Editorial
A revista Ofaié apresenta ao público sua segunda edição, correspondente
ao primeiro semestre de 2014. Na publicação que segue os leitores encontrarão
uma seção especial, dedicada a tradução e divulgação de artigos inéditos em
língua portuguesa. Nesta edição temos a honra de apresentar o artigo Universais
da Natureza Humana, de Noam Chomsky, um dos mais importantes e
representativos intelectuais do século XX. A arrojada e elegante tradução foi
elaborada pelo professor Ronaldo Maciel Pavão. Na seção de artigos contamos
com uma variada gama de temas e áreas das ciências humanas. O jornalista e
pesquisador Cleyton Pereira Lutz, por exemplo, nos presenteia com uma
interessante análise da política e da imprensa paranaense no artigo Política e
imprensa no Paraná: as eleições estaduais de 1955 e 1960. No campo da
historiografia, o professor Igor Vitorino da Silva propõe uma rica leitura do
fenômeno urbano através do artigo Estigma territorial e seus efeitos: Nova Rosa
da Penha II – Cariacica – ES. Também no campo da história nossos leitores terão
a satisfação de contar com a leitura do artigo Considerações sobre a crítica
presente na historiografia Mato-Grossense, de autoria da historiadora Ana Paula
Hilgert de Souza, pesquisadora vinculada à UFGD. Trata-se de um excelente guia
para a compreensão do fazer historiográfico regional. Na área de filosofia temos
a alegria de publicar dois belos textos, o primeiro, de André Campos de Camargo,
Pierre-Félix Guattari: uma vida em várias direções, apresenta ao leitor o percurso
intelectual e humano do filósofo francês Guatarri. Para aqueles interessados em
iniciar um estudo sobre a vida e obra deste autor o texto de Camargo constitui
um excelente “caminho das pedras”. O segundo texto sobre filosofia, de autoria
de Raphael Guazzelli Valério – colaborador e importante entusiasta do projeto da
Revista Ofaié desde seu início – nos aproxima do clássico texto de Aristóteles, a
saber, Ética a Nicômaco. A abordagem de Valério em A boa vida ou o bem viver
na Ética a Nicômaco de Aristóteles, dará ao leitor que desconhece tal obra a
imensa vontade de partilhar de tal leitura clássica, e aos que já leram Aristóteles,
certamente criará o forte desejo de revisitar as páginas do velho estagirita.
Desejamos a todos uma proveitosa leitura.
Universais da Natureza Humana1
Noam Chomsky
Tradução: Ronaldo Maciel Pavão2
Receber um diploma honorário de uma das mais antigas e mais
prestigiadas universidades da Europa é o tipo de ocasião que, naturalmente, leva
a pensar novamente sobre questões fundamentais e preocupações de anos
anteriores - no meu caso, 50 anos de ensino universitário e de investigação, ao
lado de outros compromissos intensos, em ambos os casos remontando a anos
anteriores. Têm sido dois caminhos quase paralelos: quase paralelos, porque eles
fazem um curto encontro no infinito, embora exatamente como eles convergem
esteja longe de ser claro. Um caminho procura entender mais sobre a linguagem
e a mente. O outro é guiado por preocupações com a liberdade e a justiça - e,
lamentavelmente, a sobrevivência humana não é uma preocupação sem
propósito em nossa era. Deveria haver alguns elementos comuns: em particular,
que o co-fundador da teoria evolucionista moderna, Alfred Russel Wallace, esta
chamada de ‘natureza moral e intelectual do homem’: as capacidades humanas
para a imaginação criativa, linguagem e simbolismo em geral, interpretação e
registro de fenômenos naturais, práticas sociais intrincadas e afins. Em suma, um
conjunto de capacidades que parece ter cristalizado muito recentemente entre
um pequeno grupo no Leste da África, da qual somos todos descendentes. O
registro arqueológico sugere que o cristalização foi tão repentina no tempo
evolutivo que alguns eminentes cientistas chamam os eventos de ‘o grande salto
1 O presente artigo é uma tradução de Universals of Human Nature. Noam Chomsky é professor
emérito do Massachusetts Institute of Technology, Boston, Mass. , USA.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.
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à frente’, este o qual distinguiu acentuadamente os humanos contemporâneos de
outros animais, incluindo outros hominídeos.
Os princípios de nossa natureza intelectual e moral continuam a ser uma
mistério considerável, mas dificilmente podemos duvidar de sua existência ou de
seu papel central nas nossas vidas moral e intelectual. Estou ciente de que isto é
convencionalmente negado, mas sem crédito, na minha opinião. Os temas
também são muito amplos para tratar ao longo dos limites deste trabalho e, por
isso, eu gostaria de tomar dois aspectos principais: a linguagem humana, a qual
é considerada por muitos paleoantropólogos como o fator que estimulou ‘o
grande salto à frente’; e a nossa concepção dos direitos humanos fundamentais.
Em ambos os domínios devemos, penso eu, buscar universais, isto é, os
elementos da nossa dotação humana comum que provém os humanos com
capacidades cognitivas específicas e com os fundamentos para um juízo moral.
Há uma longa e interessante história do pensamento sobre eventuais
relações entre estes domínios, mas estes permanecem especulativo e
pobremente compreendidos. A única maneira de proceder é, tanto quanto posso
ver, dizer algumas palavras sobre a universalidade na linguagem e nos direitos
humanos, com apenas um dica sobre as possíveis conexões, um problema ainda
muito grande no horizonte de investigação.
1. Universalidade na linguagem
Para começar, que tal universalidade na linguagem? A forma mais
produtiva de abordar o problema, penso eu, está dentro do âmbito do que têm
sido chamado "a perspectiva biolinguística", uma abordagem da linguagem que
começou a tomar forma no início dos anos de 1950, muito influenciada pelos
desenvolvimentos recentes em matemática e biologia. A abordagem interagiu
produtivamente com uma mudança mais geral de perspectiva no estudo das
faculdades mentais, comumente chamada de ‘a revolução cognitiva’. Seria mais
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preciso, penso eu, descrevê-la como uma segunda revolução cognitiva, revivendo
e ampliando conhecimentos importantes e contribuições da revolução cognitiva
dos séculos XVII e XVIII, a qual, lamentavelmente, havia sido esquecida e são,
ainda, pouco conhecidas.
Na década de 1950, o estudo da linguagem e da mente era comumente
considerado como parte das ciências comportamentais. Como o termo indica, o
objeto da investigação foi o comportamento e, para a linguística, também os seus
produtos: textos, talvez um corpus extraído de informantes nativos. A teoria
linguística consistiu de procedimentos de análise, principalmente de
segmentação e classificação. Alguns dos mais influentes foram aqueles de Nicolai
Troubetzkoy e Zellig Harris. Os procedimentos desenvolvidos foram guiados por
suposições limitadas sobre as propriedades estruturais e sua disposição. O
proeminente teórico americano Martin Joos exagerou fortemente, em uma
exposição de 1955, quando ele identificou a ‘direção decisiva’ como a decisão de
que a linguagem pode ser ‘descrita sem qualquer esquema pré-existente do que
uma língua deve ser’. Abordagens predominantes no comportamento científico
em geral, foram semelhantes. Ninguém, é claro, literalmente acreditou na noção
incoerente de uma ‘lousa em branco’. Mas era comum supor que, além de alguma
delimitação inicial das propriedades detectadas no ambiente (um ‘espaço de
qualidade’, no quadro altamente influencial de W. V. Quine), os mecanismos de
aprendizagem indiferenciados de algum tipo contaram para o que os organismos
sabem e fazem, incluídos os seres humanos. A abordagem biolinguística,
juntamente com as áreas afins das ciências cognitivas, adotou uma postura
diferente. Eles tomaram como objeto de investigação não o comportamento e
seus produtos, mas sim os sistemas internos que entram em ação e em
interpretação; e em um nível mais profundo, a base em nossa natureza biológica
para o crescimento e desenvolvimento desses sistemas internos. O objetivo era
descobrir o que Juan Huarte descreveu, no século XVI, como a propriedade
essencial da inteligência humana: a capacidade da mente humana para ‘gerar
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dentro de si mesma, por seu próprio poder, os princípios em que se assenta o
conhecimento’- ideias que foram desenvolvidas de formas importantes nos anos
que seguiram. Para a linguagem, ‘os princípios em que se assenta o
conhecimento’ são aqueles da língua internalizada, de um certo estado cognitivo.
O conhecimento que repousa sobre estes princípios cobre uma ampla gama,
desde o som, à estrutura e ao sentido. Mesmo nos casos mais elementares, o que
é conhecido é bastante complicado.
Para tomar uma palavra que interessava aos empiristas britânicos,
considere a noção rio, julgada como uma ‘noção comum’, parte do nosso
conhecimento inato. Thomas Hobbes sugeriu que os rios são mentalmente
individualizados por origem. Mas porquanto há alguma verdade nesta
observação, ela não é realmente precisa, e isso apenas arranha a superfície de
nossa compreensão intuitiva do conceito. Assim, o rio Po permaneceria o mesmo
rio sob extremas mudanças - entre muitos outros, invertendo seu curso,
dividindo-o em fluxos separados que convergem em algum novo lugar,
substituindo qualquer H2O que ocorre estar nele por produtos químicos de uma
fábrica rio acima. Por outro lado, sob algumas mudanças triviais não seria mais
um rio em tudo: por exemplo, direcionando-o entre fronteiras fixadas e usando-
o para carga (em cujo caso, é um canal, não um rio) ou endurecendo a superfície
ao estado vítreo por alguma mudança física quase indetectável, pintando uma
linha no meio, e usando-o para ir à Veneza (em cujo caso, é uma auto-estrada).
À medida que avançamos, nós encontramos propriedades muito mais
complexas, não importando o quão simples são as palavras que investigamos.
Tais fatos corriqueiros solapam uma abordagem à referência baseada em alguma
relação mística palavra-objeto. Esclarecimentos sobre esses assuntos foram
desenvolvidos desde Aristóteles até os séculos XVII e XVIII, mas foram
principalmente perdidos hoje. Mesmo os mais simples conceitos humanos
aparecem como sendo inteiramente diferentes de qualquer coisa encontrada no
comportamento simbólico ou comunicativo dos animais, um problema
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significativo para a teoria evolucionista, um dos muitos. E os problemas crescem
muito rapidamente quando passamos das palavras às expressões formadas a
partir delas.
Uma tarefa essencial da investigação é determinar os princípios sob os
quais tal conhecimento se baseia para uma variedade maior de possíveis
linguagens humanas. Um problema mais complexo é descobrir o que Huarte
chamou ‘o poder de engendrar’ esses princípios da linguagem interna: em termos
atuais, a quase dotação biológica uniforme que constitui faculdade da linguagem
humana. O poder de engendrar uma linguagem interna é o tema da ‘gramática
universal’, adaptando um termo tradicional para um novo contexto. As
propriedades universais da linguagem constituem, com efeito, o componente
genético da faculdade da linguagem.
Deste ponto de vista, as línguas e outros sistemas cognitivos são tomados
por ser, com efeito, órgãos do corpo, principalmente do cérebro, a ser investigado
em muito à maneira de outros subcomponentes que interagem na vida do
organismo: visão, planejamento motor, circulação do sangue, e outros.
Juntamente com o seu papel no comportamento, os ‘órgãos cognitivos’ entram
em atividades tradicionalmente consideradas como mentais: pensamento,
planejamento, interpretação, avaliação, julgamento moral, e assim por diante. O
comportamento e os seus produtos – tais como os textos – fornecem dados que
podem ser úteis como provas para determinar a natureza e as origens dos
sistemas cognitivos, mas não têm status privilegiado para tais investigações.
Uma significativa visão da primeira revolução cognitiva é que não há
nenhum problema mente-corpo coerente. Isso é consequência imediata da
demolição da ‘filosofia mecânica’ de Newton, baseado no conceito intuitivo de
um mundo material. O próprio Newton considerava suas conclusões como um
‘absurdo’ e procurou para o resto de sua vida fugir delas, como fizeram muitos
cientistas eminentes em anos posteriores. Mas foi finalmente reconhecido que
elas devem ser aceitas, não importando quão absurdas elas são do ponto de vista
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do senso comum. O problema mente-corpo é, portanto, informulável . Nós só
podemos considerar aspectos do mundo ‘chamado mental’ como o resultado de
‘uma estrutura orgânica tal como a do cérebro’, como o químico-filósofo Joseph
Priestley observou no final do século XVIII. O pensamento é uma ‘pequena
agitação do cérebro’, observou David Hume. E como Darwin mais tarde
acrescentou, não há nenhuma razão para que ‘o pensamento, sendo uma
secreção do cérebro’, deveria ser considerado ‘mais maravilhoso que a gravidade,
uma propriedade da matéria’.
Em sua clássica história do materialismo no século XIX, Friedrich Lange
destacou que Newton efetivamente destruiu as doutrinas materialistas, bem
como os padrões de inteligibilidade que lhes estão associados, um ‘ponto de
virada’ na história do materialismo que remove resquícios remanescentes da
doutrina longe daquelas dos 'Materialistas genuínos’ do século XVII, e priva-os
muito de significado. Até então, uma concepção mais modesta dos objetivos da
ciência tornou-se senso comum científico: a conclusão relutante de Newton de
que nós devemos nos satisfazer com o fato de que a gravidade universal existe,
mesmo se não pudermos explicá-la em termos da auto-evidente ‘filosofia
mecânica’. Como os historiadores da ciência têm observado, este movimento
intelectual ‘estabeleceu uma nova visão da ciência’ em que o objetivo é ‘não
buscar as explicações finais’, mas encontrar o melhor cálculo teórico que
pudermos dos fenômenos de experiência e da experimentação (I. Bernard
Cohen). É uma curiosidade da história intelectual que o truísmo do século XVIII
seja agora comumente apresentado como um ‘hipótese surpreendente’, ‘a
afirmação corajosa de que os fenômenos mentais são totalmente naturais e
causados pelas atividades neurofisiológicas do cérebro’, a tese de que ‘as coisas
mentais, de fato as mentes, são propriedades emergentes dos cérebros’ – apenas
para citar alguns exemplos recentes de cientistas conceituados e filósofos. O
fraseado é quase idêntico ao do reconhecimento, dois séculos atrás, de que não
há alternativa, uma vez que Newton tinha mostrado que nada é uma máquina –
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ou físico, ou material, no único sentido coerente desses termos, em seguida, ou
depois.
Outra significativa visão da primeira revolução cognitiva foi que as
propriedades do mundo denominado mental podem envolver capacidades
ilimitadas de um órgão finito, o ‘uso infinito de recursos finitos’, na frase de
Wilhelm von Humboldt. Em uma tendência bastante semelhante, Hume tinha
reconhecido que nossos julgamentos morais são ilimitados em seu escopo, e
devem ser fundados sobre princípios gerais que fazem parte de nossa natureza,
embora eles estejam além de nossos ‘instintos originais’. Essa observação coloca
o problema de Huarte em um domínio diferente, onde podemos encontrar parte
da fina linha que liga a busca por universais cognitivos e morais.
Em meados do século XX, tornou-se possível enfrentar tais problemas de
forma mais substantiva do que antes. Até então, havia uma clara compreensão
dos sistemas gerativos finitos com um alcance ilimitado, os quais podem ser
prontamente adaptados à remodelagem e investigação de algumas das questões
tradicionais que necessariamente têm sido deixadas obscuras – embora apenas
algumas, é importante destacar. Humboldt referiu-se ao uso infinito da
linguagem, uma questão completamente diferente do âmbito ilimitado dos
recursos finitos. Outro fator de influência na renovação da revolução cognitiva foi
o trabalho dos etólogos, agora vindo a ser mais amplamente conhecido, com sua
preocupação pela ‘hipótese de trabalho inato presente em organismos
subumanos’ e o ‘humano a priori’, os quais teriam em muito a mesma
característica. Esse quadro também poderia ser adaptado ao estudo dos órgãos
cognitivos humanos e sua natureza geneticamente determinada, os quais
constroem a experiência e orientam o caminho geral de desenvolvimento, como
em outros aspectos do crescimento dos organismos.
Enquanto isso, os esforços para aguçar e aperfeiçoar as abordagens
processuais das linguísticas estruturais entrou em sérias dificuldades, revelando
o que parece ser insuficiências intrínsecas. Tornou-se cada vez mais claro que,
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mesmo os mais simples elementos não têm a propriedade ‘contas-de-um-rosário’
necessária para abordagens processuais. Em vez disso, eles se relacionam muito
mais indiretamente a forma fonética. Sua natureza e propriedades são fixadas no
sistema computacional interno que determina a gama ilimitada de expressões.
Estas expressões, por sua vez, podem ser consideradas como ‘instruções’ para
outros sistemas que são utilizados para operações mentais, bem como para a
produção e interpretação de sinais externos. Nas ciências do comportamento,
mais geralmente, um estudo mais aproximado dos mecanismos postulados da
aprendizagem também revelou insuficiências fundamentais, e logo perguntas
foram surgindo dentro das disciplinas como se até mesmo seus conceitos
fundamentais não pudessem ser sustentados.
Para a linguagem, a conclusão natural dava a impressão de que a
linguagem interna atingida tinha mais ou menos o caráter de uma teoria
científica: um sistema integrado de regras e princípios a partir do qual as
expressões da linguagem poderiam ser derivadas. A criança deve de alguma
forma selecionar o idioma interno a partir do fluxo de experiência. O problema é
semelhante ao que o filósofo Charles Sanders Peirce, um dos fundadores do
pragmatismo moderno, tinha chamado rapto em suas investigações dentro da
natureza da descoberta científica. E, como no caso das ciências, a tarefa é
impossível sem o que Peirce chamou um ‘limite sobre hipóteses admissíveis’ que
permite apenas algumas teorias para se divertir, mas não infinitamente muitas
outras compatíveis com dados relevantes. No caso da linguagem, verificou-se que
a gramática universal deve impor um formato para sistemas de regras que é
suficientemente restritivo para que as línguas candidatas sejam ‘espalhadas’, e
apenas um pequeno número pode até mesmo ser considerado no decurso de
aquisição de linguagem. Daqui resulta que o formato deve ser altamente
articulado, e específico para a linguagem. ‘O problema teórico mais desafiador
em linguística’ foi tomado por ser ‘aquele da descoberta dos princípios da
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gramática universal’, os quais ‘determinam a escolha de hipóteses’, as linguagens
internas acessíveis.
Também foi reconhecido que para a linguagem, como para outros
organismos biológicos, um problema ainda mais desafiador permanece no
horizonte: descobrir ‘as leis que determinam uma possível mutação bem sucedida
e a natureza dos organismos complexos’. Uma investigação de tais fatores parecia
muito remota para merecer muita atenção, apesar de que até mesmo alguns dos
primeiros trabalhos – por exemplo, sobre a eliminação da redundância nos
sistemas de regras – foram orientados implicitamente por tais preocupações, as
quais se sustentam muito diretamente sobre a universalidade na linguagem: na
medida em que esses fatores entram em crescimento e desenvolvimento, menos
precisam ser atribuídos à gramática universal como uma propriedade específica
da linguagem.
Nos anos que se seguiram, muito mais foi aprendido sobre os princípios
das línguas particulares e princípios gerais que as engendraram. No início da
década de 1980, uma mudança substancial de perspectiva dentro da linguística
reformulou as questões básicas consideravelmente, abandonando totalmente a
concepção da teoria linguística em favor de uma abordagem que procurou limitar
as línguas internas atingíveis a um conjunto finito, à parte das escolhas lexicais.
Como um programa de pesquisa, essa mudança tem sido muito bem sucedida,
produzindo uma explosão de pesquisa empírica em uma ampla variedade de
línguas tipologicamente variadas, colocando novas questões teóricas que
dificilmente teriam sido formuladas antes, frequentemente fornecendo respostas
pelo menos parciais, bem como ao mesmo tempo, também revitalizando áreas
afins de aquisição da linguagem e processamento. Outra consequência foi que a
mudança de perspectiva removeu algumas barreiras conceituais básicas à
investigação séria sobre os princípios mais profundos em crescimento e
desenvolvimento da linguagem. Nesta concepção, a aquisição é dissociada dos
princípios fixados da gramática universal, e não obriga à conclusão de que o
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formato fornecido pela faculdade de linguagem inata deva ser altamente
articulada e específica a ela, de modo a restringir o espaço das hipóteses
admissíveis. Isto abre novos caminhos para estudar a universalidade na
linguagem.
Tem sido reconhecido desde as origens da biologia moderna que as
restrições estruturais e de desenvolvimento geral entram no crescimento de
organismos e em sua evolução. Até agora essas considerações foram
apresentadas para uma ampla gama de problemas de desenvolvimento e
evolução, de divisão celular para a otimização da estrutura e função das redes
corticais e, muito recentemente, a descoberta de uma espécie de ‘andaime’ que
surge espontaneamente em circuitos corticais, com o agrupamento de conexões
que podem vir a ser de alguma significância em desenvolvimento cortical.
Supondo-se que a linguagem tem propriedades gerais de outros sistemas
biológicos, devemos, portanto, buscar três fatores que entram no crescimento da
linguagem no indivíduo: (1) Os fatores genéticos, o tema da gramática universal.
Estas interpretam parte do ambiente como experiência linguística, e determinam
o curso geral de desenvolvimento das línguas atingidas. (2) A experiência, que
permite a variação dentro de uma faixa bastante estreita. (3) Os princípios não
específicos para a faculdade de linguagem.
O terceiro fator inclui princípios de computação eficiente, os quais seriam
de se esperar ser de especial significância para os sistemas tais como a linguagem,
determinando o caráter geral das línguas alcançadas.
Neste ponto, teríamos que passar para uma discussão mais técnica do que
é possível aqui, mas eu acho que é justo dizer que tem havido um progresso
considerável em direção à explicação de princípios em termos de considerações
do terceiro fator. Isto tem acentuado consideravelmente a questão das
propriedades específicas que determinam a natureza da linguagem – de uma
forma ou de outra, o problema central do estudo da linguagem, desde a sua
origem há milênios atrás, e agora tomando novas formas.
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A busca pela explicação de princípios enfrenta tarefas assustadoras.
Podemos formular os objetivos com clareza razoável. A cada passo em direção à
meta, ganhamos uma compreensão mais clara dos universais da linguagem. Deve
ser mantido em mente, no entanto, que tal progresso ainda deixa sem solução
problemas que foram levantados por centenas de anos. Entre eles estão a questão
de como as propriedades ‘denominadas mentais’ referem-se ‘à estrutura orgânica
do cérebro’, e os problemas misteriosos do uso coerente e comum da linguagem,
um problema central da ciência cartesiana.
2. Direitos humanos universais
Estamos agora nos movendo para os domínios da vontade e da escolha e
julgamento, e os fios finos que podem conectar o que se assemelha dentro da
gama de investigação científica para os problemas essenciais da vida humana, em
particular às questões polêmicas sobre os direitos humanos universais. Uma
maneira possível de desenhar conexões é procedendo ao longo das linhas de
observações de Hume, que eu mencionei anteriormente: sua observação de que
a gama ilimitada de julgamentos morais deve ser fundada sobre os princípios
gerais que fazem parte da nossa natureza, embora eles se encontrem para além
dos nossos ‘instintos originais’, que em outro lugar ele tomou para incluir os
‘instintos das espécies naturais’ no que o conhecimento e a crença são fundados.
