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AQUECIMENTO GLOBAL, OCEANOS & SOCIEDADE Paulo Nobre
RESUMO Presente na agenda científica internacional há décadas, onde era debatido e dissecado
pelos pares, o tema ‘aquecimento global’ chega aos lares e escritórios despido de meios
tons, com a contundência de verdades absolutas transmitidas pela mídia falada e escrita.
Subitamente um número crescente de indivíduos toma ciência das ‘mudanças climáticas’,
sem saber exatamente o que isso significa, mas com certa noção de urgência... ou
descrédito. Este artigo aborda a intrincada questão de forma descomplicada, buscando
explicar o que é o aquecimento global e de que forma as atividades humanas o afetam,
sublinhando os serviços dos oceanos e das florestas para a estabilidade do clima. Além
disso, especula sobre o pensamento de que o ser humano é parte do problema e que
meias ações e atitudes não mais bastam para o futuro da humanidade na Terra.
Palavras-chave: hidrosfera-biosfera-clima; sociedade; meio ambiente.
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Aquecimento Global, Oceanos & Sociedade
Paulo Nobre INTERFACEHS
Conseqüência do acúmulo de gases de efeito estufa de origem antrópica na
atmosfera, o aquecimento global vem causando o aumento das temperaturas do ar e dos
oceanos, a elevação do nível médio do mar e a retração das geleiras globais (Figura 1),
além do aumento da ocorrência de fenômenos meteorológicos extremos. Tal aquecimento
é o resultado da amplificação de uma característica natural da atmosfera terrestre
chamada ‘efeito estufa’; consiste na transparência atmosférica para a radiação solar de
onda curta, na faixa do espectro das radiações visíveis, e a opacidade atmosférica à
radiação terrestre de onda longa, ou infra-vermelho, emitida para o espaço. Na ausência
do efeito estufa, a temperatura média da superfície da terra seria -15°C a -18C°, ou seja,
toda a água seria congelada e não haveria vida. Os principais gases de efeito estufa são
o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e os óxidos nitrosos (N2O). O vapor d’água é
também um potente gás de efeito estufa, com forte potencial de retroalimentação positiva
(por exemplo, a solubilidade do vapor d’água na atmosfera é diretamente proporcional à
temperatura); assim, uma atmosfera mais aquecida (por exemplo, em razão do aumento
dos gases de efeito estufa de origem antropogênica) dissolverá maior quantidade de
vapor d’água, o qual aumentará ainda mais a retenção de calor nas camadas baixas da
atmosfera, amplificando assim o aquecimento inicial.
Na ausência de mecanismos compensadores (por exemplo, a fotossíntese e o
ciclo hidrológico) os processos de retroalimentação positiva da água somente permitiriam
dois tipos de clima estáveis: ou uma atmosfera onde toda a água estaria na forma de
vapor (o caso de uma perturbação inicial de aquecimento, como descrito acima), ou uma
em que toda a água estaria congelada (no caso de uma perturbação inicial de
resfriamento, através do processo de retroalimentação positivo da radiação solar e o
albedo da neve: uma diminuição inicial da temperatura levaria ao aumento das regiões
cobertas por neve, que levaria à diminuição da temperatura).
A ALTERAÇÃO DA COMPOSIÇÃO QUÍMICA DA ATMOSFERA
Resultado do desequilíbrio entre as emissões de carbono pelas atividades
humanas, ou seja, queima de combustíveis fósseis (6,4 GtC/ano) e desflorestamentos
tropicais (1,6 GtC/ano), e a remoção do CO2 atmosférico pelas plantas (3,0 GtC/ano) e
pelos oceanos (1,8 GtC/ano), restam aproximadamente 3,2 GtC/ano que se acumulam na
atmosfera. Tal aumento na massa de gases de efeito estufa na atmosfera é ilustrado
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pelas medidas da concentração de CO2 atmosférico realizadas no observatório de Mauna
Loa, no Havaí, desde 1958 até o presente (Figura 2). É notável observar não somente o
aumento monotônico das concentrações de CO2 (curva principal azul e vermelha na
Figura 2), que presentemente já ultrapassa a marca de 380 ppm, mas principalmente a
taxa de aumento da concentração anual do CO2 atmosférico (mostrado no quadro do
canto inferior direito na Figura 2), que dobrou num período de aproximadamente 30 anos,
passando de ~1 ppm/ano em 1965 para 2+ ppm/ano em 2005. Além disso, inferências
feitas da concentração de dióxido de carbono atmosférico e temperatura do ar a partir de
testemunhos de gelo da Antártica mostram que as concentrações de CO2 atmosféricos
não ultrapassaram a marca de 300 ppm durante os últimos 400 mil anos. Adicionalmente,
as temperaturas do ar guardaram uma proporção direta com a concentração de CO2
durante o período, como se pode ver na Figura 3 (FEDOROV et al., 2006).
Associado ao forte aquecimento de economias de países emergentes com bases
energéticas no carbono e às emissões dos países industrializados durante a década
atual, o aumento da concentração dos gases de efeito estufa tem acompanhado os
cenários de mais altas taxas de emissões formulados pelo Intergovernmental Panel on
Climate Change (IPCC), ilustrados na Figura 4. Somam-se ao aumento das emissões dos
gases de efeito estufa mostrado na Figura 4, evidências observacionais recentes que
sugerem que os oceanos estariam dando sinais de redução da taxa de dissolução de CO2
atmosférico (CANADELL et al., 2007), possivelmente resultante do aumento da
temperatura das águas do mar.
DETECÇÃO E ATRIBUIÇÃO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Há décadas a comunidade científica mundial debate se o aquecimento global da
atmosfera e dos oceanos, detectado de modo inequívoco pelas redes de observações
atmosféricas e oceânicas globais, pode ser atribuído às atividades humanas. Contribuindo
para esclarecer este sofisma, a Figura 5 mostra séries temporais de temperaturas médias
globais simuladas pelo estado da arte de modelos de circulação geral da atmosfera e dos
oceanos para o século XX, comparados aos valores observados da temperatura média
global do período. É notável observar na Figura 5 que as simulações que utilizaram o
conjunto completo de forçantes, ou seja, de origem natural (por exemplo, erupções
vulcânicas e a variabilidade da irradiância solar) e de origem antropogência (por exemplo,
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emissões globais de gases de efeito estufa e particulados), mostram uma notável
concordância com as temperaturas observadas (Figura 5a), enquanto as simulações que
utilizaram somente as forçantes naturais (Figura 5b) não conseguem explicar o
aquecimento atmosférico das últimas décadas. Isto é uma evidência robusta de que os
gases de efeito estufa de origem antrópica são responsáveis por grande parte do
aquecimento atmosférico global observado após a Revolução Industrial. As estimativas
publicadas pelo IPCC (2007) são de que o calor adicional médio retido no sistema solo-
planta-oceano-atmosfera-criosfera devido à contribuição humana no acúmulo de gases de
efeito estufa seja de 1,6 W/m2 (+0,6 a +2,4 W/m2). Ou seja, totalizando para a superfície
do globo terrestre o equivalente à potência elétrica gerada por 58 mil usinas hidrelétricas
de Itaipu (hoje a maior geradora de energia hidrelétrica instalada do planeta) à sua
capacidade máxima de 14 mil MW.
Como ocorre, então, que a média global da temperatura do ar não tenha
aumentado muito mais do que os 0,7°C medidos durante os últimos cem anos (ver Figura
1a)? Ocorre que 80% do calor adicional retido graças ao acúmulo de gases de efeito
estufa na atmosfera tem sido absorvido pelos oceanos, cuja capacidade de armazenar
calor é da ordem de mil vezes a da atmosfera e do solo juntos. A Figura 6 mostra a
variação da quantidade de calor armazenada na camada superior dos oceanos globais
durante os últimos séculos e simulações numéricas do calor armazenado em razão do
aquecimento global (HANSEN et al., 2005). Tal absorção do calor adicional pelos
oceanos, se por um lado tem amortecido grandemente o aumento das temperaturas
atmosféricas globais, por outro lado afeta o sistema climático da Terra em vários
aspectos: (a) o aumento da temperatura da água do mar e a conseqüente diminuição da
solubilidade do CO2 pelos oceanos; (b) o aumento do nível médio do mar por causa da
expansão térmica da água (o gelo marinho, embora importante para os processos de
balanço energético à superfície, não afeta o nível médio dos mares); (c) o derretimento da
calota polar Ártica, afetada pelo aquecimento do ar e, também, do mar. Séries históricas
de temperaturas do ar à superfície indicam que o aumento das temperaturas do ar no
Ártico tem sido o dobro da média global (IPCC, 2007). Em decorrência, a taxa de degelo
do Ártico, com sucessivos recordes de degelo em 2002, 2005 e 2007 (com a perda de
mais de um milhão de quilômetros quadrados de gelo ao final do verão de 2007, relativo
ao recorde anterior), tem superado os cenários mais ‘pessimistas’ do IPCC (por exemplo,
cenário A2) ilustrado na Figura 7.
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Assim, em conjunto, a observação da elevada taxa de degelo do Ártico e do
aumento das emissões antropogênicas de gases de efeito estufa permite antever a
possibilidade de que os cenários de aquecimento global gerados pelo IPCC (Figura 8)
possam ocorrer num prazo menor e com magnitude maior do que antecipado.
O PAPEL DOS OCEANOS E DAS FLORESTAS
Diante desse quadro, as atividades fotossintéticas principalmente das florestas
tropicais úmidas representam um fator preponderante para o ciclo de CO2 atmosférico e
para a manutenção da estabilidade climática global.
Aumentando a atividade fotossintética com o aumento da disponibilidade de
dióxido de carbono (CO2), temperatura e água (até o limite do ponto de estresse hídrico,
no qual a planta morre e se torna fonte de CO2), as florestas tropicais funcionam como
poderosos ‘resfriadores’ da baixa troposfera, consumindo quantidades gigantescas de
calor no processo de evapotranspiração. Por exemplo, a quantidade de calor envolvida na
evapotranspiração pela floresta Amazônica, numa área de 5,5 milhões de quilômetros
quadrados, durante um dia equivale à potência gerada pela usina hidroelétrica de Itaipu
durante um período de aproximadamente 145 anos! (A. D. Nobre, comunicação pessoal).
As árvores não somente participam na diminuição da temperatura atmosférica à
superfície, mas atuam também ativamente no processo gerador de chuva, com a emissão
de compostos químicos voláteis (ARTAXO et al., 1998).
As conexões entre a floresta, a chuva e o clima foram evidenciadas em resultados
recentes de pesquisa utilizando o modelo de circulação geral acoplado oceano-atmosfera
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com cenários de savanização da
Amazônia. Tais resultados indicam que a floresta tem um papel importante na
manutenção das chuvas sobre a Amazônia, e ao mesmo tempo contribui para modular
tanto a intensidade quanto a freqüência do fenômeno El Niño no Pacífico Equatorial e o
aquecimento da superfície do mar sobre o Atlântico Tropical (NOBRE et al., 2007).
Assim, o resultado combinado da savanização da Amazônia provocada pelo
aquecimento global (IPCC, 2007) e da ação antrópica de desmatamento da floresta
amazônica por pressões extrativistas e agropecuaristas é a diminuição da pluviometria
sobre a Amazônia e o aumento da variabilidade climática sazonal sobre o Brasil, com
conseqüências adversas sobre o meio ambiente, a economia e a sociedade.
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MUDANÇAS CLIMÁTICAS & SOCIEDADE
Reverter o sinal do atual desmatamento no Brasil (responsável por 75% de todas
as emissões brasileiras de gases de efeito estufa) para uma taxa sustentada de
reflorestamento com espécies nativas de florestas tropicais úmidas é um desafio cuja
grandeza não ficará atrás da construção das Pirâmides do Egito, da Grande Muralha da
China, ou do caminhar do homem na Lua... mas que será lembrada com gratidão pelas
gerações que seguirão.
Na visão do autor deste artigo, não existe fórmula mágica para enfrentar o
aquecimento global, que não passe por mudanças paradigmáticas profundas da
sociedade, de cada indivíduo. Tais mudanças vão muito além do simples entendimento
das interrelações da biosfera-hidrosfera-criosfera-atmosfera e incluem,
fundamentalmente, o ser humano na profundidade de suas dimensões psíquica, física e
mental, e todas as suas atitudes no confronto da realidade de que o homem faz parte do
‘meio ambiente’, com suas responsabilidades inerentes a um ser espiritual.
REFERÊNCIAS ARTAXO, P.; FERNANDES, E. T.; MARTINS, M. V.; YAMASOE, M. A.; HOBBS, P. V.;
MAENHAUT, W.; LONGO, K. M.; CASTANHO, A. Large-scale aerosol source
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CANADELL, J. G.; QUÉRÉ, C. L.; RAUPACH, M. R.; FIELD, C. B.; BUITENHUIS, E. T.;
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HANSEN, J.; NAZARENKO, L.; RUEDY, R.; SATO, M.; WILLIS, J.; GENIO, A. D.; KOCH,
D.; LACIS, A.; LO, L; MENON, S.; NOVAKOV, T.; PERTWITZ, J.; RUSSELL, G.;
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Climate, TBS, 2007.
Artigo recebido em 07.12.07. Aprovado em 29.01.08.
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Figuras
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O CLAMOR POR JUSTIÇA AMBIENTAL E CONTRA O RACISMO AMBIENTAL Selene Herculano
RESUMO Este artigo enfoca o tema ‘Justiça Ambiental’ resenhando os principais aspectos de sua
produção teórica e fazendo um breve relato de casos em acervo. Historia a criação da
Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do GT contra o Racismo Ambiental. O objetivo é
apresentar e divulgar entre nós uma linha de pesquisa e de ação no campo do
Ambientalismo e da Sociologia Ambiental, que busca analisar, pela perspectiva das
hierarquias sociais – das desigualdades de classe –, a problemática da poluição
ambiental e das conseqüentes ameaças à saúde coletiva de populações vulnerabilizadas.
Para dar conta desse objetivo, historiamos o conceito de Justiça Ambiental e o seu
surgimento nas lutas norte-americanas desenvolvidas primordialmente pelo seu
movimento negro e por etnias como a dos ‘chicanos’. Pesquisadores e ativistas
ambientais brasileiros esforçaram-se para adaptar à nossa realidade e encorajar entre
nós essa perspectiva, desembocando na realização de dois eventos importantes: o
Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania (UFF, Niterói, set.
2001), quando se criou a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e se redigiu a sua
declaração de lançamento, aqui transcrita; e o I Seminário Brasileiro contra o Racismo
Ambiental (UFF, nov. 2005).
Palavras-chave: justiça ambiental; racismo ambiental, conflito ambiental.
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O Clamor por Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental
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O QUE É JUSTIÇA AMBIENTAL
Por ‘Justiça Ambiental’ entenda-se o conjunto de princípios que asseguram que
nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma
parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações
econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes
da ausência ou omissão de tais políticas.
Complementarmente, entende-se por ‘Injustiça Ambiental’ o mecanismo pelo qual
sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento
a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais
discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis.
O conceito de Justiça Ambiental vem da experiência inicial dos movimentos sociais
dos Estados Unidos e do clamor dos seus cidadãos pobres e etnias socialmente
discriminadas e vulnerabilizadas, quanto à sua maior exposição a riscos ambientais por
habitarem nas vizinhanças de depósitos de lixos químicos e radioativos ou de indústrias
com efluentes poluentes. Como definiu Robert Bullard, Justiça Ambiental é
a busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as
pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda no que diz
respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço de
políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que
nenhum grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de
classe, deva suportar uma parcela desproporcional das conseqüências
ambientais negativas resultantes de operações industriais, comerciais e
municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais,
locais ou tribais, bem como das conseqüências resultantes da ausência ou
omissão destas políticas.
CASOS EMBLEMÁTICOS NORTE-AMERICANOS
Esse clamor por Justiça Ambiental começou a ser organizado nos Estados Unidos,
como iniciativa de cidadãos e como campo teórico/acadêmico, depois do caso de
contaminação química em Love Canal, Niagara, estado de Nova York. Lá, a partir de
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1978, moradores de um conjunto habitacional de classe média baixa descobriram que
suas casas haviam sido erguidas junto a um canal que tinha sido aterrado com dejetos
químicos industriais e bélicos (LEVINE, 1979; LEVINE, 1982; GIBBS, 1998).
Pouco depois, em 1982, moradores da comunidade negra de Warren County,
Carolina do Norte, também descobriram que um aterro para depósito de solo contaminado
por PCB (polychlorinated biphenyls) seria instalado em sua vizinhança. Data daquele ano
o primeiro protesto nacional feito pelos afro-americanos contra o que chamaram de
‘racismo ambiental’. A partir daí, o movimento negro norte-americano sensibilizou
congressistas, e o US General Accounting Office conduziu uma pesquisa que mostrou
que a distribuição espacial dos depósitos de resíduos químicos perigosos, bem como a
localização de indústrias muito poluentes nada tinham de aleatório: ao contrário, se
sobrepunham à distribuição territorial das etnias pobres nos Estados Unidos e a
acompanhavam.
Em 1983 um estudo oficial, realizado pelo GAO (United States General Accounting
Office) encontrou quatro aterros de rejeitos perigosos na Região 4 da EPA (Environmental
Protection Agency), que compreende Alabama, Flórida, Geórgia, Kentucky, Mississippi,
Carolinas do Norte e do Sul e Tennessee. Três desses quatro aterros estavam localizados
em comunidades afro-americanas, apesar de os negros serem apenas um quinto da
população da região.
No sul da Louisiana, em uma região conhecida como a Cancer Alley [Alameda do
Câncer], e também no cinturão negro do Alabama, se concentram incineradores e
depósitos de rejeitos perigosos. O maior aterro comercial de lixo tóxico dos Estados
Unidos, que recebe rejeitos retirados dos procedimentos de descontaminação, está
localizado na cidade de Emelle, no Alabama, onde os negros formam 90% da população
e 75% dos residentes do Condado de Sumter.
Uma localidade a sudeste de Chicago, onde habitavam 150 mil pessoas, dos quais
70% negros e 11% latinos, tinha contabilizado em 1991, segundo a Greenpeace, 50
aterros de lixo tóxico, 100 fábricas (das quais 7 indústrias químicas e 5 siderúrgicas) e
103 depósitos abandonados de lixo tóxico na sua comunidade.
Não apenas os negros são o alvo da prática de localização dos depósitos de
resíduos perigosos e de incineradores: segundo Bullard, na Califórnia, a zona de
ocupação latina do leste de Los Angeles e de Kettleman (uma comunidade rural de cerca
de 1.500 habitantes, das quais 95% são latinos) também é alvo dessas escolhas. O
mesmo se diz dos povos indígenas: mais de 36 reservas indígenas receberam aterros e
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O Clamor por Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental
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incineradores: Em 1991, os Choctaws da Filadélfia do Mississippi conseguiram derrotar
um projeto de alocar um aterro de lixo de 466 acres em seu meio. Naquele mesmo ano, a
reserva de Rosebud, em Dakota do Sul, se viu ameaçada por uma empresa de
Connecticut que se propunha a construir ali um aterro de lixo de 6 mil acres.
Os cidadãos norte-americanos afetados passaram a se organizar em coalizões
nacionais. Os militantes de Love Canal fundaram primeiramente a Clearinghouse for
Hazardous Waste, Inc. (CHHW) e, depois, o Center for Health, Environment and Justice
(CHEJ), que hoje opera no apoio a movimentos comunitários que enfrentam problemas
similares. Os militantes negros criaram a Citizens Against Nuclear Trash (CANT), dentre
outros; em 1987 a United Church of Christ Commission for Racial Justice fez um estudo
nacional sobre lixo tóxico e raça; em 1991 o movimento negro realizou o First National
People of Color Environmental Leadership Summit.
No campo da formulação e implementação de mecanismos políticos, o movimento
por justiça ambiental foi o influenciador de toda uma legislação norte-americana, como,
por exemplo, a que diz respeito aos procedimentos para os clean-ups (descontaminação),
a legislação sobre o direito à informação sobre o que existe ou existirá em uma dada
vizinhança (“Right to know Act”) e a criação de fundos direcionados às comunidades
afetadas, dando-lhes meios financeiros para contratar serviços técnicos e advocatícios
(DOWER, 1995; SAPIRO, 1995; GIBBS, 1998).
No meio acadêmico norte-americano, na área da Sociologia Ambiental, programas
de pós-graduação e centros de estudo foram sendo criados:
• Environmental Justice Research Center (EJRC), Universidade de Atlanta, Geórgia;
• Deep South Center for Environmental Justice, Xavier University, Louisiana;
• Environmental Justice Program, School of Natural Resources and Environment,
Universidade de Michigan.
Dezenas de livros já foram produzidos sobre o tema, dentre os quais: Bullard
(1990), Bullard (1993), Szasz (1994), Bryant (1995), Gould, Schnaiberg & Weinberg
(1996), Camacho (1998), Levine (1982), Mazur (1998) e Roberts & Toffolon-Weiss (2001).
A partir do final da década de 1990, novos estudos foram sendo realizados, historiando a
reivindicação por justiça ambiental em outros países, além dos Estados Unidos: Faber
(1998), Collinson (1997) e Taylor (1995).
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O Clamor por Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental
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AMPLIANDO A TEMÁTICA: INCORPORANDO NO BRASIL OUTRAS CARÊNCIAS E INIQÜIDADES
A temática da Justiça Ambiental nos interessa em razão das extremas
desigualdades da sociedade brasileira. No Brasil, país das grandes injustiças, o tema da
justiça ambiental é ainda incipiente e de difícil compreensão, pois a primeira suposição é
de que se trate de alguma vara especializada em disputas diversas sobre o meio
ambiente. Os casos de exposição a riscos químicos são pouco conhecidos e divulgados,
à exceção do estado de São Paulo, tendendo a se tornarem problemas crônicos, sem
solução. Acrescente-se também que, dado o nosso amplo leque de agudas
desigualdades sociais, a exposição desigual aos riscos químicos fica aparentemente
obscurecida e dissimulada pela extrema pobreza e pelas péssimas condições gerais de
vida a ela associadas. Assim, ironicamente, as gigantescas injustiças sociais brasileiras
encobrem e naturalizam a exposição desigual à poluição e o ônus desigual dos custos do
desenvolvimento.
Existe, no entanto, um conjunto de ações e movimentos sociais no país que
podem ser identificados como de busca por ‘Justiça Ambiental’, mesmo que sem o uso
dessa expressão. É o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens, dos movimentos
de trabalhadores extrativistas resistindo contra o avanço das relações capitalistas nas
fronteiras florestais, e de inúmeras ações locais contra a contaminação e a degradação
dos espaços de vida e trabalho.
No caso do Brasil, portanto, o potencial político do movimento pela justiça
ambiental é enorme. O país é extremamente injusto em termos de distribuição de renda e
acesso aos recursos naturais, e sua elite governante tem sido especialmente egoísta e
insensível, defendendo de todas as formas os seus interesses e lucros, até lançando
mão, em muitos casos, da ilegalidade e da violência. O sentido de cidadania e de direitos
ainda encontra um espaço relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da luta de
tantos movimentos e pessoas em favor de um país mais justo e decente. Tudo isso se
reflete no campo ambiental. O desprezo pelo espaço comum e pelo meio ambiente se
confunde com o desprezo pelas pessoas e comunidades. Os vazamentos e acidentes na
indústria petrolífera e química, a morte de rios, lagos e baías, as doenças e mortes
causadas pelo uso de agrotóxicos e outros poluentes, a expulsão das comunidades
tradicionais pela destruição dos seus locais de vida e trabalho, tudo isso, e muito mais,
configura uma situação constante de injustiça socioambiental no Brasil, que vai além da
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O Clamor por Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental
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problemática de localização de depósitos de rejeitos químicos e de incineradores da
experiência norte-americana.
O ambientalismo brasileiro, por sua vez, tem um grande potencial para se renovar
e expandir o seu alcance social, na medida em que se associe e se solidarize com as
massas pobres e marginalizadas, que vêm se mobilizando em favor dos seus direitos. Os
movimentos sindicais, sociais e populares, entre outros, também podem renovar e ampliar
o alcance da sua luta se nela incorporarem a dimensão da justiça ambiental, o direito a
uma vida digna e em um ambiente saudável. Todas essas lutas, na realidade,
representam uma só e mesma luta pela democracia, pelo bem comum e pela
sustentabilidade.
Assim, tendo em vista o maior grau de desigualdades e de injustiças
socioeconômicas, bem como a renitente política de omissão e negligência no atendimento
geral às necessidades das classes populares, a questão da justiça ambiental, para ser
adequadamente equacionada entre nós, deve açambarcar também outros aspectos, tais
como as carências de saneamento ambiental no meio urbano e a degradação das terras
usadas para acolher os assentamentos de reforma agrária, no meio rural. Pois não são
apenas os trabalhadores industriais e os moradores no entorno das fábricas aqueles que
pagam, com sua saúde e suas vidas, os custos das externalidades da produção das
riquezas brasileiras, mas também os moradores dos subúrbios e periferias urbanas onde
fica espalhado o lixo químico, os moradores das favelas desprovidas de esgotamento
sanitário, os lavradores no campo, levados a consumir agrotóxicos que os envenenam, e
as populações tradicionais extrativistas, progressivamente expulsas de suas terras de uso
comunal.
Por conta da vulnerabilidade dessas populações e do baixo grau de associativismo
e de exercício de cidadania ainda presentes na cultura política brasileira, as iniciativas
que convergem para a temática da Justiça Ambiental têm se desenvolvido mais através
de movimentos ambientalistas formados por uma classe média de alta escolaridade e
mais informada, alguns sindicatos profissionais, como os dos químicos e petroleiros, e
comissões de meio ambiente de federações sindicais, do que por conta de movimentos
de base e/ou coalizões de movimentos de cidadãos pobres afetados, como nos exemplos
norte-americanos anteriormente citados.
Alguns fatores genéricos e ideológicos têm contribuído para dificultar a percepção
das injustiças ambientais, da distribuição desigual dos riscos ambientais entre países e
entre classes sociais e etnias:
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1. o produtivismo generalizado e também assumido pelo movimento operário;
2. o conservacionismo de uma corrente do movimento ambientalista que ignora as
questões do universo da produção e que acredita que os problemas ambientais
são ‘democráticos’, por atingirem a todos, o que só é verdade a longo prazo
quando, como lembrou o economista Keynes, ‘todos estaremos mortos’;
3. um pragmatismo imediatista que, ao destacar a reconhecida prioridade de se ter o
que comer e onde se abrigar, acaba desqualificando as buscas por justiça
ambiental e qualidade de vida e tornando-se um pensamento resignado.
Para o movimento operário a questão do ‘dilema’ entre preservação dos postos de
trabalho e proteção ao meio ambiente sempre foi colocada como um limitador de suas
ações. Assim, cria-se à força, pela cumplicidade involuntária dos trabalhadores, em nome
da sua sobrevivência econômica, um quadro de injustiça crônica e de aceitação resignada
das fatalidades ambientais.
Hoje, essa visão – ou trabalho ou ambiente limpo – está sendo contestada e
superada, segundo o sociólogo Paulo Martins, por trabalhos realizados fora e dentro do
movimento sindical: o WorldWatch Institute, através de seu pesquisador Michael Renner,
elaborou em setembro de 2000 o texto “Working for the Environment: a Growing Sorce of
Jobs”, em que demonstra o quanto se pode gerar em postos de trabalho através da
redefinição de uma política ambiental, do uso de energias alternativas, de novas formas
de extração de recursos naturais, da ampliação da vida útil dos produtos, da ampliação
dos serviços relativos a consertos desses produtos. Várias centrais sindicais vêm
refletindo sobre essa questão, propondo novas formas de organizar a produção, novas
tecnologias, que proporcionem elevado nível de uso da força de trabalho e preservação
do meio ambiente. Esse é o caso do trabalho organizado por Jorge Riechmann e
Francisco Fernandes Buey, intitulado Trabalhar sin Destruir – Trabajadores, sindicato e
ecologismo.
No Brasil, o marco inicial de sistematização e divulgação da problemática referente
à Justiça Ambiental foi a coleção intitulada “Sindicalismo e Justiça Ambiental”, publicada
em 2000 pela Central Única dos Trabalhadores (CUT/RJ), em conjunto com o Ibase e o
Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano (Ippur) da UFRJ, e com o apoio da
Fundação Heinrich Böll. O intuito era “estimular a discussão sobre a responsabilidade e o
papel dos trabalhadores e das suas entidades representativas, na defesa de um meio
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ambiente urbano sustentável e com qualidade de vida acessível a todos os seus
moradores”, dentro da “perspectiva de crítica ao modelo dominante de desenvolvimento”
e entendendo que os “recursos ambientais são bens coletivos, cujos modos de
apropriação e gestão são objeto de debate público”. Também em 2000, o sociólogo Paulo
Roberto Martins apresentava em congresso um estudo em que descrevia casos de
sindicatos que têm desenvolvido ações que indicam a institucionalização de uma luta por
justiça ambiental, envolvendo tanto os trabalhadores e suas instituições representativas
quanto os moradores do entorno das fábricas e os movimentos ambientalistas: por
exemplo, o caso do Sindicato dos Químicos de São Paulo, na sua luta contra a
Neclemom, empresa estatal pertencente à Nuclebrás, e do Sindicato do Químicos do ABC
na sua luta contra a empresa Solvay, no estado de São Paulo. Seu estudo contrastava os
avanços ocorridos nesse campo dentro da CUT com a compreensão ainda parcial que
têm seus dirigentes a esse respeito.
A temática da Justiça Ambiental também vem sendo elaborada em seus pontos de
interseção com o estudo dos aspectos sociais da construção e usos da ciência e da
tecnologia e do poder de definição das realidades por parte da comunidade científica e
dos saberes jurídicos. Isto implica a necessidade de:
1. articulação de uma ciência-cidadã que assessore a população (entre as
ciências naturais, para o conhecimento dos riscos e dos efeitos das tecnologias
de produção sobre a saúde humana; entre as ciências sociais, para que
perceba a dimensão social e política presente na construção dos riscos e se
organize em suas lutas);
2. da construção de uma cultura jurídica aberta para dar acessibilidade a um
Judiciário justo e operante.
Analisando essa interseção, apontamos nesta resenha não-exaustiva o livro de
McAvoy (1999), Controlling technocracy, citizen rationality and the NIMBY syndrome, e a
tese de doutoramento de Carlos Machado de Freitas intitulada Acidentes químicos
ampliados: incorporando a dimensão social nas análises de riscos.
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O COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE JUSTIÇA AMBIENTAL, TRABALHO E CIDADANIA
Para dar conta dessas questões, o Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental,
Trabalho e Cidadania, realizado na Universidade Federal Fluminense, em setembro de
2001, foi, se não a primeira, uma das primeiras iniciativas de cunho acadêmico e político a
se organizar no Brasil, discutindo enfoques teóricos e implicações políticas da proposta de
Justiça Ambiental; histórico e avaliação de campanhas e ações de cidadania; casos de
injustiça ambiental no Brasil e na América Latina; trabalho e Justiça Ambiental na
experiência dos sindicatos; reflexão política e construção de uma agenda; proposta de
parcerias e de uma coalizão internacional.
Nele se reuniram os seguintes pesquisadores e ativistas: Robert Bullard, do
Environmental Justice Research Center da Universidade de Atlanta (EUA); Kenneth
Gould, da St. Lawrence University (EUA); Adeline Levine, da Universidade de Buffalo
(EUA); Murray Levine, do Center for Health and Environmental Justice (CHEJ, EUA);
Beverly Wright, do Deep South Center for Environmental Justice da Universidade Xavier
da Louisiana (EUA); David Camacho, na Northern Arizona University (EUA); Cristina
Hurtado, do Instituto de Ecologia Politica e da Rede Chile Sustentable; Carlos Surroca, do
Uruguay Sustentable; Timmons Roberts, diretor do Mellon Program in Environmental
Studies do College William and Mary; Henri Acselrad e Carlos Vainer, ambos da
UFRJ/Ippur; José Augusto Pádua, do Projeto Brasil Sustentável e Democrático; Selene
Herculano, da UFF/Laboratório de Estudos de Cidadania, Territorialidade, Trabalho e
Ambiente (LACTTA); Jean Pierre Leroy, da Fase; Marcelo Firpo de Souza Porto e Carlos
Machado de Freitas, ambos da Fiocruz; Eduardo Paes Machado, da UFBA; Carlos
Bocuhy, da Campanha Billings te quero viva e conselheiro do Consema/SP; Paulo
Roberto Martins, da Comissão de Meio Ambiente da CUT; João Carlos Gomes, da
Associação dos Contaminados por Organoclorados (ACPO); Fernanda Giannasi, da Rede
Virtual Cidadã pelo Banimento do Amianto; Alfredo Wagner B. de Almeida, antropólogo;
José Contreras Castillo, do Movimento em Defesa da Vida (MDV) do Grande ABC; Juvenil
Nunes da Costa, do Sindicato dos Químicos do ABC, Marco Antônio Trierveiller e Sadi
Baron, ambos do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Salvador Alves de
Oliveira, do Sindicato dos Petroleiros de Caxias/RJ; Ney Santos Oliveira, da UFF e do
Movimento Negro; Samuel Karajá, do Movimento Rios Vivos, Temístocles Marcelo Neto,
da Diretoria da CUT, e Edson Satochi Yamagawa, do Sindicato dos Petroleiros de Santos.
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Além destes palestrantes, a audiência reuniu cerca de oitenta pessoas, de movimentos
ambientalistas e sociais (Movimento de Ecologia Social Os Verdes, Roda Viva, Federação
das Associações de Moradores de Niterói, Rede Brasileira de Florestas [Rebraf],
Sintravale, Ecocidade, Koinonia, Ibase, Instituto Gini Germani, de Buenos Aires),
professores e alunos de programas de pós-graduação que trabalham a temática
ambiental. Em janeiro de 2002, novas adesões aconteceram durante o Fórum Mundial II,
em Porto Alegre.
Na ocasião, foi criada a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e redigida a
declaração transcrita a seguir:
DECLARAÇÃO DE LANÇAMENTO DA REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL
Representantes de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores,
ONGs, entidades ambientalistas, organizações de afro-descendentes,
organizações indígenas e pesquisadores universitários, do Brasil, Estados Unidos,
Chile e Uruguai, reuniram-se no Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental,
Trabalho e Cidadania, realizado em Niterói de 24 a 27 de setembro de 2001.
Nessa ocasião denunciaram e debateram a preocupante dimensão ambiental das
desigualdades econômicas e sociais existentes nos países representados.
A injustiça ambiental que caracteriza o modelo de desenvolvimento
dominante no Brasil foi o foco das discussões. Além das incertezas do
desemprego, da desproteção social, da precarização do trabalho, a maioria da
população brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos
locais de trabalho e de moradia, seja no ambiente em que circula. Trabalhadores e
população em geral estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias
perigosas, da falta de saneamento básico, de moradias em encostas perigosas e
em beiras de cursos d’água sujeitos a enchentes, da proximidade de depósitos de
lixo tóxico, ou vivendo sobre gasodutos ou sob linhas de transmissão de
eletricidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, são os que têm menor
acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à segurança fundiária.
As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e social, que
nas cidades leva à periferização de grande massa de trabalhadores, e, no campo,
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por falta de expectativa em obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para
os grandes centros urbanos.
As populações tradicionais de extrativistas e os pequenos produtores, que
vivem nas regiões da fronteira de expansão das atividades capitalistas, sofrem as
pressões do deslocamento compulsório de suas áreas de moradia e trabalho,
perdendo o acesso à terra, às matas e aos rios, sendo expulsos por grandes
projetos hidrelétricos, viários ou de exploração mineral, madeireira e agropecuária.
Ou então têm as suas atividades de sobrevivência ameaçadas pela definição
pouco democrática e pouco participativa dos limites e das condições de uso de
unidades de conservação.
Todas essas situações refletem um mesmo processo: a enorme
concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que caracteriza a
história do país. Uma concentração de poder que tem se revelado a principal
responsável pelo que os movimentos sociais vêm chamando de ‘injustiça
ambiental’. Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades
desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos
danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos
raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às
populações marginalizadas e vulneráveis. Por ‘justiça ambiental’, ao contrário,
designamos o conjunto de princípios e práticas que:
a) asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de
classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências
ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de
políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da
ausência ou omissão de tais políticas;
b) asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos
ambientais do país;
c) asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso
dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de
fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e
participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos
que lhes dizem respeito;
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d) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos,
movimentos sociais e organizações populares para serem
protagonistas na construção de modelos alternativos de
desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos
recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.
Estamos convencidos de que a injustiça ambiental resulta da lógica
perversa de um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição de
ecossistemas, de alocação espacial de processos poluentes, que penaliza as
condições de saúde da população trabalhadora, moradora de bairros pobres e
excluída pelos grandes projetos de desenvolvimento. Uma lógica que mantém
grandes parcelas da população às margens das cidades e da cidadania, sem água
potável, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto. Uma lógica que permite
que grandes empresas lucrem com a imposição de riscos ambientais e sanitários
aos grupos que, embora majoritários, por serem pobres, têm menos poder de se
fazer ouvir na sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. Enquanto as
populações de maior renda têm meios de se deslocar para áreas mais protegidas
da degradação ambiental, as populações pobres são espacialmente segregadas,
residindo em terrenos menos valorizados e geotecnicamente inseguros, utilizando-
se de terras agrícolas que perderam fertilidade e antigas áreas industriais
abandonadas, via de regra contaminadas por aterros tóxicos clandestinos.
Os trabalhadores urbanos e rurais, por sua vez, estão freqüentemente
submetidos aos riscos de tecnologias sujas, muitas delas proibidas nos países
mais industrializados, que disseminam contaminantes que se acumulam de
maneira persistente no meio ambiente. Esses contaminantes, além de provocar
doenças nos próprios trabalhadores, produzem ‘acidentes’ por vezes fatais com
crianças que circulam em áreas de periferia onde ocorrem os descartes
clandestinos de resíduos. A irresponsabilidade ambiental das empresas atinge em
primeiro lugar e com maior intensidade as mulheres, a quem cabe freqüentemente
a lavagem dos uniformes de trabalho contaminados de seus maridos ou o manejo
de recipientes de agrotóxico transformados em utensílios de cozinha. Esse ciclo de
irresponsabilidade ambiental e social das empresas poluentes e de muitos
gestores e órgãos governamentais, ameaça o conjunto dos setores sociais, haja
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vista que rios e alimentos contaminados por agrotóxicos e pela falta de tratamento
de esgoto acabam por afetar as populações nas cidades.
A anencefalia nas crianças nascidas em Cubatão (SP), a presença das
substâncias cancerígenas conhecidas como ‘drins’ nas pequenas chácaras de
Paulínia (SP), a estigmatização que perpetua o desemprego dos trabalhadores
contaminados por dioxina no ABC paulista, a alta incidência de suicídio entre os
trabalhadores rurais usuários de agrotóxicos em Venâncio Aires (RS) são
exemplos que configuram as manifestações visíveis de um modelo fundado na
injustiça estrutural e na irresponsabilidade ambiental de empresas e governos.
Apesar do fato de que a lógica deste modelo é sistematicamente negada por seus
responsáveis, que alegam a ausência de causalidade entre as decisões políticas e
produtivas e os efeitos danosos que têm sobre suas vítimas.
O enfrentamento deste modelo requer que se desfaça a obscuridade e o
silêncio que são lançados sobre a distribuição desigual dos riscos ambientais. A
sua denúncia implica desenvolver articuladamente as lutas ambientais e sociais:
não se trata de buscar o deslocamento espacial das práticas danosas para áreas
onde a sociedade esteja menos organizada, mas sim de democratizar todas as
decisões relativas à localização e às implicações ambientais e sanitárias das
práticas produtivas e dos grandes projetos econômicos e de infra-estrutura.
Pensamos que o tema da ‘justiça ambiental’ – que indica a necessidade de
trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação, mas
também de distribuição e justiça – representa o marco conceitual necessário para
aproximar em uma mesma dinâmica as lutas populares pelos direitos sociais e
humanos e pela qualidade de vida e a sustentabilidade ambiental. Por esse motivo
criamos a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que tem os seguintes objetivos
básicos:
1. Elaborar coletivamente uma “Declaração de Princípios da Justiça
Ambiental no Brasil” – Essa declaração será objeto de um processo de
discussão contínuo de médio prazo, servindo para aglutinar forças,
afinar conceitos e suscitar estratégias. Nos Estados Unidos, o
movimento de justiça ambiental foi estruturado nacionalmente a partir
do programa dos ‘17 princípios’ elaborado em 1991, na Cúpula dos
Povos de Cor pela Justiça Ambiental. No caso brasileiro, assim como
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naquele país, espera-se que um tal processo ajude a disseminar as
lutas e as estratégias associadas à noção de justiça ambiental.
2. Criar um ou mais centros de referências de Justiça Ambiental – Trata-
se de uma proposta de democratização de informações, criando bancos
de dados que contenham registros de experiências de lutas, casos
concretos de injustiça ambiental, conflitos judiciais, instrumentos
institucionais etc. Trata-se também de aglutinar peritos de diferentes
especialidades dispostos a apoiar as demandas de assessoria dos
movimentos. Os centros ajudarão a acompanhar e divulgar resultados
de pesquisa acadêmica sobre desigualdades ambientais. Fóruns
periódicos debaterão e consolidarão as experiências dos diferentes
tipos de lutas desenvolvidas.
3. Diálogo permanente entre atores – Promover o intercâmbio de
experiências, idéias, dados e estratégias de ação entre os múltiplos
atores de lutas ambientais: entidades ambientalistas, sindicatos
urbanos e rurais, atingidos por barragem, movimento negro,
remanescentes de quilombos, trabalhadores sem terra, movimento de
moradores, moradores em unidades de conservação, organizações
indígenas, ONGs, fóruns e redes. Além de encontros específicos por
setores, pretende-se organizar encontros maiores que ampliem a
cooperação e o esforço comum de luta.
4. Desenvolvimento de instrumentos de promoção de justiça ambiental –
Produzir metodologias de ‘Avaliação de Eqüidade Ambiental’, manuais
de valorização das percepções ambientais coletivas, mapeamento dos
mecanismos decisórios com vistas à democratização das políticas
ambientais em todos os níveis, cursos para a sensibilização dos
agentes do poder público envolvidos com a regulação do meio
ambiente. Produzir argumentos conceituais e evidências empíricas em
favor da sustentabilidade democrática e da justiça ambiental.
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5. Pressionar órgãos governamentais e empresas para que divulguem
informações ao público – Reivindicar a publicação sistemática de
informações sobre as fontes de risco ambiental no país. As agências
estaduais, em particular, deverão ser pressionadas publicamente para
produzir dados sobre a distribuição espacial dos depósitos de lixo tóxico
e perigoso.
6. Contribuir para o estabelecimento de uma nova agenda de ciência e
tecnologia – Apoiar pesquisas voltadas para os temas da justiça
ambiental realizadas sempre que possível através do diálogo entre
pesquisadores, comunidades atingidas e movimentos organizados.
Ajudar a formar técnicos e peritos que trabalhem dentro dessa
perspectiva. Estimular o desenvolvimento de novas metodologias
científicas e de novas tecnologias que ajudem a promover a luta contra
a injustiça ambiental, sempre respeitando os direitos de cidadania e o
saber das comunidades locais.
7. Estratégia de articulação internacional – Desenvolver contatos com
parceiros internacionais no campo da estratégia política, da cooperação
científica, da troca de informação sobre normas e padrões ambientais,
da luta contra a exportação de processos poluentes e de depósitos de
rejeitos perigosos. Preparar uma oficina sobre Justiça Ambiental no II
Fórum Social Mundial em Porto Alegre, 2002.
Consideramos que o termo Justiça Ambiental é um conceito aglutinador e
mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e ética da
sustentabilidade e do desenvolvimento, freqüentemente dissociados nos discursos
e nas práticas. Tal conceito contribui para reverter a fragmentação e o isolamento
de vários movimentos sociais frente aos processos de globalização e
reestruturação produtiva que provocam perda de soberania, desemprego,
precarização do trabalho e fragilização do movimento sindical e social como um
todo. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-se
como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e
entidades, como sindicatos, associações de moradores, grupos de afetados por
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diversos riscos (como as barragens e várias substâncias químicas), ambientalistas
e cientistas.
As entidades que promoveram e participaram do Colóquio farão reuniões
para organizar a estrutura de funcionamento e as primeiras atividades da Rede,
com base nos princípios acima descritos. Todos os que se sentirem de acordo
com a proposta da ‘Justiça Ambiental’ estão convidados a participar.
O RACISMO AMBIENTAL
O conceito diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma
desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas. O racismo ambiental não se configura
apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente por meio de
ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem.
Diz respeito a um tipo de desigualdade e de injustiça ambiental muito específico: o que
recai sobre suas etnias, bem como sobre todo grupo de populações ditas tradicionais –
ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros,
ciganos, pomeranos, comunidades de terreiro, faxinais, quilombolas etc. – que têm se
defrontado com a ‘chegada do estranho’, isto é, de grandes empreendimentos
desenvolvimentistas – barragens, projetos de monocultura, carcinicultura, maricultura,
hidrovias e rodovias – que os expelem de seus territórios e desorganizam suas culturas,
seja empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja forçando-os a conviver
com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes de vida. Se tais
populações não-urbanas enfrentam tal chegada do estranho, outras, nas cidades, habitam
as zonas de sacrifício, próximas às indústrias poluentes e aos sítios de despejos químicos
que, por serem sintéticos, não são metabolizados pela natureza e portanto se acumulam.
Segundo Parajuli, as pessoas no mundo seriam de dois tipos: os ‘biosféricos’,
urbanos e metropolitanos que obtêm e utilizam seus recursos de todo o globo terrestre e
que, portanto, não dependem dos constrangimentos do ecossistema que habitam, e as
‘etnicidades ecológicas’, ou seja, as comunidades cujo sustento e sobrevivência
dependem estreitamente do meio natural no qual se inserem. Estas vivem em situações
de risco e de vulnerabilidade diante dos grandes empreendimentos que chegam para
modificar suas vidas e expulsá-los. Como muito bem analisou Arruti, vivem em ‘territórios
de refúgio’, territórios marginais ao capital e que foram mantidos preservados em razão
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dessa marginalidade e de uma economia de base tradicional, com baixo nível de
mercantilização.
Os mecanismos e processos sociais movidos pelo racismo ambiental naturalizam
as hierarquias sociais que inferiorizam etnias e percebem como vazios os espaços físicos
onde territórios estão constituídos por uma população que se caracteriza por depender
estreitamente do ecossistema no qual se insere. Em suma, trata-se aqui da construção e
permanência de relações de poder que inferiorizam aqueles que estão mais próximos da
natureza, chegando a torná-los invisíveis.
