se formando na fumaça de uma
ditadura e desfrutou de seu desmantelo, mas sobre tudo, uma
geração de idéias e caráter forte, de cultura alicerçada por uma
relação interpessoal sensível e marcante, por uma interação
apaixonante com a natureza o que viria a refletir seu
posicionamento audaz sua cumplicidade e sua parcialidade
inconteste até hoje em seus descendentes.
Quando me dispus a ir em mais essa aventura, estava um tanto
desolado e sem perspectiva, só sabia que meu primo se
90
encontrava na ilha já a algum tempo e que outras pessoas também
buscaram esse recanto.
Marudá, a cidade que dava acesso a ilha, era uma cidade bem
estruturada, já contava com um bom hotel e o fluxo de veículos
estacionado na orla da praia já denotava que ali estava um dos
destinos favoritos dos turistas, imaginei que a ilha também
guardava alguma estrutura, visto que ficava há 20 minutos de
travessia em barcos de passageiros, qual nada, já de cara, no
barquinho só estavam além do piloto e eu, mais duas pessoas,
perguntei o motivo de tão poucas pessoas atravessarem, o moço
me disse que é por que do outro lado, só havia uma vila e os
turistas não gostavam muito de ir principalmente porque diziam
que lá era um lugar cheio hippies e desocupados, não oferecendo
conforto e boa alimentação. Bem, as referências para mim eram as
melhores possíveis, já que naquela época, onde havia preconceito
da burguesia, significava território livre, comecei a gostar do lugar,
o barqueiro, que era morador da vila e não concordava com o
pensavam sobre sua ilha, dizia que os caras que moram lá, eram
muito gente boa e que se davam muito bem com os nativos, só
91
eram um pouco barulhentos, mas não se ouvia falar de brigas,
roubos ou depredação, ao contrário, eles ajudavam a cuidar da
lagoa...interrompi sua fala e perguntei de que lagoa estava falando,
ele disse que se tratava de uma lagoa encantada, onde morava
uma princesa de vestes brancas que de vez em quando aparecia
para os pescadores e geralmente botava os invasores pra correr,
mas que parecia ter se dado bem com seus novos vizinhos. Disse
que a última vez que foi avistada tinha a forma de uma “boiúna”,
cobra de grandes dimensões, mas que apenas aparecia para ter
certeza que tudo estava bem, contou vários outros casos de
desaparecimentos e encantamentos que aguçaram minha
curiosidade, fazendo crescer a ansiedade em participar um pouco
daquele conto de fadas.
Sabe aqueles quadros vendidos em toda parte, onde aparece uma
enseada, barquinhos espalhados sobre as pedras, vila típica de
pescadores e aquele sol enorme no fundo dando uma sensação de
pequenez a tudo mais que existe no mundo? Pronto! Essa é a
descrição perfeita do que eu vi só que era de verdade, havia vida,
movimento e comércio, não existia energia elétrica, pousadas nem
92
restaurantes, o transporte era o mais natural possivel, sem acesso
facilitado, tinham a dádiva de não contar sequer com um carro ou
moto, tudo era conduzido através de burricos e charretes, o
grande encontro dos habitantes, que não eram muitos, se dava em
um grande barracão onde rolava roda de “Carimbó”, dança
sensual, típica da região, e cachaça servida em pequenas “cuias”,
espécie de vasilha extraída de uma árvore muito comum por lá,
que dava um charme todo natural ao evento, digo isso porque
quando aportamos, era um fim de tarde embriagante e não vi
outra alternativa que não fosse passar a noite junto com os
nativos festejando sei lá o que, mas com o mesmo entusiasmo
como se soubesse.
Nessa noite conheci um “maluco de pedra” que chegara em um
barco antes e já estava entrosado em meio a todos, parecia já ser
veterano por ali, sabia o nome de todo mundo e a recíproca era a
mesma, gozava de um certo prestígio, pagava bebida e carregava
umas baquetas enfiadas na mochila, o que me chamou atenção,
começamos a conversar e chegamos a conclusão que éramos parte
de um mesmo grupo e que os amigos em comum eram muitos e
93
que vários deles se encontravam acampados no lago, disse que
estava preocupado porque lhe disseram que devido o alto
consumo de “erva” na ilha, haviam infiltrado entre os nativos um
policial federal e que por isso não tinha ido pro acampamento,
perguntei-lhe qual ligação isso teria com o fato dele estar
preocupado, ele sorriu e sacou de dentro da mochila uma lata de
leite cheia de maconha que teria ido buscar em Mocoóca, pra
abastecer nativos e simpatizantes. Depois de tomarmos várias
cuínhas achamos coragem para enfrentarmos uma longa
caminhada no frio da madrugada, disse que se quisesse ir, aquela
era a hora boa pra chegar até a lagoa, já que a maré estava baixa e
o “canal” permitia a passagem a pé, aproveitamos o porre e a lua e
saímos. Depois de caminharmos um pouco, chegamos a um
igarapé que cortava a praia em direção as dunas, ou era ao
contrário, não era tão raso assim, não dava pé e tivemos que nadar
uns cinco metros numa correnteza relativa, aparentemente esse
esforço não seria grande coisa se não estivéssemos naquele estado
deplorável, riamos muito sem noção do perigo que corríamos,
molhamos tudo o que carregávamos, e quase congelamos. Meu
amigo, muito louco, resolveu enterrar em uma duna a lata de leite
94
que conduzia, para resgatá-la no dia seguinte, ainda tínhamos uma
garrafinha de aguardente pra rebater o frio, as roupas molhadas
eram a pior parte, então nos livramos delas, ficamos totalmente
pelados, jogamos as mochilas nas costa e seguimos em frente,
cantando e bebericando. Não se tinha bem a noção do tempo,
mas deveríamos estar no meio da madrugada, três ou quatro
horas, quando avistamos ao longe uma fogueira ardendo, música e
muita algazarra, nos aproximamos e começamos a gritar, de
repente, fomos avistados e eles vieram ao nosso encontro, foi o
máximo, eu conhecia quase todos, as figuras mais selecionadas
que se podia supor, não lembramos de vestir nossas roupas e isso
não pareceu estranho, as meninas que conhecíamos de outras
“paradas” não se importaram com nossa falta de trajes, gritavam
eufóricas, “Só faltava o senhor” me abraçavam e pulavam, a
recepção não poderia ter sido melhor, pegamos nossas calças
colocamos junto á fogueira, uma panela de chá aquecia ao fogo, as
meninas resolveram que queriam cair na água, foi a senha pra que
todo mundo tirasse a roupa, jogando-as para cima e correndo em
direção a maré até cair nas espumas prateadas daquela noite de
lua, foi mágico. O sol já dava sinais que despertava, quando
95
vestidos, fomos em direção ao acampamento que ficava a poucos
metros, logo atrás das dunas.
O entendimento de que a vida não deve ser medida pela distância
e sim pelo tempo, não fazia sentido nessa fase da vida, tínhamos
disposição e muito, muito tempo, éramos jovens, bonitos,
saudáveis, sem preocupações com AIDS e coisas do tipo, só os pais
de todos nós poderiam falar do revesso da moeda, na verdade eles
muito possivelmente foram os mais atingidos, mas o mundo era o
limite e tudo mais já não era tão relevante, a idéia já havia sido
plantada e encontrava-se impregnada desde muito cedo, a
inconformidade na leitura de mundo era aparente, não era
interessante o modelo atual, mais não nos chamava atenção o
segundo modelo, na verdade sabíamos da existência de um
terceiro modelo, muito complicado de explicar e passar para o
papel, mas que funcionava.
Subimos a duna, não era muito alta, logo comecei ter a visão
completa do acampamento, havia uma casa bem montada de
palha, com os apetrechos básicos de sobrevivência, tipo, fogão de
lenha, mesa e bancos bem rústicos, mas muito fortes, um
96
compartimento fechado, onde pareciam estar hospedados alguns
casais, e parte de trás livre e aberta com a cozinha e a mesa de
jantar feita com varas e amarrada com enviras, em volta da casa
um mar de barracas de camping, outras improvisadas com lonas e
galhos, era uma visão bem diferente, era meio hippie, meio cigano
e muito místico, cada um procurava uma forma de chegar perto de
algum tipo de divindade, orações, comidas e chás exóticos, uma
erva que crescia nas dunas que chamavam “sete sangrias”, diziam
os pescadores, que o nome se dava por conta de que o chá tomado
por sete dias seguidos em jejum, purificava o sangue. Caminhamos
por entre as barracas até chegar á casa, um velho pescador, dono
da propriedade, era o único de pé, parecia recolher ou remendar
uma rede de pesca, quando nos viu, levantou cumprimentou a
todos, uns pelo nome, me disse que ficasse a vontade, e foi saindo.
Ficamos sentados no lado de fora enquanto uma das meninas
botava água no fogo para um café, aos poucos alguns iam se
levantando, alguns conhecidos, que faziam festa até acordar todo
mundo, eu me lembro de um figura meio alucinado que veio direto
no meu amigo baterista e perguntou pela “parada”, ele disse que
estava seguro escondido na duna e que depois do café iria buscar,
97
meu primo acordou, me viu, me deu um abraço rápido e se
afastou, achei estranha aquela atitude vindo de alguém que a
poucos dias planejava estar ali. A maioria já eram “figuras
carimbadas” e tinha certeza que a estadia seria muito prazerosa.