Nos últimos anos, tem havido trabalhos intrigantes em filosofia moral e
ciência cognitiva experimental que carregam estas ideias adiante, investigando o
que parecem ser intuições morais profundas que muitas vezes têm um caráter
muito surpreendente, em casos inventados. Para ilustrar, ao invés, eu vou dar um
exemplo real que leva diretamente à questão da universalidade dos direitos
humanos.
Em 1991, o economista-chefe do Banco Mundial escreveu um memorando
interno sobre a poluição, no qual ele demonstrou que o banco deveria ser o
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encorajador da migração de poluentes industriais para os países mais pobres. A
razão é que ‘a medição dos custos do prejuízo à saúde pela poluição depende
dos lucros cessantes decorrentes de uma crescente morbidade e mortalidade’,
por isso é racional que o ‘ prejuízo à saúde pela poluição’ seja enviado para os
países mais pobres, onde a mortalidade é maior e os salários são mais baixos.
Outros fatores levam à mesma conclusão, por exemplo, o fato de que as
‘preocupações da poluição estética’ são ‘melhoradoras do bem-estar’ entre os
ricos. Ele destacou, precisamente, que a lógica de seu memorando é ‘impecável’,
e quaisquer ‘razões morais’ ou ‘preocupações sociais’ que pudessem ser aduzidas
‘poderiam ser invertidas e usadas mais ou menos eficazmente contra cada
proposta do Banco para a liberalização’, de tal modo que elas não podem ser
relevantes.
O memorando vazou, e levou a uma reação furiosa, dirigida pelo Secretário
de Meio Ambiente do Brasil, o qual lhe escreveu uma carta dizendo que seu
‘raciocínio é perfeitamente lógico, mas totalmente insano’. Ele foi demitido,
enquanto que o autor do memorando tornou-se Secretário do Tesouro no
governo Clinton e agora é o reitor da Universidade de Harvard. A reação foi
realmente furiosa, levando a evasões e negativas que podem ser ignoradas aqui.
O que é relevante é a virtual unanimidade do julgamento moral de que o
raciocínio é lógico, mas insano. Isto merece um olhar mais atento, agora se
voltando para a história moderna das doutrinas dos direitos humanos.
A codificação padrão dos direitos humanos no período moderno é a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DH), aprovada em dezembro de
1948 por quase todas as nações, pelo menos em princípio. Os DH refletiram um
amplo consenso transcultural. Todos os seus componentes foram levados a ter
um estatuto de igualdade, dos direitos contra a tortura até os socioeconômicos,
tais como os enumerados no artigo 25: ‘Todos tem o direito a um padrão de vida
adequado para a saúde e o bem-estar de si mesmos e de suas famílias, incluindo
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais básicos,
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bem como o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou em outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle’. Estas disposições foram reafirmadas nas
convenções capacitadas da Assembleia Geral e em acordos internacionais sobre
o direito ao desenvolvimento, quase nas mesmas palavras.
Parece razoavelmente claro que esta formulação de direitos humanos
universais rejeita a lógica impecável do economista-chefe do Banco Mundial, se
não como insana, ao menos como profundamente imoral – que foi, de fato, o
julgamento virtualmente universal, pelo menos daqueles dispostos a aparecer em
público.
É, no entanto, importante frisar a palavra ‘virtualmente’. Como é bem
sabido, a cultura Ocidental condena algumas nações como ‘relativistas’, as quais
interpretam a DH seletivamente, rejeitando os componentes desagradáveis. Tem
havido grande indignação sobre os relativistas asiáticos, ou os Comunistas
inefáveis, os quais descendem desta prática degradada. Menos notado é que o
líder do campo relativista é também o líder dos auto-designados ‘estados
iluminados’, o mais poderoso estado do mundo. Vemos exemplos quase que
diariamente, apesar de que ‘ver’ seja, talvez, a palavra errada, uma vez que os
vemos, mas não os notamos. Vou manter para os Estados Unidos, mas isso é
enganoso. Às vezes pode-se estar alguns passos à frente do mundo Ocidental
nestes aspectos, mas há de fato muito pouca diferença, além da distribuição de
força.
Em março de 2005, a imprensa apresentou histórias de capa sobre o
lançamento do relatório anual do Departamento de Estado sobre direitos
humanos ao redor do mundo. O porta-voz na coletiva de imprensa foi Paula
Dobriansky, Subsecretária de Estado para Assuntos Globais. Ela afirmou que
“promover os direitos humanos não é apenas um elemento da nossa política
externa, é a base da nossa política e nossa principal preocupação”. Existe, no
entanto, um pouco mais nesta história. Dobriansky foi Secretária Adjunta de
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Estado para os Direitos Humanos e Relações Humanas nas administrações
Reagan e Bush (pai), e nessa qualidade, ela procurou desfazer o que ela chamou
de “mitos” sobre os direitos humanos, o mais saliente sendo o mito do assim dito
“direitos econômicos e sociais”. Ela denunciou os esforços para ofuscar o discurso
dos direitos humanos pela introdução destes direitos espúrios – os quais estão
entrincheirados na DH, a qual foi formulada pela iniciativa dos EUA, mas a qual o
governo dos EUA rejeita explicitamente, e crescentemente, além do Ocidente
inteiro, dentro da fronteira das doutrinas neoliberais sobre as quais o economista-
chefe do Banco Mundial se fiava.
Gostaria de salientar que é o governo dos EUA que rejeita estas
disposições dos DH. A população discorda fortemente. Um exemplo atual é o
orçamento federal de 2005, juntamente com um estudo das reações comuns a
ele, realizado pela instituição de maior prestígio do mundo para o estudo da
opinião pública. Os apelos públicos para cortes drásticos em gastos militares
estão lado a lado com um forte apelo ao aumento do gasto social: educação,
pesquisa médica, capacitação profissional, conservação e energias renováveis,
bem como o aumento dos gastos para a ONU e a ajuda econômica e humanitária,
e reversão dos cortes de impostos de Bush para os ricos. A política do governo é
drasticamente a oposta em todos os aspectos. Estudos de opinião pública, os
quais demonstram regularmente esta acentuada divisão, são raramente
relatados, para que o público não seja apenas retirado da arena de formação
política, mas também seja mantido inconsciente da opinião geral.
Há, com razão, a preocupação internacional quanto às consequências da
rápida expansão dos déficits gêmeos nos EUA: dos déficits do comércio e
orçamento. Intimamente relacionado está um terceiro déficit: o crescente déficit
democrático, não apenas nos EUA mas geralmente no Ocidente. Isto não é
discutido porque é tolhido pela riqueza e pelo poder, que tem toda a razão para
querer que o público seja em grande parte removido das escolhas políticas e de
sua implementação, uma questão que deveria ser de considerável preocupação,
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para além da sua relação com a universalidade dos direitos humanos. É fácil
deprimir-se ao acrescentar muitos outros exemplos, alcançando o espectro total
dos direitos afirmados nos DH. Eles nos ensinam sobre dois importantes tópicos:
juízos morais universais, e a cultura moral e intelectual de elite em que vivemos,
que dramaticamente e fortemente os rejeita.
3. Conclusões
Finalmente, algumas observações sobre a cena atual. O ano de 2005 marca
o 25º aniversário do assassinato do Arcebispo Oscar Romero, de El Salvador, uma
“voz para os sem voz”, e o 15º aniversário do assassinato de seis dos principais
intelectuais latino-americanos, padres Jesuítas. Os dois eventos estão
enquadrados na terrível década de 1980, na América Central. O Arcebispo
Romero e os intelectuais Jesuítas foram assassinados pelas forças de segurança,
armadas e treinadas por Washington – na verdade, os atuais titulares ou seus
mentores imediatos. O mesmo é verdade para a maioria das centenas de milhares
de outras vítimas. O Arcebispo foi assassinado enquanto realizava uma Missa,
pouco depois de ter escrito ao presidente Carter, articulando com ele para não
enviar ajuda à junta militar brutal em El Salvador, a qual iria “aguçar a repressão
que tem sido desencadeada contra as organizações populares lutando para
defender seus direitos humanos mais fundamentais”. Foi a escalada do terror
estatal, sempre com o apoio dos EUA e o silêncio e cumplicidade Ocidentais. Se
qualquer coisa remotamente semelhante acontecesse na Europa Oriental
naqueles anos, os eventos seriam conhecidos, e os aniversários comemorados –
assumindo, isto é, que o ultraje não tenha levado tão longe quanto uma guerra
nuclear.
O princípio de diferenciação é claro, provavelmente perto de um universal
histórico. Para os poderosos, os nossos próprios crimes não existem. Não
devemos lembrar o destino sombrio daqueles que estavam “lutando para
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defender seus mais fundamentais direitos humanos”, e que têm a
responsabilidade por estas atrocidades.
Nas sociedades que valorizaram sua liberdade, seria desnecessário contar
qualquer coisa disso, porque seria ensinada nas escolas e bem conhecida por
todos. E o mesmo seria verdade para as contínuas atrocidades que tomam lugar
bem agora por forças militares armadas e treinadas por Washington, com o apoio
de seus aliados Ocidentais: para exemplo, na Colômbia, o principal violador dos
direitos humanos no hemisfério, e por muitos anos o principal destinatário da
ajuda militar e treinamento dos EUA. O Departamento de Estado relata que no
ano passado a Colômbia reteve seu recorde de matar mais ativistas sindicais do
que o resto do mundo combinados. No início de 2005, os militares invadiram a
primeira e mais importante das cidades que se declararam uma zona de paz,
assassinando um de seus fundadores e outros, incluindo crianças com idade entre
2 e 6 anos.
Pouco se sabe sobre esses assuntos, além dos círculos de pessoas que se
dedicam a defender os direitos humanos universais.
Estes poucos exemplos servem para nos lembrar que não estamos
meramente envolvidos em seminários sobre princípios abstratos, ou discutindo
culturas remotas que não compreendemos. Estamos falando de nós mesmos, e
os valores intelectuais e morais das comunidades da elite privilegiada em que
vivemos. Se não gostamos do que vemos quando olhamos para o espelho
honestamente, nós temos todas as oportunidades para fazer algo sobre isso.
Política e imprensa no Paraná: as eleições estaduais de 1955 e 1960
Cleyton Pereira Lutz1
Resumo: O presente trabalho aborda as eleições de 1955 e 1960 para o governo do Estado do
Paraná, Brasil, sob o ponto de vista dos jornais curitibanos Gazeta do Povo e O Estado do Paraná,
analisando a ligação dos candidatos ao governo do Estado com cada publicação, além de verificar
qual o discurso de modernização do Paraná feito pelas publicações para seus respectivos
candidatos. Assim, é possível comparar se as propostas veiculadas pelos periódicos correspondem
às mesmas destacas pela bibliografia que trata do tema, principalmente as obras relacionadas à
história política do Estado no período estudado, analisando a similaridade dos discursos oficiais
com os produzidos por parte da imprensa estadual, sempre ressaltando seus vínculos com os
partidos políticos paranaenses.
Palavras-chave: eleições; política paranaense; imprensa paranaense; jornal Gazeta do Povo;
jornal O Estado do Paraná.
1. Redemocratização e contexto político no Paraná
Terminado o Estado Novo (1937-1945) e o período de Manoel Ribas como
interventor e governador do Paraná (1932-1945), os governadores do Estado
voltaram a ser escolhidos através de eleições diretas. No retorno do processo
democrático, tanto em âmbito nacional quanto estadual, se acirraram as disputas
eleitorais marcadas pelo confronto entre grupos políticos, mas que apesar da
oposição entre si possuíam em comum a apresentação de propostas de
“modernização” para o Paraná2.
Tais propostas passaram a ser marcadas pelo debate mediado através dos
jornais, importantes meios de comunicação no período, que se vinculavam a
grupos políticos específicos, escolhendo determinados candidatos para apoiarem
em cada eleição. As publicações serviam para propagar os ideais de
1 Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS). Email: [email protected] 2 O discurso de “modernização” do Paraná não é uma novidade do período e já havia sido feito
anteriormente, durante o governo de Ribas no Estado. A proposta colocada por ele em prática se
caracterizou por iniciativas vinculadas à modernização burocrática do Paraná, no incentivo à
industrialização e na criação de uma infraestrutura, principalmente na área de transportes (Oliveira,
2004, p. 26-7).
23
modernização e propostas dos candidatos através de entrevistas, reportagens e
colunas, articulando o discurso de maneira consonante com o dos editoriais, nos
quais cada jornal defende abertamente seu candidato escolhido.
O embate entre os veículos de comunicação impressos durante a década
de 1950 teve como principais rivais os jornais Gazeta do Povo, criado em 1919, e
O Estado do Paraná, surgido em 1951, ambos de Curitiba – o último foi criado
justamente para fazer oposição a influência da Gazeta, publicação de maior
circulação na capital do Paraná até então.
Apesar de definir-se como um jornal “apolítico e independente”, desde sua
fundação (OLIVEIRA FILHA, 2000, p.86), a Gazeta contava entre seus acionistas
com o empresário e governador do estado Moysés Lupion, que adquiriu parte da
propriedade do jornal durante a expansão dos negócios de suas empresas, entre
1949-1951, ligadas inicialmente a indústria madeireira (KUNHAVALIK, 2004, p. 88-
9). Sucessor de Ribas no governo do Estado, Lupion venceu as eleições de 1947
(IPARDES, 1989, p. 210) e se tornou figura presente na política paranaense a partir
do período.
Como resposta ao espaço conseguido pelo seu rival político, Bento
Munhoz da Rocha Neto, derrotado por Lupion em 1947, ao vencer as eleições
para o governo do estado em 1950, articulou a criação de O Estado do Paraná no
ano seguinte (OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 91), criando um espaço para responder à
Gazeta. A partir do período, além da disputa por leitores e anunciantes, as
publicações se caracterizam pelo embate discursivo no campo político, se
vinculando a grupos distintos.
Com base nessas considerações, convém analisar as duas primeiras
eleições para o governo do Estado após ser estabelecida a concorrência entre
Gazeta e O Estado, ocorridas em 1955 e 1960, enfatizando as ligações entre os
jornais e os candidatos. Além disso, também há a preocupação com os aspectos
discursivos utilizados pelos jornais para propagar o discurso de modernização de
24
seus respectivos candidatos, uma vez que no período pode ser notada uma
mudança no ideal de modernização do Paraná.
Enquanto nas décadas de 1940 e 1950 o desenvolvimento do Paraná
estava ligado à ocupação territorial do Estado, na década de 1960, o objetivo
passou a ser a industrialização (IPARDES, 1989, p. 86-7). Assim, torna-se
importante verificar se os jornais acompanham esses discursos através das
mensagens dos governadores ao poder legislativo3.
2. Escolha e uso dos jornais
Em uma sociedade que sofre forte influência midiática, os jornais são uma
importante fonte de análise das características políticas de determinado período,
uma vez que a mídia fornece a representação que uma sociedade política faz de
si mesma (JEANNENEY, 2003, p. 213).
Devido à relação bastante próxima entre imprensa e opinião pública4 –
sendo que vários aspectos da última podem ser revelados através da primeira
(BECKER, 2003, p. 195) – a presente pesquisa se concentra sobre os grupos
políticos que se utilizam da imprensa, característica de diversos outros trabalhos
do gênero, voltando seu olhar exclusivamente para o Paraná, sempre levando em
consideração elementos relacionados à publicação como o formato, o tipo de
papel, o uso de publicidades, o padrão da capa, o uso de fotos, a estrutura interna
das publicações, os principais colaboradores/responsáveis pelos jornais e suas
respectivas biografias, sem esquecer ainda preocupações com o público-alvo e a
relação do jornal com o mercado (LUCA, 2008, p. 118-9). Trata-se de considerar
3 O trabalho do Ipardes (1989) se baseia nas mensagens oficiais enviadas pelos governadores ao
poder legislativo paranaense. 4 Segundo Morel (2008), a “opinião pública” possuía dois sentidos básicos e contrários, quando
do surgimento da expressão no Brasil nas duas primeiras décadas do século XIX, ligados aos
impressos: um de guiar a opinião das pessoas através da ação de letrados/intelectuais e outro de
resumir a opinião da maioria.
25
o jornal como fonte, e ao mesmo tempo, objeto de pesquisa devido à relação das
publicações com os grupos políticos no período.
Para a análise política do período escolhido, os jornais são de extrema
importância, uma vez que permitem historicizar a política, fornecendo diferentes
concepções e múltiplas práticas em tempos históricos distintos (D’ALESSIO, 2008,
p. 138). Cabe também destacar a importância da imprensa para o
desenvolvimento da “história política revisada”, caracterizada pelo retorno das
preocupações históricas com aspectos políticos, baseado em uma série de
acontecimentos do século XX tal como guerras, a importância das políticas
externas, as crises econômicas, a ênfase em políticas públicas, nas relações entre
política e economia, etc. (RÉMOND, 2003, p. 32). Assim, os meios de comunicação,
apesar de não apresentarem realidades políticas por natureza, podem apresentá-
las em virtude do destino que recebem (Ibid., 441).
3. Os jornais Gazeta do Povo e O Estado do Paraná
Fundado em 1919, sendo o jornal paranaense mais antigo em circulação,
a Gazeta do Povo foi criada graças do empenho de uma dezena de ricas famílias
curitibanas, que participaram da montagem do parque gráfico da publicação
(OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 87). Apesar de se declarar desde o início “independente”
e “apolítico”, a Gazeta logo na sua primeira edição defendeu a candidatura de Rui
Barbosa a presidência da república.
Na verdade, o caráter político presente na imprensa brasileira se verifica
desde o início do jornalismo no Brasil (COHEN, 2008, p. 104). Inclusive, o ideal de
modernização técnica dos jornais brasileiros a partir do começo do século XX e o
discurso de privilegiar os fatos em detrimento da opinião pode ser considerado
um gesto retórico, uma vez que a imprensa continuava a ter uma estreita ligação
com a política (LUCA, 2008, p. 153).
26
No auge da expansão dos negócios da família Lupion, ligada
principalmente a indústria madeireira, no final da década de 1940 e início da de
1950, o então governador adquiriu 50% das ações da Gazeta, a incluindo em seus
negócios relativos à fabricação de papel (OLIVEIRA FILHA, 2004, p.91).
Nos embates políticos travados após o fim do período de Manoel Ribas no
governo do Estado, Bento Munhoz, que venceu as eleições de 1950 depois de
perder as de 1947 para o próprio Lupion, fez parte da criação de uma nova
publicação, O Estado do Paraná, logo em seu primeiro ano de governo, com o
objetivo de ter um veículo capaz de expressar opiniões favoráveis ao seu mandato
(KUNHAVALIK, 2004, p.190), já que sofria oposição de dois dos jornais curitibanos
do período, a Gazeta e O Dia, ambos ligados a Lupion – Munhoz, curiosamente,
chegou inclusive a escrever para ambas as publicações na década de 1940
(KUNHAVALIK, 2004, p.153).
Com o apoio de Aristides Merhy, José Luiz Guerra Rego e Fernando
Camargo, este empresário da Caixa Econômica Federal, o jornal foi fundado em
1951 e logo se tornou porta-voz do então governo, recebendo, além de verba
publicitária estatal, os editais e decretos oficiais (OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 91).
4. As eleições de 1955
Na eleição de 1955 para o executivo estadual, a Gazeta apoiou
abertamente o acionista do jornal, Lupion, candidato que concorria pela segunda
vez ao governo do Estado. O apoio se deu através de editoriais, reportagens
assinadas e artigos de opinião.
Com relação às propostas apresentadas por Lupion no período analisado,
entre os dias 27 de setembro e 3 de outubro, algumas se destacam como
prioridades no discurso “lupionista”. Entre elas está a construção de mais estradas,
em especial a que ligaria Curitiba a Guaratuba: “Cabe, portanto aqui, uma
27
sugestão no sentido de que as autoridades estudem um traçado tal que demanda
de Curitiba e a ligue ao município de Guaratuba”5.
As principais propostas de Lupion, candidato pela coligação PDC-PSD-PTN,
se encontram publicadas no plano de governo do candidato, veiculado pela
Gazeta em 1º de outubro de 1955. O documento está dividido em áreas como
barateamento do custo de vida, energia elétrica/industrialização, habitação,
transporte/exportação (que surge novamente como uma das prioridades
discursivas de Lupion), saúde, entre outras.
O tema transporte/estradas é abordado também no item “barateamento
do custo de vida”, além de receber um subtítulo destinado a tratar unicamente
do tema:
Ao nosso ver duas questões se ligam diretamente ao assunto: o
de transporte e o de crédito. É preciso assegurar escoamento
oportuno e eficiente da produção rural para que os alimentos
chegue aos consumidores6.
O suporte financeiro a ser oferecido aos agricultores também é citado
como essencial para o desenvolvimento da economia estadual. Além de se
preocupar com temas como a habitação, propondo iniciativas como
financiamento, o documento volta a focar os aspectos econômicos necessários
para o desenvolvimento do Estado como energia elétrica, industrialização,
transportes e exportação:
Temos que vencer o estágio da economia essencialmente
agrícola em que nos encontramos. A industrialização
incipiente do Paraná tem que ser incentivada e para isso há
que se produzir energia elétrica, aproveitando as
magníficas possibilidades naturais do território
paranaense7.
5 Rodovia para Guaratuba. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 3, 27 set. 1955, nº 639. 6 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 1, 1º out. 1955, nº 643. 7 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 7, 1º out. 1955, nº 643.
28
Com relação à construção de estradas, Lupion promete privilegiar o que
ele chama de “estradas-tronco”, citando os trechos Curitiba-Paranaguá, Curitiba-
Ponta Grossa, Apucarana-Ponta Grossa e Ponta Grossa-Guarapuava, além do já
citado entre Curitiba-Guaratuba. Ele comenta a necessidade de escoamento,
principalmente com relação ao norte do Paraná: “O escoamento de cereais do
norte deixará de ser problema para ser fator de destaque no enriquecimento
regional”8.
Na campanha por seu segundo mandato, Lupion privilegia em seu discurso
a construção de estradas, como forma de integrar o Estado e escoar a produção
evitando a perda de rendas com o transporte através de estradas paulistas,
seguindo uma tendência iniciada com o primeiro governo de Lupion e seguida
pela gestão de Bento Munhoz (IPARDES, 1989, p.75).
No entanto, no programa de governo de Lupion, publicado na Gazeta, fica
ausente a temática da ocupação do Paraná, assunto pertinente na gestão do
mesmo e de Bento Munhoz, principalmente graças à necessidade de ocupar o
território e incentivar o incremento econômico no Estado (Ibid., p.43).