Racismo é a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não-
semelhante. Nesse sentido, no caso brasileiro, tornamos até mesmo o retirante, o
migrante nordestino, uma ‘raça’: o ‘homem-gabiru’,3 o ‘cabeça-chata’ tido como invasor da
‘modernidade metropolitana’. Assim, nosso racismo nos faz aceitar a pobreza e a
vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, com pouca escolaridade, sem
renda, sem políticas sociais de amparo e de resgate, simplesmente porque naturalizamos
tais diferenças, imputando-as a ‘raças’. Colocando o outro como inerentemente inferior,
culpado biologicamente pela própria situação, nos eximimos de efetivar políticas de
resgate, porque o desumanizamos.
O clamor contra o Racismo Ambiental levanta questões sobre a ocorrência de
racismo entre nós. Segundo Tânia Pacheco, embora totalmente diferente da forma como
historicamente se manifestou e manifesta ainda nos Estados Unidos, o racismo está
indubitavelmente presente na nossa sociedade. Por mais que a herança negra esteja
presente na maioria de nós, biológica e culturalmente, o racismo se configura, aqui, de
formas diferenciadas e muitas vezes inconscientes. E deve ser combatido em todas as
suas expressões. Isso não significa, entretanto, negar que a questão seja bem mais
ampla.
Tânia Pacheco, pesquisadora e consultora da Fase, trabalha atualmente no
projeto de construção de um Mapa do Racismo Ambiental no Brasil, para o
acompanhamento das ações lesivas às comunidades, sua denúncia e a construção de
alternativas de combate a esse tipo de injustiça e de opressão. Isso envolve, igualmente,
um trabalho de educação e de tessitura de redes, para a produção de materiais que
ajudem na tomada de consciência e na socialização da informação. O GT Racismo
Ambiental, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, caminha nesse sentido.
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O Clamor por Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental
Selene Herculano INTERFACEHS
NOTAS 1 Texto parcialmente extraído do panfleto de divulgação do Colóquio, de redação coletiva, com a participação também de Henri Acselrad, José Augusto Pádua, Jean Pierre Leroy e Paulo Roberto Martins. Está baseado em textos anteriores: um texto publicado em Desenvolvimento e Meio Ambiente – riscos coletivos – ambiente e saúde, nº 5, 2002. Curitiba: Ed. UFPR. Co-edição com a revista Natures, Sciences, Societies, p.143-149 e apresentado no II Congresso da ANPPAS (Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade), de 2004; também no livro Racismo Ambiental – I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental. (HERCULANO & PACHECO, 2006). Naquele Seminário, realizado em Niterói, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em novembro de 2005, pesquisadores acadêmicos (Jeovah Meirelles, UFC; Eliane Cantarino, UFF; Robert Bullard, EJRC/Atlanta University; José Maurício Arruti, Koinonia; Maria do Rosário G. de Carvalho, UFBA; Pramod Parajuli, Portland University; Pedro Albajar, Fiocruz; Jan Fritz, Universidade de Cincinnati), apresentaram seus estudos lado a lado com depoimentos integrais de representantes dos movimentos sociais diversos: Criola; Coiab; Comissão Quilombola do Espírito Santo; Apoinme; Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro; Aldeia Varjota; Acabantu; Associação Indígena de Barcelos; Fórum Carajás; Fórum da Baía de Sepetiba; Associação de Catadores de Gramacho; Movimento Cultura de Rua e ‘Cufa’ do Ceará, para concluir pela existência de um tipo de racismo que imputa às etnias desfavorecidas o ônus da convivência com um ambiente degradado. 2 “environmental justice is defined as the fair treatment and meaningful involvement of all people regardless of race, color, national origin or income with respect to the development, implementation and enforcement of environmental laws, regulations and policies. Fair treatment means that no group of people, including racial, ethnic or socio-economic groups should bear a disproportionate share of negative environmental consequences resulting from industrial, municipal and commercial operations or the execution of federal, state, local and tribal programs and policies.” Bullard, 2000, discurso na Mercer University. 3 Gabiru, do tupi wawi’ru – “que devora mantimentos”, é sinônimo de rato-de-paiol, rato-preto, rato-pardo. Ratos que vivem em lixões junto às grandes cidades e que, em alguns momentos, fazem parte da dieta dos catadores de lixo. Homem-gabiru caracteriza uma parcela da população pobre dos sertões, que sofre de desnutrição crônica e que tem gerado uma ‘subespécie de nanicos’, conforme o escultor Francisco Stockinger, que os representou em uma coleção de 27 esculturas.
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AVALIAÇÃO DE RISCO COMO FERRAMENTA COMPLEMENTAR AO LICENCIAMENTO DE FONTES DE POLUIÇÃO ENVOLVENDO POLUENTES
TÓXICOS DO AR Eduardo Antonio Licco
Prof. Dr. do Centro Universitário Senac
RESUMO Este artigo faz uma análise crítica a respeito da efetividade do sistema de licenciamento
de fontes de poluição, quando estiverem envolvidos poluentes atmosféricos tóxicos. A
análise é realizada com base no estudo de caso da ampliação de uma unidade de
galvanoplastia, localizada em área de ocupação residencial-industrial, que instalou uma
linha de cromeação (cromo duro), com fontes de emissão de cromo hexavalente (Cr6+). O
ponto de partida do estudo é de que a adoção da MTPD pode não ser uma medida
suficiente para proporcionar proteção à saúde dos moradores do entorno. O trabalho
compara o valor final da emissão da fonte, após aplicação de controle baseado na MTPD,
com aquele obtido a partir da estimativa de risco individual de câncer por exposição da
população no entorno da indústria ao contaminante em questão. Os resultados mostram
uma emissão final pós-controle de 374 µg/m3 e um valor estimado de 50 µg/m3 para um
risco individual de um caso de câncer em um milhão de expostos. A despeito das
incertezas do processo de estimação de risco, a ferramenta é útil como alerta aos
gestores da qualidade do ar de que nem sempre a melhor tecnologia prática de controle
assegura proteção à saúde de uma população.
Palavras-chave: cromo hexavalente; poluentes atmosféricos tóxicos; avaliação de risco.
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Avaliação de Risco como Ferramenta Complementar ao Licenciamento de Fontes de Poluição Envolvendo Poluentes Tóxicos no ar
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Em áreas intensamente ocupadas, como as Regiões Metropolitanas de São Paulo,
Belo Horizonte e Rio de janeiro, não raro convivem, lado a lado, indústrias e residências.
Na maioria dos casos essas indústrias passaram por um sistema de licenciamento
ambiental, momento em que seus impactos ao meio ambiente e às comunidades vizinhas
foram identificados e mitigados.
Ocorre, contudo, que o sistema de licenciamento ambiental não consegue
abranger todos os perigos presentes nas emissões industriais. A ausência de limites de
emissão específicos para substâncias pouco comuns permite que muitas atividades sejam
licenciadas para funcionar com base apenas no controle dos possíveis incômodos que
estas possam causar à vizinhança. Isto é freqüente no caso de pequenas e médias
indústrias, nomeadamente do ramo químico. Para elas, a exigência geral de controle se
constitui na aplicação da melhor tecnologia prática disponível – MTPD – e na ausência de
qualquer tipo de incômodo à vizinhança resultante de sua operação.
A despeito de constituírem atividades com processos industriais conhecidos pelas
autoridades ambientais e de saúde pública, muitas dessas empresas carecem de uma
regulamentação específica para uma tipologia também específica de poluentes
atmosféricos que emitem: os poluentes atmosféricos tóxicos (PAT). Para esses casos, a
aplicação da melhor tecnologia prática disponível tem se mostrado adequada para evitar
incômodos à população circunvizinha, mas nem sempre é suficiente para garantir
concentrações atmosféricas seguras de PATs pós-controle.
Neste contexto, o presente artigo faz uma análise crítica a respeito da efetividade
do sistema de licenciamento de fontes de poluição, quando estiverem envolvidos PATs. A
análise é realizada com base no estudo de caso da ampliação de uma unidade de
galvanoplastia, com a inserção do processo de cromeação (cromo duro), com fontes de
emissão de cromo hexavalente (Cr6+), localizada em área de ocupação residencial-
industrial. O valor final da emissão da fonte, após aplicação de controle baseado na
MTPD, é comparado com aquele obtido a partir da estimativa de risco individual de câncer
por exposição da população no entorno da indústria ao contaminante em questão. A
hipótese de partida é de que a adoção da MTPD pode não ser uma medida suficiente
para proporcionar plena proteção à saúde dos moradores próximos.
Os dados de emissão foram obtidos por meio de campanha de amostragem
efetuada após o sistema de controle. Os valores da estimativa de risco foram obtidos com
o auxílio de modelo matemático simplificado de dispersão atmosférica, e de informações
de dose–resposta disponíveis na literatura.
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POLUENTES ATMOSFÉRICOS TÓXICOS
Toda atividade socioeconômica é, em maior ou menor intensidade, fonte de
poluição. As perdas referentes à ineficiência das transformações da matéria e da energia
são inexoravelmente liberadas no ar, águas ou solo, levando à degradação da qualidade
ambiental e à poluição. O estabelecimento da condição de poluição se dá a partir do
estabelecimento de parâmetros que designam os agentes causadores da poluição
(poluentes) e por limites quantitativos (padrões) dos máximos permitidos que poderiam
ser lançados (padrões de emissão) e dos máximos tolerados no ar ambiente (padrões de
qualidade).
No Brasil existem padrões de qualidade do ar legalmente estabelecidos para sete
poluentes: partículas totais em suspensão, fumaça, partículas inaláveis, dióxido de
enxofre, monóxido de carbono, ozônio e dióxido de nitrogênio (BRASIL, 1990). A despeito
de esses poluentes representarem uma parcela relevante da degradação da qualidade do
ar em ambientes urbanos, eles não cobrem toda a faixa de substâncias químicas emitidas
na atmosfera pelas diversas atividades socioeconômicas.
Segundo a Chemical Abstracts Service – CAS (2008) a contagem atual de
substâncias químicas orgânicas e inorgânicas conhecidas chega a 33,9 milhões, sendo
19,2 milhões delas comercialmente disponíveis, 246.329 das quais
inventariadas/regulamentadas. Considerando que no manuseio e transformação das
substâncias químicas uma pequena parcela se perde na atmosfera, fica patente a
preocupação dos gestores ambientais com referência aos riscos à saúde pública impostos
pelos poluentes atmosféricos.
Os poluentes do ar, como substâncias químicas que são, podem ser classificados
como perigosos ou não perigosos, dependendo da concentração com que se fazem
presentes na atmosfera e de suas características físicas, químicas e toxicológicas. Os
poluentes considerados perigosos podem ser subclassificados em tóxicos, corrosivos,
inflamáveis, explosivos, ou infectantes. Os não perigosos, como ‘incomodativos’.
Os poluentes atmosféricos tóxicos são compostos presentes no ar com potencial
de causar sérios danos à saúde humana ou ambiental, caso estejam presentes em
concentração e/ou por período de tempo suficiente para tal. São aqueles que, segundo a
agência americana de proteção ambiental (USEPA, 2007a):
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a) causam ou são suspeitos de causar efeitos adversos agudos na saúde humana,
em níveis de concentração esperados de existir além da área de propriedade da
indústria, como resultado de emissões contínuas ou freqüentes;
b) causam ou são suspeitos de causar efeitos como câncer, disfunções reprodutivas,
desordens neurológicas, mutações genéticas hereditárias ou outros efeitos
crônicos à saúde humana;
c) são tóxicos, persistentes e tendem a se bioacumular no ambiente.
São exemplos de poluentes tóxicos do ar o benzeno, comumente encontrado na
gasolina; o percloroetileno, emitido durante atividades de limpeza a seco; o cloreto de
metileno, que é usado como solvente e removedor de tinta em várias indústrias; o tolueno,
utilizado como solvente de cola; o asbesto, e metais como mercúrio, chumbo, cádmio e
cromo, estes dois últimos empregados na proteção de superfícies metálicas por
eletrodeposição.
A intensidade com que um poluente tóxico do ar afeta a saúde de uma pessoa
depende de vários fatores, incluindo o seu estado de saúde e susceptibilidade, a
quantidade do poluente à qual se expõe, a duração e a freqüência da exposição e o grau
de toxicidade da substância. Os poluentes atmosféricos tóxicos que causam maior
preocupação são aqueles emitidos em quantidades suficientemente grandes para se
fazerem presentes na atmosfera em concentrações reconhecidamente tóxicas, e que
atingem grandes populações.
No Brasil não há, atualmente, referências oficiais regulando os poluentes
atmosféricos tóxicos; tampouco há maiores estudos sobre o potencial de danos à saúde
humana decorrente da exposição a eles. Em muitos países, a ferramenta empregada para
o estudo da exposição humana aos poluentes tóxicos é a avaliação de risco.
O CROMO E SUA TOXICOLOGIA
O cromo é um elemento natural (metal) encontrado nas rochas, no material
biológico, no solo e nas emissões vulcânicas. Apresenta estados de oxidação ou
valências que variam do cromo 2- ao cromo 6+. O cromo elementar (Cr0) não tem
ocorrência natural.
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O cromo 3+ é a forma mais estável do metal, considerada um elemento essencial,
auxiliar na metabolização dos açúcares, gorduras e proteínas. Sua ocorrência natural é na
forma de minérios, como a ferrocromita. A segunda forma mais estável do cromo é a
hexavalente, geralmente produzida por fontes antropogênicas, assim como o Cr0.
O cromo metálico (Cr0) é utilizado na produção de aço, com o Cr6+ e o Cr3+ sendo
utilizados em cromeação, produção de tintas e pigmentos, no curtimento de couro e na
preservação de madeira. O cromo chega ao ar, às águas e ao solo em suas formas
trivalente (Cr3+) e hexavalente (Cr6+) (USEPA, 1984a).
No ar, os compostos do cromo estão presentes sob a forma de um particulado fino
capaz de se depositar sobre o solo, construções, vegetação e corpos d’água. O cromo
geralmente adere firmemente ao solo (adsorção) e, devido ao seu baixo produto de
solubilidade, apenas uma pequena fração se dissolve em água ficando passível de ser
carreada para camadas mais profundas, e eventualmente alcançar a água subterrânea.
A exposição ao metal pode ocorrer por ingestão de água ou alimentos contendo
Cr3+ ou Cr6+, por inalação de ar contaminado, ou por contato com a pele. Locais de
disposição de resíduos contendo cromo e indústrias que trabalham com compostos desse
elemento são fontes relevantes de exposição ao metal. A inalação de níveis elevados de
cromo 6+ pode causar irritação da mucosa nasal, hemorragias, úlceras e perfurações no
septo nasal. A ingestão de concentrações elevadas de cromo 6+ pode produzir mal-estar
estomacal, úlceras, convulsões, danos ao fígado e rins, e até a morte. Contato da pele
com certos compostos de cromo 6+ pode gerar ulcerações (USEPA, 1984b).
Pessoas extremamente sensíveis ao metal em suas formas 3+ e 6+ apresentam
reações alérgicas sérias, como vermelhidão e inchaço grave da pele. Vários estudos
demonstram que os compostos de cromo 6+ podem aumentar o risco de contrair câncer
de pulmão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a agência americana de proteção
ambiental (Usepa) consideram o Cr6+ carcinogênico aos seres humanos. Não há
evidências sobre efeitos teratogênicos dessa espécie química do metal (USEPA, 2007b).
USO DO CROMO NA PROTEÇÃO DE SUPERFÍCIES
Para fins de proteção de superfícies, o cromo é aplicado por eletrodeposição.
Trata-se de processo eletrolítico de revestimento de superfícies de peças metálicas com
outros metais. Técnicas especiais podem ser usadas para fazer superfícies não metálicas,
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como as dos plásticos, adequadas ao processo. A eletrodeposição é feita, geralmente,
como proteção contra corrosão e/ou como acabamento estético. O processo utiliza uma
célula eletrolítica contendo uma solução (banho) de sais iônicos do metal a ser depositado
e dois eletrodos ligados a uma fonte de corrente contínua ou corrente alternada retificada.
A peça a ser revestida deve funcionar como cátodo, devendo estar ligada ao pólo
negativo da fonte. O ânodo, ligado ao pólo positivo da fonte, pode ser constituído por um
material inerte (grafite ou platina) ou mesmo pelo metal com que se quer revestir a peça.
Neste segundo caso, o processo eletrolítico ocorre com uma transferência do metal deste
eletrodo para a peça, através da solução eletrolítica. O metal do ânodo se oxida, o cátion
formado vai para a solução e o cátion da solução reduz no cátodo, ficando aderido na
forma metálica. Quando o ânodo é um material inerte, nele ocorre a descarga da água da
solução. O cátion da solução reduz no ânodo, ficando também aderido à peça.
Técnicas especiais podem ser empregadas para fazer superfícies não metálicas,
como as dos plásticos, adequadas ao processo. O processo é o mesmo já descrito.
A eletrodeposição de cromo envolve as operações de anodização e deposição. A
anodização com ácido crômico é o processo eletrolítico pelo qual uma camada de óxido é
produzida na superfície de uma base de metal com propósitos funcionais, como por
exemplo, maior resistência à corrosão ou isolamento elétrico. Nele, a parte a ser
anodizada atua como ânodo no circuito elétrico, e a solução de ácido crômico como o
eletrólito.
As operações de deposição incluem a eletrodeposição de cromo duro,
eletrodeposição decorativa (em metais e plásticos), anodização com ácido crômico e
deposição de cromo trivalente. Na deposição de cromo duro, uma camada relativamente
grossa de cromo é depositada diretamente no metal base (geralmente aço) para propiciar
uma superfície com alta resistência a desgaste, baixo coeficiente de atrito, dureza e
resistência à corrosão, ou então para reconstituir superfícies que foram erodidas pelo uso.
A deposição dura é normalmente usada para peças como cilindros e hastes, rolos
industriais, moldes plásticos e componentes de motores (USEPA, 1995).
Os banhos de deposição com cromo hexavalente são os mais usados em
cromeação. São compostos por ácido crômico, ácido sulfúrico e água. Enquanto o ácido
sulfúrico no banho catalisa as reações de deposição, o ácido crômico é a fonte do cromo
hexavalente que reage, deposita no metal e é emitido para a atmosfera. A geração de gás
hidrogênio nas reações químicas no cátodo consome de 80 a 90% da energia fornecida
ao banho, deixando restantes 10 a 20% para a reação de deposição. Quando o gás de
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hidrogênio se desloca na solução, gera névoas de ácido crômico que resultam em
emissões para a atmosfera.
As equações que representam o revestimento de uma peça com cromo, utilizando
ânodo inerte (cromeação) são:
Ânodo: H2O 2 H+ + 1/2 O2 + 3e – Equação 1
Cátodo: Cr 3+ + 3e Cr Equação 2
AVALIAÇÃO DE RISCO
Avaliação de risco pode ser simplificadamente definida como o processo que
estima a possibilidade de pessoas expostas a um agente perigoso virem a apresentar
danos à saúde. Segundo o comitê da National Academy of Sciences dos Estados Unidos
da América – CIMARPH (1983) a avaliação de risco é constituída de quatro etapas:
identificação de perigos, avaliação da exposição, avaliação dose–resposta e quantificação
do risco.
Para os efeitos carcinogênicos, os riscos podem ser estimados em termos de risco
individual e risco populacional. O risco individual é o risco de câncer estimado de ocorrer
em um indivíduo em função de exposição, a uma determinada concentração do agente
carcinogênico por toda a sua vida. O risco populacional, também chamado de risco social,
é a medida do número de casos de câncer em uma determinada população exposta ao
carcinogênico. Segundo Patrick (1994), existem vantagens e desvantagens associadas ao
uso de cada uma dessas abordagens. As observações do autor estão resumidas no
Quadro 1.
Para efeitos não carcinogênicos, a estimativa do risco é feita a partir da
comparação dos valores de dose ou de concentração, medidos ou calculados, com os
valores de referência. Uma forma de expressão do risco é por meio do chamado ‘índice
de perigo’, definido como o quociente entre a concentração (medida ou estimada) e o
valor de referência, para um determinado efeito (GRATT, 1996).
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LICENCIAMENTO AMBIENTAL
O Licenciamento Ambiental é um procedimento pelo qual o órgão ambiental
competente permite a instalação, ampliação e operação de empreendimentos e atividades
que utilizam recursos ambientais, que possam ser consideradas efetiva ou potencialmente
poluidoras, ou que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental (CETESB,
2007). Enquanto instrumento de caráter preventivo, o Licenciamento é fundamental para
garantir a preservação da qualidade ambiental, avaliando aspectos de ligação entre a
atividade produtiva e seus reflexos sobre a saúde pública e o meio ambiente.
Nos dias atuais é evidente a preocupação dos empreendedores em conciliar
desenvolvimento econômico com questões ambientais e de saúde pública. Neste contexto
ganha destaque a provisão de condições ambientais básicas capazes de proteger contra
efeitos danosos a comunidade e o local onde os empreendimentos serão instalados.
Neste aspecto, o Licenciamento Ambiental desempenha um importante papel
como ferramenta de planejamento. De forte caráter preventivo, ele permite que o gestor
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identifique precocemente possíveis efeitos ambientais do seu negócio e busque formas
econômicas para bem gerenciá-los.
Em sua ação prática, o licenciamento de fontes de poluição se baseia em uma
análise preliminar dos possíveis impactos de uma atividade, considerando aspectos
como: localização, ocupações próximas, processo de produção, matérias-primas,
produtos, subprodutos e resíduos, tipos e formas de emissões, e medidas de mitigação e
de reparação. Quando esta análise mostra que os benefícios da atividade superam os
impactos ambientais a licença é concedida, ficando válida por um período determinando,
ao final do qual uma nova avaliação é feita para verificar se permanece a conformidade
com os requisitos de lei. As emissões são reguladas por meio de padrões de lançamento
ou de emissão, e a qualidade ambiental resultante é regulada por padrões de qualidade.
Uma clara limitação ao bom desempenho do licenciamento ambiental é o fato de
não haver padrões de emissão, nacionais ou estaduais, estabelecidos para poluentes
outros que não aqueles para os quais existem padrões de qualidade. E mesmo quando
estabelecidos, estes abrangem apenas uma restrita gama de atividades industriais. Para
as situações em que não há um padrão de emissão específico estabelecido, tem sido
uma prática dos sistemas de licenciamento a exigência da instalação de equipamentos de
controle de poluição baseados na melhor tecnologia prática disponível. Outra ação
freqüente de controle é a exigência de não percepção de odores além dos limites da
propriedade da fonte e ausência de qualquer tipo de incômodo à vizinhança.
O CASO ESTUDO
O caso selecionado para dar suporte a este estudo trata do licenciamento
(regularização de ampliação) de uma empresa de galvanoplastia, prestadora de serviços
para a indústria automotiva, instalada em uma área de ocupação mista (industrial-
residencial). A empresa pretendia instalar uma unidade de cromeação (cromo duro), para
operar das 8 às 18 horas, com funcionamento efetivo de 8 horas consecutivas por dia, 6
dias por semana. Como não havia registros de que a operação até então da empresa
causava incômodos à população vizinha, o pedido de ampliação foi autorizado com a
exigência de instalação da melhor tecnologia prática disponível para os banhos de cromo
duro. Neste caso a MTPD compreendia lavador de gases de alta eficiência, tipo Venturi,
seguido de torre de recheio como complemento. Instalados equipamentos de produção e
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de controle ambiental, as amostragens do efluente gasoso mostraram uma média de
emissões de cromo 6+ de 374 µg/m3.
Considerando o potencial carcinogênico do Cromo 6+, e a hipótese de que o
emprego da melhor tecnologia prática disponível poderia ser não suficiente para plena
proteção da saúde da comunidade vizinha à empresa, foi realizado um estudo estimativo
do risco individual de câncer por exposição ao contaminante na área do entorno da
indústria, buscando verificar se a concentração pós-controle efetivamente garantia a
proteção da saúde da população exposta.
O PROCESSO INDUSTRIAL
O processo de cromeação instalado se inicia com as peças a serem revestidas
sendo desengraxadas, lixadas e polidas. Uma lavagem alcalina elimina eventuais
resíduos existentes de óleo ou graxa. Um banho ácido neutraliza a peça e a prepara para
o tratamento anódico com ácido crômico. Após a primeira deposição, faz-se a
eletrodeposição de cromo com a espessura determinada. A cromeação dura é realizada
com densidades de corrente variando de 1.600 a 6.500 A/m2 para um tempo total de
eletrodeposição de 20 minutos a 36 horas, dependendo da espessura da camada a
depositar. A Figura 1 esquematiza o processo de cromeação de peças metálicas utilizado.
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EMISSÕES ATMOSFÉRICAS
Para muitos metais, os banhos de deposição possuem alta eficiência catódica, de
forma que a geração de névoa é mínima. Contudo, a eficiência do cátodo nos banhos de
cromo é muito baixa (10 a 20%), gerando uma substancial emissão de névoas de ácido
crômico, devidas à geração de hidrogênio e oxigênio. Esses gases são formados nos
banhos, na superfície das peças submersas, ou nos ânodos/cátodos. Conforme as bolhas
de gás rompem-se, produzem microgotículas de líquido que se dispersam no ar
atmosférico, gerando uma névoa ácida que arrasta uma quantidade considerável de ácido
crômico. A intensidade de geração de névoa é uma função da atividade química ou
eletroquímica que se desenvolve no tanque e aumenta com a agitação da solução, com
sua concentração e com a temperatura. Os tanques de eletrodeposição possuem injeção
de ar comprimido pelo fundo para manter uniformidade na concentração e temperatura do
banho, o que também favorece a geração de névoas ácidas.
No caso em estudo, o controle das emissões para a atmosfera é feito por meio de
sistema de ventilação local exaustora instalado nos três banhos, com os gases gerados
sendo tratados em lavador de alta eficiência, tipo Venturi, seguido de torre de recheio
operando com fluxo em contracorrente (Figura 2).
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Os dados de emissão referentes à fonte estudada, obtidos por amostragem dos
seus efluentes gasosos, estão sumarizados na Tabela 1.
Durante a campanha de amostragem os equipamentos operavam de acordo com
as determinações constantes nas licenças obtidas.
ESTIMATIVA DO RISCO POR EXPOSIÇÃO AO CROMO 6+
A estimativa das concentrações atmosféricas de cromo no entorno da empresa foi
feita utilizando-se o modelo Screen 3, disponibilizado pela Usepa para cálculo preliminar
da dispersão atmosférica proveniente de fontes contínuas de emissão (USEPA, 2006a). A
área ao redor da fonte foi dividida em uma grade de 20 m x 20 m, e em cada centróide
calculada a concentração do poluente no nível do solo. Estas concentrações (médias de 1
hora) foram multiplicadas pela freqüência do vento, ou a fração de tempo que o vento
soprou naquela direção para determinação da exposição em cada ponto da localidade
circunvizinha, durante o período de operação da indústria. Os dados sobre a freqüência
de distribuição de ventos (velocidade e direção) foram obtidos junto a uma empresa
próxima, que mantém uma estação meteorológica para uso particular. A instalação e
operação da estação meteorológica seguiam as normas da World Meteorological
Organization – WMO (1983).
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Os dados utilizados de velocidade e direção dos ventos estão sumarizados na
Tabela 2. As condições de estabilidade atmosférica adotadas foram definidas a partir de
Turner (1994), referência usualmente utilizada para esse fim.
CÁLCULO DO RISCO
O excesso de risco de câncer na população do entorno, localizada a uma dada
distância da empresa, em virtude da exposição a determinada concentração de Cr6+ no
ar local por determinado período, foi calculado segundo a expressão:
ECC = Cmh * % t * UR* 106 Equação 3
Onde:
ECC = número de casos de câncer, em uma população de um milhão de pessoas
expostas, devido à inalação de cromo 6+, por um período de 70 anos (adimensional)
Cx = Concentração média do contaminante no nível do solo, a uma determinada distância
da fonte. É função da taxa de emissão, da velocidade do vento e da estabilidade
atmosférica (µg/m3)
%t = porcentagem do tempo em que o vento soprou em dada direção com determinada
velocidade, sob diversas condições de estabilidade atmosférica (h/horas totais)
Cmh = Cx * %t (µg/m3)
UR = fator unitário de risco (probabilidade de câncer por unidade de concentração no ar
do poluente)
(µg/m3)-1
O valor do fator unitário de risco para o cromo hexavalente foi de 0,012 (µg/m3)-1
obtido em Usepa (2006b).
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Os valores calculados de Cx são apresentados na Tabela 3. A Tabela 4 traz
valores de Cmh e ECC calculados para a distância de 100 m da fonte, em função da
direção e freqüência dos ventos. A distância de 100 m é aquela onde o modelo aponta a
ocorrência da máxima concentração do poluente no nível do solo.
A zona de impacto, área ao redor da fonte onde ECC supera o valor unitário (nível
de risco de referência de 1 caso de câncer em 10+6 expostos) aparece destacada na
Figura 3. A linha perimetral é o lugar geométrico dos pontos com ECC = 1, obtida por
interpolação de valores. Os valores estimados de ECC estão bastante próximos daqueles
apresentados pela Usepa (2006b) em termos de relação ‘nível de risco’ versus
‘concentração do contaminante no ar’, o que confere consistência à abordagem seguida.
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Na distância de cem metros da fonte identifica-se, na direção 330°, o ponto de
maior risco pela exposição ao Cr6+, com 18 casos potenciais de câncer em uma
população de um milhão de indivíduos expostos. Nesta posição há quatro residências,
com 17 moradores permanentes. Na posição 60º, observa-se o segundo maior nível de
risco a cem metros da fonte, com seis residências, 26 residentes permanentes, e uma
possibilidade de nove casos de câncer por 106 indivíduos expostos.
O total de residências dentro da área considerada de alto risco, ou seja, aquela
dentro da linha perimetral, é de 87, e o total de moradores de 282.
INCERTEZAS NA ESTIMATIVA DE RISCOS
Por sua natureza, as estimativas de risco não podem ser totalmente acuradas. O
principal problema enfrentado é a ausência de informações suficientes a respeito da
exposição real e de como os PATs ameaçam a saúde humana. As avaliações de
exposição freqüentemente se apóiam em modelos matemáticos quando as quantidades
de poluentes vindas da(s) fonte(s) para a população não podem ser facilmente medidas.
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Relações de dose–resposta se baseiam em assunções de efeitos de poluentes,
convertendo resultados de experimentos com animais em altas doses, para exposições
humanas a baixas doses. Quando a informação não é completa ou é incerta, os analistas
de risco fazem assunções que tendem a superestimar os riscos potenciais, ou seja, suas
respostas embutem uma margem de segurança para proteção da saúde humana.
Neste estudo observa-se que a estimativa de risco adotou parâmetros e
procedimentos que apresentam margem de segurança, e fez assunções sempre
conservativas. Desta forma, os resultados decorrentes devem ser vistos como uma
primeira aproximação ao problema.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Seguindo os procedimentos geralmente adotados pelas agências de controle, o
emprego da melhor tecnologia prática disponível levou a uma emissão final de cromo 6+
de 374 µg/m3. Levando em conta este dado, foi possível estimar o risco individual de
câncer na população vizinha à empresa, e o total de pessoas expostas.
De acordo com critérios utilizados em outros países, o valor de risco considerado
tolerável para uma população residente é da ordem de 1:10-6 (1 caso em 10+6). Como os
valores obtidos na área circunvizinha à empresa ultrapassam em muito esse patamar, o
risco deveria – segundo esses critérios – ser minimizado.
Em termos quantitativos isso representa reduzir a emissão da fonte pós-tratamento
de 374 para 50 µg/m3, ou seja, uma redução total na emissão de cromo de 99,999%. Este
grau de redução seria obtenível somente com um elevado investimento em equipamentos
de produção, para aumento na eficiência do processo, e de controle. As duas ações se
mostram pouco viáveis do ponto de vista técnico e econômico.
Outra forma de redução de risco seria o aumento da altura da chaminé e/ou a
diluição dos gases com ar falso, provocando uma maior dispersão/diluição do
contaminante, e a redução das concentrações na área de maior impacto. Esta solução se
sustenta do ponto de vista técnico e econômico, mas se mostra frágil do ponto de vista
ético. Se por um lado contribui para a redução das concentrações de Cr6+ na área próxima
da empresa, minimizando o risco individual, por outro lado aumenta a área atingida,
fazendo que mais pessoas sejam expostas ao contaminante, o que implica maior risco
social.
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A questão do risco social é extremamente relevante, considerando-se a
possibilidade de existência de outras fontes de emissão de Cr+6 na região, o que
implicaria um acréscimo na concentração de fundo (background), e no risco de câncer.
Há que se destacar mais uma vez que a estimativa do risco foi feita com
instrumentos simples de modelagem atmosférica (screening), o que poderia levar a
resultados pouco acurados. No entanto, independentemente deste aspecto, o uso da
ferramenta se justifica. Em termos práticos a análise de risco alerta para a possibilidade
de a MTPD não ser suficiente para proteção da saúde da população exposta ao Cr6+.
Diante desse quadro, é recomendável a realização de uma avaliação de risco mais
sofisticada, com maior grau de precisão. Em se confirmando um risco intolerável, seguem
duas possibilidades: ou o empreendimento faz as adequações necessárias, ou perde a
autorização para a ampliação de suas atividades naquele local.
A Usepa publicou uma listagem com cerca de duzentas substâncias consideradas
tóxicas, que poderia dar suporte às agências ambientais durante seus processos de
licenciamento. Nos casos em que estivessem envolvidos quaisquer dos TAPs, deveria ser
obrigatória a adoção das tecnologias de produção e controle que resultassem nas
menores emissões possíveis, e a realização de um estudo de risco estimando o impacto
das concentrações atmosféricas pós-controle na população vizinha à fonte. Se os
resultados mostrassem inviabilidade técnica ou econômica, a licença seria negada.
AGRADECIMENTO Meus agradecimentos ao Prof. Luiz Alexandre Kulay pelas observações e sugestões
feitas. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução Conama 3/90. 1990. Disponível em:
www.mma.gov.br. Acesso em: 22 dez. 2007.
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Artigo recebido em 12.02.08. Aprovado em 03.03.08.
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VIDA NAS RUAS DE SÃO PAULO E ALTERNATIVAS POSSÍVEIS –
UM ENFOQUE SÓCIO-AMBIENTAL Marcelo Gomes Justo
Sociólogo, doutor em Geografia Humana pela USP
RESUMO O artigo trata das possíveis alternativas sociais aos moradores de ruas da cidade de São
Paulo. Parte-se de uma revisão do conhecimento voltado para classificar, controlar,
penalizar e tutelar a população de rua para apontar, de outro ângulo, um conhecimento
que busca a emancipação da mesma população. Analisa-se, com base em pesquisa
empírica, como o Movimento Sem Terra (MST) e a reforma agrária podem se constituir
como alternativa de economia solidária aos moradores de rua.
Palavras-chave: morador de rua; MST; economia solidária; assentamentos de reforma
agrária.
1
Vida nas Ruas de São Paulo e Alternativas Possíveis – Um enfoque Sócio - Ambiental
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Este artigo é parte de uma pesquisa sobre as possibilidades de o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a reforma agrária constituírem-se como
alternativas à situação de morador de rua na cidade de São Paulo (JUSTO, 2005). A
alternativa é tomada no sentido de formas de organização social e de produção
econômica contrárias à lógica do modo de produção capitalista, como manifestações
potenciais de economia solidária (SINGER, 1998). Quem é o morador de rua? Parte-se
desta pergunta não para respondê-la, mas para mostrar as ambigüidades e ambivalências
nas representações da população de ruas e, conseqüentemente, pensar as variações da
sociedade moderna. Percorrem-se diferentes maneiras de construir o lugar da
mendicância na sociedade moderna, marcadas pela lei penal, pelo discurso acadêmico,
pela classificação, pelos controles e políticas para quem habita os espaços públicos e por
alternativas ao modo de produção capitalista.
Ao se estudarem as imagens transmitidas pela imprensa sobre moradores de rua,
notam-se alguns enfoques recorrentes: ‘confundi-los’ com lixo ou com ‘pessoas normais’;
os homicídios sofridos; morte por hipotermia no inverno.1 A freqüência desses temas é
obscurecida quando ocorrem casos de impacto como os assassinatos em série de
moradores de rua na cidade de São Paulo, em agosto de 2003. Ser indistinguível, ser
vítima, estar fora dos padrões de civilidade, ser parcialmente atendido pelos serviços
públicos, ter direitos, ser desempregado: são movimentos tanto de homogeneizar quanto
de diferenciar os moradores de rua. Às vezes, eles são tratados como pertencentes à
classe trabalhadora, mas em condições de miséria extrema; outras vezes, são
diferenciados como abaixo dessa classe. Portanto, morrer assassinado ou por causa do
frio é comumente noticiado, pois essa parcela “não faz falta para a economia do país”.
São “vítimas sacrificiais” das prefeituras e da sociedade. É a partir dos moradores de rua
que podemos pensar comportamentos e tendências políticas, econômicas e sociais; ou,
mais precisamente, pensar alternativas aos modos de vida e de produção baseados no
capitalismo.
CONHECER, CONTROLAR, PENALIZAR, CLASSIFICAR, INCLUIR/EXCLUIR E TUTELAR A POPULAÇÃO DE RUA
A constituição da população de rua pela lei e pela análise acadêmica
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Rapidamente, a condição de mendicância é interpretada por autores do século
XIX, de diferentes formas, como algo que está fora do ritmo de transformações. Haveria
nesse tema uma dificuldade de encaixá-lo no registro dos condicionantes socioculturais
ou nos ‘impulsos naturais’, aparecendo ambigüidades. Neste sentido, pode-se dizer que
as interpretações sobre o fenômeno o tornaram um ‘híbrido’ (LATOUR, 2000), que pode
descrever redes sociais.
Para Marx, o ‘mendigo’ dos primórdios da modernidade era fruto de dois
processos: expropriação e legislação. Isto é, os ‘mendigos’ dos séculos XIV ao XVI eram
ex-camponeses que perderam suas terras e migraram para as cidades e, então, foram
enquadrados em leis que regulavam suas condutas nesse novo meio social. As leis
estabeleciam quem podia mendicar, e quando. Estava em jogo a distinção entre o
trabalhador e o vagabundo. E Marx – com os valores de sua época – aponta para certa
propensão à vagabundagem. Os lumpens, afinal, não tinham as condições materiais para
agirem como membros da classe trabalhadora.
Como visto, o século XIV representou uma reviravolta na questão da mendicância
em relação ao auge do período feudal, quando a questão era interpretada pela moral
cristã, porque foi o primeiro momento na história ocidental em que a ‘vagabundagem’
passou a ser crime.
A perspectiva da lei consolidou-se como forma de classificar o morador de rua.
Este personagem, por sua vez, serviu para se pensar os limites da aplicação das leis no
Estado de direito. Análises recentes mostram que o morador de rua só pode perder, isto
é, sempre sofre o peso legal. Com a posição mais baixa no espaço social, a população de
rua está sujeita a maior aplicação de lei, conforme apontado por Black (1998 e 2002).
Para esse autor, um morador de rua ser agredido pela polícia não é algo ilegal e sim a lei
mostrando seu comportamento baseado em distinções sociais, neste caso, assimétricas
(BLACK, 1998, 2002). O autor mostra que nos Estados Unidos a lei recai muito sobre o
morador de rua, a começar pela forma como ele é tratado pelos policiais.
Do ponto de vista da sociologia pura, o policial chutando um
morador de rua é lei. É uma forma mais severa de lei do que normalmente
ocorre em outras localizações do espaço social, mas ainda é lei. O chute
em um morador de rua ilustra o que acontece quando alguém ocupa
simultaneamente um número de localizações sociais, todas elas atrativas à
lei e à punição. Um morador de rua perde status social de todo tipo: é
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extremamente pobre, e sua integração social é extremamente baixa.
Faltam-lhe posses, dinheiro, emprego, residência na comunidade, e um
dependente familiar que lhe apóie. Ele não é associado a uma organização.
Não tem respeitabilidade, tem um modo estranho de vida, e pode pertencer
a uma minoria cultural. Provavelmente, ele é também um estranho para a
maior parte dos policiais. Ele é, em resumo, uma forma de sujeira social. E
como um ímã social, atrai um estilo de lei altamente penal. Não apenas um
morador de rua é mais vulnerável aos procedimentos formais como prisão,
processo e condenação; ele também pode ser chutado, levar cacetada e
ser, em geral, degradado de um modo raramente visto em outras
localizações sociais ...
Talvez eu deva elaborar a idéia do chute como lei. Entendo, afinal,
que muitas pessoas como advogados e professores de direito diriam que
chute por policiais é uma violação à lei, e que não pode ser uma instância
da lei ao mesmo tempo. Mas pode. Falando sociologicamente, não importa
se chutar é ilegal de acordo com a lei escrita. Nem mesmo importa se um
caso particular de chute por um policial é tratado como crime e punido (o
que é extremamente improvável). O chute ainda é lei – controle social
governamental. É uma aplicação da autoridade legal. O oficial é um agente
do Estado, e nesse sentido é o próprio Estado que chuta. A implicação
pode ser surpreendente: a lei pode ser criminosa. (BLACK, 2002, p.274)
Esta análise retrata o quanto se pode pensar a legalidade por meio dos moradores
de rua. Também nos faz relativizar a perspectiva de que a luta por direitos civis e a
consolidação do Estado democrático de direito no Brasil garantiriam melhores condições
para a população de rua.
O estudo de Barak (1992) faz uma análise da condição do sem teto na história recente
dos Estados Unidos com enfoque na crescente criminalização dessa condição. O autor mostra
que a condição de morador de rua, a partir da década de 1980, vai ser vítima de maior
incidência de leis e políticas que punem a presença e a atitude dos moradores de rua. Porém,
estatisticamente a criminalidade cometida por moradores de rua é muito menor do que por não-
moradores de rua. Para esse criminologista, os moradores de rua são vítimas da condição de
sem teto e da omissão do Estado que deve lhes garantir o direito constitucional a um abrigo.
Esse aumento da criminalização está associado à retirada das políticas do Welfare State.
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O criminólogo mostra que o primeiro trabalho sociológico nos Estados Unidos da
América sobre moradores de rua é de 1923 e consiste num estudo sobre as razões que
levam a essa condição, e que em 1936 surge um segundo trabalho de referência que
aponta para o fato de que uma fatia da população é forçada a ir para albergues porque
está destituída de qualquer meio de vida. Barak (1992) prossegue na análise das
abordagens sobre o tema ao longo das décadas para afirmar que, a partir dos anos 80,
ocorre uma distinção entre um ‘velho’ e um ‘novo’ sem teto marcada pela visão de que
pobreza e privação de abrigo são mais sintomas da política econômica do que causas da
condição de morador de rua em si. Segundo o autor, há uma construção social do
morador de rua que molda a reprodução do problema social.
O posicionamento marxista de Barak permite notar que análise científica e
contexto político andam juntos. Assim como há no estudo a noção de que as estruturas
sociais são os determinantes da condição de sem teto. Vejamos outros casos.
Em um número especial sobre homeless da revista norte americana Urban
Geography, Hoch (1991) analisa a organização espacial urbana em relação ao caso dos
moradores de rua de Chicago. Mostra que as políticas governamentais de reforma urbana
do centro da cidade, que acabaram com os quartos de solteiros em hotéis baratos
(Single-room occupancy) dos quarteirões destinados aos ‘marginalizados’, promoveu o
fim da sobrevivência digna dessa população. Portanto, o que mudou no perfil do morador
de rua dos anos 50 para os 80 foi a impossibilidade de poder dormir nesses locais, que o
autor considera que serviam como garantia de alguma independência ao sem teto. Esse
urbanista mostra que em 1985 havia 2 mil sem teto em Chicago e que as condições de
obtenção de renda deles era bem menor do que na década de 1950. Dear e Gleeson
(1991), por sua vez, apresentam um estudo da atitude do público (com base em jornais de
Los Angeles e Nova York) em relação aos moradores de rua. Concluem que a situação é
paradoxal, pois a população em geral expressa que, por um lado, são necessárias
políticas de assistência social aos miseráveis e, por outro, há muito preconceito em
relação aos sem teto. Os autores analisam o contexto para mostrar que há um aumento
da população de rua decorrente da retirada de investimentos sociais por causa da
mudança na política do Welfare State promovida pelo presidente Reagan, a partir de
1988.
Se, por um lado, aparece a questão da lei e do controle social, por outro os
moradores de rua são associados à ‘natureza’, como se pode constatar em estudos sobre
as atitudes diante deles. Mais especificamente, a presença do morador de rua provoca na
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opinião pública um impacto porque há uma exposição de algo do mundo privado, as
necessidades fisiológicas. Em seu estudo, Dear e Gleeson (1991, p.164) mostram que o
maior número de registros jornalísticos sobre os impactos na vizinhança da presença de
moradores de rua diz respeito à presença de urina e fezes em locais públicos. Porém, a
perspectivas de condicionantes ‘naturais’ da condição de morador de rua fica explícita nos
trabalhos de Weiner e Weaver (1974) e de Shnabel (1992), ao tratarem a questão pela
psiquiatria e pela neurologia, respectivamente.
Weiner e Weaver (1974) realizaram um estudo quantitativo entre moradores de rua
associando o alcoolismo ao aumento da incidência da atividade de pedinte: quando
sóbrios, trabalham; quando bêbados, pedem. O foco é: pedinte e alcoolismo como
desvios sociais.
Shnabel (1992) apresenta uma mudança nos últimos sessenta anos no perfil da
população de rua, com o aumento do número total e da diversidade étnica de pessoas
que vivem nas ruas de cidades da Holanda. Afirma que entre 25 e 35% dos moradores de
rua têm ou tiveram histórico de distúrbios psiquiátricos. Portanto, o autor defende que a
psiquiatria deve ter um maior papel de controle social dessa população, que deve ser
internada quando necessário.
Ambigüidade ou ambivalência na caracterização manifesta-se também nas
denominações diversas: mendigo, morador de rua, sofredor de rua, sem teto, pedinte,
indigente, excluído, andarilho, trecheiro, trabalhador sem teto, catador etc. Esta
diversidade de (des)qualificações deve-se, em parte, à diversidade de tipos e situações
de viver na rua; e também, a posições políticas que derivam da forma como se concebe o
morador de rua. Este é, geralmente, definido pela falta, pela carência absoluta. A opção
aqui pela denominação ‘morador de rua’ é porque define o grupo por um modo de vida em
comum.
Quando se interpreta o morador de rua, as representações podem ser resumidas
em ‘excluídos’. No entanto, esta expressão leva-nos a indagações: excluídos de quê, de
onde? As respostas mais imediatas dizem que os moradores de rua estão fora do
mercado de trabalho, do acesso à moradia, à educação, à saúde etc. Porém, determinada
corrente teórica mostra a exclusão e a inclusão como duas partes de um mesmo
processo, e que somente a lógica dialética dá conta de superar essa dicotomia. O artigo
de Luciano Oliveira (1997) aponta para o fato de que o conceito de ‘exclusão’ já havia
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sido questionado pela crítica à razão dualista,2 ao estabelecer exclusão/inclusão como
um par dialético inerente ao modo de produção capitalista em suas diferentes fases; deste
modo, a visão dicotômica do processo de exclusão estaria ultrapassada. O sociólogo
argumenta que, contemporaneamente, há excluídos cuja inclusão, possivelmente, nunca
acontecerá. Então, propôs que os ‘excluídos’ sejam pensados de um ponto de vista
valorativo acerca do que seja um modo de vida humano. Por fim, afirma que o conceito de
excluído, mais do que teórica, tem uma razão ética e política porque “interpela sobre a
natureza da polis que estamos construindo” (1997, p.60).