Já todos estavam despertos, muita alegria e descontração davam o
tom daquele encontro, só me intrigava o fato do primo estar
isolado sempre acompanhado de uma lourinha linda, mas que
sempre falavam baixinho, quase murmurando, seus momentos de
descontração e brincadeiras eram raros. A garota fazia parte de um
grupo que eu não conhecia onde se encontrava outra lourinha, que
pela semelhança física deveriam ser irmãs, tinham traços nórdicos
e gestos delicados, quase calculados, eu notava que tinham algum
tipo de formação diferente da maioria o que refletia em suas
posturas, no grupo também estavam um professor de inglês, outro
casal, que pareciam ser irmãos e um cara esquisitão, que mais
parecia um lutador de vale tudo. Naquele momento o “maluco”
voltou a perguntar pela “parada”, daí o amigo resolveu levá-lo até
o ponto em que tinha guardado a lata, imediatamente uns quatro
ou cinco levantaram-se se mostrando altamente “solidários” a
98
enfrentar a caminhada e lá se foram em direção a praia, enquanto
isso fiquei conhecendo uns “malucos” mais velhos, que já
moravam ali a bastante tempo e surpreendentemente um deles, o
baiano, dividia a cama com uma amiga de muitas histórias, era
tudo o que eu queria, agora sim estava me sentindo bem em casa,
através dela fui apresentado aos outros mais antigos, tinha um
mineiro que também estava junto com outra amiga nossa e o meu
amigo maranhense “pretinho”que já havia me dado uma força em
São Luiz e que de certa forma era o responsável por despertar meu
interesse em conhecer aquele lugar. Contei mais ou menos umas
vinte e cinco pessoas, dos quais eu conhecia a maioria, perguntei a
alguém sobre o estranho comportamento do primo, o que me
responderam que se devia ao fato de que ele estaria envolvido a
uma seita oriental e que o mal-estar verifica-se justamente no fato
dele tentar implantar entre os demais seus novos hábitos
comportamentais e alimentares que passavam por horários para
orações seguindo todo um ritual para que os alimentos
vegetarianos fossem servidos, isso inclusive, serviu de estopim
para uma discussão culminando com agressão física por um dos
rapazes do grupo deles, provocando um racha mais significativo
99
entre eles. A alimentação era farta, alguns não estavam dispostos a
abrir mão de seus comodismos da cidade e traziam coisas não tão
básicas para aquela época como, xampus, cremes, leite
condensado, biscoitos, etc. isso também era motivo pra que
pequenos grupos se formassem gerando alguns atritos ideológicos,
mas tudo era superado no decorrer do dia, já que havia tarefa pra
todo mundo, uns cozinhavam, outros iam às compras, colhiam
frutos, ajudavam a despescar os currais, buscavam água na
cacimba, coletavam e cortavam a lenha para o fogão e pra fogueira
que religiosamente era acesa na praia toda noite, mas também
cantavam e tocavam violão sem parar além de tomar banho na
lagoa de água doce que havia atrás das dunas maiores, alias a
lagoa da “princesa” como era chamada por guardar segredos e
especulações infinitas era um capítulo a parte. Subíamos a duna
mais alta de todas, tinha que ser desta forma para que
pudéssemos valorizar o encanto que se desdobrava aos nossos
olhos, do alto da duna a visão era de uma lagoa negra com grande
volume de água doce encravada ali no meio daquela aridez, muito
limpa e gelada, onde se podia ficar o dia todo se deliciando em
suas águas e descansando em pequenas “tocas” tipo cabaninha de
100
baixo dos arbustos de ajirú (fruta típica da região), era tudo que
alguém podia sonhar, enquanto o mundo borbulhava efervescendo
nas praças e vias urbanas, nós estávamos literalmente a alguns
passos do paraíso. À lagoa era atribuído todo bem estar e energia
magnética que rodeava aquele lugar, contos diversos sobre
presença de entidades encantadas e protetoras faziam parte do dia
a dia dos nativos e pescadores, naturalmente, a ela eram prestadas
reverências, não fazíamos barulho excessivo, nem era permitida a
pesca, na verdade as curiosidades são tantas e tão impressionantes
que dado a fartura do material poderíamos escrever outro livro
sobre ela.
Já se fazia fim de tarde tipo quatro horas quando me reuni a um
grupo e fomos organizar a fogueira, de repente alguém se lembrou
do grupo que saiu de manhã junto com meu amigo baterista em
direção a praia, poderia ter acontecido alguma coisa já que eles
nem voltaram para o almoço, resolvemos ir ao encontro deles, eu
me lembrava mais ou menos onde ele tinha escondido a latinha,
então os conduzi. Depois de andarmos uns vinte minutos, tivemos
uma visão muito engraçada, meu amigo e o grupo que o
101
acompanhara estava sujo de areia da cabeça aos pés, de olhos
arregalados e uma fisionomia de quem acabara de fugir de um
campo de concentração, as dunas em volta e as outras mais
distantes, pareciam que haviam sido bombardeadas, havia buracos
de todos os tamanhos e profundidades, um deles estava todo
enfiado num buraco esbravejando, as palavras eram
desnecessárias pra imaginar o que teria acontecido, o “doido”
perdeu o rumo de onde enterrara a lata e a cara de fissura das
figuras era algo pra nunca mais esquecer, sabe, pareciam aquelas
pessoas presas num porão por anos e que de repente conseguiram
sair, mas morrendo de fome caçavam uma migalha qualquer numa
loja de ferragens. Esse fato tornou-se folclórico e o amigo nunca foi
perdoado por isso.
O cenário de fim de tarde daquele lugar era algo indescritível, de
olhos fixos no horizonte esperávamos o momento que o sol
gigante tocaria o mar, o firmamento exibia uma caprichosa
aquarela dourada onde nós permanecíamos calados, não havia
nada a ser dito ante aquele estarrecedor espetáculo da natureza,
apenas contemplávamos e registrávamos mentalmente aqueles
102
momentos, éramos testemunhas oculares de uma das mais belas
manifestações do poder do universo.
A fogueira estava pronta pra ser acesa, aos poucos os amigos iam
chegando, alguns traziam alguma comida, peixe para assar,
chazinho de sete sangrias, cobertores e o inseparável violão, assim
as noites transcorriam como um sonho. Aos poucos íamos nos
conhecendo de verdade, haviam amigos antigos, amigos recentes,
irmãos, nativos e pescadores, uma harmonia que só era quebrada
quando o idealismo radical de alguns contestadores e seus
discursos inflamados interrompiam ou interferiam no andamento
natural da coisas, mas nada que não se pudesse controlar ou que
no dia seguinte já não tivesse importância alguma, os casais se
formavam e se separavam, entre nós estavam as figuras mais
diversas, tínhamos os que “curtiam” rock pesado, os progressistas,
os sem noção musical, os universitários fugidos e como em toda
boa republica, os “loucos de pedra” e os “loucos de cara”, os
veteranos e os marinheiros de primeira, uma maluca que invadia
nossas barracas durante a noite, sem nem querer saber quem
estava lá, ela só queria uma boa transa e no dia seguinte agia como
103
se nada tivesse acontecido, evitava falar no assunto, até que a
noite voltasse e então ela se transfigurava, o sereno parecia
exercer um fascínio sobre ela, poderia ser a lua, sei lá, o fato é que
a mulher virava uma predadora e acho que a metade dos homens
do acampamento foram suas vítimas, tínhamos uma química boa,
ela era muito louca e eu sem juízo, então era perfeito, devo admitir
que ela sabia o que estava fazendo. Mas nem tudo era desfrute, ali
mesmo, em meio essa avalanche de fatos novos e relacionamentos
confusos, conheci uma linda garota, era a mais suave criatura que
até então já havia conhecido, passávamos horas conversando,
filosofando, conspirando a favor dos cosmos e coisas do tipo,
desenvolvemos um relacionamento baseado em um sentimento
mútuo e reciprocamente platônico, precisávamos estar juntos,
sentíamos falta um do outro, trocávamos beijinhos inocentes, sem
apelo sexual, parecíamos duas crianças descobrindo um
sentimento novo, no acampamento também estavam duas de suas
irmãs, uma delas assumia uma postura de mãezona, era
carismática, muito ligada nos acontecimentos, cuidava da boa
alimentação, era meio que protetora, a outra, mais velha, já
assumia uma postura mais independente, namorava um vocalista
104
de uma banda de rock, esse relacionamento gerou o primeiro fruto
daquela geração e uma linda bebezinha que como não poderia
deixar de ser, chamou-se Brisa, materializando para sempre aquele
momento. Tornou-se real.
Aquela garota de inocência explicita e quase sedutora, exercia
sobre mim um fascínio como se uma rosa serenada e intocada me
fosse oferecida, mas eu, profano demais, não me sentia a vontade
para tocá-la, então me atinha a rodeios filosóficos que fizessem
com que aqueles momentos se prolongassem sem que o encanto
fosse quebrado, sem que a aspereza das minhas memórias se
revelasse e sobressaísse ao que me parecia uma música
incoerente, mas que ao mesmo tempo dava outro sentido à
palavra relacionamento. Varávamos a noite deliciando-nos com
verbos tão pouco conjugados, riamos de nós mesmos,
esquecíamos de comer e dormir, tudo isso em troca de uma
companhia revigorante e beijinhos assexuados. Ela devia ter 17, eu
acho, mas falava com docilidade e segurança de uma veterana,
muita coisa em comum nos ligava, o Hair, a Janis, a natureza em si
e outros milhares de pequenos pontos que poderiam mais tarde se
105
transformar em um grande amor ou numa eterna amizade. Essas
coisas, no meio daquela avalanche de acontecimentos e calmaria
passavam despercebidas por alguns e até se dissipavam
rapidamente perdendo seu teor mais abrasivo que com a
convivência, ao contrário do que se pensava, não se fortalecia
transformando sentimentos antes avassaladores em relações mal
resolvidas e cumplicidades platônicas que adormeciam ao longo
daquele convívio, mas que latentes poderiam ressurgir em
qualquer esquina da vida, pelo menos essa era a impressão que
ficava.
106
(+) Essa garota viria a falecer anos depois no parto de sua filha,
que sobreviveu, fato que fez com que velhos amigos se
reencontrassem, após muitos anos.
107
Não contávamos com uma liderança definida, era algo como cada
um faz o que bem entender, contanto que não infringissem as
regras básicas de convivência e não depredassem ou conspirassem
contra a natureza, no mais era proibido proibir e todos iam se
adaptando ou se mandando conforme sua vontade, na verdade
não existia uma razão específica ou generalizada pra estarmos ali,
quando falávamos entre nós sobre o assunto as divergências se
faziam aparentes, era mais ou menos como ao sabor do vento ou
pra onde a “maré me levar”, idealismo mesmo, quase nada, a
maioria só queria mesmo um lugar tranqüilo pra escutar seu som e
fumar seu baseado. Essa falta de interesse pela vida ou pelo porvir
me deixava inquieto, eu não conseguia tratar de assuntos mais
relevante sem que alguém viesse com uma “gracinha” ou um
discurso inflamado onde só as velhas teorias batidas eram motivos
pra subirem a um “palanque”, faziam e diziam coisas que para mim
era “balela” de quem tentava demonstrar um pseudo
conhecimento do mundo e sua engrenagem, mas que na verdade
nunca se libertara das amarras da “burguesia”, tampouco deram a
cara pro mundo bater se limitando ao mundinho urbano que os
protegia.