É necessário destacar que a campanha de Lupion aqui analisada se refere
a sua segunda tentativa se chegar ao governo do Estado. Talvez por isso mesmo,
as prioridades dele estejam em um período de transição que antecede os
governos de Ney Braga (1961-1964) e Paulo Pimentel (1966-1971), marcados pelo
incentivo da industrialização em detrimento do apoio a ocupação do Estado,
características que marcam um novo estágio na economia paranaense – uma vez
que o território já se encontra ocupado – e uma ruptura com as gestões anteriores
(Ibid., p.86-7). Isso explica também a preocupação de Lupion com a
industrialização, tema mais recorrente nas gestões posteriores.
Além das propostas apresentadas, a Gazeta se caracteriza na reta final da
campanha de 1955 pelo ataque a gestão de Bento Munhoz, principalmente
8 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 7, 1º out. 1955, nº 643.
29
através de denúncias de corrupção contra o ex-governador, que apoia Mário de
Barros, adversário de Lupion e candidato pela coligação PR-PTB. Numa tentativa
de desqualificar o apoio recebido pelo concorrente, Lupion – muito criticado pela
forma como geriu a distribuição de terras no Paraná, tendo, segundo seus
detratores, beneficiado exclusivamente suas empresas (SALLES, 2004, p.88) –
tenta inverter os papeis, passando a acusar Munhoz.
Uma série de textos intitulados “Devassa nas podridões do bentismo”,
destaca o que os textos chamam de superfaturamento em obras públicas na
gestão de Munhoz, apropriação indébita do dinheiro público e enormes
empréstimos adquiridos, que teriam acarretado em grandes dívidas públicas. Já
O Estado, na condição de concorrente da Gazeta e ligado a Munhoz, conforme já
citado, apoia Mário Barros, principal adversário de Lupion. Apesar de faltar ao
jornal a publicação de um plano de governo, como foi feito por Lupion na Gazeta,
impedindo uma análise mais aprofundada do padrão de modernização do Estado
idealizado por Barros, é possível identificar algumas características do discurso
realizado em prol da candidatura do mesmo.
Além da coluna “Panorama Político Estadual”, que apresenta informações
sobre a campanha do candidato, o jornal publica uma série de matérias sobre o
apoio recebido por Barros em diversas cidades do Paraná. Outro ponto a ser
destacado é a vinculação feita entre a gestão de Munhoz e a candidatura de
Barros. Uma matéria do dia 28 de setembro de 1955 tem como título “Aspectos
da administração Munhoz da Rocha” – O Estado também atua como órgão oficial
do governo ao publicar os editais oficiais do executivo paranaense.
No texto são destacadas ações de Munhoz como o aumento do
patrimônio líquido da administração estatal, a construção de estradas – tema
também de Lupion – e a realização de obras como a Casa do Estudante e a
Colônia Agrícola Penal, além dos ataques a Lupion em casos qualificados pelo
jornal como de corrupção.
30
A campanha feita pelo jornal a favor de Barros também procura vincular o
candidato a Getúlio Vargas, morto um ano antes e também pertencente ao PTB,
conforme demonstra uma mensagem publicada um dia antes das eleições:
Ao encerrar nossa memorável campanha cívica, pela
redenção do Paraná, volto o pensamento para o bravo
povo paranaense, para seus trabalhadores e para suas
famílias [...] Nada, porém, conterá a marcha desta cruzada,
porque conosco está a proteção de Deus em torno da
bandeira trabalhista de Vargas [...] Cumprirei meu dever
para com o povo, marchando ombro a ombro com os meus
devotados trabalhistas, lídimos continuadores da caravana
dos ideais que Getúlio Vargas repassou pelo território da
pátria para redimi-la9.
Também seguindo uma tendência iniciada por Bento Munhoz, que visava
fortalecer o papel de Curitiba enquanto capital e principal cidade do Estado
(KUNHAVALIK, 2004, p.144), alguns textos publicados por O Estado na última
semana antes da eleição de 1955 enfatizam a situação da cidade na gestão de
Lupion:
O atual senador [e candidato ao governo, Lupion] foi o
administrador do Estado por quatro longos anos e esta era
a sede do governo – uma sede que então dependia
integralmente da boa ou má vontade do chefe do
executivo nacional. Ele nada fez. Ou antes, fez. Fez coisas
negativas. Agiu contra os interesses da capital do Paraná10.
Outro texto também destaca o que o jornal qualifica como “abandono” de
Curitiba: “A capital completamente abandonada de serviços públicos com suas
repartições espalhadas em casas particulares não tendo uma só de suas estradas
de acesso em condições de tráfego”11.
9 Mensagem de Mário de Barros ao povo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 2 out. 1955, nº 1257. 10 Um comício e uma pergunta. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 28 set. 1955, nº 1253. 11 Aspectos da administração Munhoz da Rocha. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 8, 28 set. 1955,
nº 1253
31
5. As eleições de 1960
Nas eleições para o governo do Paraná realizadas em 1960, a Gazeta faz
campanha para Plínio Costa, candidato ao governo pelo PSD e apoiado pelo
então governado Moysés Lupion – o próprio jornal o trata como “candidato
situacionista”. Nas páginas do periódico, Costa é exaltado, pelo que o jornal
considera, por sua “competência administrativa”, dominando a burocracia
necessária ao chefe do executivo estadual:
Técnico de projeção administrativa em vários setores em
que tanto já se distinguiu, laurido nos problemas que teve
que enfrentar, cabal experiência de todas as questões que
implicam no nosso maior progresso, o futuro ocupante do
Palácio do Iguaçu tem o êxito do seu governo assegurado
pelo renome de sua operosidade e pelo respeito que
inspiram as demais12.
Vale ressaltar que essa mesma ênfase com relação à competência
administrativa, valorizando aspectos tecnocráticos, é destacada em Ney Braga,
outro candidato que concorre ao governo do Estado em 1960 (KUNHAVALIK,
2004, p.284). Além de Lupion, Costa também aparece ligado às propostas de
Marechal Henrique Lott, candidato a presidência do Brasil na eleição daquele ano.
Com relação à Lott, o jornal propaga que as propostas do candidato em
âmbito nacional – relativas, por exemplo, a construção de estradas e aplicação do
desenvolvimentismo13 – beneficiarão também o Paraná. Na verdade, o momento
político vivido no Paraná, e no Brasil, se caracteriza pelo desenvolvimentismo –
ou seja, tal discurso não restringe apenas a campanha de Costa realizada via
12 Plínio. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 3, 1º out. 1960, nº 12.415. 13 Segundo Magalhães (2001), o Paraná nas décadas de 1950 e 1960 adota uma política
subordinada a do Governo Federal, caracteriza pelo “desenvolvimentismo”, que teve como
principal instrumento o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) nos períodos Juscelino
Kubitschek e João Goulart.
32
Gazeta. O termo, impulsionado na presidência de Juscelino Kubitschek, também
será mais tarde um dos traços do governo de Ney Braga (MAGALHÃES, 2001,
p.66), adversário de Costa e vencedor das eleições de 1960.
Enquanto faz campanha para Costa, a Gazeta também exalta as realizações
de Lupion, governador no período e que apoia o candidato do PSD. Entre elas
estão o término de alguns trechos de estradas pelo Estado, como, por exemplo,
um entre Apucarana e Arauva, fato tratado como “marco decisivo para o governo
econômico do estado” 14 . É necessário observar que a temática referente à
construção de estradas perpassa o período analisado independente da prioridade
de cada governo, seja ela povoar o território (gestões Lupion e Munhoz) ou
incentivar a industrialização (gestões Braga e Pimentel).
Ainda sobre o projeto de industrializar o Estado, no período analisado, não
há qualquer menção a proposta de Costa na área, embora o trecho citado
anteriormente demonstre a preocupação do jornal com o desenvolvimento
econômico do Estado. Nas eleições de 1960, por sua vez, O Estado apresentou
matérias e textos favoráveis a dois dos candidatos: Ney Braga, candidato pela
coligação PDC-PL, e Nelson Maculan, candidato pelo PTB. Enquanto os textos
favoráveis a Braga ocupam normalmente as páginas 3 e 4, que incluem editorial
e textos de opinião do periódico, o espaço destinado a Maculan é na maioria das
vezes a página 7.
É importante destacar que, apesar da divulgação de textos que fazem
propaganda aos dois candidatos, a posição oficial do Estado é apoiar Braga, haja
vista os editoriais – que trazem a opinião do veículo – que exaltam as qualidades
do candidato. Com relação à posição dúbia adotada pelo jornal a explicação mais
provável é que as matérias realizadas pelo periódico tenham sido incentivadas
pelo apoio maciço de grandes empresários a candidatura de Braga (KUNHAVALIK,
2004, p.274), incluindo o sogro do futuro governador Paulo Pimentel, um dos
14 Marco decisivo para o progresso econômico do estado. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 4, 2 out.
1960, nº 12.416.
33
maiores proprietários de terra do Estado e um dos principais financiadores da
campanha de Braga.
Ainda que se pese o poder do grupo econômico ligado a Braga, tido como
um legítimo representante da burguesia comercial e industrial (Ibid., p.272), a
referência constante que O Estado faz a Maculan se deve muito provavelmente
ao fato de o candidato ser apoiado pelo ex-governador Bento Munhoz, um dos
fundadores do jornal e, ao que tudo indica, figura ainda influente na publicação
antes das mudanças que ocorreriam no jornal ao longo da década de 1960
(OLIVEIRA FILHA, 2004, p.93).
As propostas de Braga veiculadas pelo jornal, assim como as de Costa na
Gazeta, abordam o desenvolvimentismo, embora O Estado seja mais direto
quanto ao tema – cabe ressaltar ainda que para as eleições presidenciais o jornal
apoia Janio Quadros. Ao tratar da necessidade de desenvolvimento do Estado, a
publicação apela para o que ela qualifica como falta de força do Paraná em
âmbito nacional. No editorial do dia 29 de setembro, tal insatisfação fica clara:
Num momento em que todos os Estados do Brasil se
beneficiam de créditos e auxílios federais para a realização
de empreendimentos necessários ao seu desenvolvimento
econômico e ao bem-estar de suas populações, o Paraná
não recebeu nem a 10º parte do que tinha direito15.
No mesmo texto, a direção do jornal reclama a falta de representantes
paranaenses no Instituto Brasileiro do Café (IBC), apesar de o Estado ser o maior
produtor nacional, além de pedir pela construção de uma estrada federal, a BR-
2, que ligaria o Paraná a Santa Catarina e São Paulo. A matéria critica ainda o nível
de industrialização do Estado: “No setor de energia elétrica, o espetáculo é o
mesmo: todo o Brasil caminha para a industrialização e o Paraná fica para trás” 16.
15 Queremismo dele mesmo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 29 set. 1960, nº 2.787. 16 Queremismo dele mesmo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 29 set. 1960, nº 2.787
34
Na verdade, as melhorias relativas às rodovias e sistema de energia elétrica
são consideradas essenciais para o processo de industrialização do Paraná, a
“nova vocação econômica” do Estado (IPARDES, 1986, p.96) e principal projeto de
modernização do Paraná nas gestões Braga e Paulo Pimentel (1966-1971). O
editorial do dia seguinte volta a fazer menção à opinião do jornal de que o Paraná
precisava ganhar força a nível nacional, por ocasião da passagem de Jânio
Quadros pelo Estado: “Seu pronunciamento foi incisivo: o Paraná está
abandonado pelo governo federal e é vítima das maiores injustiças” 17.
Fortalecer o Estado no contexto nacional é também a principal proposta
de Maculan. Em um texto do dia 2 de outubro, no qual várias personalidades
políticas do Estado falam sobre a candidatura dele, isso fica evidente:
“Alcançamos o significado político e social da sua empreitada de que o nosso
Paraná deverá sair unificado e renovado para seu grande futuro na Federação
Brasileira”18.
O mesmo texto aborda a necessidade de integração entre as regiões do
Estado – consequentemente Maculan é tido como o candidato ideal para a
realização de tal intento: “A missão do vereador Nelson Maculan será de melhorar
as relações norte-sul, fazendo com que os homens do norte melhor conheçam
os do sul, e que os homens do sul melhor conheçam os do norte”19, afirma Luiz
Carlos Tourinho, membro do PSP.
Em outro trecho, o então deputado estadual pela UDN, Haroldo Perez
destaca a importância de Maculan para o Norte do Paraná e para a integração do
Estado: “Não poderíamos deixar nós do Norte, deixar de acompanhar um
candidato identificado com os problemas da região que, além do mais, reúne
17 Lapa. O Estado do Paraná. Curitiba, p.4, 30 set. 1960, nº 2.788. 18 É Nelson Maculan que vai governar o Paraná. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 7, 1º out. 1960,
nº 2.789. 19 Ibid., p. 7
35
condições para administrar o Paraná com um sentido de integração entre todas
as regiões do Estado” 20.
6. Considerações finais
Conforme explicado anteriormente, o objetivo do artigo foi verificar o
posicionamento dos jornais curitibanos O Estado do Paraná e Gazeta do Povo
frente aos candidatos ao governo do Paraná nas eleições de 1955 e 1960, além
de analisar o discurso criado pelos periódicos em torno do ideal de modernização
do Estado para o candidato defendido pelas respectivas publicações.
Com relação ao primeiro item, nota-se que os jornais apoiam candidatos
concorrentes nas duas eleições. No pleito de 1955, a Gazeta faz campanha para
Moysés Lupion da coligação PDC-PSD-PTN, por razões já explicadas no trabalho,
enquanto O Estado defende a candidatura de Mário de Barros da coligação PR-
PTB. Já nas eleições de 1960, a Gazeta apoia Plínio Costa do PSD, enquanto O
Estado publica textos positivos a dois candidatos: Ney Braga, coligação PDC-PL, e
Nelson Maculan, PTB – embora seja importante destacar que o apoio maior da
publicação é dado a Braga, como é possível notar através dos editoriais.
Com relação ao discurso de modernização articulado pelos jornais para
seu candidato escolhido, algumas considerações são necessárias sobre o assunto.
No curto período analisado, sete dias antes de cada eleição, especificamente com
relação ao pleito de 1955, notou-se a ausência do tema “imigração”, principal
ideal de modernização para o Paraná no período (IPARDES, 1989, p.47), para
ambos os candidatos/jornais – o tema foi uma constante nas políticas de governo
entre 1946 a 1960, gestões de Lupion, duas vezes, e Bento Munhoz da Rocha
Neto, de acordo com as mensagens enviadas por ambos ao legislativo.
Também é importante destacar que o tema “industrialização”,
característico dos dois governos posteriores – Ney Braga, de 1961 a 1964, e Paulo
20 Ibid., p.7.
36
Pimentel, de 1966 a 1971 (Ibid., p.86-7) – já se encontra presente, principalmente
na campanha de Lupion. A presença do tema em uma época anterior a marcada
pelo discurso em prol da industrialização se deve ao fato de o segundo governo
Lupion (1956-1961) estar em um período de transição entre sua gestão anterior,
de Bento Munhoz e a de Braga e Pimentel. Pelo mesmo motivo, a temática da
ocupação territorial está ausente do discurso “lupionista” no período.
Já nas eleições de 1960, as principais propostas dos candidatos são o
fortalecimento do Paraná em âmbito nacional e o desenvolvimento do Estado
através da criação de estradas e indústrias, temas integrantes do
desenvolvimentismo aplicado no contexto nacional do período. A proposta da
criação de indústrias, por sinal, substitui a imigração como prioridade na pauta
do governo estadual, a partir do começo da década de 1960 (IPARDES, 1989, p.86).
Convém destacar ainda que a construção de estradas já é tema das
preocupações dos candidatos, pelo menos no aspecto discursivo, nas eleições de
1955, mostrando a pertinência do assunto independente da prioridade
governamental, seja ela a ocupação do território ou o processo de
industrialização do Estado. Verifica-se aí uma permanência que independente de
uma possível ruptura nas prioridades do executivo paranaense.
7. Bibliografia
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Estigma territorial e seus efeitos: Nova Rosa da Penha II – Cariacica ES
Igor Vitorino da Silva1
Resumo: Por que não dizer onde mora? O que se deseja esconder? Do que se deseja escapar?
No desenvolvimento de uma pesquisa nos anos 2007-2008 sobre a expansão da periferia no
Espírito Santo, optou-se por estudar a formação de um bairro periférico, denominado Nova Rosa
da Penha II no município de Cariacica (ES), pertencente à região metropolitana do Estado. Assim,
este artigo discute a visão que esses moradores têm sobre os efeitos negativos do estigma
territorial a partir do controle político sobre este segmento em um contexto instituído sobre o
pobre da e na periferia da cidade. A metodologia usada foi fazer o levantamento bibliográfico e
documental, através de consulta ao acervo eletrônico dos jornais A Gazeta e A Tribuna dos anos
de 2006-2008. Com leitura de entrevistas, busca-se apreender os significados do conceito de ser
pobre e viver em territórios periféricos estigmatizados.
Palavras- chave: território; estigma; pobreza; urbanização.
“As cidades também acreditam ser obra da
mente ou do acaso, mas nem um nem o outro
bastam para sustentar as suas muralhas. De
uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou
setenta e sete maravilhas, mas a resposta que
dá às nossas perguntas. Ou as perguntas que
nos colocamos para nos obrigar a responder,
como Tebas na boca da Esfinge”. Calvino2
1. Introdução
“Mora mal, hein!”. Esta é uma expressão que quase todos os dias os
moradores dos diversos espaços periféricos do Brasil (favelas, bairros pobres,
loteamentos precários, cortiços, etc.) ouvem, inclusive, dos próprios amigos de
periferia, quando dizem onde moram. Essa é uma fala recorrente quando estes
moradores revelam o lugar em que vivem ao final de um dia de serviço, ou
1 Professor titular de História. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato
Grosso do Sul (IFMS), campus Nova Andradina.
2 Calvino, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
39
quando participam de algum processo de cadastramento ou, ainda, quando estão
em um bar, uma igreja. Estes, de certa forma, já se acostumaram com o olhar
sarcástico, de espanto ou ainda aquele comentário malicioso das pessoas. Para
quebrar o clima de constrangimento tentam, muitas vezes, dar uma resposta
bem-humorada: “eu não moro, eu me escondo”. O que, muitas vezes, acaba
reafirmando esse preconceito.
O preconceito territorial pode ser entendido como o julgamento
preestabelecido de grupos sociais e indivíduos a partir de imagens, ideias e
valores assentados em generalizações estigmatizantes sobre outras pessoas e os
territórios onde estas vivem, e isso independe do conhecimento da realidade e
da experiência de vida daqueles. Tal prática social expõe os moradores daquelas
áreas urbanas difamadas e malvistas a situações de insultos, humilhações e
constrangimentos que, muitas vezes, produzem indignação, aversão ao lugar em
que vivem e distúrbios psicoemocionais.
Assim, percebe-se que não se deve subestimar o peso e as consequências
do estigma territorial, pois elas podem induzir ao sentimento de indignidade
pessoal que pode ter consequências diretas sobre as relações interpessoais e
afeta negativamente as oportunidades nos círculos sociais, nas escolas e nos
mercados de trabalho (WACQUANT, 2005, p.33).
O que os moradores dos espaços periféricos pensam de si mesmos é
ignorado e negligenciado pela força do estigma territorial que homogeneíza a
realidade social dos lugares, universaliza eventos particulares e nega a
representação independente de seus moradores. A historiadora Geisler (2004),
investigando a situação das favelas cariocas, aponta a dramaticidade das imagens
negativas sobre esses lugares:
Desrespeitada em suas particularidades, a favela é vista sob um
único e, muitas vezes, monocromático prisma: território de
40
aglomeração de camadas pobres, lugar de privação e perigo.
(GEISLER, 2004, p. 31-32).
Essa homogeneização imposta pelo estigma territorial reafirma as
observações de Santos (2007, p.139), sobre as relações entre cidadania e território:
“o valor do indivíduo depende, em larga escala, do lugar onde está”. Assim o lugar
em que os indivíduos e grupos sociais vivem na cidade é tomado como
texto/contexto para definir como se deve vê-los, pensá-los e tratá-los. Para
Raffestin (1993), o território “não poderia ser nada mais que o produto dos atores
sociais” [...]. Deste modo, existe um modelo de território, dominado por relações
de poder, traduzidas por malhas, redes e centralidades cuja permanência é
variável, mas que constituem invariáveis na “qualidade de categorias obrigatórias”.
Isto porque o espaço é anterior ao território, e este só se instaura com o
estabelecimento na e pela manutenção de relações de poder. Neste sentido,
argumenta Soares (2007), discutindo as contradições do espaço urbano brasileiro:
Os direitos democráticos são amplamente garantidos, na letra da
Constituição, mas a prática os distribui de acordo com idade,
gênero, cor e classe social – e local de moradia, posto que a
segregação seja também espacial, ou melhor, que a segregação
especificamente espacial tem sua especificidade. (SOARES, 2007,
p.19).
Costa (2004), analisando os significados da moradia e a hierarquia social,
revela os efeitos perversos do estigma territorial na vida urbana:
moradia representa o homem no mundo e é através do seu
endereço fixo que ele confirma seu lugar no espaço urbano
e na hierarquia social. Assim sendo, da mesma forma que
as condições de vida de uma pessoa se refletem na
qualidade da sua habitação, a relação da sua habitação com
o resto da cidade reflete a própria relação social entre o
indivíduo e sua sociedade (COSTA, 2004).
41
Essas populações urbanas não somente são vítimas da experiência da
violência de negação da qualidade vida e da habitação, mas também da negação
do direito de fala e de representação do lugar onde vivem. Na realidade, o
estigma territorial acaba funcionando como um mecanismo de controle político
dessas populações urbanas, principalmente quando estas passam a se ver e se
perceber a partir das imagens, ideias e valores impostos por ele, desvalorizando-
se, e até mesmo, negando-se o lugar em que moram.
É quase sintomático que se faça a associação cruel entre “camadas pobres
e classes perigosas” (ZALUAR, 2004), fortalecendo a relação entre
pobreza/violência/criminalidade nas periferias. Torna-se válido tratar os
referenciais característicos desta configuração da pobreza urbana: a periferia
torna-se sinônimo de tudo que é ruim, feio, ameaçador e inseguro tornando
“natural” a desqualificação social do “pobre” encarnada na imagem do
suspeito/perigoso/violento – potencialmente criminalizável e submetido a um
processo de acusação social a priori (MISSE, 2006a).
As relações de vizinhança que eram solidárias e amistosas na maioria das
vezes (ex: mutirão para fazer a laje da casa do vizinho, reunir todos em uma
mesma casa para ver televisão) tornam-se relações de medo da violência, fazendo
com que os próprios moradores se tornem “olhos” de setores da segurança
pública vigiando, inspecionando e tentando controlar os riscos à tranquilidade e
a segurança de sua família (colocando grades, chegando em casa o mais possível),
tornando-se um refém do seu medo. Afinal, ele não quer ser visto ou reconhecido
como “alguém do mal”. Assim, os espaços urbanos apartados e afastados desses
imperativos passam a se constituir por sinais de insegurança, desordem, pavor e
terror que marcam a ordem urbana contemporânea, sendo reconhecidos como
“zonas proibidas e a serem evitadas”, intensificando o estigma territorial.