De fato, há uma nova fase do modo de produção capitalista decorrente da
revolução industrial da microeletrônica. Nesse contexto, aparecem teorias que apontam
para o fim do trabalho assalariado. Aparentemente, a liberação de mão-de-obra
provocada pela terceira revolução industrial criou um ‘lixo’ humano que não é mais
empregável. Porém, não cabe aqui aprofundar a discussão teórica sobre a crescente
massa populacional de não empregáveis e sim apresentar alternativas para a população
de rua.
Dentro do raciocínio da dialética entre exclusão e inclusão, Singer (1998) mostra
que a terceira revolução industrial, a da microeletrônica, e a globalização provocaram um
desemprego ‘estrutural’. Ações estatais de compensação e, principalmente, a economia
solidária (ou auto-emprego) são as alternativas a essa conjuntura. Para o autor, a
economia solidária é uma alternativa ao modo de produção capitalista e é o socialismo
aqui e agora. Vejamos uma seqüência da argumentação do autor:
Para resolver o problema do desemprego é necessário oferecer à
massa dos socialmente excluídos uma oportunidade real de se reinserir na
economia por sua própria iniciativa. Esta oportunidade pode ser criada a
partir de um novo setor econômico, formado por pequenas empresas e
trabalhadores por conta própria, composto por ex-desempregados, que
tenha um mercado protegido da competição externa para os seus produtos.
Tal condição é indispensável porque os ex-desempregados, como se viu,
necessitam de um período de aprendizagem para ganhar eficiência e
angariar fregueses. Para garantir-lhes o período de aprendizagem, os
próprios participantes do novo setor devem criar um mercado protegido
para suas empresas.
Uma maneira de criar o novo setor de reinserção produtiva é fundar
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uma cooperativa de produção e consumo, à qual se associarão a massa
dos sem-trabalho e dos que sobrevivem precariamente com trabalho
incerto ...
O mercado protegido será uma condição necessária mas não
suficiente para que o novo setor de economia solidária dê certo. O seu
êxito não consistirá somente na mera sobrevivência das empresas e
pessoas que o constituem, embora a sobrevivência no tempo já represente
a solução para o desemprego, ou seja, a reintegração econômica – e
portanto social – dos hoje marginalizados. Mas o objetivo almejado deve
ser a criação de uma lógica ‘incluidora’, ou seja, capacitada e interessada
em acolher sem limites novos cooperados, e que ofereça a estes uma
chance real de trabalhar com autonomia e de ganhar um rendimento
suficiente para ter um padrão de vida digno …
Em outras palavras, o ponto de partida da economia solidária é o
reconhecimento que a causa maior da debilidade da pequena empresa e
do autônomo é o seu isolamento ...
Esta forma de luta contra o desemprego tem muitos pontos em
comum com a organização de produtores autônomos (e empresas
capitalistas coletivas) em sistemas de crédito mútuo e comércio recíproco.
O principal deles é a prática da solidariedade em lugar da competição. Na
empresa autogerida, a preservação dos postos de trabalho substitui a
lucratividade como objetivo máximo. Os trabalhadores-gestores se dispõem
a fazer sacrifícios, eventualmente abrindo mão de salários mais elevados,
para que todos possam continuar trabalhando. Na empresa capitalista, os
empregados competem por promoções, prêmios de produção, lugares de
chefia. Na empresa auto ou co-gerida a confiança mútua e a ajuda mútua
são vitais para recuperar a competitividade, não há possibilidade de alguns
se beneficiarem em detrimento de outros. (SINGER, 1998, p.73-138, grifos
meus)
Além da discussão sobre exclusão/inclusão, a questão se aprofunda ao se
verificar que recaem sobre o morador de rua os mecanismos de tutela (CASTEL, 1978).
Na análise de Castel o dispositivo da tutela recai tanto sobre o ‘mendigo’ quanto sobre a
classe trabalhadora como um todo. Mais do que mostrar que essa população é alvo de
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vigilância, ela é constituída pelos dispositivos de controle social. Deduz-se que, num certo
sentido, as tentativas das entidades filantrópicas, dos grupos de direitos humanos e de
prefeitos em conhecer o perfil populacional alimentam a disputa pela tutela sobre os
moradores de rua. O conhecer para controlar insere-se numa gama que vai da repressão
a propostas e ações democráticas de luta por direitos.
O espaço comum e as interpretações no Brasil: conhecer para agir e controlar
Os estudos brasileiros sobre os moradores de rua tratam dos seguintes temas:
viver na rua (são ‘pedintes’ ou ‘mendigos’); violência; mundo do trabalho e
desempregados (são tratados pela literatura como ‘sem teto’ ou ‘morador de rua’).
A população que vive nas ruas é tratada, nas décadas de 1970 e 1980, pelo termo
‘mendigo’, e as análises mostram que o público, em geral, o distingue do ‘pedinte’, sendo
aquele a pessoa que perdeu certos atributos sociais (família e casa), sobrevive nas ruas,
não trabalha e apresenta-se sujo e maltrapilho, enquanto este possui atributos sociais,
mas tem dificuldade para sobreviver e depende da ajuda de terceiros. Neves (1983)
estuda o fenômeno social da mendicância como forma de reprodução social dos
trabalhadores e conclui que é uma ‘alternativa de vida’ para estes.
O viver na e da rua é uma categoria fundamental na análise desta população.
Stoffels (1977) chama a atenção sobre aqueles que vivem nas ruas como um habitat total.
O espaço ‘rua’ é vivido como um território apropriado. Neste caso, a rua divide-se em três
locais distintos: o de sobrevivência, o de repouso e o de convivência grupal. Um dos
grupos estudados pela autora vivia numa praça e limitava-se às fronteiras do local de
convivência. Isto é, o morador de rua sabia qual era o seu espaço e qual era o do outro,
dos vizinhos. Os requisitos do espaço para a permanência de ‘mendigos’ era: isolamento,
pouco movimento, proteção contra a repressão, pontos de pedido, locais de repouso e
locais de convivência. O público transeunte, como doador de esmolas, é o recurso do
‘mendigo’. Ao mesmo tempo, este estranha aquele quando o estigmatiza de ‘vagabundo’.
Assim, “surge uma ‘fronteira’ no espaço-rua, utilizado como território apropriado e lugar
público” (STOFFELS, 1977, p.150). A questão central desta autora é a complexidade e
especificidade das atividades e da ideologia da mendicância. Ela situa a problemática na
apreensão de uma autonomia relativa das atividades e da ideologia dos ‘mendigos’ em
relação à ideologia dominante.
A partir da década de 1990, com um contexto de novas políticas municipais de
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bem-estar social, os trabalhos analisam o perfil da população de rua (VIEIRA et al., 1994),
as formas de atendimento a essas pessoas e as práticas assistenciais em geral, a relação
de uso privado do espaço público, as organizações dos moradores de rua e a migração.
Os textos de Vieira (1995), Neves (1995) e Montes (1995) dialogam e problematizam as
ações de militantes e políticas em relação aos moradores de rua. Enquanto Vieira e
Neves tratam do tema pela perspectiva da classe trabalhadora, Montes privilegia a
questão da identidade ‘fragmentada’.
Vieira (1995, p.43) fala que o morar na rua dá um novo sentido ao uso do espaço
público. O que é privado, como comer, beber, dormir etc., torna-se público. O público,
enquanto espaço coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Esta subversão de
regra faz da ocupação das ruas um fato conflituoso. Neves (1995) destaca nas estratégias
de sobrevivência dos moradores de rua o fato de que “quanto mais pertences acumulam,
quanto melhor se organizam para viver na rua, quanto mais demarcam simbolicamente,
através de papelões e plásticos, um espaço para a privacidade ou menos vulnerável ao
olhar do curioso, mais incitam a repressão, mais escandalizam os demais usuários do
espaço público” (NEVES, 1995, p.69).
Montes (1995) afirma que o discurso recente sobre a população de rua precisa ser
problematizado porque se volta, principalmente, para a questão da identidade. Ela mostra
que a identidade é um feixe de relações e que o senso comum tem dificuldade de pensar
a identidade do morador de rua perante os outros atores com os quais se defronta na vida
da cidade. A pluralidade de discursos construídos pelos grupos que lidam com a
população de rua sobre a identidade desta, à medida que ela própria os introjeta, gera
uma experiência de fragmentação. Coloca-se, então, a questão da reconstrução da
identidade fragmentada do morador de rua, justamente porque identidade é o que dá
sentido de unidade. Este comentário de Montes permite visualizar as duas dimensões da
questão da mendicância: as análises sobre a população em geral e sobre as pessoas em
si.
Os trabalhos de Sérgio Martins (1995), Nasser (1996) e Maria de Fátima Martins
(2001) estudam a migração e as políticas sociais e os perfis de moradores de rua e de
albergados, como formas de reprodução dos trabalhadores. Há também o trabalho de
Barros (2004), que analisa a experiência da vida nas ruas e da constituição das redes de
atendimento, e chega a estudar o assentamento D. Tomás Balduíno, organizado pelo
MST, com ex-moradores de rua. Esta autora faz uma análise dos nomes pelos quais são
tratados os moradores de rua e um histórico das políticas sociais dos anos 90. Dentre
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esses trabalhos, o estudo recente de Martins (2001) vai ao encontro deste artigo porque
aponta para a necessidade de se compreender a migração num novo contexto em que
conceitos e noções como o de “exército industrial de reserva” e de “mobilidade de força
de trabalho pelo capital” são insuficientes porque os ‘excluídos’ não cabem mais nestas
noções, uma vez que o modo de produção capitalista está numa fase de aumento da
produtividade sem geração de empregos. Para essa autora, o homem que está fora da
relação trabalho-capital é uma figura ‘fantasmagórica’, até mesmo para o pensamento.
Por isso, ela afirma que “através dos moradores de rua e com eles é possível redefinir a
compreensão da rua, da experiência urbana que significa e, mais ainda, de seu sentido na
história” (MARTINS, 2001, p.116). Essa geógrafa enfoca as redes sociais3 dos moradores
de rua, passando por uma geografia da assistência, para mostrar que a condição dessa
população leva a dar sentido a uma articulação em rede, uma vez que nas ruas as tramas
são frágeis e os laços tênues (MARTINS, 2001, p.187-193). Chama a atenção a
contribuição de Barros (2004) por analisar a população de rua pelo registro de questionar
a modernização brasileira, interpretando a invisibilidade desse tipo de pobreza como uma
forma de permanente exceção. Para a autora, a população de rua é um meio para
compreender os processos de modernização da sociedade brasileira. Neste sentido, o
texto de Barros está próximo dos questionamentos expostos aqui.
História rápida das políticas no Brasil em relação às classes populares
Pinheiro (1981) mostra que desde o início da Primeira República existe a
perseguição às ‘classes subalternas’. Naquela época a ‘vagabundagem’, entre outros,
estava na lista dos crimes comuns. Nesse texto, o autor aponta uma tradição de violência
física e ilegítima por parte do Estado, tanto nos regimes autoritários, quanto nos mais
democráticos. Há uma repressão generalizada em relação às ‘classes subalternas’ e uma
repressão qualificada em relação às ‘classes trabalhadoras’. Essa institucionalização da
violência pelo Estado é, segundo o autor, uma política deliberada de controle social das
classes subalternas.
Observa-se com Adorno (1990) que o processo de isolamento dos ‘desajustados’
ocorre no Brasil entre 1880 e 1920, período esse justamente de transição do trabalho
escravo para o trabalho livre. Com o fim da ordem escravocrata, os pobres ocupam o
espaço urbano. Temos uma série de trabalhadores pauperizados e expropriados, e a eles
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juntam-se os imigrantes europeus. Estes enquadram-se nas mais diversas atividades
para garantir a sobrevivência.
Todos eles foram os clientes preferenciais da filantropia, porque criavam o
obstáculo para a constituição do trabalhador dócil. No período estudado pelo autor, houve
um agravamento da criminalidade, cuja violência era a norma para a resolução dos
conflitos sociais. Outra referência constante era em relação aos ‘menores vadios’, os
mendigos e as prostitutas, ‘sujeiras’ a serem saneadas. Por isso, discutia-se a missão
preventiva do Estado para minimizar a mendicância e o abandono de crianças. Junto com
os loucos, que vagavam pelas ruas, toda uma ‘escória’ formada por ladrões, prostitutas,
bêbados, mendigos etc., constituintes das ‘classes perigosas’, deram trabalho para os
alienistas. Estes tinham entre seus objetivos imediatos a moralização do espaço público,
afirma o sociólogo.
Desenhou-se assim todo um esforço classificatório voltado para distinguir e
estabelecer fronteiras entre loucos e criminosos, vagabundos e pobres, definindo-se
lugares apropriados de segregação ou de ‘cura’ que possibilitassem maior refinamento
das operações de controle e de vigilância médica (ADORNO, 1990, p.16).
A filantropia entra para proteger a população urbana trabalhadora das
adversidades da pobreza. Essa “gestão filantrópica da pobreza urbana”, para concluir, só
foi possível com a invenção do estatuto da tutela.
Dando seqüência ao movimento histórico, passamos para as décadas de 1950,
60, 70 e começo de 80. Sposati (1988), ao analisar os serviços municipais de assistência
social e seu aparato burocrático do período, apresenta a tese de que a gestão da pobreza
por parte do Estado restringiu-se a intervenções ou atendimentos pontuais sem ir à raiz,
caracterizando uma relativa omissão ao particularizar o problema.
Dentro desse processo histórico, na virada dos anos 80 para os 90 ocorreu uma
mudança em relação à questão do morador de rua (Cf. COSTA, 1989; OLIVEIRA &
VICENTE, 1989). Foi um movimento tanto de busca da cidadania da população de rua,
com base na sua participação direta, quanto de encontrar alternativas para sair da
condição de morar nas ruas. Os trabalhos da Pastoral dos Sofredores de Rua, da
Fraternidade Povo da Rua (a ser vista mais adiante) e de outras entidades civis e/ou
religiosas deram um outro enfoque político para o tema que não é mais o da filantropia
(Cf. ROSA, 1995).
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As políticas e as ações civis recentes em relação aos moradores de rua 4
Por um lado, a política de segregação dos moradores de rua na cidade de São
Paulo teve um auge com uma lei de cercamento das praças públicas pelo governo
municipal, na gestão do falecido Jânio Quadros (PTB – Partido Trabalhista Brasileiro), de
1985 a 1988. A partir do ano de 1994, setores da sociedade procuraram evitar a presença
dos ‘mendigos’ com a construção de prédios sem marquise, com funcionário de loja
jogando óleo queimado na calçada em frente, com a prefeitura realizando operação ‘anti-
mendigo’ – como a colocação de grades em árvores de praças. Estas atitudes tiveram o
apoio do Administrador Regional da Sé, na época.
Por outro lado, no mesmo ano de 1994 ocorreu, no dia 10 de maio, na Câmara
Municipal de São Paulo, uma celebração do quarto ano de luta da população de rua.
Estavam presentes moradores de rua em geral, membros de centros comunitários e de
direitos humanos (que são moradores de rua), membros da Pastoral do Povo da Rua,
secretários municipais, sindicalistas e vereadores. Nessa oportunidade, a vereadora
Aldaísa Sposati, do PT (Partido dos Trabalhadores), entregou ao presidente da Câmara
seu projeto de lei (no 207/94) de uma política de atenção à população de rua. Em seu
depoimento, a vereadora disse que quando era Secretária Municipal das Administrações
Regionais foi procurada por moradores de ruas e Irmãs católicas para reivindicar o direito
de recolher o papel das ruas porque viviam disso.5 Em 1997 foi aprovada lei municipal (no
12.316/97) que estabelece como dever do poder público municipal da cidade de São
Paulo, manter serviços e programas de atenção à população de rua garantindo “padrões
éticos de dignidade”.
Ao longo da década de 1990, os moradores de rua passam a ser mais tematizados
e viram alvo da preocupação de algumas instituições. Destacam-se alguns eventos: a
Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de
1995, teve como tema ‘os excluídos’; o curso de jornalismo de uma faculdade privada
começou a produzir um jornal sobre essas pessoas, para ser vendido por meninos de rua.
Outra iniciativa foi a realização do Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São
Paulo, em 1995, pelo Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC/SP em conjunto
com outras entidades, que se refere até mesmo a homeless. Dois Seminários Nacionais
sobre População de Rua foram realizados, um em 1992 em São Paulo, e outro, em 1995,
em Belo Horizonte (MG). Vale lembrar O Trecheiro, jornal publicado pela Rede Rua de
Comunicação desde 1990, e a organização da primeira cooperativa dos catadores
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autônomos de papel, fundada em 1989. Outras duas iniciativas que se destacam na forma
de lidar com a população em situação de rua são a ONG Minha Rua Minha Casa6 e o
Projeto Boracéia, da gestão municipal de Marta Suplicy (PT), de 2001 a 2004, porque
envolvem os moradores de rua na organização.
Desse breve relato, nota-se que os distintos setores da sociedade e do Estado
defendem diferentes posições sobre quem pode, ou não, ficar nas ruas. As políticas e as
ações civis variam de medidas repressivas e excludentes às organizações que envolvem
os moradores de rua na gestão. Essa variação é decorrente das posições políticas dos
setores sociais envolvidos, seja de liberais, de conservadores, ou de socialistas
progressistas. Apresentam-se então os contornos da disputa pela tutela: a ciência, os
militantes, a assistência social e o Estado estabelecem o perfil do morador de rua e as
políticas de bem-estar social, que vão da segregação às formas que abrem a
possibilidade para a emancipação da condição de tutelados. Portanto, a questão é como
sair da tutela.
O perfil do morador de rua em São Paulo
Antes de apresentar dados sobre a população de rua na cidade de São Paulo,
vale ressaltar que as contagens dos moradores de rua são difíceis de serem feitas em
razão da possibilidade de não cobrir todo o universo e do risco de contar mais de uma vez
a mesma pessoa. Portanto, a contagem não se propõe apresentar números definitivos. O
primeiro censo de moradores de rua da cidade de São Paulo teve dois eixos básicos:
conhecimento da dimensão, das características, das formas de
sobrevivência e da trajetória da população de rua, entendida como a que
sobrevive da rua, utilizando-a circunstancialmente ou de forma permanente
como moradia; avaliação crítica de algumas formas de atendimento no
âmbito das ações públicas e privadas, entendendo-as como ação
intencional de instituições e grupos voltada especificamente para esta
população. (VIEIRA et al, 1994, p.14)
De acordo com o primeiro censo realizado pela Secretaria Municipal da Família e
do Bem-Estar Social em 1991, havia 3.392 moradores de rua na cidade. Do total de
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pessoas que passaram pelas instituições (para o perfil optaram por questionários em:
abrigo, casa de convivência e albergue), 90% são do sexo masculino e 10%, do feminino.
Destes, aproximadamente 65% têm menos de 40 anos. O levantamento constatou 329
pontos pela cidade onde as pessoas dormem, 70% dos quais localizam-se nos distritos da
Liberdade, Bela Vista e Sé. O levantamento apontou como segmento mais significativo os
homens, em grupos ou sozinhos. Destacou, também, a heterogeneidade da população,
composta por famílias, homens e mulheres sós, crianças e adolescentes. Dos moradores
de rua que foram contatados em albergues, 46% possuíam trabalho até um ano antes.
Quanto à origem da população que freqüenta abrigo, casa de convivência e albergue,
apenas 13, 14 e 10%, respectivamente, são da cidade de São Paulo, e os demais são do
interior do estado ou de outros estados da federação (VIEIRA et al., 1994, p.71).
Pelos dados apontados, nota-se a maior concentração de moradores de rua nas
regiões centrais da cidade. Uma das interpretações possíveis para isto é a proximidade a
locais para a garantia da sobrevivência, como a obtenção de alimentação gratuita (VIEIRA
et al., 1994, p.50). Nesses locais concentram-se pontos comerciais que ficam vazios à
noite.
O número de moradores de rua cresceu em 1994. A Secretaria Municipal da
Família e do Bem-Estar Social, na sua segunda contagem, chegou a um universo de
4.549 indivíduos. A grande maioria continuou sendo do sexo masculino.
Em 1996, o perfil da população de rua não se alterou, apenas os números totais.
Continua sendo o homem jovem, e, do total, quase 70% estão entre 18 e 44 anos. Da
totalidade, 59% são homens adultos, 15% mulheres adultas. Nesse terceiro censo
realizado pela Secretaria Municipal da Família do Bem-Estar Social, contabilizaram-se
5.334 pessoas morando nas ruas. O destaque fica com as regiões Sé e Lapa, com
aproximadamente 78% do total computado de moradores de rua da cidade.
Em 2000, estimavam-se 8.706 moradores de rua. Segundo estudo da Fipe/USP
(Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo) realizado
para a Secretaria Municipal da Família do Bem-Estar Social, 37,7% do total, ou seja,
3.018 moradores de rua, vivem da coleta de material reciclável. O perfil seguiu os
anteriores: cerca de 85% da população é do sexo masculino e com idade média de 40
anos (62% estão no intervalo entre 26 e 45 anos). Quanto à origem, 48,4% são da região
Sudeste, 42,1% da região Nordeste e 9,5% são das demais regiões. Os migrantes são a
grande maioria daqueles que pernoitam nas ruas, com 81%, e o estado com maior
incidência de origem é São Paulo, com 34,9%. A maioria, 56%, vive só. Entre as
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atividades exercidas, 48,6% são catadores, e os demais encaixam-se como guardador de
carros, vendedor, carregador, vigia e outras ocupações.
Em 2003, mais um censo foi realizado pela Fipe para a Secretaria Municipal de
Bem-Estar Social e apontou para 10.394 pessoas em situação de rua. Aumentou também
o atendimento a essa população pela Prefeitura em razão de maior oferta de vagas em
albergues. Sposati (2003) aponta para o fato de que nas metrópoles mundiais estima-se
que 1% da população vive em situação de rua.
Os números não revelam um ponto comum na caracterização do morador de rua:
ser ‘trecheiro’. Percorrer trechos da cidade é um dos meios de sobrevivência. Vão atrás
de abrigos, de lugares para o pernoite, de locais que oferecem comida ou, simplesmente,
fogem das ‘perturbações’ da polícia militar.
O Quadro 1 sintetiza os números totais expostos ao longo deste item. Com ele,
pode-se visualizar o crescimento do número de moradores de rua em São Paulo, que em
treze anos aumentou em mais de três vezes. Vale comparar com as taxas de desemprego
do mesmo período na região metropolitana de São Paulo. Não é possível afirmar que o
desemprego é um determinante da condição de morador de rua, porém, é um dos fatores
condicionantes. O Quadro 2, a seguir, mostra o aumento crescente da porcentagem de
desempregados, que no mesmo período subiu oito pontos percentuais. Outro indicativo
das condições sócio-econômicas da população sem teto, num sentido amplo, são os
dados sobre condições habitacionais. Segundo a pesquisa de condições de vida,
realizada pela fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados Estatísticos), em
relação às condições de habitação, o percentual de barracos isolados e favelas na Região
Metropolitana de São Paulo aumentou de 6,2%, em 1994, para 9,1%, em 1998; já a
proporção de cortiços manteve-se relativamente estabilizada no período, chegando a
5,0% em 1998.
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Para efeitos comparativos com os números de moradores de rua na cidade de São
Paulo, temos que no município do Rio de Janeiro uma pesquisa feita pela Uerj
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) revelou que no ano de 1999 havia 3.535 sem
teto, dos quais 45% tinham carteira de trabalho. Em Belo Horizonte (MG), havia 916
moradores de rua em 1996, quando foi realizado o primeiro censo dessa população, e,
em 2001, estimava-se a existência de 1.200 pessoas nessa condição (MARTINS, 2001).
Estima-se que há em todos os Estados Unidos da América cerca de 300 mil homeless e
que esse número pode chegar a 3 milhões, segundo Barak (1992, p.4). Em Nova York,
em 1998, dormiam por noite em abrigos mais de 7 mil pessoas, e estimava-se cerca de
25 mil sem teto pela cidade. Em 2004, havia mais de 36 mil pessoas dormindo em abrigos
por noite. Na Grã-Bretanha, estima-se em cerca de 500 mil os moradores de rua, segundo
Smith (1994, p.273-274).
Os números fazem parte do jogo de construção e de representação da realidade,
baseada em pesquisas empíricas que constituem o perfil da população alvo. Eles
embasam políticas e, assim como as análises e trabalhos acadêmicos, estão nas redes
dos moradores de rua. Também servem para comparar com as possibilidades das
alternativas e ampliar as conexões do potencial emancipador.
ALTERNATIVAS SOCIAIS E EMANCIPAR: MST, MTST E COOPERATIVAS
Posto que a situação da população de rua é de tutela e que há uma disputa por
(re)definir qual tutela, a ‘alternativa’ para essa população só pode ser pensada como
emancipação da condição de tutelado, como possibilidade de ela encontrar formas
autogeridas de meios de vida e de geração de renda. Vale enfatizar que uma parcela dos
moradores de rua quer sair desta condição e que não se atribui aqui o significado para
‘alternativa’ como possibilidade de eliminação total da situação de rua.
Das alternativas nesse sentido, há o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
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(MTST), as cooperativas autogeridas de catadores de materiais recicláveis e o MST.
Tendo em conta seus objetivos como organização, o MST representa também aqueles
que não têm um modo de vida camponês. Nesse sentido não haveria contradições para o
Movimento em lidar com pessoas que nunca viveram na terra, como por exemplo, o ex-
jornalista e estudante de Ciências Sociais que se mudou para o assentamento Nova
Canudos, no município de Iaras (SP). No entanto, seria e é um desafio. O MST pretende
abarcar também aqueles destituídos de qualquer ‘modo de vida’ e ser um caminho para
construir uma sociedade socialista. Há uma prática do MST de levar pessoas que vivem
em situação liminar de miséria nos grandes centros urbanos para acampamentos e
assentamentos de reforma agrária.
Antes de trabalhar as condições em que o MST pode ser uma alternativa solidária
para os moradores de rua, cabe apresentar outras duas que, até o momento, constam da
trajetória dos moradores de rua na cidade.
As cooperativas de catadores
Cooperativas de catadores de papel e outros materiais recicláveis: eis uma
alternativa solidária para os moradores de rua não só de São Paulo, mas de Porto Alegre,
Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Na cidade de São Paulo há mais de vinte
cooperativas de catadores de papel. O mercado de lixo reciclável em São Paulo estava
estimado em R$ 300 milhões, em 2001. Além dos moradores de rua de São Paulo, o
Fórum Lixo e Cidadania – reunião de ONGs (Organizações Não-Governamentais) que
atuam no ramo – estimava que cerca de 17 mil pessoas sobreviviam ou complementavam
seu orçamento da coleta de material reciclável, no estado de São Paulo. Segundo
Conceição (2003, p.32), estima-se em 300 mil o número de pessoas vivendo de catadores
de lixo no Brasil, dois terços dos quais localizam-se no estado de São Paulo.7 Os dados
devem ter se alterado nos últimos anos.
As cooperativas de catadores lutaram anos pelo reconhecimento da profissão de
‘catador’ pelo INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), para ter direitos, maior
dignidade e reconhecimento social. Esta foi a principal pauta do 1º Congresso Nacional
dos Catadores, em junho de 2001 em Brasília. É permitido ao membro de uma
cooperativa de catadores cadastrar-se como contribuinte individual autônomo junto ao
INSS.
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A formação de cooperativas de catadores de materiais recicláveis como alternativa
de economia solidária também está presente em países como a Colômbia e a Índia, por
exemplo. Rodríguez (2002) realizou uma pesquisa-ação junto a uma cooperativa de
recicladores de lixo de Bogotá, Colômbia, na perspectiva de que esse tipo de cooperativa
tem um potencial emancipador. Ele mostra que, no final dos anos 90, havia naquele país
cerca de 300 mil pessoas vivendo da coleta e recuperação de materiais recicláveis nas
cidades, o que correspondia a 1% da população nacional. Na mesma época, havia em
Bogotá 94 cooperativas de recicladores. Uma das deduções do autor é que as
cooperativas são relativamente independentes umas das outras e que elas deveriam se
integrar numa rede de ajuda mútua para fortalecimento político e econômico
(RODRÍGUEZ, 2002, p.358).
Além de entrar para o MST ou de formar cooperativas de catadores de material
reciclável, outra alternativa surgiu na segunda metade dos anos 90. Em agosto de 2001, o
MTST do Rio de Janeiro ganhou destaque na mídia ao promover a ida de seus membros
a um Shopping Center e a um supermercado: os “redutos da classe média foram
invadidos”, noticiou a imprensa. Segundo Iha (2001), o MST constituiu o MTST, por meio
de grupos internos do Movimento, como o “Consulta Popular”, que propôs a união das
lutas campo-cidade.
O MTST
O MTST nasceu em Campinas (SP) e seguiu para o Rio de Janeiro em 1997, onde
promoveu dois acampamentos no ano de 2000. Além de Campinas, o MTST também
começou a atuar em São Paulo, Sorocaba, Guarulhos, Osasco, Jandira, Itapevi e na
região do ABC, entre outras. De forma independente do trabalho da Fraternidade Povo de
Rua, mas com alguns militantes em comum, o MTST cadastrou mais de 2.200 pessoas
que vivem nas ruas de São Paulo e que querem ir para algum assentamento, em 2001.
Desse total, cerca de 500 acamparam, em 7 de setembro de 2001, num terreno à beira de
rodovia Presidente Dutra, no município de Arujá (SP), por alguns meses. Esse
acampamento foi organizado pelo MTST e pelo MST. Posteriormente, os acampados
conseguiram ser assentados num terreno em Franco da Rocha, o assentamento D.
Tomás Balduíno. Além desse acampamento, há outro em Guarulhos com cerca de 4 mil
pessoas, o Anita Garibaldi.
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A diferença entre MST e MTST é que este último é para moradia e não para
produção agrícola, ao passo que o primeiro tem o caráter de reforma agrária. O MTST
promove ocupações em área onde não prevalece o módulo rural; as pessoas conseguem
moradia e podem ter uma horta. Para o MST interessa assentar as famílias em lotes onde
possam produzir excedentes.
O MST
Psicólogos sociais, sociólogos, antropólogos e, principalmente, geógrafos
debruçam-se sobre assentamentos de reforma agrária, muitos deles surgidos por causa
da luta pela terra organizada pelo MST e outras entidades semelhantes. Há uma meia-
dúzia de trabalhos acadêmicos sobre uma fatia mínima desta luta – assentamentos com
ex-moradores de rua.
O trabalho do MST de promover ocupações de terra com pessoas que vivem nas ruas de
São Paulo começou em 1994, através da aproximação do trabalho da Fraternidade Povo
da Rua (cujos membros são, em parte, da Congregação do Verbo Divino) com o MST,
criando um centro de formação desse movimento no bairro do Brás.
A Fraternidade Povo da Rua começou a atuar com a população de rua no início
dos anos 90, fazendo um trabalho de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis e
de ajuda aos portadores do vírus HIV. A trajetória inicial da Fraternidade está
interpenetrada pela Rede Rua de Comunicação. Em 1990, foi oficializada a entidade
Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados, que se chamaria mais
tarde de Rede Rua de Comunicação, que começou a fazer o jornal O Trecheiro e assumiu
uma casa de atendimento à população de rua. Nesse contexto, a Fraternidade Povo da
Rua virou uma entidade independente e, em 1994, organizou o primeiro grupo de
moradores de rua que participou da luta pela terra em Itapeva.
A primeira ocupação com moradores de rua ocorreu em 20 de dezembro de 1994
no município de Itapeva (270 km a sudoeste da capital). Um grupo de 15 moradores de
rua estava se reunindo havia seis meses na igreja ‘da Torre’ (Bom Jesus do Brás), e 13
deles juntaram-se a mais de duzentas famílias para ocuparem a fazenda Pirituba, com 17
mil hectares, em Itapeva. Dos 13 provenientes das ruas de São Paulo restaram, em 1995,
quatro pessoas, após um ano de acampamento. Em 1995, houve uma tentativa de levar
moradores de rua para Andradina. Em 2003 contabilizavam-se, entre acampamentos e
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assentamentos com ex-moradores de rua, dez unidades. Além do caso estudado
(JUSTO, 2005), há um no Pontal do Paranapanema, dois no município de Iaras,8 um em
Bauru, um em São José dos Campos, um em Jacareí, um em Barretos e um em Ribeirão
Preto.
Por fim, entre 1999 e 2000, o MST criou na cidade de São Paulo a regional
Grande São Paulo, em decorrência do trabalho do centro de formação no Brás levado
pelo ‘coletivo’ de militantes do MST e da Fraternidade Povo da Rua. Essa regional é a
responsável pelo assentamento D. Tomás Balduíno,9 em Franco da Rocha, e pelos
acampamentos Irmã Alberta, na divisa de São Paulo com Cajamar, Camilo Torres e D.
Pedro Casaldáliga, numa mesma fazenda em Pirapora do Bom Jesus.
A partir do final da década de 1990, as regionais do eixo metropolitano do MST
(Grande São Paulo, Campinas e Vale do Paraíba) começaram a implementar a proposta
de Comunas da Terra, que consiste em ocupações próximas aos grandes centros
urbanos visando abastecê-los. As famílias moram em pequenos lotes (de 2 a 5 ha)
formando núcleos familiares e produzem em áreas coletivas. As experiências até o
momento são: assentamento Nova Esperança, em São José dos Campos, de 1998, com
60 famílias em 447 ha; assentamento D. Tomás Balduíno, em Franco da Rocha, de 2001,
com 180 famílias em 850 ha; acampamento Terra Sem Males, em Cajamar, com 220
famílias, desde 2002; acampamento Irmã Alberta, na divisa de São Paulo com Cajamar,
com 300 famílias em 250 ha, desde 2002 (MATHEUS, 2003, p.42-50). Vale destacar que,
pelo menos, o assentamento D. Tomás Balduíno e o acampamento Irmã Alberta são
formados predominantemente por ex-moradores de rua. Porém, a orientação do trabalho
dessas regionais é voltada para a população ‘marginalizada’ em geral e não apenas para
moradores de rua.10
A pesquisa: o potencial alternativo
Com base em trabalho de pesquisa (JUSTO, 2005), é possível interpretar os
significados da entrada de ex-moradores de rua para a luta pela terra. Além de ter um
pedaço de terra para morar, plantar, garantir uma alimentação (mandioca, milho, feijão,
verduras, leite, frango, ovos etc., que são encontrados nos lotes), o assentamento
possibilitou aos ex-moradores de rua outras conquistas. São elas: participar de
associações de produção agropecuária; formar ou reencontrar família; poder estar atado a
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redes, distintas daquelas existentes nas ruas (vizinhos, MST, Estado, associação);
manifestar habilidades paralelas ao cultivo da terra e conhecimentos não escolarizados:
pedreiro, pintor, carpinteiro, comerciante etc.; iniciar a formação de associações de
produção e venda de produtos agropecuários.
Posto isso, é possível fazer algumas inferências sobre o MST como alternativa
para a população de rua. Como os moradores de rua entram para a luta pela terra
sozinhos ou apenas com a família nuclear, eles não têm laços de parentesco no
assentamento. O parentesco é um forte elemento na formação dos grupos no
assentamento. Pelo constatado, os grupos são formados pelos seguintes critérios, em
ordem de importância: parentesco, amizade/afinidade, vizinhança.
Para o MST ser uma alternativa para os moradores de rua, estes devem estar
fortalecidos, de modo que entrem para a luta – para a conquista de fração de território –
com poder de formar e acionar redes. Vale lembrar que o termo ‘alternativo’ tem o sentido
da economia solidária. Portanto, não basta tirar as pessoas das ruas, mas sim possibilitar
que elas trabalhem em grupos e em redes geridas sem hierarquia e sem o assalariamento
típico da relação capital–trabalho. Neste sentido, o papel não recai somente sobre o MST,
mas também nos ombros dos apoiadores e demais elos das redes dos assentados.
Possibilitar que os assentamentos, com ex-moradores de rua ou não, se constituam como
núcleos econômicos não-capitalistas é uma tarefa por realizar, e a chamada
territorialização da luta pela terra é condição necessária, mas não suficiente para tal.
Percorreu-se a trilha de como conhecer, controlar e propiciar alternativas aos
moradores de rua. Estes foram colocados como híbridos para mostrar não só um
conhecimento preocupado em classificar e controlar mas também trabalhos que procuram
as possibilidades de emancipação. No Brasil, até a década de 1970 era quase inexistente
a bibliografia sobre moradores de rua e, nos anos 90, houve uma multiplicação dessa
produção. Distinguir o ‘pobre trabalhador’ do ‘miserável incapacitado’ perpassa os
trabalhos de acadêmicos, jornalistas, militantes e políticos. Assim como há um movimento
no sentido de fazer essa distinção e colocar a responsabilidade pelo aumento da
quantidade de moradores de rua na estrutura social, há o andar contrário que busca
homogeneizar o poço dos ‘excluídos’. Pode-se dizer que as condições sócio-econômicas,
como o desemprego, propiciam um aumento de moradores de rua; porém, há múltiplos
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fatores envolvidos nesta questão. Há uma variedade de perfis de sem teto em que alguns
estão dispostos a alternativas, mas outros estão num caminho ‘sem volta’. Portanto, a
diferenciação de perfis serve para mostrar que cada um deve ter uma atenção distinta.
Estamos longe de compreender os dramas humanos, as angústias existenciais
que podem levar à ruptura com os padrões de civilidade para se viver como um farrapo.
Vamos procurar explicações na sociedade e, às vezes, na natureza. No entanto, o
morador de rua nos possibilita pensar as diferentes formas de sociedades e de ‘naturezas’
humanas.
Dados os números da cidade de São Paulo, tanto de pessoas vivendo nas ruas e
em albergues, quanto das possibilidades de alternativas, a ida para o campo ainda é uma
fresta: permite passar, mas é estreita. Além de ser uma fresta, a ida, ou volta, para a terra
ainda não se consolidou como economia solidária no caso do assentamento estudado.
Como destacado por Maria de Fátima Martins (2001) e por Barros (2004), os moradores
de rua dependem das redes sociais. Assim, as redes dos ex-moradores de rua são
fundamentais para os fluxos de comunicação e de recursos entre eles e a sociedade
como um todo.
NOTAS 1 Para uma análise das representações sobre morador de rua, ver Justo (1997). 2 Referência ao trabalho do sociólogo Francisco de Oliveira. 3 A autora parte da conhecida definição de ‘rede’ que Raffestin (1993) empresta de
Serres. Porém, ela acrescenta a perspectiva habermasiana da teoria da ação
comunicativa. 4 Para uma análise das políticas sociais em relação à população de rua a partir da década
de 1990, que problematiza a noção de política envolvida, ver Barros (2004). 5 Gabinete da vereadora A. Sposati – Câmara Municipal de São Paulo. “10 de maio de
1994. 4º Ano de Luta da População de Rua”. Impresso no serviço gráfico da CMSP, p.12. 6 Ver www.minhacasaminharua.com.br. 7 O trabalho de Conceição (2003) chama a atenção para o fato de algumas cooperativas
de catadores de material reciclável recriarem a relação patrão-empregado,
descaracterizando-as como economia solidária. O autor chama a atenção para a
necessidade de mudança na forma de consumo e de geração de resíduos como fatos que
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avançam o debate sobre ambientalismo, ao invés de restringir a discussão à reciclagem. 8 Para exemplificar, o assentamento Nova Canudos, no município de Iaras, era um
acampamento, em 1999, com cerca de 1.200 famílias e, em 2001, restaram pouco mais
de 250 famílias e a área está desapropriada. Sobre o assentamento Nova Canudos, ver:
Iha (2001); Folha de S. Paulo, Sem-terra urbanos completam um ano. São Paulo, 6 fev.
2000, p.A-15, e Jornal do Campus, A Resistência do MST. São Paulo, 10 out. 2000, p.4-5. 9 Sobre a presença de ex-moradores de rua no assentamento D. Tomás, ver Barros
(2004). Há uma dissertação em Geografia recente sobre esse assentamento. 10 Entre julho de 1998 e junho de 1999, o MST Grande São Paulo organizou três
congressos Da Rua para a Terra, com a participação de moradores de rua e de
assentados que vieram das ruas.
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AGRICULTURA E MEIO AMBIENTE EM RIO VERDE (GO) 1
Clarissa de Araújo Barreto1; Helena Ribeiro2
1 Bióloga, Mestre em Ciência Ambiental Procam/USP
[email protected] 2 Geógrafa, Professora Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, Orientadora do Procam/USP
RESUMO A modernização da agropecuária brasileira possibilitou aumento da produção através da
expansão das monoculturas, como a soja. Alta demanda e bons preços no mercado
internacional incentivaram o cultivo dessa oleaginosa, principalmente no Cerrado. Em que
pese seus benefícios econômicos, a sojicultura realizada nestes moldes, com grandes
aportes mecânicos e químicos e concentração fundiária, causa impactos ambientais e
sociais. Desmatamento, poluição de cursos d’água, erosão, compactação de solos,
intoxicação e concentração de terra são alguns desses problemas. Esta pesquisa
objetivou verificar desmatamento, contaminação de cursos d’água por agrotóxico e
intoxicação no município maior produtor de soja de Goiás, Rio Verde. Foram utilizados
mapas de uso do solo de Rio Verde, dos anos 1975, 1989 e 2005, autos de infração
emitidos por órgãos de fiscalização ambiental, resultados de análises de resíduos de
agrotóxicos na água destinada ao abastecimento público e casos de intoxicação por
agrotóxico. A presença e gravidade do desmatamento, que ocorreu entre 1975 e 2005,
puderam ser detectadas pelos dados analisados. Já os dados sobre intoxicação, por
possivelmente serem subnotificados, revelaram um problema de saúde pública. Concluiu-
se a necessidade de ações pelo poder público de fiscalização ambiental em Rio Verde, de
medidas que melhorem a notificação de casos de intoxicação, e da promoção de
incentivos àqueles agricultores que respeitam as leis ambientais.
Palavras-chave: soja; meio ambiente; problema ambiental; Cerrado; Rio Verde (Goiás).
1
Agricultura e Meio Ambiente em Rio Verde (GO)
Clarissa de Araújo Barreto; Helena Ribeiro INTERFACEHS
MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA BRASILEIRA
Ocorrido nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América, no
início do século XX, o processo de modernização da agricultura aconteceu no Brasil entre
1965 e 1980. Tal processo se caracterizou pela integração técnica da indústria com a
agricultura, e ocasionou uma série de mudanças na base técnica da produção
agropecuária, pois exigiam o incremento da produtividade da terra e do trabalho para sua
sustentação. A modernização da agricultura não foi resultado de uma política voltada para
o desenvolvimento agrícola em si mesmo, mas sim uma conformação da agricultura às
necessidades de acumulação de capital comandada pelo setor urbano- industrial (MEYER
& BRAGA, 2000).
Durante esse processo houve mudanças em dois sentidos. Primeiramente, houve
significativa alteração no padrão técnico do setor rural, através de aumento nos
indicadores técnicos de modernização agropecuária, tais como insumos industriais
(sementes melhoradas, fertilizantes, defensivos, corretivos do solo etc.) e máquinas
industriais (tratores, colheitadeiras, implementos, e outros). E, em segundo lugar, houve a
integração entre a produção primária de alimentos e matérias-primas e ramos industriais.
Nessa integração entre a agricultura e a indústria houve a subordinação da primeira em
relação à segunda, ocasionando a “industrialização da agricultura”. Em uma síntese
retrospectiva Silva (1981, p.62) observa que:
Antes as fazendas produziam quase tudo o que era necessário à atividade
produtiva: os adubos, os animais e até mesmo alguns instrumentos de
trabalho, bem como a própria alimentação dos seus trabalhadores. Agora
[a partir da modernização] não: os adubos são produzidos pela indústria de
adubos, parte dos animais de trabalho foram substituídos pelas máquinas
produzidas pela indústria de máquinas e equipamentos agrícolas, e os
alimentos dos trabalhadores são comprados nas cidades. Isso significa que
a própria agricultura se especializou, cedendo atividades para novos ramos
não-agrícolas que foram sendo criados. Em outras palavras, a própria
agricultura se industrializou, seja como compradora de produtos industriais
(principalmente insumos e meios de produção), seja como produtora de
matérias-primas para as atividades industriais.
2©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.3, n.1, Artigo 5, jan./ abril. 2008
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Agricultura e Meio Ambiente em Rio Verde (GO)
Clarissa de Araújo Barreto; Helena Ribeiro INTERFACEHS
Portanto, paralelamente à industrialização da produção rural, houve a
industrialização do produto agrícola final, a qual Goodman et al. (1990) nomearam de
substitucionismo. De acordo com eles, nesse processo, “a atividade industrial não apenas
representa uma proporção crescente do valor agregado, mas o produto agrícola, depois
de ser primeiramente reduzido a um insumo industrial, sofre cada vez mais a substituição
por componentes não-agrícolas” (GOODMAN et al., 1990, p.2). Esse processo de
industrialização tanto ocorre a partir de matérias-primas alimentícias, como a partir de
matérias-primas não-alimentícias, no exemplo da indústria têxtil.
IMPACTOS AMBIENTAIS DA MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA BRASILEIRA
O processo de modernização da agricultura foi responsável pelo agravamento dos
impactos ambientais e dos problemas sociais. Spadotto e Gomes (2004) classificam
esses impactos como intrínsecos, caso os efeitos da atividade agrícola recaiam sobre ela
mesma, ou extrínsecos, caso seus efeitos se expandam além de seus limites, em escala
local, regional e/ou global. Adotando essa classificação, pode-se dizer que os impactos
relatados a seguir, devido ao emprego de técnicas mecanizadas e ao uso de agrotóxicos,
são extrínsecos, pois eles se estendem para lugares além daquele onde é praticada a
atividade agrícola.
O emprego de técnicas mecanizadas (aração e gradeação) propícias aos solos
congelados, na medida em que os tornam agricultáveis, foi responsável pelo agravamento
dos processos erosivos que já se processavam nas lavouras brasileiras. O intenso
revolvimento expõe o solo a altas temperaturas que destroem a vida microbiana e a
matéria orgânica nele presentes, além de facilitar a ação de elementos erosivos, como as
chuvas – freqüentes nos países tropicais. Portanto, a adoção de um pacote tecnológico
importado, apropriado para o clima temperado dos países norte-americanos e europeus,
em um país tropical como o Brasil, constituiu um erro. A respeito dessa adoção Graziano
Neto (1986, p.91) considera:
absurdo pensar que as práticas agrícolas podem ser
universalizadas, como se houvesse homogeneidade entre os ecossistemas
terrestres. As diferenças de solos, radiação solar, regime de chuvas,
temperatura, na diversidade de espécies e outras, levam a que certas
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técnicas, como a adubação química, o controle químico de pragas, o
manejo do solo, por exemplo, apresentem resultados duvidosos e
insatisfatórios nas condições de nossa agricultura tropical.