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A religiosidade ganhava conotação superlativa, o fanatismo entre
alguns era o que mais me incomodava, eles bradavam frases de
efeito dando suas próprias interpretações ou repetindo
interpretações tendenciosas de outros, fazendo com que eu me
preocupasse com os que ouviam e não tinham um preparo legal
para divisar entre seus pontos de vista e aquelas informações
destorcidas, principalmente no que dizia respeito ao
posicionamento daquelas pessoas com relação às leis que regem o
universo e sua aplicação. Lembrava de que naquele momento
mundo afora, verdadeiras facções digladiavam-se apoiadas em
fundamentos torpes e em argumentos pueris quanto ao
entendimento e posterior aplicação dessas leis naturais.
Quando analisava esta questão com maior abrangência,
desarmado e de coração aberto, verificava o quanto são inúteis e
sem sentido os argumentos das “Igrejas” no sentido de assegurar
seu contingente de adeptos induzindo-os a entender de forma
equivocada as leis, baseando-se em suas interpretações pessoais
ou empresariais de acordo com o determinismo e interesse dos
grupos, preterindo desta forma o todo.
109
As leis divinas ou naturais são ecumênicas de fácil entendimento,
de simples aplicação, viáveis para qualquer ser humano incluindo o
silvícola quem nunca teve acesso às escrituras “sagradas”, não
prescindindo assim de alfabetização ou imposições doutrinárias
para que pudesse vivê-las em seu dia a dia, sua plenitude.
As interpretações dúbias são as grandes geradoras de conceitos
pré-concebidos, contribuindo sobremaneira com o radicalismo e o
infortúnio dos atos impensados, gerando atitudes exageradas,
proliferando o desentendimento e irradiando energia negativa na
atmosfera. Essa atitude, algumas vezes impensada, mais na
maioria proposital, torna-se a ponta de uma corrente longa,
expansiva e duradoura que tem seu objetivo final contemplado
com a discórdia, o conflito, o desamor, o egoísmo e o isolamento,
levando o adepto a um estado de consciência profundamente
desarmonizado, gerando problemas psíquicos imensuráveis.
Não existe verdade absoluta neste mundo em que vivemos, do
contrário seriamos conhecedores de todos os desígnios, logo, não
precisaríamos estar aqui, a sua verdade hoje, pode não passar de
lembrança amanhã, porém seus atos e palavras solidificam em
110
quem te segue, mesmo que você desdiga tudo o que afirmou,
sempre alguém não estará lá para ouvir, tornando-se assim mais
um elo da corrente.
Questões menores devem ser abrandadas, arestas devem ser
aparadas, para que possamos conviver com as diferentes
convicções, isso nada mais é do que um conceito de tolerância,
onde o que se entende como intocável e sagrado não
necessariamente significa lei universal, podendo ter um peso
neutro para o outro indivíduo, sem que ele seja exatamente um
malfeitor, um herege ou demônio.
Se a massa humana que tanto tempo desperdiça com estudos
aprofundados em matérias as quais ainda não está preparada para
entender, desviasse seus esforços para o bem comum, não
teríamos que assistir nosso povo em confrontos mortais, onde o
simples motivo é a forma de aplicação de uma lei que todos
conhecem.
As próprias interpretações equivocadas criaram as religiões base
que já se fracionaram em outras que deram origem a outras e que
111
darão a outras e assim para sempre. Os cristãos são hoje um
amontoado de seguimentos, de onde os católicos são uma
dissidência que geraram os protestantes que geraram um sem
números de novas ordens e que gerarão outras mais, contribuindo
para que a desordem aumente e criem-se maiores obstáculos ao
entendimento real.
Não havia mais argumentação racional pra entrar nesse tipo de
discussão com figuras tão radicais e com verdades tão variadas se a
única verdade que hoje neste mundo temos condições de saber, é
que não sabemos de nada. Enfim eu não podia ou não devia me
aprofundar nesse tipo de confronto que não levaria a lugar
nenhum, havia outros encantos e recantos a serem explorados.
Em uma de minhas incursões pelo coração da ilha encontrei uma
velha torre de comunicação longa e fina, era o ponto mais alto da
orla, a escalada era perigosa, o vento forte fazia com que ela
balançasse muito, eu morria de medo de altura, mas não me
contive a vontade de subir e lá fui eu, sem olhar pra baixo, degrau
por degrau cheguei até o seu cume, me deparei com um farol que
acendia e apagava mesmo durante o dia, lá de cima a visão era
112
muito louca, parecia voar e até por instantes esquecia o perigo da
altura, as dunas pareciam montes de açúcar ao vento ou uma
maresia estranha com elementos nunca navegados, o mar era algo
indescritível, tão gigantesco, só não diria que era infinito, por que
beijava o céu em algum ponto muito distante, era pura poesia,
uma viagem sem precedentes, aquele som do Kansas no meu
ouvido se confundia com o zumbido do vento que com uma força
anormal, às vezes deixava a visão embaçada, aliás, a visão era
tudo, as gaivotas aos montes bamboleavam em volta do sol
avermelhado, divertiam-se em rasantes ousados, as ondas da
preamar se engrandeciam como mãos gigantes coletando detritos
espalhados na enseada, “hold on” dava a trilha para aquele
momento no velho walk man emprestado de um amigo, quando a
torre balançava, eu aterrissava de novo em meu pânico de altura,
sentindo a tarde se esvair, de alguma forma precisava descer
embora com frio que corria pela coluna e muita insegurança
cheguei a baixo, mas as imagens daquele dia nunca mais saíram da
minha memória.
113
Depois que desci, encontrei meu amigo Motohead, dividimos os
fones a saímos pela praia, onde o vento rasteiro produzia uma
cortina de areia fina muito densa que fazia com que não
enxergássemos nossas pernas, era uma “onda” muito legal,
quando nos sentávamos de costas para o vento desaparecíamos
em meio aquele “nevoeiro”, brincávamos como crianças e nada
parecia ser mais importante do que aquela interação, assim,
caminhamos até chegar a casa.
Era sempre assim, dia após dia a rotina gratificante da mudança
em um lugar onde a natureza se encarregava de renovar a
paisagem que nunca acordava do jeito que dormia. Logo ali
pertinho, depois das dunas mais altas estava a lagoa, um lugar
encantado, onde nos reuníamos e sem nenhuma cerimônia,
meninos e meninas largavam suas roupas pelo caminho e
atiravam-se naquelas águas geladas e escuras como vieram ao
mundo, nada era mais natural, brincávamos aos grupos sem
nenhuma manifestação de desconforto ou falsos pudores, só quem
viveu poderia descrever cenas como de alguém totalmente sem
roupas tocando violão, cercado de uma platéia mista também sem
114
roupas sentado a beira de um lugar daqueles, tendo o sol por
testemunha.
Passaram-se alguns meses, e como a inquietude é algo inerente ao
homem, o tempo fez com que alguns começassem a sentir
necessidade de voltar ao mundo real, por vários motivos, uns
precisavam retomar seus estudos, outros seus trabalhos e outros
simplesmente não suportaram o fato de terem que “batalhar” sem
que alguém os servisse, esse na verdade, era o maior dos
aprendizados, não depender da cidade ou de terceiros para
sobreviver, aprender pescar e cozinhar era uma matéria nova
daquela “faculdade” que éramos obrigados a passar com méritos
ou então deveríamos desistir e reconhecer nossa condição de
“produto irremediavelmente urbano”, a maioria se rendeu e
debandou. No final, já éramos pouco mais de dez teimosos
idealistas que insistiam em não abandonar o barco que a muito já
fazia água.
Entre os que ficaram me lembro bem do primo, das “holandesas” e
de um professor de inglês, doce e amável, meio perdidão e que
adorava tocar Beattles no violão, parecia muito apaixonado por
115
uma das lourinhas, que por sua vez era perseguida por um cara
que nada tinha haver com nada daquilo ali, mas que insistia em
ficar às voltas, fiscalizando e dando pitacos infelizes, ele era o
típico boyzinho da cidade, com o corpo bem malhado e vestes
apertadinhas, mas que ela temia e se entregava submissa. O amigo
professor, falava em tomar aquela garota pra si, mas esbarrava na
condição de submissão dela e no tamanho do sujeito, assim sendo,
um triangulo improvável se formou, já que enquanto ele dormia os
amantes se encontravam nas cabaninhas de ajirú em meio às
dunas. O primo permanecia compenetrado em seu mais novo
personagem sempre seguido da outra irmã, os ritos estavam
tolerados e a alimentação de vez em quando também, a harmonia
era mantida, embora aparente. Depois que a maioria já se
mandara a normalidade na vida daqueles nativos começava voltar,
certamente pra eles aquele choque de informações era muito
grande, muito provavelmente não conseguiriam nem lembrar os
nomes daqueles “invasores”, mas certamente pensariam duas
vezes quando pretendessem sair de lá, afinal, tiveram uma
pequena amostra dos conflitos que os esperavam fora de seu
mundo encantado, porém, a reciprocidade nos era muito mais
116
valiosa, deixamos muitas mazelas da cidade pra que eles
entendessem e digerissem, algumas importantes para que eles
pudessem repensar sua ingenuidade já violada, em troca
levaríamos na bagagem uma gama muito valiosa de exemplos de
companheirismo, hospitalidade, humildade e sentimentos puros
que não eram predominantes em nossos corações.
Seu Lúcio o “Pé-de-Bola”, pescador das antigas, um dos velhos
moradores da ilha, irmão ou primo do dono do barraco onde
estávamos instalados, era o primeiro a acordar, batia em nossa
barraca e nos rebocava bem cedinho para irmos à praia despescar
os currais. Os currais eram pequenos cercados que prendiam os
peixes na maré alta, facilitando sua captura quando a maré
baixava, era um trabalho árduo e cansativo, mas um grande
barato, pegávamos os peixes vivos e colocávamos em um cesto de
vime que ficava bem pesado, depois íamos até a areia onde ele
retirava os maiores e vendáveis para depois liberar o resto para o
consumo. Logo em nossas primeiras incursões aos currais, sem
nenhuma prática, contávamos com sua inesgotável paciência,
perdíamos alguns peixes, mas sempre demonstrávamos boa
117
vontade em aprender, tanto que depois já sabíamos o “caminho
das pedras” e o ofício fora dominado com maestria, chegamos ao
ponto de um dia, quando seu Lúcio adoeceu, irmos sozinhos e
darmos conta do recado. Em outras ocasiões ele nos acordava no
meio da noite, e dependendo de nosso estado etílico, nós o
acompanhávamos na pesca de arrasto que basicamente consistia
em segurar a rede em duas extremidades e arrastá-la durante
algum tempo até que se sentisse dificuldade em fazê-lo por causa
do peso, daí puxava-se em direção a areia para despescá-la, Seu
Lúcio, apesar de seu defeito físico, era um exímio nadador e
sempre ia do lado mais profundo da rede, depois na praia, era só
festa com aquele monte de peixinhos saltando e o sol dando boas
vindas a mais um dia que nos brindava ao nascer radiante.