42
Raúl Zivechi (2008), docente e investigador sobre movimentos sociais na
Multiversidad Franciscana da América Latina, e colaborador mensal do Programa
das Américas afirma:
As periferias urbanas dos países do terceiro mundo têm se
convertido em cenários de guerra, onde os Estados tentam
manter uma ordem baseada no estabelecimento de um tipo de
“cordão sanitário” que consiga isolar os pobres da sociedade
normal. (ZIVECHI, 2008).
Pierre Bourdieu (1997, p.160) certamente diria que: “[...] a posição de um
agente no espaço social se exprime no lugar do espaço físico em que está situ-
ado”. Este lugar definido pela exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o
constituem se reproduz no espaço físico e nas estruturas mentais sendo incorpo-
rado por elas. É nesse ambiente que o poder se afirma e se exerce sob a forma
de uma violência simbólica capaz de criar imagens, discursos e práticas sociais
que definem esse lugar social conferido aos agentes ou da sua posição de classe,
e estes tem o mesmo resultado de poder sobre a forma como essas pessoas se
veem.
O coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Sócio-
Espacial da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Marcelo Lopes de Souza, juntou
as palavras gregas phobos, que quer dizer medo, e pólis, que significa cidade, para
criar o neologismo fobópole. O termo sintetiza a imagem de uma cidade onde o
medo assume presença acentuada nas conversas diárias e nos jornais e boletins
da grande imprensa. Esse imaginário do medo e da insegurança aponta
Wacquant (2001, p.32) produz:
“regiões problema”, “áreas proibidas”, circuito “selvagem”,
territórios de privação e abandono a serem evitados e temidos,
porque têm ou se crê amplamente que tenham excesso de crime,
de violência, de vício e de desintegração. (WACQUANT, 2001, p.
32).
43
Além disso, Lopes (2008) lembra a observação da arquiteta Sônia Ferraz
após estudos realizado por dois anos com estudantes da Universidade Federal
Fluminense sobre percepção de segurança e moradia quando esta afirma que
“atualmente as moradias parecem verdadeiros presídios” e que “foi-se o tempo
em se pedia uma xícara de açúcar ao vizinho”. A cidade com “enclaves fortificados”,
caracterizados por uma territorialidade seletiva e excludente, marcada por uso
privativo da infraestrutura, separada do “caos urbano” por barreira física e sistema
de vigilância e controle (Caldeira, 2000), reproduzindo as imagens e narrativas
negativas dos demais lugares está fora dessa lógica urbana.
“Arquitetura do medo”; “Cidade sitiada”; “Cidadela”; “Cidade estilhaçada”;
“Cidade murada”; “Cidade fortaleza”. São inúmeros os conceitos acionados pelos
diversos campos dos saberes para explicar ou compreender a cidade tecida no
quadro de generalização do medo e da insegurança, em que o controle,
seletividade, vigilância, homogeneização e segregação dos espaços, passam a se
constituir em princípios básicos da produção da cidade.
Em nome da segurança e redução do risco urbano negam-se as
características fundamentais da cidade atribuídas por Lefebvre (2002): diferenças,
encontros e circulação. Desta maneira, coloca-se o estigma territorial no centro
da vida urbana, já que funcionaria como estratégia de valorização em
determinadas partes da cidade ao separá-la em área famosa (segura, tranquila,
bonita, arborizada) e difamada (inseguras, perigosa, com vielas, sem esgoto, em
áreas distantes ou na parte mais alta do centro). Tal mapeamento urbano, apoiado
em índices sociais, econômicos, de violências e criminais, dos lugares em que
reinam a desordem e o perigo ou paz e tranquilidade urbanas, vigiado pela mídia,
definem os percursos urbanos, as imagens e práticas sociais em relação a esses
determinados lugares, fazendo do estigma territorial um instrumento de controle
da circulação das populações urbanas periféricas pelo espaço urbano.
44
Ribeiro & Lago (2000, p.21) ao analisar o processo segregação na
metrópole afirmam:
a desapropriação simbólica dos moradores destes territórios da
capacidade de controle da sua representação social nas formas
coletivas de classificação das divisões da sociedade e, portanto, da
sua identidade como grupo. É esta (des)possessão que permite
transformar os desiguais em proscritos sociais, e como tais vivendo
na desordem ou em outra ordem social considerada
legitimamente como inaceitável (RIBEIRO & LAGO, 2000, p.21).
Com o crescimento da criminalidade e da violência que pairam sobre as
cidades brasileiras existe a exacerbação do medo e das táticas de proteções
baseadas em um modelo militarizado e prisional (muitas grades, cercas elétricas,
muros altos com cacos de vidro, cães de guarda), consolidando um clima
generalizado de desconfiança do outro, estimulando o estigma territorial. Para
Tuan:
o aumento gradativo da criminalidade violenta, constatado nas
últimas três décadas nas principais cidades brasileiras, tem influ-
enciado um rearranjo na morfologia urbana. “Paisagens do
medo” veem sendo configuradas e novos padrões de sociabilida-
des desenvolvidos [...] essas paisagens do medo são estabeleci-
das pelas percepções do ambiente real, se sobrepondo à racio-
nalidade (TUAN, 2005, p.12).
O medo social (BAIERL, 2004, p. 26), acaba sendo coletivo e vai alterando
hábitos (medo de novos vizinhos é um deles). Esse medo que inicialmente é in-
dividual acaba por criar o sentimento generalizado de impotência da sociedade
frente ao aumento da criminalidade, favorecendo a ampliação do medo de ser
vítima de algum tipo de violência.
Com a sensação de insegurança permanente e ampliação do referido
medo, os habitantes das grandes cidades se lançam em uma corrida pela “segu-
rança total”, alterando suas práticas sociais e proporcionando a configuração de
paisagens e espaços hostis. Cabe dizer que de forma diferenciada nos territórios
estigmatizados, isso também ocorre com o medo de ser vítima de “bala perdida”,
45
de ser confundido com alguém do tráfico e sofrer um desaparecimento súbito
(ver o recente caso do pedreiro Amarildo). É preciso lembrar ainda do compo-
nente étnico-racial desses lugares, cuja maioria é negra, desconhecedora de seus
direitos constitucionais, e, portanto, mais passível de ser vítima de abuso de poder
das autoridades com excesso do uso da força e corrupção.
Na pesquisa 2009 do PNUD por amostragem no Espírito Santo, assim
como foi constatado para o país, 7,3% da população residente com 10 anos ou
mais de idade foi vítima de roubo ou furto. Desse total, 53,1% eram pessoas do
sexo masculino e 46,9% eram mulheres. As estatísticas apontam que 44,1% das
vítimas eram pessoas de cor ou raça branca e 54,8% eram pessoas de cor ou raça
negra ou parda. Dessa forma, percebe-se que o perfil das vítimas potenciais de
roubo e furto, com base na pesquisa de vitimização, são homens e pessoas de
cor ou raça negra ou parda (LIRA, 2009, p.24). Ora, se os negros somam mais de
50% da população brasileira, isso significa que eles circulam por outros territórios
que não são aqueles estigmatizados, em geral, seu local de moradia, tornando-
se também alvo da violência urbana:
O Espírito Santo acompanhou o padrão nacional, dos 106 mil
roubos, 64,0% ocorreram em via pública, 14,7% ocorreram na
própria residência e ou de terceiros e 12,0% ocorreram em esta-
belecimento comercial. Os principais bens roubados foram tele-
fone celular (56,0%), dinheiro, cartão de débito/crédito ou che-
que (49,8%) e documentos ou objetos pessoais (23,6%). Das víti-
mas de roubos no estado do Espírito Santo, 62,7% não procura-
ram pela polícia em decorrência do último roubo sofrido. As prin-
cipais justificativas para não se procurar a polícia eram não acre-
ditar na referida instituição (37,6%), não considerar importante
procurar a polícia (28,4%) e não querer envolver a polícia ou ter
medo de represálias (22,0%). Em 2009, das 39.000 vítimas de rou-
bos que procuraram a polícia, 83,3% registraram o último roubo
na delegacia. Portanto, observa-se que, no estado, do total das
vítimas de roubos, a maioria não procurou pela polícia e nem to-
das as pessoas que procuraram, foram até a delegacia e registra-
ram a ocorrência (LIRA, 2011, p.26).
46
Assim, para se produzir “a cidade segura”, desejada pelas forças de
segurança pública, associada às políticas de planejamento urbano, coloca-se em
suspenso as contradições, as disputas e as diferenças, reforçando o estigma
territorial sobre determinados pedaços da cidade caracterizados como violentos,
perigosos, feios, desordenados. Conforme Vainer esse modo de planejar as
cidades:
Implica a direta e imediata apropriação da cidade por interesses
empresariais globalizados e depende, em grande medida, do
banimento da política e da eliminação do conflito e das
contradições de exercício da cidadania. (VAINER, 2000, p.78).
Com a desigualdade de proteção dos riscos que marca “a cidade do medo”,
as demandas por segurança, também, são diferentemente tratadas pelas
autoridades públicas. Assim, a população de baixa renda, despossuída dos meios
de produção de representação e imagens, acaba não tendo suas demandas por
segurança acatadas: elas ficam circunscritas aos bairros de classe média alta e
comércio da cidade. Seus lares, local de descanso e compartilhamento de afetos
com sua família tornam-se “alvos” da desordem urbana e da violência. Essa
percepção social consolida e legitima estratégias de política de segurança que
transformam “os territórios periféricos” em espaço de privação do direito ou em
territórios de exceção (AGAMBEN, 2004), naturalizando a produção e os efeitos
do preconceito territorial.
A má fama ou reconhecimento socialmente negativo do lugar ou da região
onde se mora pode produzir inúmeras “dores de cabeça” para os seus moradores.
Ela pode ter efeitos negativos sobre as possibilidades de conseguir emprego,
identidade dos moradores, a valorização dos bairros e até mesmo sobre os laços
interpessoais construídos pelos moradores. Santos apontava a dupla condenação
econômica/social, e simbólica, experimentada pelos moradores dos espaços
47
periféricos, que ainda desconsidera e a credibilidade das representações que
foram construídas na luta e suas experiências sociais:
Morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza. À pobreza
gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de
trabalho e das classes sociais, superpõe-se a pobreza gerada pelo
modelo territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou
menos pobre somente por morar neste ou naquele lugar. Onde
os bens sociais existem apenas na forma mercantil, reduz-se o
número dos que potencialmente lhes têm acesso, os quais se
tornam ainda mais pobres por terem de pagar o que, em
condições democráticas normais, teria de lhe ser entregue
gratuitamente pelo poder público. (SANTOS, 1993, p. 115).
2. Vivendo o estigma territorial na periferia de Cariacica – ES
A região metropolitana nos anos 80 era chamada de região de Vitória e
era formada pelos municípios de Vila Velha, Vitória, Cariacica, Serra e Viana. Com
os desdobramentos do processo de desenvolvimento industrial e econômico
concentrado na cidade de Vitória, impulsionando esse processo, foi instituída
pelo governo estadual a Região metropolitana da Grande Vitória, para fins de
planejamento e formulação de políticas públicas, sendo integrados à região o
município de Fundão e Guarapari. Análise dos pesquisadores do Instituto Jones
dos Santos Neves (IJSN) mostra que, na classificação dos estados mais populosos,
o estado do Espírito Santo situou-se na 15ª posição, representando 1,8% da
população brasileira.
Segundo dados do Censo, o estado do Espírito Santo apresentou uma
população de 3.514.952 habitantes, evidenciando aumento de 13,5% (417.720
habitantes) em relação à população registrada em 2000 (3.097.232 pessoas
residentes). A análise verificou certa similaridade entre a distribuição da
população do ES por microrregiões nos anos de 2000 e 2010. Somados, esses
números representam 48% do total de habitantes de todo o estado. A RMGV
48
representa 4,95% do território do estado, estimado em 46.184 km2, o que indica
a intensa concentração da população urbana. Tal fenômeno é resultado do
intenso processo de migração gerado pela modernização econômica do estado,
ocorrida nos anos 70 e 80.
O Atlas de Desenvolvimento Humano (IJSN, 2007) registra que Cariacica é
o município mais pobre da região metropolitana: tem 20.706 famílias com renda
de até R$120,00 sendo beneficiárias do Programa Bolsa Família e 30.438 famílias
inscritas no Cadastro Único da Assistência Social com renda familiar de até
R$175,00, segundo informações do Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate a Fome da Presidência da República (MDS). Cariacica ficou conhecida
na década de 1970 como o município “dos rejeitados”. A origem de seu nome
corrobora com essa visão: essa nomenclatura provém de “caria ou carie” que em
tupi-guarani significa “estrangeiro”, ou “estranho” e “cica” que aparece ou chega
de fora (OLIVEIRA 2007, p.7).
Os bairros de Nova Rosa da Penha I e II têm vários problemas de ordem
social e econômica: precariedade do transporte público coletivo, a falta de áreas
de lazer, coleta de lixo insipiente, poucas ruas pavimentadas, poucos postos de
saúde e escolas. A maior parte da população residente nestes bairros ocupa
subempregos, fazem parte da economia informal e/ou estão desempregadas e
recebem algum benefício através dos programas governamentais. As taxas de
natalidade são elevadas e os novos arranjos familiares estão presentes na maioria
das moradias (ROSSI, 2012, p.2).
A história de sua formação, em 1982, envolveu os movimentos sociais de
ocupação de terra urbana que marcaram a região da cidade de Vitória na década
de 80. As imagens sociais que marcaram o reconhecimento público desse bairro
desde sua fundação foram amalgamadas pela desordem urbana e moral, pobreza,
violência e criminalidade. O jornal A Tribuna, através da seção “A tribuna com você”
49
(1999, p.7) relembrou manchete do jornal A Gazeta na década de 1980 onde
aparece o registro dessa realidade:
a invasão em Cariacica já tem mais de quatro mil barracos.
No dia 6 de março começou a invasão em Rio Marinho e
depois de um mês já é considerada a maior invasão em
menor período da história do Estado do Espírito Santo. (A
Tribuna, 1999, p.7).
Essas imagens sociais tendem se reproduzir independente das mudanças
sociais, econômicas e urbanas positivas que vem ocorrendo no município, isto
porque permanecem elevados os índices de homicídios. Buscando escapar dessa
estigmatização negativa, a Associação Comunitária de Nova Rosa da Penha nos
anos 80 mudou o nome do bairro de Itanhenga para Nova Rosa Penha I e II, em
homenagem a luta pela moradia dos primeiros moradores. Essa ação política
desejava neutralizar a negatividade histórica da região de Itanhenga, já que desde
1934 abrigava o hospital leprosário – Pedro Soares e segundo a tradição popular
o nome Itanhenga significava “pedra do inferno”, o que coadunava com as
imagens negativas de lugar de esquecimento, banimento e sofrimento.
Percebe-se a existência desse estigma territorial, até mesmo, entre muitos
funcionários da prefeitura e das autoridades locais quando reduzem e simplificam
a situação social do bairro Nova Rosa da Penha I e II ao problema da criminalidade
e violência, principalmente aquele advindo do tráfico e da ausência de formação
profissional. No diagnóstico realizado pela Secretaria Municipal de Assistência
Social e Secretaria Municipal de Educação (PMC, 2006c, s/p) sintetiza-se a
imagem do bairro pelo poder municipal:
um elevado grau de violência doméstica sofrida por mulheres e
crianças, sendo esta a mais evidente. Somando-se a isto, o alto
índice de alcoolismo, consumo e venda de drogas, além da
prática de roubos e furtos. A alta taxa de mortalidade adulta e
juvenil é reflexo direto do aliciamento ao tráfico de drogas,
conflito entre grupos rivais, totalizando cerca de 97% dos
assassinatos e/ou tentativas de assassinatos registrados na
região. (SEMAST/SEME/PMC, 2006c, s/p).
50
Um missionário conhecido como Bernardino (2007) que também passou
pelo bairro no início de sua história ao escrever sua biografia relembra as imagens
negativas atribuídas ao bairro naquela época:
atuando especificamente na evangelização e implantação de
congregações no município de Cariacica, especificamente
quando da formação do Itanhenga (hoje, Nova Rosa da Penha),
Mucuri, Itanguá e outras áreas dominadas pelo banditismo e
pelas drogas. (BERNARDINO, 2007).
O bairro Nova Rosa da Penha além de ser apresentado como bairro
problema tanto do ponto de vista da miséria, pobreza e desemprego, também
aparece como área de elevado número de homicídios e criminalidade, o que
acaba consolidando o estigma territorial em sua direção.
Aponta Zanotelli (2006) que a violência criminalizada produz uma
determinada paisagem urbana onde se associam lugares de alta criminalidade e
violência com lugares marcados pelo desemprego, infraestrutura e ausência do
Estado, em que Nova Rosa da Penha I e II seria um dos grandes exemplos, se
aproximando, também, das afirmações de Ribeiro:
crescimento das taxas de homicídios, o que pode estar
revelando que nessas áreas integradas esteja ocorrendo a
concentração dos efeitos negativos decorrentes da combinação
entre crise dos laços sociais e os processos de segmentação e
segregação residencial. (RIBEIRO, 2006, p.224).
Além disso, tal processo de violência tem como principais vítimas a
população jovem, masculina, baixa escolaridade, e de faixa etária entre 16-24
anos e com “problemas familiares”, fato já apontado por diversas pesquisas sobre
violência e juventude (CAMACHO, 2003). O município de Cariacica vem
apresentando a situação mais alarmante na Região Metropolitana, de janeiro de
51
2011 até maio de 2013 foram 139 assassinatos, contra 107 no mesmo período
em 2011, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social.
Em uma pequena pesquisa no banco de dados do Jornal A Gazeta entre
2006 e 2007 sobre o bairro, percebe-se a força da reprodução da imagem
negativa sobre o lugar. As matérias relacionadas ao bairro estão sempre
relacionadas ao tráfico, assalto, assassinato e protestos. A identificação da
população vítima e agente da criminalidade e violência como a população jovem,
entre 16-24 anos, do sexo masculino, negra, pobre, desempregada, com baixa
escolaridade e de “família desorganizada” é importante para desvendamento das
populações mais vulneráveis socialmente, mas também pode servir como
processo de estigmatização e julgamento moral da população que mora no bairro,
pois generaliza a situação social do bairro, assim como reatualiza a imagem de
conivência dos moradores com os grupos criminosos (LEITE, 2002).
As imagens veiculadas pela mídia capixaba constroem, nesse quadro, a
ideia de um bairro repleto de crianças e adolescentes desocupados que podem
se constituir em futuros componentes do tráfico, além de ser tornarem “gentes
de homicídio”, podendo operar como efeito negativo no acesso de
oportunidades de trabalho e renda, como indica o depoimento do morador:
somos discriminados; a maioria das empresas aí fora quando as
pessoas vão procurar serviço e falam que é daqui, eles não
pegam. Por isso que a gente não quer nem saber mais da palavra
Itanhenga (Entrevista 2 apud LÍRIO, 2004, p.47).
Também uma jovem aluna de um grupo focal misto denuncia o impacto
das imagens negativas sobre as possibilidades de trabalho:
Ó, a gente sai para procurar emprego, assim, eu e algumas
colegas minhas, a gente saiu para “caçar” emprego, a gente vai
fazer um negócio de estágio, ai você vai lá, já aconteceu isso
comigo um monte de vezes, você vai lá faz a entrevista, faz prova,
tudo bem. Mas quando chega na parte da onde você mora, do
bairro onde você mora. Ah não! Cariacica não. Aí vaga não dá,
eles discriminam, isso faz a pessoa ficar violenta, porque a
52
pessoa vai indo, vai indo e a vida não melhora pra ela (LÍRIO,
2004, p.46)
Numa conversa informal pelo MSN a moradora X do bairro Y(em Cariacica-
ES) relatou um acontecimento de sua vida escolar, que bem retrata o debate
travado até aqui:
A minha amiga, ela mora lá pro lado de Vila Velha. Ela mostrou
para o pai dela uma foto minha e do Isaque e falou pro pai dela
que somos amigos dela, aí o pai dela perguntou de onde nos
somos aí ela falou que era de Nova Rosa da Penha. Ela disse que
ele deu um salto e disse que lá só tem malandro mafioso, que não
quer que ela ande com essa gente (grifo nosso). É mole! Olha aí
o preconceito. E pior causa revolta e indignação contra o bairro.
Vai ver se tem mais argumentos, tem gente que cansa de ouvir
esse tipo de coisa, sabe! O que fazem? Mudam ou simplesmente
passam a odiar o bairro. Algumas pessoas sempre dizem que
gostam do bairro, outras não. Só estão aqui por falta de opção.
(Moradora X, 26/10/2007).
Em relação ao acesso ao emprego ou trabalho, vive-se o efeito do estigma
territorial. As ideias que outros grupos sociais da cidade tem ou imaginam sobre
determinado bairro podem influenciar na aquisição de uma oportunidade de
emprego. É claro que, também, deve ser considerada a questão espacial da
distância do bairro em relação ao trabalho (efeitos de localização), que pode ser
agravada pela ausência de uma política de transporte coletivo eficaz e pelas
políticas macroeconômicas e de reestruturação produtiva, mas não se podem
minimizar os efeitos perversos dessa associação simplista e preconceituosa da
probabilidade de que aquela pessoa esteja envolvida na criminalidade daquele
bairro ou região resulta na perda da oportunidade.
Tais efeitos se agravam, principalmente, quando a visibilidade social dos
espaços periféricos em que moram se realiza pela negatividade, começando pela
própria categoria de lugares violentos ou bairros perigosos, não os conceituando
como lugares onde acontecem crimes e por falta de infraestrutura e
53
investimentos sociais massivos se tornam lugares com mais possibilidades de
perigo.
Assim, os jovens, principais vítimas, denunciam que as diferentes formas
dos empregadores disfarçarem a discriminação territorial é usando desculpas
como a distância entre local de moradia e do trabalho. Mas, esses jovens também
têm suas estratégias é uma delas, bastante comum, é dar o endereço de algum
amigo ou familiar que more fora daquele bairro e assim aumentar sua chance de
conseguir o emprego. O relato de um professor de uma escola da periferia
(Cariacica-ES) ao participar de um grupo focal reforça essa prática:
Eles não querem saber disso [de um futuro]. E, às vezes, os
próprios bairros que eles moram como sai no jornal, morte não
sabem aonde, eles acham que eles não terão um futuro melhor,
nem podem conseguir um emprego digno por morarem no
bairro, entendeu. Já tem três anos que eu trabalho aqui na escola
e sempre vejo a mesma coisa. Os nossos alunos que saem daqui
pra fazer estágio em outra empresa, eles tinham que dar nomes
de lugares diferentes de onde realmente moram, só pelo fato de
que se os empregadores soubessem que ele moram, ou
moravam neste bairro, eles não dariam o emprego, não dariam
o estágio. Então quer dizer, o quanto é desmoralizado o bairro
em que eles vivem. (LÍRIO, 2004, p.48).