Em alguns casos, o processo erosivo gerado pelas técnicas mecanizadas ocorre
de forma imperceptível, sendo detectado através da cor das águas dos rios (maior
turbidez), dos vestígios em torno das plantas e do assoreamento das partes baixas do
terreno. A ocorrência desse tipo de erosão foi citada por Romeiro e Abrantes (1981) nos
estados do Paraná e Rio Grande do Sul, grandes produtores de grãos.
Além do aspecto negativo da mecanização, a utilização de agrotóxicos (fungicidas,
inseticidas, herbicidas e outros) também constitui grave impacto ao meio ambiente. O
surgimento do inseticida organoclorado diclorodifeniltricloroetano (DDT), na década de
1940, e o posterior desenvolvimento da indústria de agrotóxicos, resultante das inovações
tecnológicas do pós-guerra, levaram a mudanças no controle fitossanitário. Dessa forma,
Spadotto e Gomes (2004, p.112) afirmam que os agrotóxicos por um lado, cumprem o
papel de proteger as culturas agrícolas das pragas, doenças e plantas invasoras, mas,
por outro, podem ser prejudiciais à saúde humana (por exemplo, com a intoxicação de
trabalhadores rurais) e ao ambiente. O uso freqüente de agrotóxicos oferece ainda riscos
como a contaminação dos solos agrícolas, das águas superficiais e subterrâneas e dos
alimentos. Muito se alertou sobre esses riscos. Um dos primeiros e mais difundidos
alertas ocorreu com a publicação do livro Primavera silenciosa da bióloga Rachel Carson,
que trata dos problemas causados pelo uso excessivo de agrotóxicos sintéticos
(CARSON, 1962).
No Brasil, em 1976, o livro de José Lutzenberger, Manifesto ecológico brasileiro:
fim do futuro? critica as atividades agropecuárias tidas como modernas, afirmando que
essas não constituem a única forma para se alimentar crescente população, e
defendendo uma agricultura mais biológica (LUTZENBERGER, 1976).
Pragas, praguicidas e a crise ambiental: problemas e soluções, de 1979, do
pesquisador Adilson Paschoal, também criticou a agricultura moderna ao tratar dos usos e
impactos dos agrotóxicos no país. Em relação ao cultivo de soja, ele afirmou que “a febre
da soja tem sido responsável por aplicações maciças de biocidas, que ameaçam a
existência de
muitas espécies de vertebrados da nossa fauna” (PASCHOAL, 1979, p.3). E relata
dois acontecimentos envolvendo o uso de agrotóxicos no cultivo de soja: a morte de
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centenas de bois no norte e no oeste do Paraná, em julho de 1976; e a morte por
intoxicação com inseticidas de cinco agricultores e o envenenamento de outros que
trabalhavam em campos de soja, em fevereiro de 1977, no Rio Grande do Sul.
Ademais, agrotóxicos e fertilizantes químicos repercutem negativamente sobre o
desempenho da produtividade agrícola, na medida em que geram um círculo de
degradação. O círculo inicia-se com a esterilização provocada pelos defensivos –
eliminação de flora e fauna de microrganismos e vermes fundamentais à manutenção da
fertilidade natural do solo – que juntamente com os processos erosivos levam à maior
demanda de aplicação de fertilizantes químicos que normalmente são compostos por
apenas três macronutrientes básicos: nitrogênio, fósforo e potássio. A deficiência em
micronutrientes, ocasionada pela perda de atividade biológica no solo, gera uma perda de
qualidade alimentícia das plantas que as tornam suscetíveis às pragas. Tal suscetibilidade
demanda doses cada vez maiores e/ou diversificadas de defensivos, fechando assim o
ciclo (ROMEIRO & ABRANTES, 1981).
De acordo com esses autores, o consumo de fertilizantes no Brasil, entre 1960 e
1977, cresceu 513%, porém a produtividade das sete culturas tidas como as mais
modernas e responsáveis por 75% do consumo de fertilizantes no período (algodão,
arroz, cana-de-açúcar, café, milho, soja e trigo) não acompanhou tal incremento. Isso se
deu no Brasil como um todo, quanto nos estados maiores consumidores de fertilizantes
no período (São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul). Em relação à soja, verificou-se que
o crescimento de sua produtividade foi o 3º maior no país, alcançando em 1977 um nível
médio 29,16% maior do que em 1960. Nos três estados consumidores de mais de 70% do
total de fertilizantes consumidos no país, a sua produtividade atingiu, em 1977, um nível
54,36% superior ao de 1960, ficando apenas atrás da cultura do trigo. Entretanto, esses
números são incipientes diante do consumo crescente de fertilizantes, o principal fator
responsável pelo incremento de produtividade em solos de baixa produtividade.
Diante desse quadro, fica claro que o modelo de modernização conservadora
adotado no Brasil, baseado no uso intensivo de tecnologias químicas, mecânicas e
biológicas e na priorização dos grandes estabelecimentos geradores de forte
concentração fundiária, não condiz com uma agricultura sustentável e uma estrutura
agrária justa.
Este estudo, desenvolvido no município de Rio Verde, em Goiás, um dos principais
produtores de soja no país, é um exemplo deste processo e de seus impactos ambientais.
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RIO VERDE E A SOJICULTURA
O aparecimento da soja em Rio Verde no final da década de 1960 é atribuído ao
pioneirismo de alguns produtores e ao trabalho de técnicos da extinta Associação de
Crédito e da Assistência Rural de Goiás (Acar-GO). O grande impulso para o crescimento
desse e de outros cultivos ligados à exportação e à agroindústria no município e em toda
a microrregião Sudoeste de Goiás se deu com a implantação do Programa de
Desenvolvimento dos Cerrados
(Polocentro), o principal programa governamental de ação regional do II Plano
Nacional de Desenvolvimento. O programa se desenvolveu entre 1975 e 1979 e
objetivava promover a abertura de áreas do Cerrado para estabelecer atividades
agropecuárias
Além dos incentivos do Polocentro, outras políticas contribuíram para incremento
da produção agrícola e instalação de agroindústrias no município: crédito rural subsidiado
do Sistema Nacional de Crédito Rural para promover a modernização da agricultura
brasileira via adoção do padrão tecnológico estabelecido pela Revolução Verde, redução
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) dentro do
Fundo de Participação e Fomento à Industrialização do Estado de Goiás (Fomentar), o
programa estadual Produzir, e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste
(FCO), política federal de isenção fiscal. Ao lado dessas políticas e programas, a boa
disponibilidade de grãos (principalmente soja e milho) e a infra-estrutura rodoviária
auxiliaram na escolha das agroindústrias, já que o município localiza-se em um
entroncamento rodoviário constituído pelas rodovias BR 060 (liga Goiânia a Cuiabá), BR
452 (liga Rio Verde à BR 153), GO 174 (liga Rio Verde ao Mato Grosso Goiano) e a BR
364 (tem São Paulo como destino) (LUNAS & ORTEGA, 2003; PEREIRA & ALMEIDA
FILHO, 2003).
O cultivo de soja em Rio Verde pode ser observado na Tabela 1. Percebe-se que
os aumentos de produção ocorreram apoiados em seguidos incrementos de área colhida.
Além da soja, oito culturas temporárias são cultivadas em Rio Verde (Tabela 2). O milho e
o feijão são cultivados em mais de um período, portanto, suas produções resultam de
duas safras, no caso do milho e três no caso do feijão. Nenhuma cultura é irrigada, exceto
o trigo, que é cultivado com e sem irrigação.
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RESULTADOS E DISCUSSÃO
Desmatamento O desmatamento foi verificado no município através de duas formas. Primeiro, através de
mapas de uso do solo de Rio Verde de 1975, 1989 e 2005, que possibilitaram a
quantificação de cada uso do solo do município, e posteriormente através de infrações por
desmatamento ilegal2 que foram levantadas junto aos órgãos ambientais responsáveis
pela fiscalização no município.
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Em 1975, havia uma grande área desmatada sem utilização pela agropecuária,
ocupando 35% da área total do município, denominada Cerrado aberto. As áreas de
Cerrado classificadas como Cerrado denso / Mata de galeria perfaziam o segundo maior
uso do solo do município, contabilizando 29% da área total. A Mata ciliar se destacava em
terceiro lugar, ocupando 14% da área. Enquanto as atividades agropecuárias tomavam
conta de 12% da área do município, e a área urbana, isto é, a sede do município, ocupava
cerca de 0,04%.
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Entre 1975 e 1989, grandes alterações se processaram nos usos do solo de Rio
Verde. A área ocupada pela categoria Cerrado aberto apresentou um recuo de cerca de
95%, apresentando um déficit de 2.800,64 km2 em relação a 1975. As categorias Cerrado
denso / Mata de galeria e Mata ciliar também sofreram reduções nas suas áreas: 45,2 e
24,5% respectivamente. Isso equivale a 1.119,3 e 290,8 km2 a menos em relação a 1975
nas duas categorias respectivamente. Por outro lado, as categorias Pastagem e
Agricultura sofreram os maiores acréscimos de área durante esses 14 anos: 345,47 e
871,84%, respectivamente. O que equivale a dizer que 2.921,5 e 1.534,6 km2 a mais
foram incorporados a essas categorias, respectivamente. Além disso, em 1989, Pastagem
e Agricultura predominavam, correspondendo respectivamente a 45 e 20% da área do
município.
Tudo indica que os incrementos de área na agropecuária, durante esses 14 anos,
ocorreram sobre as reduções de áreas que já estavam desmatadas e também sobre
aquelas onde havia vegetação. Isto é, houve desmatamento no município para que a
pecuária e a agricultura crescessem. Ademais, a área urbana apresentou o terceiro maior
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incremento entre as categorias, em 1989 estava 194% maior do que em 1975, e o mapa
de 1989 mostra dois novos usos do solo: Reflorestamento e Pivô. Provavelmente, as
áreas de reflorestamento se destinam ao fornecimento de madeira às indústrias, enquanto
a presença de pivôs revela a ocorrência de agricultura irrigada.
Entre 1989 e 2005, a área desmatada, isto é, o Cerrado aberto, continuou em
declínio perdendo no período 85,52 km2, assim como o Cerrado denso / Mata de galeria
que teve 105,9 km2 subtraídos nesse período. Entretanto, a maior redução de área
ocorreu na Mata ciliar, que perdeu 598,09 km2 durante esses 16 anos. Em termos de
acréscimo de área, as atividades agropecuárias tiveram expansão bem menor do que a
registrada entre 1975 e 1989. Agricultura incorporou apenas 19% a mais de área, isto é,
330 km2, enquanto as áreas de Pastagem sofreram um decréscimo de 2,9%, perdendo
108 km2. Por outro lado, as categorias Área urbana, Pivô e Reflorestamento obtiveram os
maiores acréscimos de área: 157, 132 e 86% respectivamente. Apesar do baixo
crescimento em área da Agricultura e da redução de área da Pastagem, essas duas
categorias predominaram em 2005, constituindo 24 e 44% da área do município,
respectivamente.
Ao examinar os usos do solo de Rio Verde, durante esses 30 anos, isto é, de 1975
a 2005, algumas conclusões podem ser tiradas:
1) Houve drástica redução das categorias de vegetação. Cerrado denso / Mata
de galeria perdeu quase 50% de área, o equivalente a 1.225 km2, enquanto
Mata ciliar foi reduzida em quase 75%, isto é, perdeu 889 km2;
2) As áreas desmatadas, Cerrado aberto, foram incorporadas paulatinamente à
agropecuária. Em 2005 essas áreas estavam reduzidas em 98% da área que
ocupavam em 1975, isso equivale a dizer que 2.886 km2 dessas áreas
deixaram de existir;
3) As áreas de Agricultura, em relação às áreas de Pastagem, sofreram
maiores acréscimos: 1.059,35% ante os 332,62% da Pastagem. No entanto,
as áreas de Pastagem lideraram no ranking dos usos do solo em Rio Verde,
em 2005, ocupando quase 44% da área do município. Agricultura seguiu
logo atrás, ocupando cerca de 24%. Portanto, houve, no período observado,
grande incremento das atividades agropecuárias no município;
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4) Concomitantemente ao crescimento extensivo da agropecuária, houve
ampliação de 655% da Área urbana: de 3,22 km2 ela passou a ocupar 24,31
km2 em 2005.
Em relação às infrações por desmatamento ilegal, limitou-se a busca a anos mais
recentes em relação à época na qual essa pesquisa foi realizada, 2004 e 2005, devido à
maior dificuldade na obtenção de dados mais antigos. Três órgãos ambientais são
responsáveis pela fiscalização e autuação ambientais em Rio Verde: o Ibama, a Agência
Ambiental de Goiás e o Batalhão de Polícia Militar Ambiental (BPMA). Dentre eles,
apenas na Agência Ambiental não foi possível o levantamento dos autos de infração, por
eles se encontrarem dispersos e de difícil localização. Nos outros órgãos, o acesso a
essas informações foi rápido, já que elas se encontravam organizadas em arquivos
informatizados.
A Tabela 5 mostra todas as infrações autuadas pelo Ibama e pelo BPMA nos anos
2004 e 2005. Durante esses anos, os dois órgãos expediram praticamente o mesmo
número de autos de infração: o Ibama expediu 26, e o BPMA, 23. Entre as 49 infrações, a
maioria, 28, se refere a atividades que implicam na retirada de vegetação (em negrito). E
dessas 28 infrações, 10 ocorreram em Área de Preservação Permanente (APP).
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Esses dados mostram que a pouca vegetação nativa que ainda resta em Rio
Verde, como foi mostrado pelo mapa de uso do solo de 2005, está sendo retirada
ilegalmente, comprovando que o desmatamento é realmente um dos principais problemas
ambientais do município. Esse desmatamento está sendo ocasionado pela expansão das
áreas de agricultura e pecuária, como verificado nos mapas de uso do solo do município.
É importante observar que o Ibama possui escritório regional em Rio Verde que
conta com apenas cinco fiscais que, além desse município, ‘fiscalizam’ mais outros 29, e
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que o BPMA possui apenas dois policiais militares no município encarregados de
auxiliarem os fiscais do Ibama. Gomes (2005) afirma que o baixo número de fiscais e
policiais e os parcos recursos financeiros disponibilizados ao escritório regional do Ibama
não permitem que haja uma fiscalização ambiental eficiente no município (informação
verbal).8 Por isso, pode-se concluir que se houvesse mais fiscais e recursos financeiros,
também haveria mais autuações, o que auxiliaria no combate ao desmatamento ilegal em
Rio Verde.
Poluição das águas
A poluição da águas seria causada pelos produtos químicos utilizados no cultivo
de soja: fertilizantes e agrotóxicos. A detecção de resíduos desses produtos em águas
superficiais e subterrâneas é realizada pela empresa estadual de saneamento, a
Saneamento de Goiás S.A. (Saneago), que por dispositivo legal é obrigada a analisar
alguns parâmetros (coliformes totais, substâncias químicas inorgânicas e orgânicas,
agrotóxicos etc.) na água utilizada para abastecimento público. As análises foram
realizadas em água bruta, não tratada. Os resultados das análises realizadas em 2004 e
2005 indicam que a água para abastecimento em Rio Verde esteve dentro dos valores
máximos permitidos em 90,9% dos casos. Por isso, pode-se afirmar que, pelo menos no
período investigado, não houve poluição por resíduos de agrotóxicos na água que
abastece o município.
Como a investigação sobre a poluição das águas ocasionada pela sojicultura foi
bastante restrita, não podemos inferir que as águas superficiais e subterrâneas de Rio
Verde não estavam poluídas por produtos utilizados no seu cultivo. Investigações mais
abrangentes deveriam ser levadas a cabo.
Intoxicação Considerada freqüente, entre os trabalhadores que manuseiam e aplicam
agrotóxicos, em países em desenvolvimento, a intoxicação constitui sério problema de
saúde pública (RUEGG et al., 1987).
No estado de Goiás há um Centro de Informações Toxicológicas (CIT-GO)
localizado na capital Goiânia que, além de prestar informações ao público, relacionadas
aos diversos tipos de intoxicação, recebe as notificações de casos de intoxicação,
inclusive por agrotóxicos de uso agrícola, provenientes de hospitais públicos do estado e
os repassa ao Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox).
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As Tabelas 7 e 8 apresentam casos de intoxicação por agrotóxico de uso agrícola
notificados nos hospitais públicos de Rio Verde e repassados ao CIT-GO, em 2004 e
2005, respectivamente. Todos os casos ocorreram em Rio Verde, exceto um dos casos
de 2004. Casos ocorridos em Rio Verde podem ter sido notificados em municípios
próximos, não investigados.
Dentre os 41 casos notificados em Rio Verde, nos anos 2004 e 2005, 17 foram
causados pelo Furadan, um inseticida e nematicida medianamente tóxico. Esse
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agrotóxico é utilizado em culturas que não predominam no município, tais como: algodão,
amendoim, arroz irrigado, banana, batata, café, cana-de-açúcar, cenoura, fumo, repolho,
tomate e trigo.13 Essa informação, aliada ao fato de que 13 dos 17 casos ocorreram na
zona urbana, permite inferir que o Furadan foi utilizado em cultivos domésticos, e não em
lavouras comerciais.
O segundo agrotóxico que mais causou intoxicações foi o Roundup, 5 casos. Ele é
um herbicida pouco tóxico utilizado em diversos cultivos. Provavelmente, é bastante
utilizado em Rio Verde devido à presença dos cultivos de soja e milho no município e
também devido à necessária utilização de herbicidas no sistema de Plantio Direto. No
entanto, além de terem sido notificados poucos casos, a maioria (3) ocorreu na zona
urbana, e 2 foram tentativas de suicídio.
O formicida foi responsável por 4 casos de intoxicação no período analisado.
Todos os casos ocorreram na zona urbana e 3 deles foram tentativas de suicídio. O
Diazinon, acaricida e inseticida, é utilizado em citros e maçã e foi responsável por 3
tentativas de suicídio que ocorreram na zona urbana. Em relação aos 5 casos nos quais
não houve a identificação do agrotóxico, 4 ocorreram na zona urbana e 2 foram tentativas
de suicídio. Os 7 casos restantes foram causados por 7 agrotóxicos diferentes, sendo que
4 deles ocorreram na zona urbana, 3 foram acidentes de trabalho, 2, tentativas de
suicídio, 1, acidental e o outro ocupacional.
Em relação ao uso de EPI, excetuando-se os casos de tentativa de suicídio (13),
alimentos contaminados (2) e os acidentais (7), os quais não implicam no uso de
equipamento de proteção, em 8 dos 15 casos de acidente de trabalho não se soube
informar a respeito da sua utilização, e em 6 deles o intoxicado não o estava utilizando. A
utilização de EPI nessa circunstância ocorreu em apenas 1 caso. Também não se
informou sobre a utilização de EPI nos 2 casos ocupacionais, ambos ocorridos no meio
rural. Entre os 41 casos de intoxicação, todos evoluíram para a cura, exceto 3 que
evoluíram para óbito e 2 em andamento.
Diante desses casos de intoxicação, chamam atenção: alto número de notificações
de casos na zona urbana, 31, em relação aos ocorridos na zona rural, 10; e a
predominância de casos originados por acidente de trabalho, 15, e por tentativa de
suicídio, 13. Maior número de notificações na zona urbana, possivelmente, se deve ao
fato dos hospitais públicos aí se encontrarem. Infelizmente, não se pôde avaliar
precisamente a utilização de EPI, já que na maioria dos casos nos quais seu uso era
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necessário não se informou sobre sua utilização. Mas, provavelmente, o EPI não estava
sendo utilizado no momento da intoxicação, já que previne possíveis intoxicações.
De acordo com Dávila (2006), muito provavelmente haveria subnotificação. Isso
ocorreria porque no município não havia um especialista em toxicologia, o que, de acordo
com ela, resultaria em um maior número de notificações (informação verbal).14 Para efeito
de comparação, ela citou o município vizinho a Rio Verde, Jataí, que também possuía
grandes áreas destinadas à agropecuária, no qual havia um toxicologista e que sempre
apresentava número bem maior de notificações que Rio Verde.
Em 2004 e 2005 foram notificados nos hospitais públicos de Jataí 83 casos de
intoxicação por agrotóxico de uso agrícola, o dobro do número de notificações de
intoxicações por agrotóxico de uso agrícola realizadas em Rio Verde no mesmo período.
Se levarmos em conta que Rio Verde possui uma população total e rural maior que a de
Jataí (116.552 e 10.473 contra 75.451 e 6.630) pode-se supor que, talvez, o número de
casos de intoxicação por agrotóxico em Rio Verde fosse superior ao de Jataí, ou no
mínimo igual, mas dificilmente inferior. Exceto se houvesse a ampla utilização de EPIs
pelos trabalhadores rurais de Rio Verde.
O indício de subnotificação apontou um problema de saúde pública. Dois
agravantes contribuem para a subnotificação: a baixa procura por médicos por parte das
vítimas de intoxicação; e o fato de os médicos raramente diagnosticarem a intoxicação
por agrotóxico em pacientes enfermos. Ruegg e colaboradores (1987) afirmam que a falta
de equipamentos adequados dificulta a confirmação do diagnóstico e, como podemos
observar nessa pesquisa, a falta de especialistas também.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os mapas de uso do solo de Rio Verde revelaram a contínua retirada de
vegetação, entre 1975 e 2005, acompanhada do crescimento das áreas de pastagem e
agricultura. Em 2005, havia vegetação de Cerrado em apenas 18,5% da área do
município, um número muito reduzido mesmo se as reservas legais de todas as
propriedades se localizassem fora do município. As infrações autuadas por dois órgãos de
fiscalização ambiental constataram que os desmatamentos, nesses casos ilegais, eram
prática corriqueira nos anos investigados.
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Portanto, concluiu-se que desmatamento era um problema ambiental em Rio
Verde. Entretanto, não se pôde estabelecer uma correlação positiva entre desmatamento
e implantação de lavouras de soja. Tal fato pode ter ocorrido, assim como a implantação
de pastagens pode ter ocupado áreas de vegetação nativa, e as lavouras de soja
substituído áreas de pastagem.
O que pôde ser concluído a respeito desse problema ambiental foi o
descumprimento do Código Florestal em relação às áreas de reserva legal e de mata
ciliar, cuja presença é obrigatória. Ao lado do descumprimento, há uma fiscalização
ineficiente, devido à falta de recursos humanos. Como resultado, houve contínua retirada
de vegetação e, portanto, houve perda de biodiversidade no município.
Apesar de a Saneago não ter detectado resíduos de agrotóxicos em quantidades
maiores que o permitido na água destinada ao abastecimento público, estudos a esse
respeito deveriam ser realizados nas águas superficiais e subterrâneas, assim como
também nos solos de Rio Verde. A grande quantidade de agrotóxicos demandada pelas
extensas áreas sob lavouras de soja impõe riscos de contaminação aos solos e aos
corpos hídricos do município.
Em relação à intoxicação de seres humanos, verificou-se que são urgentes
medidas pelo poder público que proporcionem melhor registro dos casos de intoxicação
por agrotóxicos de uso agrícola. Houve indícios de subnotificação dos casos aliada à
ausência de recursos humanos qualificados na rede pública de saúde do município.
NOTAS 1 Trabalho decorrente de dissertação de Mestrado defendida no Procam/USP, em 2007. 2 Em Rio Verde, o desmatamento é legal quando realizado com autorização concedida
pela Agência Ambiental de Goiás ou pela Prefeitura Municipal de Rio Verde. 3 Mata de galeria é a vegetação florestal que acompanha os rios de pequeno porte e
córregos dos planaltos do Brasil Central, formando corredores fechados (galerias) sobre
os cursos de água cujo estrato arbóreo varia entre 20 e 30 metros (RIBEIRO & WALTER,
1998). 4 Mata ciliar é a vegetação florestal que acompanha os rios de médio e grande porte da
região do Cerrado, em que a vegetação arbórea não forma galerias e cuja altura varia
predominantemente de 20 a 25 metros (RIBEIRO & WALTER, 1998).
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Agricultura e Meio Ambiente em Rio Verde (GO)
Clarissa de Araújo Barreto; Helena Ribeiro INTERFACEHS
5 Pivô é um equipamento utilizado em sistemas de irrigação. 6 Solo exposto indica áreas que são comumente utilizadas pela agropecuária, mas que no
momento em que foram registradas pelo satélite não estavam sendo utilizadas. A esse
respeito é interessante comparar o período de colheita da soja, as datas nas quais os
satélites geraram as imagens que resultaram nos mapas de uso do solo de Rio Verde, e a
área correspondente a Solo exposto. A colheita de soja no município geralmente inicia-se
em abril, podendo se estender até maio e junho, dependendo da época do plantio. As
datas nas quais os satélites geraram as imagens que foram utilizadas na confecção dos
mapas foram: 31 maio 75, 15 maio 89 e 6 ago. 05. Na medida que as datas dos registros
em relação aos meses se afastavam, a área ocupada por Solo exposto aumentava, o que
ocorreu, provavelmente, devido ao decréscimo de área com plantação de soja. 7 “st.” corresponde à abreviação de estéreo ou estere, uma medida de volume para lenha,
equivalente a um metro cúbico. 8 Informação fornecida por Gomes no escritório regional do Ibama em Rio Verde, em
2005. 9 Tipos de agrotóxicos. 10 Tipos de agrotóxicos. 11 Tipos de agrotóxicos. 12 Ingrediente ativo. 13 As informações sobre os agrotóxicos foram retiradas do sistema de agrotóxicos
fitossanitários (Agrofit) localizado no sítio do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento. 14 Informação fornecida por Dávila no Centro de Informações Toxicológicas de Goiás, em
2006.
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Artigo recebido em 07.02.08. Aprovado em 27.02.08.
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POR UMA HISTÓRIA DO LIXO Rosana Miziara
Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretora de memória empresarial
da Companhia de Notícias
RESUMO O artigo aborda algumas dimensões da história do lixo na cidade de São Paulo e no
Brasil. A análise se inicia no século XIX, período em que as ameaças causadas pelas
epidemias conferem novos significados ao lixo, enquanto as autoridades municipais e
estaduais criam ‘normas’ para organizar os espaços da cidade, os locais de despejos do
resto e as formas de coleta. Ao mesmo tempo, ganha corpo o debate sobre a utilização
do método incineratório para dar cabo dos dejetos e, por extensão deste, a atividade dos
trapeiros passa a ser considerada nociva para o conjunto da cidade. A análise desse
debate revelou a emergência de algumas intolerâncias novas em relação ao lixo. Essa
abordagem se estende até a década de 1970, época que representa um novo marco para
a história do lixo. Surgem alguns objetos novos, como o saco plástico. Algumas
instituições públicas são criadas, e outras, reformuladas, para dar conta das novas
preocupações com os restos. Evidenciou-se nesse percurso que o lixo foi se tornando
algo rentável, alvo de disputas entre empresas e entre interesses diversos, intensificando
seu processo de fragmentação. Procurou-se perceber como a noção de lixo que temos
hoje foi construída historicamente.
Palavras-chave: lixo; restos; cidade; história; legislação.
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Por uma História do Lixo
Rosana Miziara INTERFACEHS
DEBAIXO DO TAPETE OU O LIXO TORNANDO-SE PERIGOSO
Os oficiais do Senado da Câmara desta cidade de São Paulo que
presente servimos pela ordenação de sua majestade que Deus guarde,
fazemos saber a todos os moradores desta cidade, de qualquer qualidade
ou condição que diante façam botar os ciscos e os lixos de suas casas nas
paragens, declaradas, a saber, nas covas que estão atrás da misericórdia
nova e nas covas que estão de fronte de Santa Tereza e somente o façam
nestas paragens e as pessoas que fora destes lugares botarem os tais lixos
serão condenadas por cada vez em seis mil-réis sem que lhes sirva de
desculpa o ignorarem onde seus servos botam os tais lixos, pois o deverão
examinar e fazer escutar como pelo que o presente quartel ordenamos.1
A partir desse edital – que passa a ser freqüente depois de 1720 – podemos notar
um indício do processo que tentou regulamentar a destinação do lixo na cidade de São
Paulo. Até a primeira grande epidemia que atacou a cidade, entretanto, esse tipo de
regulamento possuía ainda um caráter provisório, e até aquele momento a norma a esse
respeito era reiterada em função de acontecimentos especiais, sendo o local de destino
do lixo próximo ao centro de aglomerados populacionais.
Bruno (1984, p.156) destaca que, no período seiscentista, o poder municipal
decretava a limpeza geral da Vila de São Paulo de Piratininga em função das festas e
procissões:
Em 1623, falava-se, nas atas da Câmara, na proximidade da
procissão de Santa Isabel, Festa del Rei, sendo então convidados os donos
de casas a limpar e carpir testadas. E, em 1625, aproximando-se o dia da
Procissão de Passos, determinava-se que cada morador mandasse o seu
negro com sua enxada carpir o adro da Igreja e a praça desta vila.
E ainda comenta que as Atas de 1635, 1637, 1640 e 1642 reproduziam
determinações do “governo municipal para que os moradores da vila limpassem as ruas
dos cardos e espinhos que havia em abundância, para que se acabasse com a raiz de tão
má erva de que se ia enchendo esta vila”.
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Por uma História do Lixo
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Por meio dessas breves citações da obra de referência de Ernani da Silva Bruno é
possível perceber que a preocupação com a limpeza da cidade concentrava-se no espaço
público e em momentos de festejos. Outra pista que a leitura desse inventário e de
algumas Atas da Câmara sugere é a identificação do conteúdo do que era considerado
sujo ou imundície: em geral, era relacionado a elementos naturais, definidos por
“restolhos de natureza”, “cardos e espinhos”. Em outra passagem da obra aparecem
referências a “ervas, matos e sujeiras de bicho” que enchiam as “ruas piratininganas”.2 Ou
seja, além dos elementos vegetais, excrementos de animais compunham o conceito de
imundícies, que, por sua vez, faziam parte da paisagem da Vila. O que pode atestar o
quanto elementos de um mundo natural estavam habitualmente presentes no meio
urbano.
Ora, naquele momento, pela noção que se tinha de limpeza vinculada ao espaço
público, bastava tirar do campo de visão as sujidades que incomodavam o olhar. Limitada
a ocasiões extraordinárias, a preocupação com a limpeza pública não era ainda um
sistema técnico. No curso ordinário dos dias, esse sistema possuía a forma de uma
atividade realizada por escravos e detentos condenados às galés, geralmente pretos, que
andavam pelas ruas sob vigilância, tilintando suas pesadas correntes (BRUNO, 1984, p.
169). Dias (1994, p. 130) ressalta que “um forte preconceito envolvia o desempenho de
atividades consideradas mais aviltantes: dispor do lixo, carregar águas nas fontes,
lavadeiras ... eram funções geralmente desincumbidas por negras ou mulatas forras”.
Na realidade, a necessidade de limpeza das ruas apoiava-se mais em valores
morais e intenções punitivas do que em um ideário sanitário. Quem realizava esse
trabalho de recolhimento das sujeiras eram os considerados excluídos da sociedade:
negros e mulatas forras e os fora da ordem ‘presos’, estes também vinculados à imagem
de dejeto.
Outro ponto que merece destaque é que os locais designados para a disposição
dos dejetos eram bastante identificados às pessoas, isto é, eram designados como
vizinhos a alguns moradores e estavam dispostos a uma distância de menos de um
quilômetro da vila:
no terreno próximo ao rio Anhangabaú, defronte os fundos das taipas e
muros das casas do Tenente Joaquim Manuel Prudente, no fundo da
pequena casa entre a ponte de Marechal, e a casa de Bento Vieira;
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no terreno que fica além da última casa pertencente ao mosteiro de São
Bento;
no terreno próximo ao rio Tamanduateí, que fica nos fundos da casa do
Tenente Coronel Antônio Maria Quartim;
no buracão do Carmo, no lugar imediato à primeira casinha pertencente a
este conselho...3
Essa proximidade das pessoas com o lixo era, até meados do século XIX,
percebida e vivida como algo, se não natural, pelo menos pouco problemático. Não que
mais tarde isso não viesse a ocorrer, mas seria, pelo menos em discurso, um
procedimento condenável; exceção feita às ocasiões de festas públicas.
Não demoraria muito, contudo, para que, dos eventos festivos, a preocupação com
o lixo fosse agudizada e vinculada ao aparecimento de epidemias. Apesar de os editais a
respeito serem pontuais, pois eram reiterados em função das epidemias, sua emergência
e seu alastramento despertaram suspeitas e acalentaram receios de que, por vezes, iriam
servir como argumento para a produção de normas para a coleta e o depósito de lixo na
cidade. Assim, por exemplo, até então os locais designados para o depósito de lixo eram
denominados becos, buracões, ribanceiras, termos que possuíam uma carga pejorativa:
“Beco do Mosquito”, “Beco da Cachaça”, “Beco do Inferno”, “Beco Sujo” – essas
localidades eram das mais freqüentadas da cidade: “de dia era uma aglomeração de
negros, à tarde, burros de carga, compradores e uma nuvem de meretrizes de baixa
renda” (DICK, 1996, p.271-299). Logo, porém, a nomenclatura desses locais foi mudada,
numa tentativa de apagar os ‘nomes grosseiros’ criados pela população. E, com a
ameaça dos surtos epidêmicos, esses locais de despejo passaram a ser vistos como
causa de insalubridade pelo poder público e pelos higienistas.
Mas, nesse momento, a desconfiança recaía muito mais sobre o ar. Ou seja, os
depósitos de imundícies eram fatores que contribuíam para alterar a qualidade do ar,
focos propagadores de miasmas, causadores de doenças. Assim estavam presentes por
todo e qualquer local onde houvesse lixo; além de estar nos locais públicos, o lixo se fazia
presente nos quintais das casas. Com a emergência das epidemias e a influência do
poder médico, o ar tornou-se suspeito, por isso era necessário purificá-lo. E, como o ar
penetra por toda parte, dos locais públicos às moradias, o lixo passou a ser também
objeto de preocupação da casa, do espaço privado.
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Em suma, com as epidemias, o lixo tornou-se alvo de preocupações de
autoridades, um perigo para a ordem pública e para a saúde. A população, entretanto,
convivia com ele. Concomitantemente a esse território do perigo que o lixo representa, as
atividades a ele relacionadas passaram a ser classificadas como perigosas. Alguns anos
mais tarde, carroceiros, sucateiros e trabalhadores que viviam do lixo seriam
considerados ameaça à ordem e perseguidos. A partir das epidemias, pode-se perceber
ainda a elaboração ou a articulação de algumas medidas para sanear a cidade. Entre
elas, destaca-se a coleta do lixo, a construção dos cemitérios e o alinhamento das ruas e
das casas. Fazia-se necessário asfaltar as ruas, pois, segundo as autoridades públicas,
as várzeas da cidade precisavam parar de receber detritos. Essas medidas faziam parte
de um debate mais amplo sobre o saneamento da cidade.
Havia um entrelaçamento entre várzea, cemitério e matadouro, até mesmo no que
tange à intolerância em relação ao odor desses locais. Naquele momento, esses espaços
em permanente atividade corroboravam a criação de uma imagem de morte: o lixo
representa a morte vegetal; o matadouro, a morte animal. Corpos mortos precisariam,
portanto, estar fora do centro, longe do campo de visão, porque não têm utilidade e,
assim, incomodam, são causadores de doenças e mau cheiro, transformam-se em
problemas e necessitam ser embalados e colocados em locais apropriados.
Vale ressaltar, ainda, que a pavimentação das ruas está intimamente relacionada
com a preocupação pela retirada das imundícies, pois elas se compunham com o barro,
dificultando ou impedindo o bom trânsito da cidade. E esse é um fator importante, pois,
como se verá adiante, as empresas de asfalto incorporarão no rol de suas atividades o
recolhimento e o tratamento do lixo.
Essa ampliação e transformação dos significados do lixo pode ser notada no
Código de Posturas, que foi editado em 1875 e ampliado em 1886, no qual a preocupação
central era a demarcação do espaço público e a normatização de sua circulação. É
interessante observar que o artigo VII, intitulado “Da higiene e salubridade pública”, é
bastante expressivo em relação à abrangência da preocupação com a organização dos
lugares da cidade.
Art. 82 – Quando chegar ao conhecimento do fiscal que, dentro de
alguma casa ou quintal, existem objetos em tal estado que possam
prejudicar a saúde pública, pedirá licença para inspecionar, e se
porventura, o fiscal reconhecer a veracidade do fato, intimará o morador ou
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proprietário para, dentro de 24h, removê-los. Caso a inspeção seja negada
por má vontade, o fiscal procurará o auxílio da autoridade policial, a fim de
proceder a vistoria. O morador ou proprietário, em cuja casa se verificar a
existência de tais objetos, sofrerá a multa de 5$.
Parágrafo único – Qualquer vizinho que for incomodado pelas
exalações nocivas de tais objetos e imundícies, dará parte ao fiscal
facilitando-lhe os exames necessários para melhor atender à sua
reclamação. ...
Art. 96 – É proibido queimar nas ruas, largos ou pátios da cidade e
povoações, palhas, cestos, barricos, lixo ou quaisquer cousas que possam
corromper a atmosfera.
...
Art. 98 – A Câmara designará os lugares próprios para neles ser
feito o depósito de lixo e terra, afastando o mais possível das proximidades
da cidade...4
Atividades que até então eram realizadas nas ruas começaram a ser consideradas
indesejáveis, e, ao mesmo tempo, as imundícies se tornaram alvo de preocupação, tanto
do espaço público quanto do espaço privado.
Em 1893, a Intendência de Polícia e Higiene, em relatório enviado à Câmara sobre
o trabalho de “uma comissão especial”, composta por cinco membros (engenheiro-chefe
de repartição das obras municipais, engenheiro sanitário e três delegados de higiene),
realizou inspeção nas habitações e cortiços do distrito de Santa Ifigênia. Isso ocorreu por
ocasião das epidemias de febre amarela, a fim de se apresentarem medidas no sentido
de destruir os focos de insalubridade responsáveis pela propagação da febre. Dessa
maneira o documento ressalta: “A seu turno, a Intendência tem procurado secundar esses
esforços, na medida de suas forças e atribuições, mandando os fiscais visitar casa por
casa, fazendo remover todo o lixo acumulado nos quintais”. Tudo em prol da “higiene e
embelezamento da cidade”.5
Em 1893, através do Ato nº 2, de 6 de maio,6 foi feito o primeiro contrato
protocolado, já com uma empresa particular em São Paulo, para os serviços de coleta
domiciliar e de varrição, lavagem de ruas, limpeza de bueiros e bocas-de-lobo,
incineração de lixo e limpeza de mercados; a empresa era a Mirtil Deutsch e Fernando
Dreyfus; o contrato duraria até 1913. Porém, alguns anos antes, em 1869, mediante um
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prazo de dois anos, a Câmara havia firmado contrato com o empreiteiro Antonio Dias
Pacotilha.7 Nota-se, assim, que as autoridades, ao tomarem as primeiras medidas visando
à implantação dos serviços relacionados ao lixo, já o fizeram a partir das empresas
particulares.
Em 1894, foi promulgado o primeiro Código Sanitário do Estado, com mais de
quinhentos artigos sobre procedimentos de higiene e saúde pública. Regulamentava o
espaço privado e o espaço público: ruas, praças, habitações, fábricas, oficinas etc.
Estendia as normas de higiene para outras esferas dos habitantes da cidade de forma
mais rigorosa do que as Posturas Municipais.
Apesar de a preocupação com o saneamento estar presente no Código de
Posturas, tal tema foi tratado mais profundamente pelo governo estadual, como se pode
observar pela criação do Código Sanitário e da Diretoria de Higiene. Nesse Código é
possível compreender que o ‘resto’ traçará efetivamente uma geografia da cidade,
indicando os níveis de urbanização. O Código estabelece como norma básica o
afastamento dos centros urbanos ou populosos de tudo aquilo que pudesse depor contra
os preceitos de civilidade e, conseqüentemente, de higiene. Dessa maneira, lixo, pobres,
mortos, vacas, bois, indústrias poluentes, operários e habitações coletivas fazem parte do
mesmo espaço, daquilo que precisa estar fora do centro da cidade. O Código Sanitário é
a sistematização dos caminhos trilhados pelos médicos a partir da ameaça da febre
amarela. Foi a tentativa mais elaborada, naquele momento, de normatizar os costumes da
população, o que influenciaria de forma mais incisiva as leis e os decretos municipais. Foi
a construção mais lapidada da tendência que vinha se esboçando na cidade, ou seja, a
constituição de espaços específicos para os restos.
Até esse momento, entretanto, é possível afirmar que a população ainda podia
manipular seus restos livremente. O saber e as formas de reaproveitamento ou não dos
restos permaneciam em suas mãos.
O FOGO TUDO PURIFICA 8
Com a emergência das epidemias em meados do século XIX, não bastava apenas
especificar os locais para amontoar os detritos. Daí em diante, fazia-se necessário criar
um método técnico para transformar o lixo, levando em consideração o seu não
desperdício. Destacam-se aqui os incineradores, que, por meio do seu processo de
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queima, produziriam energia para algumas localidades de São Paulo. O método
incineratório tinha por princípio básico o não desperdício de energia. Pois, nessa cidade,
assim como em muitas outras do período industrial, que se aquecia e acelerava seu ritmo,
pretendia-se transformar pessoas e objetos em energia, ou melhor, em elementos
produtivos nos espaços de trabalho, de lazer, nas esferas do público e do privado.9
Colaborador na Revista Sanitária e inspetor sanitário em 1900, o dr. Cavalcanti foi
incumbido pela Diretoria do Serviço Sanitário de estudar o modo como se fazia o serviço
de limpeza pública na cidade e apresentar relatórios desses estudos por ocasião do
término do contrato entre a municipalidade e a empresa Mirtil Deutsch e Fernando
Dreyfus. Iniciou seu relatório salientando que, com o desenvolvimento da capital nos
últimos dez anos, as autoridades encontravam-se embaraçadas para dar soluções ao
serviço de limpeza pública. Classificava o serviço de “lento, insuficiente e perigoso”, assim
merecedor de uma reforma. Aos seus olhos, a cidade era diariamente palco de “um
desagradável espetáculo, devido às carroças que recebiam os detritos das casas,
circulando de madrugada pelas ruas centrais da cidade, lotadas de lixo” (Revista Médica,
15 set. 1900, n.9, p.212). Essa circulação de detritos pela cidade o incomodava. De modo
geral, ela incomodava porque os detritos viviam na condição de nômades; no momento da
circulação e mesmo quando estavam dispostos na calçada tornavam-se propriedade de
ninguém, em territórios sem donos.
De modo específico, o lixo também incomodava, o que se comprova pela maneira
como ele era transportado e tratado. Em 1900, as carroças da limpeza eram “de madeira,
sem nenhuma camada de verniz, ou de qualquer substância que as torne impermeáveis
ou facilmente desinfectáveis”. Esse sanitarista, inconformado com a sujeira da cidade e
com os maus hábitos da população, via no incinerador uma maneira civilizada de colocar
São Paulo na sua devida trajetória: a do progresso. Isso será fruto de um intenso debate
entre o então prefeito de São Paulo, Antônio da Silva Prado, e o dr. Emílio Ribas, ocorrido
entre 1900 e 1905, por ocasião do vencimento do contrato de limpeza pública com a
empresa particular.
A título de apresentar uma proposta ou indicativos de soluções para o lixo, sugere
Emílio Ribas que se faz necessário calcular a produção diária dos dejetos. A partir de
1907, essa tendência seria verificada nos relatórios do prefeito enviados à Câmara:
A quantidade média, geralmente admitida, é de 1 quilo por dia e por
habitante. Entretanto, a observação feita em muitas cidades demonstra que
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em nenhuma dellas essa medida é attingida. Em Paris o cubo total do lixo
em 1894 foi, mais ou menos, um milhão de metros cúbicos ou 589 mil
toneladas, dando ao metro cúbico o peso médio de 530 quilos; o que dá
240 por habitante e por anno menos um terço da quantidade acceita como
média de produção.
... Dando São Paulo uma população de 200.000 mil habitantes,
pode-se calcular a sua produção média de lixo em 10.000 kilos, ou 120
toneladas diárias. (Revista Médica de São Paulo, n.9, 15 set. 1900, p.231)
As pessoas passam a ser conhecidas em parte pela quantidade de lixo que
produzem. Essa tendência de tornar o lixo um objeto quantificável já ocorria na Europa.
Na realidade, esse tipo de cálculo revela mais do que a preocupação em quantificá-lo. Ele
indica a possibilidade de tornar o lixo um termômetro da produção e do consumo da
cidade, assim como possibilita perceber a cidade a partir de categorias gráficas. A
quantidade de lixo produzida por uma pessoa é índice revelador de seus hábitos
cotidianos. Ao mesmo tempo, esse tipo de prática começaria a permitir que se calculasse
o preço do lixo.
Outrora, os restos podiam ser vistos, manipulados. Paulatinamente, passam a ser
inseridos na lógica de produção capitalista e, como tal, numa lógica de não desperdício. O
lixo era, aqui, postulado como um problema que requeria uma solução técnica. E, ao
mesmo tempo, o que se podia observar era que estava ocorrendo uma transformação da
cidade, a partir de uma nova sensibilidade em relação aos dejetos.
O primeiro aspecto dessa transformação está na resolução da retirada do lixo dos
quintais, o que foi um marco. Dessa maneira, o lixo passou do universo privado para o
público, envolvendo novos ofícios, objetos, vereadores, médicos e engenheiros sanitários,
assim como a produção de um discurso normatizador. Tirar o lixo do quintal significou
classificar de inútil o que usualmente não o era. O lixo passou a ser o resto daquilo que foi
útil. A partir do resto ocorre a fusão entre universo público e privado. Evidentemente, essa
tendência estava inserida numa economia política de ‘restos’ (imigrantes, negros,
prostitutas, bêbados, loucos, pobres, trapeiros, sucateiros). O próprio Código Sanitário era
o Código da política para combater os restos e, a partir de sua divulgação, constroem-se
os preceitos de higiene da cidade.
Ao mesmo tempo, com a crescente urbanização da cidade, o lixo varrido para
debaixo do tapete se espalha através dos ventos, poeiras, moscas, mosquitos,
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miseráveis, trapeiros e ratos. A tentativa de esquadrinhamento, planejado pelas
autoridades sanitárias e pelo poder municipal, não cessa de ser desestruturada pela
presença dos restos. E eles colocam em xeque a pretensa ambição de modernização
daquelas autoridades.
DA POUBELLE 10 AO SACO PLÁSTICO
Em 1971, as tão populares latas de lixo passariam a estar com seus dias
contados. Nessa data uma experiência foi feita com sacos de polietileno, abrangendo mil
residências, durante trinta dias, nos bairros de Bela Vista e Paraíso; foram utilizados
sacos de 20, 60 e 100 litros. Juntamente com os sacos, foi entregue um questionário, no
qual as pessoas teriam de apontar as vantagens e as desvantagens desse método de
acondicionamento de lixo. O resultado da pesquisa foi este: 76,9% dos entrevistados
acharam que o saco de lixo poupa serviço para a dona-de-casa ou para o
estabelecimento; 85,1% acharam que poupa serviço para o coletor; 93,3% julgaram que
esse método é mais higiênico; 83,8% que é mais prático; 76,8% que é mais estético;
82,9% que evita furtos.11
Como decorrência desse acontecimento, por disposição da Lei nº 7.775, de 1972,
a Prefeitura, julgando um sucesso essa última experiência, tornou obrigatório o uso de
saco plástico para acondicionamento do lixo nos locais de coleta noturna, sendo seu uso
facultativo nos demais.