118
A Volta
As atividades foram escasseando à medida que o grupo ia se
desfazendo, a despeito da chegada de alguns novos “moradores”,
muito empolgados que chegaram até nós por causa do “ouvi
dizer”. As lendas sobre aquele lugar e sua população de renegados
ultrapassaram os limites por nós imaginados, havia muita magia e
folclore nos relatos dos que partiram. Os novatos esperavam
encontrar ali algo que já não existia mais, fato que logo foi
percebido por eles, mas como tinham toda a motivação de quem
119
acabara de aportar no paraíso, tentariam recomeçar da sua
maneira, só que para nós o encanto estava desfeito e só nos
restava arrumar as mochilas e deixar que o sonho fosse vivido por
outros sonhadores.
Ainda permanecemos mais uma semana ou duas, convivendo com
alguns novatos, esse período de transição foi importante porque
conseguimos passar um pouco da filosofia do lugar com relação à
manutenção e o modo de conviver com os nativos sem ofendê-los,
além de passar algumas tarefas básicas diárias que precisavam ser
cumpridas, fiquei sabendo que dentre essas pessoas que ficaram,
ocorreram duas mortes, uma foi do meu amigo maranhense
pretinho, que foi assassinado em uma das vindas a Belém por
vândalos, por ironia em frente ao teatro da “Paz” e o outro, um
dos amigos novos que chegou quando já saíamos que pulou do
barco em movimento sem motivo aparente e desapareceu nas
águas.
Resolvi que iria embora, arrumei minha mochila e já me
encaminhava para o porto quando o amigo professor de inglês de
mãos dadas com sua lourinha e mochila nas costas disseram que
120
também iam, mas que fariam ainda um longo caminho por
Fortalezinha até Mocoóca, já que não queriam cruzar com o
desafeto malhadão que teria ido à vila, na verdade era fuga, mas
uma fuga romântica que eu tinha que testemunhar, então,
deixamos o primo, a outra lourinha e mais uns quatro para trás e
saímos os três para o outro lado da ilha em uma caminhada que
duraria pelo menos mais um dia.
Aquele gosto de frustração e melancolia novamente me envolvia,
eu pensava comigo mesmo até quando tentaria achar meu el
dourado? Será que esse lugar existia? E o sucesso, seria melhor?
Será que estaria em voltar e me submeter ao sistema? Pensava nos
amigos que foram embora por causa de seus compromissos
inadiáveis, iriam ser pessoas “normais” e certamente mais tarde
usufruiriam de sua escolha, mas alguns seriam escolhidos e de
alguma forma violentados em seus desejos e anseios.
Se imaginarmos que a felicidade é semelhante a uma ilha
fantástica de prazeres constantes e paz permanente, um lugar
onde não há preocupação, nem a dor, no qual os sorrisos brilham
nos lábios, e a beleza envolve de festa as criaturas. Essa felicidade
121
feita de fantasias parecia ser a nossa busca. Planejamos a vida,
objetivando encontrar esse reino encantado, onde, por fim,
descansássemos da rotina, da aflição e desfrutássemos da
harmonia desse espaço. Passaram-se os anos, e somamos
frustrações, amontoamos desencantos, sem a esperada conquista.
Lentamente, nos entregávamos ao desânimo, e sentíamos que
estávamos discriminados no mundo, quando em fim assistimos as
propagandas apresentadas pela mídia, nas quais desfilavam os
jovens, belos e “sarados”, desperdiçando saúde, robustez, corpos
venusianos e apolíneos, usando bebidas e grifes famosas,
brincando em iates de luxo, ou exibindo-se no esporte da moda,
invejáveis, triunfantes... Acreditávamos imediatamente que isso
seria a felicidade e que eles seriam felizes. Não tínhamos idéia do
quanto custaria, em sacrifício e dor, alcançar o topo da fama e que
é ainda pior tentar permanecer lá. Sob quase todos aqueles
sorrisos, que são estudados, estão à face do medo, as marcas da
exploração até o arrependimento, alguns envenenariam a alma pra
chegarem aonde pretendem, antes de serem conhecidos e
disputados, muitos se entregariam a drogas, que lhes consumiriam
a juventude, igual ocorreu com as multidões de outros, que os
122
antecederam e desapareceram. Esquecidos e enfermos, aqueles
que foram pessoas-objeto, amargariam hoje sua condição de
miséria que lhes acolheu ou foram atirados lá.
E a tal felicidade? Ah! Essa, porém, é conquista íntima.
Todos os que se encontram nesse jogo, nascidos em berços de ouro
ou de palha, homenageados ou desprezados, belos ou feios, são
feitos do mesmo “barro” frágil da carne, e experimentam, de uma
ou de outra forma, os vícios, decepções, doenças e desconforto.
Ninguém, nesse mundo, vive em regime especial. O que parece
viver, não excede a imagem, é ilusão. Se desejarmos ser felizes,
devemos viver cada momento de forma integral, reunindo as cotas
de alegria, de esperança, de sonho, de talento, num painel pleno,
as ocorrências de dor servem de experiências para as de saúde e de
paz. A felicidade não se resume a coisas: é um estado interno, uma
emoção, devemos dar vivas aos acidentes de percurso, que
denominamos como percalços, devemos seguir na direção das
metas, e veremos quantas concessões de felicidade pela frente, nos
aguardam.
123
Quando chegarmos ao topo do monte, relaxaremos e
constataremos que o grande barato foi o sucesso da escalada,
pisamos pedregulhos que feriram nossos pés, mas também flores
miúdas e relva, que teimaram em nascer ali colocando beleza no
chão e descobrimos que, para que possamos ser felizes, basta
saber identificar, nas coisas e no sucesso da marcha, o enigma
contido na necessidade de evoluir.
No meio da jornada, calados, famintos e cansados, avistamos uma
pequena vila ladeada por um barranco muito alto e uma enseada
cativante, era Fortalezinha, um lugarejo com pouquíssimas pessoas
onde teríamos que achar um lugar para dormir, era um momento
de reflexão, na mente pouca praticidade e muita filosofia.
Nosso imediatismo cada vez mais presente em cada ato, em cada
gesto, deixa evidente nossa ansiedade em chegar a algum lugar
que na verdade não sabíamos qual é, o caminho que tomávamos
todos os dias acabavam sempre no mesmo ponto, por mais que
tomássemos outro rumo, usássemos atalhos, no máximo
conseguíamos chegar mais rápido ao velho ponto de partida.
124
O Barco nós não poderíamos perder, mas as bagagens nem sempre
eram tão importantes, podíamos deixar algumas contas pra
acertar depois, mas a vida não podia esperar, ela tinha que ser
vivida. Será que fizemos a escolha certa ao dobrar a esquerda, ou
era na direita que estava o que procurávamos? Mas o que era
mesmo que procurávamos? Já não lembrávamos mais, portanto
podíamos até encontrar deste outro lado mesmo.
A verdade é que caminhamos, caminhamos sem saber aonde ir
com a exata impressão que tínhamos de chegar, que coisa mais
confusa, precisávamos nos dar um tempo para refletir sobre a
importância de caminhar, talvez tivéssemos que desacelerar e
provavelmente aportar, para então respirar e aí observar que a
paisagem que passa correndo, é tão mais bela quando
contemplada, que as pessoas apressadas que cruzaram nosso
caminho e se foram, tinham uma história pra contar e muito a
ensinar, só precisavam de um espectador atento para que
pudessem se expressar e sentirem-se ouvidas.
Nesse momento entendíamos que podíamos nos lambuzar na terra
e aproveitar a criança que não fomos e que hoje se reeditava nas
125
crianças que encontramos, também entendíamos que as
oportunidades que se apresentavam não deveriam ser ignoradas,
eram efêmeras e levavam apenas a fração do tempo que se
extinguia, que o papel depois de amassado nunca mais seria o
mesmo, as marcas permaneceriam por mais que se tentasse
consertar. Sabíamos que teríamos de pedir desculpas por atos que
praticamos e por ações que nos omitimos, pois só assim
desfrutaríamos da vantagem de pedir perdão e descobriríamos
onde estavam os erros enfim e embora continuássemos sem saber
para onde caminhávamos, teríamos a absoluta certeza sobre o
lugar aonde não gostaríamos de ir.
Depois de alguns contatos, conhecemos um maluco que parecia
mais um ermitão, cabelos enormes e colados em tabletes com
evidente aversão a banho, mas que nos acolheu e até nos ofereceu
uma caldeirada de arraia que podia não ser da maior assepsia, mas
estava uma delícia, tivemos uma noite estranha, é que o amigo
ermitão declamava poemas o tempo todo e tocava o violão ao
contrário, não conseguíamos dormir com aquela figura
zumbizando pela casa até a hora que o cansaço nos dominou e
126
enfim repousamos por algumas horas. Aquele curto espaço de
tempo foi suficiente para acordarmos com o sol entrando pela
janela e verificarmos nossos pertences espalhados pela casa,
descrevendo um caminho até lá fora. Havíamos sido roubados, o
maluco desapareceu com o violão e algumas peças de roupa, o
resto ele se encarregou de espalhar pela praia. Saímos ao seu
encalço, não era difícil segui-lo, as marcas de suas pegadas
desordenadas estavam impressas na areia batida, ele se dirigia
para Mocoóca, justamente o nosso caminho, juntamos tudo e
partimos. Depois de algum tempo de caminhada encontramos
outra figura estranhíssima, que nos gritou de cima de um coqueiro
oferecendo água de coco verde, minha amiga lourinha aceitou, ele
desceu do coqueiro como uma agilidade impressionante e em
segundos estava ajoelhado aos seus pés oferecendo-lhe galante,
um côco já aberto, o gesto e as palavras não combinava com a
aparência do sujeito, ele tinha o aspecto de um “Jeca tatu”, um
Mazzaropi da praia. Ainda se refazendo do susto ela, linda,
agradeceu a gentileza, ele parecia embriagado por sua beleza, nos
ignorou totalmente e disse que ela poderia pedir o que quisesse
que ele traria, ela, já em tom de brincadeira disse que gostaria de
127
reaver seu violão que havia desaparecido, ele enfiou a mão em um
saco de sarrapilha e puxou um par de sandálias femininas dizendo
que um maluco com um violão as trocara por um baseado e que
não devia estar longe, mas que se ela quisesse ele traria pra ela a
“viola” de volta, ela agradeceu e saímos apressadamente atrás do
ermitão. Pouco mais de um quilometro dali, avistamos o “doido”
jogado na beira de um canal, parecia dormir com um chapéu de
palha enfiado no rosto, ao seu lado uma garrafa de aguardente e o
violão quase dentro d’agua, não tivemos trabalho algum, apenas
juntamos o violão e seguimos em frente.