Inverter a consolidação de anos de imagens e ideias negativas sobre os
bairros periféricos não é tarefa fácil. Principalmente, se levarmos em conta que
esses lugares não significam somente um local de moradia, mas representam o
prestígio social do grupo ao qual esses indivíduos fazem parte, tornando-se
indicativos de autossegregação. Daí a classificação como bairros populares,
nobres, de elite, etc. Os espaços periféricos de alguma maneira no imaginário da
sociedade tendem a ser usados como uma forma de denunciar quem são os
indivíduos que nele moram, assim como dizer que tipo de tratamento eles
merecem ter. Na visão de Hermann:
54
Obviamente, esse funcionalismo atribuía um lugar certo para
cada função. Há o lugar da moradia, o lugar do trabalho, o lugar
das compras. Há o lugar da saúde, da pobreza e da educação nas
cidades. É também ingênuo dizer que esse modelo urbanístico
“caiu como uma luva” aos interesses de acumulação capitalista
no espaço citadino, tanto no que concerne a sua organização
para a circulação do mesmo quanto no que diz respeito à manu-
tenção do espaço organizado para ordenar determinadas hierar-
quias sociais. Muito pelo contrário: a gênese do espírito moder-
nista já está associada ao progresso como premissa para o de-
senvolvimento, visto aqui como atrelado ao desenvolvimento in-
dustrial e mantenedor da ordem dominante na lógica sócio-es-
pacial capitalista . (HERMANN, 1994, p.6).
Daí que a questão da classificação social dos espaços periféricos envolve
uma luta política, uma disputa pela cidade, uma definição das formas de ser visto.
Por exemplo, dizer que um determinado espaço periférico é perigoso implica
desvalorização dos imóveis, dificuldades de transporte público, serviços
comerciais (táxis, caminhão de gás, etc.). Por isso, muitos moradores não se
cansam de denunciar a discriminação e de explicar que a fama do bairro não é
de todo verdadeira. Discutem, protestam e pedem segurança e policiamento, mas
não são ouvidos. Criticam a imprensa por suas matérias preconceituosas e sem
as vozes dos moradores.
Não estamos aqui a desconsiderar que nestes lugares existe uma parte
mais miserável onde a cada nova notícia de assassinatos, de assaltos e tragédias
reforça-se o estigma territorial: o espaço periférico perigoso e proibido. Esses
lugares considerados áreas de risco, de maneira geral, estão nos pontos menos
acessíveis, onde é possível ter mais “liberdade” para o tráfico. Existem vários
jovens da própria comunidade que estão vivendo de “serviços ilícitos” ou que
partilham um mesmo estilo musical, entre eles o Funk “pancadão” que veem na
negatividade do bairro um instrumento positivo.
Ser temido, ser “o terror”, “o sinistro”, “o bonde do mal” se constitui num
dos muitos elementos da sua identidade social e alimentam as disputas
55
territoriais entre galeras, gangues, quadrilhas e traficantes. Essa realidade gera
dificuldades na construção de relações de amizades e de redes impessoais, pois
impera a desconfiança sobre o morador daquele bairro que mesmo cumprindo
com todas as suas obrigações, não consegue ter retorno da garantia de direitos
socioeconômicos. Tal atitude amplia e consolida as imagens e ideias negativas
sobre o bairro, criando mais possibilidade de discriminação territorial daqueles
que não estão envolvidos com as “carreiras criminosas”, instituindo aquele
território como “lugar a ser evitado”, “zona de contaminação”, em zonas proibidas.
3. Considerações finais
Na análise de Wacquant (2005), o estigma territorial imposto aos “novos
párias urbanos” das sociedades contemporâneas produz efeitos sociais em seus
moradores. Isso promove efeitos de lugar: o sentimento de revolta, indignação
pessoal, desvalorização enquanto pessoa por ser pobre e morar na periferia da
cidade. Verifica-se que esse desvalor se traduz na ausência de investimentos pú-
blicos no seu bairro, sendo ele duplamente massacrado: primeiro por aqueles que
na falta de perspectiva se mostram ao mundo de forma negativa reforçando essa
visão tanto dos que estão dentro como para os “fora” de que devem ser evitados.
Nessa cidade tomada pelo medo e violência, o lugar onde os indivíduos e
grupos sociais se localizam define não somente como serão vistos, mas a maneira
como serão tratados, principalmente pelas instituições públicas. Define o
tratamento a que têm direito. Esses espaços periféricos estigmatizados
constituem-se em “territórios nus”, ou seja, territórios destituídos de direitos,
territórios onde a institucionalidade democrática está suspensa, em que a
exceção é a regra. Daí o medo e desconfiança da polícia não serem simplesmente
ausência de valores republicanos e democráticos.
56
As formas de percepção desses territórios diluem as ideias universais de
igualdade e dignidade humana fazendo com que seus moradores sejam excluídos
da qualidade de homens, de cidadãos. Sob o imperativo do estigma territorial,
seus territórios se configuram em selvas, e eles em selvagens. Assim, a questão
colocada não é discutir se é verdade ou não tais estigmas e preconceitos, mas em
entender os efeitos que causam sobre as trajetórias dos moradores da periferia e
como eles legitimam por parte do Estado enquanto instituição tratamentos
desiguais. Mesmo que saibam que a maioria dessa massa é formada por
moradores que são trabalhadores, com um senso moral e ético consolidado que
querem viver em lugar melhor, com toda a infraestrutura a qual tem direito, que
sempre estarão nas ruas protestando contra esses estigmas que os ridiculariza,
tira oportunidades na vida e não apenas no mundo do trabalho, talvez nunca
visitem um espaço periférico classificado como violento e perigoso.
O estigma territorial acaba transformando-se num insulto moral, pois nega
aos moradores o direito de serem reconhecidos como cidadãos e pessoas dignas
(negam-lhe até o princípio da honestidade). Cobre-lhes sobre a humilhação da
suspeita de serem partícipes da criminalidade ou de serem proto-criminosos.
Impedem que eles se mostrem como são, preferindo as ideias e preconceitos
reproduzidos automaticamente, consolidadas por fatos e eventos que não
representam a totalidade do lugar onde moram.
Impõem-lhes um espelho que lhes ferem e lhes desrespeitam, pois lhe
negam o direito de autorrepresentação, de dizer quem são e de se verem
reconhecidos porque são. Enfim, até quando a voz dos espaços periféricos
continuará sendo ignorada? O que adianta fortalecer autoestima do bairro se
continua reprodução do preconceito territorial? Como as classificações sociais
dos territórios da cidade não são neutras e nem harmoniosas, mas envolvem
projetos de cidade, interesses políticos e controle do movimento das populações
57
na cidade, precisamos politizar o debate do estigma territorial, indo além da
dimensão psicológica.
A forma de enfrentar essa questão tem vindo através da organização dos
moradores que buscam através das instituições do terceiro setor resgatar a
autoestima revalorizando a história do bairro, buscando diluir às imagens
negativas, como fazem inúmeras associações pelo país (Afro reggae, Cufa, etc.).
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Pierre-Félix Guattari: uma vida em várias direções
André Campos de Camargo1
Resumo: O objetivo deste texto é desenvolver uma biografia de Félix Guattari (1930-1992).
Procurar-se-á uma compreensão das práticas militantes, analíticas e filosóficas realizadas pelo
pensador francês.
Palavras-chave: biografia; filosofia francesa; práticas militantes; Guattari.
“Recordo-me da impressão, eu diria
fisiológica, que Guattari me causou de
imediato – uma espécie de estado
vibratório incrível, como um processo de
conexão. O contato com ele aconteceu ali, e
eu aderi mais ao movimento de energia do
que à personalidade, a pessoa. Sua
inteligência era excepcional, o mesmo tipo
de inteligência que Lacan, uma energia
luciferiana. Lúcifer sendo o anjo de luz”.2
Por ter vivido e trabalhado durante alguns anos em La Borde, de 1966 a
1972, Jean-Pierre Muyard percebe que Guattari portava uma luz natural, uma
originalidade de pensamento, um modo interdisciplinar e transversal de abordar
as várias questões de seu tempo. Diferente do anjo da história3 , do filósofo
alemão Walter Benjamin, o anjo de Muyard não tem o rosto só voltado para o
passado, ele não vê apenas as catástrofes acumuladas, não responsabiliza o
progresso pelos acontecimentos desastrosos do presente e mesmo quando é
1 Mestrando do programa de filosofia e história da educação, Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Contato: [email protected]
2 Em uma entrevista concedida a François Dosse, Jean-Pierre Muyard lembra seu encontro com
Félix Guattari em um seminário da oposição de esquerda que se realizou na cidade de Poissy em
1964.
3Neste trecho a figura do anjo da história de Walter Benjamim serve como contraponto ao anjo
de Muyard. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7° edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.
63
impedido de agir, resiste. Esse anjo conhece os efeitos da desesperança quando
invadem a subjetividade humana, sabe do poder revolucionário do devir, pensa
cartograficamente o campo histórico, por isso se transmuta a todo instante em
militante político, analista e filósofo.
Caçula de uma família tradicional e conservadora, Pierrre-Félix Guattari
nasce em 30 de março de 1930 em Villeneuve-les-Sablons (atual Villeneuve-le-Roi)
próximo a capital francesa. Depois de alguns anos a família se instala em um HLM
(Habitation à Loyer Modere), conjunto habitacional em Cité des Oiseaux, em
Montrouge, região mais próxima de Paris. Em 1934 seu pai consegue um
empréstimo e se torna dono de uma pequena e próspera empresa de chocolates
em La Garenne-Colombes (cf. DOSSE, 2010, p. 30). Com o crescimento da empresa,
os pais do pequeno Pierre já não tinham a mesma disponibilidade de tempo para
o caçula. Foi nesse momento que o mal-estar causado pelo sentimento de
abandono transparece. Preocupados, os pais resolvem consultar um médico, que
recomenda ao menino uma temporada no campo.
É na casa dos avôs em Louviers, após a morte trágica do avô em 1939, que
o garoto reservado e tímido muda radicalmente de comportamento e se
transforma em uma criança extrovertida e expansiva. Exemplo dessa
transformação é a recusa do diretor da escola do bairro em aceitá-lo como aluno;
a saída na época para seus pais foi matriculá-lo em um estabelecimento distante
de sua casa.
Nos primeiros dias de aula, o pequeno Pierre conhece Fernand Oury, um
discípulo do pedagogo Célestin Freinet. Foi nas aulas de ciências naturais do
professor Oury, que depois se tornou célebre no campo da pedagogia
institucional, que Pierre se abre para o universo social e político (DOSSE, 2010, p.
30). Porém, o contato com o professor dura pouco, pois Fernand Oury desaparece
preso pelos nazistas em 1943. A passagem do professor de ciências, mesmo que
rapidamente, pela vida de Pierre foi extremamente motivadora, ao ponto dele se
inscrever, depois da Libertação em 1945, como colaborador nos Albergues da
64
Juventude onde Oury era encarregado da coordenação. Os Albergues da
Juventude (AJ) permitiam aos adolescentes de famílias modestas viajarem em
férias pela França. Em uma das viagens realizadas pelo grupo, Pierre conhece um
rapaz com o mesmo nome, para diferenciá-los e facilitar a comunicação grupal,
pede que lhe chamem pelo seu segundo nome. O segundo nome acaba se
impondo e Pierre se transforma em Félix.
A partir de sua vivência nos Albergues da Juventude que estimulava nos
jovens a participação política em várias esferas da sociedade, Félix começa a
militar no Partido Comunista Francês (PCF), como também no Partido Comunista
Internacionalista (PCI), seção da IV Internacional Trotskista. Mesmo tendo seus
engajamentos reprovados pela família, ele continua participando ativamente dos
movimentos. Conjuntamente à militância, Félix obteve sucesso nos seus estudos
no liceu Paul-Lapie de Courbevoie e depois no liceu Condorcet, obtendo na série
final do ensino médio seu baccalauréat em filosofia-ciências em 1948 (DOSSE,
2010, p. 33).
Apesar de sua paixão pela filosofia, seguiu a sugestão do irmão mais velho,
Jean, e começou a cursar Farmácia em julho de 1948 em Bécon-les-Bruyères.
Desgostoso com o curso, repentinamente se vê reprovado nos exames do
primeiro ano. Desde 1946, Félix mantinha um namoro com uma jovem moça de
origem chinesa, Micheline Kao. Em 1951 decidem viver juntos na casa dos pais de
Kao. Nesse mesmo ano, Félix resolve definitivamente largar o curso de farmácia
e se inscrever em filosofia na Sorbonne. A sua paixão filosófica nesse momento é
Sartre, a ponto de adotar a linguagem sartriana e a temática existencialista em
seus escritos. Ao mesmo tempo em que mantinha o relacionamento com Kao,
Félix sustentava teoricamente um jornal existencialista e ainda arranjava tempo
para a militância no Partido Comunista Francês (PCF) e no Partido Comunista
Internacionalista (PCI), como também, nos Albergues da Juventude, além dos
contatos com militantes maoistas. Foi por meio de diferentes contatos em
diversos grupos militantes e de seu apoio à revolução liderada por Mao Tsetung,
65
que Félix viajou para a China em 1951. Por conta dessas relações, Félix firmou
amizade com o historiador e sinólogo Jean Chesneaux, que na época fazia a
aproximação entre os intelectuais franceses e os militantes do Partido Comunista
Chinês (PCC) (DOSSE, 2010, p. 30).
Em 1952, Félix participa das reuniões de um grupo de estudantes de
filosofia da Sorbonne ligados ao PCF. Nessas reuniões, influenciados por Félix, os
jovens estudantes se dedicam, a partir do uso de pseudônimos, a escrever
panfletos de claro posicionamento trotskista. Intituladas Tribune de Discussion, as
publicações são postadas nas caixas de correio de outros estudantes ligados ao
PCF, causando profundo descontentamento entre os mais ortodoxos. Por esse
motivo, Félix e alguns amigos do grupo de filosofia foram expulsos em 1958 da
União dos Estudantes Comunistas (UEC), grupo ligado ao PCF.
No final dos anos 50, Félix deixa o Partido Comunista Francês e
acompanhado de seu amigo Raymond Petit edita o jornal A Via Comunista.
Nascido em plena contestação da guerra da Argélia, o jornal se preocupava em
debater questões ligadas à política colonial francesa. No início de 1961, como
repórteres do jornal, Félix e mais dois amigos realizam uma entrevista com Sartre,
abordando assuntos ligados à guerra de independência da Argélia e o
posicionamento do Partido Comunista Francês no cenário mundial. Entre 1958 e
1965, o jornal publicou 49 números sem nenhum apoio institucional. Os assuntos
ligados à política eram variados e o posicionamento dos membros do jornal era
uma mistura de trotskismo e maoismo. Descontente do caminho seguido pelo
jornal, Félix afasta-se em 1964 do grupo. Em 1965 ao publicar o Manifesto dos
121 sobre o direito à insubmissão na Guerra da Argélia, o grupo viu suas edições
apreendidas e seus editores ameaçados de prisão pela polícia, era o fim do jornal.
Além de sua identidade de militante político, Félix era admirado na
Sorbonne por sua prática como psicanalista junto à clínica La Borde e pelo seu
conhecimento das teses lacanianas. Seu encontro com o psiquiatra Jean Oury,
fundador da clínica La Borde, se deu em 1945 em uma das reuniões que o irmão
66
de Oury, Fernand, realizava com os membros do Albergue da Juventude (AJ). A
amizade entre Félix e Jean só começou a se estreitar em 1950, quando Jean
aconselhou Félix a ler as obras de Lacan, como ainda em mantê-lo a par das
pesquisas desenvolvidas por esse teórico, já que seu tempo era consumido
integralmente pelas práticas psiquiátricas. A partir da amizade com Oury, Félix se
torna fascinado pelos textos de Lacan. Em 1953 no Collège de Philosophie, na Rue
de Rennes, Félix segue fielmente as conferências de Lacan sobre Goethe. Um ano
depois, é o primeiro não psiquiatra a ser convidado por Lacan para assistir o seu
seminário em Sainte-Anne. Nesse momento, Lacan realizava suas pesquisas
objetivando compreender o funcionamento da língua, já que a linguística estava
se tornando, nesse momento, uma importante ferramenta de pesquisa.
A demonstração de sua aproximação com Lacan se deu a partir do
momento em que Félix começou a frequentar o divã do psiquiatra. A vida de Félix
estava mudada, suas atividades intelectuais se concentravam para a absorção dos
saberes lacanianos. Em suas anotações registradas em seu diário, Félix deixa
transparecer um tema que estava presente nos cursos de Lacan, e que depois
seria trabalhado e aprofundado por ele: a noção de máquina (DOSSE, 2010, p. 36).
A prática clínica de Félix se realizava em La Borde, um antigo castelo
localizado na comuna de Cour-Cheverny, na região de Chambord, próximo a Blois,
transformado em uma clínica psiquiátrica em 1953. Circunscrito em um parque
de 18 hectares, o castelo contava com o essencial para o funcionamento de uma
clínica. Este local de renovação psiquiátrica foi inspirado na clínica psiquiátrica
fundada em 1921 pelo doutor Tissot em Saint-Alban, em Lozère. A clínica de
Saint-Alban, além de realizar durante a Segunda Guerra Mundial mudanças nas
práticas psiquiátricas, serviu de reduto para a resistência francesa enquanto a
guerra durou. Com a chegada do psiquiatra catalão François Tosquelles, fugido
da Espanha franquista por ser o responsável pelo serviço psiquiátrico do exército
republicano espanhol, a clínica de Saint-Alban se transforma, com sua
colaboração, em um centro de renovação psiquiátrica. Os posicionamentos
67
emancipatórios de Tosquelles foram inspirados pela experiência clínica do
psiquiatra alemão Hermann Simon, criador da terapêutica ocupacional.
Jean Oury se dirigiu para Saint-Alban em 1947, para engrossar o quadro
de pessoas comprometidas com posicionamentos de renovação psiquiátrica. Sua
admiração por Tosquelles é imediata e sua proposta de compor com os colegas
um trabalho libertário fez de Oury um membro respeitado e admirado pelo grupo.
Jean Oury permanece em Saint-Alban até 1949, quando é chamado para
substituir, em Saumery, um amigo de Tosquelles. É em Saumery, na clínica de La
Source que se forma a futura equipe que iria compor os quadros profissionais de
La Borde. Em Saumery, Oury desenvolve e aperfeiçoa sua prática psiquiátrica na
linha de Saint-Alban. Contudo, pressionado pelos proprietários da clínica que
queriam retomá-la, Oury decide levar a experiência para outro lugar. Em 1953
descobre que o castelo de La Borde, próximo dali, estava à venda. Ele o adquiriu
e levou consigo todos os internos de Saumery e sua equipe.
A nova clínica fundada por Jean Oury parte do pressuposto que o grupo
terapêutico deve se organizar a partir de três princípios: primeiro, o princípio do
centralismo democrático, que assegurava as decisões mais importantes para o
grupo gestor; segundo, o princípio de revezamento das tarefas, que toda pessoa
deve ser capaz de passar do trabalho manual ao trabalho intelectual e vice-versa;
terceiro, o princípio da antiburocracia, no qual instituía uma organização
comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários.
Esses princípios fazem com que o grupo terapêutico de La Borde se desfaça de
suas especializações e hierarquizações e que não reproduza o que se passava na
maioria das clínicas da França na época.
Desde 1950, Félix mantém Jean Oury atualizado de sua militância política
e dos seminários de Lacan. Em 1955 é convidado a se instalar em La Borde com
sua companheira Micheline Kao. Ela trabalha na clínica como secretária médica,
além de se dedicar a outras atividades. Félix é incumbido da organização do
trabalho e do clube terapêutico da clínica. Aproveitando os espaços de trabalho
68
para manter um diálogo amplo com os cuidadores e com os pacientes, Félix
procura acabar com determinados papéis estereotipados, fazendo com que todos
fizessem de tudo dentro da clínica. Espantados pelo dinamismo de suas ideias e
pela facilidade que as colocava em prática, logo é apelidado de “Speedy Guatta”.
Depois de um ano vivendo em La Borde, Micheline Kao se separa de Félix e se
muda da clínica. Abatido, Félix conhece a nova monitora, Nicole Perdreau, que
acabara de chegar à La Borde. Desse encontro nascem seus três filhos: Bruno,
Stephen e Emmanuelle.
Depois de algum tempo instalado em La Borde, Félix convida alguns
amigos do mundo da cultura e da militância de esquerda para se instalarem
temporariamente na clínica. A vinda dos estudantes pode ser explicada
principalmente pelo desejo de conhecerem o mundo da psiquiatria, como
também, de constatarem uma “utopia” sendo realizada em uma instituição. La
Borde também era um local de encontros, já que um tempo importante das
atividades com os pacientes era destinada à organização de festas que recebiam
pessoas de toda região.
Em 1960, Jean Oury e outros psiquiatras, além de Félix, criam um grupo de
reflexão sobre a prática psiquiátrica: o Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de
Socioterapia Institucionais (GTPSI). O grupo define um campo teórico e prático
de pesquisa e intervenção que recebe o nome de psicoterapia institucional.
Inicialmente Félix modera suas intervenções, mas depois de algum tempo elas se
tornam longas e fundamentadas; o segredo dele estava em relacionar os vários
campos do conhecimento em geral com o campo da psiquiatria. Já com uma
experiência acumulada, Félix participa da criação da Escola Freudiana de Paris
junto com Lacan, em 1964.
Um ano depois Félix cria a Federação de Grupos de Estudo e de Pesquisas
Institucionais (FGERI) com o objetivo de converter o trabalho intelectual em um
grupo de pesquisa transdisciplinar e não acadêmico. Em torno do projeto se
associam professores, urbanistas, arquitetos, economistas, cineastas etc. Para dar
69
maior visibilidade aos trabalhos realizados, o grupo publica a revista Recherches
em 1966. A revista preconizava as pesquisas que se desenvolviam a parir de
práticas sociais e institucionais, fugindo dos estudos puramente conceituais em
voga na França. Em junho de 1967, sob a direção de Liane Mozère, a revista
Recherches deixa de publicar em suas edições mensais assuntos diversificados
para centralizar suas análises em temas específicos. Ainda nesse mesmo ano, Félix
participa junto a Liane Mozère da criação do CERFI, um organismo agregador de
grupos autônomos e livres de pesquisadores. A proposta desse grupo de
pesquisa era criar uma vida comunitária entre os seus membros. Ao mesmo
tempo em que Félix participa da revista Recherches e da CERFI, ele colaborava
ativamente com a Oposição de Esquerda (OG), uma nova organização política,
bastante atuante no meio estudantil, e que mantinha um pequeno jornal, o
Bolletin de l’Opposition de Gauche (BOG). Ainda no ano de 1967, Félix e alguns
amigos criaram a Organização de Solidariedade à Revolução Latino-Americana
(OSARLA).
1967 é também o ano em que Félix se apaixona por uma jovem enfermeira
de uma clínica de Marseille, que foi estagiar em La Borde, Arlette Donati. Sua
ligação com a estagiária leva Félix a romper com sua esposa Nicole Perdreau.