Não se trata, aqui, de entrar no mérito das vantagens ou desvantagens da
utilização do saco plástico em detrimento das latas. Entretanto, na experiência descrita,
vários aspectos chamam a atenção. Primeiro, a novidade ficaria restrita às zonas onde se
fazia a coleta noturna, ou seja, nas zonas centrais. O dado de que 82,9% avaliaram que
ele evita furtos é revelador, mais uma vez, de que a suposta ação de catadores ainda era
pouco aceita. Era como se o lixo devesse pertencer exclusivamente às empresas
coletoras. E, ainda, a preocupação com a padronização estética era algo que continuava
presente nos discursos normativos. Essa tendência começou a se manifestar de forma
mais contundente com a adoção das latas de lixo, no início do século XX. A diferença é
que o saco plástico parecia tirar os dejetos mais rapidamente do campo de visão. Diante
dele, as latas, que já haviam sido sinal de civilidade, modernidade e higiene, passariam a
ser consideradas sinais de atraso, velhice e falta de higiene.
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É interessante notar como o uso de um objeto descartável, o saco plástico, é
revelador de mudanças nos hábitos de consumo da população, mas também no ofício do
funcionário da limpeza, no trânsito pela cidade, ou mesmo na arquitetura dos interiores. O
saco plástico vai concorrer com o uso dos antigos tubos de queda dos apartamentos,
existentes desde o começo do século XX. Não demorará muito para que esses tubos
sejam proibidos. Os zeladores dos prédios, ou faxineiros, passam a ser obrigados a
recolher os sacos na porta dos próprios apartamentos.
Outra transformação relacionada à utilização dos sacos plásticos é o trabalho do
funcionário da limpeza pública, que sofreu sensível mudança: tornou-se mais veloz. Para
utilizar a expressão de Santos (1996), os lixeiros passam a ser conhecidos como os
“atletas do lixo”. Isso ocorreu pouco a pouco, conjuminando com a entrada em cena do
saco plástico e dos caminhões basculantes. O trabalho de dois homens no recolhimento
das antigas latas de lixo agora passa a ser feito por um, correndo diante da residência,
arremessando os sacos no caminhão triturador, voltando e já recolhendo de outra
residência. O trabalho, nesse sentido, tornou-se controlado, permanentemente, pela
velocidade do próprio caminhão, ou melhor, pela velocidade que o homem imprime à
máquina. O funcionário, por sua vez, inicia uma corrida de oito horas diárias para alcançar
o caminhão.
Outra mudança concomitante ao emprego dos sacos de lixo foi relativa à cor dos
uniformes dos funcionários, sobretudo dos que são contratados pelas empreiteiras. Esses
funcionários passam a usar uniformes coloridos, com o nome da empresa estampado, o
que mostra também que o funcionário deveria ter uma clara identificação, ou seja, não
poderia ser confundido com os catadores, ao mesmo tempo em que ele próprio
funcionava como uma espécie de propaganda ambulante para as empresas que o
contratavam.
POVO DESENVOLVIDO É POVO LIMPO
Em 1971, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), o principal órgão de
comunicação da ditadura militar, abriu licitação para que agências de propaganda
apresentassem uma proposta de campanha educacional sobre limpeza. Assim, em 1972,
foi veiculada uma grande campanha nacional contra o mau hábito de espalhar lixo em
lugares públicos. O (anti) herói dessa campanha era o personagem Sujismundo, criado
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pelo publicitário Ruy Perrotti, diretor da Lynxfilm. O slogan, marca registrada da
campanha, “povo desenvolvido é povo limpo”, ficou a cargo da agência de propaganda
Merco (Porto Alegre).
A campanha do Sujismundo foi veiculada na televisão e nos cinemas, e dividia-se
em quatro situações-lugares diferentes: no escritório, na cidade, na praia e na escola.
No episódio da cidade, Sujismundo se apresenta como um sujeito simpático, que
anda distraidamente jogando lixo na rua. Seu terno evoca desleixo e algumas moscas
sobrevoam sua cabeça. Nessa peça publicitária, ele contracena com o gari Claridalvo,
que vê sua condição ameaçada pelos maus hábitos de Sujismundo. Nesse caminhar
descompromissado, Sujismundo pára e apóia o pé sobre uma lata de lixo para amarrar os
sapatos, mas tropeça nela e acaba dentro do carrinho de Claridalvo, que apresentava o
seguinte slogan: “Conserve a cidade limpa”. A história é contada por uma voz em off,
acompanhando as ações do personagem. Quando Sujismundo entra em cena, o narrador
diz: “Sujismundo é um desses sujeitos que não se preocupam com a limpeza”. Conforme
o personagem joga restos no chão, entra a voz do narrador: “E não respeita o trabalho
dos outros. O gari já o conhece e sabe que, por causa dele, vai trabalhar muito mais.
Sujismundo não respeita o bem comum”. Quando o personagem tropeça e cai na lata de
lixo, o narrador termina com a célebre frase, marca registrada da campanha: “Será que
agora ele vai aprender? Povo desenvolvido é povo limpo”.
Essas campanhas veiculavam o preceito de que as pessoas tinham de ter bons
hábitos, ser limpas ou, melhor, precisavam ser civilizadas para ser desenvolvidas. E
esses hábitos do povo é que tornariam o espaço (nação) limpo. A ordem urbana é aqui
veiculada como resultante da ordem individual, adquirida graças ao próprio esforço.
A cidade, representada pelo simpático personagem Sujismundo, é construída
pelos hábitos de um povo, e esses hábitos serviriam de termômetro para medir o grau de
desenvolvimento desse povo, da cidade e da nação. No início do século XX, as medidas
técnicas tomadas para destinar o lixo eram representativas do grau de civilidade da
cidade. Agora, fazia-se necessário que os habitantes colaborassem para que a cidade
fosse não só civilizada, mas também desenvolvida. Nesse sentido, a década de 1970 é
um marco para a história do lixo no Brasil.
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NÃO DESPERDICE O QUE DÁ LUCRO: DO PÚBLICO AO URBANO
Até 1966, o serviço de limpeza pública era realizado por administração direta,
através da Secretaria Municipal de Higiene – divisão de Limpeza Pública. Mudança
significativa nessa divisão ocorreu em 1976, quando passou a chamar-se Departamento
de Limpeza Urbana (Limpurb).12 O lixo já não era mais somente uma questão de ordem
pública, mas podia se abrir aos interesses públicos e privados do espaço urbano, um
assunto que dizia respeito a várias instituições da cidade, e não apenas à municipalidade.
Ocorreu, assim, a intensificação da dominação do setor privado sobre o público e, com
isso, os restos espraiaram-se cada vez mais pela cidade, apesar de serem o mote para tal
entrelaçamento e sobreposição de poderes.
Concomitantemente à criação da Secretaria de Serviços Municipais, foram criadas
as Administrações Municipais, que passaram a fiscalizar os serviços de coleta. Nesse
mesmo período também foram aposentados os últimos 27 animais, sendo assim
implantada a coleta domiciliar motorizada como único meio oficial para realizar essa
tarefa. Na cidade moderna dos automóveis, os animais de tração circularam até o fim da
década de 1960 para realizar o trabalho da coleta.
A estruturação do serviço de limpeza pública na cidade, que ocorreu mais
especificamente com a criação do serviço sanitário, tinha um caráter mais geral,
compunha um pedaço do mosaico das preocupações da época. Já a partir da década de
1960, essa nova organização demonstra, primeiro, a incorporação do próprio termo
‘técnico’ nas suas 24 divisões, conferindo aos dejetos um caráter eminentemente técnico
(seção técnica de coleta e transporte de lixo, seção técnica de varrição, divisão técnica de
compostagem etc.). Segundo, apesar de o lixo ser objeto de preocupação de várias
instituições públicas, ele acaba ganhando um departamento específico, com seções
específicas para cada tipo de tratamento. E, sobretudo, passa da Secretaria de Higiene
para a Secretaria de Obras.
Ao mesmo tempo, apesar de continuar a ser associado a um problema de saúde,
o lixo se tornou, de forma mais acentuada, objeto de disputa pelos engenheiros, pois
ganhou força a sua faceta de objeto de obra, construção, engenharia, assumindo um
caráter especializado e técnico.
Em 1978, o relatório de atividades do Departamento de Limpeza Urbana veiculava
uma história em quadrinhos, na qual dona Margarida, inquirida pelo personagem Cascão
sobre se a limpeza pública era cara, responde: “é um trabalho que só dá despesas,
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mesmo quando o lixo é reaproveitado. Isso só serve para diminuir os gastos que a
prefeitura tem para conservar a cidade limpa”.13
A empresa Usimeca, ao fazer propaganda de seu “coletor-compactador Gar-
Wood”, também ressaltava: “Você pode não estar perdendo dinheiro, mas certamente
está há muito tempo deixando de ganhar, na coleta de lixo. Já é hora de você lucrar,
coloque na sua empresa um Gar-Wood/Usimeca. É rápido, potente, funcional, compacto e
econômico”.14
Os dois enunciados destacados falam do mesmo assunto: coleta de lixo na cidade.
Se, para a prefeitura, essa atividade era onerosa, uma vez que se tratava de um serviço
considerado obrigatório, para a empresa privada ela era lucrativa. Essa diferenciação
entre o que seria lucrativo e não-lucrativo tanto para um como para o outro serviria de
justificativa básica para que as empresas privadas ganhassem uma espécie de selo de
qualidade e eficiência para manter a ordem na cidade.
POR UMA HISTÓRIA DO LIXO
A partir de recortes de maneiras antigas e novas de tratar o lixo, podemos
confrontar a densidade de interesses políticos e sociais constituintes daquilo que médicos,
autoridades públicas, publicitários e empresários definiram, cada um a seu modo, como o
limite da cultura e seu resto.
Como foi possível ao lixo conquistar um espaço cada vez mais importante na
sociedade, transformar-se em riqueza industrial, em objeto de disputa entre grandes
empresas e em assunto fundamental para congressos nacionais e internacionais ligados
ao meio ambiente? Como jogar fora tornou-se um hábito tão comum quanto cozinhar e
escovar os dentes?
O arremesso da lata vazia de óleo (hoje é de plástico) na lixeira, de forma
automática, que não requer um segundo de raciocínio e nem meio de arrependimento,
representa uma atitude recheada de conteúdos! Esse ato, aparentemente insignificante,
resulta da introjeção de costumes que vêm sendo construídos ao longo da história.
Perseguir os rastros dos restos é colar fragmentos reveladores de uma história
(des)contínua em que as fronteiras entre o público e o privado se interpenetram. Em
diversos momentos houve a criação de aparatos, tecnologias e saberes que emergiram
ao sabor das transformações históricas da sensibilidade humana em relação aos dejetos.
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Estudar o lixo parece algo inverossímil no campo da história. Entretanto, percebi
que analisar as trajetórias do lixo implica, sobretudo, construí-lo historicamente, tornando-
o visível onde, à primeira vista, ele não se faz presente. Aqui, apresentei somente alguns
aspectos.
NOTAS 1 Edital de 15 out. 1722, citado em Rocha (1992). 2 Várias passagens dessa obra, bem como as Atas da Câmara, apontam os excrementos como sujeira. Para uma análise dos significados culturais da identificação das sujeiras, ver Latouche (in Traverses, n.11, 1978, p.95-97), “A psicanálise das lixeiras”, em que o autor sublinha que “o laço entre o dejeto e o excremento é bastante evidente”; ambos são fonte de aborrecimentos. Para o autor, esse laço acaba fazendo que todo dejeto seja representado na forma de excremento. Aí reside o fato de que a “repulsa em relação aos dejetos não é mais natural que a repulsa em relação aos excrementos”. A partir dessa imagem, não é mais possível manter uma atitude serena em relação aos restos. Entretanto, “nem todos os dejetos são repugnantes”. Um caso bem elucidativo são as embalagens: no limite poder-se-ia vender excremento desde que ele estivesse bem embalado! 3 Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, 1821, v.16. 4 Código de Posturas do Município de São Paulo, 1886. 5 “Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Districto de Santa Ephigênia”, enviado à Câmara Municipal de São Paulo, 1893, p.43-44. 6 “Breve histórico da limpeza urbana no município de São Paulo”. PMSP, Secretaria de Serviços e Obras, Departamento de Limpeza Urbana (documento interno). 7 Revista Limpeza Pública, n.8, 1977, p.10. “Por razões que não pode precisar, o contrato ficou sem número”, porém pode ser encontrado no Livro de Registros (ref. E-7-6), no Arquivo Municipal. 8 Citação do dr. Cavalcanti em artigo escrito em defesa da instalação de incinerador de lixo na cidade de São Paulo (Revista Médica, 1900). 9 Processo similar ocorreu em outras cidades industriais do século XIX. Sobre Paris, ver Vigarello (1996). E, sobre o Brasil, ver Sant’Anna (1996). 10 A obrigatoriedade da utilização da lata de lixo na cidade de São Paulo foi decretada em 1914. Essa norma foi inspirada na determinação de 1884, do prefeito de Seine, Eugène Poubelle, que fixou a utilização e a dimensão das poubelles, nome pelo qual passaram a ser chamadas as latas de lixo. 11 Resíduos sólidos e limpeza pública. São Paulo, Cetesb/Faculdade de Saúde Pública da USP, 1973, p.5-12. 12 “Histórico da Limpeza Urbana no Município de São Paulo”, documento elaborado pela Divisão Técnica de Estudos e Pesquisa da Limpurb, v.1, p.9. 13 “Relatório de Atividades”, Secretaria de Serviços e Obras, PMSP, 1978. Ver, no item “Departamento de Limpeza Urbana”, história em quadrinhos protagonizada pelos personagens criados por Maurício de Souza: Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão. 14 Propaganda da Usina Mecânica Carioca S.A., que mostrou um coletor-compactador para fazer a coleta de lixo. A frase chamariz do cartaz é: “não desperdice o que dá lucro” (Revista Limpeza Pública, n.2, jun. 1975).
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Artigo recebido em 23.01.08. Aprovado em 26.02.08.
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ASPECTOS TÉCNICOS E AMBIENTAIS RELATIVOS AO USO DE BIODIESEL EM MOTORES DE COMBUSTÃO
Mauro Alves dos Santos 1; Patricia Helena Lara dos Santos Matai 2
1 Escola Senai “Conde José Vicente de Azevedo” 2 Escola Politécnica da USP e Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia da USP
RESUMO O biodiesel destaca-se entre as fontes renováveis de energia apontadas como solução
para aumentar a segurança no suprimento de energia e minimizar alguns problemas
ambientais decorrentes do uso de combustíveis derivados do petróleo. O uso do biodiesel
em motores produz alguns benefícios ambientais, tais como a redução da emissão de
material particulado (MP), hidrocarbonetos (HC) e monóxido de carbono (CO), além da
redução da emissão do dióxido de carbono (CO2), importante gás que contribui para o
agravamento do efeito estufa. Entretanto, dependendo do tipo de biodiesel e do tipo de
motor, pode ocorrer um aumento na emissão de óxidos de nitrogênio (NOx), redução na
potência do motor e aumento no consumo de combustível. Existem diversas tecnologias
já aplicadas comercialmente, e algumas em fase de desenvolvimento podem compensar
alguns desses efeitos negativos do uso do biodiesel. Este trabalho tem por objetivo
apresentar e discutir aspectos técnicos e ambientais relacionados ao seu uso em motores
de combustão.
Palavras-chave: biodiesel; emissões; fontes renováveis de energia; motor de combustão.
1
Aspectos Técnicos e Ambientais Relativos ao Uso de Biodiesel em Motores de Combustão
Mauro Alves dos Santos; Patrícia Helena Lara dos Santos Matai INTERFACEHS
As fontes renováveis de energia têm sido a solução escolhida por diversos países,
tanto para minimizar os problemas ambientais como para aumentar a segurança no
suprimento de energia, uma vez que elas podem, em muitos casos, substituir as fontes
convencionais de origem fóssil. Goldemberg e Villanueva (2003) destacam o uso de
combustíveis alternativos entre as soluções técnicas para reduzir a emissão de poluentes
no setor de transporte. Em 2003, o Parlamento Europeu estabeleceu as diretrizes para a
promoção e uso dos combustíveis renováveis no setor de transporte. Essa medida faz
parte do conjunto de ações que visam ao cumprimento das metas estabelecidas no
Protocolo de Quioto, além de contribuir para a garantia de suprimento de energia no
médio e longo prazo (EUROPEAN UNION, 2003). Os benefícios ambientais e as
perspectivas de ganhos sociais associadas à contribuição para a redução da importação
do óleo diesel têm sido os principais argumentos utilizados para sustentar a idéia da
difusão do uso do biodiesel. Em dezembro de 2004 o governo federal definiu o marco
regulatório para a produção e distribuição do biodiesel no Brasil, publicando os atos legais
que definem o percentual de mistura do biodiesel ao óleo diesel, as especificações, o
regime tributário com diferenciação por região de plantio, por oleaginosa e por categoria
de produção (agronegócio e agricultura familiar), criando ainda o selo Combustível Social
e a figura do produtor de biodiesel, além de estruturar a cadeia de comercialização. A Lei
nº 11.097/05 determina a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira e fixa o
valor em 5% em volume/volume (v/v), para o percentual mínimo obrigatório de adição de
biodiesel ao óleo diesel comercializado ao consumidor final. Define também que o prazo
para a aplicação do volume mínimo aqui mencionado é de oito anos após a publicação da
lei em referência, sendo de três anos o período, após a mesma publicação, para que o
biodiesel passe a ser utilizado em um percentual mínimo obrigatório de 2% (v/v). Contudo,
o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) está autorizado a estabelecer prazos
menores que os referidos visando ao atendimento dos percentuais mínimos obrigatórios
de adição de biodiesel ao óleo diesel considerando a disponibilidade de oferta de matéria-
prima e a capacidade industrial para produção de biodiesel, a participação da agricultura
familiar na oferta de matérias-primas, a redução das desigualdades regionais, o
desempenho dos motores com a utilização do combustível e as políticas industriais e de
inovação tecnológica.
As definições dos termos ‘biocombustível’ e ‘biodiesel’ foram incluídas na Lei nº
9.478, de 6 de agosto de 1997, que dispõe sobre a política energética nacional, bem
como foi alterada a denominação da Agência Nacional do Petróleo para Agência Nacional
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Aspectos Técnicos e Ambientais Relativos ao Uso de Biodiesel em Motores de Combustão
Mauro Alves dos Santos; Patrícia Helena Lara dos Santos Matai INTERFACEHS
do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e a sua finalidade, que passa a
abranger a regulação, a contratação e a fiscalização de atividades integrantes da indústria
do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis. Foram também estabelecidas as
penalidades aos agentes do setor no caso de descumprimento das determinações legais
para exercer as atividades integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos
biocombustíveis.
Apesar do importante avanço decorrente da definição do marco regulatório,
existem ainda muitas questões relacionadas à produção e ao uso do biodiesel que
precisam ser debatidas, sobretudo no caso do Brasil, cujas dimensões territoriais
implicam diferentes condições de cultivo de matérias-primas por motivos sócio-
econômicos e climáticos, diferentes fontes de matérias-primas (óleo de soja, amendoim,
mamona e dendê, entre outras) e rotas tecnológicas para a produção do biodiesel (rota
metílica ou etílica, catalisadores). Entre essas questões destacam-se: as de ordem
técnica, tais como as especificações do produto e suas conseqüências para o
desempenho, emissões e durabilidade do motor e seus sistemas; as de ordem
econômica, uma vez que o custo do biodiesel, para a maioria das matérias-primas, tende
a ser maior que o do óleo diesel; as de ordem comercial, como o desenvolvimento do
mercado para o principal co-produto, a glicerina, e as de ordem ambiental, cuja avaliação
e solução de um modo geral são muito mais complexas, pois devem considerar todas as
etapas da produção e uso do biodiesel.
Silva (1997) ressalta que o aspecto econômico deve ser visto de forma ampla,
considerando os valores agregados como a criação de empregos, benefícios ambientais,
melhoria de qualidade de vida e geração de divisas. Outro fato que deve ser considerado
é o esforço que existe no sentido de melhorar e uniformizar as especificações do óleo
diesel em diversos países por razões técnicas, comerciais e ambientais. Esse esforço
está representado em um documento denominado Worldwide Fuel Chart (WFC),
publicado em 2006 pelas principais associações de fabricantes de veículos e de motores
nos Estados Unidos, na Comunidade Européia e no Japão, e tem como objetivo
apresentar suas recomendações para as especificações dos combustíveis de forma que
os limites de emissões previstos pela legislação ambiental possam ser cumpridos.
Deve-se também considerar que os limites de emissões impostos pelas duas
novas fases do Programa de Controle da Poluição por Veículos Automotores (Proconve),
uma em vigor desde 2006 e outra prevista para entrar em vigor em 2009, convergem para
os valores já definidos para a maioria dos países desenvolvidos como os Estados Unidos,
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Aspectos Técnicos e Ambientais Relativos ao Uso de Biodiesel em Motores de Combustão
Mauro Alves dos Santos; Patrícia Helena Lara dos Santos Matai INTERFACEHS
o Japão e a Comunidade Européia, e que estes novos limites de emissões são
expressivamente menores do que os atuais, sobretudo no caso das emissões dos óxidos
de nitrogênio (NOx). Assim, diante da necessidade de analisar e refletir sobre as
contribuições e barreiras criadas a partir da inserção do biodiesel na matriz energética
brasileira, este trabalho tem como objetivo contribuir para o estudo de aspectos técnicos e
ambientais relacionados ao seu uso em motores de combustão.
USO DO BIODIESEL EM MOTORES DE COMBUSTÃO
O motor de combustão interna ciclo Diesel foi apresentado durante a exposição
mundial de Paris em 1900 e podia ser alimentado por petróleo filtrado, óleos vegetais ou
óleo de peixe. O uso direto de óleos vegetais nos motores do ciclo Diesel foi rapidamente
superado pelo óleo diesel por fatores econômicos e técnicos, uma vez que os aspectos
ambientais no início do século XX não eram considerados importantes. O uso de fontes
alternativas de energia somente voltou a ser considerado de forma significativa no mundo
como conseqüência das duas crises do petróleo. No Brasil, as primeiras referências ao
uso de óleos vegetais em motores datam da década de 1920, em que algumas pesquisas
foram desenvolvidas no Instituto Nacional de Tecnologia, no Instituto de Óleos do
Ministério da Agricultura e no Instituto de Tecnologia Industrial de Minas Gerais. Em 1980,
a Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Energia instituiu o Programa de Produção de
Óleos Vegetais para Fins Energéticos (Proóleo). Um dos objetivos era substituir o óleo
diesel por óleos vegetais em misturas de até 30% em volume. No período entre 1981 e
1985, a Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio
(STI/MIC) lançou e desenvolveu o Programa Nacional de Energias Renováveis de Origem
Vegetal que levaram à implantação do Programa Nacional de Energia de Óleos Vegetais
(Oveg), em 1983, voltado especificamente para a comprovação técnica do uso de óleos
vegetais em motores ciclo Diesel. Os primeiros testes foram realizados com ésteres
metílicos e etílicos puros e misturas com 30% de éster metílico de soja.
Contudo, após o fim das crises do petróleo, a viabilidade econômica era
questionável: em valores de 1980, a relação de preços internacionais óleos
vegetais/petróleo era de 3,30 para o dendê, 3,54 para o girassol, 3,85 para a soja e 4,54
para o amendoim.
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Aspectos Técnicos e Ambientais Relativos ao Uso de Biodiesel em Motores de Combustão
Mauro Alves dos Santos; Patrícia Helena Lara dos Santos Matai INTERFACEHS
As moléculas dos óleos vegetais contêm glicerina, e o seu uso em motores sem
qualquer modificação pode provocar problemas de carbonização e depósitos nos bicos
injetores, válvulas de admissão e escapamento, desgaste prematuro dos pistões, anéis de
segmento e cilindros, diluição do óleo lubrificante, dificuldade de partida a frio, queima
irregular, redução da eficiência térmica e odor desagradável nos gases de escapamento
(POULTON, 1994). De acordo com Acioli (1994) e Ribeiro (2002), para minimizar esses
problemas existem algumas opções: utilização de misturas de óleos vegetais com o óleo
diesel em até 30%; utilização de ésteres de ácidos graxos, obtidos por meio de
transformação química do óleo vegetal (biodiesel), e utilização de óleos vegetais
craqueados.
1) Consumo de combustível
Um importante parâmetro a ser considerado no uso de qualquer combustível
alternativo é o seu consumo. Ferrari et al. (2005) avaliaram o consumo de combustível em
um grupo gerador de energia utilizando misturas de óleo diesel e biodiesel obtido através
da transesterificação do óleo de soja com etanol anidro na presença de catalisador
alcalino (hidróxido de sódio). Os autores observaram que em misturas de óleo diesel e
biodiesel em proporção de até 10% ocorreu uma redução no consumo de combustível, e
que para proporções maiores que esta ocorreu um aumento no consumo, chegando a
4,77% quando se utilizou biodiesel puro. Esse aumento no consumo é justificado pela
diferença no poder calorífico do biodiesel, que em geral se apresenta menor que o poder
calorífico do óleo diesel. Agarwal e Das (2001) verificaram que o uso do combustível B20,
testado em um motor a diesel, teve o melhor desempenho dentre todas as misturas
analisadas, com um benefício de 2,5% na eficiência térmica máxima e uma redução
significativa nos teores de fumaça. Dorado et al. (2002) concluíram que o motor a diesel,
analisado sem nenhuma modificação, funcionou de maneira satisfatória com misturas de
10% de biodiesel de óleo de fritura e 90% de óleo diesel. Ferrari et al. (2005) realizaram
testes utilizando 5% de biodiesel e 95% de diesel convencional (B5) durante um ano,
tendo percorrido 19.240 km em condições normais de trabalho, e observaram que o
veículo apresentou desempenho normal com redução da emissão de fumaça. Além disso,
durante o período de realização dos testes não foram necessários reparos no motor, o
que induziu os pesquisadores a concluir que os óleos vegetais transesterificados se
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adaptam perfeitamente ao motor. A média de consumo de combustível observada foi de
0,207 l/km, representando um aumento de 7,90% no consumo de combustível que,
anteriormente, com óleo diesel puro, era de 0,192 l/km. Peterson et al. (1992) realizaram
testes de desempenho, em dinamômetro, de um motor diesel turbo alimentado de 3,9
litros de cilindrada, 61 kW de potência a 2.650 min–1 e 290 Nm de torque a 1.500 min–1
sem modificações das suas características. Os testes demonstraram que o motor
operando com éster metílico desenvolveu maior torque e maior potência do que operando
com éster etílico. Observou-se, também, que o consumo foi idêntico para os dois tipos de
combustível e que algumas características desejáveis foram observadas com o motor
operando com éster etílico, tais como menor opacidade, temperaturas de exaustão mais
baixas e menor ponto de entupimento. Os dois tipos de combustível apresentaram, na
média, uma redução de 4,9% na potência desenvolvida em relação ao óleo diesel. Além
disso, o torque máximo para o biodiesel ocorre em rotações mais baixas do que para o
óleo diesel. Em 1.700 min–1 o torque sofreu uma redução de 5%, e em 1.300 min–1 a
redução no torque foi de 3%. A opacidade também foi medida, e uma redução de 75% em
relação ao óleo diesel foi observada. O consumo de combustível sofreu um acréscimo de
7% em relação ao consumo observado para o óleo diesel.
2) Emissões de óxidos de nitrogênio e efeitos na saúde humana
Mais de 95% das emissões de NOx estão sob a forma de óxido nítrico (NO), que é
um gás introduzido no meio ambiente principalmente pelos gases de escapamento dos
veículos. É formado, sobretudo, em conseqüência da alta temperatura na câmara de
combustão dos motores e não representaria perigos à saúde, mas reage com o oxigênio
formando o dióxido de nitrogênio (NO2), que é um gás com odor característico e muito
irritante. O NO2 é um gás tóxico, de modo que a pessoa atingida sente imediatamente
ardência nos olhos, no nariz e nas mucosas em geral. O NO2 reage com todas as partes
do corpo expostas ao ar, pele e mucosas, provocando lesões nas células. Os epitélios
(revestimentos celulares) que mais sofrem são aqueles das vias respiratórias, ocorrendo
degenerações e inflamações no sistema respiratório, desde o nariz até a profundidade
dos alvéolos pulmonares. Em caso de intoxicação grave, a inalação provoca edema
pulmonar, hemorragias alveolares e insuficiência respiratória, causando morte. Se a
exposição for aguda, aparecerão traqueítes e bronquites crônicas, enfisema pulmonar
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(dilatação anormal dos alvéolos), espessamento da barreira alvéolo-capilar (dificuldades
nas trocas gasosas que ocorrem nos pulmões: gás carbônico por oxigênio) e
broncopneumonias químicas ou infecciosas. O NO2 pode reagir também com radicais
hidróxidos provenientes principalmente da água, e formar ácido nítrico que também tem
participação no fenômeno da precipitação ácida. Os óxidos de nitrogênio também
participam na formação do smog fotoquímico que é um aerossol, irritante aos olhos e às
mucosas, constituído por produtos resultantes da interação dos NOx com compostos,
entre eles aldeídos, nitratos de alquila, ozônio e nitrato de peroxiacila (KRUPA, 1997).
3) Limites das emissões
De acordo com relatório de avaliação do Programa Europeu de Emissões,
Combustíveis e Tecnologias em Motores (Epefe), que apresentou os resultados de testes
realizados no período de 1993 a 1995, algumas propriedades do óleo diesel como a
densidade, o conteúdo de HPA (Hidrocarboneto poliaromático), o número de cetano (NC)
e a temperatura T95, entre outras, têm influência direta na emissão de poluentes
(PALMER, 1996). Os testes foram realizados utilizando duas condições diferentes. Uma
combinação do ciclo ECE que simula as condições de trânsito urbano, ou seja,
velocidades menores (de 0 km/h até cerca de 60 km/h) e do ciclo EUDC que simula
condições similares às das estradas, ou seja, velocidades maiores (de 20 km/h até 120
km/h), e outro ciclo denominado ‘13 pontos’ que submete o veículo a 13 diferentes
condições de carga e velocidade. A Tabela 1 apresenta a relação entre as emissões e a
redução da densidade de 855 para 828 kg/m3.
Observa-se que ocorrem reduções significativas das emissões de monóxidos de
carbono (CO), hidrocarbonetos (HC) e material particulado (MP) quando se reduz a densidade
do óleo diesel e o motor opera em condições de velocidades moderadas (ciclo ECE).
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Entretanto, ocorre um pequeno aumento das emissões de NOx nessas condições. Quando o
motor opera em velocidade mais elevada (ciclo EUDC), a redução da densidade proporciona
uma pequena redução das emissões de NOx e MP. Porém, as emissões de CO e HC
aumentam. A Tabela 2 apresenta a relação entre as emissões e o número de cetano.
Os dados apresentados na Tabela 2 mostram que o aumento do NC proporciona
considerável redução nas emissões de CO, HC e, em menor proporção, NOx, com o
motor operando em cargas moderadas e altas. Entretanto, esse aumento no número de
cetano proporciona um pequeno acréscimo na emissão de MP quando o motor opera em
cargas moderadas. A Tabela 3 apresenta a relação entre as emissões e a redução na
temperatura de destilação T95 de 370ºC para 325ºC.
A redução da temperatura T95 proporciona uma importante redução das emissões
de MP quando o motor opera em cargas moderadas, mas ocorre também um aumento
nas emissões de CO e HC quando o motor opera em cargas elevadas.
Chang et al. (1966, citados em COSTA NETO et al., 2000, p.535) demonstraram
que as emissões de CO, CO2, e MP foram menores que as emissões do óleo diesel.
Porém, as emissões de NOx foram maiores em diferentes tipos de biodiesel. A Tabela 4
apresenta a alteração das emissões em veículos pesados em função do teor de biodiesel
adicionado ao óleo diesel padrão dos Estados Unidos.
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Estudos realizados por Wang (2000) mostram que as emissões de NOx também
estão relacionadas com a potência que o motor desenvolve. Em aceleração, as emissões
aumentam; em velocidade de cruzeiro, as emissões diminuem. Isso ocorre porque altas
cargas exigem maior massa de combustível, o que provoca picos de alta pressão e
temperatura na câmara de combustão, favorecendo a formação dos óxidos de nitrogênio.
Desta forma, as emissões de NOx também estão relacionadas com a massa de
combustível injetado. O autor também observou que as emissões de NOx estão
diretamente relacionadas com a potência desenvolvida pelo motor. Quando a potência é
aumentada, a emissão de NOx também aumenta, e quando se opera o motor em
potências moderadas, as emissões de NOx diminuem. Porém, diferentemente das
emissões de CO, que se mantêm praticamente constantes em potências moderadas, as
emissões de NOx tendem a ser diretamente proporcionais à potência desenvolvida em
faixas moderadas. Este efeito ocorre pelo fato de as emissões de NOx estarem
relacionadas diretamente com os picos de pressão e temperatura na câmara de
combustão. Quando a potência está decrescendo, a quantidade de combustível é
reduzida e isso resulta também na redução da emissão de NOx. Assim, observa-se que a
emissão de NOx é proporcional à massa de combustível injetado. As emissões de HC
apresentam-se relativamente constantes para as diversas faixas de potência, e isso
mostra que o processo para formação das emissões de HC é bastante complexo. Quanto
maior a potência desenvolvida, maior a quantidade de combustível injetado e maior a
tendência de emissão de HC. Entretanto, fatores relacionados com o processo de
preparação da mistura ar–combustível, como a taxa de injeção do combustível e a
velocidade do ar, influenciam também a emissão de HC. Isso explica o elevado nível das
emissões de HC em faixas de potência moderadas.
Diversos estudos têm demonstrado as vantagens ambientais do uso do biodiesel,
dentre as quais destaca-se a redução das emissões de CO, MP e dióxidos de enxofre
(SOx), além da redução das emissões de gás carbônico (CO2), por se tratar de uma fonte
renovável de energia. Em países tais como Alemanha, Áustria, França, Suécia, Itália e
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Estados Unidos, estudos sobre a produção e uso do biodiesel mostram que os motores
de um modo geral atendem aos limites de emissões quando operam com biodiesel, e que
na maioria dos casos ocorre uma redução da emissão de poluentes (SCHARMER, 2001).
A Tabela 5 mostra que resultados semelhantes foram obtidos por Scharmer (2001)
e Krahl (1996) utilizando biodiesel B100.
Diante desses dados pode-se assumir que o biodiesel proporciona uma nítida
redução das emissões de hidrocarbonetos. Büenger et al. (1998), Carraro et al. (1997) e
Krahl et al. (1996) demonstram que no caso particular dos HPAs suspeitos de serem
carcinogênicos ou mutagênicos, essa redução foi de 25% em relação ao óleo Diesel.
4) Limites de emissões no Proconve
O Conama mediante a Resolução nº 18, de 1986, instituiu o Programa de Controle
da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve). Esse programa tem como
objetivos principais a redução dos níveis de emissão de poluentes por veículos
automotores, a promoção do desenvolvimento tecnológico nacional da engenharia
automobilística, dos métodos e equipamentos para ensaios e medição da emissão de
poluentes, a criação de programas de inspeção e manutenção para veículos em uso, a
promoção da conscientização da população para os problemas da poluição do ar por
veículos automotores e a promoção da melhoria das características técnicas dos
combustíveis líquidos, postos à disposição da frota nacional de veículos automotores,
visando a redução da emissão de poluentes na atmosfera. A Resolução nº 8, de 31 de
agosto de 1993, em complemento à Resolução Conama nº 18, de 1986, estabelece os
limites máximos de emissão de poluentes para os motores do ciclo Diesel e veículos
pesados novos que são apresentados na Tabela 6.
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De acordo com a Resolução Conama nº 8, de 1993, a partir de 1º de março de
1994 todos os motores Diesel produzidos, referentes aos modelos responsáveis por pelo
menos 80% da produção, deveriam atender aos limites da fase II, devendo os modelos
remanescentes atender aos limites da Fase I. Seguindo o mesmo critério, os limites
correspondentes à Fase III deveriam ser atendidos a partir de 1º de janeiro de 1996 e os
limites referentes à Fase IV a partir de 1º de janeiro de 2000, com antecipação para 80%
dos ônibus urbanos para 1º de janeiro de 1998. A partir de 1º de janeiro de 2002 os limites
deveriam ser atendidos pela totalidade de motores destinados aos veículos pesados.
A Resolução nº.315, de 2002, do Conama dispõe sobre as novas etapas do
Proconve. Nessa Resolução foram estabelecidos os limites máximos de emissão de
poluentes e respectivas datas de implantação, conforme Tabelas 7 e 8, para os motores
destinados a veículos pesados, nacionais ou importados, a serem atendidos em 2006 e
2009.
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De acordo com essa Resolução, os motores convencionais do ciclo Diesel e
aqueles munidos de equipamentos de injeção eletrônica de combustível, recirculação de
gases de escapamento (EGR) e/ou catalisadores de oxidação deverão atender aos limites
de emissão expressos na linha 1 da Tabela 7, sendo ensaiados segundo os ciclos ESC e
ELR. Para o atendimento aos limites da linha 2 da Tabela 9 o motor deverá atender,
adicionalmente, aos limites da linha 2, da Tabela 7, segundo o ciclo ETC, e os motores do
ciclo Diesel equipados com sistemas de pós-tratamento dos gases de escapamento,
como catalisadores de NOx e ou filtro de partículas, além de atenderem aos limites
expressos na linha 1, deverão atender também aos limites de emissões estabelecidos
para o ciclo ETC, conforme a linha 1 da Tabela 8. Para os ônibus urbanos, a data de
implantação dos limites de emissão estabelecidos na linha 1, da Tabela 7, foi 1º de janeiro
de 2004; para os microônibus, a data de implantação dos limites de emissão
estabelecidos na Linha 1 da Tabela 7 foi 1º de janeiro de 2005, e para os veículos
pesados, exceto ônibus urbanos e microônibus, para quarenta por cento da produção
anual, por fabricante ou importador, a data de implantação dos limites de emissão
estabelecidos na linha 1 da Tabela 7 foi 1º de janeiro de 2005. Para os veículos pesados,
para 100% da produção anual, por fabricante ou importador, a data de implantação dos
limites de emissão estabelecidos na linha 2 das Tabelas 7 e 8 será 1º de janeiro de 2009.
A Resolução nº 315 do Conama exige também a disponibilidade dos combustíveis
de referência para desenvolvimento de produtos, testes e homologação, além de
combustíveis comerciais com características adequadas e compatíveis com as
tecnologias a serem adotadas nas datas previstas. Porém, veículos com motores que
utilizem combustíveis não previstos poderão ser dispensados parcialmente das
exigências, mediante decisão motivada e exclusiva do Instituto Brasileiro do Meio
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Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), por um período máximo de dois anos. A
resolução não define combustíveis não previstos. Assim, interpretou-se como qualquer
combustível para o qual não havia autorização de uso e especificações técnicas da ANP,
na data da publicação da Resolução nº 315 do Conama.
5) Limites de emissões na União Européia e nos Estados Unidos da América
Os limites de emissões de NOx requeridos pela legislação brasileira seguem uma
tendência mundial conforme se observa na Tabela 9, apresentada no Relatório Panorama
Internacional de Energia, publicado em 2004 pelo Departamento de Energia dos Estados
Unidos da América.
Verifica-se que, tanto nos Estados Unidos quanto na União Européia, a tendência
é a redução dos limites das emissões de óxidos de nitrogênio. O biodiesel tipicamente
provoca um aumento das emissões desse tipo de poluente de maneira proporcional à sua
adição ao óleo diesel. Sendo assim, um desafio importante é o desenvolvimento de
tecnologias que compensem esse efeito.
O enxofre contido no óleo diesel contribui para a lubricidade do combustível,
prevenindo o desgaste dos componentes do sistema de injeção. Entretanto, a oxidação
do enxofre e a sua reação com a água geram resíduos que causam a corrosão do
sistema e a poluição do ar. O biodiesel é um combustível isento de enxofre, dessa forma,
a sua adição ao óleo diesel vem ao encontro das exigências mundiais no que se refere ao
limites no teor de enxofre.
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6) Tecnologias para a redução das emissões de NOx em motores
As tecnologias para redução das emissões nos motores a diesel podem ser
analisadas analogamente às tecnologias empregadas para a redução das emissões em
fontes fixas. Tipicamente essas tecnologias são classificas em ‘tecnologias fim-de-tubo’,
ou seja, aquelas que atuam no pós-tratamento, e tecnologias contidas nos conceitos da
‘produção mais limpa’ e ‘tecnologias limpas’, que atuam na fonte. Em geral, considera-se
o melhor sistema de tratamento de emissões gasosas aquele que: efetua o tratamento
das emissões diretamente na fonte; maximiza a eficiência da queima do combustível;
utiliza combustível com propriedades adequadas ao desempenho do motor; é
complementado, quando necessário, por processos de pós-tratamento dos gases; utiliza o
mínimo possível de energia em sistemas auxiliares.
De acordo com Santos (2007), Huch e Leal (2005) classificaram as soluções
tecnológicas para redução das emissões em motores ciclo Diesel. Entre as tecnologias
para redução das emissões de NOx destaca-se o uso de aditivos melhoradores do NC,
alteração do tempo de injeção, aplicação de sistemas de recirculação dos gases da
exaustão, emprego de catalisadores para conversão do NOx contido nos gases do
escapamento e, no caso específico do biodiesel, determinação das fontes e propriedades
que contribuem para reduzir a formação do NOx. Dentre essas tecnologias, descritas por
Santos (2007), duas delas vêm ganhando importância junto aos fabricantes de motores:
aplicação de sistemas de recirculação de gases da exaustão e utilização do processo de
redução catalítica seletiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar do importante avanço decorrente da definição do marco regulatório para a
produção e distribuição do biodiesel no Brasil, ainda precisam ser debatidas muitas
questões relacionadas à sua produção e ao seu uso. Entre essas questões destacam-se
as de ordem técnica, ambiental, comercial e econômica, destacando-se que este trabalho
visou apresentar questões técnicas e ambientais.
Embora o biodiesel possua muitas características semelhantes às do óleo diesel,
existem algumas propriedades típicas de determinados óleos vegetais que criam algumas
barreiras técnicas.
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O Conama definiu os limites atuais e futuros para cada uma das fases do
Proconve. Em geral, o biodiesel pode ser considerado um agente facilitador para o
atendimento das metas estabelecidas para o programa, uma vez que as emissões de MP,
CO e HC sofrem uma redução significativa quando o biodiesel é utilizado. Entretanto, as
emissões de NOx geralmente sofrem um aumento que é proporcional à quantidade de
biodiesel utilizada na mistura. Existem diversas tecnologias desenvolvidas para redução
das emissões de NOx. Porém, toda ação que se promove para reduzir as emissões de
NOx gera um aumento das emissões de MP e no consumo de combustível. Considerando
que o uso do biodiesel proporciona uma redução significativa das emissões de MP, resta
a desvantagem do aumento no consumo de combustível quando se aplicam as
tecnologias para redução das emissões de NOx, tais como as modificações dos
parâmetros de injeção que visam reduzir a temperatura na câmara de combustão.
Pode-se considerar que, não só como desafio, mas também como meio de
obtenção de respostas a algumas questões ambientais e técnicas, ainda há muito a ser
realizado com respeito à produção e ao uso de biodiesel em motores de combustão.
Dessa forma, como recomendação para a discussão, algumas questões não abordadas
neste trabalho podem ser destacadas:
• na produção de biodiesel: melhorias na separação da glicerina formada na reação
de transesterificação com etanol.
• considerar a possibilidade de se utilizar metanol na transesterificação, apesar de
aquele insumo ser derivado da indústria petroquímica, já que a reação de
transesterificação é mais rápida e os rendimentos são mais elevados em relação
ao etanol.
• considerando-se que há metas estabelecidas para o biodiesel em mistura com
óleo diesel, a glicerina obtida como co-produto na reação de transesterificação
deverá ter os seus usos ampliados em relação ao que ocorre atualmente.
• solucionar a questão da alta viscosidade do biodiesel produzido a partir de óleo de
mamona.
• realizar estudos comparativos de queima em motor de combustão com biodiesel
nacional produzido com etanol e com metanol, em paralelo com estudos de
emissões ambientais.
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Aspectos Técnicos e Ambientais Relativos ao Uso de Biodiesel em Motores de Combustão
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Artigo recebido em 08.02.08. Aprovado em 03.03.08.
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PESQUISA DE AVALIAÇÃO DE UM PROGRAMA SINDICAL DE FORMAÇÃO EM SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO*
Diane Berthelette1; Luc Desnoyers2; Anne Bédard3
1 Professora titular, Departamento de Organização e de Recursos Humanos, Ècole des Sciences de la
Gestion, Université du Québec à Montreal, Montreal, Québec [email protected] 2 Professor associado, Depatamento de Ciências Biológicas, Université du Québec à Montreal, Montréal,
Québec 3 M. B. A., Montréal, Québec
RESUMO O objetivo desta pesquisa de avaliação era analisar a relação que poderia existir entre o
processo de um programa de formação de base em saúde e segurança do trabalho e os
efeitos dele esperados. Esse programa, oferecido por uma central sindical quebequense a
seus membros, tem por objetivo último melhorar a ação sindical dos trabalhadores, em
seu meio de trabalho, quanto a esse ponto. Nossos resultados parecem indicar que esse
programa produz a maioria dos efeitos esperados relativos aos temas estudados, ou seja,
aumentar a compreensão do papel dos fatores ambientais na ocorrência de acidentes de
trabalho e atribuir esses eventos a riscos ambientais pelos quais os empregadores são
responsáveis.
Palavras-chave: formação sindical; prevenção de acidentes de trabalho; avaliação.
1
Pesquisa de Avaliação de um Programa Sindical de Formação em Saúde e Segurança do Trabalho
Diane Berthette; Luc desnoyers; Anne Bédard INTERFACEHS
Os resultados que apresentamos no presente artigo decorrem de um projeto de
pesquisa avaliativa que tinha por objetivo geral verificar se um programa sindical de
formação em saúde e segurança do trabalho atingia seus objetivos ou, em outros termos,
produzia os efeitos esperados (CONTANDRIOPOULOS et al., 1992). O programa em
estudo, oferecido por uma Central sindical quebequense a seus membros, tem por
objetivo último melhorar a ação sindical dos trabalhadores implementada em seus meios
de trabalho no que se refere à prevenção primária de lesões profissionais. Nosso estudo é
a primeira pesquisa de avaliação de um programa de formação sindical em saúde e
segurança do trabalho oferecido no Quebec. Apresentamos aqui nossos resultados sobre
um dos temas que é objeto da formação, ou seja, os acidentes de trabalho e, mais
especificamente, os objetivos de aprendizagem seguintes: 1) compreender que os
acidentes de trabalho têm várias causas; 2) ser capaz de identificar essas causas; 3) ser
capaz de identificar as medidas para evitar a ocorrência de acidentes e 4) atribuir os
acidentes de trabalho a riscos ambientais pelos quais os empregadores são responsáveis.