Quando chegamos a Mocoóca, já era de tardinha o sol se exibia
exuberante, dourando as pequenas embarcações a remo que
faziam a travessia de pouco mais de dez minutos, chegamos à
outra margem e pronto, já estávamos de volta a “civilização”, não
tínhamos dinheiro, mas nos acompanhava um violão e uma garota
linda de cabelos louros que se destacava aonde chegávamos, logo,
se aproximou um “figura” de bigodão, parecia o Billy de “Easy
Rider”, convidando a todos nós para comer e beber cerveja, ele era
cabeludo, branco e bem forte, aparentava uns quarenta anos,
128
estava acompanhado de uma mulher madura, tipo, 38, talvez, mas
muito bonita de pele bem tratada, cabelos louros que não
pareciam naturais e sotaque diferente, logo nos entrosamos, foi
muito legal, o cara tinha uma caminhonete, tipo pick-up, pagou
comida e muita cerveja, dizia que precisava ver gente jovem e
descolada, se dizia um amante voraz e notadamente tentava
conduzir a conversa para uma noitada grupal, o que a mulher que
o acompanhava era também entusiasta, nossa amiga, talvez por
ingenuidade, não percebia as segundas intenções do casal e o
amigo professor, já caia pelas tabelas jogado no fundo do boteco
agarrado ao seu violão, depois das apresentações mais
aprofundadas, a mina do cara chamava Lena, ele dizia que eram
casados, mas notadamente não era um casamento convencional,
tanto que em dado momento ela, mas velha que eu, tomou a
iniciativa e me segurando pela mão, deixou o Billy só com minha
amiga na mesa, saiu me arrastando em direção a praia, eu pouco
podia fazer, afinal, a Lena era uma gatona e me atraia muito
aquelas coxas grossas e bem torneadas, além do que, minha amiga
não parecia oferecer resistência em ficar com o Billy.
129
Saímos em direção à arrebentação, eram mais ou menos umas
cinco da tarde, sem muita conversa ou sem conversa nenhuma,
nos envolvemos com uma fúria de náufragos, a mulher era muito
louca e inconseqüente, soltava gemidos alucinados sem se
importar com o que eventualmente alguém pudesse pensar, as
pedras viraram colchões tão confortáveis que os hematomas
passaram despercebidos, eu curti muito aquela maluca, embora
me preocupasse com o que o maridão estaria pensando, depois
entramos na água e continuamos o que começamos nas pedras, foi
ótimo. Passadas algumas horas, nos “tocamos” que tínhamos de
voltar e meu sensor de “aranha” me dizia que podíamos ter
problemas, mas como eu não era o “Aranha”, estava enganado, o
Billy, já com o violão na mão cantava e gargalhava, parecendo
muito feliz, o professor continuava “bodado” e essa história ficou
assim, ninguém nunca perguntou o que aconteceu, só sei que
minha amiga guardava com muito cuidado o endereço de um
apartamento em Nazaré, onde moravam o Billy e a Lena. A noite
caiu, festejamos até muito tarde e não me lembro onde dormimos.
130
No dia seguinte, embora com dores na coluna e os joelhos
esfolados, estava refeito e pronto para seguir, Billy já estava em
uma mesa tomando um café, me chamou, ofereceu um caneca e
disse que voltaria para Belém naquele momento e que se
quiséssemos nos daria uma carona, imediatamente chamei os dois
e aceitamos a carona, porém ainda não queríamos ir pra casa,
decidimos então que pararíamos em outro lugar qualquer para
aproveitar um pouco mais aqueles momentos finais, lembrei de
alguns parentes em uma cidade do interior, sugeri que fossemos
até lá, os amigos aceitaram e assim foi.
Antes de sairmos Billy disse que daria uma festa em seu
apartamento, para comemorar o seu aniversário e que se nós
estivéssemos em Belém, estaríamos convidados, ainda ficamos
conversando um pouco, Lena permanecia em sua postura de
mulher casada, mal me dirigia à palavra, parecia que nada tinha
acontecido entre nós, então entramos na caminhonete e partimos.
A cidade de Igarapé-açu era o nosso destino não ficava distante
dali e o amigo teria de passar por dentro dela para chegar à Belém.
131
Chegamos à cidade, nos despedimos dos amigos, Billy distribuiu
sorrisos, Lena me entregou um papel com seu telefone, apertou
minha mão e se foram.
Dirigimo-nos a uma velha casa que ficava às margens da estrada no
centro da cidade, era a casa que pertencera aos meus avós
maternos e onde eu praticamente fui criado correndo por aqueles
quintais. A casa, muito grande, já não tinha mais aquele charme e
imponência, típica das famílias tradicionais da região, não sabia
quem estava morando no local, mas mesmo assim batemos à porta
de entrada, uma garota muito bonita, tipo 17 anos, vestidinho de
florzinhas, típica moradora do interior, mas muito vivaz e
comunicativa, olhou para nós, dois cabeludos viajados com
aparência de ressaca e mochila às costas e uma lourinha que mais
parecia uma figura recortada de contos da caronchina, com alguma
surpresa, mas sem susto se dirigiu até a porta, não esperando que
falássemos nada foi logo dizendo que o Paulo não se encontrava,
mas que podíamos esperar se quiséssemos, eu, perguntei quem
era o Paulo e ela perguntou se não era com ele que queríamos
falar, eu expliquei a situação, contei um pouco de mim, falei sobre
132
minha mãe, meus avós e sobre aquela casa, ela pulou no meu
pescoço e num abraço apertado se apresentou como minha prima,
dizendo que já havia ouvido muito falar sobre seus primos hippies
e que sempre quis nos conhecer, muito empolgada disse que
poderíamos nos acomodar até que o Paulo chegasse e resolvesse
aonde ficaríamos. Logo já nos sentíamos em casa, ela nos conduziu
pelo longo corredor que tantas vezes eu corri quando criança, nos
levou até a cozinha onde o tempo não alterou nem os móveis, a
mesa de refeições ainda estava lá, enorme, de madeira rústica,
tipo “santa ceia”, nos trouxe toalhas bem branquinhas com cheiro
de naftalina, e suco de maracujá, no fogão havia algo cozinhando
com um cheiro muito bom.
Passado o impacto inicial, voltei a perguntar quem era o Paulo, ela
respondeu que também éramos primos, que ele morava sozinho
naquela casa e que ela só estava ali dando uma força. Na real a
garota era filha de uma prima de minha mãe e o Paulo era seu tio,
portanto meu primo em segundo grau, ela morava com o resto da
família em uma casa em frente, mas sempre ia até lá fazer limpeza
na casa e cozinhar. O papo estava muito bom, meu amigo estava
133
no banho quando chegou meu primo Paulo, quando eu o vi logo
me lembrei dele, usava um turbante branco e muitos patuás no
pescoço, veio logo em minha direção, lembrava meu nome e
pareceu ficar bem feliz com nossa chegada, apresentei-lhe minha
amiga, ele pegou a mão dela e começou a interpretar seus traços,
falar de sua vida e seus anseios, ela puxou a mão impressionada
confirmando o que ele dizia, logo depois, meu amigo saiu do
banheiro só de toalha, meu primo disse que aquele sim era um
colírio para os seus olhos, muitos risos se seguiram, Paulo parecia
estar encantado pelo amigo professor, pediu pra minha priminha
preparar um dos quartos onde ficaríamos hospedados, ele estava
bem agitado com alguns preparativos para algo que aconteceria a
noite, nós não entendíamos muito bem aquele entre e sai de
pessoas deixando mantimentos, ele parecia ser algum tipo de guru,
bruxo ou um pai de santo muito requisitado, falou para que a
prima nos servisse uma refeição, pedindo desculpas disse que mais
tarde conversaríamos e foi saindo para os fundos da casa com
aquelas pessoas que haviam chegado.
134
Embora fizesse muito tempo que não visitava aquela cidade, me
prontifiquei a apresentá-la aos amigos, me sentia meio peixinho
dentro de um aquário dado a curiosidade explicita das pessoas nas
ruas, minha prima, me apresentava a todos seus amigos como se
fossemos uma atração circense, não era de propósito, mas às vezes
nos deixava constrangidos com tanta atenção, rapidamente nos
tornamos conhecidos e alguns ex-coleguinhas de infância me
reconheciam e faziam mil perguntas, faziam questão de nos levar a
todos os lugares, praças, bares, festinhas, enfim onde houvesse
uma aglomeração e pudéssemos ser mostrados como algo
inusitado e exótico, minha prima viu alguns trabalhos que eu fazia
e mostrou muito interesse, disse que em seu quintal talvez tivesse
material que me interessasse, fiquei curioso quando ela me falou
de algumas aves de criação com plumagens coloridas e marcamos
para o dia seguinte essa incursão. Em meio às apresentações,
conheci ou reconheci o filho do prefeito, que era muito amigo das
pessoas que nos rodeavam e convidou-nos para uma festa que
aconteceria em uma sede social da cidade no final de semana
próximo, era uma festa elitizada, onde com certeza não nos
sentiríamos bem, mas ele não aceitou o não como resposta, disse
135
que nos mandaria apanhar em casa as dez horas, parecia muito
interessado em se aproximar.
Já de volta, notamos uma concentração de pessoas à frente da
casa e outro tanto dentro, tambores eram tocados e um clima
regado a incenso e aguardente se instalara na velha residência.
Logo de cara, no corredor, o primo Paulo vestido com uma túnica
de cetim turquesa, muito vistosa cheio de colares e contas,
passeava entre eles como em revista e escolhia quem entraria em
um dos cômodos da casa onde apenas uma cortina de rendas
muito alva o separava da entrada, ele não parecia ser a mesma
pessoa que nos recebera quando de nossa chegada, tinha a voz
grave e autoritária, as pessoas queriam tocá-lo, ele se dirigiu até
nós e nos gesticulou para que entrássemos, um tanto confuso, sem
entender bem o que acontecia, entrei e fui seguido pelos amigos.