Paralelamente à sua vida com Arlette, Félix se envolve com muitas outras
mulheres. A postura de liberação sexual e de questionamento de todas as formas
de familiarismos fazia parte, naquele momento, da capacidade de um
revolucionário romper com os padrões normativos da sociedade.
Quando os movimentos de contestação estouram em 68, Félix vê no
movimento estudantil o grupo capaz de conduzir a luta social sem ser capturado
pelos aparelhos burocráticos. Entusiasmado pelos acontecimentos, Félix vai de
Paris a La Borde para convocar toda a equipe e os pacientes da clínica para
participarem das manifestações nas ruas parisienses (DOSSE, 2010, p. 148). Sua
participação na articulação e no planejamento das ações revolucionárias de Maio
de 68 pode ser constatada pelas ações realizadas por ele e seus amigos, como
70
por exemplo, a ocupação do Instituto Pedagógico Nacional e do Théâtre de
L’Odéon.
Em junho de 1969, em La Borde, Jean-Pierre Muyard decide apresentar
Félix a Gilles Deleuze. Mayard estudara medicina em Lyon no final dos anos 1950.
Militante, se torna presidente em 1960 da Union Nationale des Étudiants de France
(UNEF). Paralelamente à especialização em psiquiatria, faz cursos em sociologia
na Faculdade de Letras de Lyon. Seu encontro com Félix ocorre em 1964, por
ocasião de um seminário que se realizou em Poissy. Em 1966 é convidado a
clinicar em La Borde, onde permanece até 1972. Quando era estudante em Lyon
ouvira falar dos cursos de Deleuze com admiração. Em 1967 fica entusiasmado
com a publicação de Sacher-Masoch e se aproxima de Deleuze, com quem
mantém um canal de diálogo sobre o mundo dos psicóticos. O encontro
articulado por Muyard entre Félix e Deleuze ocorre em Saint-Léonard-de-la-
Noblat, em Limousin. O encontro é descrito por François Dosse(2010, p. 14),
como uma sedução mútua e imediata entre os dois pensadores. Após o contato
com Deleuze, Félix aproveita para aprofundar sua contestação ao lacanismo e
iniciar seu período de grande produção escrita. Guattari entra em cena.
Lacan fica sabendo da empreitada mútua de Guattari e Deleuze em
escrever um texto sobre psicanálise. Com medo de eventuais críticas, pede a
Guattari os manuscritos do livro, que viria a ser publicado em 1972. O pedido de
Lacan é rejeitado, porém Guattari procura tranquilizá-lo, explicando algumas
noções não relacionadas diretamente às teses lacanianas. O objetivo de Guattari
na época não era escrever um texto contra Lacan, mas superar o lacanismo
(DOSSE, 2010, p. 158). Um tempo depois, quando Lacan toma conhecimento do
caráter devastador da obra em relação as suas teses, o vínculo com Guattari é
definitivamente rompido.
O grupo de pesquisa CERFI, no qual Guattari participa como membro
permanente, começa, a partir de 1970, a obter vários contratos de pesquisa,
sendo o mais importante com o Ministério do Equipamento Francês. Desse
71
ministério, o grupo recebeu grandes verbas para ajudar a identificar as zonas em
que o governo poderia intervir para atender melhor às necessidades públicas. A
primeira ação do CERFI em 1971 foi realizar para o Ministério do Equipamento
uma pesquisa sobre as possibilidades da implantação de um hospital psiquiátrico
na cidade de Évry. O sonho de uma pesquisa coletiva remunerada se tornava
realidade (DOSSE, 2010, p. 224).
Os princípios esquizoanalíticos desenvolvidos por Guattari são colocados
em prática para a integração do grupo. Nas reuniões eram discutidas as pesquisas
em curso, mas ainda a implicação subjetiva de cada um para com o grupo. Além
dessa análise coletiva, as reuniões serviam para esquerdistas de toda Paris
exporem seus projetos a procura de financiamento. Em 1973, o grupo está no
auge, graças às suas pesquisas que lhes rendem contratos vantajosos e à
repercussão das pesquisas publicadas na revista Recherches. Entre as edições mais
célebres da revista aparece a edição especial sobre os equipamentos coletivos, na
qual Deleuze e Foucault são convidados para uma série de debates em torno da
questão. Outra edição que marcou a história da revista foi um número sobre as
homossexualidades. Esse número foi lançado em março de 1973 com o título Três
Bilhões de Perversos e contou com a participação de grandes intelectuais
franceses, entre eles: Deleuze, Guattari, Jean Genet, Michel Foucault, Jean-Paul
Sartre e Jean-Jacques Lebel. Apesar de contar com o apoio e a participação dos
maiores intelectuais franceses da época, o número dedicado às
homossexualidades é apreendido pela polícia e o diretor da publicação, Guattari,
é processado e condenado a pagar uma multa por ser contra os bons costumes
(DOSSE, 2010, p. 228). Aproveitando o bom momento, Guattari publica em 1974,
pela editora François Maspero, uma coletânea de ensaios escritos entre o ano de
1955 a 1970, intitulada Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise
institucional. Um ano depois, com Deleuze publica Kafka: por uma literatura
menor.
72
Com a chegada de Valéry Giscard d’Estaing ao poder em 1975, o CERFI
deixa de contar com os grandes contratos provenientes do Estado. Foi nesse
momento que o Ministério dos Equipamentos propôs incorporar alguns
pesquisadores do grupo, no entanto a posição tomada foi de recusa. Para fazer
frente a falta de recursos, o grupo decide colocar em prática uma política de
edição de livros com a criação da coleção Encres (Tintas) e a reedição em formato
de bolso de alguns números de maior tiragem da revista Recherches (DOSSE, 2010,
p. 229). A partir desse momento, a revista Recherches se transforma em uma casa
editorial e a coleção Encres publica em 1977: La Révolution Moléculaire, de
Guattari e La Force Dehors, de George Préli. De forma geral, desde 1971 até 1977,
podem-se agrupar as múltiplas publicações do grupo em três grandes setores,
são eles: primeiro, a loucura, pois parte dos membros do grupo tiveram como
suporte teórico e prático para o desenvolvimento de suas pesquisas as
experiências na clínica La Borde; segundo, uma vertente das publicações é
consagrada aos mundos disciplinares, pois as pesquisas giravam em torno da
interrogação sobre o passado e o presente das instituições do Estado em uma
abordagem inspirada em Foucault; terceiro, uma parte das publicações foram
dedicadas à questão da sexualidade. As abordagens utilizadas para essas
publicações foram múltiplas(DOSSE, 2010, p. 231). Dois anos depois da
publicação de Revolução Molecular, Guattari publica O inconsciente maquínico:
ensaios de esquizoanálise, também pela editora Recherches.
Algumas discordâncias entre alguns membros do grupo a respeito da
extrema esquerda italiana e alemã, atuantes no final dos anos 70, leva o CERFI a
uma divisão interna. Em 1981 Guattari se afasta da direção da Recherches
deixando para Liane Mozaré o comando da revista. Depois da reviravolta
administrativa, a Recherches deixa de ser apresentada como uma revista do CERFI.
Publica mais alguns números e encerra suas atividades no início de 1983 (DOSSE,
2010, p. 232).
73
No ano de 1972 Guattari conhece o francês Sylvére Lotringer, professor da
Universidade de Columbia e admirador da obra O Anti-Édipo. Em 1974, Lotringer
aproveita suas férias em Paris para trabalhar conjuntamente com Guattari no
CERFI. Dessa parceria resultará um número da revista sobre Saussure. Influenciado
pelos ares parisienses, decide, nesse mesmo ano, publicar nos Estados Unidos a
revista Semiotext(e). A revista tinha como objetivo divulgar o pensamento de
alguns filósofos franceses no meio acadêmico estadunidense, em especial o
pensamento deleuzo-guattariano. Em 1975, Lotringer e seu amigo John
Rajchman decidem organizar, com uma pequena equipe, um simpósio dedicado
à “Esquizocultura” na Universidade de Columbia. Inicialmente, o grupo esperava
contar com a participação de alguns intelectuais franceses de renome, entretanto,
logo se viram sem recursos financeiros. Para que o problema fosse resolvido, o
grupo busca ajuda do responsável pelas missões francesas no exterior, Yves
Mabin, que decide ajudar. Resolvido o problema financeiro, o grupo tem a
oportunidade de convidar para o simpósio, além de Guattari e Deleuze, Jean-
François Lyotard, Jean-Jacques Label e Michel Foucault. Dos cinco convidados
franceses, apenas Deleuze, avesso às viagens e congressos, não aceita o convite
de imediato, ocasionando um novo problema. Mais uma vez Yves Mabin é
chamado, não mais para resolver dificuldades de ordem econômica, mas para
convencer Deleuze da importância de sua presença no simpósio. Depois de uma
longa conversa, Mabin acaba convencendo-o (DOSSE, 2010, p. 380).
Lotringer, por sua vez, convida alguns intelectuais estadunidenses de
renome para participar do simpósio, como é o caso do filósofo e crítico de arte
Arthur Danto e o psiquiatra Joel Kovel, além do compositor e teórico musical John
Cage, do escritor William Burroughs, do dramaturgo Richard Foreman e da
feminista Ti-Grace Atkinson. Confirmada a presença dos palestrantes
estadunidenses e franceses, a rádio WBAI, emissora da esquerda nova-iorquina,
convida exaustivamente durante toda a semana a população para fazer parte do
evento. Mesmo com o pagamento de quinze dólares para participar do simpósio,
74
uma vasta multidão comparece nas apresentações. A primeira apresentação do
grupo francês fica a cargo de Deleuze. Sua estratégia é não utilizar um tradutor,
falar bem devagar e usar um quadro para expressar suas ideias. Sua recepção por
parte do público é satisfatória. O mesmo não acontece com Guattari e Foucault.
Guattari prefere a tradução simultânea e quando começa a desenvolver seu
raciocínio ligado a questão do desejo, a feminista Ti-Grace Atkinson e suas
companheiras, aos gritos, acusam-no de falocrata. Depois chega a vez de
Foucault ser a vítima, quando começa o seu discurso sobre a sexualidade da
criança, criticando alguns pontos da Escola de Frankfurt, vê um grupo marxista, o
Comitê Sindical Revolucionário Larouche, acusar-lhe de ser pago pela CIA. Muito
abalado pelas agressões, Foucault não consegue dormir bem à noite, mas se
prepara para enfrentar as novas ofensas. No dia seguinte, a mesma cena: um
provocador o acusa de ser agente da CIA. No mesmo instante Foucault rebate:
eu e meus amigos somos todos agentes da CIA, menos o senhor que é um agente
da KGB. O sujeito fica quieto, a plateia cai na gargalhada e Foucault continua sua
argumentação. Terminado o simpósio, o grupo percebe que os enfrentamentos
foram importantes para que a obra de Guattari e Deleuze pudesse ser conhecida
entre os estadunidenses. A eficiência do encontro pode ser comprovada pelo
sucesso que a tradução do livro O Anti-Édipo, prefaciado por Foucault, obteve
nos Estados Unidos em 1977 (DOSSE, 2010, p. 382).
A viagem para Guattari e Deleuze não termina com o fim do simpósio.
Guiados por Jean-Jacques Label, eles percorrem alguns meios alternativos nos
Estados Unidos. Primeira parada é Lowell, no estado de Massachusetts, para um
show de Bob Dylan e Joan Baez, com a participação do poeta Allen Ginsberg. Em
seguida, o pequeno grupo assiste no estado da Califórnia a apresentação da
poetisa e musicista Patti Smith. À noite vão à cidade de San Francisco para
encontrar o poeta Lawrence Ferlinghetti, e em seguida seguem a estrada para
visitar a casa do escritor Henry Miller em Big Sur. Depois dos encontros com os
poetas e escritores da geração beat, Label leva Guattari para conhecer o psicólogo
75
Arthur Jdanov, mais conhecido por ter iniciado John Lennon na “Terapia do Grito
Primal”. Nessa viagem, Guattari conhece também uma antiga atriz de teatro
francesa, Martine Barrat que o leva para conhecer as gangues do Bronx e do
Harlem, onde realiza trabalhos com fotografia e vídeo (DOSSE, 2010, p. 383). A
viagem de Deleuze e Guattari pelos Estados Unidos pode ser chamada de uma
pequena On the Road.
Ainda em 1972, Guattari conhece a brasileira Suely Rolnik, tornando-se
analista e amigo desta. Em 1982, convidado por Rolnik, Guattari desembarca pela
segunda vez no Brasil em meio às campanhas eleitorais para governadores,
deputados e vereadores (GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 11). Participa de várias
reuniões, renovando o modo de problematizar as questões colocadas
tradicionalmente pelos representantes dos diversos campos sociais, inclusive o
educacional. Aproveita esse momento de transformações políticas para conversar
e entrevistar Lula, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse mesmo ano a
entrevista é publicada, com o título Guattari entrevista Lula, pela editora
Brasiliense. Em 1986 é lançado o livro Micropolítica: cartografias do desejo,
assinado por Suely Rolnik e Félix Guattari. Essa obra é resultado dos registros
feitos pela analista dos debates, mesas-redondas, conferências e entrevistas
concedidas por Guattari em sua passagem pelo Brasil em 1982. Na última vez que
Guattari esteve no Brasil, em maio de 1992, foi organizada uma mesa redonda
pela Editora 34 e o colégio Internacional de Estudos Filosóficos no Rio de Janeiro,
para o lançamento de seus dois últimos livros, Caosmose: um novo paradigma
estético e em coautoria com Gilles Deleuze, O que é a filosofia? (DOSSE, 2010, p.
396).
Exatamente uma década depois de Maio de 68, Guattari observa irromper
na Itália, em meio a uma crise econômica sem precedência na história do país,
uma revolução contra os aparelhos de poder do Estado. Porém, não são as
reivindicações por melhorias salariais e aumento dos empregos que mobilizaram
amplamente o movimento, mas questionamentos ligados às relações de poder, a
76
falta de espaços coletivos de convívio e de lugares autogeridos, etc. Nesse grande
caldeirão contestatório se reuniam desde os grupos que faziam uso do terrorismo
até aqueles que buscavam por meio de uma nova linguagem e métodos
totalmente originais modificar as estruturas políticas e sociais italianas. Foi
principalmente nesse segundo grupo que as teses deleuzo-guattarianas,
particularmente aquelas que estavam presentes n’O Anti-Édipo, traduzido para o
italiano três anos antes, foram colocadas à prova (DOSSE, 2010, p. 238).
Outra obra presente nos agitados anos de protesto na Itália foi Psicanálise
e Transversalidade de Félix Guattari. Esse livro, em particular, marcou a vida do
coordenador da Rádio Comunitária Alice de Bolonha e antigo dirigente do grupo
esquerdista Potere Operaio (Poder Operário), Franco Berardi (Bifo). Acusado de
incitação à revolta, Bifo teve que fugir para a França em 1977. Em Paris é recebido
pelo seu amigo e pintor Gianmarco Montesano e pelo filósofo Toni Negri que o
leva até Guattari. Em junho desse mesmo ano, Bifo é preso pela polícia francesa
e ameaçado de extradição. Um mês depois, é considerado não extraditável e
consegue se instalar na França como refugiado político. O local escolhido para
morar foi a casa de Guattari, na Rue Conde. Dessa amizade nasce o livro
prefaciado por Guattari sobre a rádio Alice (DOSSE, 2010, p. 241).
Em setembro de 1977 toda a extrema esquerda italiana se reúne para um
grande encontro de três dias na cidade de Bolonha. Bifo passa esses dias se
informando ao telefone sobre os principais acontecimentos do encontro. Guattari,
por sua vez, estava nas ruas de Bolonha acompanhando tudo de perto.
Considerado por muitos como um dos principais inspiradores do esquerdismo
italiano, Guattari vê suas teses serem debatidas e colocadas à prova pelos diversos
grupos que estavam presentes, desde a ala terrorista à corrente da autonomia
operária, passando pelos índios Metropolitanos, pelas feministas, pelos
homossexuais, pelas lésbicas vermelhas, etc. Depois da realização do encontro, a
imprensa italiana publica a foto de Guattari na capa dos jornais apresentando-o
77
como idealizador do movimento que agitou a cidade de Bolonha (DOSSE, 2010,
p. 242).
Alguns meses depois do encontro em Bolonha, Guattari recebe a visita de
dois representantes das comunidades alternativas da Alemanha ocidental. O
motivo da visita era buscar apoio internacional para enfrentar a repressão do
governo alemão contra os membros dessas comunidades. A situação repressiva
havia se instalado por conta do governo alemão acusar alguns membros das
comunidades alternativas de envolvimento com o bando de Baader Meinhof.4
Guattari decide apoiar o grupo, no entanto não pôde viajar imediatamente para
a Alemanha, pois havia se comprometido em visitar no Brasil o líder do Partido
dos Trabalhadores, Luis Inácio Lula da Silva. Retornando do Brasil, Guattari vai
diretamente para a Alemanha participar das mobilizações esquerdistas (DOSSE,
2010, p. 244).
Acusado por determinados intelectuais europeus de apoiar membros ou
simpatizantes dos grupos terroristas na Itália e Alemanha, Guattari parece ter feito,
como mostra François Dosse, um trabalho de dissuadir, mais do que condenar, os
que nutriam simpatias pelas ações terroristas. Esse posicionamento parece ser
comprovado pela aproximação que Guattari teve com os antigos militantes da
extrema esquerda italiana. Como é o caso do fundador do grupo Potere Operaio
(Poder Operário) e da Autonomia Operaia (Autonomia Operária) o filósofo Toni
Negri. Negri foge para Paris em setembro de 1977, após ter um mandato de
prisão expedido pela justiça italiana. Durante os anos de 1978 e 1979 começa a
dividir seu tempo entre França e Itália, e é nesse momento que Negri assiste às
aulas de Deleuze sobre Espinosa. Em 1979 é preso pelas autoridades italianas
pelo envolvimento no assassinato do líder da Democracia Cristã, Aldo Moro. Após
a prisão, Deleuze redige uma carta aos juízes defendendo a inocência de Negri.
Mesmo com o apoio de parte dos intelectuais franceses, Negri ficará preso até o
4O Bando Baader Meinhof, cujo nome oficial era Rote Armee Fraktion, foi um grupo de esquerda
engajado na luta armada contra o governo da Alemanha ocidental na década de 70.
78
final do processo, em 1983, como também será condenado a 30 anos de prisão
por constituição de associação subversiva e de grupo armado. Antes da
condenação definitiva, para ajudar o amigo a suportar a prisão, Guattari propõe
a Negri em 1982 escrever um livro juntos, mas em junho de 1983 Toni Negri é
libertado por ter sido eleito deputado europeu pelo Partido Radical italiano.
Vendo sua imunidade parlamentar ser retirada e com medo de voltar à prisão,
foge para a Córsega em um navio provavelmente pago por Guattari. Da Córsega
segue para Paris, onde finalizará com Guattari o livro Les Nouveaux Espaces de
Liberté (Novos espaços de liberdade), publicado em 1985. Nesse livro, os autores
defendem um novo comunismo como uma via de uma libertação das
singularidades individuais e coletivas (DOSSE, 2010, p. 247). Nesse mesmo ano,
Guattari publica um conjunto de entrevistas entre ele, Jean Oury e François
Tosquelles, intitulada Pratique de l’institutionnel et politique pela editora Matrice,
de Paris.
Ainda no final dos anos 70, Guattari se envolve na luta pelas rádios livres
na França. É a partir desse envolvimento que ele e mais algumas personalidades
do meio acadêmico assinam um apelo da Associação pela Liberdade das Ondas
(ALO) a favor da liberdade de transmissão para as rádios livres. Logo depois,
Guattari funda a Federação Nacional das Rádios Livres Não Comerciais e com
François Pain criam a Rádio Libre Paris, que se torna em dezembro de 1980 a
Rádio Tomate. A emissora transmite, 24 horas por dia, assuntos relacionados ao
cinema, música, teatro, além de debates e análises políticas (DOSSE, 2010, p. 249).
De meados dos anos 70 até 1989 Guattari encontra tempo para participar,
em companhia de Mony Elkaïm, Robert Castel e Franco Basaglia (1924-1980), da
Rede Alternativa à Psiquiatria. Sua participação nesse grupo não significa a
adesão completa de Guattari aos posicionamentos da antipsiquiatria italiana de
Basaglia, nem seu engajamento na antipsiquiatria inglesa de Ronald Laing e David
Cooper, muito menos seu apoio incondicional à antipsiquiatria alemã do doutor
Hubber. O que Guattari procura nesse momento é a constituição de um grupo
79
que combata determinadas práticas psiquiátricas em vários lugares do mundo
(DOSSE, 2010, p. 278). Em 1980 ocorre à publicação de Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia, obra colossal assinada por Deleuze e Guattari.
Após a eleição de 1981 na França, o presidente eleito François Mitterrand
nomeia Jack Lang para ocupar o Ministério da Cultura. Tal notícia é bem recebida
por grande parte dos intelectuais franceses, inclusive Guattari, que vê nesse
governo uma disposição para transformar profundamente as práticas culturais.
Quando Lang é acusado de tentar estatizar a cultura francesa, Guattari escreve
um artigo em sua defesa. Aos poucos Guattari ganha espaço e respeito dentro
do ministério da cultura e começa a sugerir várias ideias. Entre elas, aquelas que
foram propostas no início dos anos 80, como a criação de uma quarta rede de
televisão cultural, voltada para a criação e a experimentação e a criação de uma
fundação para iniciativas locais que busquem inovações institucionais, pesquisas
em ciências sociais e animação. E aquelas que foram propostas no final dos anos
80, como uma exposição universal para 1989, ano do bicentenário da Revolução
Francesa, sobre o tema: “Encontro do Quinto Mundo” que reuniria representantes
de minorias étnicas de todo o mundo e a sugestão para a implantação de um
colégio internacional de filosofia. Além dessas ideias, Guattari se ocupa do
centenário de Kafka e ainda presta alguns serviços discretos, como por exemplo,
a redação do discurso de Mitterrand sobre a cultura na Sorbonne. Como
agradecimento pelos serviços prestados, Guattari é homenageado pelo ministro
Lang com o título de comendador das Artes e das Letras em 1983 (DOSSE, 2010,
p. 314). Foi durante esse período, especificamente em 1985, que Guattari
escreveu os textos que ficaram conhecidos como Os 65 sonhos de Franz Kafka5.
A relação de proximidade de Guattari com o ministério da Cultura não o impede
de manifestar suas discordâncias com o governo de Mitterrand. Em 1983, o porta-
5 Os Textos foram publicados pela primeira vez, em 2002, no jornal Le Magazine Littéraire, com o
título Kafka o rebelde. Posteriormente em 2007, os textos foram organizados e publicados como
livro pela editora Nouvelles éditions Lignes, com o título: Soixante-cinc rêves de Franz Kafka et
autres textes. No Brasil a editora n-1utilizou os textos para produzir o livro Máquina Kafka.