O programa de formação de base em saúde e segurança do trabalho (SST) em
estudo tem uma duração de quinze horas, divididas em três dias. Ele é dirigido a
membros de comitês de saúde e segurança do trabalho, a delegados sindicais, a oficiais
ou simples membros de sindicatos. Ele é oferecido regularmente, desde 1976, pelo
Serviço de Educação da Central, com formadores vindos das instâncias regionais (os
Conselhos do Trabalho) ou ainda formadores dos grandes sindicatos afiliados. Em todos
os casos, trata-se de militantes sindicais formados pela Central no decorrer de uma
sessão que dura cinco dias e incide tanto sobre o conteúdo como sobre os métodos
pedagógicos. Distribuem-se aos aprendizes cadernos de formador e de participante. Além
disso, colocam-se os futuros formadores em situação concreta de formação diante de
seus colegas. Suas práticas pedagógicas são analisadas e comentadas. Os formadores
novatos que são bem-sucedidos nesse curso podem, depois, oferecer programas de
formação a militantes sindicais, inicialmente sob a supervisão de formadores seniores.
Blondin (1980, p. 79) especifica que o curso de base em saúde e segurança do
trabalho segue as três etapas seguintes:
1) “conscientização do número dramático de acidentes de trabalho e a
deterioração geralmente rápida da saúde dos trabalhadores como conseqüência da
presença pouco controlada de assassinos silenciosos que hipotecam gravemente sua
saúde”;
2) “informações sobre leis cuja meta oficial é a proteção da saúde”; e
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3) “as diversas dimensões dos meios de ação sindical... para proteger nossa
saúde, assegurar nossa integridade física”. Essas três etapas correspondem aos três
“blocos” do programa de formação identificados como segue no caderno do formador:
1) os acidentes de trabalho e as ameaças à saúde;
2) direitos dos trabalhadores e trabalhadoras em matéria de saúde e segurança; e
3) a ação sindical.
O processo do programa deve, antes de tudo, recorrer à utilização da experiência
e dos conhecimentos dos trabalhadores. Ele é baseado na troca e no confronto dos
conhecimentos e das percepções. Poucas exposições devem ser apresentadas. Devem-
se privilegiar as discussões e os trabalhos de equipe. Além disso, a comunicação deve
ser simples e direta. Blondin (1980, p. 78) também especifica que os formadores devem
evitar “tudo que é paralisante, passivo, desmobilizador”, porque os programas de
formação são concebidos para “que, ao sair do curso, o que foi aprendido seja traduzido
em gestos concretos, em ação e engajamento”. Esse é o objetivo último do programa de
formação.
Poucas pesquisas de avaliação incidem sobre programas de formação em saúde e
segurança do trabalho e aquelas que foram consagradas ao tema se concentraram,
principalmente, em intervenções cujo objetivo último era diferente do programa que é
objeto de nosso estudo, ou seja, modificar os comportamentos dos trabalhadores em
relação às suas atividades de trabalho e, principalmente, as posturas adotadas no
momento de erguer cargas, de modo a prevenir doenças nas costas. Algumas
publicações se referem a programas de formação que perseguem objetivos últimos
similares ao programa que é objeto de nosso estudo, ou seja, levar os indivíduos
formados a melhorar as condições de trabalho em seus respectivos meios. Tais
publicações foram produzidas, antes de tudo, por ergonomistas, que conceberam
programas de formação mediante análise do trabalho visando os trabalhadores. Em geral,
os autores descrevem análises qualitativas pouco formalizadas, comparando as
características das situações de trabalho que prevaleciam antes da formação àquelas que
observaram ou ainda que os trabalhadores lhes relataram após a formação. As
observações dos autores parecem convergir: a formação mediante análise do trabalho
levaria os indivíduos formados a reivindicar melhoria de suas condições de trabalho
(WENDELEN et al., 1998). Pelo que sabemos, um único estudo empírico relata esse
programa de formação (MONTREUIL et al., 1997). Este era destinado a pessoal que
utiliza terminais com monitores de visualização e era baseado em um modelo de
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promoção da saúde que visava permitir aos trabalhadores conhecer as sujeições e os
riscos associados às suas condições de trabalho e fornecer-lhes estratégias preventivas.
Os resultados indicam que o número de indivíduos que implantaram estratégias
preventivas era significativamente mais elevado no grupo exposto ao programa do que no
grupo testemunha. O número de mudanças implementadas nos postos de trabalho era
significativamente superior no grupo exposto. Da mesma forma, entre os indivíduos de
menos de 40 anos do grupo exposto, a incidência de problemas músculo-esqueléticos
era, pela metade, inferior à do grupo testemunha.
Descrevemos em outro lugar a implantação do programa que é objeto de nosso
estudo e sua teoria subjacente, e a variação que observamos entre os componentes do
programa prescrito pela Central e aqueles que haviam sido implantados (DESNOYERS et
al., 1997; BERTHLETTE et al., 1998). A descrição da teoria subjacente permitiu-nos, entre
outras coisas, delimitar os efeitos intermediários do programa. Parecia-nos mais útil
centrar nossa avaliação nesses efeitos, mais do que ressaltar os efeitos últimos do
programa a fim de permitir à Central ter uma visão de conjunto dos resultados de cada um
dos objetivos de aprendizagem de seu programa. Nós queríamos, igualmente, evitar
utilizar a abordagem da “caixa preta” (CHEN e ROSSI, 1983), cujos limites são
importantes. Os pesquisadores que recorrem a essa abordagem deixam de verificar a
implantação do programa avaliado. Conseqüentemente, eles não podem explicar seus
resultados quando estes indicam que um programa não produz os efeitos esperados. Nós
desejamos, ao contrário, estar em condição de produzir resultados úteis à Central sindical
em questão a fim de que ela possa tomar decisões esclarecidas sobre o futuro de seu
programa. Além disso, poucas publicações que se referem à análise dos efeitos de
programas de formação em saúde e segurança do trabalho descrevem suas teoria
subjacente e os processos. Conseqüentemente, é limitada a extrapolação dos resultados
dessas pesquisas de avaliação a programas que podem ser similares. Apresentamos
dados sobre a teoria subjacente ao programa e seu processo - as atividades
empreendidas no contexto do programa (CONTANDRIOPOULOS et al., 1992) - a fim de
facilitar a comparação, por nossos leitores, das características do programa em estudo
com outras intervenções similares.
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MÉTODOS
A população em estudo é composta de membros dos sindicatos locais,
pertencentes a uma grande Central sindical quebequense, disponíveis para participar do
programa em estudo. Recorremos a uma estimativa de pesquisa pré-teste, pós-teste com
grupo testemunha não equivalente. Uma vez que a participação no programa de formação
era voluntária, a possibilidade de distribuir os sujeitos de maneira aleatória nos grupos
exposto e testemunha estava excluída.
Utilizamos o método de amostragem por conglomerados a fim de recrutar os
sujeitos do estudo. A amostra do grupo exposto é composta de 65 delegados sindicais
que participaram de quatro sessões de formação oferecidas entre os meses de fevereiro e
novembro de 1999. Essas sessões reuniam dezoito pessoas em média. Cada sessão era
ministrada por dois formadores em um período de três dias consecutivos, conforme o
programa prescrito. O pré-teste foi administrado no início do primeiro dia de formação,
enquanto o pós-teste foi completado no fim do terceiro e último dia de formação.
Os sujeitos do grupo testemunha foram recrutados entre os membros dos
sindicatos locais expostos a outros programas de formação e não a este, que é objeto do
presente estudo, entre os meses de novembro de 1997 e fevereiro de 2000 (n=60). Eles
participaram de seis programas de formação relacionados aos seguintes temas: 1) o
barulho; 2) a organização do trabalho (2 grupos); e 3) o delegado sindical (3 grupos). As
atividades desses programas eram divididas em três dias, como no programa em estudo.
Em todos os casos, o pré-teste foi administrado no início do primeiro dia de curso,
enquanto que o pós-teste foi completado no fim do último dia.
Procedemos a um estudo exploratório a fim de identificar os efeitos esperados do
programa, ou seja, os objetivos de aprendizagem e seu conteúdo nocional, “a matéria a
ser aprendida ou o objeto da habilidade a desenvolver” (TOUSIGNANT e MORISSETTE,
1990, p. 48). Para isso, adotamos um procedimento interativo comportando as três etapas
seguintes:
1) recolher e analisar o conteúdo dos dados retirados do material pedagógico
utilizado pelos formadores e pelos participantes, depois o registro de uma sessão de
formação que gravamos em fita;
2) validar nossos resultados preliminares junto à pessoa responsável pela
formação em SST da Central; e
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3) confrontar nossos resultados com quadros conceituais que pudessem conter
objetivos de aprendizagem pertinentes ao programa em estudo. A análise do conteúdo do
material pedagógico permitiu-nos identificar os 32 temas sobre os quais a formação
incidia. Utilizamos esses temas para efetuar uma primeira codificação do registro da
sessão e isso com a ajuda do programa Atlas Ti.
Os objetivos de aprendizagem relativos ao tema acidentes de trabalho, que é
objeto do presente artigo, identificados após a análise qualitativa dos resultados deste
estudo, são os seguintes:
1) compreender que os acidentes de trabalho têm várias causas;
2) ser capaz de identificar essas causas;
3) ser capaz de identificar as medidas para evitar a ocorrência de acidentes; e
4) atribuir os acidentes a riscos ambientais, pelos quais os empregadores são
responsáveis.
A duração prescrita das atividades de formação é de 75 minutos, enquanto aquela
que observamos foi de 120. Essa diferença seria devida às três dimensões seguintes da
teoria subjacente ao programa elaborado por aqueles que o conceberam: 1) o objetivo
último do programa é levar os participantes a mobilizar os trabalhadores de sua empresa
de modo que eles façam pressão sobre os dirigentes para eliminarem as fontes de risco
de lesões profissionais; 2) para que o programa produza esse objetivo último, ele deve,
previamente, levar os participantes a atribuírem o conjunto das lesões profissionais às
condições de trabalho; 3) estas últimas dependem da responsabilidade dos
empregadores; 4) seria inútil prosseguir a formação se os objetivos do primeiro bloco do
curso não foram atingidos.
Os dois quadros conceituais seguintes pareceram-nos pertinentes para conceituar
os objetivos da Central identificados precedentemente sob a forma de objetivos de
aprendizagem, ou seja: a taxonomia dos objetivos pedagógicos (BLOOM et al., 1969) e a
teoria da atribuição (DUBOIS, 1996). A taxonomia dos objetivos pedagógicos refere-se às
manifestações cognitivas da aprendizagem, ou seja, conhecimentos, habilidades e
capacidades intelectuais. Ela reúne seis níveis de aprendizagem, subdivididos em
subcategorias e ordenados de modo hierárquico em função de seu grau de abstração e
complexidade. Trata-se das categorias seguintes: aquisição de conhecimento,
compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação. O conhecimento refere-se à
simples memorização de fatos, métodos, processos, modelos, estruturas ou ordens. A
compreensão consiste em conhecer a informação que é comunicada e saber dela se
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servir, sem, necessariamente, estabelecer vínculo com outras informações nem
apreender todo seu alcance. A aplicação e a análise são, respectivamente, definidas
como “a utilização de representações abstratas em casos particulares e concretos” e a
“separação dos elementos ou partes constituintes de uma comunicação de modo a
esclarecer a hierarquia relativa das idéias e das relações entre as idéias expressas”. A
síntese é uma operação que consiste em reunir e combinar elementos de modo a “formar
um plano ou uma estrutura que anteriormente não se distinguia claramente”. Enfim, a
avaliação consiste em fazer um julgamento de valor sobre um objeto visando um fim
preciso. Esse quadro conceitual permitiu-nos delimitar dois dos objetivos de
aprendizagem em relação ao tema dos acidentes de trabalho, ou seja, a compreensão
dos fatores que contribuem para os acidentes e a aplicação de conhecimentos para sua
prevenção.
A atribuição é “uma explicação, um julgamento, uma inferência feita a posteriori
sobre um evento preciso” (DUBOIS, 1996). Ela remete aos lugares de causalidade desse
evento, que podem ser de ordem interna (causas atribuídas às características do
indivíduo envolvido no evento) ou externa (causas atribuídas a fatores de origem
ambiental). Esse conceito pareceu-nos pertinente para qualificar um dos efeitos
esperados da formação, ou seja, a habilidade dos indivíduos formados em explicar a
ocorrência de acidentes de trabalho em função de fatores ambientais (problemas de
organização do trabalho, de ferramentas inadequadas, etc.), mais que atribuí-los à
adoção de comportamentos de risco por trabalhadores vítimas de acidentes. Trata-se da
pedra angular da teoria subjacente ao programa elaborado pela Central. Assim, a
atribuição das lesões profissionais a causas de ordem externa é um dos objetivos
intermediários do programa de formação.
Nós criamos um quadro de especificação dos objetivos de aprendizagem, de seu
conteúdo nocional e sua importância relativa (TOUSIGNANT e MORISSETTE, 1990;
DESNOYERS et al., 1997). Avaliamos a importância relativa dos objetivos e de seu
conteúdo em função da proporção de tempo (real sobre prescrito) que lhes foi dada pelas
formadoras da sessão observada e dos comentários da pessoa responsável pelos cursos
de SST da Central.
Essas diferentes etapas permitiram-nos construir um instrumento de medida que
refletisse a importância relativa dos efeitos esperados do programa que deviam ser
medidos. Trata-se de um questionário auto-administrado que comportava questões
relativas aos efeitos esperados do programa e às características dos sujeitos que nos
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permitiriam controlar os eventuais vieses de seleção que pudessem alterar a validade
interna de nosso estudo. Lembremos que os resultados que apresentamos referem-se a
um único dos temas da formação, ou seja, os acidentes de trabalho.
Submetemos os objetivos de aprendizagem e seu conteúdo nocional, assim como
a formulação de nossas questões, ao responsável pela formação em SST da Central a fim
de validar seu conteúdo. Mensuramos o conjunto das variáveis dependentes,
correspondente aos efeitos do programa e que são o objeto do presente artigo, com a
ajuda do seguinte caso:
“Diana é técnica de laboratório. Ela usa meios individuais de proteção (MIP) no
contexto de suas atividades. Trata-se de um gabão, luvas, óculos, um chapéu e
uma máscara de respiração. Ela trabalha num meio cuja temperatura varia entre
25 e 35 graus Celsius. Essa temperatura elevada é devida, essencialmente, à
proximidade de aparelhos de esterilização. Por conta do calor, o uso do
equipamento torna-se particularmente irritante e aconteceu que Diana o tirou. Um
dia, nessa situação, Diana teve uma queimadura de segundo grau por causa dos
gazes que escaparam no momento da abertura do aparelho de esterilização.”
As três questões seguintes foram utilizadas:
1) Qual(is) é(são) a ou as causas desse acidente?
2) Como esse acidente poderia ter sido evitado? e
3) Quem é responsável por esse acidente?
O programa de formação prevê a utilização de cinco casos comparáveis a esse
que utilizamos, seguidos de questões idênticas às nossas.
A primeira questão de nosso instrumento de medida era aberta. Ela visava medir a
compreensão dos sujeitos sobre o fenômeno do acidente. Trata-se, igualmente, de uma
medida de atribuição de causas a acidentes. Nós repertoriamos o conjunto das respostas
fornecidas pelos sujeitos. Cada uma delas foi objeto de uma avaliação normativa pelos
pesquisadores responsáveis pelo projeto. Essa avaliação incidia sobre a plausibilidade
teórica da resposta. Depois, as respostas plausíveis à primeira questão foram codificadas
novamente, nas duas seguintes categorias: causas individuais e causas ambientais.
Enfim, calculamos, para cada sujeito, o número de respostas pertencentes a cada uma
dessas categorias. Trata-se dos dois primeiros efeitos esperados medidos ou variáveis
dependentes, ou seja, o número de causas individuais plausíveis e o número de causas
ambientais plausíveis do acidente descrito no caso, enumeradas pelos sujeitos.
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A segunda questão era aberta. Ela visava medir a aplicação dos conhecimentos
adquiridos em relação à prevenção de acidentes de trabalho. As respostas plausíveis à
segunda questão foram igualmente codificadas nas duas categorias seguintes:
1) ações individuais plausíveis por parte da trabalhadora e
2) ações plausíveis por parte dos empregadores.
Trata-se de nossos terceiro e quarto efeitos esperados ou variáveis dependentes,
ou seja, o número de ações individuais e o número de ações organizacionais plausíveis
que poderiam ter sido implementadas para prevenir o acidente descrito, enumeradas
pelos sujeitos.
A terceira questão comportava as duas subquestões seguintes, cujas respostas
eram medidas com a ajuda de escalas visuais análogas:
1) indique a % de responsabilidade do empregador nesse acidente, e
2) indique a % de responsabilidade da trabalhadora nesse acidente.
As porcentagens de responsabilidade do empregador e da trabalhadora são os
dois últimos efeitos esperados ou variáveis dependentes. Trata-se de varáveis contínuas,
cujo valor pode variar entre 0 e 10, que visam medir a atribuição de causas de acidentes.
Recorremos às três variáveis seguintes a fim de verificar a presença potencial de
um viés de seleção nos grupos exposto e testemunha:
1) o número de meses de experiência em um comitê de saúde e segurança do
trabalho;
2) o número de meses de experiência como delegado sindical; e
3) a exposição anterior a um curso de formação sindical em saúde e segurança do
trabalho.
Recorremos a questões abertas para medir as duas primeiras variáveis, que são
de natureza contínua. Atribuímos um valor nulo a essas duas variáveis quando os sujeitos
não possuíam nenhuma experiência. Quanto à terceira variável, que é dicotômica, nós
pedimos aos sujeitos que identificassem os programas de formação que haviam seguido
com base numa lista de 23 programas identificados pela Central. A exposição anterior a
um ou outro de três programas pertinentes (Ação em prevenção, Organização do trabalho
e Demandantes à Comissão da Saúde e Segurança do Trabalho) recebia um código
significando a presença de uma formação em saúde e segurança do trabalho. Tentamos,
com a ajuda dessas três variáveis, avaliar o nível de competência em SST dos sujeitos
por ocasião do pré-teste.
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Efetuamos análises descritivas das variáveis dependentes e de controle, assim
como análises bivariadas para comparar nossos grupos. O pertencimento ao grupo
exposto ou testemunha corresponde à variável independente.
Num primeiro momento, verificamos se existiam diferenças significativas entre o
grupo exposto e o grupo testemunha no que se refere às variáveis de controle recorrendo
a testes de t (experiência num comitê de SST e como delegado sindical) e a testes de
Qui-quadrado (número de sujeitos com uma experiência num comitê de SST e tendo
ocupado uma função de delegado sindical e formação anterior em SST). Como mostra a
Figura 1, avaliamos as distâncias entre os grupos para cada uma das variáveis
dependentes com a ajuda de teste de t:
1) pré-teste versus pós-teste para
a) grupo exposto (C1) e
b) para o grupo testemunha (C2).
2) pré-teste dos grupos exposto versus testemunha (C3), e
3) pós-teste dos grupos exposto e testemunha (C4).
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Nossas análises multivariadas tinham por objetivo estimar o efeito da exposição ao
programa de formação sobre cada um dos seis efeitos esperados do programa. A
exposição ao programa, medida de maneira dicotômica conforme os sujeitos
pertencessem ao grupo exposto ou testemunha, constitui a variável independente. Os
resultados obtidos pelos sujeitos, no que concerne aos efeitos esperados do programa,
medidos por ocasião do pós-teste, correspondem às seis variáveis dependentes. Além
disso, os resultados do pré-teste para cada uma das seis medidas dos efeitos foram
incluídos em nossas análises a título de variáveis de controle, de modo a avaliar o efeito
líquido da formação, ou seja, o grau de aprendizagem dos sujeitos entre o período que
precedia a formação (pré-teste) e o que a seguia (pós-teste).
As interações entre, de um lado, a seleção e o hábito com o teste e, de outro lado,
a maturação e a história são vieses que podem ameaçar a validade interna de um estudo
baseado numa avaliação como a nossa (CONTANDRIOPOULOS et al., 1980). De fato, a
ausência de uma distribuição aleatória dos sujeitos no grupo exposto e no grupo
testemunha pode fazer com que os grupos apresentem características diferentes,
capazes de originar uma eventual variação entre seus respectivos resultados, acarretando
assim um viés de seleção. Ora, se tais diferenças fazem com que um grupo seja mais
sensível a um viés de hábito ao teste, de maturação ou de história que o outro grupo, a
validade da relação observada entre a exposição ao programa e seus efeitos é alterada.
Recorremos a três variáveis medindo as competências dos sujeitos em SST a fim
de tentar controlar a presença potencial de um viés de interação entre a seleção e o
hábito com o teste. Um viés de hábito com o teste aparece quando as respostas ao pós-
teste são alteradas pela utilização do instrumento de medida dos efeitos no pré-teste. No
caso deste estudo, postulamos que as três variáveis de controle permitiam avaliar as
competências adquiridas em SST antes da exposição ao programa. Era plausível que o
conhecimento das questões relativas aos efeitos esperados do programa, adquirido por
ocasião da administração do pré-teste acarretasse uma reflexão que podia modificar as
respostas dadas quando do pós-teste, e isso particularmente entre os sujeitos que
possuíam competências em SST no momento do pré-teste.
Um viés de maturação altera a validade interna dos resultados quando os sujeitos
sofrem mudanças, ligadas ao tempo entre o pré-teste e o pós-teste, capazes de alterar
seus resultados no pós-teste. Um viés de história está presente quando os sujeitos são
expostos a uma outra intervenção, que persegue objetivos similares àquela que é objeto
da pesquisa de avaliação, entre o pré-teste e o pós-teste. Nós administramos os
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questionários pós-teste no último dia de formação, ou seja, três dias após o início da
formação nos dois grupos, a fim de tentar reduzir ao mínimo a probabilidade de interação
entre eventuais vieses de seleção, maturação e história.
Nossas análises descritivas revelaram que as quatro primeiras variáveis
dependentes (o número de causas individuais e de causas ambientais plausíveis de
acidente e o número de ações individuais e organizacionais plausíveis que poderiam ter
sido implementadas para prevenir o acidente) seguiam uma distribuição de Poisson. Para
as análises finais, então, reunimos as respostas em duas categorias, ou seja, a presença
ou a ausência de respostas plausíveis. Depois submetemos nossos dados a análises de
regressão logística múltipla. Utilizamos o método de seleção de variáveis progressiva
hierárquico. A seleção das variáveis foi realizada com a ajuda do ratio dos logaritmos
naturais de verossimilhança (“likelihood ratio”). Os dois métodos seguintes nos permitiram
avaliar o grau de ajuste do modelo: 1) a comparação dos valores preditos com os valores
observados e 2) a relação de verossimilhança. Enfim, as duas últimas variáveis
dependentes foram submetidas a análises de regressão linear múltipla. Recorremos ao
método de seleção das variáveis progressiva hierárquica.
RESULTADOS 1. Características dos grupos
As taxas de resposta dos grupos exposto e testemunha são, respectivamente, de
80% e de 90%. Entretanto, após retirar os questionários que não continham o conjunto
dos dados úteis às análises apresentadas neste artigo, as taxas de resposta caíram a
65% (grupo exposto) e 70% (grupo testemunha), cada grupo composto por 42 sujeitos.
Os resultados de nossas análises descritivas indicam que 30 sujeitos do grupo
exposto e 10 sujeitos do grupo testemunha foram membros de um comitê de saúde e
segurança do trabalho. A diferença entre os grupos é estatisticamente significativa
(p=0,000). O número médio de meses de experiência num comitê era, respectivamente,
de 7,3 meses (s = 9,6) entre os sujeitos do grupo exposto ao programa e de 11,1 meses
(s = 22,1) entre os sujeitos do grupo testemunha. Essa diferença entre os grupos não é
estatisticamente significativa (p=0,456).
O número de sujeitos com experiência de delegado sindical está distribuído como
segue entre os grupos exposto e testemunha: 23 e 34. A diferença é estatisticamente
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significativa (p=0,009). O número médio de meses de experiência nessa função eleva-se
a 11,1 meses (s = 22,1) no grupo exposto e a 36,4 meses ( s = 66,0) no grupo
testemunha (p=0,021).
Além disso, as porcentagens respectivas, dos grupos exposto e testemunha, de
indivíduos que acompanharam outros programas de formação em SST que não o
programa em estudo são de 2% e de 33% para o grupo testemunha. Essa proporção
elevada no grupo testemunha não é de surpreender, visto que o conteúdo de três dos seis
programas, nos quais nós os recrutamos, se relacionavam em parte a aspectos ligados à
saúde e segurança do trabalho. Não pudemos efetuar o teste Qui-quadrado para essa
variável porque uma célula continha menos de cinco sujeitos. Os resultados das análises
bivariadas e a importância da distância observada entre os grupos quanto às formações
anteriores em SST parecem indicar a presença de um viés de seleção entre os grupos.
2. Os resultados das análises bivariadas
As análises bivariadas apresentadas nos Quadros 1 e 2 revelam a presença de
uma única diferença estatisticamente significativa entre os grupos exposto e testemunha
no que concerne os resultados no pré-teste (C3 da Figura 1). Trata-se da atribuição da
responsabilidade do empregador quanto a um acidente descrito no caso submetido aos
sujeitos. O grupo exposto atribui, inicialmente, uma responsabilidade menor ao
empregador que o grupo testemunha (5,45 ± 3 versus 6,82 ± 3,02). A presença dessa
distância significativa indica a presença de um viés de seleção para essa variável, cujo
efeito nós controlamos nas análises finais com a inclusão de resultados do pré-teste a
título de variável de controle.
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No grupo exposto, observamos diferenças estatisticamente significativas entre os
resultados do pré-teste e os do pós-teste (C1) e para cada um dos efeitos esperados do
programa. O número de causas individuais de acidente identificadas pelos sujeitos, assim
como a variação intragrupo, diminuem sensivelmente entre o pré-teste e o pós-teste,
enquanto o número de causas ambientais aumenta. Observamos o mesmo fenômeno
quanto à medida de aplicação dos conhecimentos concernentes às ações individuais e
organizacionais que podem ser acionadas com antecedência para prevenir os acidentes
de trabalho. Enfim, a porcentagem de responsabilidade atribuída à trabalhadora diminui
de forma importante, enquanto a atribuída ao empregador aumenta.
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Entre as testemunhas, observamos que as médias pré-teste e pós-teste (C2) de
quatro varáveis são objeto de diferenças estatísticas significativas. O número médio de
causas ambientais ( x pré=0,944; x pós=0,679) e de ações organizacionais ( x pré=1,00;
x pós=0,714) diminui entre o pré-teste e o pós-teste, o que corresponde ao inverso
daquilo que o programa de formação visa atingir. Além disso, a porcentagem de
responsabilidade que as testemunhas atribuem ao empregador aumenta ( x pré=6,82;
x pós=7,59) enquanto aquela atribuída à trabalhadora diminui ( x pré=4,80; x pós=3,22).
A diferença entre os resultados do pré-teste e do pós-teste observada no grupo
testemunha pode indicar a presença de um viés de hábito no teste quanto a essas
variáveis.
Enfim, comparamos os resultados pós-teste dos grupos exposto e testemunha
(C4). Nossas análises revelam a presença de diferenças significativas entre os grupos e
isso no caso de cada uma das variáveis dependentes. O número de causas individuais de
acidentes é inferior, enquanto que o número de causas organizacionais é superior no
grupo exposto ao programa. Observamos o mesmo fenômeno quanto ao número de
ações individuais e organizacionais visando prevenir o acidente. Enfim, a porcentagem de
responsabilidade atribuída ao empregador é superior no grupo exposto, enquanto que
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aquela atribuía à trabalhadora é menor. Esses resultados estão de acordo com a teoria
subjacente ao programa.
3. Os resultados das análises multivariadas
Somente as análises multivariadas permitem verificar se as mudanças
observadas no grupo exposto podem ser atribuídas ao programa de formação. Elas
também nos permitem avaliar a importância relativa do efeito do programa sobre essas
mudanças. Reunimos os resultados de nossas análises de regressão logística no Quadro
3, enquanto aqueles obtidos com a ajuda de análises de regressão linear múltipla
aparecem no Quadro 4.
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A exposição ao programa de formação é a única variável associada de forma
estatisticamente significativa à probabilidade de um sujeito atribuir uma causa individual
ao acidente por ocasião do pós-teste. Nossos resultados indicam que o programa reduz
essa probabilidade, uma vez que a ratio das cotas é de 0,141 e os sujeitos que
participaram do programa de formação em estudo têm uma probabilidade 85,9% inferior à
dos sujeitos do grupo testemunha de identificar uma causa individual de acidente após a
formação. Duas variáveis permitem explicar a probabilidade de um sujeito referir-se a uma
causa ambiental. Trata-se de resultados no pré-teste e da exposição ao programa. Uma
vez controlado o efeito dos resultados do pré-teste, essa probabilidade é quatro vezes
maior para o grupo que participou do programa do que para o grupo testemunha. Em
suma, parece que o programa de formação atinge um de seus objetivos, ou seja,
aumentar a compreensão do papel dos fatores ambientais na ocorrência de acidentes de
trabalho.
Nenhuma variável permite explicar os resultados obtidos no pós-teste
concernentes à probabilidade de identificar ações individuais de prevenção de acidente
exposta em nosso caso. Em contrapartida, os resultados do pré-teste e a exposição ao
programa estão associados, de maneira estatisticamente significativa, à probabilidade de
identificar ações organizacionais. O programa de formação aumenta quatorze vezes a
probabilidade de que os sujeitos identifiquem pelo menos uma causa organizacional,
depois que o efeito dos resultados do pré-teste foi controlado.
Nossos dois modelos de regressão múltipla linear respeitam essas premissas, tal
como revelaram as análises residuais e as análises de correlação entre as variáveis
independentes e de controle. O coeficiente de correlação mais elevado era de 0,415
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(p=0,000); ele se referia ao número de meses de experiência em SST e antiguidade na
função de delegado sindical.
Três variáveis estão positivamente associadas, e de maneira estatisticamente
significativa, à porcentagem de responsabilidade atribuída ao empregador. Elas explicam
30,4% da variação dessa variável. A exposição ao programa é a variável que parece ter o
efeito mais importante, seguida dos resultados do pré-teste, depois da presença de uma
formação. Enfim, duas variáveis foram retidas para explicar a variação da porcentagem de
responsabilidade atribuída ao trabalhador. Elas explicam 17,8% dela. A exposição ao
programa tem um efeito negativo sobre nossa variável dependente, enquanto que os
resultados do pré-teste estão associados a ele de maneira positiva. Esses resultados
parecem indicar que o programa de formação favorece a aquisição de uma atribuição
externa aos acidentes.
DISCUSSÃO
Os resultados que apresentamos no contexto do presente artigo fazem parte de
uma pesquisa de avaliação mais ampla, que tinha como objetivo geral verificar se um
programa de formação de base em saúde e segurança do trabalho, oferecido por uma
Central sindical a seus membros, produzia os efeitos esperados. Trata-se de um tipo de
pesquisa de avaliação, ou seja, uma análise dos resultados segundo o quadro conceitual
de Contandriopoulos et al. (1992). Empreendemos esta pesquisa após ter constatado que
existia pouca distância entre o programa prescrito e aquele que fora implantado. Para
analisar os resultados do programa de formação, recorremos a uma estratégia de
pesquisa experimental já evocada e, mais particularmente, a uma estimativa pré-teste e
pós-teste com grupo testemunha não equivalente, visto que era impossível distribuir
aleatoriamente os sujeitos no grupo exposto ao programa e no grupo testemunha, uma
vez que a implementação do programa e o recrutamento dos participantes estavam sob
controle da Central, de suas instâncias regionais e dos sindicatos que a compõem. Em
tais circunstâncias, a escolha de uma tal estimativa é ótima, visto que reduz ao mínimo o
número de vieses capazes de alterar a validade interna dos resultados
(CONTRANDRIOPOULOS et al., 1980).
Tentamos prevenir a ocorrência de um viés de seleção ao constituir nosso grupo
testemunha com sujeitos cujas características podiam ser similares às dos sujeitos do
grupo exposto ao programa de formação. Visto que a experiência sindical era uma
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variável importante, recrutamos os sujeitos do grupo testemunha em programas de
formação destinados a membros ativos em seus respectivos sindicatos. Verificamos,
igualmente, se existiam diferenças entre nossos grupos com a ajuda de nossas variáveis
de controle. Nossos resultados indicaram que os sujeitos do grupo exposto comportavam
três vezes mais membros de comitês de saúde e segurança do trabalho, mas que a
duração de sua experiência na matéria não era estatisticamente diferente daquela do
grupo testemunha. Por seu lado, as testemunhas comportavam mais membros que
atuavam como delegado sindical (uma função de alcance mais geral) e por um tempo três
vezes maior. Os sujeitos do grupo testemunha tinham também acompanhado programas
de formação em diferentes domínios relacionados à saúde e à segurança do trabalho.
Entretanto, nossas análises bivariadas relativas à comparação dos resultados pré-teste
dos grupos exposto e testemunha parecem indicar que a validade de um único resultado
corria o risco de estar ameaçada por um viés de seleção. Trata-se da responsabilidade de
acidente atribuída por nossos sujeitos ao empregador, a qual era, logo de início, superior
no grupo testemunha. Os efeitos potenciais de um viés de seleção foram controlados
quando de nossas análises multivariadas, pela inclusão dos resultados do pré-teste dos
grupos exposto e testemunha a título de variáveis de controle e a comparação dos
resultados pós-teste entre esses grupos. A inclusão de nossas variáveis de controle
relativas à experiência em um comitê de SST e como delegado sindical, assim como a
presença de formação anterior em SST, nas análises de regressão, permitiram-nos
controlar o viés de interação potencial entre a seleção e o hábito com o teste. Uma vez
que o tempo decorrido entre o pré-teste e o pós-teste dos grupos exposto e testemunha
era idêntico e diminuto, é muito pouco provável que um viés de interação entre a seleção
e a maturação tenha podido alterar a validade interna de nosso estudo. Entretanto, em
razão das diferenças existentes entre nossos grupos, no que se refere ao número de
trabalhadores membros de comitês de SST, é possível que um viés de interação entre a
seleção e a história possa ter sido produzido: esse viés estaria ligado, no nosso caso, à
influência, no grupo exposto, de eventos relativos à SST exteriores ao programa de
formação, como um acidente de trabalho importante envolvendo um dos colegas, que
teriam ocorrido durante a formação e que teriam podido influenciar as respostas dos
sujeitos por ocasião do pós-teste. Entretanto, acreditamos que o risco de um tal viés é
mínimo, pois os sujeitos não retornavam ao ambiente de trabalho entre o pré-teste e o
pós-teste.
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A utilização dos resultados do pré-teste a título de variável de controle permitiu-nos
distinguir os efeitos relativos do programa daquelas competências adquiridas pelos
sujeitos antes da exposição ao programa no que concerne aos efeitos esperados do
programa. Nossas análises bivariadas revelam que o grupo exposto apresenta um maior
número de mudanças estatisticamente significativas entre as medidas do pré-teste e as
do pós-teste. Todas as diferenças são estatisticamente significativas e vão no sentido dos
objetivos da formação, segundo os quais os participantes devem compreender que os
acidentes estão ligados a um número importante de fatores, que eles devem atribuí-los a
causas externas mais do que às internas e que devem atribuir a responsabilidade sobre
eles ao empregador, mais do que à trabalhadora vítima do acidente.
Entre as testemunhas, duas questões não sofreram alteração entre o pré-teste e o
pó-teste: as testemunhas atribuem o mesmo peso às causas individuais dos acidentes e
preconizam o mesmo número de ações individuais para prevenir sua ocorrência. Portanto,
não parece haver aí viés de hábito ao teste para essas variáveis. Além disso, no pós-
teste, as testemunhas atribuem maior responsabilidade ao empregador e menor à
trabalhadora no que se refere ao acidente. Essa mudança, que vai no sentido desejado
pelo programa de formação, bem parece resultar tão-somente de um efeito de hábito com
o teste. Tudo acontece como se, refletindo de novo sobre as questões propostas, a mira
fosse reajustada. Nós não podemos, além disso, eliminar a possibilidade de que as
testemunhas tenham discutido entre si sobre essas questões entre as duas mensurações,
já que conviviam no contexto do programa de formação. Entretanto, tais considerações
não levam em conta outras mudanças observadas nas respostas dos sujeitos do grupo
testemunha. No pós-teste, estes invocam menos causas ambientais para os acidentes e
propõem menos ações organizacionais que no pré-teste. Esse fenômeno é paradoxal:
poder-se-ia esperar que essas respostas não mudassem e o fato de que sua evolução se
faça no sentido contrário aos efeitos esperados da formação resiste à análise.
A comparação das medidas pós-teste, dos grupos exposto e testemunha, se
traduz em diferenças significativas, que vão no sentido dos efeitos esperados do
programa de formação. Entretanto, as mudanças parecem não resultar das mesmas
causas.
No caso de atribuição dos acidentes a causas individuais, os resultados das
testemunhas não mudam entre o pré e o pós-teste, enquanto que esses casos diminuem
conforme as expectativas. Nas análises multivariadas, só a exposição ao programa de
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formação está associada a esse efeito esperado. Parece, pois, que o programa atinge
plenamente seu objetivo.
A atribuição de acidentes a causas ambientais é significativamente mais
importante em pós-teste no grupo exposto que no grupo testemunha. Poder-se-ia crer que
é a mudança paradoxal do grupo testemunha que induz as diferenças entre o pré e o pós-
teste desse grupo. Ora, a comparação pré-pós no grupo exposto indica que sua atribuição
aumentou significativamente, o que parece indicar um efeito da formação. Essa
interpretação é modulada pelos resultados das análises multivariadas, conforme as quais
os resultados do pré-teste e a exposição ao programa estão associados à probabilidade
de atribuir o acidente a causas ambientais.
A recomendação de ações individuais em matéria de prevenção não muda no
grupo testemunha, enquanto diminui no grupo exposto, de acordo com os objetivos do
programa. No pós-teste, o grupo exposto ainda se diferencia significativamente das
testemunhas. Aqui se pode acreditar na realização dos objetivos do programa. Entretanto,
paradoxalmente, as análises multivariadas não enfatizam nenhum fator significativo que
possa explicar as mudanças.
É um pouco diferente quanto às ações organizacionais preconizadas. No pós-
teste, o grupo exposto recorre a elas significativamente mais que as testemunhas. Isso
poderia resultar de uma outra mudança paradoxal entre as testemunhas, que preconizam
menos essas ações em pós do que em pré. Mas há, ao mesmo tempo, um aumento
significativo dessa escolha entre os expostos, e as análises multivariadas colocam em
primeiro plano o efeito da formação, o que corrobora uma interpretação favorável à
realização dos objetivos da formação.
A apreciação da responsabilidade dos empregadores representa a única diferença
significativa entre testemunhas e expostos no pré-teste, as testemunhas considerando-a
mais importante. Essas testemunhas, no pós-teste, vão aumentar de forma significativa
essa atribuição. Em tais circunstâncias, o fato de os expostos atribuírem uma
responsabilidade maior aos empregadores do que as testemunhas, por ocasião do pós-
teste, é notável. A variabilidade, segundo as análises multivariadas, é atribuível,
sobretudo, ao programa, mas também aos resultados do pré-teste e ao conjunto das
outras formações recebidas.
Enfim, a atribuição da responsabilidade à trabalhadora é significativamente mais
fraca no grupo exposto do que no grupo testemunha no pós-teste, tal como esperado. No
entanto, o grupo testemunha atenuou a parte de responsabilidade da trabalhadora entre o
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pré-teste e o pós-teste, mas o grupo exposto fez isso de forma marcante. Aqui ainda, as
análises multivariadas confirmam que a variação está ligada ao programa de formação,
mas que ela é também marcada pelos resultados do pré-teste.
Os resultados das análises multivariadas indicam que o programa de formação em
estudo está associado, de modo estatisticamente significativo, a cinco dos seis efeitos
esperados. O programa acarretaria, tal como previsto, uma melhoria da compreensão dos
fatores que contribuem para os acidentes, tal como desejado pela Central sindical. Essa
melhoria se traduz em uma menor probabilidade, entre os sujeitos do grupo exposto ao
programa, de atribuir causas individuais ao acidente descrito em nosso instrumento de
medida e uma maior probabilidade de que esses sujeitos o atribuam a causas ambientais.
O programa favoreceria, igualmente, a aplicação dos conhecimentos ensinados pela
Central na prevenção de acidentes. Essa aprendizagem se traduz em uma maior
probabilidade, entre os sujeitos do grupo exposto, de identificar uma ação organizacional
capaz de prevenir o acidente descrito. Enfim, o programa de formação aumenta a
porcentagem de atribuição externa do acidente e reduz a porcentagem de atribuição
interna.
A existência de uma formação anterior em SST está associada à porcentagem de
responsabilidade atribuída ao empregador. Além disso, esse efeito esperado do programa
era o único no qual nós havíamos observado, por ocasião das análises bivariadas, uma
diferença significativa entre os resultados do pré-teste dos grupos exposto ao programa e
testemunha. Esses resultados parecem indicar a presença de um viés de hábito ao teste
nos sujeitos que já haviam participado de uma formação em SST. A inclusão dessa
variável em nossas análises permitiu-nos não somente estimar seu efeito, mas também
proceder de forma que a avaliação do efeito do programa de formação não fosse alterada
por sua presença.
Além disso, nossas análises não nos permitiram verificar a existência de relação
entre o programa e a probabilidade de que um sujeito identifique as ações individuais
capazes de prevenir a ocorrência do acidente descrito em nosso instrumento de medida.
Nenhuma variável de controle está associada a essa variável dependente. É plausível que
a falta de relação estatisticamente significativa entre o programa e esse efeito esperado
esteja ligado a uma força estatisticamente insuficiente, visto que a variação entre os
resultados pré-teste e pós-teste era pouca.
Nós tentamos reduzir ao mínimo os vieses que pudessem afetar a validade
externa do estudo recrutando os sujeitos nos quatro grupos. Os programas dos quais eles
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participaram foram ministrados por formadores diferentes. É provável que nossos
resultados possam ser extrapolados para o conjunto dos programas de base em saúde e
segurança do trabalho pelos quais a Central é responsável e pelas seguintes razões: 1)
nossas taxas de resposta foram elevadas (65% e 70%), e 2) no contexto de um estudo
precedente, observamos pouca variação entre o programa prescrito e o que tinha sido
implantado. Essa variação relacionava-se tão-somente ao tempo consagrado às
atividades relacionadas aos temas abordados no contexto do presente artigo, uma vez
que a duração observada das atividades era superior à que era prescrita no caderno do
formador.
Infelizmente, não podemos comparar nossos resultados com os de outros estudos,
pois é a primeira pesquisa de avaliação pertinente a um programa de formação sindical
cuja teoria subjacente foi descrita. Uma outra pesquisa de avaliação verificou se existia
uma relação entre um programa de formação em saúde e segurança do trabalho e seus
efeitos esperados (MONTREUIL et al., 1997). Considerando a variação existente entre a
teoria subjacente ao programa que estudamos e a que foi utilizada por esta equipe de
pesquisa, não podemos comparar os resultados.
Nossos resultados só poderiam ser extrapolados para programas de formação que
recorressem a um processo similar ao do programa em estudo. Sob o impulso de Freire
(1983) e de Blondin (1980), a teoria subjacente ao programa implica que os formadores
peçam constantemente aos participantes, por métodos ativos e participativos, que
exprimam seus conhecimentos e suas percepções, de um lado, sobre as condições de
trabalho e sobre sua saúde, de outro lado, sobre os comportamentos das pessoas
envolvidas em problemáticas de saúde e segurança do trabalho (colegas de trabalho,
empregador, inspetores, etc.). Eles devem, igualmente, pedir aos participantes que
expressem o que pensam das relações entre seu trabalho e sua saúde. O formador deve
interagir com os participantes, para reforçar ou modificar as opiniões que eles expõem. Os
resultados de nosso estudo descritivo de implantação do programa revelaram que as
atividades de formação utilizadas no processo do programa são de quatro tipos: 1)
exposições teóricas ministradas pelo formador (cerca de 35% do curso); 2) plenárias no
decorrer das quais o formador pede dados aos participantes (cerca de 5% do curso); 3)
discussões em subgrupos de casos descritos no material pedagógico (cerca de 40% do
curso) e 4) plenárias durante as quais um representante de cada um dos subgrupos
apresenta os resultados das discussões (cerca de 20% do curso). Nós observamos que o
formador desempenhava um papel de animação durante as plenárias: ele formulava
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questões e assinalava sua aprovação ou desaprovação ante as respostas dadas pelos
participantes. A análise do registro da sessão que registramos em fita permitiu-nos
constatar que os formadores confrontavam os participantes quando estes expressavam
opiniões diferentes dos efeitos esperados do programa. Em geral, a interação finalizava
quando o participante adotava a opinião do formador. Parece, pois, haver aí uma
concordância com a teoria educativa à qual a Central sindical se refere (FREIRE, 1983;
BLONDIN, 1980). O processo do programa que acabamos de descrever pode acarretar
um viés capaz de afetar a validade externa de nosso estudo. Trata-se do desejo de
agradar o avaliador. De fato, considerando os métodos de confronto utilizados pelos
formadores, é provável que os participantes conheçam os efeitos esperados do programa
e que fiquem tentados a se conformar aos objetivos de formação quando completam o
questionário pós-teste. Somente observações das ações sindicais que empreendem
quando de sua volta ao seu meio de trabalho permitiriam verificar o valor preditivo das
medidas em curto prazo dos efeitos da formação que efetuamos.
CONCLUSÃO
Nosso estudo permitiu verificar a presença de relações entre um programa de
formação de base em saúde e segurança do trabalho dispensado por uma Central
sindical a seus membros, e cinco dos efeitos esperados. Estes incidiam, unicamente,
sobre um tema do programa, ou seja, os acidentes de trabalho. Segundo a teoria
subjacente ao programa, a aprendizagem que ele visa produzir está diretamente
vinculada à ação sindical que a central implementa. Não se trata, no contexto do
programa, de formar especialistas de saúde e de segurança do trabalho, com
competências técnicas na matéria, mas, sobretudo, de indivíduos que mobilizarão os
trabalhadores de suas empresas de modo a estabelecer relações de força com os
dirigentes a fim de que estes se envolvam em atividades de eliminação das fontes de
risco. Para isso, a Central acredita ser necessário modificar, antes de tudo, as avaliações
dos acidentes por parte de seus membros, avaliações internas que podem levar a uma
culpabilização dos trabalhadores vítimas de acidentes, o que atrapalharia suas
motivações de reclamar a implantação de medidas de eliminação das fontes de acidentes
de trabalho na empresa.