Já na parte interna do salão o clima era bem místico, havia umas
cadeiras ao redor descrevendo um círculo, ao centro, no chão, uns
desenhos tipo exotéricos e no fundo uma espécie de oratório com
muitas imagens de entidades diversas, o cheiro era forte e o
ambiente fumarento, depois que os “escolhidos” já estavam
136
dentro do recinto, ele entrou como um pop star e sentou-se em
uma cadeira maior próximo ao oratório, entoou cânticos, disse
algumas palavras inaudíveis e começou a atender as pessoas, em
dado momento uma delas se atirou ao chão e como se tivesse em
crise epilética se debateu até cansar sem que ninguém se
manifestasse, depois se levantou e saiu como se nada tivesse
acontecido. Quando chegou minha vez ele apenas me abraçou e
disse pra que eu tivesse calma, que as coisas iriam acontecer ao
seu tempo, disse que a minha volta havia muita luz e que o grande
amor da minha vida ainda não havia se apresentado, já ao
professor ele falou de problemas sérios no trabalho e de conflitos
religiosos, disse que ele era filho de uma entidade poderosa e que
precisava trabalhar esse lado ou teria muito do que se arrepender,
isso, aliás, mexeu muito com a cabeça dele desde aquele dia, pra
minha amiga lourinha ele disse que o caso dela era o mais
complicado por causa de problemas relacionados à família e
herança dos seus pais, ele via disputas judiciais e muita perda,
disse pra procurar depois seu amigo Paulo, que era ele mesmo,
para que ele pudesse fazer seu mapa astral o que poderia
determinar seus passos seguintes. Não preciso dizer que deixamos
137
o salão muito impressionados, até por que ele acabara de
conhecer aquelas pessoas.
Horas mais tarde quando todos foram embora e a calmaria voltou
a casa, Paulo, depois de um banho, chegou à cozinha, se desculpou
pelo tumultuo, mas disse que toda quarta feira era assim mesmo,
que devia isso a seus guias e orixás, depois trouxe um baralho
diferente, pediu para que minha amiga o dividisse, depois
distribuiu as cartas geometricamente, olhou por algum tempo,
depois pediu permissão a ela pra falar em nossa presença, em que
ela concordou, então começou a dizer coisas sobre sua vida, sua
infância, seus irmãos inclusive sobre a outra irmã que ficou com o
primo, falou de outros problemas envolvendo um homem
possessivo e violento e alertou o professor sobre um eventual
encontro, ele falou de dinheiro e disputas envolvendo outros
familiares, perdas e envolvimento de um irmão mais velho com
uma possivel traição por parte de sua companheira, até que ela
pediu que ele parasse de falar, levantou-se da mesa e trancou-se
no quarto. Paulo ficou um pouco apreensivo com a situação, disse
que não pode evitar, em seguida, meu amigo pediu que ele tirasse
138
as cartas para ele também, mas o primo disse que não o faria
naquele momento por que precisava conhecê-lo melhor, já que
parecia muito cético e certamente no futuro teria problemas com
relação a definições religiosas, levantou-se pegou um café, serviu
nossas canecas e se retirou.
Aquele primo Paulo era muito estranho, num momento parecia
apenas um gay saltitante que se deliciava em falar abobrinhas, em
outro o cara falava sobre as pessoas com uma autoridade que
arrepiava, sacava muito sobre ritos e descaminhos, dissertava
sobre o destino, livre arbítrio e coisas do espírito, o papo com ele
era sempre muito interessante, ele era uma mistura de curandeiro,
parteiro e pajé, realmente uma figura rara.
No dia seguinte, minha priminha chegou cedinho perguntando por
mim, eu havia comentado que o furo do meu brinco estava
obstruído, então ela já chegou toda paramentada, munida de
agulha e gelo para desobstruí-lo, me tomou pela mão e fomos para
o quintal, foi um pouco dolorido, mas eficaz. O quintal era uma
doce recordação, até as máquinas enferrujadas do velho engenho
ainda estavam lá, muitas árvores frondosas, o pé de abricó e o
139
canavial nos fundos completavam o cenário, ao lado da casa
estavam as aves, patos, galinhas, um papagaio e muitas galinhas
d’angola, a plumagem delas é que me chamou mais a atenção, vi
ali a possibilidade de ganhar algum dinheiro, peguei meus alicates
e algum material que ainda tinha disponível, improvisei uma
bancada em baixo do abacateiro e teci algumas peças, o efeito da
plumagens em preto e branco e muito desenhada daquela aves era
impressionante, possibilitava exercitar com muita liberdade a
criatividade, logo o primeiro conjunto ficou pronto e como não
poderia ser diferente eu o presenteei a ela, foi a senha para se
iniciar um jogo de palavras e sedução, ao contrário do que suas
roupas de garota do interior diziam, sua perspicácia era incomum,
falava com segurança e irreverência. Eu disse que precisava vê-la o
que ela respondeu: - “Abra os olhos” – uma resposta
surpreendente que me aguçou o interesse, mas como sempre
estávamos cercados por outras pessoas, teve um até que quase
depenou uma das aves só pra me agradar, ficava difícil levar
qualquer tipo de papo ou até interpretar com exatidão o que
significava alguns gestos e a atenção desprendida que lhe era
natural.
140
Na noite reservada para irmos a tal festa do filho do prefeito, meu
amigo professor e a lourinha, não se mostraram muito
interessados e resolveram sair para outro lugar, eu havia me
comprometido com a prima, mas me deparei com uma
preocupação inusitada, o que vestir? Paulo trouxe umas roupas
mais sóbrias para eu experimentar, achei que poderia dar certo,
embora eu me sentisse aprisionado, fiz a barba, usei cremes e
xampu, ele me ajudava nos retoques finais, roupas passadas a
ferro, perfume e gomalina nos cabelos, quase não me reconheci
em frente ao espelho, definitivamente não era eu. Quando já me
preparava para sair do quarto, ouvi um burburinho na sala e fui ver
o que rolava, tive uma surpresa ainda maior, minha prima num
vestido vermelho, longo com brilhos, maquiagem perfeita e um
perfume embriagante, seus cabelos negros e longos estavam
armados de uma forma a deixá-la mais madura e insinuante, o
carro chegaria em alguns minutos para nos buscar, meu primo saiu
para um compromisso e ficamos pela primeira vez realmente a sós,
não falamos muito, parecia que o impacto dela ao me ver vestido
daquele jeito fora maior que o meu, então ela disse – o que
fizeram com você? E desarrumou o meu cabelo untado de gel, no
141
mesmo instante eu puxei o laço que envolvia seu colo, deixando o
vestido solto, apenas jogado sobre seu corpo, ela começou a
desabotoar minha camisa, nesse momento uma buzina insistia em
tocar do lado de fora da casa, achamos que poderia ser o carro da
prefeitura, mas o ignoramos solenemente, até porque o cabelo
dela já estava totalmente desarmado assim como nossos receios
em nos envolver, quando vestido caiu definitivamente,
entendemos que não podíamos mais voltar, já estávamos
realmente em meio a um turbilhão de emoções reprimidas e que
naquele instante se soltaria, ela era realmente linda, aquela noite
eu nunca mais esqueceria, a buzina cessou e sem arrependimento
algum, nós não fomos ao baile.
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Evidentemente todos souberam o que houve, nós, meio que
embriagados pelo momento, sem perceber, tratamos de deixar
pistas espalhadas por toda a casa, tanto que passamos a noite
trancados no quarto e os outros dormiram em redes do lado de
fora para não incomodar, pareciam até conspirar ao nosso favor.
Na manhã seguinte, eu acordei primeiro, ela estava jogada sem
roupas, aliás, não sabia nem onde elas tinham ido parar, suas
costas macias eram um convite para não sair mais dali, mas a vida
já acontecia e na cozinha o tilintar das xícaras denunciava o
avançado das horas, levantei e envolvido com uma toalha me
apresentei a todos, os olhares se entrelaçavam com sorrisinhos
sínicos, o primo Paulo, revelando sua cumplicidade, disse a mãe
dela, que já havia estado lá a sua procura, que dormira na casa de
uma amiga, logo depois ela meio envergonhada saiu do quarto, era
impressionante como eu não conseguia ver mais a garota do
interior, parecia um anjo desperto com aquela maquiagem borrada
e os cabelos esvoaçantes, cruzou o salão, passou perto de mim e
me deu um cheiro no pescoço, como quem dizia – É isso mesmo o
que vocês estão pensando, e aí? Ninguém disse nada e ela entrou
para o banho, o primo numa euforia só, disse que se ele fosse eu
143
entraria em baixo daquele chuveiro também, aí eu senti que
realmente estava tudo liberado, joguei a toalha na cara dele e já
entrei pelado no banho, foi muito engraçado, ela ria e perguntava
se eu havia perdido o juízo.
Alguns dias se passaram, nossos encontros tornaram-se
frequentes, íamos para todos os cantos juntos, fazíamos coisas
juntos, embrenhávamos na mata em busca de igarapés, ela me
ensinou a pescaria com varinhas de bambu, eu a ensinei a tecer
redes de pesca e artesanatos, tudo era belo e novo, estávamos
realmente em uma sincronia perfeita, porém, ela demonstrava não
se importar que sua mãe soubesse do nosso relacionamento, o que
já me trazia alguma preocupação, não gostaria de me enraizar de
novo e isso apressou minha decisão em retornar, meus amigos não
se opuseram, até porque não faria sentido ficarem hospedados na
casa do Paulo sem mim, já se iam dez dias.
Procurei por ela, seu semblante, talvez pelo tom sério que eu
empreendera a conversa, mudou como se esperasse o que tinha a
dizer, me justifiquei, ou pelo menos tentei me justificar, falei sobre
o tempo que estava longe de casa, usei a saudade de meus pais e
144
outros argumentos sem muita consistência, ela baixou a cabeça e
disse que era tudo muito bom e não poderia durar para sempre,
virou as costas e saiu com o choro contido.
No dia seguinte, recebi das mãos do Paulo um caderninho cheio de
anotações e poesias que ela pediu que ele me entregasse e
naturalmente se afastou, mudou seu comportamento, passou a
não ir mais a casa com tanta freqüência e quando ia, só falava
comigo sobre genéricos e frivolidades, tanto que no dia em que
decidimos ir ela não sabia de nada, pedi para que ela fosse avisada,
mas ela não apareceu para se despedir, seguimos para a estrada,
eu gostaria de vê-la outra vez, ainda mais depois de ter lido aquele
livrinho onde ela fazia uma espécie de diário da nossa presença e
falava coisas a meu respeito que me inflava o ego além de
demonstrar uma dedicação incondicional, tipo, “se você quiser eu
serei sua” ou “sou capaz de largar tudo para te acompanhar”, cara
isso era muito louco! Então eu não podia de forma alguma dispor
da vida dela, por que pra ela eu era um conto, mas minha
realidade passava longe dos devaneios daquela cabecinha linda.