80
voz do governo, Max Gallo, se queixa do silêncio dos intelectuais de esquerda
que não defendem a política seguida pelo governo. Prontamente, Guattari
condena esse posicionamento por acreditar que os intelectuais de esquerda não
deveriam se erigir em porta-vozes do governo. Um ano depois, Guattari
repreende publicamente a atitude do governo em extraditar os nacionalistas
bascos do ETA para a Espanha. Ele, Deleuze e Châtelet, assinam uma carta aberta
enviada a François Mitterrand e ao primeiro-secretário do Partido Socialista,
Lionel Jospin, no jornal Le Monde intitulada: “Por um direito de asilo político uno
e indivisível” (DOSSE, 2010, p. 315).
Paralelamente às atividades de apoio e crítica ao governo Mitterrand,
Guattari encontra tempo para apoiar a causa da Frente Sandinista na Nicarágua
contra a ditadura de Somoza e se engajar nos movimentos ecológicos franceses.
Do cruzamento da experiência ecológica, com as análises das relações sociais e
das subjetividades humanas, Guattari acumula material para a elaboração do livro
As três ecologias, publicado em 1989. Três anos antes, Guattari publica o livro Les
années d’hiver (1980-1985), pela editora Bernard Barrault (DOSSE, 2010, p. 319).
Durante a década de 80 Guattari experimenta vários tipos de expressão literária:
romances, poesias, peças de teatro, roteiros, confissões, ensaios críticos, etc. Entre
essas várias maneiras de se expressar destacam-se: 1) Uma coletânea de poemas
de 1986, que acaba não sendo publicada. 2) Uma autobiografia fragmentária
intitulada “Ritornelos”, de 80 páginas, divididas em dois números e publicadas em
1999 com ilustrações do pintor francês Gérard Fromanger. 3) Duas peças de
teatro, a primeira, escrita em 1985, “Le Maître de Lune”, não encenada, e a segunda,
intitulada “Sócrates”, encenada no Théâtre Ouvert. 4) Dois textos sobre arte
escritos por Guattari, o primeiro de 1980 sobre o afresco intitulado “A noite, o Dia”
e o segundo, de 1986, comentando a série “Cythére, ville nouvelle”, ambas de
Fromanger. 5) Um roteiro de cinema para o amigo, o diretor Robert Kramer, no
início dos anos de 1980, batizado de “Unamour de UIQ”. Além disso, um texto
sobre cinema intitulado “O cinema: uma arte menor” publicado na edição
81
francesa do livro A revolução molecular. 6) Um texto sobre enunciação
arquitetural, publicado em 1988 (DOSSE, 2010, pp. 350-352).
Vários acontecimentos, em meados da década de 1980, desestabilizam
emocionalmente Guattari. Primeiro perde a locação do castelo de Dhuizion,
próximo à clínica La Borde. Em seguida é despejado do apartamento parisiense
da Rua Condé. Depois, se envolve em um relacionamento amoroso bastante difícil
com uma mulher trinta anos mais nova, Joséphine. Para piorar a situação, perde
sua mãe. Somam-se a essas perdas, as dolorosas crises de cólica renal, o clima
político de reação na França e o ressurgimento do racismo em sua expressão
política com a extrema-direita de Jean-Marie Le Pen. É nesse estado de fragilidade
emocional que Guattari e Joséphine se casam em 1986 e vão morar em um
excelente apartamento na Rua Saint-Sauveur. Enquanto Guattari se endivida para
adquirir o apartamento e custear as múltiplas despesas de Joséphine, ela o
incomodava com numerosos casos amorosos. Um deles é o relacionamento
duradouro com o escritor Jean Rolin, que a homenageia com um livro após sua
morte por overdose em 1993 (DOSSE, 2010, p. 347).
Mesmo vendo sua saúde piorar devido aos vários infartos que sofre em
1990, Guattari não se cuida e continua a trabalhar normalmente em La Borde.
Para facilitar sua relação com os pacientes e escapar um pouco do contato com
Joséphine, Guattari aluga uma casa próxima à clínica e monta um pequeno
escritório. Na noite de 29 de agosto de 1992, falece em seu escritório, aos 62 anos
de idade. Junto ao seu corpo, sobre a mesa, são encontrados os livros Les Chiens
d’Éros, de D.H. Lawrence e Ulisses, de Joyce em inglês. No enterro, ao som de uma
orquestra de jazz, uma multidão de amigos comparece para se despedir daquele
que a partir da militância política, da análise e da filosofia fez de sua vida uma
obra heterogênica (DOSSE, 2010, p. 403).
O anjo de Pierre Muyard (Guattari) contou com vários intercessores, entre
eles: Antonio Negri, Sueli Rolnik e Gilles Deleuze. Desses encontros resultaram
livros sobre os mais variados aspectos da realidade, além de uma constelação de
82
conceitos abordados de uma maneira criativa e problematizadora. Entre os seus
diversos livros que foram traduzidos para o português, destacamos:
a) aqueles que foram escritos em parceria com o filósofo francês Gilles Deleuze:
1. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Georges Lamazière. Rio
de Janeiro: Imago Editora, 1976. (O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.)
2. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Rafael Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. (Kafka: para uma literatura menor. Tradução
de Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.)
3. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Tradução de Aurélio Guerra
Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 4ª reimpressão – 2006.
4. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 2. Tradução de Ana Lúcia de
Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2005.
5. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. Tradução de Aurélio Guerra
Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34,
2ª reimpressão – 2004.
6. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução de Suely Rolnik. São
Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002a.
7. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. Tradução de Peter PálPelbart
e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002b.
8. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1992.
b) aquele que foi escrito em parceria com a analista brasileira e crítica cultural
Suely Rolnik:
1. Micropolítica: cartografias do desejo. 6º Edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
83
c) aqueles que escreveu sozinho.
1. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12º Edição,
Campinas: Papirus Editora, 2001.
2. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e Lúcia
Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2ª reimpressão, 1993.
3. Guattari entrevista Lula. São Paulo: Brasiliense, 1982.
4. Máquina Kafka. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: n-1 edições, 2011.
5. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de Constança
Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1988.
6. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução de
Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias& Letras, 2004.
7. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3°
edição, São Paulo: Brasiliense, 1986.
Entre os livros de Guattari que não foram, até esse momento, traduzidos
para o português, destacamos:
1. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.
2. Écrits pour L’Anti-Oedipe. Paris: Éditions Lignes/Manifeste, 2004.
3. La Philophie est essentielle à l’existence humaine. La Tour-d’Aigues: L’Aube, 2002.
4. Les années d’hiver, 1980/1985. Paris: Bernard Barrault, 1986.
5. Les nouveaux espaces de liberté (com Toni Negri). Paris: Dominique Bedoux,
1985.
6. Lignes de fuite: pour um autre monde de possibles. Paris: Éditionsde L’aube, 2011.
7. Pratique de l’institutionnel et politique (entrevistas; com Jean Oury e François
Tosquelles). Paris: Matrice, 1985.
84
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7° edição. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: Biografia Cruzada. Tradução de
Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix.O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.
_____Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Rafael Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.
_____Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Tradução de Aurélio
Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 4ª reimpressão – 2006.
_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 2. Tradução de Ana Lúcia
de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2005.
_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. Tradução de Aurélio
Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo:
Ed. 34, 2ª reimpressão – 2004.
_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução de Suely
Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002a.
_____Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. Tradução de Peter
PálPelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002b.
_____ O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
GUATTARI, Félix; NEGRI, Antonio. Les nouveaux espaces de liberté. Paris:
Dominique Bedoux, 1985.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely.Micropolítica: cartografias do desejo. 6º Edição,
Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
GUATTARI, Félix.As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12º
Edição, Campinas: Papirus Editora, 2001.
_____ Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2ª reimpressão, 1993.
_____ CartographiesSchizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.
85
_____ Écrits pour L’Anti-Oedipe. Paris: Éditions Lignes/Manifeste, 2004a.
_____Guattari entrevista Lula. São Paulo: Brasiliense, 1982.
_____ La Philophie est essentielle à l’existence humaine. La Tour-d’Aigues:
L’Aube, 2002.
_____Les années d’hiver, 1980/1985. Paris: Bernard Barrault, 1986a.
_____ Lignes de fuite: pour um autre monde de possibles. Paris: Éditions de
L’aube, 2011a.
_____Máquina Kafka. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: n-1 edições, 2011b.
_____ O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de
Constança Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1988.
_____ Pratique de l’institutionnel et politique. Paris: Matrice, 1985.
_____Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução
de Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias& Letras, 2004b.
_____Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely
Rolnik. 3° edição, São Paulo: Brasiliense, 1986b.
_____Ritournelle(s). Paris: Éditions de la Pince à Linge, 1999.
A boa vida ou o bem viver na Ética a Nicômaco de Aristóteles
Raphael Guazzelli Valerio1
Resumo: trata-se de uma breve análise da Ética a Nicômaco de Aristóteles onde procuramos
descrever, segundo o filósofo o que é, ou antes, como praticar uma boa vida ou o bem viver.
Mostraremos que este bem viver é a vida ética que, segundo seus termos é a vida virtuosa. Deste
modo alguns conceitos aristotélicos serão desenvolvidos, em maior ou menor medida, tais como:
bem, função, excelência, virtude, justa medida. Concluímos que por se pautar em uma justa
medida (mesotés), sua ética não está presa a regras imutáveis e universais, tais como na filosofia
moderna, mas das circunstâncias que se apresentam ao vivente, num interessante equilíbrio entre
ética e política.
Palavras-chave: Ética; política; Aristóteles; boa vida; justo meio.
Aristóteles é o primeiro pensador a distinguir a ética da política, no
entanto, como veremos, o seu projeto ético está estritamente ligado ao seu
projeto político, até mesmo porque na célebre passagem da Política2 ele define
o homem como um “animal político”. Na Ética a Nicômaco três candidatos se nos
apresentam como representantes da vida ética, ou a boa vida, ou seja, a vida
virtuosa; a vida contemplativa, a vida dos prazeres e, por fim, a vida política, esta
subdividida em duas: a vida das honras e a vida das virtudes. Aqui já é possível
vislumbrar qual destes gêneros de vida é o bem viver, contudo, não nos
adiantemos e passemos a analisá-los.
A vida dos prazeres, que nós identificamos com a vida natural, pelo
simples motivo de que esta é comum a todos os seres viventes, não pode ser a
vida virtuosa justamente por este motivo. Não que Aristóteles não visse um bem
no simples fato de viver, pois, diz3 que muitos homens se apegam a vida, pois
nela existe uma espécie de doçura natural, mas, o fato é que nem os escravos,
1Graduado em História (Frea) e Mestre em Filosofia (Unesp). Contato:
[email protected] 2 ARISTÓTELES. Política. Lisboa. Vega. 1998. 1253a,4. 3 IBID., 1278b, 28.
87
nem as crianças, tampouco os animais em geral podem ser virtuosos, já que não
encontramos em sua alma os elementos desenvolvidos para uma vida desta
espécie. Fundamental, portanto, é compreender a divisão da alma (psiqué\ânima)
dentro da teoria aristotélica.
Dois princípios agem dentro da alma, um, o racional; outro, o irracional.
Estes, por seu turno, também se subdividem em dois. A parte irracional da alma
compreende um princípio desiderativo, ou seja, responsável pelos apetites ou
desejos, e, um princípio vegetativo que comanda as funções de crescimento,
nutrição, etc. Já em seu lado racional podemos encontrar uma parte raciocinativa
(teorética) que deve se ocupar de princípios invariáveis, como a matemática, por
exemplo, e uma parte calculativa, responsável por princípios variáveis, uma razão
prática portanto.
É fácil perceber que todos os seres viventes possuem um princípio
vegetativo em sua constituição, no entanto, com relação às outras partes da alma
o problema se mostra mais complexo. Não é nosso interesse aprofundar este
debate, pois aqui nos preocupa o problema ético, faremos, portanto, uma
brevíssima análise das outras partes da alma tendo em vista este objetivo e na
medida em que isto for importante para compreender nosso problema.
Assim, descartamos a parte vegetativa da alma como agente da vida
virtuosa e compreendemos que os seres dotados apenas da parte irracional da
alma são incapazes de uma vida virtuosa, caso dos animais ditos, por isso mesmo,
de irracionais, dos escravos e das crianças que ainda não desenvolveram,
segundo Aristóteles, a sua faculdade racional. Também nos parece claro que a
vida dos prazeres não pode ser virtuosa já que uma vida desta espécie de nada
se ocupa o raciocínio.
Descartamos, portanto, a vida prazerosa; resta-nos duas espécies de vida
como candidatas ao bem viver ou a boa vida, que Aristóteles identifica com a
felicidade (eudainomia). Para avançarmos, contudo, é preciso compreender o
88
que Aristóteles compreende por felicidade, e mais, o que ele entende por bem,
já que estes dois conceitos estão estritamente ligados em seu projeto ético e em
seu projeto político.
A noção de bem nos parece de capital importância no projeto ético-
político aristotélico, pois, é interessante notar que, tanto a Ética a Nicômaco
quanto a Política são abertas procurando definir este conceito; gostaríamos de
citar:
Toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda
escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito, não sem
razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem.4Observemos
que toda a cidade é uma certa forma de comunidade e que toda
a comunidade é constituída em vista de algum bem. É que, em
todas as suas acções, todos os homens visam o que pensam ser
o bem.5
Aqui já é possível perceber que o bem é uma espécie de finalidade ou um
objetivo a ser alcançado. Contudo, na Ética a Nicômaco Aristóteles prossegue
demonstrando que algumas finalidades (bens) são realizadas visando um bem
(fim) ulterior, assim, temos um bem como finalidade e um bem como meio para
alcançar esta finalidade. Assim, o fim que é buscado por si mesmo, ou seja, o fim
ulterior é o bem supremo, os demais fins são meios para se chegar a este fim
ulterior.
Como, contudo, determinar nesta cadeia de fins qual o fim supremo?
Aristóteles nos responde que o bem ou o fim supremo é determinado pela
ciência política, pois é ela que determina o que deve ser feito e estudado na pólis,
mais perfeito tipo de comunidade, bem como legisla sobre as ações humanas,
4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural. 1991.1094a.
5 ARISTÓTELES. Política. Lisboa. Vega. 1998. 1252a.
89
portanto, a finalidade da ciência política abrange as demais finalidades, ciências
e atividades humanas.
Aqui nos encontramos diante de dois problemas. Primeiro, o bem
supremo é do indivíduo ou da pólis? Alguns autores sugerem que este ponto é
uma aporia dentro da ética aristotélica, emergindo daqui duas possibilidades de
política. Preferimos, contudo, acreditar que no projeto de Aristóteles a ética está
subordinada à política, o que, inclusive, nos mostra a riqueza de seu projeto, na
medida em que sua ética, ao estar subordinada as esferas mais variáveis da ação
humana, nos dá a possibilidade de aplicá-la aos mais diferentes contextos ou
culturas.
O segundo problema diz respeito à definição do conceito de bem. Nos
parece que este conceito, dada sua universalidade, não pode ser abarcado em
algum gênero. Notemos, portanto, que o conceito de bem não é unitário e
universal e daqui procede a crítica a Platão. Para Platão o conhecimento da ideia
de bem levaria o homem a praticá-lo, na medida em que este teve acesso ao
bem perfeito, ou seja, sua ideia. Como explicar, contudo, a figura do incontinente
(acrático) que conhece o bem, mas é incapaz de praticá-lo? Para Aristóteles este
problema não se apresenta, pois, sua ética, bem como, sua política, tem em mira
as ações humanas e não o conhecimento.
Dizíamos que, segundo Aristóteles, o bem ou o fim supremo é aquele que
deve ser buscado por si só e não por interesse de outra coisa, em outras palavras,
o bem supremo deve ser autossuficiente. Para o filósofo, este tipo de bem só
pode ser identificado com a felicidade. Mas, o que é isto, a felicidade? Permita-
nos dar uma nova volta e definir primeiramente a noção de função que é similar
ao pensamento socrático-platônico.
Para Aristóteles todas as coisas na natureza possuem uma função, aquilo
que somente esta coisa pode executar, ou, se duas ou mais executam, aquela
que executa com mais excelência, sendo esta regra também aplicável aos
90
homens. Se recorrermos novamente à divisão da alma, notaremos que somente
os homens possuem a parte racional desenvolvida, sendo assim, é lícito se
esperar que a função do homem na natureza seja a atividade racional. O melhor
homem será aquele que realiza sua função com mais excelência (areté), o bem
do homem vem a ser, portanto, a atividade da alma conforme a virtude (areté).
Definamos, então, a felicidade como a atividade da alma conforme a
virtude, ou seja, ser feliz é a prática de atos conforme a virtude. Identificamos
duas espécies de virtude, uma, intelectual; outra, moral. Deixemos, por hora, a
virtude moral de lado e passemos, de posse da virtude intelectual, a análise da
vida contemplativa. Segundo o filósofo a vida contemplativa traz a mais perfeita
felicidade, pois, nesta atividade nos valemos da mais alta virtude, justamente a
virtude intelectual, e exercitamos, portanto, o que existe de melhor e mais divino
em nós, a razão.6 Assim, se retornarmos a divisão da alma veremos que para a
atividade contemplativa usa-se a parte raciocinativa da alma que se ocupa de
analisar os melhores objetos, pois, mais perenes e invariáveis. Além disso, é a
atividade mais contínua e o homem poderia contemplar isoladamente, portanto
é auto-suficiente no ato contemplativo.
Por fim, a atividade contemplativa é um fim em si mesmo, diferente da
atividade política cujos fins são meios 7 . Como se pode observar a vida
contemplativa é a mais perfeita e feliz, contudo, inacessível aos homens, pois,
dada nossa natureza composta, não podemos nos dedicar integralmente a
atividade contemplativa já que temos uma série de outras necessidades.
Eliminamos, assim, a vida dos prazeres e a vida contemplativa, resta-nos a vida
política, único gênero de vida integralmente humana, pois, dedica-se a ação
(práxis). No interior da vida política é possível, como já foi notado, delinear dois
6 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.1991.1177a, 14. 7 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.1991.1177b, 17-
25.
91
subgêneros de vida, a vida das honras e a vida virtuosa. A vida das honras não
pode ser a boa vida já que a honra, conforme observa Aristóteles, depende de
quem a concede e, além disso, alguns homens buscam a honra visando o seu
valor e não pela prática da virtude que, como já visto, é elemento essencial ao
bem viver.
Se, contudo, podemos desenvolver em nossa alma dois tipos de virtude,
não é, certamente, a virtude intelectiva aquela que deve ser praticada pela vida
política, mas sim, a virtude moral. Esta, no entanto, deve ser adquirida pelo
hábito (ethos), pois, a virtude moral não está em nós naturalmente; a natureza
nos dá a capacidade de receber tais virtudes, mas, é somente através dos hábitos
que desenvolvemos certas disposições morais que acabam incutindo em nós
uma espécie de segunda natureza, daí a necessidade da política, ou seja, de bons
legisladores para a pólis que, com boas leis, serão capazes de desenvolver nos
cidadãos boas disposições morais e, portanto, capazes de uma atividade virtuosa.
A prática da virtude leva a virtude, porém, diferentemente de outras artes,
pois, os produtos das artes têm seu mérito em si mesmas, já a atividade virtuosa
depende das circunstâncias apresentadas, ou seja, um ato moralmente bom,
quer dizer, conforme a virtude, é relativo dependendo da ocasião. Para não cair
em um relativismo absoluto, contudo, Aristóteles precisa elaborar uma regra
segura que determine uma ação moralmente boa; que regra é essa? Trata-se do
justo meio ou justa medida, ou ainda, a regra justa (mesotés).
A regra justa é o princípio formal a priori da ação virtuosa ou moralmente
boa. Esta regra é uma espécie de meio termo entre a falta e o excesso de um
determinado desejo, assim, por exemplo, a virtude chamada de coragem é o
meio termo entre a temeridade que é o excesso de coragem e a covardia que é
a falta de coragem. Notemos que a regra justa não é uma medida geométrica,
mas, é dada pelo momento apropriado e conforme a constituição de cada um.
Deste modo, o justo meio é a virtude, a falta ou o excesso, é o vício.
92
Como, no entanto, determinar com precisão qual é o justo meio para cada
ocasião? Para Aristóteles, somente o hábito pode desenvolver as corretas
disposições para que o indivíduo aja de forma moralmente boa. Esta mediania
se encontra, com efeito, no próprio indivíduo e é dada através da figura do
phronimos, ou seja, aquele que melhor consegue detectar o justo meio no
momento apropriado, sendo ele, portanto, aquele que melhor desenvolveu a
parte calculativa da alma. Entra em jogo aqui uma complexa relação entre a parte
racional e irracional da alma.
Para Aristóteles, diferentemente de Platão, a razão por si só não é capaz
de engendrar a ação, sendo assim, a parte desiderativa da alma tem, em sua ética,
função essencial, na medida em que é por desejarmos certos fins que agimos
pra alcançá-los. Desejamos, portanto, os fins e escolhemos os melhores meios
para buscá-los, a escolha, como pode se notar, é dada pela parte calculativa da
alma, pois requer do indivíduo um princípio racional de modo que este possa
agir acertadamente, ou seja, mirando a justa medida.
Para que a escolha seja feita de modo acertado é necessário um
movimento racional a fim de investigar qual a melhor forma de agir, esta
investigação, Aristóteles dá o nome de deliberação. Assim, pelo desejo dá-se a
finalidade por estabelecida e deliberamos sobre o modo mais correto para
alcançá-la; a escolha é, portanto, uma espécie de desejo deliberado daquilo que
está ao nosso alcance fazer8. Temos, assim, a seguinte equação: pelo desejo
estabelecemos os fins, para alcançar tais fins escolhemos, após deliberação e,
portanto, conforme a justa medida, os melhores meios para tal. Finalizando,
podemos dizer que, conforme Aristóteles, a virtude ética está relacionada aos
meios, sendo assim, está ao alcance dos homens escolherem ser virtuosos.
8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural. 1991. 1113a, 12.
93
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.
1991.
_____________. Política. Lisboa. Vega. 1998.
PLATÃO. A República. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo.
Considerações sobre a crítica presente na historiografia mato-grossense
Ana Paula Hilgert de Souza1
Resumo: Inicialmente refletindo sobre a discussão historiográfica referente ao conceito de região,
este artigo faz apontamentos acerca das noções sobre a historiografia de Mato Grosso elaborada
por Osvaldo Zorzato e Lylia Galetti em suas respectivas teses de doutoramento. Zorzato aponta
os caminhos que fundamentaram a produção da memória mato-grossense por meio de obras de
intelectuais e memorialistas mato-grossenses ao passo que Galetti envereda por esses caminhos,
utilizando, às vezes, essas mesmas fontes, mas tratando de inferir as representações sobre Mato
Grosso e sua gente ao longo do século XX. Analiso como esses historiadores se posicionaram
frente aos discursos de suas fontes e como construíram sua própria interpretação em relação à
história de Mato Grosso.
Palavras-chave: historiografia mato-grossense; memória historiográfica; identidade mato-
grossense.
Componente de uma área da história local/regional, o presente texto
buscará refletir sobre aspectos relacionados à história e historiografia de Mato
Grosso. Desse modo, identificamos a necessidade de inserir breve discussão
relacionada ao tratamento dado ao estudo da história regional no Brasil.