Nossos resultados parecem indicar que esse programa produz a maioria dos
efeitos esperados relativos ao tema acidentes de trabalho. Conseqüentemente, não
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recomendamos à Central sua modificação. Além disso, nosso estudo permitiu
desenvolver um instrumento de medida que poderia ser utilizado pela Central não
somente para avaliar os efeitos de seu programa, mas também para selecionar os
membros dos sindicatos que dele poderiam se beneficiar.
NOTAS
* Originalmente publicado em francês na revista Relations Industrielles, 2001, v. 56. n. 3, pp. 516-542 (e-mail: [email protected] - site web: http://www.riir.ulaval.ca). A INTERFACEHS agradece à diretora Esther Déom pelos direito de publicação deste artigo.
REFERÊNCIAS
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internationale d’action communautaire, v. 3, n. 43, pp. 73-80, 1980
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CONTANDRIOPOULOS, A.-P.; CHAMPAGNE, F.; DENIS, J.-L. e PINEAULT, R.
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RESÍDUOS DE SERVIÇO DE SAÚDE NO ESTADO DO AMAZONAS: DESAFIOS PARA IMPLANTAR SUA GESTÃO
Maria Elizete de A. Araújo1; Tatiana Schor2
1 Farmacêutica, Mestre em Meio Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, Universidade Federal do
Amazonas 2 Profa. Dra., Departamento de Geografia, Universidade Federal do Amazonas
RESUMO Os problemas de gestão dos resíduos de serviço de saúde no Amazonas são um fato, e a
necessidade de resolvê-los também. Com o crescimento populacional expansivo da
cidade também aumentaram as demandas hospitalares e conseqüentemente os resíduos
de serviço de saúde. Aliado a este fato, o município não possui uma política púbica eficaz
para minimizar os problemas ambientais decorrentes do descarte inadequado desses
resíduos, haja vista que o município não dispõe de aterro sanitário licenciado, nem outra
forma para tratamento desse tipo de resíduo. O presente artigo tem por finalidade
contribuir para o debate sobre a necessidade de implantar políticas públicas eficazes para
a gestão de resíduos de serviço de saúde no Amazonas.
Palavras-chave: gestão de resíduos de serviços de saúde; resíduo hospitalar; destino
final.
1
Resíduos de Serviço de Saúde no Estado do Amazonas: Desafios para implantar sua Gestão
Maria Elizete de A. Araújo; Tatiana Schor INTERFACEHS
Em um país e regiões de extensão territorial e complexidade física como as do
Brasil, em especial no estado do Amazonas, compreender a configuração, o sentido da
expansão urbana é uma necessidade que se impõe de forma multidisciplinar, devendo ser
um objetivo básico do planejamento territorial nas diversas esferas de governo.
No Brasil, a dinâmica de urbanização associada a uma crise na gestão pública tem
como resultado uma explicitação das carências sociais e dos serviços públicos e uma
dificuldade concreta de gestão administrativa. Isto tem provocado um crescente grau de
deterioração ambiental, que se manifesta na deterioração dos recursos hídricos e nas
dificuldades de garantir a qualidade dos serviços urbanos básicos associados ao
saneamento ambiental (JACOBI, 2005).
O estado do Amazonas não foge à regra; por ser o maior estado brasileiro em
extensão territorial, caracterizado pela sua hidrografia complexa que implica uma rede
urbana diferenciada, favorece ainda mais o descumprimento de normalizações,
fiscalização e implantação de sistemas eficazes para as questões ambientais. Como
fronteira da expansão do capital apresenta ainda uma sociedade civil não organizada,
onde pouco se questiona em relação à implantação de políticas públicas que satisfaçam
as necessidades locais.
De acordo com Scherer e Oliveira (2006), na apresentação do livro Amazônia:
políticas públicas e diversidade cultural, as políticas públicas para a Amazônia não podem
estar dissociadas das práticas sociais e dos conflitos existentes entre os vários sujeitos
produtores do espaço, dos lugares construídos e vividos.
Conforme esses mesmos autores, a Amazônia vive inúmeras contradições: planos
de governos desenraizados da história e dos lugares, do espaço e do tempo, expressos
no acesso às mais avançadas tecnologias, que são símbolos da modernidade, e que
convivem ao mesmo tempo com a grande maioria da população sem acesso às
necessidades sociais básicas, ou seja, tratamento de esgotos e destino adequado dos
resíduos sólidos urbanos.
A cidade de Manaus cresce silenciosamente em meio à grande floresta, e do
‘porto de lenha’ referenciado nas canções locais, nasce uma metrópole. As políticas de
desenvolvimento impõem novos padrões urbanos para a cidade, com elas surgem as
migrações de pessoas, aglomerando-se em bairros denominados ‘mutirões’ ou ‘invasões’,
que em pouco tempo recebem um nome religioso ou de um político local. Ali elas
convivem com um baixo índice de qualidade de vida, quase sempre condenadas à miséria
absoluta. O espaço disponível para muitos, como forma de sobrevivência, são as ruas da
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cidade e, para outros, os lixões, onde estão desprotegidos em meio aos subprodutos da
civilização, expostos à contaminação por agentes químicos e microbiológicos.
Os problemas da rede urbana de Manaus são muitos, portanto, iremos nos deter
somente num deles: os subprodutos dos processos de atendimento na área de saúde,
denominados resíduos de serviços de saúde, parte de uma fração dos resíduos urbanos
gerados nas cidades brasileiras.
Nem mesmo é necessária uma análise criteriosa para percebemos que os
estabelecimentos de saúde são empresas complexas, cuja administração central está
com a incumbência de dividir com seus colaboradores uma série de atividades, entre as
quais podemos destacar o atendimento dos clientes, produção de serviços, aquisição e
gerenciamento de tecnologias, aquisição e controle de matéria prima e insumos,
administração de recursos humanos e gerenciamento dos subprodutos gerados no
processo de atendimento.
No entanto, para abordar o tema é necessário contextualizar os estabelecimentos
de saúde, cujo objetivo fundamental é a recuperação da saúde de seus clientes. Para
proporcionar um atendimento de qualidade, são necessários investimentos científicos e
tecnológicos e mão-de-obra especializada.
Durante o processo de atendimento, água, energia elétrica, insumos e diferentes
materiais são utilizados, gerando efluentes que precisam ser tratados e uma grande
variedade de resíduos sólidos que necessitam de gerenciamento adequado, pois
constituem uma fonte importante de contaminação para o meio ambiente (SISINNO,
2005).
Além disso, os estabelecimentos de saúde fornecem parcela de emissões
atmosféricas provenientes de processos de trabalho, como: gases medicinais, autoclaves
e outros processos físicos de esterilização.
Os estabelecimentos de saúde também são fontes de pesquisas clínicas, geram
conhecimento científico e fornecem educação continuada para clientes e funcionários.
Sendo assim, devem ser visualizados e gerenciados como uma empresa, com seus
direitos e obrigações.
Neste contexto, abordaremos as questões ambientais, tendo como referência os
resíduos de serviço de saúde gerados durante o atendimento aos clientes, analisando-os
sob o ponto de vista da interdisciplinaridade, para traçar um elo entre a rede urbana local
e as políticas públicas para o seu gerenciamento na fase exterior ao estabelecimento de
saúde.
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UMA VISÃO INTERDISCIPLINAR
De acordo com Leff (2001), o ambiente é integrado de processos tanto de ordem
física como social, definidos pela racionalidade econômica dominante e dos quais fazem
parte a superexploração da natureza, a degradação sócio-ambiental, a perda da
diversidade biológica e cultural, a pobreza associada à destruição do patrimônio, de
recursos dos povos a dissolução de suas identidades étnicas, a distribuição desigual dos
custos ecológicos do crescimento e a deterioração da qualidade de vida.
O autor aborda as variáveis que compõe o ambiente, e o único ser capaz de
promover todas essas desordens físicas e sociais é o homem, sendo este também o
responsável pelo restabelecimento da ordem. Mas para que isso aconteça não basta
somente conhecer os paradigmas evidenciados pela diferentes ideologias, é necessário
força política, mudança de pensamento de toda uma nação, e saber reconstruir,
recomeçar, usar de estratégias metodológicas para a produção de conhecimento, a
reorientação da pesquisa e o desenvolvimento tecnológico.
A partir de tal ponto de vista a interdisciplinaridade entra como conciliadora do
processo, promovendo a ligação entre os diversos saberes ou restabelecendo uma
corrente de conhecimento produtivo. Ser interdisciplinar é saber dialogar com todas as
disciplinas, é poder trabalhar com todas em uma só atividade. Assim caracteriza-se pela
intensidade das trocas entre os especialistas e pela integração dos diversos
conhecimentos aplicados num mesmo projeto de pesquisa e de ação (LEFF, 2003).
Ser interdisciplinar é acreditar na potencialidade de cada um de nós, sem
subestimar a área de conhecimento do outro, o artístico, poético, filosófico, químico, ou
seja, todos esses conhecimentos voltados para o mesmo objetivo. Ainda considerando
Leff (2003), a interdisciplinaridade aplicada ao campo ambiental levou a formulações
gerais que orientam uma visão holística e integradora do processo de desenvolvimento,
mas deixou de fora a especificidade dos processos materiais e simbólicos que o
constituem.
Leff (2001) não afirma que todos os paradigmas científicos devem ser
questionados pelas diferentes perspectivas ideológicas dentro das quais se coloca a
problemática ambiental, ou que os recursos provenientes dos conhecimentos das
especialidades existentes não possam ser aplicados à solução de problemas ambientais
pontuais: análise de toxicidade, tratamento de águas, reciclagem de resíduos, tecnologias
‘limpas’ e de economia de energia.
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No entanto, é necessário um novo estilo de vida, com mudanças nos padrões de
consumo e, portanto, nos padrões de produção e geração de resíduos. Sem isto, o futuro
se projeta como uma grande interrogação (FERREIRA, 2006). Tais mudanças se impõem
fortemente para a humanidade, à medida que se observam cada vez mais os problemas
ambientais: fúria da natureza traduzida em aquecimento global, descongelamento de
geleiras, com grandes enchentes, tornados, furacões.
De acordo com Harvey (2004), estas questões estão longe de ser simples, pois a
definição de ‘problemas ambientais’ com freqüência envolve um viés particular: ignoram-
se de modo geral os que afetam os pobres, os marginalizados e as classes trabalhadoras
(por exemplo, a segurança e a saúde ocupacional), ao passo que se enfatizam os
problemas ambientais associados com os ricos. Os impactos ambientais também estão
relacionados a um viés social (discriminações de classe, de raça e de gênero se
evidenciam, por exemplo, na escolha dos locais para depósito de resíduos).
Isso implica a existência de múltiplas contradições a serem trabalhadas quando
contemplamos nossas responsabilidades perante a natureza, de um lado, e a natureza
humana, do outro (HARVEY, 2004). Pois os riscos e a incerteza podem atingir a todos e
qualquer lugar, inclusive aqueles em que ficam os ricos e poderosos.
De acordo com Harvey (2004), os seres humanos costumam produzir uma
hierarquia acomodada de escalas espaciais para organizar suas atividades e
compreender seu mundo.
Talvez a solução para a problemática ambiental nos centros urbanos seja mais
difícil para resolver porque a natureza do ser humano é de inquietação e constantes
descobertas e está associado ao constante desenvolvimento tecnológico, ao capital, à
geração de poder e riqueza, o que acontece de forma isolada da natureza.
Analisando Leff (2001), devemos abordar as questões dos resíduos de serviços de
saúde como questões amplas, que envolvam posicionamentos, condutas, pesquisa,
mudanças de paradigmas, gestão pública bem organizada, regulamentação e
fiscalização, perpassando diversas escalas de análise.
Considerando tais aspectos, procuraremos abordar a necessidade de
gerenciamento intra-hospitalar e políticas públicas para a destinação final dos resíduos de
serviços de saúde, considerando o crescimento populacional da cidade e com isso
aumento da demanda hospitalar, e maior produção de resíduos, e também referenciado
estas questões com a rede fluvial da cidade de Manaus.
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UM ENFOQUE NOS RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS E A REDE FLUVIAL EM MANAUS
Hoje se discute muito sobre sustentabilidade na Amazônia, sobretudo
centralizando discussões no uso ecologicamente correto dos recursos florestais e na
própria gestão dos recursos ambientais. De acordo com Scherer (2004), os ambientalistas
estão minimizando ou mesmo esquecendo a sustentabilidade cultural e social e, o mais
grave, as cidades: raramente há debates sobre a degradação ambiental urbana
relacionada com as desigualdades sociais.
A cidade é local onde vive o maior numero de pessoas, é o lugar da urbanização
acelerada e desigual. É o lócus da concentração do capital e da reprodução da força de
trabalho, o lugar onde as pessoas sofrem os problemas urbanos, seja de falta de água e
esgoto, poluição hídrica, poluição atmosférica, resíduos sólidos, resíduos industriais
(SCHERER, 2004).
Em Manaus, o marco histórico para as transformações da cidade se deu com a
implantação do modelo Zona Franca de Manaus no ano de 1967, quando a população
local era em torno de 312 mil habitantes. No ano de 2005, ela chegou a 1.644.690 (IBGE,
2006). Observa-se no gráfico o grau de significância do aumento populacional, que tem
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promovido transformações no cenário urbano. A nova realidade capitalista transforma a
cidade de maneira significante; a chegada do processo de industrialização afeta o modo
de vida dos amazonenses, o caboclo e os migrantes de outros estados do país passam a
trabalhar nas linhas de montagem em jornada diária, estressante e cansativa; assim tem
sido ao longo dos quarenta anos de Zona Franca de Manaus. O processo migratório
desencadeado pelo Pólo Industrial de Manaus (PIM) provocou a ocupação abrupta e
desordenada da cidade, que já avança em direção à floresta (SCHERER, 2004).
A rede fluvial, sobretudo, tem sido afetada, do ruído manso dos motores de
passageiros da década de 70, aos roncos acelerados das grandes embarcações por onde
chegam os frutos do progresso. Via de transporte dos componentes para sustentação do
PIM, bem como de escoamento de seus produtos para os grandes centros, a malha fluvial
não somente determina a economia regional, mas também tem sido alvo do processo
migratório de ribeirinhos, povos que moram às margens dos rios da Amazônia, os quais
migram para as cidades em busca de qualidade de vida. Como não conseguem se
estabelecer de forma digna por falta de condições financeiras, somam-se aos outros
migrantes pobres do país que chegam diariamente a Manaus à procura de melhoria de
vida, se apropriam de frações do solo próximo ou mesmo dentro dos igarapés e
constroem suas casa em forma de ‘palafitas’ ou ‘barracos’ sem nenhum tipo de infra-
estrutura, despejando seus dejetos no mesmo local em que residem.
Também na rede fluvial, a principal via de transporte da região como já
mencionados, são despejados pelos barcos que trafegam estes rios toneladas de dejetos
humanos, haja vista a inexistência de sistemas de tratamento dos efluentes na maioria
destes transportes, assim como também resíduos de pacientes provenientes de barcos ou
navios hospitalares, que circulam nos rios, igarapés e lagos para atendimento da
população ribeirinha.
Muito distante dessa realidade, mas muito parecida em termos de uso dos
igarapés para destinar os resíduos, quando Manaus era denominada de Vila da Barra,
passando depois à Cidade da Barra na época do Império. A Vila não possuía nem
hospitais nem esgotos públicos, somente após 1870 é que foi encarada a possibilidade de
implantação dos serviços (MONTEIRO, 1997). Segundo a descrição da pesquisa desse
autor, o destino dado ao lixo das residências assim como o lixo público era mesmo os
igarapés: “Por esse locais convergiam os trigueiros com seus barris inconfundíveis
locupletados de matéria fecal coletada a alva das portas das moradas das casas dos
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dignos cidadãos da póvoa”. O tigre era o nome dado ao barril de transporte de
excrementos humanos e o tigreiro era o transportador dos excrementos.
Segundo Monteiro (1997), um dos locais utilizado na época para o descarte de
todas essas imundices era o que hoje se denomina Igarapé do Educandos que continua
até hoje como local de descarte de resíduos urbanos (ver Figura 1).
A cidade de Manaus é entrecortada por inúmeros igarapés que atingem a maioria
dos bairros das diferentes zonas da cidade (OLIVEIRA, 2003). Um dos principais é o
Bairro dos Educandos localizado na zona sul da cidade, entre o Pólo Industrial e o centro
da cidade, com uma densidade demográfica de 11.651 hab/km2 (ATLAS DE MANAUS,
2000). No mesmo bairro se encontra a Bacia do Educando com seus principais
mananciais, os igarapés de Educandos, Mestre Chico e Quarenta, os quais deságuam no
Rio Negro, que circunda a cidade de Manaus.
Hoje os igarapés citados estão poluídos com uma densa camada de resíduos
sólidos provenientes dos moradores do seu entorno e demais pessoas que costumam
despejar seus dejetos em corpos d’água. Apesar de se localizar numa área central, a
coleta de resíduos neste bairro atinge somente 86,6% dos moradores (ATLAS DE
MANAUS, 2000).
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Além desses igarapés outros também já estão poluídos, principalmente os que
estão mais próximos ao aterro controlado, como é o caso do Igarapé do Matrixã
(SANTOS, 2001). Análises realizadas no Igarapé do Matrixã próximo ao aterro controlado
de Manaus, apresentam níveis muito baixos de concentração de O2 dissolvido, e elevado
valor de DBO, o que determina que a água encontra-se poluída, nociva a vida de
organismos superiores, como por exemplo, os peixes (SANTOS, 2001).
Nem mesmo com o aumento constante da população têm sido implantadas
políticas públicas adequadas para conter ou minimizar a ação degradadora do meio
ambiente provocada pela ausência de saneamento básico, regularizar o destino dos
resíduos e principalmente conter as invasões que crescem na cidade, sobretudo às
margens de igarapés.
Portanto, considera-se a importante estudar a problemática dos resíduos de
serviços de saúde no Amazonas especialmente em Manaus e aplicar métodos adequados
de segregação na fase intra-hospitalar e extra-hospitalar por ocasião do seu destino final,
que possam reduzir a contaminação que esses resíduos possam oferecer ao meio
ambiente, considerando a geração de resíduos químicos, radiológicos e biológicos, e
principalmente minimizar ou até mesmo extinguir os riscos de contaminação em
acidentes principalmente por perfurocortantes para os funcionários, tanto intra, como
extra-hospitalar.
AMAZONAS INTERIOR: A GESTÃO DOS RESÍDUOS DE SERVIÇO DE SAÚDE
O Estado do Amazonas possui 63 estabelecimentos de saúde que possuem centro
cirúrgico ou obstétrico, central de material esterilizado, laboratório de análises clínicas,
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serviço de radiologia e agência transfusional, com uma média de leitos de internação de
12 até o máximo de 100 leitos (SUSAM, 2006).
O Estado do Amazonas está dividido em sub-regiões constituídas segundo as
calhas dos principais rios do estado; dentro destas regiões estão os municípios-pólos, que
atendem às demandas dos municípios menores; assim também estão distribuídos os
serviços de saúde, com hospitais maiores nos pólos, possuindo de 60 a 100 leitos
(SUSAM, 2006).
Na Tabela 1 estão representadas as regiões com seus respectivos municípios-
pólos, os leitos assistenciais, a população assistida e o destino final dos RSS.
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De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico - PNSB - realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), a situação de destino final
dos resíduos sólidos urbanos por município é a seguinte: 63,6% dos municípios
brasileiros destinam o lixo a lixões e 32,2% a aterros adequados, entre estes, 13,8% a
aterros sanitários e 18,4% a aterros controlados.
Conforme a pesquisa a situação dos resíduos sólidos dos serviços de saúde
melhorou consideravelmente, com 9,5% dos municípios brasileiros encaminhando-os para
aterro de resíduos especiais (IBGE, 2000).
No Amazonas, no ano 2000, foram coletados 2.864 ton/dia, destes, apenas 1%
tiveram destino adequado (IBGE, 2000). Apesar deste dado, sabe-se que o Estado não
possui nenhum aterro sanitário licenciado, o que demonstra ausência de políticas públicas
locais com relação ao destino das toneladas de resíduo despejadas no ambiente.
O “Relatório de Diagnóstico dos Serviços de Limpeza Pública nos Municípios do
Interior do Estado do Amazonas” (2000), realizado por intermédio do Instituto de Proteção
Ambiental do Amazonas (IPAAM) e Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), descreve a
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situação da disposição final dos resíduos sólidos como sendo, sem dúvida, o mais sério
problema relacionado ao lixo no Estado. A formação de lixeiras sem nenhum controle em
áreas de grande risco ambiental e em muitos casos acessíveis a catadores e crianças,
tornou-se quase generalizada, a separação do lixo para a reciclagem é feita de forma
artesanal e dispersa.
Segundo o relatório, dos 21 municípios visitados, Humaitá e Presidente Figueiredo
possuem aterros em forma de trincheiras (Figura 1) com algum controle de recobrimento.
Todos os demais jogam os resíduos de forma desordenada em beira de estradas em
áreas alagadas, áreas de florestas, em áreas de grande valor paisagístico, ou
simplesmente em áreas já degradadas. As lixeiras costumam ser focos constantes de
fogo (Figura 5) ou acúmulo de água. Os resíduos mais leves são constantemente
espalhados pelo vento. Em vários municípios são depositados resíduos comerciais e
industriais, como pó-de-serra (Figura 6), juntamente com resíduos domésticos e
hospitalares.
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Conforme o relatório, com relação aos RSS especificamente não foram
observadas práticas de segregação nas diferentes frações dos resíduos hospitalares,
sendo o material manejado como um todo. Além disso, em vários municípios os serviços
de coleta, tratamento e destinação final dos resíduos não estão sendo conduzidos ou
custeados pelos geradores, ficando a tarefa a encargo dos municípios. Em alguns
municípios foi observada a existência de fornos queimadores do lixo hospitalar,
construídos em alvenaria (Figura 8), mas o relatório não esclarece se os fornos ainda
estavam operando. Em um dos municípios os resíduos hospitalares são dispostos em
fossas, e em outro, utiliza-se vala e cobre-se o lixo com uma camada de terra. Nos
demais a destinação final é feita nas lixeiras, as informações acerca de cada município-
pólo estão detalhadas na tabela 01 (IPAAM/ULBRA, 2000).
Informações mais recentes colhidas no IPAAM dão conta de que três aterros do
interior do Estado estão com processo de licenciamento para instalação: Coari, Itacoatiara
e Parintins, localizados respectivamente nas regiões de Rio Negro e Solimões, Médio
Amazonas e Baixo Amazonas (IPAAM, 2006).
Também com relação ao destino final dos resíduos de serviço de saúde,
informações fornecidas pela Fundação de Vigilância Sanitária são de que os fornos para
queima dos resíduos já estão em desuso, e que os resíduos estão sendo destinado para
os lixões ou aterro das cidades (FVS, 2007).
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Assim observa-se que no interior do estado do Amazonas a gestão dos resíduos
de serviço de saúde é precária, não dispõe de política, e conseqüentemente
gerenciamento dos resíduos proveniente de hospitais eminentemente públicos,
descumprimento de regulamentações, e ausência de local adequado e licenciado para
este fim tem contribuído para o destino irregular, favorecendo a exposição humana.
MANAUS CAPITAL: A GESTÃO DOS RESÍDUOS DE SERVIÇO DE SAÚDE
A capital Manaus possui 428 estabelecimentos de saúde, totalizando 2.882 leitos
hospitalares. No ano de 2004 ocorreram 2.658 óbitos hospitalares dentre os quais 487 por
doenças infecciosas e parasitárias (IBGE, 2006). No ano de 2000, foi evidenciado que
cerca de 63,6% do total de internações por doenças infecciosas sanitárias no Brasil
estavam relacionadas a um saneamento ambiental inadequado, sendo que no Norte e no
Nordeste este percentual é foi maior que 70%, principalmente pelo alto número de
hospitalizações (COSTA et al., 2001, cit. em MIRANDA, 2002).
Além da gama de enfermidades transmitidas por vetores associados á disposição
inadequada de resíduos sólidos e pela ausência de sistemas de saneamento básico
adequados, podemos citar o caso da dengue e da leptospirose, conforme mostra a
distribuição do numero de casos, de 2000 a 2006, apresentados na Tabela 2.
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O Município de Manaus não dispõe de nenhum sistema de disposição final
licenciado para os resíduos gerados nestes estabelecimentos. Eles são coletados em
carros coletores das concessionárias que prestam serviço à Secretaria Municipal de
Limpeza e Serviços Públicos (SEMULSP, 2006) e encaminhados ao aterro controlado do
Município, onde são juntados aos resíduos domésticos em uma vala e cobertos por
camadas de terra.
Na medida do possível é evitada ação de catadores, os quais foram retirados do
aterro no ano de 2004 por meio de uma ação da Prefeitura Municipal de Manaus (PMM,
2004), mas ainda existem relatos de alguns aventureiros que tentam burlar as regras e
vão ao aterro à procura de meios para sobrevivência. Todos os custos com coleta,
transporte e destino dos resíduos de serviços de saúde ainda estão sendo financiados
pela Prefeitura Municipal de Manaus.
A Secretária Municipal de Limpeza e Serviços Públicos (SEMULSP) elaborou um
diagnóstico do mapeamento das rotas de coleta hospitalar, utilizando-se de um aparelho
GPS com o intuito de avaliar o tempo gasto e a extensão percorrida pelas duas empresas
prestadoras do serviço, para coleta e transporte dos RSS, e uma balança para identificar
a quantidade de resíduos coletados, (SEMULSP, 2006).
Os dados representam todas as rotas de coleta realizada por duas empresas,
durante seis dias (segunda-feira a sábado), e estão representados no quadro 1,
mostrando uma distância muito grande em apenas uma semana de coleta, devido à
grande quantidade de pequenos geradores muito distantes uns dos outros, o que
provavelmente encarece o custo da coleta.
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Diante dos fatos questiona-se: que mecanismos estão sendo adotados na cidade
de Manaus para conter a disposição inadequada dos resíduos de serviço de saúde?
O que tem sido divulgado na mídia local é que a Prefeitura Municipal de Manaus
em breve deixará de coletar e destinar estes resíduos, mesmo porque o destino está
inadequado. Já que Manaus não dispõe de um aterro sanitário licenciado e nem há
empresas para tratar resíduos do grupo ‘A’. Neste sentido questiona-se, qual será a
alternativa para os estabelecimentos públicos de saúde, que almejam realizar tratamento
intra-estabelecimento e destinar seus resíduos, conforme preconiza a legislação
ambiental vigente?
Haja vista que as fontes de recursos financeiros são escassas e insuficientes até
mesmo para a terapêutica do paciente, menores ainda serão para terceirizar o tratamento
dos resíduos. Considere-se ainda que a única forma de tratamento local disponível é a
incineração e que o mercado ainda está se firmando, com pouquíssimas opções de
empresas disponíveis para tal serviço.
No Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) estão registradas pelo
menos 12 empresas para incineração de resíduos sólidos em geral. De posse do número
de telefone, foi feito contato com as empresas e poucas estão atuando no mercado,
apenas uma foi identificada que atua no ramo hospitalar, más o certo é que não há um
interesse focado para o ramo, talvez porque o sistema de saúde de Manaus seja quase
em sua totalidade público, isso significa um processo de parceria diferenciado, ou também
porque os hospitais não estão cumprindo as regulamentações, ou está faltando
fiscalização no cumprimento das normas.
POLÍTICA AMBIENTAL DO MUNICÍPIO
Enquanto o País não estabelece a sua Política Nacional de Resíduos Sólidos, que
se encontra em tramitação na Casa Civil, sob a forma de um projeto de lei intitulado
“Política Nacional de Resíduos Sólidos”, alguns estados brasileiros (CE, GO, MT, PE, PR,
RJ, RO, RS) se anteciparam e estabeleceram políticas estaduais por meio de legislação
especifica, em outros (AC, AP, ES, MS, PA, RR, SC, SE, SP, TO), os projetos de lei se
encontram em fase de elaboração (ANVISA, 2004), destes alguns já estão com suas
políticas estaduais definidas, como vemos o Amazonas não está incluído neste contexto.
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O Município de Manaus possui pelo menos três instrumentos legais que podem
subsidiar uma política local aplicável aos resíduos de serviço de saúde, no entanto, tem
sido orientado estritamente para o cumprimento das Resoluções Federais da ANVISA e
do CONAMA.
De acordo com essas resoluções os estabelecimentos que prestam serviços de
saúde são os responsáveis pelo correto gerenciamento de todos os resíduos por eles
gerados, cabendo aos órgãos públicos, dentro de suas competências, a gestão, regulamentação e fiscalização (BRASIL, 2006). As resoluções federais por sua vez
atribuem responsabilidade e competência ao gerador, postulando, portanto o oposto dos
instrumentos locais, que são: a Lei Orgânica do Município de Manaus, Plano Diretor de
Manaus e o Código Ambiental do Município.
A lei orgânica é o instrumento local que define as questões de resíduos sólidos é
de serviço de saúde, e possui pelo menos três artigos que atribuem competência e
responsabilidade ao município, entre estes os princípios contido no Art. 306 que é o
recolhimento do lixo hospitalar em equipamentos próprios, taxação diferenciada e rígidas
regras de controle. Neste caso a taxação foi retirada por decreto municipal em 2007.
O Plano Diretor define diretrizes para o Plano de Gerenciamento de Resíduos
Sólidos, que deverá conter estratégias do Poder Executivo Municipal para gestão dos
resíduos sólidos de modo a proteger a saúde humana e o meio ambiente e ser elaborado
pelo órgão municipal, a quem se atribui a responsabilidade pela coleta e destinação dos
resíduos sólidos no Município (DOMM, 2002).
Embora os estabelecimentos de saúde sejam os responsáveis diretos pelos RSS
por serem os geradores, pelo princípio da responsabilidade compartilhada, ela também se
estende à outros atores: poder público e empresas de coleta, tratamento e disposição
final (BRASIL, 2006).
No artigo 30, a Constituição Federal estabelece como competência dos municípios
“organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços
públicos de interesse local”.
Enquanto isso a cidade de Manaus dispõe somente de um aterro com
denominação de ‘controlado’, com capacidade praticamente esgotada, que recebe
resíduos domésticos, hospitalares e alguns industriais. A cidade não dispõe de aterro
industrial, mesmo com o Pólo Industrial instalado desde a década de 1970; o chorume
proveniente do aterro é lançado diretamente nos mananciais próximos ao aterro sem
nenhum tipo de tratamento.
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O Ministério Público do Amazonas ainda na década de 90 instalou uma ação civil
pública contra a deposição irregular de resíduos na lixeira situada no Km 19 da Rodovia
AM-010, atual aterro controlado de Manaus (Figura 9), já que provocava grandes
impactos no ambiente local, comprometendo todo lençol freático, causando risco a saúde,
em proporções irreversíveis (MPAM, 2007).
Ainda na referida ação pública considera que o deposito de resíduo a céu aberto
de resíduos domiciliares, hospitalares, especiais e outros, iniciou um processo
degenerativo do ambiente, que culminou com a poluição dos corpos hídrico das
proximidades (MPAM, 2007).
Hoje, passado 17 anos desta ação civil, o ministério público continua com esta
ação agora sob a responsabilidade da 50ª Promotoria de Justiça Especializada na Defesa
do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (PRODEMAPH), onde vigora um termo aditivo
de conciliação judicial desta ação civil pública.
O fato do Município não ter um aterro adequado e nenhum outro destino final para
os resíduos tem provocado uma acomodação por parte dos geradores de resíduos de
serviços de saúde, uma vez que pouco adianta investir em gerenciamento na fase intra-
hospitalar, se o destino final acaba sendo igual ao de todos os resíduos gerados na
cidade.
Inúmeras soluções foram desenvolvidas para o manejo dos resíduos, podendo ser
citadas os aterros controlados, aterros sanitários, incineração, compostagem e reciclagem
(IPT/CEMPRE, 2000; LIMA, 2001). E mais recentemente a autoclavagem em
equipamentos que esterilizam e descaracterizam os resíduos, e as tecnologias de
microondas e a plasma pirólise, já adotadas no Brasil.
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Porém, conforme as pesquisas do IBGE (2002), a principal forma de destinação
final dos resíduos no Brasil ainda são os lixões, usados em aproximadamente 70% dos
municípios brasileiros, ou seja, uma forma inadequada e ilegal de dispor dos resíduos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como inúmeras cidades brasileiras, Manaus não foge à regra: é composta
por diversos bairros periféricos sem infra-estrutura de serviços públicos coletivos, destino
irregular de resíduos e áreas ambientalmente degradadas. A disponibilidade de um aterro
sanitário licenciado pelos órgãos ambientais, uma política pública local, aplicada para o
manejos dos resíduos domésticos e hospitalares é o mínimo que o governo local poderá
oferecer a população, evitando assim gasto excessivos com tratamento e internação por
doenças infecciosas.
Assim conclui-se que o crescente agravamento dos problemas ambientais na
cidade de Manaus e a forma de apropriação do espaço urbano, deixa evidente as
desigualdades sociais e econômicas que se exterioriza, sendo a questão mais agravada
pela ineficácia ou mesmo ausência total de políticas públicas para o enfrentamento destes
problemas, haja vista o aumento populacional no município e com isso a demanda de
serviços de saúde.
Porém deve ser lembrado e evidenciado a importância de utilizar um sistema
adequado de gerenciamento intra-hospitalar, que pelo menos dê segurança aos
trabalhadores do setor, haja vista que os processos de segregação (separação),
acondicionamento e tratamento na fase intra-hospitalar previnem contaminação para os
manipuladores dos resíduos, bem como minimiza ou extingue os acidentes por
perfurocortantes envolvendo os funcionários.
REFERÊNCIAS
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Desenvolvimento Humano. v.I, 2004.
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AVALIAÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO DOS PROJETOS DE MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO (MDL) EM ATERROS SANITÁRIOS PARA OS ASPECTOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO BRASIL
Gabriela Pacheco Rotondaro
Programa de Educação Continuada em Engenharia – Gestão e Tecnologias Ambientais (Universidade de São
Paulo Escola Politécnica MBA/USP)
RESUMO O presente estudo avalia a contribuição dos projetos de Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) em aterros sanitários para os aspectos de desenvolvimento sustentável no
Brasil. Por sua importância nos dias de hoje, as mudanças climáticas provocadas pelo
homem induziram à formação de um mercado que segue atividades que afirmam conter
aspectos de desenvolvimento sustentável. Foram analisados dezenove projetos de MDL
em aterros sanitários, com base no Anexo III da Resolução nº 1 da Comissão
Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC). O resultado da análise indica que
a maior parte deles contribui para o desenvolvimento sustentável, porém não há uma
fiscalização e um plano de monitoramento que garanta sua execução em seu cenário de
referência.
Palavras-chave: MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo); desenvolvimento
sustentável; gases de efeito estufa; resíduos; energia.
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Avaliação da Contribuição dos Projetos de Macanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) em Aterros Sanitários para os Aspectos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil
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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Em 1987, a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas, na Noruega, elaborou um documento denominado
Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland, em que os
governos signatários se comprometiam a promover o desenvolvimento econômico e
social em conformidade com a preservação ambiental (COMISSÃO MUNDIAL..., 1991).
Nesse relatório foi elaborada uma das definições mais difundidas do conceito de
desenvolvimento sustentável: “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras
atenderem suas próprias necessidades”.
De acordo com o Relatório Brundtland, foi definida a necessidade urgente de se
encontrar formas de desenvolvimento econômico que se sustentassem, sem a redução
drástica dos recursos naturais e sem provocar danos ao meio ambiente. O Relatório
definiu também três princípios essenciais a serem cumpridos: desenvolvimento
econômico, proteção ambiental e eqüidade social, sendo que, para cumprir tais
condições, seriam indispensáveis mudanças tecnológicas e sociais. Esse documento foi
definitivo na decisão da Assembléia Geral das Nações Unidas, para convocar a
Conferência sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, dada a necessidade de redefinir
o conceito de desenvolvimento, para que o desenvolvimento socioeconômico fosse
incluído e, assim, a deterioração do meio ambiente fosse detida. A nova definição poderia
surgir somente com uma aliança entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Segundo Sachs (2007), a teoria do desenvolvimento sustentável, ou eco-
desenvolvimento, foi criada porque a maior parte das teorias que procuraram desvendar
os mistérios sociais e econômicos das últimas décadas não obteve sucesso. O modelo de
industrialização tardia ou de modernização, que foi tema de diversas teorias nas décadas
de 1960 e 1970, é capaz de modernizar alguns setores da economia, mas incapaz de
oferecer um desenvolvimento equilibrado para uma sociedade inteira. De acordo com
Brüseke (2003, citado em SACHS, 2007), a modernização, não acompanhada da
intervenção do Estado racional e das correções partindo da sociedade civil, desestrutura a
composição social, a economia territorial e seu contexto ecológico. Emerge daí a
necessidade de uma perspectiva multidimensional, que envolva economia, ecologia e
política ao mesmo tempo, como busca fazer a teoria do desenvolvimento sustentável.
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Gabriela Pacheco Rotondaro INTERFACEHS
O desenvolvimento econômico necessário à redução da pobreza, aliado ao
crescimento populacional, implicará um significativo aumento da demanda por energia
nas próximas décadas. Os impactos ambientais resultantes gerarão um conjunto de
dilemas e desafios cuja solução demandará um complexo arranjo de cooperação entre os
países com medidas de longo prazo (CONSELHO EMPRESARIAL BRASILEIRO...,
2004).
A solução para o problema não é fácil, mas é possível, e o Brasil tem muito a
contribuir nesse sentido. O papel do governo implica manter uma matriz energética pouco
intensiva em carbono, compatível com as necessidades de desenvolvimento, associada
às medidas efetivas que reduzam a taxa de desmatamento e queimadas e estimulem o
reflorestamento – pré-requisitos para a credibilidade perante a comunidade internacional
(ibidem).
O Brasil já ocupa posição privilegiada, com uma das matrizes energéticas mais
limpas do mundo e boa parte da frota de veículos movida a biocombustível. O país é
referência de como uma economia pode ser movida com níveis de emissões de gases de
efeito estufa relativamente baixos (ibidem).
CONVENÇÃO-QUADRO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MUDANÇA DO CLIMA (CQNUMC)
A Convenção-Quadro das Nações Unidas entrou em vigor no dia 21 de março de
1994. Os países que se tornaram Partes da Convenção, ou seja, aqueles que assinaram
e ratificaram o acordo, se propõem a estabilizar as concentrações de gases de efeito
estufa na atmosfera em um nível que impeça o desequilíbrio do sistema climático pela
interferência antrópica. Nesse sentido, a Convenção tem o papel de orientar os governos
no trabalho em conjunto para a implementação de iniciativas que reduzam os impactos
das atividades humanas sobre o clima, de acordo com os contextos socioeconômicos de
cada país. (CONVENÇÃO SOBRE MUDANÇA DO CLIMA, 2004).
A Convenção estabelece como ‘objetivo final’ A estabilização das concentrações
atmosféricas de gases de efeito estufa em níveis seguros. Esses níveis, que não foram
quantificados pela Convenção, devem ser alcançados num prazo que permita aos
ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, assegurando que a
produção de alimentos não seja ameaçada e permitindo que o desenvolvimento
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econômico prossiga de forma sustentável. Para atingir tal objetivo, todos os países têm o
compromisso comum de tratar da mudança do clima, adaptar-se aos seus efeitos e relatar
as ações que estão sendo realizadas para implementar a Convenção.
A Convenção, então, divide os países em dois grupos: os listados no seu Anexo I
(conhecidos como ‘Partes do Anexo I’) e os que não são listados nesse anexo (as
chamadas ‘Partes não-Anexo I’) (ibidem).
As Partes do Anexo I são os países relativamente ricos, que eram membros da
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) em 1992, e
incluem também os países com ‘economias em transição’, ou seja, a Federação Russa e
vários outros países da Europa Central e Oriental. A Convenção concede certo grau de
flexibilidade às economias em transição na implementação de seus compromissos por
causa dos grandes transtornos econômicos e políticos por que passaram esses países.
Vários deles fizeram uso dessa condição para escolher uma linha de base anterior a
1990, ou seja, antes das mudanças econômicas que provocaram grandes reduções nas
suas emissões. Isso porque seus percentuais de emissão de gases, até a data base, são
mais facilmente cumpridos.
PROTOCOLO DE QUIOTO
O Protocolo de Quioto surgiu na CQNUMC, assinada em 1992, a qual estabeleceu
o compromisso de estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na
atmosfera em um nível que impeça uma interferência perigosa no sistema climático, nível
este que deveria ser atingido permitindo aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente às
mudanças do clima, assegurando-se, ainda, o desenvolvimento sustentável
(GONÇALVES & TESSER, 2005).
A Conferência culminou na decisão por consenso (1/CP.3) de se adotar um
Protocolo segundo o qual os países industrializados devem reduzir suas emissões
combinadas de gases de efeito estufa em pelo menos 5% em relação aos níveis de 1990,
entre o período de 2008 e 2012. Esse compromisso, com vinculação legal, visa produzir
uma reversão da tendência histórica de crescimento das emissões iniciadas nesses
países há cerca de 150 anos (PROTOCOLO DE QUIOTO, 1997; MCT, 2007).
O Protocolo de Quioto foi aberto a assinaturas, e 84 países o assinaram entre 16
de março de 1998 e 15 de março de 1999. Durante esse período, incluíram-se todas as
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Partes do Anexo I, menos duas, Estados Unidos e Austrália, importantes emissores de
gases de efeito estufa, o que indica a aceitação do texto e a intenção de tornarem-se
Partes dele (estados que não assinaram também podem tornar-se Partes). Foi ratificado
pela inclusão da Federação Russa, que satisfez a exigência de um mínimo de 55 Partes
da Convenção, dentre as Partes do Anexo I que contabilizaram 55% das emissões de
dióxido de carbono desse grupo em 1990. Assim, o documento entrou em vigor dia 16 de
fevereiro de 2005 (MCT, 2007).
As reduções das emissões dos gases de efeito estufa ocorrem em várias
atividades econômicas. O Protocolo estimula os países a cooperarem entre si por meio de
algumas ações básicas:reformar os setores de energia e transportes; promover o uso de
fontes energéticas renováveis; eliminar mecanismos financeiros e de mercado
inapropriados aos fins da Convenção; limitar as emissões de metano no gerenciamento
de resíduos e dos sistemas energéticos, e proteger florestas e outros sumidouros de
carbono.
O Protocolo determina a estabilização dos GEE, definindo prazos de controle e
três mecanismos de flexibilização a serem utilizados para o cumprimento das metas,
quais são:
• Implementação Conjunta (IC) – Joint Implementation (JI) – (Art. 6 do Protocolo)
• Comércio de Emissões (CE) – Emission Trading (ET) – (Art. 17 do Protocolo)
MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO (MDL)
O MDL é um dos três instrumentos de flexibilização estabelecidos pelo Protocolo
de Quioto com o objetivo de facilitar o atendimento das metas de redução de emissões de
gases de efeito estufa definidas para os países que o ratificaram.
O MDL permite a certificação de projetos de redução de emissões nos países em
desenvolvimento e a posterior venda das reduções certificadas de emissões, para serem
utilizadas pelos países desenvolvidos como modo suplementar de cumprirem suas metas.
Esse mecanismo deve implicar em reduções de emissões adicionais àquelas que
ocorreriam na ausência do projeto, garantindo benefícios reais, mensuráveis e de longo
prazo para a mitigação da mudança do clima (STATUS ATUAL DAS ATIVIDADES...,
2007).
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Para que um projeto resulte em RCE, as atividades de projeto do MDL devem,
necessariamente, passar pelas etapas do ciclo do projeto, que são sete: elaboração de
Documento de Concepção de Projeto (DCP), usando metodologia de linha de base e
plano de monitoramento aprovados; validação (verifica se o projeto está em conformidade
com a regulamentação do Protocolo de Quioto); aprovação pela Autoridade Nacional
Designada – AND, que, no caso do Brasil, é a Comissão Interministerial de Mudança
Global do Clima – CIMGC (verifica a contribuição do projeto para o desenvolvimento
sustentável); submissão ao Conselho Executivo para registro; monitoramento;
verificação/certificação; e emissão de unidades segundo o acordo de projeto (ibidem,
2007).
A elaboração do DCP é a primeira etapa do ciclo. O documento deverá incluir,
entre outros itens, a descrição: das atividades de projeto; dos participantes da atividade
de projeto; da metodologia da linha de base; das metodologias para cálculo de redução
de emissões de gases de efeito estufa e para o estabelecimento dos limites da atividade
de projeto e das fugas; e do plano de monitoramento. Deve conter, ainda, a definição do
período de obtenção de créditos, a justificativa para adicionalidade da atividade de
projeto, o relatório de impactos ambientais e os comentários dos atores e informações
quanto à utilização de fontes adicionais de financiamento. Os responsáveis por essa
etapa do processo são os participantes do projeto. A validação é o segundo passo no
Brasil e corresponde ao processo de avaliação independente de uma atividade de projeto
por uma Entidade Operacional Designada (EOD), no tocante aos requisitos do MDL, com
base no DCP. A aprovação, por sua vez, é o processo pelo qual a AND das Partes
envolvidas confirma a participação voluntária e a AND do país onde são implementadas
as atividades de projeto do MDL atesta que dita atividade contribui para o
desenvolvimento sustentável do país (ibidem, 2007).
No caso do Brasil, os projetos são analisados pelos integrantes da CIMGC, que
avaliam o relatório de validação e a contribuição da atividade de projeto para o
desenvolvimento sustentável do país, seguindo cinco critérios básicos: distribuição de
renda, sustentabilidade ambiental local, desenvolvimento das condições de trabalho e
geração liquida de emprego, capacitação e desenvolvimento tecnológico e integração
regional e articulação com outros setores.
O Registro é a aceitação formal, pelo Conselho Executivo, de um projeto validado
como atividade de projeto de MDL. A aprovação de projetos no Conselho Executivo do
MDL é subseqüente à aprovação pela AND. A aprovação pela CIMGC é necessária para
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a continuidade dos projetos, mas não suficiente para sua aprovação pelo Conselho
Executivo, que analisa também a metodologia escolhida e a adicionalidade do projeto,
entre outros aspectos. O registro é o pré-requisito para o monitoramento, a
verificação/certificação e emissão das RCE relativas à atividade de projeto no âmbito do
MDL (ibidem, 2007).