145
Eu conseguira algum dinheiro com as peças de plumagens o que
poderia servir para pagar nossas passagens, saímos em direção ao
terminal de ônibus, com as mochilas nas costas, quando já
dobrávamos a esquina ouvi sua voz me chamando, me voltei e a vi
correndo em minha direção, larguei a mochila no chão, nos
abraçamos, ela soluçava, me beijava muito, não houve nenhuma
conversa ou frases de despedida apenas um beijo molhado que
selou aquela relação para sempre.
(+) O primo Paulo morreu meses depois, vitima de complicações
infecciosas.
Retomamos nosso caminho, o professor e a lourinha, não pareciam
bem, o relacionamento deles era frio e distante, antes de
chegarmos ao terminal ela fez sinal a uma caminhonete que parou,
o cara disse que iria para Castanhal, fez questão que ela sentasse
ao seu lado na frente e lá fomos nós de novo.
O sentimento de retorno, era outra vez acre, travoso, dificultava a
respiração, o cara que dirigia, falava um monte, mas não dizia
nada, o professor permanecia calado, eu contemplava a paisagem
146
que corria, nada era interessante nem fazia sentido, deveria me
blindar de toda minha bagagem adquirida, teria de servir para se
utilizada naquele momento de vazio, a voz da razão me chamava a
refletir e falava comigo em tom firme e autoritário, baixava aquela
ansiedade e eu apenas a ouvia dizer -“Vá Tranquilamente por entre
o barulho e a pressa e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.
Tanto quanto possível, sem distinção, esteja de bem com todas as
pessoas. Fale a sua verdade, calma e claramente; e escute os
outros, mesmo os estúpidos e ignorantes; também eles têm a sua
história. Evite pessoas barulhentas e agressivas. Elas são tormento
para o espírito. Se você se comparar a outros, pode tornar-se
vaidoso e amargo; porque sempre haverá pessoas superiores e
inferiores a você. Desfrute suas conquistas assim como seus planos.
Mantenha-se interessado em sua própria trajetória, mesmo que
humilde; é o trunfo que realmente se possui no jogo de incertezas
dos tempos. Exercite a cautela; porque o mundo é cheio de
artifícios, mas não deixe que isso o torne cego à virtude que existe;
muitas pessoas lutam por altos ideais; e por toda a parte a vida é
cheia de heroísmo. Seja você mesmo em qualquer circunstância.
Principalmente não finja afeição, nem seja cínico sobre o amor;
147
porque em face de toda aridez e desencantamento ele é perene
como a grama. Aceite gentilmente o conselho dos anos,
renunciando com benevolência às coisas da inocência. Cultive a
força do espírito para proteger-se num infortúnio inesperado, mas
não se desgaste com temores imaginários. Muitos medos nascem
da fadiga e da solidão. Acima de uma benéfica disciplina, seja
bondoso consigo mesmo. Você é filho do Universo, não menos que
as árvores e as estrelas, você tem o direito de estar aqui e quer seja
claro ou não para você, sem dúvida o Universo se desenrola como
deveria. Portanto, esteja em paz com Deus, qualquer que seja sua
forma de concebê-lo, e, sejam quais forem sua lida e suas
aspirações, na barulhenta confusão da vida, mantenha-se em paz
com sua alma. Com todos os enganos, penas e sonhos desfeitos,
este é ainda um mundo maravilhoso. “Esteja atento”.
Muitas coisas passavam por minha mente, a depressão eminente
não era boa companheira, me sentia melhor quando usava minha
reserva interna que acabava por me devolver o chão, deveria
sempre em qualquer situação tentar fazer a diferença, puxar
responsabilidades e pessoas à tona, me lembrei da historia da
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estrela do mar que mostrava como você pode fazer a diferença na
vida.
Um escritor que morava em uma tranqüila praia, junto de uma
colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do
mar para se inspirar, e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo
dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao
chegar perto, ele reparou que se tratava de um jovem que recolhia
estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente
de volta ao oceano - Por que está fazendo isso? - perguntou o
escritor - Você não vê! - explicou o jovem - A maré está baixa e o
sol está brilhando. Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na
areia. O escritor espantou-se - Meu jovem, existem milhares de
quilômetros de praias por este mundo afora, e centenas de
milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença
faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai
perecer de qualquer forma. O jovem pegou mais uma estrela na
praia, jogou de volta ao oceano e olhou para o escritor e disse -
Para essa aqui eu fiz a diferença... Naquela noite o escritor não
conseguiu escrever, sequer dormir. Pela manhã, voltou à praia,
149
procurou o jovem, uniu-se a ele e, juntos, começaram a jogar
estrelas-do-mar de volta ao oceano.
Não tardou e chegamos a Castanhal, dali em diante estávamos
muito próximos de casa. O sentimento de perda era comum.
Resolvemos não ir para a rodoviária, aproveitaríamos os últimos
momentos caminhando pela estrada. Numa carona rápida um
caminhoneiro nos deixou em Santa Izabel, cidade seguinte.
Agradecemos e seguimos a pé, chegamos a uma ponte na estrada,
onde acontecia um conflito entre policiais e moradores da área, de
repente alguém lá de baixo apontou uma espingarda para nós e
disparou, escutamos o estalo na barra de ferro que ladeava a
ponte, saímos correndo até a exaustão, nos escondemos na beira
da estrada e ficamos observando as viaturas passando sempre
lotadas, os tiros não cessaram e durante horas permanecemos
agachados entre os arbustos. Quando sentimos uma certa calmaria
resolvemos sair, tentávamos em vão conseguir carona, mas
ninguém parava, principalmente porque estávamos em três. Tive a
idéia de me esconder, junto com o professor e deixar nossa amiga
na beira da estrada. Não deu outra, o primeiro carro que passou
150
parou, o cara abriu a porta da frente de onde saiu um sujeito que
rapidamente abriu a porta de trás, nós corremos e entramos
também, ele não reclamou, mas ficou apreensivo, como a “mina”
já estava dentro, a situação foi contornada, mas aí o susto foi
nosso, o cara tinha uma “flauta” acesa que deixava o ambiente
irrespirável, ria muito e acelerava o velho Chevette, fazendo zig-zag
na estrada, não nos sentimos bem e pedimos para descer na
entrada do “Mosqueiro”, distrito de Belém, mais um tempinho
depois, com a mesma tática conseguimos uma caminhonete e
assim rumamos para a última parada de volta a casa.
151
(*) O amigo professor de inglês, depois de perambular por várias
seitas, tornou-se seguidor de uma igreja protestante e
posteriormente pastor, até os dias de hoje.
(*) Minha amiga holandesa, só voltei a encontrar em uma outra
festa no AP do Billy, sei que viveu um tempo com seu antigo
namorado “malhadão”com quem teve muitos problemas incluindo
espancamentos, depois se isolou em uma propriedade da família
onde vive até hoje.
152
O Recomeço
Eu não gostaria de me render as evidencias. O país em 1982 dava
sinais de mudança, embora ainda não fossem plenas, mas os
militares já demonstravam muito desgaste e não segurariam mais
por muito tempo o poder. As ruas nunca foram tão policiadas,
principalmente por causa das ações dos estudantes e o
crescimento das reivindicações da sociedade civil, até os hippies,
antes ignorados, sofriam com a truculência militar que invadia as
ruas.
Eu provavelmente não me enquadraria mais no esquema de
trabalho, salário, poluição e família. Nada disso fazia parte da
essência em que eu estava envolto, não conseguiria mais ter
aquela leitura cotidiana das pessoas da forma com que elas me
apresentavam, as cores eram relativas, apresentavam matizes, a
melodia era dissonante, o ar rarefeito e as palavras não
justificavam seus significados. Minha blindagem natural me traria
com certeza ainda muitos dissabores e conflitos. O diálogo se
tornava complexo à medida que alguém falava de coisas que só
153
conhecia de ouvir dizer e tecia suas teses e argumentações
filosóficas baseadas nessas informações.
Sobre meus pais, eu até poderia relevar suas posições, já que eram
de formação humilde e lhes faltava à instrução necessária para
discernir sobre aquele comportamento exigido pela sociedade e o
momento que nós vivíamos, mas e os outros? Eu não poderia
simplesmente me abster de opinar ou do contrário concordaria
com todo um contexto sistemático.
Quando cheguei a casa, depois de tanto tempo, com os cabelos no
meio das costas, brincos na orelha, tatuagens nos braços, magro e
queimado de sol, não tinha idéia de qual seria a reação das
pessoas, mas minha mãe e irmãs simplesmente ignoraram tudo
isso, elas fizeram de contas que eu voltava do exílio como todo
mundo, depois de muitos abraços e beijos vieram às perguntas,
que eram tantas que talvez agora com esse livro eu consiga
responder a boa parte delas. Faltava o meu pai que estava no
trabalho e já havia sido avisado por telefone de minha chegada. O
encontro a noite foi frio, mas civilizado, ele não fez muitas
perguntas, só queria saber se eu estava bem e o que faria agora.
154
Disse que se eu quisesse me arranjaria uma colocação na empresa
em que trabalhava, eu disse que pensaria no assunto e voltaríamos
a falar.
Agora com minha liberdade tolhida, procurava ficar o maior tempo
possível em casa, parecia querer voltar a entender o mundo que
borbulhava em acontecimentos. Um dia encontrei um velho amigo
que fazia parte da banda punk que idealizamos. Padecia dos
mesmos males da idade, incompreensão e falta de liberdade,
contei-lhe um pouco da minha história, ele, empolgado disse que
toparia fazer uma saída dessas e perguntou se eu ainda mantinha
algum contato com aquelas pessoas. A única pessoa que lembrei
foi do meu amigo paraibano e de sua casa do Atalaia, mas que não
sabia nem se ainda existia. Meu amigo punk me pediu pra agilizar
essa “parada”, disse que tinha algum dinheiro e gostaria de se
mandar por uns tempos. Essas coisas sempre mexiam comigo.