Não é nova a noção de que estudos provenientes dos grandes centros
produtores de cultura, tais como, São Paulo e Rio de Janeiro tendem a oficializar
sua história local tornando-a legítima, digna de ser estudada e ensinada por todo
o Brasil. Tal noção tende a considerar sua história como parte fundamental da
História do Brasil, deixando a desejar na aceitação das peculiaridades regionais
de cada estado da federação, e, por vezes, elevando a história regional (além de
sua localidade) a um nível “não necessário” a se estudar.
Um grupo de historiadores tem levantado a bandeira contra esse
posicionamento intelectual grosseiro de parte da elite acadêmica brasileira. Vários
1 UFGD. Contato: [email protected]
95
trabalhos, sobretudo artigos científicos, vêm tentando demonstrar que a história
regional necessita de inclusão no campo da história nacional2.
Agnaldo de Sousa Barbosa (1998) defende a ideia de que assim como
tantas outras histórias, a História Local e Regional apresenta inúmeras
possibilidades de descrição, de análise, de crítica, de interpretação e, ademais, de
revisão historiográfica. Para o autor, os problemas de aceitação da História
Regional provêm, em parte, do desconhecimento da história reivindicada, história
essa entendida como “fruto do preconceito que tende a depreciá-la como uma
história de preocupações menores, virtualmente debilitada por sua íntima relação
com superficialidades localistas e regionalistas”. (BARBOSA, 1998, p. 2)
Irrefletidamente, a história nacional dominante, tem tornado a História
Regional vazia de significado, retirando o mérito dessa modalidade da escrita da
história, entendida como a busca da extravagância, das peculiaridades e das
singularidades, enfim, da diversidade na história. Apontando as deficiências
próprias e inegáveis da história regional, Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(2008) considera que nos estudos regionais,
O espaço é visto como instância que nega o tempo, que subjaz à
história, [...] As experiências espaciais, as relações espaciais, os
fluxos e movimentos de espacialização, as implantações e
deslocamentos no espaço não vêm fazer parte destas
modalidades de narrativa historiográfica. (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2008, p.56)
A título de orientação ao historiador que pretende estudar história
regional, o mesmo autor aponta que se deve estar pronto para perceber,
sobretudo, os afrontamentos políticos, lutas pelo poder, estratégias de governo,
entre outros aspectos relacionados ao regional. Aludindo a breve reflexão acima
apresentada acerca do tratamento dado a história regional e, relacionando-a com
2 Prova disso é a coletânea de textos coordenada por Marcos A. da Silva, intitulada República em
Migalhas, de 1990, obra que reúne textos de historiadores brasileiros que, por caminhos teóricos
e metodológicos distintos, apresentam o tema "História e Região".
96
a proposição de Albuquerque Júnior, indica-se que a intenção do trabalho aqui
proposto seria, precisamente, a de refletir sobre alguns aspectos de duas teses de
doutoramento, sendo a primeira de Osvaldo Zorzato (1998) e a segunda de Lylia
Galetti (2000). Ressaltando a crescente importância dos estudos comparativos,
realizar-se-á, de modo vil, um confronto entre ambas, destacando pontos de
semelhanças e divergências.
Osvaldo Zorzato em sua tese intitulada Conciliação e Identidade:
considerações sobre a historiografia de Mato Grosso (1904-1983), concluída em
1998, procura fazer uma análise da história oficial de Mato Grosso, apontando
para isso algumas características. A matriz teórica seguida por Zorzato esta
embasada, sobretudo no autor Maurice Halbwachs3.
Além da intenção de mostrar como a memória historiográfica de Mato
Grosso se constituiu durante o período que vai de 1904 a 1983, Zorzato tem um
segundo objetivo decorrente do primeiro. Ele pretende averiguar a maneira com
que essa memória sequenciada é utilizada como justificativa de ações políticas e
conduta moral de determinados agentes.
Apontando como os “memorialistas”, historiadores locais e
intelectuais mato-grossense registraram os fatos políticos, econômicos e sociais
referentes ao Mato Grosso, Zorzato utiliza-se de obras como: História de Mato
Grosso, de Virgílio Corrêa Filho; Datas Mato-Grossenses, de Estevão de Mendonça;
Dicionário Biográfico Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça; o Álbum Gráfico
publicado a partir da colaboração de diversos personagens, desde figuras
políticas mato-grossenses até algumas acima citadas, entre outras obras
publicadas em Mato Grosso no período estudado pelo autor.
A construção identitária de Mato Grosso, processo nomeado pelo autor,
ocorre, segundo ele, a partir de 1904, momento em que o estado passa a receber
3 Maurice Halbwachs, autor que trabalha “memória” considerou que a memória de um indivíduo
remete-se sempre a um grupo, uma vez que as lembranças se constituem na esfera coletiva. Para
mais informações ver: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
97
investimentos estrangeiros e imigrantes que chegam ao Estado sob a promessa
de construir uma nova vida garantida pela abundância de terras cultiváveis em
Mato Grosso.
Na medida em que isso ocorre, Zorzato verifica que, concomitantemente,
a historiografia memorialista de Mato Grosso tratou de construir um imaginário
que desse conta de fortalecer uma identidade mato-grossense tratando, inclusive
de distanciar-se de certos estereótipos associados aos mato-grossenses. Para o
autor, as imagens negativas que faziam referência a Mato Grosso eram
enxergadas e disseminadas por personagens estrangeiros ou mesmo por
militares e comerciantes dos mais importantes centros econômicos do Brasil e do
exterior. Zorzato aponta que essas representações negativas, nada propensas a
Mato Grosso
(...) fazem referência a um Estado “atrasado”, “incivilizado” e
“selvagem”, dotado de uma gente “sanguinária”, “vingativa”,
“preguiçosa” e “ignorante”. No conjunto, estes adjetivos
compõem um estereótipo nada favorável a Mato Grosso. Pior
ainda: eles são incorporados como referência explicativa pela
intelectualidade local (...) (ZORZATO, 1998, p. 16)
Em contrapartida a essas características pejorativas, o autor nota que os
escritores trataram de elaborar novos conceitos, pois, necessitam
construir uma memória que os afaste daqueles adjetivos
indesejáveis. Colocando-se como herdeiros e guardiães do povo
a que pertencem, buscam construir imagens e representações
através das quais querem ser vistos. Passam então a se considerar
como sentinelas avançadas da civilização no sertão. Ao invés de
“selvagens”, reforçam a origem paulista quando não “da melhor
estirpe europeia”, e, ao invés de “sanguinários”, constroem
imagens de “revolucionários”, “patriotas” e “destemidos”. (...) se
dizem amantes das artes, da religião, cultuadores da ciência e,
sobretudo da história e da geografia. (ZORZATO, 1998, p. 16)
É no Álbum Gráfico de Mato Grosso, publicado em 1914, que os intelectuais
mato-grossenses encontram um meio de divulgar informações que possam
provar as qualidades de sua gente. Zorzato percebe que essa obra cumpre a
dupla finalidade de, por um lado construir um imaginário capaz de estabelecer
98
laços identitários, e, por outro, afastar estereótipos elaborados externamente.
É relevante considerar que o autor se posiciona de modo impessoal ao
referir-se aos escritores intelectuais do período estudado. Não deixando se
seduzir pelo discurso de suas fontes, Zorzato por vezes percebe a intenção nada
ingênua dos escritores locais de forjarem uma memória peculiar para Mato
Grosso. De acordo com o autor, essa memória estaria preocupada em descrever
acontecimentos, lugares e pessoas, ação que, posteriormente, fundamentaria um
“estoque” de lembranças de uma memória que se quer preservar.
Ao enfatizar a necessidade de se intitularem “gente de boa origem”
“amantes do progresso”, entre outras qualidades, Zorzato percebe que isso ocorre
para garantir a primazia do mando diante das pessoas que migram para Mato
Grosso. Como numa tentativa de se impor e de impedir que os novos habitantes
venham a ocupar o mesmo espaço na escala social dos mato-grossenses natos.
A construção da memória mato-grossense passa, então, de almejada para
ferramenta de poder:
Se, num primeiro momento, esta historiografia surge como
suporte de uma identidade almejada, num segundo ela se
transforma claramente em suporte de poder. Isto é, o processo
mais geral do exercício de poder incorpora a memória ao
processo histórico, estando a primeira a serviço do segundo.
A exaltação do poder, visível em algumas figuras locais como o Marechal
Rondon, por exemplo, tornam-se suficientes para justificar um estilo de mando
no qual os sujeitos comuns reconhecessem o seu posicionamento na sociedade
mato-grossense.
Permitir compartilhar um espaço comum na escala da ‘pirâmide social’
mato-grossense significava partilhar o prestígio político, igualar-se nas posses e
até mesmo ocupar cargos públicos. Isso, na concepção de Osvaldo Zorzato é
exatamente o que a elite mato-grossense não desejava para si e, portanto,
trataram de forjar uma memória que reforçasse a identidade local, a partir de
99
elementos com os quais desejariam ser lembrados4.
Uma vez dispostos os apontamentos e reflexões contidos na tese de
doutoramento de Osvaldo Zorzato, passemos para uma análise geral da tese de
Lylia Galetti intitulada: Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas
representações sobre Mato Grosso.
A obra é rica em referências, possui uma introdução bem concisa, porém
incitante. No discorrer da obra, Galetti apresenta um conjunto de ideias,
fundamentado no ideário liberal-burguês que se dissemina no ocidente a partir
de países como França, Alemanha, e Bélgica, os quais constroem representações
de progresso. Para fundamentar tal tese, Lylia Galetti bebe, no sentido figurativo,
em fontes como Eric Hobsbawm e Nobert Elias. Tais autores afirmaram que as
ideias de progresso adquirem, sobretudo no início do século XX, muita força e se
disseminam Europa a fora.
Para fundamentar sua tese, a autora utiliza-se de um conjunto de fontes
históricas que vai desde documentos oficias escritos que fazem referência sobre
a sociedade e seus modos de ser, a natureza, a geografia, o solo, fauna e flora,
comércio e outras atividades econômicas, até documentos que tratam da ordem
política, econômica e social da sociedade mato-grossense.
A autora também trata da presunção produzida pela historiografia
europeia acerca da questão eurocentrista, enfatizando a fatuidade de que a
superioridade europeia serviria para dominar o outro. Nesse contexto de
civilização e progresso, Galetti cita a América Latina e salienta que foi uma das
poucas exceções (uma vez que o Japão se inclui) em que com mais empenho se
desenrola a modernização ou tentativas de adaptação de progresso.
Lylia Galetti na parte inicial de sua tese apresenta como o espaço
geográfico compreendido pela capitania de Mato Grosso se materializa como
4 E, também, tratando de eliminar da memória historiográfica aspectos de sua história que
queriam esquecer.
100
uma região colonial. Quanto a segunda parte, utilizo-me das palavras da própria
autora para defini-la: Trata “das representações acerca de Mato Grosso e de suas
populações nas narrativas de viajantes estrangeiros”. Esse momento de sua obra
assume uma característica muito peculiar na medida em que a autora aponta de
maneira organizada as descrições desses personagens sobre o espaço geográfico
dado como mato-grossense.
É ainda na segunda parte da tese que Galetti demonstra as características
(não apreciadas pelos mato-grossenses), de isolamento, vastidão territorial,
pouco populacional, etc.
Na terceira parte de seu trabalho, Lylia Galetti insere uma discussão
pautada na ótica de que embora os brasileiros da capitania fossem influenciados
pelo ideal de progresso e civilização europeu – e tenham, em grande medida
vivido sob esse paradigma – os mesmos encontram-se envolvidos com as
imbricações decorrentes da consolidação de Mato Grosso como Estado da
Federação. Outro fator relacionado a esse momento vivido pelos habitantes de
Mato Grosso colonial foi a questão, fortemente alicerçada, sobretudo na elite
provincial, da construção identitária da nação brasileira.
Ainda na parte III delineia-se a questão do “outro geográfico”, termo de
Marck Bassin, emprestado por Galetti. Para a autora, na perspectiva do “outro
geográfico” o sertão cumpriria uma função arbitrária e negativa de “bode
expiatório”, elemento interno a nação. Contudo, a autora nota que para além
dessa arbitrariedade relacionada ao sertão, os mato-grossenses passam a tomá-
lo como referência para a própria nacionalidade.
Os conflitos políticos eram muito intrincados no início da República,
permitindo que o personalismo imperasse, assim como as vaidades e egos das
figuras políticas daquele momento, que eram evidentes. Contudo, Galetti lembra
que esse cenário não era apenas verificado no sertão como também o era em
outras regiões da República. Esses apontamentos de Galetti são relevantes
por mostrar que mesmo desejando livrar-se das referências pejorativas (a
101
exemplo de serem habitantes do sertão) para celebrarem o progresso e a
civilização que Mato Grosso vivia, seus habitantes não se desvinculam de seus
modos de ser/viver. Isso porque eles também desejam naquele momento
fundamentar os elementos que comporiam a identidade local (do Estado recém-
criado) e, além disso, os mato-grossenses estavam formulando a imagem que a
nação como um todo teria acerca de Mato Grosso.
Países com histórico colonial, representados como vazios viam a sua
própria fronteira como lugar privilegiado onde o discurso se detém para
diagnosticar o atraso da nação e aferir suas possibilidades de encurtar as distâncias
que a separam do modelo europeu de progresso e civilização (GALETTI, 2000, p.
26). No caso do Brasil, a autora inclui esse mesmo modo de constatar a
ambiguidade sertão/progresso, uma vez que percebe os sertões da pátria como
um limite entre a barbárie e a civilização na própria nação:
Entretanto, na condição de espaço da nação, o sertão passaria a
ser visto também como um patrimônio territorial não explorado,
com o qual o Brasil podia contar nas projeções de seu futuro de
nação grande e rica, com amplas possibilidades de vencer os
obstáculos que se interpunham em sua marcha para a civilização
e, ainda, como um espaço onde se podia encontrar genuínas
expressões da cultura e das tradições nacionais. (GALETTI, 2000,
p.165)
Com efeito, Lylia Galetti infere que ao mesmo tempo em que Mato Grosso
era desvalorizado em virtude das distâncias geográficas, históricas e culturais que
o separavam do mundo e do Brasil civilizado, havia a valorização em torno das
noções de sertão e fronteira da pátria na medida em que ambas tornam-se
fundamentais para a ideia de nacionalidade brasileira, um duplo conceito que
estava sendo fundamentado e discutido nas primeiras décadas do século XX.
Assim,
ao contrário do viajante estrangeiro, para quem esse lugar era
parte de um país estranho e com o qual estabelecia uma relação
de completa exterioridade, para aqueles brasileiros a região era
102
parte de um espaço geográfico que se definia no mapa do
mundo como o seu país. Desse modo, quando falavam sobre
Mato Grosso eles falavam também do Brasil, elaborando uma teia
de representações em que o território e a gente mato-grossense
eram percebidos a partir de um referencial simbólico que está de
todo ausente da literatura estrangeira: a nação brasileira.
(GALETTI, 2000, p. 162)
Galetti aponta que o modelo de civilização europeia, ao ser adotado pelas
elites sul-americanas sofreu contradições, pois as elites tinham a necessidade de
se modernizar sem perder suas concepções identitárias. Ou seja, não se
abandonava aspectos da sua própria identidade para se auto-determinar no
ideário liberal-burguês, havendo, portanto, um limite para a colonização. Estão
inclusas no texto, uma tipologia de atitudes associadas a maneira como os mato-
grossenses colocavam-se diante das imagens estigmatizadas e, conforme
lembrou ZORZATO (1998, p.16), os habitantes dali necessitam construir uma
memória que os afaste daqueles adjetivos indesejáveis, dos estigmas. Contudo,
confrontando o autor, Galetti trata de indicar que o estigma da barbárie não é
associado diretamente a todos os habitantes da província. Para a autora, essa
barbárie remontava apenas aos nortistas (sobretudo, cuiabanos) e estes,
tomavam suas providências para tornar o estado conhecido e para fortalecer a
identidade mato-grossense.
Repudiar os mato-grossenses do sertão significava repudiar suas posses,
o que lhes feria e causava-lhes angústia. Essa constatação remete ao pensamento
de Pierre Bourdieu, ao afirmar que ninguém é obrigado a aceitar os estigmas.
Esses intelectuais que produziram grande parte da historiografia mato-grossense
reagiram aos estigmas de maneiras distintas, ora reconhecendo as críticas ao
estado, porém, em maior proporção, tomando posse dos discursos e defendendo
sua região a partir de fatores históricos, já que para BOURDIEU (1989) a região se
impõe pela manifestação.
103
Irrefutavelmente, havia o apego tanto aos bens materiais como também
aos bens simbólicos5. A população mato-grossense do início do século não se
sentia incivilizada e, justamente por isso surge a necessidade daquela sociedade
se impor e mostrar aos quatro cantos do país que os cidadãos mato-grossenses
também conheciam e (em grande parte) viviam o progresso6.
É possível inferir o dilema apresentado por Galetti – embora nada inocente
como demonstrou ZORZATO (1998) – uma vez que, os símbolos maiores de
modernidade, tais como o telégrafo, a ferrovia e as fábricas, quando não existiam,
eram precários. Mas o simples fato de existirem servia como justificativa aos
mato-grossenses para assegurar que faziam parte da civilização.
Para compreender esse dilema, deve-se perceber que elementos externos
ao sertão, tal como o fato de localizar-se distante demais dos grandes centros,
servia para justificar o atraso econômico e cultural da região. Elementos internos
também pesavam nessa luta de representação7 ou de afirmação nacional, na
medida em que existia, e em boa medida ainda hoje existe, a noção de que a elite
diferencia-se da “ralé”. Essa angústia sentida pela elite mato-grossense resolve-
se de certa forma, no momento em que eles se reconhecem como civilizadores
do sertão assumindo para o Estado, mas não para elite dele, parte da culpa por
serem assim estigmatizados.
À medida que Osvaldo Zorzato (1998) entende o Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) como o responsável pela elaboração e
consolidação da memória local mato-grossense ou como instituição guardiã do
5 A discussão acerca de bens simbólicos e produção cultural pode ser encontrada na obra de
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed. Trad. Fernando Thomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.
6 A Ferrovia Noroeste do Brasil, inaugurada em 1914 é um fator de progresso justificado pelos
mato-grossenses. Para consulta detalhada sobre a ferrovia ver: QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma
ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na 1ª metade do século XX. 1ª. ed. Bauru:
EDUSC, 2004. v. 1. 526 p. 7 Ver CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002,
p. 61-80.
104
ideal que se desejava para constituir a identidade mato-grossense, Lylia Galetti
vai mais a fundo, constatando que essa instituição procura naquele momento,
realizar uma inversão dos elementos negativos que projetavam a
imagem de um Mato Grosso bárbaro e incivilizado. Investindo na
memória de um épico passado bandeirante e na projeção de um
futuro de progresso e civilização, os intelectuais mato-grossenses
reservaram aos índios e à população pobre mestiça, aqueles
mesmos atributos raciais e a mesma avaliação negativa sobre
seus hábitos e costumes que permitiram aos viajantes
estrangeiros considerá-la como uma gente indolente, falta de
espírito empreendedor, numa palavra, incivilizada. (GALETTI,
2000, p. 33)
Parafraseando E. Hobsbawm, com zelo e brutalidade, a autora remete a
questão dos indígenas, entendida como um entrave para o progresso. Tendo em
vista que a política do branqueamento ocorre no Brasil principalmente após 1930,
já com o advento da República, o extermínio dos indígenas, seria, portanto,
requisito para se atingir a civilização ideal.
Zorzato, por sua vez, bem observou a maneira como a
historiografia local retratou a questão dos indígenas. Evidenciando que a posição
do índio ao ganhar visibilidade era secundária (e até mesmo negligenciada em
algumas circunstâncias), mesmo tendo o conhecimento de que a participação do
índio no processo de formação daquela sociedade fosse inegável. No entanto, se
incluíssem o índio como agente ativo na historiografia local, os intelectuais
memorialistas mato-grossenses entrariam em choque com a proposta por eles
apresentada de possuírem origem europeia.
105
Considerações Finais
Atitude comum na historiografia brasileira e, logo, na regional, é a de
fornecer explicações dos fatos a partir de elementos externos à região. Os
memorialistas e historiadores locais de Mato Grosso, não escaparam desse
paradigma, tratando de explicar as características negativas de Mato Grosso,
deixando, por vezes, de considerar os fatores internos. Como em uma perspectiva
na qual os acontecimentos ocorridos no interior da sociedade mato-grossense
pudessem encontrar explicações fora dessa sociedade.
Os estigmas abordados por Zorzato servem de exemplo na medida em
que a ausência de progresso, por exemplo, explica-se pelo fato de Mato Grosso
encontrar-se muito distante dos grandes centros do país. Na obra de Lylia Galetti,
é possível perceber certa preocupação em evidenciar que as elites mato-
grossenses eram componentes de um mundo civilizado que aspirava para si um
futuro de glórias sem apagar a memória de um povo que se dizia orgulhoso por
terem desbravado o sertão. Além desse desejo, Galetti enxerga nas leituras das
representações por ela pesquisada, que havia também a necessidade de incluir
Mato Grosso como essencial na narrativa da nação brasileira, papel esse que vai
além de ser um mero apêndice da epopeia bandeirante. Motivo de orgulho, entre
tantos outros, era o fato de terem garantido a preservação de sua gente,
mantendo acesa a luz da civilização brasileira.
Ponto de encontro entre as teses aqui discutidas é o fato de ambas terem
produzido uma leitura acerca das representações presentes na historiografia
mato-grossense. Contudo, na medida em que Zorzato direcionou seu trabalho
para uma análise das obras de escritores mato-grossenses e de relatos de
viajantes que para Mato Grosso se direcionavam, o autor limitou sua pesquisa ao
fazer apenas uma análise da constituição da história oficial de Mato Grosso,
106
através de um caminho calcado por “tramas de uma memória elitista e
excludente”.
Enquanto a tese de Osvaldo Zorzato apresenta o resultado do processo
pelo qual Mato Grosso viveu no século XX, Lylia Galetti demonstra como esse
processo se desenvolveu, identificando que as representações lidas por ela
tratam-se de uma visão linear da história.
Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Objeto em Fuga: algumas reflexões
em torno do conceito de região. Fronteiras, Dourados, MS, v. 10/17, p. 55-67,
2008.
BARBOSA, Agnaldo de Souza. Redescobrindo o Brasil: os desafios da História
Local e Regional. XII Semana de História. Franca: UNESP, 1998. Disponível em:
http://www.franca.unesp.br/PROPOSITO_REGIONAL.pdf
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed. Trad. Fernando Thomaz. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e
identidade nas representações sobre Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
SILVA, Marcos A. (coord.) República em Migalhas: história regional e local. São
Paulo: Marco Zero, 1990.
ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e identidade: considerações sobre a
historiografia de Mato Grosso (1904-1983). 1998. Tese (Doutorado em História
Social). FFLCH/Universidade de São Paulo, São Paulo.