O processo de monitoramento da atividade de projeto inclui o recolhimento e
armazenamento de todos os dados necessários para calcular a redução das emissões de
gases de efeito estufa, de acordo com a metodologia de linha de base estabelecida no
DCP, que tenha ocorrido dentro dos limites da atividade de projeto e dentro do período de
obtenção de créditos. Os participantes do projeto serão os responsáveis pelo processo de
monitoramento. A sexta etapa é a verificação/certificação. Verificação é o processo de
auditoria periódico e independente para revisar os cálculos acerca da redução de
emissões de gases de efeito estufa ou de remoção de CO2 resultantes de uma atividade
de projeto do MDL que foram enviados ao Conselho Executivo por meio do DCP. Esse
processo é feito com o intuito de verificar a redução de emissões que efetivamente
ocorreu. Após a verificação, o Conselho Executivo certifica que determinada atividade de
projeto atingiu determinado nível de redução de emissões de gases de efeito estufa
durante período de tempo específico (ibidem, 2007).
A etapa final se dá quando o Conselho Executivo tem certeza de que, cumpridas
todas as etapas, as reduções de emissões de gases de efeito estufa decorrentes das
atividades de projeto são reais, mensuráveis e de longo prazo e, portanto, podem dar
origem a RCE. As RCE são emitidas pelo Conselho Executivo e creditadas aos
participantes de uma atividade de projeto na proporção por eles definida e, dependendo
do caso, podem ser utilizadas como forma de cumprimento parcial das metas de redução
de emissão de gases de efeito estufa (ibidem, 2007).
De acordo com o Ministério da Ciência e Tecnologia (2007), classificam-se como
atividades de projeto de pequena escala do MDL: a) atividades de projetos de energia
renovável com capacidade máxima de produção equivalente a até 15 MW (ou uma
equivalência adequada); b) melhoria da eficiência energética que reduza o consumo de
energia pelo lado de fora da demanda e oferta até 60 GWh/ano; c) outras atividades que
reduzam emissões antrópicas por fontes e que, simultaneamente, emitam diretamente
menos do que 60 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente.
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RESOLUÇÕES DA CIMGC
A CIMGM estabeleceu sua forma de atuação por meio de documentos legais de
caráter orientativo sobre a matéria. O produto desse esforço se manifestou na forma de
cinco Resoluções, cujos conteúdos passam a ser detalhados, nos elementos cabíveis a
esta discussão, a seguir:
A Resolução nº 1 estabelece os procedimentos para submissão de projetos de
MDL para serem aprovados. O Documento de Concepção do Projeto; Descrição da
contribuição para o desenvolvimento sustentável (Anexo III); O Relatório de Validação
pela EOD; Termo de compromisso de envio do documento de distribuição das unidades
de RCE, a cada verificação; Documentos atestando conformidade com a legislação
ambiental e trabalhista em vigor, quando for o caso (BRASIL, 2003).
Essa Resolução nº 1 demanda obediência à legislação trabalhista brasileira, em
consonância com a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para a sua
Eliminação, no âmbito da qual está previsto processo de consulta pública aos agentes
afetados direta e indiretamente pelas atividades de projeto (ibidem, 2003). Segundo o
Anexo III da Resolução n° 1, os participantes do projeto deverão descrever como a
atividade de projeto contribuirá para o desenvolvimento sustentável, conforme alguns
aspectos (BRASIL, 2003):
O primeiro aspecto é a contribuição para a sustentabilidade ambiental local, o qual
avalia a mitigação dos impactos ambientais locais (resíduos sólidos, efluentes líquidos e
poluentes atmosféricos, dentre outros) propiciada pelo projeto em comparação com os
impactos ambientais locais estimados para o cenário de referência.
O segundo aspecto é a contribuição para o desenvolvimento das condições de
trabalho e a geração líquida de empregos, que avalia o compromisso do projeto com
responsabilidades sociais e trabalhistas, programas de saúde e educação e defesa dos
direitos civis. Além disso, estabelece o incremento no nível qualitativo e quantitativo de
empregos (diretos e indiretos) comparando-se o cenário do projeto com o cenário de
referência (BRASIL, 2003).
O terceiro aspecto aborda a distribuição de renda, que determina os efeitos diretos
e indiretos sobre a qualidade de vida das populações de baixa renda, observando os
benefícios socioeconômicos propiciados pelo projeto em relação ao cenário de referência.
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O quarto aspecto é a contribuição para capacitação e desenvolvimento
tecnológico, que computa o grau de inovação tecnológica do projeto em relação ao
cenário de referência e as tecnologias empregadas em atividades passíveis de
comparação com as previstas no projeto. Além da possibilidade de reprodução da
tecnologia empregada, observando o seu efeito demonstrativo, avaliando a origem dos
equipamentos, a existência de royalties e de licenças tecnológicas e a necessidade de
assistência técnica internacional.
O quinto e último aspecto retrata a integração e o desenvolvimento regional que
podem ser medidos a partir da integração do projeto com outras atividades
socioeconômicas na região de sua implantação.
Além da Resolução n. 1, a CIMGC editou outras 4 Resoluções tratando desde a
forma de apresentação do projeto de MDL até os aspectos que definem os projetos de
pequena escala.
AVALIAÇÃO DOS ASPECTOS AMBIENTAIS DOS PROJETOS
Os aspectos ambientais dos projetos de aterros sanitários existentes no Brasil,
segundo o Anexo III da Resolução nº 1, foram analisados por item.
Em 20 de junho de 2007 dezenove projetos constavam na página de Internet do
MCT. Desse total, três não possuem o Anexo III da Resolução nº 1. Portanto, dezesseis
projetos são avaliados a seguir.
A avaliação é feita pela comparação entre o texto do Anexo III da Resolução nº 1 e
o texto dos DCP. A avaliação se baseou em aspectos observados nos DCP e seu Anexo
III. A avaliação diferenciou entre sim e não, ou seja, o sim indica que o aspecto é
observado no documento, o não indica que o aspecto não é observado. Os itens
analisados segundo o Anexo III são: sustentabilidade ambiental local, desenvolvimento
das condições de trabalho e geração líquida de empregos, distribuição de renda,
capacitação e desenvolvimento tecnológico e integração regional e articulação com outros
setores.
O subitem Potência Elétrica Instalada, prevista e possível dos dezenove projetos
aprovados, foi analisado separadamente, através de uma tabela, com base no DCP dos
projetos analisados.
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Fonte: Manual do usuário do programa de computador Biogás: geração e uso energético – aterros. Secretaria do Meio Ambiente, Cetesb, Ministério da Ciência e Tecnologia, 2006.
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CONTRIBUIÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL LOCAL
A sustentabilidade ambiental local avalia a mitigação dos impactos ambientais
locais propiciados pelos projetos em comparação com o cenário de referência. Com base
na Tabela 1, podemos analisar que:
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Os aspectos de redução da emissão de GEE para atmosfera, redução de outros
gases tóxicos, redução de odores, aumento da estabilidade do maciço e segurança dos
trabalhadores locais estão presentes em todos os projetos.
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Os aspectos de melhoramento da qualidade de vida do entorno, tratamento de
chorume e preservação do meio ambiente se encontram em mais da metade dos projetos
avaliados.
A desativação de lixões é um aspecto presente em pouco mais da metade dos
projetos, sendo um item de grande relevância, pois a desativação dos lixões contribui de
forma positiva e diretamente para o meio ambiente.
A geração de energia é um aspecto que está incluso em poucos projetos, porém
esse aspecto será avaliado oportunamente neste documento.
O projeto de Manaus é o único que contempla todos os aspectos. Os projetos
Marca, Aurá, Sil, Caieiras e Quitaúna somente não contemplam o aspecto de geração de
energia.
Os aspectos são verificados em mais da metade do total possível de ocorrências.
DESENVOLVIMENTO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO E GERAÇÃO LÍQUIDA DE EMPREGOS
O desenvolvimento das condições de trabalho e a geração líquida de empregos
avaliam as responsabilidades sociais e trabalhistas, programas de saúde e educação e
defesa dos direitos civis, e estabelecem o incremento no nível qualitativo e quantitativo de
empregos (diretos e indiretos). Com base na Tabela 2 podemos analisar que:
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Os aspectos de geração de empregos na implantação e operação do projeto e
treinamento de funcionários e geração de empregos diretos correspondem a mais da
metade dos projetos.
O aspecto de geração de empregos indiretos é citado em metade dos projetos, e
absorção de mão-de-obra local, em apenas seis projetos, podendo se concluir que esses
não estão contribuindo como deveriam para o desenvolvimento local.
Os aspectos são verificados em um pouco mais da metade do total possível de
ocorrências.
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DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
A distribuição de renda determina os efeitos diretos e indiretos sobre a qualidade
de vida das populações de baixa renda. Com base na Tabela 3 podemos analisar que:
O aumento na renda das classes sociais mais baixas é conseqüência da geração
de empregos locais e da elevação na renda dos trabalhadores locais, devido ao
treinamento de funcionários, constante em mais da metade dos projetos. Já os aspectos
de geração de receita através de royalties e desenvolvimento de novos projetos sócio-
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ambientais estão presentes em menos da metade dos projetos.O projeto Anaconda não
contempla aspectos avaliado.
Os aspectos são verificados em um pouco menos da metade do total possível de
ocorrências.
CAPACITAÇÃO E DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
A capacitação e o desenvolvimento tecnológico avaliam o grau de inovação
tecnológica do projeto em relação ao cenário de referência e às tecnologias empregadas
em atividades passíveis de comparação com as previstas no projeto. Com base na Tabela
4 podemos analisar que:
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O aspecto de tecnologia internacional e nacional e de tecnologia norte-americana
são citados em sete projetos.
O aspecto de treinamento de funcionários desse item complementa esse mesmo
aspecto citado no item desenvolvimento das condições de trabalho e geração líquida de
empregos, sendo muito importante por evitar a contratação de mão-de-obra estrangeira.
O projeto ONYX não se enquadra em nenhum dos aspectos relacionados.
Os aspectos são verificados em menos da metade do total possível de
ocorrências.
INTEGRAÇÃO REGIONAL E ARTICULAÇÃO COM OUTROS SETORES
A integração regional e a articulação com outros setores avaliam a integração do
projeto com outras atividades socioeconômicas na região. Com base na Tabela 5
podemos analisar que:
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O aspecto de desenvolvimento nos setores econômicos, sociais e ambientais não
consta em apenas dois projetos, no entanto, os aspectos de movimentação do setor
detransporte, construção e assistência técnica local, e criação de serviços para a
população local constam de apenas sete projetos.
Os aspectos integração do setor de engenharia e destinação do lixo regional para
o aterro, minimizando a degradação ambiental, são observados em apenas cinco
projetos, e benefícios locais resultantes da geração de energia estão presentes em quatro
projetos.
Os aspectos são verificados em menos da metade do total possível de
ocorrências.
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POTÊNCIA ELÉTRICA INSTALADA, PREVISTA E POSSÍVEL
O Brasil tem potencial de geração de energia elétrica com emprego do biogás de
aterro na ordem de 180MW. Isso demonstra que o biogás recuperado nos aterros vem
sendo apenas queimado em queimador, sem a correspondente geração de energia. Com
base na Tabela 6 podemos analisar que:
O total de 40.376 t/dia de resíduo sólido urbano depositado nos dezenove aterros
dos projetos analisados tem a capacidade de gerar 8.300.000 tCO2equivalente/ano, o que
corresponde a uma potência elétrica da ordem de 165 MW.
Embora 93 MW de potência elétrica estejam previstos nos DCP, apenas 42 MW
estão instalados, sendo 22 MW no aterro Bandeirantes em atividade, e 20 MW em fase
final das obras da termelétrica no aterro São João.
AVALIAÇÃO DO PLANO DE MONITORAMENTO DOS DCP EM RELAÇÃO AO ANEXO III
Dos projetos avaliados, apenas três apresentam plano de monitoramento
correspondente ao Anexo III: Bandeirantes, NovaGerar e VegaBahia. Dos dezesseis
projetos restantes, doze não apresentam o plano de monitoramento do projeto e três não
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se encontram na página de Internet da UNFCCC (unfccc.int UNFCCC – United Nations
Framework Convention on Climate Change).
Para serem aprovados, os projetos de MDL precisam de um plano de
monitoramento com base em sua metodologia e linha de base, não sendo necessário um
plano de monitoramento para o Anexo III, que trata justamente dos aspectos de
desenvolvimento sustentável. Os projetos que possuírem esse plano são mais completos
que os demais.
ANÁLISE DA AVALIAÇÃO DOS PROJETOS EM ATERRO SANITÁRIO
Os projetos avaliados apresentam proposta de desenvolvimento sustentável,
coerente com a definição. Alguns projetos como VegaBahia, NovaGerar e Paulínia não
apresentam o Anexo III em seu DCP e não foram incluídos na avaliação.
No item de sustentabilidade local, a maioria dos projetos apresenta todos os
aspectos, porém o único aspecto com baixa expressão nos empreendimentos é o de
geração de energia.
No item de condições de trabalho e geração de empregos há projetos que não
especificam a quantidade de empregos gerada, treinamento de funcionários e absorção
de mão-de-obra local.
No item de distribuição de renda os projetos estão bem enquadrados, com a
qualificação da mão-de-obra dos trabalhadores elevando a renda destes e,
conseqüentemente, a renda local.
O item capacitação e desenvolvimento tecnológico demonstra deficiência em
relação à tecnologia nacional, pois em quase todos os projetos, exceção de
Embralixo/Ararúna e Anaconda, a tecnologia empregada é internacional.
No item integração regional e articulação com outros setores, a maior parte dos
projetos não corresponde aos aspectos avaliados. Os projetos Canabrava, Manaus, Aurá
e ONYX deixam a desejar, pois correspondem a apenas um aspecto avaliado.
Segundo a Tabela 6, a soma das potências possíveis nos dezenove
empreendimentos chega a mais de 150 MW. A geração de outros 80 MW é possível com
a inclusão da prática de recuperação do biogás nos aterros e a redução dos desperdícios
que podem ser contabilizados nos atuais empreendimentos. Esses se devem às elevadas
incertezas no projeto, ocasionando a previsão de menores quantidades de redução de
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emissão de metano do que aquelas registradas. Atualmente, apenas os aterros
Bandeirantes e São João estão aproveitando seu potencial energético.
A utilização do biogás para a geração de energia é de extrema importância para o
desenvolvimento sustentável, por ser fonte energética limpa. Os maiores geradores de
GEE no mundo provêm de matrizes energéticas baseadas em combustíveis fósseis.
Com base no texto da CQNUMC, o desenvolvimento sustentável é um direito e
dever das Partes, que devem incluir e cumprir suas regras em seus projetos de MDL.
Portanto, o Anexo III é parte das atividades do projeto e deve ser cumprido.
Entretanto, isso não está acontecendo, pois não é obrigatório um plano de
monitoramento do Anexo III da Resolução nº 1, sendo apenas um complemento opcional
ao plano de monitoramento obrigatório sobre a metodologia e linha de base.
Deveria existir fiscalização mais rígida em relação a esse requisito, que tornasse
tais projetos diferentes dos demais, devido a inclusão no seu documento da importância
do desenvolvimento sustentável para o cenário de referência e a conscientização da
necessidade da preservação do meio ambiente para as gerações futuras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que falta mais rigor na elaboração e cumprimento das propostas
descritas no Anexo III dos projetos de aterro sanitário.
Esses projetos, em seus cenários de referência, são os precursores para a
mudança nos hábitos da população local e regional em relação à qualidade de vida, à
consciência ambiental e, principalmente, ao desenvolvimento sustentável, pois são
rentáveis.
Deveria haver mais investimentos na recuperação do biogás para geração de
energia, por ser uma fonte mais limpa que não contribui para o aumento do efeito estufa,
além de ter impactos menos agressivos ao meio ambiente.
Conforme observado, deveria haver um plano de monitoramento específico para o
Anexo III, pois é ele que garante o comprometimento do projeto com o desenvolvimento
sustentável. Sugiro que seja reestruturada a maneira como são geridas as auditorias
técnicas, deixando de ser trabalho voluntário e passando a ser realizadas por membros
de diversos países, para que todos acompanhem cada projeto e sua evolução.
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Deveria ser cobrado dos países do Anexo I um maior comprometimento com cada
item que compõe o Anexo III, se o projeto não estivesse de acordo e fosse aprovado,
seria designado um prazo para se enquadrar nessa condição. Caso isso não fosse
cumprido, poderia ser cobrada multa mensal, forçando-lhe comprometimento maior com o
desenvolvimento sustentável.
O Anexo III da Resolução nº 1 está de acordo com os conteúdos da Agenda 21 e
do Relatório Brundtland, documentos que fundamentam as iniciativas de desenvolvimento
sustentável no mundo.
Este trabalho contribui para refletir sobre a credibilidade do desenvolvimento
sustentável nos projetos de MDL em aterros sanitários no Brasil.
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O Planeta Favela (Planet of Slums)
Selene Herculano INTERFACEHS
O autor, Mike Davis, 61 anos, ensaísta, urbanista, professor da Universidade da
Califórnia e editor da New Left Review, define-se como um ambientalista urbano marxista.
Não é um acadêmico Ph.D., mas um ativista sobretudo, um ex-motorista, ex-açougueiro,
autor de Prisioneiros do sonho americano (1986), que ficou mais conhecido entre nós
através dos livros Cidade de quartzo (São Paulo: Página Aberta, 1993) e Cidades mortas
(Rio de Janeiro: Record, 2001). No primeiro, desvenda a história do condado de Los
Angeles através de seus conflitos de classe e étnicos, denunciando os interesses dos
grandes agentes imobiliários e financeiros, mancomunados com os políticos e que dão
forma ao condado degradando suas paisagens, suas águas e aviltando suas gentes; no
segundo, além de Los Angeles, coloca o foco também em outras cidades americanas
(Las Vegas, Nova York) para mostrar como a grande cidade capitalista é ao mesmo
tempo extremamente perigosa e vulnerável em sua pretensão de dominar a natureza, ao
incitar uma economia do medo e ao priorizar a criação de infra-estrutura física para as
finanças internacionais às custas do subemprego e da submoradia de sua população
trabalhadora local. Se nesses livros o autor nos desvela a presença da pobreza urbana no
seio da maior potência econômico-militar do globo, no livro que a seguir resenhamos ele
se debruça sobre uma realidade que nos é mais familiar, a favelização do Terceiro
Mundo, processo que tende, segundo ele, a se generalizar.
Em seu novo livro, Planeta favela, Davis se volta para as megacidades do Terceiro
Mundo, para a generalização, agudização, extensão e multiplicação das favelas em
decorrência das políticas de ajuste do Banco Mundial. As grandes concentrações urbanas
estão no Terceiro Mundo (México e Seul, por exemplo, com populações acima de 21
milhões; Mumbai/Bombaim e São Paulo, com mais de 19 milhões, em dados de 2004).
Com base em Relatório do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas –
UN-Habitat de 2003, intitulado “The Challenge of Slums” (O desafio das favelas) e em
farta consulta bibliográfica a pesquisas específicas, Davis mostra o capitalismo neoliberal
como o responsável por uma urbanização da população mundial que se caracteriza pela
sua concentração nas favelas (um terço da população urbana total): 99,4% da população
da Etiópia, 98,5% do Afeganistão, 55,5% da população indiana, 37,8% da população
chinesa e 36,6% da população brasileira seriam faveladas. A população favelada mundial
cresceria cerca de 25 milhões de pessoas ao ano, ainda segundo a UN-Habitat. Na Ásia,
em apenas cinco cidades – Karachi, Mumbai, Délhi, Calcutá e Daca – há 15 mil favelas,
somando mais de 20 milhões de habitantes. A falta de habitação digna faz que no Cairo 1
milhão de pobres habitem um cemitério; em Hong Kong, cerca de 250 mil pessoas morem
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em telhados, poços de ventilação e ‘gaiolas’ (cobertura de arame sobre camas
suspensas); em Mumbai, vive-se nas calçadas.
O processo de favelização é variado: causado pela urbanização forçada, que
expele as populações do meio rural, como na estratégia militar apontada como tendo sido
usada por Samuel Huntington no Vietnam, para extinguir suas comunidades e solapar a
resistência contra a ocupação norte-americana; pela formação de campos de refugiados,
como em Gaza; às vezes, pelo processo de enobrecimento ou gentrificação das áreas
ocupadas pelos pobres e que passam a ser destinadas ao turismo e aos condomínios de
luxo, como em Maroko, em Lagos, Nigéria. Ou, ao contrário, pela degradação ambiental e
envenenamento de seu solo, que faz das áreas de despejo de lixo os locais de moradia e
trabalho de amplos segmentos da população: são as favelas-lixo de Quarantina, em
Beirute; Santa Cruz Meyehualco, no México; Hillat Kusha, em Cartum; Dhapa, em
Calcutá.
Embora agudizado a partir da década de 1970 pelas políticas neoliberais das
grandes finanças globalizadas, o processo de favelização (um misto de adensamento com
a inexistência de sistema de saneamento) é apontado como remontando à colonização
britânica. Os britânicos teriam sido “comprovadamente os maiores construtores de favelas
de todos os tempos” (p.61), obrigando a população africana a morar em barracos
precários à margem de cidades segregadas e restritas; recusando-se a melhorar as
condições sanitárias na Índia, na Birmânia e no Ceilão. Também os franceses, nas
favelas coloniais de Medina (Dacar), Treichville (Abidjã) e Brazzaville, Congo) recusavam
infra-estrutura sanitária rudimentar aos bairros nativos; o mesmo era feito pelo stalinismo
asiático.
Além da alta densidade sem saneamento (em Kimbera, Nairóbi, havia em 1998
dez latrinas do tipo fossa para 40 mil pessoas), o espaço urbano nas megacidades
terceiro-mundistas tenderia a se caracterizar pela diminuição da interseção entre a vida
dos ricos e a dos pobres, pelos territórios fragmentados, formando enclaves fortificados
nos quais elites desenraizadas se autoconfinam em ‘zonas totalmente protegidas’, nas
‘ilhas de cibermodernidade’, como nos condomínios Alphaville, no Brasil e na esterilidade
dos shoppings centers, enquanto os mais pobres se acotovelam nas favelas, bidonvilles,
gecekondus, superbloques e rumah panjang, agarrando-se a “fissuras de sobrevivência”
(p.197).
Por que as favelas se multiplicam? Primeiro, porque, segundo o Relatório de
Desenvolvimento Humano da ONU para 2004, o desenvolvimento recuou nos anos 90,
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porque os programas neoliberais aceleraram a demolição do emprego estatal,
promoveram a desindustrialização local e porque o pagamento dos serviços da dívida
externa absorveu recursos que seriam dos programas sociais e habitacionais.
Mas o autor aponta outras causas para a permanência das favelas: porque assim
interessa a muitos. Interessa aos políticos clientelistas; interessa à expansão imobiliária
que tolera invasões, como em Manila, para que alagados pantanosos e encostas se
transformem em terrenos habitáveis e privatizáveis; porque interessa aos landlords,
proprietários que alugam imóveis em favelas, com alta rentabilidade. (Segundo o autor,
um proprietário que pague 160 dólares por um barraco de 6 metros quadrados em Nairóbi
recupera seu investimento em poucos meses de aluguel. Os lucros oriundos do aluguel
de cortiços à pobreza já era conhecido na Londres de Thomas Flight, landlord de 18 mil
moradias, e na Nápoles do fim de século, a “Calcutá da Europa”). Interessa às quadrilhas
de funcionários públicos, policiais corruptos e intermediários conhecidos como dalals, em
Karachi, que favelizam em proveito próprio as terras públicas que supostamente deveriam
estar controladas pela agência de desenvolvimento urbano local. Interessa até às ONGs e
ao seu ‘imperialismo brando’, que intermedeia programas de dotação de verbas de
grandes fundações cujos verdadeiros beneficiários parecem acabar sendo as próprias
ONGs e não o povo local. As ONGs usurpariam as vozes dos pobres, praticariam novas
formas de clientelismo e, ao focar o tema da capacitação e da governança em ações
pontuais com o enfoque em boas práticas, evitariam as questões básicas da dívida e da
desigualdade e desencorajariam o debate e a compreensão das políticas globais
financeiras.
Outra causa apontada para a continuidade das favelas é que a informalidade
econômica da marginalidade urbana teria se tornado uma força avassaladora, como em
Allahabadad e Jaipur, na índia, e em Huancayo, no Peru. Mas o autor está longe de
engrossar o coro daqueles que louvam o empreendedorismo da economia informal e seu
pretenso papel macroeconomicamente revolucionário. Davis chama tal setor informal,
com expressão que credita a sociólogos brasileiros, de ‘proletarização passiva’. Embora
sejam dois quintos da população economicamente ativa mundial, segundo a ONU, esses
trabalhadores estão sem abrigo na economia internacional contemporânea. O setor
informal empreendedor urbano seria um mito segundo o autor, e isso por várias razões:
porque seus defensores confundem micro-acumulação com sub-subsistência; porque, em
lugar do estereótipo do autônomo heróico, a maioria dos trabalhadores informais trabalha
para outrem; porque há desigualdades internas e redes invisíveis de exploração, com o
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abuso do emprego de mulheres e de crianças; porque pesquisas teriam demonstrado o
baixo impacto do microcrédito e do empréstimo cooperativo na redução da pobreza;
porque solapa a cultura da doação e ajuda mútuas... As estratégias de sobrevivência nas
favelas sobrecarregam sobretudo suas mulheres e encurtam o horizonte de vida de seus
jovens.
A regularização fundiária defendida por muitos também é criticada pelo autor
porque individualizaria a luta por moradia, solapando a solidariedade, instalando a
competição, cooptando os moradores e fazendo disparar os preços. Seria mais uma
estratégia cômoda e fácil, um gesto de pena que dá novo alento ao paradigma da
autoconstrução, combinando-se com a ideologia anti-estatal dominante, que desobriga os
governos de suas responsabilidades.
Se as agências governamentais estão corrompidas, se as ONGs agem em causa
própria, se o empreendedorismo dos pobres é um mito, se a regularização fundiária mais
um engodo, se a política macroeconômica ditada pelos bancos fragmenta o tecido urbano
e torna uma humanidade excedente, qual a saída? Para Davis, não há saída. Há, ao
contrário, um big bang da pobreza urbana: a Rússia nos espantou com sua riqueza
instantânea e sua miséria igualmente súbita; as ‘cidades-cinderela’ indianas – Bangalore,
Pune, Hyderabad e Chennai – são bolhas de alta tecnologia e de novos milionários que
se fizeram acompanhar de mais 56 milhões de pobres (p.172). Em Bangalore haveria
mais catadores de papel e crianças de rua (90 mil) do que gênios de software (60 mil). Lá,
em dez favelas locais, pesquisadores teriam contabilizado apenas 19 latrinas para 102 mil
moradores (p.174).
A ‘saída’ tem sido o êxodo forçado, a repressão e a ação direta de financiadores
como o Banco Mundial que, independendo de votos locais, constroem ilhas de bem-
aventurança e de crescimento para poucos e promovem eventos internacionais de alto
nível que banem a população local a pretexto de campanhas de embelezamento. Para os
estrategistas militares criticados por Davis, a saída estaria em ações de guerra aos
pobres, identificados como terroristas em potencial, através de ações MOUT (military
operations on urbanized terrain) e em uma “guerra mundial de baixa intensidade e
duração ilimitada contra segmentos criminalizados dos pobres urbanos” estudada pela
Rand Corporation (p.202-205). Na disputa pelas áreas, uma outra ‘solução’ mais imediata
tem sido o fogo.
Ermínia Maricato, ilustre urbanista da USP com passagem recente no Ministério
das Cidades do governo Lula, em seu posfácio ao livro critica o autor pela falta de
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alternativa, por uma bibliografia unicamente em língua inglesa e por erros nos dados
estatísticos sobre o Brasil (aliás e felizmente, pouco citado nesse imenso rosário de
miséria urbana). Maricato endossa a crítica de um certo Tom Angotti, que teria acusado
Davis de estar no grupo dos TINA (aqueles para quem there is no alternative, isto é, não
existe saída) e por promover uma visão antiurbanista ou anticidade.
Ainda segundo Maricato, no Brasil as tendências são outras: as metrópoles
crescem menos do que as cidades de porte médio, houve uma queda na taxa de
fecundidade e de mortalidade infantil. E há saída na descentralização da gestão urbana,
sim. Maricato, todavia, concorda em que políticas locais que ignorem a macroeconomia e
a esfera nacional são armadilhas, e afirma que Davis acerta “quando remete a fonte
principal das mazelas às forças globais dominadas por interesses financeiros e garantidas
militarmente pelos Estados Unidos ou por aquilo que David Harvey denomina de Novo
Imperialismo” (p.224).
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GUIAS TÉCNICOS AMBIENTAIS DA SÉRIE P+L Flávio de Miranda Ribeiro
Gerente do Setor de Tecnologias de Produção mais Limpa/Cetesb e Secretário Executivo da Mesa Redonda
Paulista de Produção mais Limpa. Mestre em Energia – Energia Meio Ambiente e Desenvolvimento (PIPGE-
USP) e Pós-graduado em Análise Pluridisciplinar do Estado do Mundo (Cátedra Unesco-UPC, Barcelona)
1
Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
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Certamente uma das características humanas mais notáveis é a capacidade de
adaptação e constante evolução no modo de se organizar. Com a gestão ambiental,
entendendo o termo de modo abrangente, não é diferente.
Dentre as diversas possibilidades de ação sobre as interações do meio antrópico
com o natural, já há algum tempo diversas empresas perceberam os limites da
abordagem corretiva, conhecida também como ‘comando e controle’, ou ‘fim de tubo’.
Neste modelo o que se propõe, de modo simplificado, é tratar os rejeitos (sejam estes
resíduos sólidos, efluentes líquidos ou emissões atmosféricas) após a sua geração nos
processos, para que possam ser dispostos no meio ambiente de acordo com a legislação
vigente. Além do elevado custo de algumas dessas ações (tanto na instalação como na
operação dos sistemas), também não se elimina totalmente o problema da poluição –
apenas se transladam os poluentes de um meio para outro (do efluente para o lodo, ou da
emissão para o efluente, por exemplo), culminando com os custos e responsabilidades
inerentes à gestão dos resíduos até sua disposição final.
Fruto da percepção deste entre outros limites, corporações de diversos portes e
atividades passaram a desenvolver uma nova visão do seu desempenho ambiental,
segundo a qual os rejeitos são vistos como matéria-prima não aproveitada, que é
adquirida, armazenada, beneficiada, passa pelo processo consumindo insumos e mão-de-
obra, participa dos custos fixos e ao final não se torna produto, ou seja, não agrega valor.
Ao contrário, exige gastos com armazenagem, tratamento, transporte e disposição final.
Esta visão desenvolveu ao longo do tempo uma estratégia de gestão ambiental à qual
chamamos Produção mais Limpa (P+L).1
A P+L se caracteriza pela atuação preventiva em relação aos aspectos ambientais,
ou seja, em vez de tratar os poluentes gerados busca-se atuar dentro dos processos (ou
mesmo na concepção dos produtos) para reduzir a geração destes, com evidentes
benefícios não apenas ambientais mas também econômicos. Atua-se no gerenciamento
dos processos buscando o aumento de sua eficiência, e isso resulta na redução do
consumo de matérias-primas, água e energia, na minimização da geração de resíduos
sólidos, efluentes líquidos e emissões atmosféricas, entre outros possíveis benefícios.2
Esta estratégia, complementar à necessidade do controle corretivo, surgiu na
esteira do movimento pela ‘qualidade total’ da década de 19803 e foi percebida muito
antes pela própria indústria do que por governos ou pela academia, principalmente por
conta da revisão de processos realizada durante a implantação dos sistemas de gestão
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Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
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de qualidade. Atualmente, em diversas partes do mundo, órgãos ambientais se utilizam
dos conceitos e ferramentas da P+L, em sua maioria fomentando ações voluntárias das
empresas, não só por meio de marcos legais e administrativos mas também pela criação
de áreas dedicadas ao tema em seus quadros.
No estado de São Paulo, a P+L começou a ser tratada pelo órgão ambiental na
década de 1990, tendo sido introduzida por meio de um convênio entre a Companhia de
Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) e a agência ambiental norte-americana
(US-EPA). Com a realização de treinamentos e eventos o assunto passou a ser estudado
por alguns técnicos, e em 1996 criou-se uma área específica que teria como missão
apoiar e incentivar ações de P+L junto às indústrias do estado. Desde então diversas
ações têm sido realizadas, entre cursos, eventos, projetos piloto e publicações, dentre as
quais destaca-se a Série P+L.4
A Série P+L caracteriza-se por ser uma coleção de Guias Técnicos Ambientais,
escritos com foco na P+L, cada qual dedicado a um setor produtivo específico. O objetivo
dessas publicações é não apenas divulgar ações do setor, mas principalmente servir
como um Guia na acepção da palavra, orientando indústrias sobre práticas possíveis.
Para tanto, cada documento contém uma estrutura comum composta de cinco capítulos,
além de eventuais anexos.
O Capítulo 1 – Introdução consiste em uma apresentação do documento e
explanação do conceito de P+L. Não se trata de uma conceituação profunda ou mesmo
de uma completa visão sobre o assunto, mas sim de um texto breve em linguagem
simples sobre ‘do que trata’ a P+L e quais seus benefícios, de modo que se possa atingir
o público previsto, composto muitas vezes dos responsáveis pela gestão ambiental das
fábricas e outros profissionais que não têm possibilidade de despender grande quantidade
de tempo para a leitura. O intuito é atrair o leitor para a publicação e despertar a
percepção das possibilidades da abordagem preventiva proposta.
Além disso, faz-se no texto menção às diferentes possibilidades da P+L, que não
exige obrigatoriamente a implementação de um ‘sistema de gestão’ estruturado. Esta
observação tem se mostrado muito importante, visto que muitas das empresas que
procuram essas publicações são de pequeno e médio porte, as quais em geral possuem
certa resistência perante o desafio de cumprir as exigências de um sistema de gestão
completo logo no primeiro contato com o assunto. Outra observação importante diz
respeito à familiaridade com as medidas, e o que se faz é mostrar que muitas empresas já
se utilizam das práticas da P+L, sem no entanto utilizar essa nomenclatura. Ter
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consciência disso não apenas é salutar para a auto-estima dos funcionários envolvidos,
mas também fornece certo conforto e facilita a incorporação do assunto nas rotinas da
empresa.
No Capítulo 2 – Perfil do Setor se traça um panorama sobre o segmento produtivo,
sua importância socioeconômica e a distribuição das empresas – tanto do ponto de vista
geográfico como em relação ao seu porte. Principalmente para os representantes destes
setores esse capítulo parece ter importância crucial, pois demonstra sua identidade, nem
sempre conhecida ou mesmo reconhecida. Do ponto de vista da gestão ambiental essas
informações também se apresentam muito importantes, pois permitem perceber tanto
adensamentos industriais como vocações regionais, questões essenciais para o
planejamento ambiental estratégico e o correto direcionamento dos esforços de ações
locais de gestão – um exemplo é o setor de bijuterias (pequenas galvanoplastias), que
tem 37% do faturamento do país oriundo do município de Limeira, que por esta razão tem
sido objeto de projetos desenvolvidos em parceria entre a Cetesb e entidades setoriais
locais.5
O Capítulo 3 – Descrição do processo produtivo traz resumidamente as principais
operações desenvolvidas pelas empresas do setor. Conforme já dito, uma vez que a base
da ação preventiva é a revisão e a conseqüente melhoria do desempenho ambiental de
processos, a descrição destes é chave no levantamento das possibilidades de ação.
Desta forma, são apresentadas as etapas e operações efetuadas de modo estruturado,
sempre que possível usando fluxogramas e fotografias. Cabe dizer que em muitos casos
a tipologia industrial possui subdivisões, com uma seqüência básica de ‘macro-
processos’, mas com significativas variações de suas etapas produtivas, sendo então
necessário apresentar diferentes configurações. Entre os recursos usados consta um
fluxograma geral, descrevendo essas ‘macro-etapas’ comuns a todos, e os detalhes da
etapa produtiva descrevendo a particularidade de cada atividade distinta.6
Em continuação à descrição dos processos, o Capítulo 4 – Aspectos e Impactos
Ambientais apresenta uma sucinta identificação dos aspectos ambientais mais relevantes
de cada setor ou subsetor, utilizando ao máximo informações visuais como fluxogramas.
Em seguida se comentam brevemente os possíveis impactos ambientais oriundos da não
observância das leis e das boas práticas de fabricação. Estas informações são de grande
importância para alertar os empresários e técnicos sobre eventuais impactos ambientais
de suas atividades (uma vez que nem todos possuem essa visão esclarecida), e
identificar os aspectos ambientais mas significativos, postura imprescindível dentro de
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qualquer ação de gestão ambiental – por mostrar claramente a origem dos impactos da
atividade, facilitando a tomada de decisões.
É exatamente nesse capítulo que reside o maior desafio da publicação: a obtenção
de dados numéricos que quantifiquem os aspectos ambientais das diversas tipologias, de
modo representativo para a realidade do Brasil, e mais especificamente do estado de São
Paulo. Sucede que embora existam diversas fontes de informação que trazem valores
típicos desses aspectos (composição de efluentes, parâmetros de emissões e taxas de
geração de resíduos, entre outros), salvo raras e louváveis exceções esses valores
possuem sérias limitações como sua origem, obsolescência, qualidade ou
representatividade. Embora essenciais para estabelecer valores de referência para
diversos usos, essas informações são de difícil obtenção – por diversos motivos, que vão
desde a falta de uma ‘cultura de monitoramento’ em nossas indústrias, até a dificuldade
de compilação de valores (por falta de homogeneidade nos critérios de coleta e
tratamento de indicadores ambientais nas diferentes indústrias).
Atualmente a parceria entre a Cetesb e os representantes das empresas tem
como um dos principais focos a busca por esses dados, e espera-se que com a
colaboração das indústrias, que cada vez têm se mostrado mais pró-ativas, em breve seja
possível levantar valores típicos de aspectos ambientais que sejam representativos o
suficiente para determinar faixas de ‘valores de referência’ por setor, que permitam
avançar nas políticas públicas de avaliação e estímulo à melhoria de desempenho
ambiental.
Uma vez que os processos produtivos já foram caracterizados, seus aspectos
ambientais identificados e os potenciais impactos estabelecidos, o Capítulo 5 – Medidas
de P+L traz exatamente as propostas atualmente em voga para ações preventivas no
setor em questão. Por meio de levantamentos de campo e revisões bibliográficas
identificam-se boas práticas em uso, descritas no documento de modo simples e direto.
O formato desse capítulo tem sido objeto de diversas modificações, já tendo sido
usado tanto o texto corrido como tabelas contendo os principais aspectos (tais quais
‘fichas’7). Além disso, quanto à organização, em função da necessidade e facilidade de
consulta, em cada caso podemos dividir as medidas propostas por meio (água/efluente;
emissões atmosféricas; resíduos; uso de recursos/energia etc.) ou por etapa do processo
(extração de matérias-primas; beneficiamento; lavagem etc.), e em alguns casos ainda
pode ser inserida ao final uma tabela relacionando meios e etapas, para facilitar a
consulta.
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Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
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É importante ressaltar que o grau de profundidade com que as medidas são
apresentadas é bastante genérico, uma vez que, diferentemente das medidas de controle
corretivo, as oportunidades de ação da P+L são encontradas caso a caso de acordo com
as condições do processo e da planta produtiva. Assim, apresentam-se propostas e
sugestões gerais, sem indicação de qual a melhor solução ou de como se deve proceder
ao dimensionamento das instalações – cabendo a cada interessado a responsabilidade
pelo projeto específico e o dimensionamento de seus sistemas, buscando a solução que
melhor atenda às suas necessidades.
Ao final do documento, juntamente com as referências bibliográficas, podem ainda
ser inseridos anexos, a critério das partes que o elaboram e havendo justificativa para
tanto. Apenas para citar um exemplo, no caso já citado das bijuterias há um anexo que
trata de informações sobre saúde e segurança, principalmente sobre os riscos das
substâncias que são utilizadas pelas empresas desse setor, e que foi incluído por se
considerar uma informação essencial aos técnicos da área, que nem sempre estão
cientes da periculosidade à qual estão expostos.
Um aspecto muito importante dessas publicações é sua divulgação. Assim, além
da disponibilização dos documentos nas páginas da Internet das diversas instituições que
participam da elaboração dos documentos, o que se faz é realizar um evento para
lançamento da publicação. Além disso estão em elaboração folhetos para cada um dos
Guias, que consistem num resumo (em apenas uma folha A4, dobrada uma vez), que
poderá ser distribuído amplamente pelos representantes das empresas e pelas Agências
da Cetesb, alertando para os principais pontos do documento e chamando à sua leitura
na íntegra.
Pode-se dizer que a confecção dos Guias da Série P+L possui algumas
características que merecem destaque:
Parceria com entidades representativas das empresas: seja com o
objetivo de enriquecer o material elaborado com informações
atualizadas e representativas, seja para facilitar a penetração junto
às empresas do setor, ou mesmo para divulgar os documentos.
Muito embora alguns dos primeiros Guias da Série P+L tenham sido
elaborados sem essa colaboração, atualmente todos os trabalhos
são feitos dentro dessa filosofia – com as entidades e algumas
empresas mais pró-ativas colaborando com informações, dados
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Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
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numéricos, visitas técnicas e na divulgação junto aos associados.
Cabe destacar que a própria metodologia de trabalho acabou se
revelando um dos grandes resultados positivos deste trabalho, por
ser fundamentada na parceria e no diálogo entre governo (órgão
ambiental) e iniciativa privada (representantes das indústrias), para
consecução de um objetivo comum – criando uma situação de
confiança mútua que no futuro poderá beneficiar diversas outras
ações além desta Série P+L;
Participação de especialistas na elaboração dos documentos: uma vez
que a P+L trata de mudanças nos processos (seja em produtos,
equipamentos, procedimentos, matérias-primas e insumos, entre
outros), entende-se que deve haver sempre a participação de
especialistas nas tipologias industriais em questão nas discussões.
Em geral esses são técnicos das empresas, que estão envolvidos
cotidianamente na gestão ambiental dessas operações e, portanto,
são aqueles com mais capacidade para abordar o assunto, embora
em alguns casos exista a colaboração de consultores do setor
produtivo;
Constante evolução de forma e conteúdo: muito embora haja uma clara
definição do tipo de informação que deve constar de cada
publicação, tanto a profundidade como a linguagem dos
documentos têm sido aperfeiçoadas continuamente, de modo a
melhor atender as necessidades dos usuários. Assim, sempre que
necessário e a critério das partes, poderão surgir novas edições de
Guias já publicados, incorporando melhorias de formato ou
acrescentando novas informações, na medida da disponibilidade
destas junto aos setores;
Livre acesso: considerando não apenas o caráter da parceria realizada,
mas principalmente o intuito de divulgar o mais amplamente
possível esses documentos, toda a Série P+L encontra-se
disponível nas páginas da Internet das instituições que colaboraram
em sua elaboração, isenta de custos.
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Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
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Quanto aos setores produtivos já abordados, até o momento já foram publicados
13 Guias Ambientais da Série P+L,8 para as seguintes tipologias:
• Gráficas;
• Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos;
• Sucos Cítricos;
• Bijuterias;
• Curtumes;
• Cerveja e Refrigerantes;
• Produtos Lácteos;
• Graxarias;
• Frigoríficos;
• Abate – suínos e bovinos;
• Cerâmica branca e de revestimento;
• Tintas e Vernizes;
• Papel e Celulose.
Atualmente, está sendo negociada a elaboração de novos Guias da Série P+L
para 2008, para diversos setores como: galvanoplastias (grande porte), fundição,
trefilação e condutores elétricos, circuitos impressos, cerâmica vermelha e extração de
areia, entre outros. Nesse ínterim, é importante ressaltar que a Cetesb está sempre
aberta a novas propostas dos representantes dos setores produtivos, quer por meio de
entidades de classe, quer por meio das Câmaras Ambientais – órgãos colegiados de
caráter consultivo para a SMA/Cetesb, compostos de representantes do governo e de
empresas das respectivas tipologias industriais.9
Com a publicação da Série P+L a Cetesb espera não apenas oferecer informações
ambientais às indústrias e aos seus próprios técnicos, mas principalmente avançar no
diálogo com a iniciativa privada, rumo à parceria para a evolução de ferramentas de
gestão modernas e eficazes, que por meio de situações de benefícios mútuos permitam
cumprir sua missão de preservar e melhorar a qualidade ambiental de nosso Estado.
8©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.3, n.1, Resenha 2, jan./abril. 2008
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Guias Técnicos Ambientais da Série P+L
Flávio de Miranda Ribeiro INTERFACEHS
NOTAS 1 Segundo a definição original das Nações Unidas, “Produção mais Limpa (P+L) é a aplicação contínua de uma estratégia ambiental preventiva integrada, aplicada a processos, produtos e serviços, para aumentar a eficiência global e reduzir riscos para a saúde humana e o meio ambiente. A Produção mais Limpa pode ser aplicada a processos usados em qualquer indústria, a produtos em si e a vários serviços providos na sociedade. Para processos produtivos, a P+L resulta em medidas de conservação de matérias-primas, água e energia; eliminação de substâncias tóxicas e matérias-primas perigosas; redução da quantidade e toxicidade de todas as emissões e resíduos na fonte geradora durante o processo produtivo, de modo isolado ou combinadas; para produtos, a P+L visa reduzir os impactos ambientais e de saúde, além da segurança dos produtos em todo o seu ciclo de vida, desde a extração de matérias-primas, manufatura e uso até a disposição final do produto; para serviços, a P+L implica incorporar a preocupação ambiental no projeto e na realização dos serviços”. Versão original disponível em: www.uneptie.org/pc/cp/understanding_cp/home.htm#definition. 2 Maiores informações sobre os benefícios potenciais da P+L podem ser encontradas em: www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/beneficios.asp. 3 Deve-se ressaltar que antes dessa data já havia alguns casos isolados de empresas utilizando-se desses princípios, sendo o exemplo mais conhecido o programa “3P – Pollution Prevention Pays”, da 3M, datado de 1974 e talvez a primeira iniciativa conhecida de P+L. Mas foi apenas na década seguinte que o conceito passou a ser divulgado e discutido, e tomou a forma atual. 4 Para maiores detalhes sobre as ações da Cetesb em P+L, ver: www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/apresentacao.asp. 5 Para conhecer um pouco mais sobre este projeto, consultar este documento: www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/documentos/problemas_solucoes_bijuterias.pdf. 6 Um exemplo desse procedimento pode ser visto no Guia de Produtos Lácteos, com macro-etapas como: recepção de leite e ingredientes; processamento; tratamento térmico; elaboração de produtos; envase e embalagem; armazenamento e expedição, ao qual se segue o detalhamento para os diferentes subsetores, para a produção de diferentes produtos, tais como leite UHT; queijos; requeijão; creme de leite; manteiga; leite condensado; leite em pó; doce de leite; iogurte; sorvete e recuperação de soro. 7 Para um exemplo do formato de texto corrido, ver o Guia de Curtumes. Para o caso das ‘fichas’, ver o Guia de Produtos Lácteos. 8 A Série P+L pode ser acessada toda no site da Cetesb, em: www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/documentos.asp. 9 Informações sobre os setores para os quais a Cetesb/SMA mantém Câmaras Ambientais, bem como sua composição, atribuições e funcionamento, constam em: www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/camaras/apresentacao.asp.
9©INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.3, n.1, Resenha 2, jan./abril. 2008
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