Depois de alguns dias consegui falar com meu amigo paraibano
que disse que eu poderia ir, mas que dessa vez não por muito
tempo, porque a casa seria vendida em breve. Eu disse em casa
que faria uma viagem rápida e que quando voltasse retomaria os
155
estudos e arranjaria trabalho, houve uma rápida comoção, mas
nada podia ser feito e lá fomos nós de novo para estrada.
Na minha cabeça não havia prazo pra retornar, se não dessem
certo as coisas por lá, dessa vez tentaria sair do país, sabia de
alguns que chegaram à França. O amigo punk na verdade era só
um pretexto para sair outra vez. Ele era só empolgação, queria
chegar à praia sempre de carona, o que já não era mais tão fácil.
Pegamos a primeira em uma velha carreta que nos “jogou”
próximo a saída da cidade, depois ficamos horas em um posto de
combustíveis sem conseguir nada de positivo, os caminhoneiros
não confiavam em nós, meu amigo não era exatamente nenhum
galã, aliás, pra falar a verdade, seu aspecto era bem sombrio, alto,
magrão, com uma cor meio desbotada, parecia o Tropeço da
família Adams, era uma companhia improvável, mas engraçada. Na
viagem de ida me lembro que chegamos a Capanema, cidade no
nordeste do Pará, num fim de tarde, perguntamos pra que lado
ficava Salinas e saímos andando em sua direção. Lá pelas tantas, já
tínhamos caminhado umas duas horas, apareceu um tratorzinho
que saíra sei lá de onde, parou do nosso lado e perguntou se
156
gostaríamos de subir, o cara tinha uma garrafa de caipirinha pela
metade e duas intactas, ficamos a bordo do tratorzinho durante
horas, cantando, contando histórias e se embebedando. O cara do
trator disse que entraria na próxima a direita, e do jeito que
apareceu, sumiu na noite nos deixando no meio do nada.
Encontramos uma casa antiga onde uns caras jogavam dominó,
perguntamos como faríamos pra chegar a nosso destino, alguém
do meio disse que teria um pau-de-arara que passava seis da
manhã e que se quisesse esperar era só se jogar lá mesmo num
barraco ao lado.
Acordamos com alguém dizendo que o caminhão estava lá fora
recolhendo os colonos, saímos e todos olharam para nós e riam, é
que tínhamos cocô de pombos por todo o corpo e penas nos
cabelos, além de não termos dinheiro pra pagar a passagem. Falei
com o dono do caminhão, ele disse que se déssemos uma força no
carregamento poderia nos levar. Passamos a viagem toda
carregando sacos de farinha, descarregando bananas e cabritos até
chegarmos ao famoso trevo que já me era tão familiar. Saímos
andando, foram 8 quilômetros a pé que me pareceram tão
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próximos. Estava ansioso para chegar, o punk reclamava o tempo
todo, mas eu o ignorava, na verdade não sabia nem porque eu o
havia trazido.
Quando chegamos à praia, as lembranças daquele lugar, seu
aroma, e seu clima me caíram com um peso muito acima de
minhas forças, eram muitas recordações, tantas que reabriram
velhas feridas. Saímos em direção a casa do Jorge meu velho
amigo, tudo estava muito mudado, as casas dos amigos não
existiam mais, já tinham dado lugar a outras bem projetadas e de
fino acabamento, a própria casa do Jorge estava a venda assim
como do amigo paraibano. Chegamos à venda do Jorge que nos
recebeu com alegria e foi logo contando as novidades, para ele
eram boas novidades, afinal conseguiria um belo preço por sua
propriedade e iria embora para a cidade.
No inverso da mão estávamos nós, tentando achar algum sentido
em estar ali. Não se passou nem uma semana e o amigo punk
começou a dizer que queria voltar pra casa, que era um “rato”
urbano e que não viveria de natureza pro resto da vida. A figura
começava me dar nos nervos, não fazia suas tarefas, dormia o
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tempo todo, não buscava lenha, não sabia cozinhar, lavar, enfim,
não contribuía para nada, eu me sentia explorado, parecia que
estava casado com uma mulher preguiçosa, onde só o maridão
trabalhava com o agravante que não havia atrativo algum que
recompensasse aquele sacrifício. Um dia, já de “saco cheio”,
discutimos por causa de suas reclamações e eu o expulsei de casa,
tranquei a porta o deixando na rua. No outro dia encontrei com ele
na venda passando mal, com febre e dores no corpo, me senti
culpado por tê-lo feito dormir ao relento, ele não estava
acostumado. O lugar já não fazia sentido algum mesmo, então
levei-o até a estrada, peguei um taxi de um amigo até a cidade,
arranjei uma carona na caçamba de um caminhão e o despachei
para Belém.
Agora de fato estava encerrada minha aventura, da forma mais
melancólica e inesperada, não sentia mais forças pra continuar
insistindo, voltei afinal à casa dos meus pais, cortei os cabelos com
lágrimas nos olhos, abandonei meus brincos e adornos e aceitei o
emprego que ele me oferecera. Sentia que um ciclo de liberdade e
imagens coloridas se fechava diante dos meus olhos, teria que me
159
readaptar aos preceitos impostos pelo sistema. Sistema esse que
se quer era sólido, já que os rumores sobre a retirada dos militares
eram cada dia mais consistentes e a queda parecia uma questão de
pouco tempo. O Brasil parecia começar a sair do preto e branco
que o assombrou durante tanto tempo e eu por outro lado,
passava a ver a vida em tons de cinza.
160
E hoje?
Bem, hoje ano de 2010, preste a fazer cinquenta anos, tenho um
casamento sólido, quase bodas de prata, filhos lindos e uma vida
irregular financeiramente, o que não deixa de ser um atrativo. Me
impulsiona a continuar produtivo. O Brasil vive bons tempos, o
governo civil hoje é de esquerda, ou quase, a economia vai muito
bem, e a liberdade é uma conquista realizada. Não sei se bem
aproveitada. Às vezes vejo nossa liberdade como a história do
cachorrinho que corre atrás da roda do carro e quando o carro
para, ele não sabe o que faz com a roda, no mais tudo mais ou
menos. Aos meus filhos só posso legar história, por que o vírus da
liberdade, hoje, deve ser contido em virtude dos índices de
violência que a “liberdade” nos trouxe. Se bem que os meninos
não querem mais se mandar para aventuras, os tempos são outros
e talvez saiam de baixo de minhas asas, somente para a segurança
de vôos mais altos.
Os amigos: quase não os vejo, ou estão envolvidos em suas
individualidades, ou não conseguiram chegar até aqui. Ainda
encontro o meu velho primo, hoje um artesão de prata e ouro
161
renomado e admirado por seu trabalho, cinco filhos e
relacionamentos instáveis. Na companhia de um bom vinho,
conseguimos analisar, digerir e rir dos momentos mágicos que a
vida nos deu por concessão.
162
Visão Filosófica
As lições aprendidas ao longo desses anos me municiaram com
uma quantidade imensurável de argumentações e recursos. Eu
poderia usá-los ao longo dos anos como meus trunfos em
momentos em que se fizessem necessários, sem ferir, mas sem
precisar me submeter ou tornar-me servil. Lembrei de uma
definição muito interessante sobre o mar e sua majestade que me
foi passada por um velho guru quando estive em canoa. Ele dizia:
“O mar é tão forte e majestoso porque teve a humildade de
colocar-se alguns centímetros abaixo de todos os rios. Recebendo
assim, toda a água que é produzida por eles. Sabendo receber,
tornou-se grande. Se quisesse ser o primeiro, centímetros acima de
todos os rios, não seria mar, mas sim uma ilha. Toda sua água iria
para os outros e estaria isolado. A perda faz parte. Precisamos
aprender a perder, a cair e a errar. Se aprendermos a perder, a cair
e errar, ninguém mais nos controlará. Porque o máximo que
poderá acontecer para nós, é cairmos, errarmos e perdermos. Isso
significa que saberemos que depois vem o levantar, acertar e
vencer. Bem aventurado aquele que já consegue receber com a
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mesma naturalidade o ganho e a perda, o acerto e o erro, o triunfo
e a queda, a vida e a morte”.
Essa é uma definição filosófica que certamente pode nos
acompanhar por toda a vida sem que tenhamos exatamente que
nos submetermos a estereótipos e enquadramento doutrinários.
Nossa auto-estima não pode nunca se deixar abalar, porque essa é
porta de entrada para interferência alheia e o autoflagelo.
Se um dia alguém fizer com que se quebre a visão bonita que você
tem de si, com muita paciência e amor reconstrua-a. Assim como o
artesão recupera a sua peça mais valiosa que caiu no chão, sem
duvidar de que aquela é a tarefa mais importante, você é a sua
criação mais valiosa. Não olhe para trás. Não olhe para os lados.
Olhe somente para dentro, para bem dentro de você e faça dali o
seu lugar de descanso, conforto e recomposição. Crie este universo
agradável para si e seja feliz. O mundo agradecerá o seu trabalho.
Daqui pra frente estaria sem meus escudeiros, mas teria que
manter a firmeza dos ensinamentos enriquecedores, por que nesse
momento pensamos que novos tempos batem a nossa porta,
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pensamos que o passado não tem mais relevância, pensamos que
os dragões já não existem mais e que as princesas desencantaram.
Pensamos que a távola ruiu e os cavaleiros sucumbiram, pensamos
que o tempo passou e que nada mais pode ser feito, que os portões
foram lacrados e a chaves perdidas e que a era de aventuras e
lutas épicas ficou para trás.
É um prazer estarmos enganados, somos centelhas divinas, espécie
em evolução, os dragões apenas disfarçaram-se, mas as chaminés
os denunciam, não os deixam invisíveis, os cavaleiros estão em
máquinas possantes, os cavalinhos são de Maramello, as princesas
ainda mais encantadoras, agora mais insidiosas, perdem-se na
multidão e escondem-se de si mesmas.
Nossa capacidade não pode ser medida, não há limites que não
possamos transpor, podemos conseguir tudo o que quisermos, o
obstáculo é um descuidado olhar desviando do objetivo. Talvez não
consigamos mudar o rumo dos ventos, mas podemos ajustar a
posição das velas.
Nada se perde para sempre, porque o sempre é eterno e mantém a
sua ponte. Nosso padrão de medida, vai mudando conforme a
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idade avança, o que antes mediamos em quilômetros, hoje
medimos em tempo. Como poderemos dizer que chegamos lá, se
quando chegarmos ele já virou aqui. Lá é utópico e inatingível, mas
não imutável, como o amanhã.
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Anderson Valle O autor
Brasília 2001
Anderson Valle O autor
Belém 1980
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